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Panorama do Antigo Testamento - Unidade I - Pentateuco: origens do povo de Deus

Panorama do antigo
testamento

Unidade I - Pentateuco:
origens do povo de Deus

Autor: Wallace de Góis Silva


Revisor técnico: Kassio Lopes

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Wallace de Góis Silva
Panorama do Antigo Testamento - Unidade I - Pentateuco: origens do povo de Deus

Introdução
Bem-vindo(a) à primeira unidade da disciplina Panorama do Antigo Testamento!

Na palavra Bíblia temos, literalmente, uma biblioteca de pequenos livros. A Bíblia


Sagrada, então, consiste em uma coleção de escritos com valor religioso e espiritual
para a milenar tradição judaica, a começar pelas Escrituras Hebraicas. E, mais adiante,
para o cristianismo, que acrescentaria um novo testamento ao que até então era “a Lei
e os Profetas”, reinterpretando-os e trazendo novas aplicações à vida comunitária do
grupo que se tornaria a maior religião do mundo, de influência fundamental aos rumos
do pensamento e da vida do Ocidente.

Esta disciplina traça um panorama do, assim chamado pelo cristianismo, Antigo
Testamento, que consiste na apropriação (claro que com tradução, organização e
interpretação próprias) do conjunto de escritos de fé da comunidade judaica ao longo
da história. A Bíblia Hebraica ou Tanakh registra e testemunha a trajetória do povo
hebreu (mais tarde israelita e, então, judeu), a partir de sua própria cosmovisão, da sua
teologia em particular. Na poesia da Criação, começa situando o leitor no início de
todas as coisas, num evento de tempo indefinido, arquetípico, e vai evoluindo até à
reconstrução pós-exílio babilônico de Jerusalém, por volta de 530 a.C.

Isto posto, propomos uma reflexão a respeito das origens dos textos bíblicos do AT, a
começar pelo Pentateuco, mostrando a importância inicial desses textos e abrindo o
caminho para os estudos teológicos.

Bons estudos!

1. Antigo testamento
A Bíblia Hebraica surgiu como a forma escrita de uma narrativa da comunidade de
tradição religiosa e cultural judaica, e seu resultado foi recebido como registro da
Palavra de Deus, o que requer de seus leitores uma abordagem teológica. Por isso, este
estudo não tentará estabelecer um vínculo entre uma possível facticidade histórica e a
pretensa validade transcendental dos textos, entendendo que tal esforço não se faz
necessário e, na verdade, pode ter um resultado até desfavorável a tal propósito.

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Trilharemos, isto sim, na direção de compreender, de antemão, a Bíblia como


testamento, memorial e registro sagrado da fé e da vida de uma pequena nação, feita
de grupos distintos e narrativas miscigenadas, que se viu chamada de “Povo de Deus”.
Na transmissão oral e, muito depois, em forma de texto, aquele povo procurou
preservar sua história sob a perspectiva de guardar, em diversos sentidos, a expressão
e manutenção da memória e do significado mais profundo de sua existência, que
consiste na crença quase incondicional em um Deus que caminha e interage
ativamente com seus filhos e filhas.

Inescapavelmente, nos depararemos com o fato de que, na Bíblia, a “palavra de Deus”


assumiu o desafio de entrar na linguagem humana e ser expressa por meio dos
discursos falados e redigidos. Isso significa que a revelação divina foi sendo recebida,
interpretada, anotada e copiada em contexto e situação históricos específicos e
particulares. Deu-se envolvida em aspectos e complexidades linguísticas e culturais do
povo que a recebeu e a aplicou em seu cotidiano, determinando sobremaneira seu
sentido e suas opções teológicas.

De modo algum, isso significa que a abordagem mais adequada das Escrituras deva
ignorar a contribuição das ciências como história, filologia e arqueologia. Pelo
contrário, elas nos ajudam a analisar com os recursos mais avançados possíveis o
processo que deu origem aos textos bíblicos. Na verdade, as ciências são
indispensáveis, se quisermos compreender a Bíblia, sem sufocar seu sentido original
(ou o mais próximo que pudermos chegar dele), tendo em vista o afastamento de
muitos séculos, quilômetros e processos de compreensão entre os leitores/estudantes
atuais e os escritores.

Fica nítido que o Deus, apresentado ao longo das escrituras, entrou no mundo humano
e se comunicou por meio da linguagem, dos meios culturais, das questões
socioeconômicas e se inscreveu na história humana, a partir de uma comunidade
formada por gente de diferentes origens. São muitos os processos de assimilação da
teologia ao cotidiano e da disputa entre diversas tradições que, ao longo do tempo,
foram dando forma ao conjunto de textos.
A Escritura é uma síntese teológica de toda essa dialética histórica, cultural e social,
cuja textualização aconteceu ao longo de cerca de mil anos e, a cada novo episódio e
impressão ocorridos, a noção de Deus e da ética que espera de seu povo ia se
refazendo, retomando pontos ou abraçando novas perspectivas. Contudo, o momento
mais importante da escrita é a época ao redor do exílio babilônico, que ocorre por
volta de 580 a.C.
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A primeira versão do AT já estava pronta em 200 a.C, a Bíblia Hebraica, que continha
três categorias de livros: Torá (Lei), Nebiim (Profetas) e Ketubim (Escritos). O conjunto
delas se torna em Tanakh, cujo nome faria um acróstico dos conjuntos de rolos.

