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SILVIO MARQUES GARCIA

GÊNERO,
IDENTIDADE,
FAMÍLIA E
PREVIDÊNCIA
SOCIAL

Londrina/PR
2023
Dados Internacionais de Catalogação na
Publicação (CIP)

Garcia, Silvio Marques.


Gênero, identidade, família e previdência
social. / Silvio Marques Garcia. – Londrina,
PR: Thoth, 2023.

419 p.
Bibliografias: 395 - 419
© Direitos de Publicação Editora Thoth. ISBN: 978-65-5959-549-5
Londrina/PR.
www.editorathoth.com.br 1. Gênero 2. Identidade de Gênero.
contato@editorathoth.com.br 3. Previdência Social. I. Título.

CDD 341.6

Diagramação e Capa: Editora Thoth Índices para catálogo sistemático


Revisão: O autor 1.Direito Previdenciário: 341.6
Editor chefe: Bruno Fuga

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sem autorização. A violação dos Direitos Autorais é
crime estabelecido na Lei n. 9.610/98.
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pela Editora Thoth. A Editora Thoth não se
responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por
seus autores.
SOBRE O AUTOR

SILVIO MARQUES GARCIA


Doutor em Direito pela PUC/SP. Bacharel e Mestre em Direito pela
Unesp. Especialista em Direito Público pela EAGU/UNB. Procurador
Federal. Professor da Faculdade de Direito de Franca. Escreveu o livro
Aposentadoria por idade do trabalhador rural. É autor de diversos capítulos
de livros e artigos jurídicos.
Gênero não é algo que se é, mas algo que se
faz, um agir ... um “fazer” em vez de um
“ser”. Não há identidade de gênero por trás
das expressões de gênero; essa identidade é
performativamente constituída pelas próprias
“expressões” que se diz serem seus resultados.
Judith Butler (Gender troubles)

[A] prática de classificar as pessoas em


categorias cisgênero ou transgênero reproduz
um sistema defeituoso, um sistema que apaga
as experiências e a existência daqueles que
estão entre e além dessa estrutura binária.
Helana Darwin (Challenging the
cisgender/transgender binary)

Consideramos justa
Toda forma de amor
Lulu Santos (Toda forma de amor)
APRESENTAÇÃO
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu a igualdade de direitos e
deveres entre homens e mulheres, institucionalizou a união estável e pôs fim
à discriminação entre filhos. Além disso, elevou o princípio da dignidade da
pessoa humana ao ápice do sistema jurídico.
As modificações da sociedade em relação a temas como gênero,
identidade e família exercem pressão sobre o sistema jurídico, exigindo dos
poderes públicos medidas concretas necessárias à efetivação dos direitos
fundamentais.
O direito civil passou por grandes transformações e deve ser
analisado sob o crivo dos princípios constitucionais. A constitucionalização
dos institutos de direito privado retirou as amarras interpretativas que os
reduziram à legalidade durante décadas.
As modificações recentes no direito de família, ainda em processo de
consolidação, acarretam consequências para o direito público, especialmente
no âmbito do direito fundamental à previdenciário social.
O Poder Judiciário, chamado a harmonizar as várias situações
novas, decide com fundamento nos valores constitucionais. Em 2011,
o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito à união homoafetiva
(ADI n. 4.277 e ADPF n. 132) e, em 2018, reconheceu aos transgêneros
o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil,
independentemente da cirurgia de transgenitalização ou da realização de
tratamentos hormonais ou patologizantes (ADI n. 4275).
Tais decisões acarretam reflexos previdenciários que ainda não foram
devidamente regulamentadas no âmbito infraconstitucional. Os reflexos
dessas transformações sociais e da jurisprudência na legislação previdenciária
devem ser investigados à luz do envelhecimento da população e das
alterações do mercado de trabalho, que provocam forte pressão sobre o
sistema de seguridade social. A concessão de prestações a um número cada
vez maior de beneficiários demanda recursos essenciais ao financiamento
da previdência social, da assistência social e da saúde, que constituem o
sistema de seguridade social estruturado na Constituição Federal.
Este livro analisa esse cenário de transformações sociais, considerando
a mutação constitucional, com foco sobre o benefício de aposentadoria
programada por idade, a relação de dependência na pensão por morte e o
benefício de salário-maternidade. Sem ignorar a existência de desigualdades
de gênero na sociedade brasileira, mas reconhecendo que devem ser
objeto de soluções no âmbito da cultura e do direito do trabalho, o livro
questiona a manutenção da diferença etária para a concessão do benefício
para mulheres e homens, sob a ótica do equilíbrio financeiro e atuarial do
sistema previdenciário.
Também estuda as consequências da multiplicidade e fluidez de gênero
e identidade, que, em interação com novos arranjos familiares, colocam em
questionamento a relação de dependência na esfera previdenciária.
Por fim, a igualdade de gêneros e as novas identidades e arranjos
familiares revelam pontos de tensão em relação ao salário-maternidade,
benefício antes de titularidade exclusivamente da gestante, que, em um
cenário de múltiplas interações familiares, vem adquirindo importância para
a família, a criança e a própria sociedade.
O livro resulta da adaptação e atualização da tese apresentada à
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Direito.
Cabe registrar meu agradecimento a Deus, pela força e perseverança na
realização da pesquisa, em tempos difíceis de reformas legislativas sucessivas,
distanciamento social e restrições de acesso ao convívio acadêmico. A
conclusão do trabalho somente foi possível graças à compreensão e apoio
da família e da minha companheira, Odara.
Meus agradecimentos ao Prof. Dr. Ionas Deda Gonçalves (PUC/SP)
e ao Prof. Dr. Oswaldo de Souza Santos Filho (PUC/SP), pela orientação, e
também aos demais participantes da banca: Prof. Dr. Marco Aurelio Serau
Junior (UFPR), Profa. Dra. Rita de Cássia Curvo Leite (PUC/SP), Prof. Dr.
Miguel Horvath Junior (PUC/SP) e Prof. Dr. Frederico Thales de Araújo
Martos (UEMG/FDF).
Minha gratidão, ademais, aos professores do Programa de Pós-
Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialmente
aos Profs. Drs. Paulo de Barros Carvalho, Luiz Alberto David Araújo e
Robson Maia Lins.
Também agradeço à Faculdade de Direito de Franca, à Escola da
Advocacia-Geral da União e à Procuradoria Regional Federal da 3ª Região,
pelo apoio e incentivo na realização da pesquisa que deu origem a este livro.
Agradeço ainda à Editora Thoth pela confiança depositada e por
acreditar na viabilidade editorial do livro.
Por fim, agradeço aos leitores, desejando que recebam este livro
como uma pequena contribuição ao estudo do direito à seguridade social,
especialmente do direito previdenciário, sem a pretensão de que as ideias
aqui lançadas sejam definitivas.

