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ELEMENTOS DO ANTISSEMITISMO: LIMITES DO ESCLARECIMENTO

Atualmente, o antissemitismo é considerado por uns como uma questão vital da humanidade, por outros como mero pretexto. Para
os fascistas, os judeus não são uma minoria, mas a antirraça, o princípio negativo enquanto tal; de sua exterminação dependeria a
felicidade do mundo. No extremo oposto está a tese de que os judeus, livres de características nacionais ou raciais, formariam um
grupo baseado na opinião e na tradição religiosas e nada mais. Só se poderia falar de características judaicas a propósito dos judeus
orientais e, em todo caso, unicamente a propósito dos que ainda não foram inteiramente assimilados. Ambas as doutrinas são
verdadeiras e falsas ao mesmo tempo.
A primeira é verdadeira no sentido em que o fascismo a tornou verdadeira. Os judeus são hoje o grupo que, tanto prática quanto
teoricamente, atraem sobre si a vontade de destruição que uma falsa ordem social gerou dentro de si mesma. Eles são estigmatizados
pelo mal absoluto como o mal absoluto. Assim, eles são de fato o povo eleito. Ao mesmo tempo que se afirma que, economicamente,
a dominação não seria mais necessária, os judeus são designados como o objeto absoluto de uma dominação pura e simples. Aos
trabalhadores, que afinal são os visados, ninguém o diz na cara (e com razão); os negros, é preciso conservá-los em seu lugar; mas,
quanto aos judeus, a terra precisa ser purificada deles, e o grito que conclama a exterminá-los como insetos encontra eco no coração
de todos os fascistas em potencial de todos os países. Os racistas [die Völkischen] a exprimem sua própria essência na imagem que
projetam dos judeus. Sua ânsia é a posse exclusiva, a apropriação, o poder sem limites, a qualquer preço. O judeu,
sobre o qual descarregam a própria culpa e que escarnecem como dominador, eles o pregam na cruz, repetindo interminavelmente
o sacrifício em cuja eficácia não conseguem mais acreditar. A outra, a tese liberal, é verdadeira enquanto Ideia. Ela contém a imagem
da sociedade na qual a cólera não se reproduz mais e está em busca de atributos nos quais possa se descarregar. Mas, ao colocar a
unidade dos homens como já realizada por princípio, ela ajuda a fazer a apologia do existente. A tentativa de desviar a mais extrema
ameaça mediante uma política de minorias e uma estratégia democrática é ambígua, como aliás o é a defensiva dos derradeiros
burgueses liberais em geral. Sua impotência atrai o inimigo da impotência. A vida e o aspecto dos judeus comprometem a
universalidade existente em razão de sua adaptação deficiente. O apego inflexível às suas próprias formas de ordenamento da vida
levou-os a uma relação insegura com a ordem dominante. Eles esperavam que esta os protegesse, mesmo sem dominá-la. Sua relação
com todos os povos soberanos se fundava na cobiça e no temor. Todavia, sempre que renunciavam à diferença relativamente ao
modo de ser dominante, os bem-sucedidos recebiam em troca o caráter frio e estoico que a sociedade até hoje impõe às pessoas. O
entrelaçamento dialético do esclarecimento e da dominação, a dupla relação do progresso com a crueldade e a liberação, que os
judeus tiveram que provar nos grandes esclarecedores bem como nos movimentos populares democráticos, também se mostra no
ser dos próprios assimilados. O autodomínio esclarecido com que os judeus adaptados superaram inteiramente as lembranças
penosas da dominação imposta por outros (por assim dizer, a segunda circuncisão) tirou-os de sua comunidade carcomida e os jogou
sem mais na burguesia moderna, que já avançava inexoravelmente para a recaída na simples repressão, ou seja, para sua
reorganização como raça pura. A raça não é imediatamente, como querem os racistas, uma característica natural particular. Ela é,
antes, a redução ao natural, à pura violência, a particularidade obstinada que, no existente, é justamente o universal. A raça, hoje, é
a autoafirmação do indivíduo burguês integrado à coletividade bárbara. Os judeus liberais, que professaram a harmonia da sociedade,
acabaram tendo que sofrê-la em sua própria carne como a harmonia da comunidade étnica [Volksgemeinschaft]. Eles achavam que
era o antissemitismo que vinha desfigurar a ordem, quando, na verdade, é a ordem que não pode viver sem a desfiguração dos
homens. A perseguição dos judeus, como a perseguição em geral, não se pode separar de semelhante ordem. Sua essência, por mais
que se esconda às vezes, é a violência que hoje se manifesta.
(...)
A sociedade atual, onde os renascimentos e os sentimentos religiosos primitivos, bem como o legado das revoluções, estão à venda
no mercado; onde os chefes fascistas negociam atrás das portas o território e a vida das nações, enquanto o público esperto calcula
o preço no rádio; a sociedade, onde a palavra que a desmascara se legitima por isso mesmo como recomendação para a admissão
no banditismo político; essa sociedade, na qual a política não é mais somente um negócio, mas o negócio é a política inteira – essa
sociedade se toma de indignação contra o retrógrado mercantilismo do judeu e designa-o como o materialista, o traficante, que deve
recuar diante do fogo sagrado daqueles que erigiram o negócio em algo de absoluto.
(...)
