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Considerações sobre

Artigos

criminalidade: marginalização,
medo e mitos no Brasil

Geélison Ferreira da Silva


Geélison Ferreira da Silva é sociólogo (Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes), mestrando em sociologia

(UFMG), bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e pesquisador do Centro de

Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp).

Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil

geelisonfs@yahoo.com.br

Resumo
Este trabalho procura ampliar o debate sobre a criminalidade violenta no Brasil, a partir de uma abordagem sociológica.
Discutem-se a definição de crime e violência e alguns aspectos da criminalização e marginalização de grupos sociais
ao longo da história brasileira, bem como mitos e teses equivocadas recorrentes ao se tratar desse assunto. É abordada
também a questão do medo da violência, que pode trazer consequências negativas para a sociedade em geral, e
apresenta-se uma reflexão sobre a diferenciação social e estigmatização inseridas em processos de construção de
identidade e dominação social e simbólica.

Palavras-Chave
Crime. Violência. Marginalização. Mitos. Medo.

90 Revista Brasileira de Segurança Pública | São Paulo Ano 5 Edição 8 Fev/Mar 2011
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E ste texto aborda o processo de crimina-
lização e marginalização da pobreza ao
longo da história brasileira, destacando o pa-
O crime varia apenas em suas formas e
punições, dependendo dos valores de cada
sociedade, de seu grau de tolerância ou acei-

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pel do positivismo jurídico, bem como mitos tação para com determinados atos. Por isso,
e teses equivocadas recorrentes na atualidade, o crime não deixa de existir, mas somente
quando se trata do fenômeno da violência. Em muda a forma com que se apresenta, e tem
um complexo de manifestações sociais ligadas menores ocorrências e manifestações diver-
à criminalidade, tem-se o medo da violência sas de acordo com o grau de coesão social. A
como outro fator de segregação social. transgressão é um fenômeno presente onde há
regras e se manifesta em todas as sociedades,
A palavra violência frequentemente nos independentemente de seu nível de “desen-
remete a crimes como assassinato, estupro, volvimento”; logo a ocorrência do crime não
roubo e lesão corporal, guerras, terrorismo, estaria relacionada às condições econômicas
entre outras variedades. Pensamos que vio- (DURKHEIM, 2002; ZALUAR, 1996).
lência e crime violento são a mesma coisa e
não levamos em conta que nem toda violên- Violência é um termo amplo e polissêmico.
cia é considerada crime. Como crimes violentos, segundo a categoriza-
ção utilizada pelas polícias, têm-se, geralmen-
Durkheim (2002) trata do crime a partir te, homicídio, tentativa de homicídio, estupro
da moral. São os valores coletivos que defi- e roubo. Mas é possível enumerar, além da vio-
nem o que é certo ou errado fazer, o que é lência criminal, outros tipos, como a violência
criminoso e o que é lícito. A sociedade, para simbólica e a institucional.
reafirmar seus valores e se manter, pune as
transgressões. A punição aplicada ao trans- Pierre Bourdieu (1990) utiliza o conceito
gressor é útil para que os demais indivíduos de violência simbólica como sendo a domina-
não sigam o mau exemplo, tendo em vista ção de uma classe sobre a outra, por meio do
as consequências. Dessa forma, o crime se que ele chama de poder simbólico. O autor
apresenta como útil, pois possui uma função cita o exemplo de um “bairro chique”, com
definida quando mostra níveis considerados diversas características que expressam simbo-
normais e quando punido. Crime é a trans- licamente o acúmulo de capital social, cultural
gressão de regras socialmente preestabeleci- e financeiro, consagrando seus habitantes por
das, que variam de acordo com a sociedade e meio da exclusão ativa de pessoas indesejáveis,
o contexto histórico (DURKHEIM, 2002). ao passo que outro bairro, estigmatizado, pro-

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voca degradação simbólica de seus moradores, História de marginalização
que, não possuindo os privilégios daqueles ou- A história brasileira traz fortes marcas
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tros, somente têm em comum entre si o fa- de marginalização. Têm-se um escravismo