Durante a tradução para o grego, contudo, houve também adaptação, reorganização


e reinterpretação dos livros para o contexto helenizado, bem como a inserção de textos
escritos já em grego, representando o período posterior à dominação de Alexandre
Magno. Dentre os escritos reconhecidos nessa época, estão Baruc, Eclesiástico,
Sabedoria, Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus. Também acréscimos a Daniel e Ester. A
mesma lógica foi mantida nas versões latinas, adotadas como oficiais pela Igreja
Católica e, mais tarde, rechaçada pelos protestantes que preferiram a versão hebraica
pré-septuaginta.

Estes outros relatos da experiência histórica e de fé do povo judeu, que contam os


eventos ocorridos após a queda dos persas e ascensão do império greco-macedônio,
tiveram sua sacralidade questionada mais tarde, exatamente pelos traços helenizados
que apresentavam, num movimento de reconstituição de uma identidade teológico-
nacionalista ideal, que priorizou características como a língua hebraica, o recorte
cronológico e as concepções filosófico-teológicas, neles contidas. Restou-lhes,
entretanto, a classificação de deuterocanônicos nas versões bíblicas que os
mantiveram.

Para entender melhor os acontecimentos que envolvem as narrativas bíblicas, situamos


este estudo na cronologia abaixo:

Do êxodo ao fim do reino unificado:

Ano Aprox. (a.C) Acontecimentos

1250-1230 Êxodo: Moisés e seu grupo deixam o Egito

1220 Sob Josué, os hebreus entram na Cisjordânia

1130 Vitória das tribos israelitas, com a juíza Débora

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1100 Aumento do domínio e presença dos Assírios

1040 Samuel: sacerdote, juiz e profeta

1030-1010 Saul, o primeiro rei de Israel

1010-972 Reinado davídico sobre Israel

972-933 Reinado de Salomão: dedicação do Primeiro Templo,


divisão do Reino em Norte e Sul após sua morte

Reino dividido e cativeiro de Israel e Judá:

Ano Aprox. Acontecimentos Ano Acontecimentos


(a.C) Aprox.
(Reino do Norte - Israel) (a.C) (Reino do Sul - Judá)

933 Jeroboão se torna rei; 933 Roboão, filho de Salomão, se


torna rei
Templos de Betel e Dã

900 Israel em guerra contra Síria e 912-871 Rei Asa, se alia à Síria;
Judá
Guerra contra Israel

875-853 Rei Acabe: aliança com Judá; 870-846 Rei Josafá: aliança com Israel

Elias, o grande profeta

852-841 Eliseu, sucessor de Elias - -

787-747 Relativa paz com rei Jeroboão II; - -

Amós e Oséias

747 ss. Monarquia de Israel em declínio 740 Tiglate-Pileser III, rei dos assírios
político

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722/721 Samaria, capital, tomada pelos 735-716 Rei Acaz ajudado pelos assírios;
Assírios; Adora seus deuses

População deportada para


Assíria

716-687 Rei Ezequias; Profeta Isaías;

tentativa de independência

701 Rei Senaqueribe (babilônios)


contra Jerusalém

640-609 Rei Josias e reforma


deuteronomista do estado e do
culto

612 Babilônios tomam Nínive, capital


da Assíria

609 Batalha em Megido contra faraó


Necao;

Morre o rei Josias

605-562 Nabucodonosor, rei da Babilônia

598-597 Rei Jeconias (Jeoiaquim) cativo


com 1ª leva de judeus para
Babilônia

589 Rei Zedequias discorda de


Jeremias e promove levante
contra Babilônia

587/586 Destruição de Jerusalém e do


Templo;

2º grupo de judeus exilados;

Jeremias levado ao Egito

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582/581 3ª etapa dos cativos

561 Reabilitação de Jeconias (fim da


historiografia deuteronomista)

Declínio da Babilônia e dominação Persa:

Ano Aprox. (a.C) Acontecimentos

556-539 Belsazar vice-rei da Babilônia

539 Medos e persas, domina a Babilônia;

Reintegração dos povos dominados anteriormente

538 Ciro determina reconstrução de Jerusalém e do Templo

520-515 Líder reformista Zorobabel; sacerdote Josué

458 Possível atuação de Esdras

445-432 Atuação de Neemias

404-359 Possível atuação de Esdras

Do império greco-macedônico à dominação romana:

Ano Aprox. (a.C) Acontecimentos

333 Imperador Alexandre Magno, admirador do helenismo

323 Divisão do império em reinos após morte de Alexandre

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312 Dinastia dos Ptolomeus (Egito) sobre a Judeia

200 Dinastia dos Selêucidas (Síria) sobre a Judeia

167 Antíoco Epífanes persegue judeus e profana o Templo;

Revolta de Matatias e macabeus

164 Templo é restaurado

160 Hasmoneus: novos reis da Judeia;

Seitas judaicas dos fariseus e essênios

63 Roma toma a Judeia;

Disputas entre Pompeu e Júlio César, generais romanos

44 Assassinato de Júlio César

37 Herodes se torna rei da Judeia (Palestina)

2. Pentateuco: a origem de um povo em cinco livros


O grande e simbólico líder daquele povo – mesmo sendo uma personagem de
localização histórica inexata, conquanto de vultuosa importância identitária e teológica
– é Moisés, porta-voz de Deus e patrono da legislação e da fé do antigo Israel. A forte
influência judaica no cristianismo constituiria o paradigma das escrituras cristãs:
Mateus, Marcos, Lucas, João e Atos são as narrativas fundantes e originárias do Novo
Testamento; e, Jesus Cristo, filho de Deus, é o seu Moisés. Inclusive, a tradição de Jesus
nos evangelhos se estabelece em constante diálogo e ressignificação da lei mosaica e
da hermenêutica que faziam dela.

