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Capítulo 29

Religião, Espiritualidade, FAP e ACT.


I uc Vündcnbcr^hc'

1. Religião versus espiritualidade.


A intenção deste texto é compartilhar umas reflexões acerca dos temas de religião
e de espiritualidade e o papel que podem ter durante um trabalho terapêutico. A resenha
considera as opiniões advindas de diversas orientações clínicas, mas funda seu raciocínio
em princípio nas idéias de autores da chamada 'terceira onda' na terapia comportamental,
que depois da terapia comportamental clássica e da terapia cognitivo-comportamental deu
um novo enfoque à prática de consultório (Kohlenberg, Hayes e Tsai, 1993; Hayes, 2004).
Em primeiro lugar, deve-se apontar que os dois termos não são sinônimos. Reíigiâo
é uma teia de significados ligada a práticas morais e espirituais específicas que são geralmente
sustentadas por práticas sociais (Worthington e Sandage, 2002). De acordo com Hill e
cols. (2000), a religião envolve métodos de procura ao sagrado que são validados e sustentados
por uma tradição ou grupo organizado, enquanto espiritualidade é uma dimensão de
experiência pessoal que ocorre tanto dentro quanto fora de grupos religiosos. Miller e Thoresen
(1999) definem a religião em termos de crenças, rituais e práticas socialmente instituídos, e
a espiritualidade em termos de consciência e busca de transcendência. Assim, a religião é
um fenômeno social e a espiritualidade uma questão de vivência subjetiva do indivíduo.
Imagine um cliente para quem assumir uma certa opçào de vida gera um conflito em
função de uma proibição religiosa que implica em perder o apoio moral dos correligionários
e vergonha de aparecer no meio deles como pecador. Para um outro cliente, o problema em
assumir a mesma opção de vida está ligado com sua visão espiritual. No primeiro caso,
trata-se de um conjunto de contingências sociais que mantém esquiva passiva e evocam

'Universidade Católica de Goiás

Sobre C o m p o rta m e n to e (.'o g nivilo


sentimentos negativos. São, portanto, relações coercitivas, mesmo quando as funções
aversivas são muito sutis e a pessoa envolvida não toma consciência delas. No segundo
caso, trata-se de valores profundos relacionados ao que é muitas vezes o mais reforçador
para a pessoa. Atentar à Fé do cliente impõe então uma dupla contextualização de seu
comportamento dentro da sua história pessoal, buscando sentido na sua existência e no
contexto das redes de relações interpessoais em que ele participa (Vandenberghe, 2002).
Enquanto a busca espiritual do indivíduo e as implicações sociais da religião são
qualitativamente diferentes, são também muitas vezes intrinsecamente intertecidos. Neste
sentido, Sperry e Giblin (1996) encaram ambos (o espiritual e o religioso) na terapia em
termos da procura de sentido, ou da dimensão de "valores" da convivência cotidiana. Uma
explicação possível para este emaranhamento da espiritualidade e da religião pode ser que
a pessoa interpreta sua experiência espiritual através da doutrina ou cosmovisão de sua
comunidade e tradição religiosa (Worthington e Sandage, 2002).
Outras explicações para o entretecimento da religião com o espiritual são possíveis.
A transcendência ou o encontro com suas verdades profundas como vivenciados pela pessoa,
pode ser um resultado de práticas religiosas. Neste sentido, pode-se falar de sentimento
religioso-espiritual como efeito (privado) das mesmas contingências sociais que mantêm o
comportamento religioso (publico), retomando o princípio skinneriano que sentimentos são
efeitos colaterais de exposição a contingências.
Parece funcional, que a prática religiosa leve a sentimentos deste tipo, considerando
as metas da religião organizada. Como Marlatt e cols. (2004) apontam, um alvo explícito da
maioria das religiões é promover o alcance da vida espiritual compartilhada pelos seus
seguidores. Práticas religiosas bem sucedidas devem, então, levar ao crescimento espiritual
dos participantes. Há análises, porém, que apontam que a influência das religiões sobre as
sociedades é muito mais abrangente e inclui uma variedade de áreas além da vida espiritual.

2. Religião.
A religiosidade é analisada na literatura skinneriana como fazendo parte das práticas
culturais. Práticas culturais muitas vezes permanecem consistentes entre indivíduos através
das gerações. São conjuntos intertecidos de contingências em que o comportamento e os
produtos do comportamento de cada participante funcionam como eventos ambientais com
os quais o comportamento de outros indivíduos interage (Glenn, 1988). Em outras palavras,
são práticas de indivíduos que dependem das práticas do grupo (Skinner, 1953).
Skinner (1981) propõe que práticas culturais são selecionadas e moldadas pelas
conseqüências que têm para o grupo. Enquanto o comportamento do indivíduo está muito
sensível a conseqüências imediatas, as práticas de uma sociedade têm uma escala maior
e entram em contato direto com conseqüências mais adiadas que não influenciam diretamente
os atos de um indivíduo isolado. Assim, o paradigma operante permite ver o homem como
produto das suas relações sociais, porém enfatiza que essas relações, por sua vez, são
produzidas a partir do processo histórico de uma sociedade. Enquanto o indivíduo age,
produz história para si mesmo (ele muda através de suas ações e por conseqüência dos
efeitos das suas ações). Mas ao fazer isto, também produz (inova, cria ou reproduz)
contingências que controlarão o comportamento de outros.
De acordo com Malott (1988), práticas religiosas emergem em função de contingências
de sobrevivência de sociedades. Conseqüências de comportamentos que são nocivas ou
benéficas para o grupo podem não influenciar o comportamento do indivíduo, por serem muito
afastadas no tempo dos atos individuais. Precisa-se, então, de um outro mecanismo para