tor excomunhão. Há apropriação de espaços que custou cessar e, depois da escravidão,
físicos, sociais e simbólicos que se influenciam a manutenção dos ex-escravos em situação
mutuamente, definindo posições na sociedade, de desprivilegio. Ideologias que contribuem
nos lugares, bem como classificações simbóli- para manter não brancos em desvantagens
cas existentes (BOURDIEU, 2007). sociais colaboraram para tanto. É evidente
que, desde o início da colonização do Bra-
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Já a violência institucional seria aquela co- sil, há muito o que se falar sobre crime e
metida pelos órgãos e agentes públicos. Pode marginalização, entretanto, para este artigo,
ser violência física exercida pelas polícias e considerou-se conveniente se ater a essa par-
exércitos sobre civis, mas também falta de te mais recente da história, a partir dos anos
acesso a bens e direitos como saúde e educa- finais do século XIX.
ção, podendo ocorrer sem o uso da coação fí-
sica (MORGADO, 2001; PENA; GUEDES, O conceito de marginalização, ao longo
2009; SANTOS; FERRIANI; 2009). do texto, é utilizado para designar situações
de diferenciação social que conferem privi-
Observa-se que violência é um termo po- légio para alguns grupos em detrimento da
lissêmico desde a sua etimologia, o que con- estigmatização, dominação, criminalização e
tribui para a dificuldade de sua definição. Do desprivilegio dos “marginalizados”, tal como
latim violentia, ou vis, seria remetida a força, empregado por Coelho (1978), Paixão (1990)
vigor, emprego de força física ou os recursos e Misse (2007), que aplicam o conceito em
do corpo em exercer a sua força vital. Tal for- seus estudos, tomando o termo com sentido
ça tornar-se-ia violência ao ultrapassar deter- de estigma social.
minados limites, adquirindo carga negativa
ou maléfica (ZALUAR, 1996). O positivismo,1 fundamentado nas ideias
de August Comte, com algumas alterações, é
Apesar da dificuldade de se definir o que é introduzido no Brasil por grupos de políticos
violência, certamente não é algo que se restrin- e intelectuais do século XIX e início do XX.
ge aos limites do crime ou à quebra de regras A maioria dos adeptos e difusores da doutrina
sociais. Ocorre de forma autônoma em relação positivista era de classe média, constituindo
à criminalidade e à moral coletiva. O estabele- uma elite provisória de bacharéis em direito,
cimento de um comportamento ou ato como medicina e engenharia, além de escritores, fi-
crime é uma construção social complexa, que lósofos e militares (BASTOS NETO, 2006;
não será aprofundada neste texto, entretanto, PAIXÃO, 2000; STANCIK, 2006).
serão apresentadas algumas observações sobre
criminalização, marginalização e estigmatiza- O contexto do afloramento dos ideais posi-
ção social no Brasil. tivistas no país se deu no início do processo de

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urbanização e industrialização. O crescimento em meio a uma realidade de pobreza. Hou-
de cidades como São Paulo e Rio de Janei- ve alinhamento e confusão entre segurança

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ro ocorreu a partir da queda na produção de pública e segurança nacional. Para a manu-
algodão e cana-de-açúcar, no Nordeste, e do tenção da ordem, em situação de eminente
crescimento da lavoura cafeeira. Ideias volta- desordem, era necessária uma polícia polí-
das para o novo cenário passaram a circular tica. Instituiu-se um Estado corporativista,
com a ampliação da classe média, trazida pela que fortaleceu a dualidade Estado/Povo, o
urbanização. Os positivistas propunham o or- que desencadeou o fortalecimento de insti-
denamento da sociedade, tomando como base tuições repressoras, extrapolando o papel de

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os padrões das ciências físicas e naturais, tendo manutenção da ordem. Além disso, surgiu o
como meta o progresso a ser alcançado com problema da contenção da pobreza nos mor-
o auxílio do que chamavam de “física social” ros e da atuação da polícia exercendo papel
(BASTOS NETO, 2006; PAIXÃO, 2000; político (BASTOS NETO, 2006).
STANCIK 2006).
A partir do último quartil do século XIX,
De forma geral, eles se opunham à monar- a elite constituída pautava-se basicamente
quia, entretanto, apresentavam significativas em racismo, positivismo e evolucionismo.
contradições, tal como incoerências entre o O eugenismo apareceu com o intuito de as-
discurso político e a conduta da vida profis- segurar condições de salubridade e sanear a
sional e privada dos agentes, que mantinham a raça. O darwinismo social ganhou espaço,
escravidão em suas propriedades. Estas incoe- adquirindo importância no cenário intelec-
rências levaram o conjunto institucional de- tual brasileiro em um ambiente cientificista,
nominado Estado a se desenvolver de forma racista e determinista, cuja inspiração vinha
repressora, chegando a ser chamado de “Esta- da Europa. Além dos médicos, a missão do
do contra o povo”. Destaca-se a união entre engenheiro, e dos positivistas de forma ge-
os positivistas e os militares, que se tornaram ral, era regenerar o país degenerado pelo
os grupamentos políticos mais importantes cruzamento racial, pois só assim o progres-
quando do surgimento da República. Tal so poderia ocorrer (BASTOS NETO, 2006;
união exerceu forte influência na postura das STANCIK, 2006).
forças armadas no seu envolvimento com o
Estado brasileiro (BASTOS NETO, 2006). Com a assinatura da Lei Áurea, em 13 de
maio de 1888, os ex-escravos podiam desfru-
Tinha-se a ideia de positivação das rela- tar da liberdade, não fossem tão precárias as
ções sociais por meio de políticas eugênicas condições de vida quando se tornaram “li-
e ações que passavam pelo sanitarismo e a vres”. A liberdade esperada veio por meio
higienização dos indesejáveis. Nesse contex- não só de pressões externas, mas também de
to, teorias racistas buscam explicar o atraso movimentos de resistência. Apesar da liber-
da sociedade brasileira. Havia uma tentativa dade oficial, muitos ex-escravos preferiram
de higienização coletiva e indução à ordem permanecer nas casas de seus senhores a tro-