A Torá (cujo sentido original agrega noções hebraicas do que poderíamos entender
como uma combinação de lei, instrução e ensinamento) é a confluência, nem sempre
harmoniosa, de várias tradições contemporâneas e em disputa, mas todas, de alguma
forma, são apropriações e acepções da revelação de Deus a Moisés.

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A lei de Deus - a Torá - é, por princípio, indivisível, mas os judeus adotaram uma
distribuição criteriosa de seu conteúdo em cinco rolos menores, o que facilitaria seu
manuseio, locomoção e posteriores reproduções e revisões, e inferiria uma sequência
a ser adotada na compreensão dos escritos. Inicialmente, os livros formados não
tinham títulos e sequer possuíam os atuais nomes heleno-latinizados.

Mais tarde, porém, cada volume seria intitulado com a palavra inicial do texto hebreu,
o que deu ao primeiro livro, Gênesis (origem), o coincidente nome de Bereshit, que
significa princípio, começo. O segundo, que chamamos de Êxodo no sentido de saída,
fuga, migração, é Shemot: literalmente “nomes” e se aproxima da ideia de ouvir,
atender a um chamado ou ordem. Depois temos Vaykra (“e chamou”), o nosso
Levíticos, justamente porque é relacionado à tribo sacerdotal de Levi e às regras que
envolvem o culto. O quarto livro, Bamidbar, isto é, “no deserto”, será rebatizado de
Números (do grego Arithmoi), pois registra um recenseamento do povo. Por último
vem Haddebarim, “eis as palavras”, recebido na tradição cristã como Deuteronômio,
que significa segunda lei.

Com efeito, o levante e queda de impérios que conquistavam a região e impunham


seus padrões, ao lado do intercâmbio com diversos povos vizinhos, trouxeram desafios
culturais, linguísticos e religiosos que provocaram profundas mudanças na sociedade
do antigo Oriente Médio e, consequentemente, na comunidade judaica já dispersa por
muitas partes do mundo de então. Os judeus se deram conta de que o hebraico se
tornava uma língua cada vez menos acessível às novas gerações e acabaram
traduzindo as escrituras para o grego. Nisto, também, os nomes dos livros foram
alterados por títulos que expressam o conteúdo de seu texto. Essas mudanças, como
se nota, permaneceram em nossas versões porque foram preservadas na tradução
latina da Bíblia, a Vulgata.

3. Origens literárias da Torá


Os estudos literários e exegéticos da Bíblia têm tornado possível enumerar e empregar
esforço sobre as obscuras questões que envolvem a formação do texto do Pentateuco,
visto que conhecemos sua versão final, mas pouco se sabe sobre as tramas que
recobrem suas origens. Uma delas é a de que dificilmente a autoria dos textos poderia
ser atribuída a uma só pessoa (i.e, Moisés) e período histórico, tendo em vista
importantes variações de estilo, concepções de mundo, histórias paralelas de outros
povos, mesmo que, aqui ou ali, o nome de um indivíduo possa sobressair e até receber
os créditos.
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Seria impossível, também, comprovar sua coerência histórica, visto que as escrituras
hebraicas são, em muitos casos, as únicas fontes disponíveis sobre os episódios
relatados. Mesmo assim, podemos adotar a perspectiva que predomina entre
especialistas atualmente. Houve, inicialmente, um longo período de recepção,
adaptação e divulgação oral das narrativas, antes que elas pudessem ser registradas. A
escrita também demandaria significativo esforço de gerações, alcançando sua maior
produção e consolidação no período do exílio babilônico e posterior a ele.

As pesquisas levantaram três hipóteses que recaem sobre as possíveis origens da Torá.
Na primeira delas, o Pentateuco teria sido composto por diferentes enredos e
narrativas básicas, localizados em datas, perspectivas e lugares divergentes e até
concorrentes, mas que serviriam de fontes ou documentos base para uma posterior
redação definitiva, que resultaria nos textos que chegaram até nós.
Outra tendência, oposta à primeira, é a de que teriam existido incontáveis fragmentos
de textos, de origens variadas, dificilmente identificáveis, mas que foram agrupados
em um só documento, num processo análogo ao de uma colcha de retalhos.

A terceira segue o raciocínio da complementaridade, e pode-se dizer que procura


harmonizar as duas outras correntes mencionadas: esta linha entende que houve sim
tanto as fontes ou documentos narrativos que serviram de base (1), quanto fragmentos
textuais aproveitados integralmente (2), mas tecendo-se uma trama, em certo sentido
progressivo, que foi ganhando forma ao longo de muitos anos e com a participação
de diferentes autores.