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proteger o grupo. Isto é a função das práticas culturais de acordo com a análise de Skinner.
Práticas culturais (como regras de fidelidade, honestidade ou outras condutas) podem ter
evoluído para controlar socialmente tais comportamentos que têm conseqüências importantes
a longo prazo para a sobrevivência da cultura.
As estruturas religiosas são analisadas como agências controladoras (Skinner, 1953).
Elas favorecem comportamento benéfico para o grupo e diminuem comportamento socialmente
nocivo (Malott, 1992). Neste sentido, práticas religiosas também seriam promotoras da
sobrevivência do grupo, porém têm uma resistência maior à mudança. As condições que
geraram uma regra religiosa podem mudar enquanto a regra permanece e adquire outras
funções que podem ser ou não ser benéficas para a sociedade (Houmanfar e cols, 2001).
Manipulação de regras morais civis por grupos que têm poder na comunicação ou
que são influentes de outras formas é sempre possível. Isto pode resultar em instabilidade e
caos numa cultura. A natureza sagrada das práticas religiosas, porém, os dá uma durabilidade
maior. De acordo com Schoenfeld (1993), a origem transcendente atribuída às práticas
religiosas as proteja contra manipulação oportunista, mas Houmanfar e cols. (2001)
argumentam que as regras religiosas ainda são vulneráveis à manipulação por autoridades
religiosas, de acordo com os interesses políticos dos mesmos.
É imprescindível considerar, em nossa reflexão, a relevância da religiosidade para a
psicoterapia, como o fez Banaco (2001) e o que Skinner escreveu sobre estes dois temas.
A análise que Skinner (1953) faz das agências religiosas também não è inteiramente lisonjeira.
Em vários pontos, sua visão segue uma linha paralela com a do sociólogo Hoffer (1951), que
enfatizou os mecanismos de coerção envolvidos no controle que a religião exerce sobre o
comportamento humano e o efeito alienador da imposição das prioridades do grupo religioso
sobre o indivíduo. Em certos casos, as repercussões do controle religioso sobre o
comportamento podem ser devastadoras. Gewirtz (1993) aponta que quando as agências
têm um monopólio à verdade numa dada sociedade, um contexto opressivo é criado que
gera uma variedade de comportamentos de esquiva e fuga. O cidadão procura caminhos de
ação que são alternativos ao comportamento socialmente benéfico que a agência deveria
promover, e que podem ser altamente nocivos para a sociedade.
Na opinião de Skinner (1953), a psicoterapia tem a função de resolver os estragos
que as agências controladoras fazem na vida das pessoas. Enquanto as contingências
controladas pela agência podem eliminar comportamentos (públicos) não desejados, podem
gerar sentimentos de culpa, raiva e vários tipos de conflitos pessoais, que a pessoa pode
levar para a terapia. Em tal momento, religião e terapia não são aliados. Enquanto a análise
de Skinner foi puramente teórica, um terapeuta cognitivo-comportamental como Ellis (1983)
captou a mesma oposição de interesses a partir da prática.

3. Espiritualidade
Enquanto é possível estudar a evolução da religião no nível da seleção cultural, a
espiritualidade é compreendida como o encontro com si mesmo e com o transcendente
que dá sentido a todo o resto da vivência. É a experiência pessoal de significado profundo
e de transcendência. A busca espiritual é a procura do ser humano para dar sentido
profundo a sua existência (Barnes, Hayes e Gregg, 2001). Isto é uma definição ampla que
inclui também a construção de valores por um sujeito ateu (Worthington e Sandage, 2002).
A fé é uma base para operações, um contexto que dá sentido a ações, más é
diferente do conhecimento racional ou da crença intelectual (Amatuzzi, 1999). Trata-se de

Soòre ( ‘omporfiimcnfo c Coftnfolu 325


uma dimensão de saber mais intuitivo. Alvos comuns são a transcendência do sofrimento
humano e o desenvolvimento de uma consciência diferente do conhecimento verbal
(consciência no sentido Skinneriano da palavra). São valorizadas experiências não-intelectuais
como salvação, satori; iluminação; graça divina; samadhi. Os métodos geralmente não são
de análise racional, mas de entregar-se, aceitar, amar, perdoar. Este caminho não é
inalcançável para uma análise psicológica. Passar por contingências muda o organismo
sem que este necessariamente seja capaz de dar uma explicação racional pela mesma. A
pessoa ó modificada pelas vivências. Age e reage diferentemente dependendo delas.
Na visão behaviorista radical, pode haver saber sem controle verbal (Hayes, 1997).
Pessoas sabem muitas coisas que não podem sustentar racionalmente. Não são capazes
de relatar porque ou como sabem, mas sabem e este saber ó diretamente relacionado
com as opções que fazem e as atitudes que tomam. Pesquisas neuro-cognitivas mostram
diferenças em atividade cerebral entre o lembrar verbal e o saber não-lingüístico. A ativação
cortical é mais alta durante recuperação de memórias falsas (relato verbal destorcido),
menos alta durante recuperação de memória verdadeira (isto é relato corresponde com o
que ocorreu), o mais baixa ainda durante instantes de saber irracional, mas correto. Além
dessa diferença em ativação, há também uma diferença em localização. Saber não-
lingüístico é relacionado com atividade no córtex frontal direito. A recuperação de informação
verbal é relacionada com ativação no córtex frontal esquerdo (Tulving, 1999).
Como terapeutas preferimos o conhecimento verbal, porque é racional, e aberta a
argumentação e porque evita muitos devaneios e escolhas absurdas. Mas este controle
verbal também não é totalmente confiável. O relato verbal pode não corresponder com a
realidade. Pessoas seguem regras racionalmente muito bem sustentadas, que descrevem
contingências inexistentes.
Hayes (1984) apontou que numa visão comportamental, termos podem ser entendidos
pela análise das condições sob quais são usados e os efeitos que têm. O sentido literal,
como descrito no dicionário, é somente parte deste todo. A questão é identificar as
contingências sob as quais as pessoas falam sobre experiências espirituais. Procura-se
estas contingências, nas circunstâncias relacionadas com a tomada de consciência pelo
indivíduo da sua própria consciência. Ver que você está vendo algo, saber que você sabe
algo é ter consciência do seu próprio comportamento. Esta auto-consciência só emerge
como resultado de contingências específicas que são organizadas por uma comunidade
verbal. Uma vez que alguém tomou consciência do fato que está consciente do seu próprio
comportamento, pode-se perguntar quem ou o que está tendo esta consciência? Aqui se
trata da perspectiva a partir do que você vê ou sabe. Esta perspectiva não é sua consciência.
É algo que não tem consistência. É diferente dos seus conteúdos. Não é o que você sabe
ou sente ou acredita, é a perspectiva a partir da qual você sabe, sente ou acredita. Não pode
ser conhecido como objeto pela pessoa, é pura experiência.
Hayes e Gregg (2000) apontam que enquanto os conteúdos da sua vida (opiniões,
projetos, desejos) podem mudar, esta perspectiva não muda. O que você pensou, acredita
ou sente, a sua forma de pensar, acreditar ou sentir podem mudar, mas a perspectiva a
partir da qual você pensa, acredita ou sente não muda. Hayes (1984) propõe que esta
possibilidade de ter consciência de ter consciência (consciência da conciência) tornou
possível para o ser humano fazer uma diferença entre ele (1) como conjunto de conteúdos
e (2) como perspectiva. Assim, a experiência transcendente seria um efeito colateral do
comportamento verbal. Seria a linguagem que deu à humanidade seu espírito.
É interessante observar que a noção de crescimento espiritual de Hayes e Gregg
(2000) no sentido de descobrir-se como perspectiva (ou contexto) diferente dos conteúdos