SILVIO MARQUES GARCIA


SUMÁRIO

SOBRE O AUTOR .....................................................................................................7


APRESENTAÇÃO ...................................................................................................11
INTRODUÇÃO ........................................................................................................19

CAPÍTULO 1
MODERNIDADE, LINGUAGEM E GÊNERO ...............................................25
1.1Modernidade, cultura e gênero .............................................................................28
1.2 Linguagem, classificação e direito .......................................................................35
1.3 Classificação e separação em classes ...................................................................37
1.4 Contribuição do feminismo .................................................................................41
1.5 Influência da religião nas relações entre os gêneros .........................................49
1.6 A era das Revoluções e o reconhecimento da igualdade .................................52
1.7 Influência da psicanálise na igualdade sexual ....................................................54

CAPÍTULO 2
GÊNERO, SEXUALIDADE E IDENTIDADE..................................................57
2.1 Sexo e gênero .........................................................................................................57
2.1.1 Diversidade: classificações quanto à sexualidade e ao gênero .....................62
2.1.2 Caracterizações não binárias .............................................................................68
2.2 Sexo e sexualidade ................................................................................................76
2.2.1 Mudança de sexo, gênero e nome social .........................................................80
2.2.2 Proteção ao trabalho da mulher .......................................................................89
2.2.3 Mercado de trabalho e gênero ....................................................................... 101

CAPÍTULO 3
CONCEITO DE FAMÍLIA ................................................................................... 103
3.1 Evolução do conceito de família ...................................................................... 103
3.1.1 Família brasileira .............................................................................................. 108
3.1.2 Código Civil de 1916....................................................................................... 109
3.1.3 Estatuto da Mulher Casada ............................................................................ 111
3.1.4 Divórcio ............................................................................................................ 112
3.1.5 Constituição Federal de 1988......................................................................... 112
3.1.6 Família atual...................................................................................................... 114
3.1.7 Código Civil de 2002....................................................................................... 121
3.2 Proteção constitucional à família e à união estável........................................ 122
3.3 Novos arranjos familiares .................................................................................. 126
3.3.1 Famílias homoafetivas e homoparentalidade .............................................. 128
3.3.2 Evolução da jurisprudência sobre união homoafetiva ............................... 130
3.3.3 Pluriparentalidade e plurimaternidade.......................................................... 134
3.3.4 Famílias monoparentais .................................................................................. 136
3.3.5 Famílias simultâneas ou paralelas .................................................................. 137
3.3.6 Família anaparental .......................................................................................... 140
3.3.7 Família reconstituída, mosaico ou pluriparental ......................................... 141
3.3.8 Famílias poliaftivas e poliamor ...................................................................... 143

CAPÍTULO 4
CONSTITUIÇÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS .................. 147
4.1 Estado e Poder .................................................................................................... 147
4.2 Constitucionalismo ............................................................................................. 150
4.3 Direitos fundamentais constitucionais ............................................................ 158
4.4 Constitucionalização do direito privado.......................................................... 161
4.4.1 Possibilidade de vinculação dos direitos fundamentais às relações
privadas........................................................................................................................163
4.4.2 Dimensões subjetiva e objetiva ..................................................................... 164
4.4.3 Eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais ........................... 165
4.4.4 Supremacia da Constituição ........................................................................... 168
4.5 Princípios constitucionais .................................................................................. 171
4.6 Dignidade da pessoa humana e direito à identidade ..................................... 175
4.7 Direito fundamental à identidade..................................................................... 181
4.8 Direito à liberdade .............................................................................................. 186
4.9 Direito à igualdade .............................................................................................. 191
4.9.1 Igualdade formal e material ........................................................................... 194
4.9.2 Igualdade de gêneros....................................................................................... 197
4.10 Ações afirmativas.............................................................................................. 201
4.11 Mutação constitucional .................................................................................... 206
4.11.1 Natureza e espécies de mutação constitucional ........................................ 213
4.11.2 Limitações à mutação constitucional.......................................................... 214
4.11.3 Mutação constitucional e direitos de identidade, gênero e família ........ 216