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co de salários baixos. Frequentemente, maus Em 1929, um dos temas discutidos foi “o
tratos persistiam (ASSIS, 1994). problema eugênico da migração”. O boletim
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publicado propunha a extinção das migra-


Em contrapartida, morar com o senhor era ções não brancas. É evidente a ideologia da
útil quando se era encontrado nas ruas pelas superioridade da raça branca/ariana se mani-
autoridades, já que, nesse período, os motivos festando na tentativa de embranquecimento.
mais frequentes para as prisões eram vadiagem
e embriaguez. Muitos dos ex-escravos que op- Correntes científicas e ideologias como
taram pela liberdade ou foram obrigados a sair o positivismo, higienismo ou sanitarismo
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da casa do senhor ficaram sem trabalho, o que social e evolucionismo contribuíram para a
era considerado crime de vadiagem na época. manutenção da ordem estabelecida, favore-
Além de não possuírem as condições necessá- cendo, assim, “os poderosos” em detrimento
rias para uma vida de qualidade, os ex-escravos dos que não possuíam algum tipo de poder,
eram tidos como criminosos. Não ter empre- seja econômico, político ou de outra espécie
go fixo era considerado crime de vadiagem. (COELHO, 1978).
Buscava-se transformar o Rio de Janeiro, en-
tão capital da nascente República, em cidade Além disso, o sistema judiciário brasileiro
modelo para todo o país, uma “capital limpa”, herdou dos colonizadores o modelo inquisi-
“Cidade Maravilhosa” (ZALUAR, 1996). tório, no qual o que importa é que o réu faça
sua confissão; e ainda, durante a inquisição,
A República brasileira, que foi procla- aqueles que recebiam denúncias de estarem
mada em 15 de novembro de 1889, adotou praticando uma religião diferente da imposta
como símbolo a bandeira com as inscrições eram cruelmente punidos. A punição se dava
ordem e progresso, o que faz referência ao lema junto aos que, de alguma forma, contraria-
do positivismo: “O amor por princípio, ordem vam a ordem vigente. Este modelo, apesar de
por base, o progresso por fim”. Tem-se o início não ser mais praticado oficialmente no país,
da construção da República fundamentada deixou resquícios que ainda afetam direitos
sobre ideais positivistas que estavam direta- dos cidadãos (ZALUAR, 1996).
mente relacionados ao evolucionismo.

Em 1908, foi criada a Eugenics Society. O Marginalização atual: mitos da crimina-


termo eugenia foi criado por Francis Galton lidade e teses equivocadas
(1822-1911), que o definiu como o estudo Em “Os estabelecidos e os outsiders”, conclui-
dos agentes sob o controle social que podem se que, por meio da construção da identidade
melhorar ou empobrecer as qualidades ra- de superioridade de um grupo, em contrapo-
ciais das futuras gerações, seja física ou men- sição à identidade de inferioridade de outro,
talmente. Entre os objetivos da Sociedade pode-se corroborar para a manutenção de pri-
de Eugenia no Brasil, tinha-se a extinção das vilégios para aquele tido como superior. Tais
migrações não brancas (GOLDIM, 2009). privilégios podem ser materiais/econômicos,

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bem como de status/simbólicos. Estabelecidos como imundos, não limpos. Para se evitar
ou establishment é conceito utilizado para de- contaminação pela imundície, social e física,

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signar grupos e indivíduos que ocupam posi- os estabelecidos evitam contato intergrupos
ções de prestígio e poder, tidos como de “boa (ELIAS; SCOTSON, 2000).
sociedade”, a partir de uma identidade social
construída pela combinação de tradição, au- Em casos que existem características he-
toridade e influência. Já os outsiders são justa- reditárias diversas entre os grupos estigma-
mente o oposto: não membros da “boa socie- tizados e os estabelecidos, como a cor da
dade” (ELIAS; SCOTSON, 2000). pele, essa relação de dominação é analisada

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frequentemente sob o rótulo de “problemas
Questionam-se os motivos de, apesar de raciais”. Quando os envolvidos não perten-
os habitantes da parte mais antiga da vila cem à mesma nacionalidade ou língua, o pro-
com pseudônimo de “Winston Parva” apre- blema é considerado de “minorias étnicas”.
sentarem poucas diferenças de renda, edu- Quando ocorre desigualdade social, diz-se
cação ou tipo de ocupação e, algumas vezes, ser questão de classe. Seja qual for a dife-
mesmo no que diz respeito à delinquência em rença estabelecida, ela exerce papel central
relação à parte mais recentemente ocupada, para a afirmação da identidade enquanto
tanto os mais antigos, denominados velhos, superior em detrimento da estigmatização
quanto os mais recentes, chamados de novos, de outro grupo a partir da construção de ró-
classificam os velhos como establishment e os tulos (ELIAS; SCOTSON, 2000). Existem
novos como outsiders, inferindo ao primeiro estereótipos constituídos no Brasil, capazes
grupo superioridade em contraposição ao se- de marginalizar e estigmatizar, haja vista as
gundo. A estigmatização por meio do rótulo diversidades étnicas, culturais, físicas, além
exerce poder paralisante nos que pertencem da gama de desigualdades sociais. Ideolo-
aos grupos de menor poder, entravando sua gias que associam a criminalidade à pobreza
capacidade de retaliação ou mesmo de mo- atribuem o problema da violência às classes
bilização das fontes de poder ao seu alcance menos favorecidas.
(ELIAS; SCOTSON, 2000).
Hipóteses clássicas na sociologia do cri-
No caso, moradores das partes mais an- me, assim denominadas por Beato (1998, p.
tigas da vila concordavam que as pessoas da 3), referindo-se à tentativa de encontrar res-
parte mais nova pertenciam a uma espécie postas para as possíveis causas da violência,
inferior. Esse processo é denominado sociodi- acabaram por defender a tese de associação
nâmica da estigmatização. Tem-se uma “hie- entre o aumento nos índices de criminalida-
rarquia classificatória” seguindo uma “ordem de e pobreza.
de status”. Os estabelecidos são bem dotados Uma delas nos diz que criminalidade e violência
de “boas maneiras”, ao passo que os outsiders, são fenômenos cuja origem se deve essencial-
além de serem tidos como desordeiros e des- mente a fatores de natureza econômica; priva-
respeitadores de leis e normas, são avaliados ção de oportunidades, desigualdade social e