I ut ViimJcnbcrtilir
(desejos, paixões e conceitos), está em perfeita concordância com o sentimento que predomina
em certas filosofias Orientais (Hayes, 2002). O caminho espiritual é um processo de abrir mão
(das ilusões de poder controlar sua vida, das lutas e das regras mundanas) que leva a uma
maior liberdade e a uma compreensão do que realmente importa. É coerente com o argumento
de Tagore (1931) que o cativo em todas suas formas está nos conteúdos do eu e não no
mundo exterior, no estreitar do nosso olhar e em nossa avaliação arbitrária das coisas.
Hayes (1984) argumenta que a espiritualidade pode ser fonte de sabedoria profunda
porque seria mais fácil entrar em contato com as contingências reais, a partir de um ponto
de vista espiritual (eu como perspectiva) do que a partir do “eu" como conjunto de crenças
e outros conteúdos. Aponta que o controle verbal produz uma insensibilidade ás
contingências e que o controle por estímulos simbólicos pode ser altamente alienador. Ver
conceitos, símbolos e verdades convencionais a partir de uma perspectiva transcendente
enfraquece este controle verbal e dá espaço para contato mais genuíno com as contingências
e para emergência de comportamento mais criativo. O autor lembra que práticas espirituais
não promovem o pensamento analítico, mas a abertura para o que acontece, e o
distanciamento dos conteúdos, tanto os racionais quanto os emocionais. Argumenta que
o homem moderno pode ter uma necessidade a mais de espiritualidade, que poderia
ajudá-lo a se distanciar das ilusões geradas pelo controle verbal e entrar mais efetivamente
em contato com as contingências naturais.
A experiência espiritual pode ser entendida como a perspectiva a partir da qual
tem-se consciência do sentido da vida, e como se situa no todo. Seria um desenvolvimento
mais avançado que vai além da consciência semântica (a dos conteúdos) e que tem a
vantagem evolutiva de possibilitar a pessoa a se situar no seu universo, dar sentido e rumo
à sua vida. Alternativamente, pode ser considerada um modo de saber mais primário e
mais básico, que antecede o comportamento verbal, este saber irracional, intuitivo, que
situa o organismo nas suas interações diretas com as contingências, sem intermediação
de significados convencionais.
Pode-se indagar se tal análise não nos afasta muito do mundo material do
consultório e dos problemas muitas vezes extremamente concretos do cotidiano dos nossos
clientes. O conceito de fé ficou especialmente relacionado com o saber irracional e com a
crença em coisas sagradas, fora do alcance da ciência. Mas como Amatuzzi (1999) ressalta,
precisa-se desta fé em algo para poder fundamentar qualquer epistemologia, e a
racionalidade também somente traz sentido para quem tem fé na razão.
A espiritualidade aponta, então, para a perspectiva a partir da qual nós percebemos,
entendemos e acreditamos em coisas. É um contexto profundamente íntimo e próprio do indivíduo,
que fundamenta suas escolhas, seus atos ooncretos. É possível que uma análise comportamental
da espiritualidade possa contribuir para uma visão behaviorista do processo psicoterápico.

4. Encontros
Quando a religiosidade e a espiritualidade encontram a terapia comportamental?
De acordo com Eysenck (1994), o efeito terapêutico não-especlfico compartilhado por
quase todas as formas de psicoterapia, pode ser parcialmente explicado pelo lugar de
sacerdote profano, que na sociedade moderna ó o do terapeuta. Compara o papel
sociocultural do psicoterapeuta com o do padre, o guru ou do xamâ.
A observação de Eysenck está correta porque os terapeutas assumiram algumas
funções que tradicionalmente caracterizam estes personagens, o que abre espaço para um