CAPÍTULO 5
DIREITO FUNDAMENTAL À PREVIDÊNCIA E À ASSISTÊNCIA
SOCIAL...................................................................................................................... 223
5.1 Direitos fundamentais sociais ........................................................................... 225
5.1.1 Direitos fundamentais sociais como direitos subjetivos ............................ 229
5.1.2 Eficácia jurídica e efetividade social.............................................................. 233
5.2 Sistema de seguridade social ............................................................................. 238
5.3 Previdência social................................................................................................ 241
5.4 Princípios constitucionais da seguridade social.............................................. 247
5.4.1 Solidariedade e justiça social .......................................................................... 249
5.4.2 Universalidade da cobertura e do atendimento .......................................... 254
5.4.3 Seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços ... 257
5.4.4 Equidade na forma de participação no custeio .......................................... 258
5.4.5 Diversidade da base de financiamento ......................................................... 260
5.4.6 Precedência do custeio.................................................................................... 262
5.5 Efetividade versus equilíbrio financeiro e atuarial da previdência social ..... 263

CAPÍTULO 6
RUMOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, A PARTIR DA DIVERSIDADE DE
GÊNEROS E ARRANJOS FAMILIARES......................................................... 269
6.1 Previdência, gênero e família ............................................................................ 270
6.2 Aposentadorias programadas e gênero ........................................................... 275
6.2.1 Igualdade na seguridade social....................................................................... 279
6.2.2 Aposentadorias e o risco idade avançada..................................................... 288
6.2.3 Diferença de idade na aposentadoria............................................................ 290
6.2.3.1 Aposentadoria por idade...............................................................................290
6.2.3.2 Aposentadoria por tempo de serviço e contribuição...............................292
6.2.3.2.1 Aposentadoria do professor......................................................................293
6.2.3.2.2 Aposentadoria especial...............................................................................293
6.2.3.2.3 Aposentadoria proporcional por tempo de contribuição......................294
6.3 Alterações promovidas pela EC n. 103/2019 ................................................ 294
6.3.1 Aposentadorias programáveis ....................................................................... 295
6.3.2 Aposentadoria programada com foco na idade .......................................... 296
6.6.3 Aposentadoria programada com foco no tempo ....................................... 297
6.3.4 Aposentadoria programada em atividade especial ..................................... 298
6.3.5 Aposentadoria programada do professor .................................................... 301
6.3.6 Aposentadoria da pessoa com deficiência ................................................... 302
6.3.7 Aposentadoria do trabalhador rural ............................................................. 303
6.4 Gêneros masculino e feminino e redução da idade e do tempo de
contribuição ............................................................................................................... 305
6.5 Aposentadoria dos transexuais e transgêneros .............................................. 317
6.5.1 Critério biológico ............................................................................................. 318
6.5.2 Critério tempus regit actum ................................................................................. 319
6.5.3 Critério da desequiparação mais favorável................................................... 320
6.5.4 Critério proporcional misto ........................................................................... 321
6.5.5 Critério para aposentadoria do gênero neutro ............................................ 323
6.6 Pensão por morte: novos arranjos familiares e relação de dependência .... 324
6.6.1 Segurados .......................................................................................................... 325
6.6.2 Pensão por morte ............................................................................................ 326
6.6.3 Dependentes de primeira classe: casamento e união estável .................... 328
6.6.3.1 União estável e dependência.........................................................................329
6.6.3.2 Cônjuge separado de fato.............................................................................330
6.6.3.3 União homoafetiva.........................................................................................332
6.6.3.4 Prova da união estável...................................................................................335
6.6.3.5 Uniões paralelas..............................................................................................336
6.6.3.6 Poliamor e pensão por morte.......................................................................338
6.6.3.7 Presunção de dependência para a primeira classe.....................................339
6.6.3.8 Período de carência........................................................................................339
6.6.3.9 Valor do benefício..........................................................................................340
6.6.3.10 Acumulação e limitação do valor...............................................................342
6.6.3.11 Duração do benefício para o cônjuge ou companheiro........................343
6.6.4 Dependentes de primeira classe: filiação ..................................................... 344
6.6.4.1 Distinção de maioridade para o direito previdenciário............................344
6.6.4.2 Estudante universitário..................................................................................345
6.6.4.3 Invalidez e dependência (filho maior inválido).........................................346
6.6.4.4 Enteado e menor tutelado e menor sob guarda........................................348
6.6.4.5 Data de início da pensão por morte (para o menor)................................352
6.6.5 Dependentes de segunda e terceira classe (pais e irmãos) ........................ 353
6.6.6 Outros arranjos e questões excluídas da tutela previdenciária ................. 354
6.6.6.1 Rateio entre classes........................................................................................356
6.6.6.2 Relações entre cônjuges no direito empresarial.........................................357
6.7 Salário-maternidade ........................................................................................... 360
6.7.1 Duração do benefício...................................................................................... 365
6.7.2 Direito da mãe adotante ao salário-maternidade ........................................ 366
6.7.3 Salário-maternidade pago ao segurado sobrevivente ................................. 368
6.7.4 Salário-maternidade na união homoafetiva ................................................. 369
6.7.5 (In)acumulabilidade do salário-maternidade ............................................... 371
6.7.6 Salário maternidade na reprodução assistida ............................................... 372
6.7.7 Salário-natalidade ou salário-parental ........................................................... 374