Nesse sentido, há que se notar que, sem dúvida, um dos modelos que mais obteve
destaque nos estudos modernos da Bíblia foi o que atribui a gênese da Torá à
combinação de quatro documentos ou tradições paralelas, sendo identificadas pelas
letras J, E, D e P, que respectivamente, se tratam de: Javista (séc. 10 a.C), corrente que
representa a figura marcadamente monoteísta e afeita à unificação religiosa de Deus
como Javé (YHWH), predominante em Judá ou Reino do Sul; na sequência cronológica
vem a linha de Israel Norte, Elohista (séc. 8 a.C), partindo das premissas teológicas de
Deus como Elohim, ou seja, na conjunção das várias representações divinas entre as
tribos de Israel e que permitia maior pluralidade, embora o interesse da união
prevaleceria, ao lado da teologia resultante desse esforço; a letra D abrevia a corrente
Deuteronomista (séc. 7 a.C), também do reino do Sul, e trazia grande apelo à
obediência à lei mosaica e a aplicação dela na vida religiosa e social do povo; por fim,
a tradição Sacerdotal ou Priestly, em inglês (séc. 6-5 a.C), desenvolvida durante o exílio
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babilônico até o retorno a Sião, promove de forma bastante interessada as leis,


especialmente nas questões que envolvem o templo e a manutenção cerimonial.

Visto que o terreno dos estudos literários da Bíblia é bastante irregular e cheio de
incertezas, o modelo suscitou, recentemente, grande debate e críticas que geraram um
modelo similar ao dos fragmentos. Contudo, os estudos partem agora da definição de
grandes unidades literárias (por exemplo, Gn 1–11; 12–50, etc), e o Pentateuco
constituiu-se do trabalho de redação exclusivamente pós-exílica de apenas duas
grandes escolas/composições: Sacerdotal e Deuteronomista.
Atualmente, alguns estudiosos retomaram ambas as correntes (fonte-documentais, de
um lado, e fragmentária, de outro) numa nova tentativa de estabelecer uma lógica de
complementaridade que se deu ao longo de um período de cerca de 200 anos. Desta
vez, é possível conceber um sequencial que admite a existência de composições
redacionais pré-exílicas do séc. 7 a.C (continuada durante o exílio na Babilônia), e a
outra parte, que é sua finalização, reinterpretada pelos sacerdotes, logo depois do
exílio. Na segunda metade do quinto século, os dois conjuntos de texto foram
consolidados num Eneateuco: de Gênesis a Reis.

Esdras, o grande sacerdote e escriba do retorno a Jerusalém, separados os cinco rolos


da Lei, de um segundo grupo denominado de Profetas (Josué a Reis), reinaugurando
a religião e a comunidade judaica. A esses dois blocos há várias referências nos
evangelhos, como sinônimos de escrituras sagradas (Mt 7.12, entre outros).

Você quer ver?


Para compreender o papel do tradutor da Bíblia, assista o vídeo disponível neste link. Nele o
professor Edson de Faria Francisco aborda essa questão e fala de sua experiência na área.

4. Um panorama dos livros do Pentateuco

“No princípio Deus criou”, é assim que começa o livro do Gênesis, o Bereshit da Bíblia
Hebraica, que é o primeiro dos livros da Torá. O texto do Gênesis cumpre um papel
similar àquele dos mitos de outros povos antigos: o de explicar, narrativamente, a
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origem das coisas e responder questões de abrangência universal, isto é, a gênese do


mundo e da humanidade, e como as coisas se tornaram o que são, em contraponto a
um projeto original, concebido e moldado por Deus, a partir de um cenário caótico,
disforme, vazio.
Feita a contextualização do cenário da história humana universal, sob a perspectiva dos
hebreus, o texto insere nela as narrações do antigo Israel, que teve origem nos
patriarcas. Dessa forma, de maneira ora poética, ora dramática, encontramos na Torá
uma exposição da história fundante, das origens das famílias da Terra, fazendo especial
conexão com o povo que se chamaria Israel.

Nela, tudo se inicia com os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, além das muitas matriarcas
Sara, Quetura, Hagar, Rebeca, Lia, Raquel, todos envolvidos em tramas e intrigas
literárias recheadas de aprendizado ético, religioso e de autoafirmação identitária. Os
patriarcas representam, cada um a seu modo, histórias semelhantes, mas distintas,
representando tradições múltiplas que foram, contudo, unificadas num esforço de
estabelecer uma sucessão genealógica e coesão teológica ao único “povo de Deus”.

Conforme temos visto, os livros da Bíblia são formados ao longo de um processo de


consolidação de textos de diferentes origens e abordagens, organizados de forma
didática e teológica, visando preservar sua narrativa.

4.1 Gênesis 1-11: da criação à recriação


Estudos recentes consideram haver em Gênesis dois grandes blocos desproporcionais:
Gn 1–11 e Gn 12–50. O primeiro se apresenta como história arquetípica e universal,
quer dizer: estabelece o princípio e os paradigmas do que vem em seguida. O bloco
inicial se ocupa das questões cósmicas relatando os eventos desde a Criação até o
Dilúvio. O segundo conjunto de textos, por sua vez, situa o leitor na história dos
Patriarcas do povo judeu.