Sobre Com portam ento c Coflni(<lo 327


observador externo para confundir os papeis da terapia e da religião (Miller e Hubble, 2004).
Porém a terapia que tentaria aproveitar esta confusão deixaria de ser terapia e se tornaria
uma pseudo-religião. Também não ó possível para nós construir nossa atuação nesta posição
porque pressupõe uma autoridade moral da parte do clínico que è estranha à nossa concepção
de terapia. Além disso, como argumenta Kopp (1972), assumir a posição de discípulo do
terapeuta coloca limites severos às possibilidades de progresso do cliente.
Uma relação hierárquica, como ó proposta em teorias que consideram que o
trabalho terapêutico constitui o degrau inferior, e que o espiritual é o degrau superior de um
mesmo caminho de transformação pessoal (p.ex. Bateson e Bateson, 1988), também não
é coerente com nossa concepção, porque desconsidera os motivos pelos quais as pessoas
procuram terapia. Estes são muito distintos dos de uma jornada espiritual. O cliente não
procura a psicoterapia para receber orientação espiritual ou religiosa, mas para resolver
dificuldades às vezes extremamente concretas, que o empecem de ir em frente com sua
vida. A linha que seguimos neste trabalho considera que se trata de dois processos
independentes que em momentos específicos necessariamente se encontram porque
espiritualidade e religiosidade fazem parte da vida de muitos clientes e terapeutas.
Em princípio, terapia é uma atividade que tem nada em comum com a religiosidade.
Por isso, os momentos em que os dois se encontram podem ser extremamente delicados,
mas (e talvez justamente por serem delicados) também às vezes surpreendentes nas
suas possibilidades. Estando alerto para estes encontros, o terapeuta pode aproveitar-se
das oportunidades que o envolvimento religioso ou a abertura espiritual do cliente oferecem,
para intensificar o processo terapêutico.

5. Religião e espiritualidade como recursos para o cliente.


O sentimento religioso. Quando falamos de sentimento religioso, nos referimos a
efeitos encobertos das conseqüências de comportamentos religiosos sobre a pessoa.
Podemos pensar tanto no efeito da convivência numa comunidade verbal, quanto os efeitos
diretos de práticas religiosas como reza, jejum, participação em sacramento. Para discutir
estas contingências, deve-se distinguir pessoas para quem a religiosidade é um fim em si
(os intrínsecos), e pessoas para quem é um meio para outros alvos, como pertencer a um
grupo ou ser aceito (os extrínsecos). Quando vai à missa, as conseqüências às quais o
membro da segunda categoria se expõe (p. ex. aprovação social, reconhecimento público),
são de natureza distinta das que afetam o primeiro grupo (p.ex. encontro pessoal com
Deus). Por conseqüência, a experiência subjetiva, efeito das contingências, será diferente
também. Nas suas revisões da literatura empírica, Worthington e Sandage (2002) apontam
que pessoas que são intrinsecamente religiosas têm melhores índices de saúde mental do
que pessoas que são extrinsecamente religiosas e Gartner (1996) destaca que pesquisa
mostrou uma correlação negativa entre a religiosidade intrínseca e preconceitos contra outros.
O sentimento religioso pode ajudar alguém a descobrir uma riqueza de recursos que
já possui, mas não explorou. A consciência ética é um aliado precioso da terapia, porque
esclarece quais serão as conseqüências mais valiosas para o comportamento do cliente.
Muitos clientes seguem regras ou agem sob contingências coercitivas, desprezando sua
própria sabedoria mais profunda (Linehan, 1993). “O que sua convicção te diz?" é uma pergunta
fundamental na Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT). Explorando mais de perto o
sentimento religioso do qual um cliente testemunha, o terapeuta pode ajudá-lo a despertar-se
para valores profundos que podem orientar suas escolhas de vida. Tomando seus valores
explícitos, pode esclarecer para o cliente quais escolhas são as certas, com quais alvos pode
se comprometer e quais métodos pode usar. Os exercícios evocativos através dos quais, na

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ACT procura-se desenvolver clareza acerca dos valores fundamentais do cliente (Hayes, 2004)
podem tomar o sentimento religioso do cliente como ponto de partida.
A experiência espiritual, A busca espiritual e a terapia podem se encontrar na
tentativa do cliente de construir um sentido mais profundo. A experiência de transcendência
pode ser uma aliada nesta construção de sentido. O conhecimento racional é frio e rígido
e a experiência espiritual possibilita à pessoa superar as limites do seu próprio paradigma
intelectual, sua visão do mundo. Esta quebra de paradigma pessoal, permite aumentar a
resolução criativa de problemas, inclusive de impasses bem concretos na vida do cliente.
A vivência espiritual pode promover flexibilidade intelectual e tolerância de
incongruências e possibilita à pessoa aprender a lidar com a incerteza e o não definido.
Possibilita, ainda, observar a se mesmo de ângulos que diferem das concepções
convencionais. Isto pode ter vantagens, como a melhora do manejo dos limites pessoais;
a identificação de contingências que não correspondem com as suas regras, a intensificação
da vida. O cliente pode se tornar um pouco menos rígido em relação a si mesmo e um
pouco mais tolerante de sua incompletude.
A afiliação religiosa. Na sua revisão da literatura empírica sobre a relação entre
compromisso religioso e saúde, Gartner (1996) destaca estudos que mostraram que a
freqüência à igreja está relacionada com melhor saúde física, satisfação conjugal e bem-
estar e especula sobre variáveis que poderiam mediar esta relação como beber ou fumar
menos. Pessoas que se comprometem mais com uma religião, vivem mais, cometem
menos suicídio e têm menor índice de delinqüência. Um ponto interessante que é destacado
nesta revisão ó que estudos não encontraram relação entre delinqüência e convicções
religiosas, mas sim uma relação negativa entre freqüência à igreja e delinqüência. Os
dados não são tão claros quando se trata da saúde mental. Há resultados contraditórios
entre estudos quanto à relação entre religiosidade e ansiedade, enquanto principalmente
entre pessoas convertidas o grau de religiosidade é relacionado com intolerância de
ambigüidade, uma atitude rígida que caracteriza uma falta de abertura para experiência.
O apoio social oferecido pela comunidade religiosa, ao membro que participa
regularmente nos encontros, pode ser uma variável na prevenção de delinqüência, suicídio,
e evitação de vários comportamentos de risco para a saúde. O terapeuta pode recorrer a
este recurso quando percebe, por exemplo, que um grupo de oração do qual um paciente se
afastou por medo de ter um ataque de pânico no caminho poderia trazer motivação para sair
de casa e se engajar em contatos sociais renovados, ou que um paciente depressivo poderia
retomar as idas a sua comunidade, onde poderia assumir tarefas e atividades sociais.
Pertencer à uma comunidade religiosa significa também que o cliente tem à sua
disposição mais um ambiente onde pode experimentar. Novas estratégias podem ser
exploradas, como aprender a desliteralizar normas; questionar, aceitar por inteiro ou em
parte, tolerar o outro, colaborar, contribuir, se engajar em projetos, defender seus limites
pessoais contra tentativas de invasão por outros participantes ou líderes da comunidade.
O terapeuta pode combinar com o cliente tornar este setor da vida real, como também a
relação de casal, o trabalho e outros ambientes em situações em que o cliente pode
mudar as maneiras em que se relaciona com seu mundo.