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marginalização seriam estímulos decisivos para vel de disputas intersubjetivas pela imposição de
o comportamento criminoso (Parker e Smith, significados morais às ações, portanto no plano
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1979; Taylor et al., 1980).[...] Na realidade, es- de uma reação moral bem sucedida por parte de
tas abordagens possuem uma série de elementos indivíduos e grupos contra comportamentos de
de continuidade, na medida em que a realidade outros (MISSE, 2007, p. 58).
estrutural da pobreza, relativa ou absoluta, é que
possibilita o florescimento de uma subcultura da Assim, a imprensa e a polícia e outras fon-
violência (WOLFANG; FERRACUTI, 1967). tes de informações acerca da criminalidade
apresentam um caráter espúrio por serem so-
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Diversos pesquisadores, como Beato (1998), cialmente contaminadas. Além de essas fontes
Zaluar (1996), Campos (1980), Paixão (1995), estarem completamente contaminadas pelo
Machado da Silva (1999), Misse (2007), Ador- próprio objeto, elas também representam con-
no (1996), Wacquant (1999), entre outros, textos sociais transcendentais. Nos Estados
contrapõem-se à associação direta entre crime e Unidos, o racismo era mais explícito do que
pobreza, mas esta relação ainda se encontra viva a pobreza, que também era menor do que no
em diversos setores da sociedade, bem como no Brasil. Uma possibilidade para o elevado nú-
pensamento de vários agentes. mero de negros presentes nas estatísticas poli-
ciais norte-americanas talvez possa ser explica-
Esta associação faz com que o crime seja do pelo racismo lá presente. No Brasil, a con-
combatido e punido com maior rigor e fre- taminação se dá pelos nossos déficits culturais
quência nas classes mais economicamente e estruturais (MISSE, 2007).
desfavorecidas, em detrimento do favore-
cimento, da tolerância e da impunidade de Misse (2007) expõe cinco teses equivocadas
crimes cometidos tipicamente e/ou ocasio- sobre violência e criminalidade e Paixão (1990)
nalmente por indivíduos detentores de poder apresenta três mitos da sociologia da violência e
(CAMPOS, 1980). da criminalidade. O primeiro mito consiste em
considerar as classes mais desfavorecidas como
Estes comportamentos estão conectados as mais propensas a serem praticantes de crimes
às representações sociais, seguindo padrões (PAIXÃO, 1990). Ao tratar da tese que corre-
e roteiros que se assemelham e se interligam laciona pobreza e criminalidade, Misse (2007)
à estrutura social. O que ocorre em relação diz que também poderia ser chamada de teoria
à possibilidade de a pobreza ser um deter- das classes perigosas, teoria da marginalidade ou
minante da criminalidade é o fato de que as estratégias de sobrevivência.
contravenções típicas dos que são tidos como
pobres recebem maior repugnância por parte Para estes autores, tal perspectiva parece
dos grupos dominantes e reproduzem a aver- não levar em conta que o crime ocorre em
são às intuições de controle (MISSE, 2007). todos os extratos sociais. Não considera o
Supõe-se que o processo pelo qual uma ação fato de a maioria da população, apesar de
chega a ser considerada “crime” começa ao ní- participar dos “extratos inferiores”, optar por

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receber baixos salários não buscando maio- Não é feita diferenciação entre a criminali-
res lucros com práticas ilícitas. Não leva em dade difusa das ruas e a criminalidade violen-

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conta que a maioria dos crimes é cometida ta das rebeliões e motins. Esses grupos eram
por jovens do sexo masculino em todos os interpretados como ameaça à segurança das
estratos sociais. Além disso, estudos mostram elites e à autoridade política. A aliança entre
a redução dos índices de criminalidade ao a marginalidade e o narcotráfico traz de vol-
mesmo tempo em que aumentam os níveis ta a “metáfora das classes perigosas”. Essas teses
de desemprego, o que também pode ser uti- ou mitos não se sustentam principalmente
lizado como argumento contra a associação após a organização do crime que ora se apre-