A primeira parte do livro coloca em contraste as figuras humana e divina, em seus


respectivos modos de ser e agir na relação de um com o outro, sobrelevando a justiça
e a santidade de Deus em face da desobediência e infidelidade dos homens (cf. Gn 3.1-
24). Por essa razão, muitas coisas perderam sua característica inicial e os rumos de seu
plano perfeito de paz e prosperidade para toda a criação.

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Os primeiros responsabilizados pela crise foram Adão e Eva, criados à imagem e


semelhança de Deus, mas que desrespeitaram a vocação da “humanidade” de gerar
“vida” (os respectivos significados dos nomes de ambos). Suas decisões de seguirem a
serpente (muito associada às representações de divindades egípcias e babilônicas)
abriram caminho para as mazelas no mundo, inclusive o primeiro homicídio entre Caim
e Abel, os filhos do próprio casal. Caim foi exilado, inaugurando a noção de povos
amaldiçoados e peregrinos. Sob o cetro dos impérios da serpente e sua opressão
cósmica, predominariam as injustiças nas relações de trabalho, numa terra em que se
planta com muito suor, mas só se colhe espinhos, dores de parto e maldições.

De fato, estes onze capítulos iniciais são combinações discursivas, em uma perspectiva
nacionalista e teológica e com importante inspiração e influência de mitologias de
povos vizinhos. Contudo, a narrativa israelita se destaca na defesa de que tudo foi
criado, mantido e conduzido pelas mãos de um Deus soberano e que os escolhera
como filhos. O mundo e sua ordem, entretanto, podem ser ameaçados pela
degradação do gênero humano.

As histórias fundantes apresentam uma sequência de caos-criação-caos-criação,


expressando a importância cosmológica das ações humanas e a reação de Deus (de
quem é a última palavra), na medida em que provocou um dilúvio (Gn 6.5 - 9.17) em
resposta aos danos que a perversidade humana causou ao mundo. Com o fim da
grande inundação e destruição, Deus recria todas as coisas e estabelece um novo pacto
com Noé e sua família.

4.2 Gênesis 11.27 – 50.26: pais e mães do povo de


Israel
Após toda a (re)construção do cenário universal, Bereshit caminha para aspectos mais
específicos e de maior relação com a história dos antepassados, do antigo Israel. Um
marco de ligação entre as duas partes de Gênesis é a recorrência da expressão “estas
são as gerações de...”, repetidas várias vezes ao longo das duas porções. Essa referência
liga as origens hebraicas às origens do mundo, como que em uma intervenção direta
do Criador. Na segunda parte, as características posteriormente observadas no
comportamento social e político, vigente da nação que escreveu e acolheu os textos,
encontram fundamentos à priori, entre seus antepassados que tinham estreita conexão
com a divindade e seus desígnios. A lógica, para as gerações seguintes, era a de
continuidade daquilo que foi iniciado pelos primórdios.
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O fato inaugural deste segundo momento é o chamado divino a Abrão, mais tarde,
Abraão e os eventos decorrentes, que mostrariam as idas e vindas de uma identidade
nacional e religiosa que se construiria na relação do povo hebreu com a terra de Canaã
(região da Palestina) e dos povos já existentes no local. Sete foi filho justo do primeiro
casal do Éden, que substituiu Abel, e que daria origem à genealogia dos patriarcas
Abraão, Isaque e Jacó, assimilados pelo povo israelita como uma única tradição.

A passagem 11.27 em diante transmite os percalços e sucessos, nos moldes das


tradições antigas, fundadas na figura de patriarcas e matriarcas como Abraão e Sara,
pais de Isaque, o filho prometido e aceito como símbolo de bênção ao povo hebreu.
Isaque fortalece a narrativa de posse da terra de Canaã, uma vez que permaneceu nela
até o fim de sua vida. De outro lado, tem-se Ismael, mais velho que Isaque, mas
rejeitado pela família por ser filho de Abrão com a escrava Hagar, que foi
posteriormente abandonada com o bebê no deserto, e socorrida por um anjo. A
tradição de Ismael é referência aos povos árabes, com quem os hebreus se esbarravam
vez por outra.

De acordo com as escrituras, Jacó enganou seu pai, Isaque, e recebeu a bênção devida
ao primogênito, suplantando o lugar de Esaú (ou Edom), que viria a aparecer nos textos
da Tanakh como um dos povos inimigos dos judeus. Na conturbada família de Jacó
com suas esposas e seus filhos, crescem os nomes das tribos que comporiam a nação
de Israel (outro nome para o patriarca): Rubem, Simeão, Levi, Judá, Zebulom, Issacar,
Dã, Gade, Aser, Naftali, Benjamim, e os dois filhos de José: Manassés e Efraim. Os levitas
não teriam terras, pois a eles caberiam os ofícios sacerdotais.

A história de José, o filho preferido, traça as aproximações entre os hebreus e o Egito.


As muitas peripécias em que esteve envolvido até chegar no alto posto de primeiro-
ministro sob Faraó, inspiram fidelidade e esperança, mas também podem denotar
submissão e aceitação do domínio em troca de uma possível exaltação futura. Nesse
sentido, o restante da Torá indicou, na sequência, que os egípcios se esqueceriam da
importância de José e aplicariam grande opressão aos judeus.