CONCLUSÃO......................................................................................................... 379
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 397
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu a igualdade de direitos
e deveres entre homens e mulheres, institucionalizou a união estável e pôs
fim à discriminação entre filhos havidos ou não da união pelo casamento.
Foi instituído no Brasil o Estado Democrático de Direito, fundamentado
na dignidade da pessoa humana, com o objetivo de construir uma sociedade
livre, justa e solidária (CF, art. 3º, inc. I). Para alcançar essa meta, é essencial
a participação das mulheres e a garantia de mecanismos para efetivar o
direito à igualdade, à identidade de gênero, ao nome social e à orientação
sexual, assim como proteger todas as famílias brasileiras, sem distinção.
O princípio da dignidade da pessoa humana ganhou especial
proteção na Constituição de 1988, irradiando sua força normativa a todas as
manifestações jurídicas, dentre elas os direitos de liberdade e personalidade,
os direitos de família e os direitos sociais.
As modificações da sociedade em relação a temas como gênero,
sexualidade e família continuaram pressionando o sistema jurídico, levando
o Poder Judiciário a harmonizar as várias situações novas com os valores
constitucionais, tendo como vetor o princípio da dignidade da pessoa
humana. A Constituição vedou a discriminação de gênero (art. 3º, inc.
IV; art. 5º, caput e incs. I, V, X e XLI; art. 227), mas ela própria limitou
o reconhecimento da união estável à situação existente entre homem e
mulher (art. 226, § 3º).
O direito civil passou por grandes transformações e deve ser
analisado sob o crivo dos princípios constitucionais. A constitucionalização
dos institutos de direito privado retirou as amarras interpretativas que
os reduziram à legalidade durante décadas. A Constituição instituiu
microssistemas, dentre eles o do direito civil, orientando a reforma
legislativa posterior, o que culminou com a edição do Código Civil de 2002,
em relação ao qual, apesar dos avanços, ainda recebe críticas no sentido de
que deveria ter sido mais abrangente em relação a vários aspectos, dentre
eles o direito de família.
A pessoa humana adquire consciência e personalidade no seio da
família; é por meio da família que o indivíduo se identifica como membro da
20 GÊNERO, IDENTIDADE, FAMÍLIA E PREVIDÊNCIA SOCIAL

comunidade; por meio dela é que a pessoa pode concretizar sua dignidade.
No âmbito da família, passaram a ser admitidas várias formas de conexão
entre os seus membros, tais como a família matrimonial, a monoparental,
a família-mosaico, a união estável e a união homoafetiva. As modificações
recentes no direito de família ainda estão em processo de consolidação e,
por isso, merecem o estudo contínuo dos seus efeitos sobre a legislação.
Essas transformações no direito civil em relação à dignidade humana,
ao gênero e à família vêm sendo investigadas por diversos pesquisadores
tendo como enfoque o direito privado. No entanto, é necessário investigar
as consequências para o direito público dessas situações jurídicas já tuteladas
pelo direito civil, especialmente o alcance dos princípios, dos conceitos e
dos institutos do direito privado para a efetivação de direitos nos âmbitos
previdenciário e assistencial.
A harmonização dos institutos de direito privado com a ordem jurídica
constitucional tem sido objeto de decisões judiciais de diversos tribunais e,
inclusive, do Supremo Tribunal Federal, que, em 05.05.2011, enfrentou o
tema da união homoafetiva no julgamento da ADI n. 4.277 e na ADPF n.
132, ocasião em que reconheceu a união de casais homoafetivos (do mesmo
sexo) como casamento.
Além disso, a Corte Máxima, no julgamento da ADI n. 4275, realizado
em 1º de março de 2018, deu interpretação conforme a Constituição e o
Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, para reconhecer
aos transgêneros o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no
registro civil, independentemente da cirurgia de transgenitalização ou da
realização de tratamentos hormonais ou patologizantes.
Tais decisões acarretam reflexos previdenciários que ainda não foram
objeto de tratamento legislativo no âmbito infraconstitucional. Dessa
forma, o estudo das consequências da mutação constitucional, conforme
reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mostra-se relevante
para a efetivação do direito fundamental à seguridade social.
Diversas notícias têm despertado a atenção para a proteção individual
quanto ao gênero e as novas formas de composição familiar. Em 21.09.2016,
no julgamento do RE 898.060-SC, com repercussão geral (Tema 622), o
STF fixou a tese de que “[a] paternidade socioafetiva, declarada ou não
em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação
concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos
próprios.” A tese consagra a primazia da socioafetividade sobre o vínculo
da origem biológica e atrai diversas questões relacionadas ao direito civil e
também a outros ramos do direito, como o previdenciário.
O problema da identidade de gênero também tem provocado diversas
discussões, inclusive no que diz respeito às relações familiares. Novas
SILVIO MARQUES GARCIA 21