6. Religião e Espiritualidade como recursos na terapia


O encontro da religiosidade ou espiritualidade com a terapia pode ser formal ou
informal. Um exemplo de integração formal é a terapia cognitivo-comportamental cristã. A

Sobre ro m p o rtiim fn fo f t'oflnlv.lo


revisão da literatura por Worthington e Sandage (2002) mostra que é eficaz, mas não mais
ou menos eficaz do que terapia cognitivo-comportamental tradicional.
Fonte de inspiração. Informalmente, o terapeuta pode usar técnicas que aproveitem
as fontes que o cliente valoriza, como usar uma frase da bíblia para bloquear um pensamento
intrusivo ou um ato compulsivo. As convicções religiosas do cliente podem servir como
fontes de criatividade e inspiração. Conceitos como perdão; iluminação ou consciência
cósmica podem expressar valores do cliente que podem ser aproveitados para a mudança.
Da mesma forma, as convicções religiosas do cliente podem ser aproveitadas para ajuda-
lo a se auto-examinar, se questionar e também para desafiar certos padrões de
comportamento disfuncional. Em certos casos pode ser produtivo pedir ao cliente para ver
suas crenças e valores religiosos sob um outro ângulo ou prestar atenção a aspectos ou
implicações dos mesmos que não levou em conta na prática até agora. Trata-se aqui de
atualizar recursos que o cliente já tinha, mas não usou para seu próprio benefício.
Apoio do Livro Sagrado da religião do cliente possibilita passar recados numa
linguagem que o cliente valoriza, e que é coerente com o próprio referencial de valores do
cliente. Isto é coerente com a preocupação que o terapeuta sempre deveria ter de nortear o
seu trabalho de acordo com a orientação de valores do cliente, para estruturar intervenções.
Marden (2000) discute o exemplo de uma cliente com uma fobia social que a terapeuta
motivou a enfrentar o seu medo, mobilizando seu desejo de testemunhar na igreja. Quando
a cliente justificou sua passividade frente à vida, com versículos, a terapeuta a convidou a
um estudo da bíblia que minou a resistência à mudança. Quando a cliente se queixou de um
vazio interior, de inferioridade e de uma falta de sentimentos com as pessoas próximas, a
terapeuta a ajudou iniciar práticas no seio da família que eram coerentes com os seus
princípios religiosos, tomando iniciativas, fazendo celebração em casa e mudando sua
convivência com os familiares de acordo com suas crenças religiosas. Conseguir viver em
coerência com suas convicções e fazer escolhas de acordo com seus próprios valores
religiosos, a levou a uma nova visão de si e a uma liberdade de ser espontânea e de descobrir
seus próprios sentimentos.
Proveito da visão que o cliente possui. O terapeuta pode aproveitar da linguagem
religiosa para comunicar-se melhor com um cliente religioso e resgatar a visão que o cliente
possui para o beneficio do processo terapêutico. Se o terapeuta trabalha com ACT ou com
outras abordagens pautadas em "Mindfulness" (Hayes, 2004), tem a possibilidade de entender
o que cliente está falando sobre a “Graça” sem precisar entrar em confronto com ele, porque
pode aproveitar do que o mesmo já entende por este conceito para levá-lo através dos estágios
de “aceitação e difusão", “estar no presente estabelecendo o eu-como-processo" e "ação
comprometida com valores escolhidos". A cliente que cita o Epistolo de Paulo aos Romanos
7,17, dizendo "Não sou eu mas o pecado que reside em mim" não está muito afastada da
teoria do "eu-como-contexto" versus ‘ eu-como-conteúdo" que diz que você não é seus conteúdos,
e que não é saudável identificar-se com eles. Do ponto de vista Hayeseano, ela pode estar no
caminho certo. Ao invés de insistir que a cliente controle seus encobertos, precisa perceber
que seus comportamentos não estão sob controle dos seus encobertos. Neste sentido, aceitar
a linguagem do cliente religioso pode ajudar o terapeuta ser mais tolerante e escutar melhor as
explicações irracionais do cliente e usá-las produtivamente depois. O terapeuta pode abrir
mão do papel de ser dono da verdade e missionário da razão. Pode trabalhar mais diretamente
com a idéia de que a verdade para o cliente está na vivência do próprio cliente.
Proveito da sabedoria da religião. Há uma tendência entre as terapias
comportamentais da ‘terceira onda’ em integrar lições da espiritualidade oriental no tratamento,

I ui ViimlenlKTtflic
assim como práticas meditativas (Hayes, 2004; Linehan, 1993), Metáforas e parábolas
Budistas ou Hindus podem ajudar introduzir estratégias centrais da ACT, como difusão, a
tomada de perspectiva, o distanciamento dos conteúdos ou das ilusões e regras sociais
que nos impedem de viver. Este entusiasmo para o Oriente não deve ofuscar o fato de que
lições bíblicas podem ser aproveitadas da mesma forma. Além de passar recados ricos para
o cliente, falar em parábolas evita que o terapeuta reforce o contexto de literalidade. O
cliente pode experimentar entender o que o terapeuta fala em sentidos metafóricos e literais,
para depois poder distanciar-se das regras e dos conceitos rígidos com os quais lutou sua
vida inteira. A consideração de metáforas ó um exercício que enfraquece o controle verbal.