4.3 Êxodo: libertação e aliança


A caminhada de Deus com seu povo continua na narrativa da saída dos filhos de Israel
do estado de dependência e penúria no Egito, passando pela travessia do mar e por
sua peregrinação de anos pelo deserto. Nesse contexto, Deus se manifestou de várias

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maneiras e, sobretudo, revelou sua vontade na forma de lei a ser observada. Foi, no
deserto, que Deus celebrou uma aliança com o povo hebreu, por meio de Moisés. Este
é, em verdade, o sentido e o âmago da Torá.

A festa da Páscoa se tornaria mandamento para todo povo de Israel, para que se
lembrasse a maneira misericordiosa com que o Senhor Deus os livrou do Egito. Pessah,
o nome hebraico da celebração, relembra o compromisso do povo em ouvir a voz
divina e o grande livramento, em face dos tempos de amargura e opressão.

Para compor o segundo livro do Pentateuco, unificaram-se diversas versões


tradicionais a respeito da fuga do Egito e a jornada pelo deserto, especialmente,
quando o povo judeu se encontrava exilado na Babilônia, e a necessidade de revisitar
o sentido de sua história de libertação e estabelecimento como nação se fazia
essencial. Em momentos de desolação e dispersão, aliás, foi altamente estratégico
registrar por escrito os textos sagrados da comunidade. De certa forma, foi esse
movimento que fortaleceu a perspectiva monoteísta, que predominaria nos demais
volumes da Bíblia Hebraica.

Todavia, a perspectiva dos hebreus sobre si mesmos – uma nação pequena e


relativamente insignificante – é um tanto impraticável do ponto de vista literal.
Consideravam, por exemplo, que já eram cerca de dois milhões ao deixarem o Egito,
número excessivo, se comparado aos grandes povos da época.

No entanto, isto não servirá para afirmar ou negar a sacralidade do texto. Ocorre que
a escrita do oriente antigo não seguia a lógica ocidental atual, cuja precisão numérica
é sinônimo de veridicidade de um discurso. A maneira com que viam o mundo e a
existência passava pela experiência provocada pelos acontecimentos e pelas leituras
posteriores das narrativas, o que incluía a apropriação das gerações posteriores dos
relatos revisitados: os milhões de hebreus, contabilizados como peregrinos, eram, na
verdade, gente de muitas origens e momentos históricos distintos, mas que aceitaram
como sua a fé no Deus que a doutrina mosaica desvendou, de tal forma que se
consideraram participantes ativos dos momentos mais emblemáticos. A Torá, além de
livro normativo para a vida e a religião, teve grande poder agregador e unificador das
tradições que compõem o povo judeu.

Toda a cosmogonia, assumida nos relatos de criação e a história dos patriarcas do


Gênesis, construíram a base teológico-narrativa, onde se assentariam os discursos
sobre a permanência e a evasão do Egito (Ex 1.1 – 15.21), o moroso período de
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passagem pelo deserto (Ex 15.22 - 18.27), e o alcance e estabelecimento em Canaã (Ex
19.1 – Nm 10.10), onde se multiplicariam e veriam cumpridas as promessas feitas aos
patriarcas.

No mesmo caminho vivencial, desenvolveram suas próprias leis, reescrevendo sua


história à luz da revelação de Deus a Moisés no deserto, o mesmo Deus de Abraão,
Isaque e Jacó. Estas leis representam a aliança estabelecida pelo Criador com a nação
eleita, convidada a seguir os passos de Javé e mostrar sua glória ao mundo.

Em Êxodo, há também uma proposta de leitura em dois agrupamentos de textos: um


marcadamente narrativo (Ex 1.1 – 15.21) e outro predominantemente legislativo (Ex
15.22 – 40.38). No primeiro, se contextualiza o cenário de pobreza e jugo que
despertou a revolta em Moisés para conduzir seu povo a um processo de êxodo e
libertação, que se constitui em momento fundante do Israel antigo como nação e
religião. A narrativa da saída, mais do que as da criação, foi paradigmática para a
tradição judaica. No outro bloco, que descreve o período no deserto, a chegada em
Sião e o estabelecimento do culto está deveras carregado de aspectos de lei, e agrega
elementos práticos da aliança à vivência concreta da comunidade.

A trama, que envolve o livramento da escravidão e a marcha pelo deserto rumo à terra
onde há fartura, é repleta de sinais extraordinários e embates às divindades
concorrentes, associando o Deus da libertação ao mesmo que, com grande poder e
glória, criou o universo e fundou as bases do mundo. Dali em diante, a lei se firma
enquanto compromisso dessa gente que vive a experiência do êxodo, torna-se uma
nova referência ética e de religião, cada vez mais institucionalizada.

As relações interpessoais na própria comunidade, o choque cultural entre povos e os


atos cultuais para com Deus serão pautados, portanto, pela lógica da libertação, uma
vez que Deus se colocou ao lado dos oprimidos e pesou sua mão sobre os opressores.