modalidades de arranjos familiares acarretam consequências em relação a


temas como a igualdade na aposentadoria, os dependentes da pensão por
morte e o salário-maternidade.
O reconhecimento pelo STF (ADI n. 4275) do direito à substituição
de prenome e sexo diretamente no registro civil suscita questionamentos na
seara previdenciária acerca da idade mínima para a obtenção da aposentadoria
e eventuais cálculos de proporcionalidade relativamente a cada período em
que o indivíduo se identificou com um ou o outro gênero. Isso sem contar
as recentes discussões acerca do próprio conceito de gênero, com diversos
ativistas e doutrinadores defendendo a concepção plural, segundo a qual é
possível identificar uma quantidade indeterminada de gêneros diferentes ou
até mesmo indivíduos sem gênero definido.
Tudo isso tem sido noticiado, mas é necessário analisar as
consequências dessas interações e novidades para a previdência social, cujas
políticas devem ser construídas sempre com o foco no longo prazo. Quanto
à igualdade entre homens e mulheres, a Reforma da Previdência, promovida
pela Emenda Constitucional (EC) n. 103/2019, reduziu a diferença de idade
mínima para a obtenção da aposentadoria. Entretanto, há ainda questões a
serem discutidas, dentre elas a regulamentação das regras de transição.
A modernidade vive mudanças sociais em velocidade inédita
(a exemplo do reconhecimento do direito à identidade de gênero e dos
novos arranjos familiares), as quais, juntamente com o envelhecimento da
população, despertam preocupação com temas como o valor dos benefícios
previdenciários, cuja manutenção poderá será prejudicada. Nesse cenário,
é preciso atentar para a universalidade da cobertura e do atendimento, um
dos princípios constitucionais basilares da seguridade social, que permite a
adaptação do plano de benefícios às necessidades de cobertura dos riscos
sociais.
Além do envelhecimento da população, há forte pressão sobre o
sistema de seguridade social, em decorrência da constitucionalização de
institutos do direito privado e da necessidade de efetivação da dignidade
da pessoa humana. A concessão de prestações a um número cada vez
maior de beneficiários demanda recursos essenciais ao financiamento da
previdência social, da assistência social e da saúde, que constituem o sistema
de seguridade social estruturado na Constituição Federal.
A preocupação com o orçamento público é presente nos tempos
atuais, em que são frequentes diversos tipos de pressão sobre a destinação
dos escassos recursos públicos. Nos últimos anos, o acesso à seguridade
social tem sido ampliado por meio de medidas administrativas e do Poder
Judiciário. Para que essas ações possam ser mantidas e novas concessões
de benefícios decorrentes do envelhecimento populacional não sejam
22 GÊNERO, IDENTIDADE, FAMÍLIA E PREVIDÊNCIA SOCIAL

inviabilizadas, é preciso considerar a interação entre o direito público e o


privado na concessão dos benefícios da seguridade social.
A relação entre a concessão de benefícios da seguridade social
e o direito civil, ainda pouco abordada na doutrina, é relevante para a
compreensão da efetividade dos direitos fundamentais sociais, no sentido
de permitir a conciliação de diversos valores constitucionais no momento
da previsão e concessão dos benefícios.
Na elaboração deste livro, optou-se pelo método dedutivo, com o
intuito de analisar a posição sistemática dos institutos de direito privado em
confronto com os direitos sociais e os princípios constitucionais relativos
ao tema. O procedimento de pesquisa foi bibliográfico, direcionado a livros
e artigos específicos sobre direitos fundamentais, constitucionalização do
direito civil, concessão de benefícios e custeio da seguridade social, bem
como julgados do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de
Justiça e dos tribunais regionais federais.
A análise do tema foi feita a partir da interdisciplinaridade, mediante
a comunicação constante do direito civil com outros ramos do direito
público, como o direito constitucional e o direito previdenciário.
Existe uma tensão entre a legitimidade das metas constitucionais
e a efetividade no seu cumprimento; no recorte proposto, essa tensão
corresponde à necessidade de efetivação do direito fundamental à previdência
social, sem qualquer distinção ou discriminação aos destinatários, em
harmonia com o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial, que assegura
a manutenção dos recursos necessários para alcançar a máxima efetividade
dos direitos constitucionais sociais.
A conceituação de direitos fundamentais exige uma especificação
hermenêutica quanto à construção dogmática voltada para a efetivação
do texto constitucional. A determinação hermenêutica, no caso, é trazida
pelo processo legitimador de construção de significados e também pela sua
tradução para a dogmática jurídica, de modo a permitir sua operacionalização
concreta e a identificação de seus limites.
O marco teórico a partir do qual deverá ser analisado o tema é a tensão
propiciada pela revolução das comunicações, pela modernidade reflexiva
(Giddens, Beck), também chamada de líquida (Bauman). São estudadas as
transformações ocorridas em relação aos direitos da igualdade e identidade
de gênero e nas relações sociais familiares, bem como a constitucionalização
do direito de família e os desafios interpretativos que se colocam a partir
dessa nova perspectiva para a previdência social.
A igualdade é um ideal a ser buscado, mas sem afastar da ideia de que
existem diferenças fáticas entre as pessoas e as famílias, as quais não podem
ser desconsideradas. Diversas questões envolvem a interpretação do direito
SILVIO MARQUES GARCIA 23