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direta entre crime e pobreza (BEATO, 1998; senta muito mais como empresas que, dentro
CAMPOS, 1980; GLASSNER, 2003). do sistema capitalista, buscam mais meios de
lucratividade do que algum benefício coletivo
O mito ou tese equivocada do crime asso- (MISSE, 2006; PAIXÃO, 1990; ZALUAR,
ciado à pobreza cria estereótipos, marginali- 1996). “Ao argumentar a tese da associação po-
za e criminaliza a pobreza, em vez de se fo- sitiva entre pobreza e criminalidade concede-se
calizar na violência que é a pobreza. Rotula o aval não apenas a distorções dos dados oficiais.
os que são tidos como pobres, fazendo com Mas também – e muito mais grave – as perver-
que uma proporção extremamente grande da sões das práticas policiais que os produzem”
população seja culpada por algo que é prati- (CAMPOS, 1980 p. 378).
cado por minoria.
O terceiro mito do qual Paixão (1990) se
O segundo mito que Paixão (1990) se con- opõe refere-se à ordem e à desordem. Para o
trapõe engloba as classes perigosas, vagabun- autor, as categorias podem se confundir no
dos, criminosos, prostitutas, desempregados e conluio das autoridades públicas e dos focos
subempregados e apresenta tais grupos como de desordem, ou seja, entre lei e transgressão,
emergência à ordem social. Assemelha-se às para não dizer entre os que defendem a ordem
terceira e quinta teses contestadas por Misse legal e os que a transgride. Afinal, não há como
(2006). A terceira agrupa capoeiras, negros garantir que aqueles denominados defensores
e mulatos das favelas, mas diz que utilizava da lei e da ordem em certos momentos tam-
de estratégias como a ética da malandragem bém não ajam como transgressores.
como técnica de sobrevivência. Já a quinta
relaciona a violência à luta de classe. Uma das A segunda tese equivocada apresentada
críticas realizadas é a de que a maioria dos por Misse (2007) é a de que o “bandido” se
crimes não é praticada em benefício de uma encontra nas áreas mais pobres da cidade, o
“classe” específica, como se o bandido fosse que não procede, já que os mais altos índices
um “Hobin Hood” que rouba dos ricos e doa de criminalidade, aos menos os crimes con-
aos pobres, mas, ao contrário, o crime se dá tra a propriedade, se dão em regiões mais ri-
em favor de interesses individuais e restritos cas (BEATO, 1998; MISSE, 2007); a quarta
(MISSE, 2007; ZALUAR, 1996). tese corresponde à atribuição do aumento da

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criminalidade aos migrantes da zona rural, se que tal crescimento não é correspondente
principalmente nordestinos e nortistas. En- ao aumento da criminalidade, mas sim à con-
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tretanto, verifica-se que o crime é praticado jugação de três causas: o declínio do ideal de
nas mesmas proporções, independentemente reabilitação; a utilização do medo pelos po-
da origem (MISSE, 2007). líticos e mídia; e a função de mecanismo de
controle racial assumido pelo sistema penal no
No período 1938-1945, foi instituído o país. Revela-se, com isso, o enfraquecimento
Código Penal brasileiro, que ainda vigora. A do Estado de Bem-Estar Social, substituído
proposta era “modernizar” o Sistema Judiciário por um Estado Penal. Em contraste com a
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de acordo com as tendências tidas como mais redução do número de funcionários em ser-
modernas, logo, as escolas Positiva e a Clás- viços sociais e educação, dobram os funcioná-
sica. Na ocasião, a ditadura varguista vigente rios em prisões (WACQUANT, 1999).
buscava apaziguamento e subordinação do tra-
balhador. Os principais contraventores eram Nesse contexto, há duas tendências impor-
de bairros típicos de operários e as análises de tantes: primeiro, a proporção de presos por in-
processos na época levaram à identificação da fringir a legislação de entorpecentes aumentou
valorização do trabalho. Nos processos, foram de 5%, em 1960, para um terço dos presos,
inseridos documentos e informações pessoais em 1995; segundo, ocorre maior punição para
a respeito da vida cotidiana do réu. A maioria os negros. Enquanto a população americana
não possuía recursos para contratação de advo- possui 7% de negros, a proporção de negros
gados e recebia atendimento gratuito se com- na prisão chega a 55%. Em um período de
provasse ser trabalhador, o que também era uti- 20 anos, a população encarcerada nos Estados
lizado como defesa. Entretanto, se a função de- Unidos quadruplicou. Considera-se que o fe-
sempenhada não fosse considerada “de bem”, o nômeno também tem relação com processos
advogado perdia matéria de defesa. Isso explica de criminalização de segregação históricos.
as diferentes condenações para o mesmo tipo Pode-se dizer que os negros cometem mais
de crime. O ato criminoso em si não implicava crimes por serem mais pobres, entretanto, por
condenação, sendo relevante a condição social crimes da mesma natureza, eles são mais de-
do contraventor. O trabalho era o atestado de tidos, denunciados e rigorosamente condena-
boa índole e honestidade, especialmente se tal dos (WACQUANT, 1999).
trabalho estivesse ligado a órgãos policiais. Em
casos de crimes passionais contra a mulher, a No Brasil, também há uma “preferência”
redução de pena e absolvição eram frequentes, dos meios de repressão pelos mais pobres,
especialmente quando se envolviam amantes bem como uma sub-representação dos mes-
ou prostitutas (PETRINIA, 2006). mos como funcionários do sistema de justiça.
Em 2000, entre os juízes e desembargadores
Ao analisar o crescimento exponencial do federais, aproximadamente 7% se declararam
número de detentos nos Estados Unidos a pretos ou pardos; dos bacharelados, 14% eram
partir de meados da década de 1970, percebe- negros. Entre promotores, defensores públicos