7. Religiosidade e espiritualidade como problema na terapia.


Interdição da terapia. No caso mais extremo, a religiosidade pode acarretar na
proibição de fazer terapia. Freqüentemente se ouve dizer que quem tem fé não precisa de
terapia. Quem acredita nisto, pode não procurar a ajuda profissional da qual tem necessidade.
Em outros casos, o pastor pede o fiel para verificar a que igreja o psicólogo pertence e
instruí-lo de interromper o tratamento para procurar um terapeuta que pertença à sua igreja.
A religião pode oferecer um substituto enganoso para a terapia. Muitas vezes,
uma pessoa que passa por uma crise grave na sua vida, encontra na conversão religiosa
a solução de certos problemas e vai, a partir de então, seguir regras que vêm da mesma
fonte (por exemplo, esta igreja que deu a solução no pior momento). É possível que estas
regras resolvam certos problemas, mas ajudem a manter um contexto socio-verbal
patogênico em que o comportamento de seguir regras continua muito forte. A pessoa pode
assim estagnar num equilíbrio, mais suportável que antes, isentando-se de encarar seus
problemas mais graves.
Controle verbal rígido. "O que o pastor fala ó a palavra de Deus". Necessariamente,
e mesmo com as melhores intenções, acontece que o pastor recomenda ações e atitudes
prejudiciais para a vida do cliente. Em última análise, todas as recomendações são
problemáticas quando alguém as concede autoridade absoluta sem considerar o sentido
das mesmas no seu contexto. O preceito “se alguém te ferir na tua face direita, apresenta-
lhe também a outra" (Mateus, 5, 39; Lucas, 6, 29), seguido literalmente demais por um
cliente que "deixa os outros pisar nele", pode se tornar particularmente prejudicial. A citação
bíblica, ou a instrução do pastor pode se tornar uma razáo para continuar com estratégias
interpessoais que mantêm os problemas. O mesmo pode acontecer com o versículo que
diz que o marido é cabeça da mulher (Efésios, 5, 23), quando é aproveitado como uma
razão para permitir que o marido se comporte de maneira abusiva.
A regra: "Sou um pecador" quando é assumida literalmente, providencia ao cliente
razões suficientes para continuar não cuidando de si mesmo ou desconsiderando suas
necessidades e seus direitos. "Tenho que entregar tudo nas mãos de Deus" pode significar
que o cliente não resolve mais seus problemas. O contexto da literalidade mantém
comportamento sob controle das palavras e do que estas pretendem dizer. É a ditadura dos
conteúdos. Comunidades verbais que promovem este tipo de controle verbal rígido tornam
difícil para a pessoa se distanciar dos conteúdos e fazer sentido de preceitos e regras.
O excesso de controle verbal que pode acompanhar o zelo religioso pode ajudar
manter comportamentos rígidos e atitudes intolerantes. O cliente pode não desenvolver relações
humanas construtivas por condenar sistematicamente pessoas que não correspondem com
suas regras. Melhoras na terapia podem entrar em choque com normas sociais que são

Sobre C'onipori.imenlo e t'oflnlv'.lo


sustentadas por um grupo religioso. O comportamento assertivo que uma cliente desenvolve
pode ser punido por não se encaixar na regra que o marido é a cabeça da mulher.
Modelos inadequados de problemas psicológicos. A orientação religiosa pode
complicar a compreensão que pacientes têm dos seus problemas e aumentar a resistência
à mudança. Pode ser muito difícil levar o cliente a lidar bem com pensamentos obsessivos
blasfêmicos, quando o paciente acredita que é um pecador por tê-los ou que eles são a
prova que o demônio vive dentro dele. Como levar um paciente com TOC a cessar a luta
desesperada contra pensamentos intrusivos e se engajar em estratégias curativas se sua
religião o proíbe estas mudanças? Quando comportamentos compulsivos consistem em
rezar repetitivamente depois de cada pensamento obsessivo, tentativas do psicólogo de
dissuadí-lo, podem esbarrar-se em resistência religiosa.
Na vivência de alucinações, problemas similares podem aparecer. Quando o
paciente pertence a uma comunidade que sustenta que Deus ou o demônio literalmente
falam com as pessoas por este meio, será difícil ajudar o cliente a desenvolver uma forma
adequada de lidar com as vozes.
Desencontros entre terapeuta e cliente. Quando os valores do terapeuta e do
cliente são muito diferentes, pode se tornar difícil negociar os alvos da terapia. A proliferação
de igrejas aumenta a probabilidade de que um dado cliente e seu terapeuta divergem na
sua orientação religiosa.
Diferenças em valores e crenças podem influenciar o processo terápico. O cliente
pode ter preconceitos contra a orientação religiosa do terapeuta, o que pode tornar a relação
terapêutica improdutiva. Além disso, o cliente pode reter informação pessoal quando assume
que o terapeuta tem valores diferentes, ou quando percebe que o terapeuta não acredita nas
mesmas coisas que ele. Foi mostrado que clientes religiosos se abrem mais com terapeutas
que tem a mesma orientação religiosa que a sua e clientes não religiosos tem a mesma
vantagem com terapeutas não religiosos, mas não há evidências que similaridade entre terapeuta
e cliente seriam benéfica para a eficácia da terapia (Worthington e Sandage, 2002).
Terapeuta e cliente se identificam pela sua religião. O terapeuta e o cliente podem
ser multo similares nas suas crenças e valores e ter as mesmas manchas cegas. Neste
caso, a harmonia entre as suas opiniões implica pobreza de oportunidades, já que a
mudança terapêutica muitas vezes é fruto de confrontos. Quando o terapeuta vê as coisas
demasiamente como o cliente as vê, pode ter pouco a contribuir. De um lado, como
Kohlenberg e Tsai (2001/1991) apontam, ter passado por contingências similares como os
do cliente é uma vantagem para o terapeuta. Do outro lado, quando terapeuta e cliente
possuem os mesmos repertórios e carecem dos mesmos, as possibilidades de crescimento
de ambos serão limitados.
Esquiva de questões concretas. As sessões podem chegar a focalizar-se em
temas religiosos ou espirituais. Este foco pode ser uma tática de esquiva dos assuntos
que realmente deveriam ser trabalhados e o terapeuta que se dá conta de que tal deslize
está ocorrendo, deve-se perguntar por que o permitiu. Quem está se afastando do trabalho
árduo da terapia, o cliente ou ele mesmo? Quais são os assuntos dos quais ele ou o
cliente foge? O foco nos problemas concretos deve ser retomado, e se o terapeuta consegue
identificar a função (ou as funções) de seu próprio comportamento de fuga/esquiva ou da
sua atitude passiva de deixar o cliente fugir/esquivar, a experiência pode até contribuir ao
aprofundamento da análise funcional e à detecção de assuntos ameaçadores que não
tinham sido abordados.