privado na aplicação ao direito previdenciário, tais como salário maternidade/


paternidade, pensão de avô/avó, pensão socioafetiva, cumulação de
pensões, igualdade de gênero nas aposentadorias, reprodução assistida etc.).
A análise dessas questões demanda interpretar a intersecção entre o direito
civil e o direito previdenciário, bem como encontrar formas adequadas para
conciliar áreas do direito que tutelam, ainda que aparentemente, interesses
opostos (privado x público): Quais as relações entre o direito privado e a
seguridade social? Mais especificamente: quais as relações entre o direito à
identidade, o conceito de família e os benefícios previdenciários? É possível
extrair princípios comuns que sirvam para orientar a aplicação do direito
quando estão envolvidas essas matérias? Como conciliar esses princípios?
Quais as necessidades concretas de adaptação do direito diante das várias
modificações presentes na sociedade atual?
O problema que surge para a seguridade social é a grande dificuldade
enfrentada para a extensão da cobertura previdenciária a um maior
número de pessoas, principalmente para aquelas excluídas do mercado
formal de trabalho. Com o reconhecimento de novos direitos, grupos de
beneficiados outrora excluídos passam a exercer pressão pela obtenção de
benefícios previdenciários, a exemplo do benefício de pensão por morte na
união homoafetiva e na paternidade socioafetiva, do benefício de salário-
paternidade, entre outros.
Como recorte do estudo em relação aos benefícios, é analisado
o benefício da aposentadoria programada por idade, com ênfase no
questionamento sobre a manutenção da diferença etária para a concessão
do benefício para mulheres e homens. As questões de gênero e identidade
apontam a necessidade de lançar um olhar crítico sobre a manutenção de
idade e tempo de contribuição diferenciados.
Como decorrência das relações humanas a partir do gênero
e da identidade, surgem novos arranjos familiares que colocam em
questionamento a relação de dependência na esfera previdenciária, o que
também será objeto de análise. Por fim, a igualdade de gêneros e as novas
identidades e arranjos revelam pontos de tensão em relação ao salário-
maternidade, benefício que até mesmo em seu nome indica a exclusiva
titularidade feminina, apesar da multiplicidade de situações em que pode
ser concedido, inclusive com amparo na legislação, para o homem adotante
ou em substituição à genitora falecida.
As questões de gênero, identidade e família, assim, constituem o
ponto sobre o qual o debate se instaura, no intuito de colaborar para a
indicação de soluções que possam resultar mais adequadas aos conceitos
constitucionais sobre os quais se constroem o gênero, a orientação sexual
e a família.
CAPÍTULO 1
MODERNIDADE, LINGUAGEM E GÊNERO

Por milhares de anos, o ser humano atribuiu papéis diferentes aos


integrantes da espécie em razão de variados critérios. Um dos principais
é sem dúvida a identificação feita a partir do critério biológico, segundo o
qual há pessoas do sexo masculino, que são aquelas que possuem os gametas
XY, genitália masculina e outras características biológicas associadas a tal
identificação, e pessoas do sexo feminino, que possuem os gametas XX,
genitália feminina e mamas desenvolvidas como principais características.
No entanto, nas últimas décadas, essa divisão da espécie humana
meramente pelo critério biológico se mostrou insuficiente para atender
as demandas sociais e os questionamentos constantemente dirigidos à
sexualidade.
A maioria das sociedades divide o universo das características humanas
em duas partes, separando entre homens e mulheres.1 A noção de papéis
sexuais diferenciados é encontrada em diversos estudos, desde Margaret
Mead, que se tornou uma antropóloga influente e inspirou os movimentos
feministas e de liberação sexual da década de 1960. No livro Macho e fêmea,
de 1949,2 Mead destacou o papel da cultura na construção do indivíduo,
geralmente considerado obra da natureza humana. Defendeu que a cultura
é capaz de promover o desenvolvimento de formas individualizadas de
comportamento sexual para além das caracterizações biológicas.
A utilização da palavra gênero para qualificar seres humanos, com sentido
diferente de sexo, foi feita pela primeira vez em 1955, pelo psicólogo John
Money, que empregou o termo gênero (utilizado na gramática para designar
substantivos masculinos, femininos ou neutros)3 nas ciências sociais com

1. DELPHY, Christine. Rethinking sex and gender. Women’s Studies International Forum, v. 16, n.
1, p. 1-9, jan.-fev., 1993. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/
pii/027753959390076L#bBIB1. Acesso em 24 out. 2020. p. 3.
2. MEAD, Margaret. Male and female. New York: William Morrow and Co., 1949. passim.
3. Joan Scott chama a atenção para a existência da categoria neutra de gênero em muitas línguas
indo-europeias: “a conexão com a gramática é explícita e também cheia de possibilidades não
examinadas. Explícita porque o uso da gramática envolve regras formais que decorrem da
designação masculina ou feminina; cheia de possibilidades não examinadas porque em muitas
26 GÊNERO, IDENTIDADE, FAMÍLIA E PREVIDÊNCIA SOCIAL

o intuito de distinguir os comportamentos feminino e masculino do sexo


biológico.4 Para Money, o gênero compreende as diferenças sexuais entre
os seres humanos. Existem diferenças derivadas do sexo, que seguem a
dicotomia fixada pela Biologia. Diferentes papéis relacionados ao gênero
surgiram de seus estudos sobre hermafroditas, a partir dos quais ele afirmou
que o gênero engloba as atividades não genitais e não eróticas que são
definidas pelas convenções da sociedade para serem aplicadas para homens
ou mulheres.5
O termo papéis sexuais foi utilizado até a difusão do conceito de gênero
nos anos 1970. Porém, impõe registrar que a divisão de papéis sociais entre
homens e mulheres não é natural, mas arbitrária.
Com a contribuição das teorias feministas, difundiu-se o conceito
de gênero enquanto categoria6 de distinção baseada em critérios culturais.
O termo gênero ganhou maior notoriedade na década de 1970, quando
foi utilizado por Gayle Rubin, no ensaio Tráfico de mulheres: notas sobre a
“economia política do sexo”.7 A noção de gênero diz respeito à classificação
dos indivíduos não segundo características biológicas, mas a partir de
uma construção cultural da qual o sexo é apenas um dos elementos que,
juntamente com diversos outros, permite a designação de papéis com
significação e ressignificação inacabada e em constante transformação
social. Assim, a categoria gênero marca a diferença entre o sexo natural e o
gênero socialmente construído.