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e similares do Ministério Público e Defensoria, crime, são registrados mais frequentemente
12% eram negros. Tais proporções são consi- os praticados por pobres (NEVES, 2010).

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deradas baixas, ao se comparar com o perfil
populacional brasileiro (PNUD, 2010). Analisando sentenças condenatórias, fo-
ram encontradas características que favorecem
Os negros são os mais vitimados por crimi- uma condenação mais severa, tais como ocu-
nosos, bem como as principais vítimas da po- pação e profissionalização, escolaridade, gêne-
lícia. Em pesquisas de opinião realizadas entre ro, origem regional, idade e, de maneira mais
1995 e 1997, o único grupo social que tinha intensa, a cor. Como nos Estados Unidos, são

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mais medo de policiais do que dos bandidos os mais pobres, mais jovens e negros que rece-
era o de negros. Nas abordagens de rua, há bem maior punição no Brasil. Enquanto 27%
maior manifestação de preconceito em razão dos brancos respondem processo em liberda-
do menor controle institucional. Existe maior de, o mesmo só ocorre com 5% dos negros,
proporção de revista, prisão e morte de pretos de acordo com pesquisa. Mais dependentes
pela polícia, comparando-se com brancos em da defesa oferecida pelo Estado, os negros,
termos absolutos e proporcionais. No Estado por serem mais pobres, são desfavorecidos em
do Rio de Janeiro, a proporção de negros mor- seus julgamentos. Esta discriminação ocorre-
tos pela polícia é três vezes maior do que a pro- ria por serem pobres e não por serem negros,
porção de negros na população total, enquanto enquanto os brancos possuem maior contato
a de branco é menos da metade. Estes indícios com advogados particulares por serem mais
sugerem viés racista nas forças de repressão. abastados (ADORNO, 1996).
Considera-se que os negros, além de recebe-
rem maior repressão policial, também possuem
mais dificuldade de acesso à justiça criminal e Medo da violência
ao direito de defesa. Ao ser comparado com Diversos estudos têm tratado do medo da
o branco, a probabilidade de ser condenado é violência e seus efeitos no comportamento
aproximadamente 9% maior para pardo e pre- social, alterando inclusive a arquitetura das
to (PNUD, 2010). cidades, fazendo emergir muros e cercas elé-
tricas, entre outros dispositivos de segurança
Uma teoria que trata da desigualdade na que trazem como consequência a segregação
repressão criminal é a da associação diferen- (CAMINHAS & BRAGA, 2006; CALDEIRA,
cial. Ao serem observadas 70 empresas que 1997).
receberam algum tipo de condenação por
atividades chamadas de crime de colarinho Além disso, “o medo do diferente, daque-
branco, verifica-se que, apesar da condena- le que não se encaixa nos padrões da norma-
ção, tais empresas não entraram nas estatísti- lidade econômica e cultural, tem como con-
cas de crime. Edwin Sutherland, um impor- seqüência principal o aumento da própria
tante teórico desta perspectiva, indica que, violência contra estas pessoas” (BAIREL;
embora não haja maior predisposição para o ALMENDRA, 2007, p. 272). Dessa forma,

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tem-se um medo que não auxilia na solução Estado para o poder privado. É um fato que,
do problema da violência, mas sim contribui segundo Musumeci (1998), pode trazer sérias
Artigos

para a gravidade do mesmo. consequências, como ameaças à manutenção


dos direitos humanos. Ainda existem aqueles
O medo em si é uma condição natural do que defendem a transferência das funções de
ser humano. É natural inclusive para os ani- segurança para a iniciativa privada, embasan-
mais irracionais, que muitas vezes garantem do-se nos argumentos:
sua sobrevivência se protegendo dos perigos. a) comprovada incapacidade de o Estado deter
Entretanto, no caso do ser humano, o medo o avanço da criminalidade nos grandes centros
Considerações sobre criminalidade: marginalização, medo e mitos no Brasil
Geélison Ferreira da Silva

se apresenta de formas diversas, em diferen- urbanos; b) a ineficiência da segurança pública