I.uc VdiulirnbriRbc
8. Aproveitar os problemas na terapia
A ocorrência de dificuldades do cliente na sessão constitui uma oportunidade
inédita para a atuação terapêutica (Kohlenberg e Tsai, 2001/1991; Kohlenberg, Hayes e
Tsai, 1993). Na terapia, o excessivo controle verbal religioso ó atacado por intervenções
que promovem pensar a partir dos dados; avaliar evidência; promover flexibilidade; tolerar
ambivalências sem precisar se esconder atrás de uma regra que assegura e garante;
valorizar a própria experiência, promover desliteralização e procurar ver o que pode ter de
válido ou pragmático numa dada regra religiosa, além da aparência literal. Assim, o encontro
com tais regras pode se tornar uma oportunidade para aprender a questionar palavras e a
filtrar significados. Que o excessivo controle verbal se refere a conteúdos religiosos não é
tão relevante, mas a ocorrência do comportamento de seguir regras de modo inflexível
possibilita ao terapeuta atuar diretamente sobre este comportamento do cliente, tornando
assim o dogmatismo e a rigidez religiosa oportunidades para trabalhar atitudes disfuncionais
que vão muito além da sua vida religiosa.
O mesmo pode ser dito quando a religião é responsável por desencontros pessoais
entre cliente e terapeuta. Os problemas na relação terapêutica muitas vezes são
oportunidades de explorar a vivência do cliente. Diferenças e conflitos fazem parte do
processo contínuo de negociação do relacionamento entre terapeuta e cliente. Uma ruptura
é uma possibilidade de tornar este processo explícito. Assim, o terapeuta preparado e
atento pode aproveitar de crises na relação para aprofundar a terapia.
Explorar e resolver conflitos e dificuldades de comunicação sobre valores religiosos
ou espiritualidade pode ser uma oportunidade para identificar comportamentos que dificultam
relacionamentos no cotidiano do cliente e de trabalhar com estes ao vivo. Na exploração
dos conflitos, pode-se evidenciar, por exemplo, que um certo cliente não é capaz de levar
em conta que o outro (no caso o terapeuta) veja as coisas de sua própria maneira e do seu
próprio ponto de vista, e não da maneira e do ponto de vista do cliente. Este déficit é
clinicamente relevante quando o mesmo acontece com outras pessoas no seu cotidiano,
em relação aos problemas para os quais o cliente procura a terapia.
Neste caso, um conflito de valores entre terapeuta e cliente, é uma oportunidade
para aprender a negociar a partir de visões diferentes da realidade. O cliente pode descobrir
que vive num mundo onde realidades são negociáveis e aprender a lidar com isto sem abrir
mão do que é importante para si mesmo e sem agredir o outro. Até em casos extremos,
quando a vivência do cliente é irreconciliável com a do terapeuta, as incompatibilidades
continuam sendo oportunidades de aprendizagem. O cliente vai ter a oportunidade de
lidar, numa relação bastante íntima, com alguém que não pensa igual e não concorda com
ele. A identificação de opostos aparentes pode propiciar a oportunidade de reconhecer
elementos comuns que se situam além das aparências (Vandenberghe, 2002).
A impossibilidade de aceitar a visão do outro, pode oferecer acesso a um
autoconhecimento aprimorado. Quando uma diferença aguda entre ambos está em
evidência, o cliente tem a oportunidade de aprender a lidar com sua decepção com o
outro, e com o sentimento que o outro não o entende inteiramente (mas que pode entende-
lo muito bem em outros aspectos). O cliente que se vê assim confrontado com o fato que
relacionamentos não são perfeitos tem a oportunidade de aprender a aproveitar, a apreciar
e a curtir trocas dentre de uma relação que inclui diferenças. A imperfeição do encontro
constitui em parte sua riqueza em oportunidades. Da mesma forma, amizades, namoros,
relações de trabalho e outros relacionamentos com os quais o cliente não consegue lidar
no seu cotidiano não são invalidados pelos seus inevitáveis defeitos.