línguas indo-europeias há outra categoria - assexuada ou neutral”. Tradução livre do original:


“The connection to grammar is both explicit and full of unexamined possibilities. Explicit
because the grammatical usage involves formal rules that follow from the masculine or feminine
designation; full of unexamined possibilities because in many Indo-European languages ther
is a ther category – unsexed or neuter.” (SCOTT, Joan Wallach. Gender: a useful category of
historical analysis. The American Historical Review. [s/l], v. 91, n. 5, pp. 1053-1045, dez. 1986. p.
1053. p. 1053-1054.)
4. BULLOUGH, Vern L. Transgenderism and the concept of gender. The International Journal of
Transgenderism, [s. l.], v. 4, n. 3, Edição especial: What is Transgender? jul.-set. 2000. Disponível
em: https://cdn.atria.nl/ezines/web/IJT/97-03/numbers/symposion/bullough.htm. Acesso
em 05 out. 2020.
5. MONEY, John. Hermaphroditism, gender and precocity in hyper-adrenocorticism: psychologic
findings. Bulletin of the Johns Hopkins Hospital, Baltimore, Johns Hopkins University, v. 96, n. 6, p.
253-264, jun. 1955. p. 257.
6. PINHO, Leda de Oliveira. Princípio da igualdade: investigação na perspectiva de gênero. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. p. 45.
7. Gayle Rubin é uma antropóloga e ativista norte-americana, conhecida por seus estudos sobre
sexualidade, que, no ensaio “The traffic women: notes on the political economy of sex”, publicado em
1975, contribuiu para a difusão do conceito (SOUZA, Tuanny Soeiro. Retificando o gênero
ou ratificando a norma? Revista Direito GV. São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, v. 15, n. 2, p.
2-28, 2019. p. 4), que havia sido introduzido por John Money, em 1955, em estudos sobre o
hermafroditismo humano. (BULLOUGH, Vern L. Transgenderism and the concept of gender.
The International Journal of Transgenderism, [s. l.], v. 4, n. 3, Edição especial: What is Transgender? jul.-
set. 2000. Disponível em: https://cdn.atria.nl/ezines/web/IJT/97-03/numbers/symposion/
bullough.htm. Acesso em 05 out. 2020.)
SILVIO MARQUES GARCIA 27

Em uma das primeiras obras que trabalharam o conceito de gênero,


Ann Oakley destaca que o sexo faz referência às diferenças biológicas,
enquanto o gênero é culturalmente definido:
Sexo é uma palavra que se refere às diferenças biológicas
entre homem e mulher: a diferença visível está na genitália
e a diferença relativa está na função reprodutiva. Gênero,
entretanto, é uma questão de cultura: refere-se à classificação
social em masculino e feminino.8
O conceito de Oakley utiliza as diferenças já estabelecidas entre
homens e mulheres sem, no entanto, desenvolver questões ligadas à
assimetria e à hierarquia ente os dois grupos ou entre os papéis socialmente
atribuídos a esses grupos.9
Estabelecida a diferença entre sexo e gênero, conceitos criados
segundo perspectivas diversas, isto é, focados em marcadores biológicos
ou culturais, impõe-se analisar a sexualidade, que, por sua vez, diz respeito
ao comportamento esperado dos corpos (identificados como masculinos e
femininos a partir de critérios predeterminados) e da existência de desejos
sexuais de um para com o outro.
Performances de gênero e sexualidade divergentes das consideradas
normais pela maioria das pessoas transgridem as regras sociais (e jurídicas)
construídas para dar suporte ao sistema estabelecido como garantia das
relações sociais de poder e dominação. Entretanto, essas manifestações
comprovam a diversidade cultural pela qual os sujeitos manifestam sua
dignidade e, quando propensas a acarretar consequências na esfera dos
direitos (sejam públicos ou privados), merecem a respectiva proteção
jurídica.
A sociedade é permeada por valores morais e comportamentais.
Contudo, esses valores são, em sua maior parte, produzidos sob o ponto
de vista da classe dominante, que historicamente se caracterizou por ser
patriarcal e heteronormativa. Aqueles indivíduos que destoam do padrão
socialmente imposto acabam por sofrer discriminação, preconceito e
opressão:
O preconceito, materializado em diferentes formas de
discriminação é uma realidade objetiva para amplos
segmentos de homens e mulheres. Isso porque as diferenças
no jeito de ser e viver têm significado uma arena fértil para
8. OAKLEY, Ann. Sex, gender and society. 2. ed. Aldershot: Gower Publishing Company Limited,
1985. p. 16. Tradução literal do original: “‘Sex’ is a word that refers to the biological differences
between male and female: the visible difference in genitalia, the related difference in procreative
function. ‘Gender’ however is a matter of culture: it refers to the social classification into
‘masculine’ and ‘feminine’.”
9. DELPHY, Christine. Rethinking sex and gender. Women’s Studies International Forum, v. 16, n.
1, p. 1-9, jan.-fev., 1993. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/
pii/027753959390076L#bBIB1. Acesso em 24 out. 2020. p. 3.
28 GÊNERO, IDENTIDADE, FAMÍLIA E PREVIDÊNCIA SOCIAL

a manifestação de múltiplas modalidades de opressões.