tes lugares e épocas. Existem diferenças em (e dos serviços estatais de um modo geral), em
relação ao medo dos outros animais, visto termos de relação custo-benefício; c) a inoperân-
que a humanidade possui elementos cultu- cia concreta dos mecanismos protetores de que
rais próprios, que muitas vezes determinam o indivíduo dispõe contra os abusos do Estado,
medos particulares, não sentidos por todas mesmo em países democráticos [...] d) a “disci-
as sociedades, tal como ocorre com catego- plina” rigorosa que o mercado impõe sobre as
rias morais, como a própria distinção en- empresas privadas de segurança e estas sobre o
tre o que é ou não crime (BAIREL, 2004; comportamento de seus agentes: omissão e abu-
CAMINHAS, 2006; MELO, 2008). sos implicam perda de mercado, logo perda de
lucros; serão, portanto, mais eficazmente coibi-
Assim, o medo se faz presente em todos dos; e e) a possibilidade de aliviar o Estado e os
os indivíduos e, além de ser natural, exerce contribuintes da pesada carga que representa a
uma função relevante e evidentemente sau- manutenção do sistema carcerário, transforman-
dável. O problema está no medo excessivo, do-o em empreendimento produtivo e lucrativo,
provocando desconfiança, criminalização e capaz de operar a custos mais baixos e garantir
até mesmo violência. Ademais, se tem a pri- uma gestão mais racional e segura desses espaços
vatização da segurança e sua transformação (MUSUMECI, 1998, p. 1).
em produto a ser consumido e pago, sendo,
por esse motivo, restrito a quem possui meios Percebe-se, em meio à complexidade do
para adquiri-la no mercado. tema da segurança no Brasil, que segurança
privada tem ganhado espaço diante do medo
Cabe ao Estado o monopólio do uso le- e do descrédito estatal. Em um período de dez
gítimo da força e, assim, garantir a seguran- anos, o número de pessoas ocupadas na ati-
ça de cidadãos e propriedades. Entretanto, vidade de vigia e guarda no Brasil aumentou
como demonstram os dados da Pesquisa Na- 111,9% (MUSUMECI, 1998).
cional por Amostra de Domicílios (PNAD),
cresce o setor de segurança privada, pela Questionamos acerca daqueles que não
transformação da segurança em mercadoria e têm condições de adquirirem bens de segu-
a transferência do “uso legítimo da força” do rança privada. Tem-se um processo que exclui

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duplamente os menos abastados de poder eco- que 87% de 1.068 entrevistados no país são
nômico. Primeiro, porque geralmente não têm a favor da redução da maioridade penal. O

Artigos
acesso a esses bens da chamada Indústria do medo acaba por corroborar a legitimação de
Medo. Calcula-se que apenas “[...] indústrias, políticas repressivas (ALMEIDA, 2008).
comércio e condomínios fechados mantêm,
hoje, aproximadamente um milhão e trezentos A alta exposição dos crimes violentos na
mil trabalhadores na segurança privada, que mídia contribui para que a população tenha
vem tendo um incremento de 30% ao ano.” uma percepção da violência maior do que ela
(MELO, 2008, p. 1). Segundo, por serem seja de fato. Esta exposição, ao contrário da

Considerações sobre criminalidade: marginalização, medo e mitos no Brasil


Geélison Ferreira da Silva
esses menos abastados, normalmente, os que nossa primeira impressão, não colabora para
recebem o rótulo de criminosos e marginais, a amenização do problema, mas, ao contrá-
como apresentado anteriormente. Essas duas rio, agrava-o. A mídia, ao fazer esta explora-
consequências marginalizadoras fazem com ção dos crimes violentos, contribui para que a
que esses grupos, além de não poderem se pro- sociedade tenha receio em relação aos desco-
teger da violência pela iniciativa privada, sejam nhecidos, em especial pobres e estereotipados
culpados pelos grupos dominantes, bem como (CAMINHAS, 2006; GLASSNER, 2003).
pelo Estado por meio dos sistemas de justiça, A separação entre ricos e pobres, no Brasil,
controle e repressão pela violência existente. se apresenta por meio de obstáculos físicos
como cercas elétricas, circuitos de segurança e
Políticos aproveitam-se da sensação de in- muros, que formam barreiras para a cidadania
segurança instalada para produzirem discur- (CAMINHAS, 2006; CALDEIRA, 1997).
sos a respeito de uma política de segurança
pública repressiva, geralmente atingindo as O histórico de desigualdades do Brasil
camadas menos privilegiadas. Passa a fazer se reproduz no sistema de punição e justiça
parte das estratégias eleitorais a construção criminal. O positivismo jurídico, por meio
simbólica de um cenário de violência contra- de uma ideologia higienista, evolucionista e
posta a propostas repressivas como solução à racista, contribuiu para um tratamento desi-
violência construída. É mais simples inserir gual para o crime nos diferentes grupos so-
policiamento ostensivo nas chamadas “áreas de ciais, especialmente os negros e pobres. Os
risco” do que implantar políticas que permitam ideais positivistas corroboraram para a con-
acesso a bens como saúde, educação, trabalho solidação de um sistema viciado em reprimir,
e lazer em áreas pobres (CAMINHAS, 2006; para tentar controlar massas empobrecidas,
GLASSNER, 2003; STEVANIM, 2006). carentes de trabalho e qualidade de vida.