4.4 Levítico: as leis do culto e da santidade


O terceiro rolo da Torá, Vayikrá, começa com a sentença: “Javé chamou a Moisés e da
Tenda da Reunião falou-lhe [...]” (Lv 1.1). Ele está centrado nas orientações dadas ao
povo e, sobretudo, à tribo dos levitas, como continuadores da obra do patrono Arão,
o irmão sacerdote e porta-voz de Moisés. Ao se dirigir aos mediadores entre Deus e o

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povo (tal qual Arão foi com o grande líder, que representa a revelação divina), as
orientações do Levítico fazem detalhadas instruções de como proceder com os objetos
de culto, as festas litúrgicas e a vida diária na relação com Deus e com o próximo,
centrado na santidade que é essencial para oferecer adoração.

Deus chamou Moisés, do lugar móvel onde habitava: a tenda da congregação,


montada cuidadosamente no centro dos acampamentos seminômades pelo deserto,
para ser a morada de Javé. De lá, ele falava com seu porta-voz que transmitia sua
palavra, instruindo acerca dos sacrifícios, da conduta cerimonial, das vestes, do cuidado
com o corpo, da pureza religiosa, da vida comum sob a perspectiva da religião judaica
do deserto.

À exemplo do Pentateuco, Levítico também é composto por cinco diferentes partes:


Primeiro, nos capítulos 1 a 7, Javé faz prescrições detalhadas sobre os sacrifícios e as
condições sob as quais deveriam ser oferecidos. Em segundo lugar, Lv 8 a 10
estabelecem a natureza e o ofícios dos sacerdotes, inspirados do legado de Arão. A
terceira porção (11-16) qualifica entre puros e impuros os animais, as condutas e
circunstâncias que podem definir a pureza de alguém ou da comunidade. Na penúltima
parte, do 17 ao 26, o paradigma é a santidade do próprio Deus. Tudo deve ser santo
como ele é. Por fim, um apêndice (cap. 27) às orientações anteriores, que define tarifas
e avaliações para retomar algo que foi oferecido.

O livro foi escrito em várias etapas, agregando normas rituais e cerimoniais de diversos
tempos e momentos de Israel. Trazer à memória o Deus, que caminhou no deserto e
habitou em tendas, se faz bastante significativo para conduzir a vida ética, religiosa e
identitária de um povo, cujo templo havia sido destruído quando Jerusalém foi tomada
e incendiada pelos babilônios, em meados de 580 a.C, a mando de Nabucodonosor.

Em Levítico, foram colocadas juntas tradições legalistas antigas (que retomam um


período em que talvez ainda não existisse um culto e templo únicos) e mais próximos
aos tempos dos escritores finais que, voltando da dispersão, empenharam esforços
para a reconstrução do templo.

O chamado deste livro era, sobretudo, manter a fé e a vida na inspiração do Deus que
habita entre seu povo, e colocar-se numa conduta de pureza e santidade, mesmo em
ambientes de ausência de referenciais institucionais como o templo ou os sacerdotes.

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4.5 Muito mais que simplesmente números


Apesar de não ter grandes conexões com as narrativas fundamentais de Gênesis e
Êxodo e, para além de relatos estatísticos, Bamidbar (“no deserto”) traz, em seu
conteúdo, leis complementares ao restante da Torá, outorgadas por Deus na segunda
etapa da peregrinação pelos territórios ermos. Como ocorre com os demais livros da
Torá, há uma grande variedade de fontes e processos que levaram à composição de
Números, culminando nos séculos 6 a 5 a.C. É evidente suas raízes na tradição
sacerdotal, bem como os conflitos próprios da maneira com que aquela corrente lidava
com a vida e o sagrado.

Não é à toa que o quarto livro do Pentateuco se chama Números nas traduções atuais.
Nele, Moisés é incumbido de, no meio do deserto, aos pés do Sinai (o monte da
revelação), contar todos homens que estivessem em condições de se tornarem
soldados em batalhas. Assim, poderiam continuar sua caminhada rumo ao tão sonhado
lar.

Números deixa para a memória que toda a primeira geração (a mesma que saiu do
Egito em fuga do exército de Faraó, seguindo os passos de Moisés), não foi apta a
entrar em Canaã, porque não foi devidamente confiante e obediente a Deus. A primeira
seção do rolo (1.1 – 10.10), ocupa-se inteiramente em descrever o tempo de
preparação dos israelitas para deixarem o deserto do Sinai e prosseguirem em marcha.
A outra parte (10.11 – 36.13) relata o percurso até finalmente chegar no rio Jordão.
Entretanto, a chegada ainda não constitui a posse: somente depois de mais um bom
tempo de peregrinação é que começaram os períodos de conquista das terras de
Moabe, d’além do Jordão.

Entrementes, a narrativa de Números faz transparecer momentos de tensão e revoltas


e, o próprio Moisés (representado com importantes fraquezas e limitações) sofre
resistência e até rejeição, tal como se dava com os profetas no período das monarquias
e do cativeiro babilônico. À despeito disso, o grande líder não deixa de perder seu
papel de mediador, daquele que intercede e pede misericórdia a Deus pelo seu povo.
Nesse ínterim, despontam Josué e Caleb, representando a nova geração que entraria
na terra prometida, bem como o profeta Balaão, conhecido como um profeta vendido,
mas que foi obrigado a bendizer a herança de Jacó.