Raça, etnia, gênero, orientação sexual, muitos outros itens
compõem a agenda de questões que, historicamente, estão
no alvo da intolerância, da não aceitação da diferença.10
Em uma sociedade multicultural, as diferenças entre indivíduos
geram agregações e desagregações que estão na origem do preconceito. Os
relacionamentos sociais, ao passarem por essas diferenças, podem dar origem
a preconceitos, discriminações e às mais diversas formas de violência, assim
como podem também ser pautados pelo respeito à igualdade, à identidade
e à liberdade de ser diferente. Dessa forma,
Considerando que homens e mulheres só podem conviver
em sociedade, a discriminação sempre ocorrerá em relação
ao outro, portanto, a discriminação é fruto das relações
sociais que estabelecemos através da reprodução de
desvalores que, por vezes, incorporamos acriticamente no
nosso cotidiano.11
O preconceito, assim, surge das relações sociais. As normas jurídicas,
entretanto, são insuficientes para evitar o seu surgimento. O tratamento
entre os seres humanos que compartilham uma vida em comunidade
é pautado por normas morais e jurídicas que ditam as regras sociais de
convivência. Essa convivência exige o respeito ao fato de que o todo é
formado pela soma das diferenças que caracterizam cada um dos membros
do grupo.
As novas modalidades de manifestação de gênero, assim como os
novos arranjos familiares (muitos deles decorrentes daquelas) são fatos
sociais que precisam ser observados e estudados à luz da dignidade da pessoa
humana, a fim de se evitarem eventuais violações aos direitos humanos.
Afinal, não reconhecer a dignidade de alguns torna os demais indivíduos
indignos da própria dignidade.

1.1 MODERNIDADE, CULTURA E GÊNERO

A Revolução Industrial alterou profundamente a dinâmica da


produção. Paralelamente, a Revolução Francesa trouxe novas luzes sobre os
governos, dando início a uma era em que se busca a efetivação dos direitos
dos cidadãos, acima da vontade dos governantes. A modernidade, assim,

10. MESQUITA, Marylúcia; RAMOS, Sâmya Rodrigues; SANTOS, Silvana Mara Morais dos
Contribuições à crítica do preconceito no debate do serviço social. Presença Ética, Recife,
Unipress, v. 1, n. 1, 2001. Disponível em: https://presenetica.wordpress.com/2012/05/12/
presenca-etica-2001-ano1-vol-1/ Acesso em: 15.03.2020. p. 67.
11. MESQUITA, Marylúcia; RAMOS, Sâmya Rodrigues; SANTOS, Silvana Mara Morais dos
Contribuições à crítica do preconceito no debate do serviço social. Presença Ética, Recife,
Unipress, v. 1, n. 1, 2001. Disponível em: https://presenetica.wordpress.com/2012/05/12/
presenca-etica-2001-ano1-vol-1/ Acesso em: 15.03.2020. p. 83.
SILVIO MARQUES GARCIA 29

caracterizou-se pela insatisfação com estruturas sólidas até então vigentes,


edificadas pela tradição, as quais foram substituídas por novas estruturas.
O intuito era erigir estruturas verdadeiramente sólidas,12 não obstante estas
também se mostrem transitórias.
Na segunda metade do século XX, a sociedade viu ruir a modernidade
sólida, como já prenunciaram Karl Marx e Friedrich Engels ao afirmarem
que “[t]udo o que era sólido e estável desmancha no ar”.13 As estruturas
que pareciam constituir a modernidade começaram a se desintegrar, como
o próprio Estado-Nação e também outras dicotomias, como a polarização
entre capitalismo e comunismo.
A fase atual da modernidade, chamada por muitos de pós-modernidade,
é plural e heterogênea e caracterizada pela “ordenação e reordenação das relações
sociais”.14 Bauman, por seu turno, disse que ainda está sendo vivenciada a
modernidade, mas numa fase em que ela se tornou líquida, em contraposição
à estabilidade e solidez que se pretendiam instituir. Os líquidos estão em
constante transformação, têm forma instável, passageira.15
Essa modernidade é chamada por Anthony Giddens e Ulrich Beck
de modernidade reflexiva. Beck ressalta que a sociedade produz mudanças,
algumas bem-vindas, como a maior participação das mulheres no mercado
de trabalho. Outras, porém, são duvidosas, como a flexibilização das relações
de trabalho promovida pelas recentes reformas na legislação trabalhista. A
modernização reflexiva é a “modernização da modernização”, significa a
desincorporação e reincorporação das formas sociais industriais por outra
modernidade e implica inseguranças difíceis de delimitar.16
A modernidade líquida também trouxe novos contornos para o
amor, que se transformou em amor líquido.17 As relações virtuais via internet
assemelham-se às relações de consumo pela mesma via. Estão rapidamente
sujeitas à obsolescência. Para Bauman, conectar e fazer amigos assim como
a possibilidade de desconectar é que garantem a atratividade das relações
sociais virtuais. A liquidez das relações está na facilidade de desconectar-se.

12. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar,
2004. p. 8-13.
13. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 43.
14. GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991. p. 26-27.
15. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar,
2004. 13.
16. GIDDENS, Anthony; LASH, Scott; BECK, Ulrich. Modernização reflexiva. 2. ed. São Paulo:
Editora Unesp, 2012. p. 13-15.
17. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar,
2004. p. 13.

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