A exacerbação do sentimento de medo e a Processos de estigmatização, marginali-


criminalização se conectam no espaço urba- zação e criminalização criam estereótipos de
no, tornando adolescentes pobres os princi- criminosos, cujo perfil geralmente envolve
pais alvos da repressão e punição, o que é ex- ser pobre e negro. Como resultado, tem-se a
presso em resultados de pesquisa, mostrando promoção de dois tipos de violência sobre os

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que se enquadram no estereótipo de crimi- consumo não pode acessar os bens materiais da
noso a partir da correlação entre pobreza e segurança privada para se proteger. Além disso,
Artigos

criminalidade, ao passo que o perfil de mar- o medo é manipulado com o intuito de garan-
ginal indica que os não pobres são também tir votos pelo recrutamento de adeptos a uma
os não criminosos. Esta marginalização da cruzada contra a violência.
pobreza é uma violência simbólica que co-
loca os desfavorecidos economicamente em A violência nas cidades deve ser vista sob
situação de outsiders ante os abastados, que duas vias. Um tipo de violência é a dos crimes
são considerados estabelecidos. praticados nas ruas (principalmente) das gran-
Considerações sobre criminalidade: marginalização, medo e mitos no Brasil
Geélison Ferreira da Silva

des cidades e que pode atingir a todos. O se-


Negros, pobres e jovens sofrem de violência gundo tipo é a violência praticada pela própria
institucional, por não acessarem plenamente cidade, que massacra os pobres, marginalizan-
os serviços de educação, saúde, entre outros do e criminalizando esses cidadãos. Enquanto
direitos para uma boa qualidade de vida, e ain- se diz que os pobres da cidade são violentos, a
da sofrem repressão policial intensa e têm seu atenção da violência que eles sofrem é inverti-
direito de defesa comprometido no sistema de da. A violência de se morar próximo de condo-
justiça criminal, além da violência simbólica mínios de luxo e mansões fortificadas, muitas
sofrida, ao serem responsabilizados pela vio- vezes, sem ter acesso a bens básicos para ga-
lência. Mitos da violência e teses equivocadas são rantir razoáveis condições de vida é esquecida
utilizados para conferir legitimidade à inclina- (PEDRAZZINI, 2006).
ção do sistema a uma maior abordagem e pu-
nição sobre os marginalizados. Assim, o fenômeno da violência possui alta
complexidade, em que imputações de causas
Também atua de forma perversa sobre es- isoladas como a pobreza podem trazer graves
ses grupos o medo da violência, promovendo consequências sociais. No caso brasileiro, em
a segregação social por meio da insegurança que os estudos de crime ainda começam a
em relação a desconhecidos, especialmente os ganhar corpo, é importante ter cautela, bem
estereotipados, e criando barreiras físicas que como estar consciente dos processos históricos
expressam o distanciamento social e transfe- e dos vícios existentes no sistema ao se abor-
rem a responsabilidade do Estado sobre a se- dar o assunto. Isto para que, na tentativa de se
gurança da população para o setor privado, combater a violência criminal, não sejam pra-
que se encontra como um nicho do mercado ticados outros tipos de violência, tais como a
em ascensão. Logo, quem tem baixo poder de simbólica e a institucional.

1 O positivismo jurídico é uma doutrina que atribui validade exclusiva e absoluta ao direito positivo. Para o positivismo, o direito emana da vontade e a ela se
impõe, podendo ser uma força socialmente dominante (SOUSA et. al., 1998).

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Considerações sobre criminalidade:
marginalização, medo e mitos no Brasil

Artigos
Geélison Ferreira da Silva

Resumen Abstract

Considerações sobre criminalidade: marginalização, medo e mitos no Brasil


Geélison Ferreira da Silva
Consideraciones sobre criminalidad: marginalización, Considerations on criminality: marginalization, fear and
miedo y mitos en Brasil myths in Brazil
Este trabajo procura ampliar el debate sobre la criminalidad This paper seeks to broaden the debate on violent crimes
violenta en Brasil, a partir de un abordaje sociológico. Se in Brazil from a sociological standpoint. The definitions
discuten la definición de crimen y delincuencia y algunos of crime and violence, aspects of the criminalization and
aspectos de la criminalización y marginalización de grupos marginalization of some social groups throughout Brazilian
sociales a lo largo de la historia brasileña, así como mitos history, and some recurrent myths and mistaken theses
y tesis equivocadas recurrentes al tratar de este asunto. Se addressing these issues are discussed. The fear of violence,
aborda también la cuestión del miedo a la delincuencia, que which may bring negative consequences to society at large,
puede provocar consecuencias negativas en la sociedad en is also discussed. Finally, a reflection on the roles of social
general, y se presenta una reflexión sobre la diferenciación differentiation and stigmatization in the construction of
social y estigmatización inseridas en procesos de construcción personal identity and in social and symbolic domination is
de identidad y dominación social y simbólica. presented.

Palabras clave: Crimen. Delincuencia. Marginalización. Keywords: Crime. Violence. Marginalization. Myths. Fear.
Mitos. Miedo.

Data de recebimento: 07/05/2010


Data de aprovação: 30/08/2010

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