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4.6 Deuteronômio: uma nova lei, para um novo


povo
O fim da marcha pelo deserto também encerra a coleção dos livros da Lei. Diz uma
antiga tradição rabínica que a revelação da Torá, ao ser entregue no deserto (e não em
Canãa ou no Egito), faz compreender o quão universal e abrangente ela pretende ser.
O deserto é inóspito e hostil, mas também é ponto de encontro e de passagem,
necessário a todas as gentes. Por ele cruzam os povos da Terra, em busca de alimento,
de moradia, de sentido para a existência e nele encontram a voz de Deus, em mínimos
detalhes.

Como quem faz uma grande prédica, que contém as palavras de orientação, alerta e
de bênção aos seus seguidores, Moisés deixa o palco e dá lugar a uma voz que narra
sua morte. O trabalho de compilação de todas essas falas em uma só pregação, além
de ser fruto do trabalho de tradições distintas, abrange um longo período, aceito pela
crítica como sendo desde os momentos anterior e simultâneo ao cativeiro na Babilônia,
e só sendo finalizado posteriormente. Já na terra prometida, a perspectiva do escritor
final é a de quem retoma os episódios que antecederam e que marcaram toda a saga
do povo até se firmarem no lugar que chamariam de seu, permeados das falas de
Moisés que, das campinas de Moabe avistou ao longe a utópica Canaã, sobre as quais
jamais pisaria.

O discurso marca também o dia de sua morte, conferindo ao Deuteronômio ares de


testamento aos praticantes da religião mosaica, como últimas orientações para quando
entrassem no paraíso. Nele constam mandamentos de lealdade e confiança em Javé
(de quem advêm todas as bênção e maldições como resposta aos atos humanos de
obediência ou desobediência), ressaltando uma perspectiva de vida eterna conectada
a uma permanência longeva e próspera na terra possuída, vida esta refletida, tanto no
cultivo do solo quanto na saúde dos descendentes, por milhares de gerações.

No quinto rolo, Haddebarim ou “as palavras”, a redação retoma os principais assuntos


da Torá, tanto no sentido de relembrar, quanto na direção de quem os atualiza e
reinterpreta. Nas traduções grega e latina do Antigo Testamento, o livro é rebatizado
de Deuteronômio, que significa segunda lei. Nele, vemos releituras teológicas do
êxodo, dos patriarcas, do pacto generoso que Deus selou com os hebreus, do cuidado
com a terra, da centralidade do culto no templo, sobretudo, preocupadas em dar

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legitimidade e coesão ao projeto de ocupação da Cisjordânia. Nele, as palavras de


Moisés são assumidas como centrais para a conduta e a fé dos habitantes de Sião.

Síntese
Se pudermos denominar um único sentido para a religião no Antigo Testamento (e no
Novo) é que Deus se manifesta, se desvela, se insere e constrói a história junto com os
humanos, a quem chama “seu povo”. Seja na forma de Elohim, que criou todas as coisas
e se ergue acima dos outros deuses, harmonizando as várias tradições teológicas
tribais; seja em Javé, que destrói o imaginário de outros deuses e reclama o
monoteísmo, a revelação do Deus dos hebreus acontece na vida, no espaço e no
tempo, mesmo que em muitas ocasiões ele interfira com grande poder sobre questões
terrenas e temporais.

Em resumo, nesta unidade, nós vimos que:

• O Pentateuco é um registro dessa experiência de Deus com seus escolhidos,


abraçada pelo velho Israel como constituição de sua nação e de seu território,
disputado à época, do ponto de vista das narrativas e da posse concreta dos
espaços;
• A Torá lê e escreve o mundo e sua história sob a particularidade do olhar da
comunidade que a compôs. Uma vez que, o centro do mundo é onde Deus
habita, este lugar acaba sendo onde quer que sua casa esteja. A Torá parte desse
pressuposto, de ser luz para todas as nações, porque emana da nação escolhida
e de onde Javé habita;
• No Pentateuco, são contempladas as principais questões de uma pequena e
complexa comunidade, que tendeu a se tornar mais diversificada com o tempo;
• A Torá traça uma trajetória que começa numa terra sem forma e vazia, onde
havia trevas e caos, e termina com a ocupação de um lugar fértil e
aconchegante, encerrando um período comprido de espera e desalento, no
deserto;
• O Deus de Abraão, Isaque, Jacó e seus filhos; o Deus que livrou seu povo das
mãos de Faraó e o colocou em lugar de pastagens fartas; Deus que rasgou o
silêncio dos céus e veio para habitar o mundo da linguagem, da humanidade,
escreve com seu povo, a muitas mãos, o texto fundante de um mundo a ser
vivido e mantido, na esperança de habitar eternamente com eles, dando-lhes
paz e segurança.
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Na próxima unidade, continuaremos a aprofundar os estudos acerca das


transformações que marcam o cenário no qual se desenvolve a escrita do Antigo
Testamento.

Até lá!

Bibliografia

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.

KONINGS, Johan. A Bíblia, sua origem e sua leitura. Introdução ao estudo da Bíblia.
Petrópolis: Vozes, 2011.

MESTERS, Carlos. Paraíso terrestre: saudade ou esperança. Petrópolis: Vozes, 1971.

SCHWANTES, Milton. Projetos de Esperança: meditações sobre Gênesis 1-11. São


Paulo: Paulinas, 2009.

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