Sobre l ‘ om porl.imcnto e CoflniçJo 333


Para o cliente que tem dificuldades de mostrar seus sentimentos, ou de negociar
relacionamentos, as diferenças entre terapeuta e cliente são ao mesmo tempo a
oportunidade de aprender a expressar sua insatisfação com o terapeuta, a ceder e a
exigir, para subseqüentemente lidar com as reações do outro. Assim, o cliente consegue
se perceber plenamente como participante ativo na construção da relação terapêutica e
assumir os resultados das suas próprias táticas interpessoais. Tais situações são também
oportunidades para o terapeuta de oferecer ajuda construtiva para o cliente que se sente
mal compreendido. O terapeuta pode responder não-defensivamente e usar as reações do
cliente como sinal para mudar seu comportamento, se adequando às necessidades do
cliente dentro da relação.
O terapeuta que revelou algo sobre as suas crenças ou sua orientação religiosa,
e percebe que o cliente virou mais relutante e parece reter informação, deve discutir
abertamente a mudança que percebeu, e compartilhar também qual foi o efeito desta
atitude sobre sua pessoa. O cliente pode descobrir que sua capacidade de abertura tem
limites e pode aprender a entender os mesmos. Pode reconhecer sensibilidades e
imperfeições, aprender a valorizar os próprios limites e respeitá-los. Além disso, esclarecer
mal-entendidos pessoais entre cliente e terapeuta, pode ser um exercício para o cliente
entender como o outro o vê e tentar lidar com a leitura que este outro faz dele.
A detecção de preconceitos contra as convicções pessoais do terapeuta é uma
outra oportunidade de acessar e trabalhar ao vivo na sessão certas dificuldades de um
cliente que podem atrapalhá-lo no seu cotidiano. Crenças e valores de acordo com o
behaviorismo radical são comportamentos verbais e produtos da inserção do indivíduo
numa comunidade verbal. Esta análise exclui a possibilidade do terapeuta ou do cliente
possuir a verdade absoluta. Assim, escolhe-se uma posição pragmática frente ao saber.
Na relação, o cliente tem a oportunidade de expressar visões que são diferentes das do
terapeuta. Pode chegar a entender que suas expectativas e opiniões são comportamentos,
relacionados com sua história de aprendizagem, e não são dados universais inquestionáveis.
Os desencontros podem ser oportunidades de aprimorar a análise funcional do
relacionamento. Por exemplo, um cliente pode achar invasora ou prepotente a colocação
do terapeuta a respeito de um assunto religioso ou espiritual. O terapeuta poderia questionar
a relação entre estas avaliações e os sentimentos freqüentes do cliente de ser dominado,
rejeitado ou desqualificado por outros. Tal momento possibilita perguntas que podem
esclarecer problemas que podem ter ficado ocultos durante as sessões. Como o cliente
entende o que o terapeuta falou sobre suas crenças ou sobre sua filiação (ou não filiação)
a uma comunidade? Como isto se compara com a maneira com que o cliente lida com
avaliações sobre si por outras pessoas no cotidiano?
A interpretação que o cliente faz do que aconteceu pode ser explorada. Como o
cliente percebe as pessoas que têm convicções diferentes das dele? O cliente se sente
invalidado quando lida com alguém que pensa diferente? Se sente agredido? Ou considera
o terapeuta como uma pessoa menos valiosa? Em tais momentos é possível notar como
o cliente reage ao terapeuta e que tipo de comportamento o cliente evoca no terapeuta. A
relação é funcionalmente similar com aquela entre oprimido e opressor? Aluno e mestre?
Mártir e inquisidor? Oponentes acadêmicos? Um casal brigando?
O terapeuta que descobre que suas crenças e valores são similares aos do cliente,
pode considerar que a própria experiência terapêutica pode providenciar diferenças. A
diferença entre perguntar e responder, entre dar e receber, abrir-se e acolher, são próprias

334 I uc V.indcnbcTflhr
dos papeis que desempenham naturalmente na relação terapêutica. Estes temas permitem
variações ilimitadas. É um momento para sair de rotinas e experimentar sua disposição
para tentar formas de relacionamento imprevisíveis.

9. Religião e espiritualidade do terapeuta


Em princípio, podemos repetir à respeito da pessoa do terapeuta muitas das mesmas
coisas que foram ditas sobre o cliente. A religiosidade pode se tornar um problema quando
o terapeuta tem preconceitos e se mostra rígido nas suas regras e avaliações. Por outro
lado, pode ser um recurso para o terapeuta, quando é uma fonte de inspiração e de consciência
ética.
Sperry e Giblin (1996) consideram que o terapeuta deve ser capaz de articular
sua própria jornada espiritual quando trabalha com clientes religiosos. Nós acreditamos
que quando o terapeuta é capaz de reconhecer algo de si mesmo no cliente, a ressonância
de emoções e vivências no seio da relação terapêutica, facilitará ajudar o cliente a entrar
em contato com os seus impasses. Experiências religiosas e escolhas relacionadas com
valores espirituais podem fazer parte deste processo. A mesma ressalva concernindo
similaridades entre terapeuta e cliente, que foi feita em nossa discussão de problemas na
terapia, deve ser feita aqui. Quando a harmonia pareça empobrecer as dinâmicas do
relacionamento, medidas devem ser tomadas para quebrar esta homeostase nas sessões.
Quando o terapeuta se permite refletir sobre sua atuação durante a sessão e a
analisar a relação que tem com as contingências interpessoais configuradas pelas reações
do cliente, pode também se conhecer melhor. Quando suas vivências são similares com
as do cliente, tem a oportunidade de aprofundar a compreensão das mesmas pela
ressonância que ocorre na sessão.
Como o comportamento muda em função dos efeitos que tem sobre o ambiente e,
visto que no diálogo terapêutico o ambiente do cliente é o terapeuta, o comportamento do
cliente se transforma de acordo com os efeitos que tem sobre o do terapeuta. Isto significa
que o terapeuta deve se deixar tocar pelo cliente. Não é possível mudar o outro sem que
este outro tenha um efeito sobre você. Por isto, a psicoterapia analítico-funcional é um
processo de transformação não só para o cliente, mas também para o terapeuta. Assumir
esta conceituação do processo terapêutico acarreta a necessidade de considerar as
crenças e valores do terapeuta. Assim, interligamos o que acontece na relação terapêutica
com a busca de sentido de ambos terapeuta e cliente, e das comunidades das quais cada
um ó produto e (necessariamente também) co-criador.

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