O antissemitismo baseia-se numa falsa projeção. Ele é o reverso da mimese genuína, profundamente aparentada à mimese que foi
recalcada, talvez o traço caraterial patológico em que esta se sedimenta. Só a mimese se torna semelhante ao mundo ambiente, a
falsa projeção torna o mundo ambiente semelhante a ela. Se o exterior se torna para a primeira o modelo ao qual o interior se ajusta,
o estranho tornando-se o familiar, a segunda transpõe o interior prestes a saltar para o exterior e caracteriza o mais familiar como
algo de hostil.
Os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem são atribuídos ao objeto: a vítima em potencial.
Para o paranoico usual, sua escolha não é livre, mas obedece às leis de sua doença. No fascismo, esse comportamento é adotado
pela política, o objeto da doença é determinado realisticamente; o sistema alucinatório torna-se a norma racional no mundo, e o
desvio a neurose. O mecanismo que a ordem totalitária põe a seu serviço é tão antigo quanto a civilização. Os mesmos impulsos
sexuais que a raça humana reprimiu souberam se conservar e se impor num sistema diabólico, tanto dentro dos indivíduos, quanto
dos povos, na metamorfose imaginária do mundo ambiente. O indivíduo obcecado pelo desejo de matar sempre viu na vítima o
perseguidor que o forçava a uma desesperada e legítima defesa, e os mais poderosos impérios sempre consideraram o vizinho mais
fraco como uma ameaça insuportável, antes de cair sobre eles. A racionalização era uma finta e, ao mesmo tempo, algo de
compulsivo. Quem é escolhido para inimigo é percebido como inimigo. O distúrbio está na incapacidade de o sujeito discerni no
material projetado entre o que provém dele e o que é alheio.
Em certo sentido, perceber é projetar. A projeção das impressões dos sentidos é um legado de nossa pré-história animal, um
mecanismo para fins de proteção e obtenção de comida, o prolongamento da combatividade com que as espécies animais superiores
reagiam ao movimento, com prazer ou desprazer e independentemente da intenção do objeto. A projeção está automatizada nos
homens, assim como as outras funções de ataque e proteção, que se tornaram reflexos. É assim que se constitui seu mundo objetivo,
como um produto daquela “arte escondida nas profundezas da alma humana cujos procedimentos dificilmente haveremos de arrancar
à natureza e expor aos olhos de todos.
(...)
Por isso, não desapareceram com o indivíduo seus determinantes psicológicos, que sempre foram os agentes intra-humanos da falsa
sociedade. Mas os tipos caracterológicos encontram agora seu lugar preciso no organograma da empresa de poder. Seus coeficientes
de rendimento e de atrito estão incluídos no cálculo. O próprio ticket é uma roda da engrenagem. Tudo o que, no mecanismo
psicológico, foi sempre compulsivo, sem liberdade e irracional está adaptado a isso de uma maneira precisa. O ticket reacionário
que contém o antissemitismo é adequado à síndrome destrutivo-convencional. Originariamente, eles representam menos uma reação
contra os judeus de que a formação de uma orientação pulsional à qual só o ticket fornece um objeto adequado de perseguição. Os
“elementos do antissemitismo”, baseados na experiência e anulados pela perda de experiência que se anuncia na mentalidade do
ticket, são novamente mobilizados pelo ticket. Já tendo entrado em decomposição, eles trazem para o neo-antissemita a má
consciência e, com ela, a insaciabilidade do mal. É justamente porque a psicologia dos indivíduos e seus conteúdos só se produzem
através dos esquemas sintéticos fornecidos pela sociedade que o antissemitismo contemporâneo adquire uma natureza vazia e
impenetrável. O intermediário judeu só se torna realmente a imagem do diabo depois que ele deixou de existir economicamente.
Isso facilita o triunfo e torna o pai de família antissemita um espectador irresponsável da tendência histórica irresistível, que só
intervém quando o exige seu papel como empregado do partido ou das fábricas que fabricam o gás para os campos de extermínio.
A administração dos Estados totalitários, que procede ao extermínio daqueles segmentos da população que se tornaram anacrônicos,
é apenas o carrasco que executa veredictos econômicos há muito pronunciados. Os membros dos outros setores da divisão do
trabalho podem ficar olhando com a indiferença que o leitor de jornais não perde ao ler, por exemplo, uma notícia sobre os trabalhos
de limpeza no cenário da catástrofe do dia anterior. A particularidade que forneceu o motivo para o assassinato das vítimas também
já desapareceu há muito tempo. As pessoas que caem sob a lei antissemita devem ser localizadas através de questionários
minuciosos, depois que, sob a pressão niveladora da sociedade industrial tardia, as religiões inimigas, que constituíam outrora a
diferença, se viram transformadas em simples bens culturais, graças à uma assimilação bem-sucedida. As próprias massas judias
são tão suscetíveis à mentalidade do ticket como qualquer uma das associações juvenis que lhes são hostis. O antissemitismo, de
certa maneira, tem que, primeiro, inventar seu objeto. A paranoia não persegue mais seu objetivo com base na história clínica
individual do perseguidor; tendo-se tornado um existencial social, ela deve antes se inserir no contexto ofuscador das guerras e das
conjunturas, antes que os camaradas da ideologia racista [volksgenossen] psicologicamente predispostos possam se precipitar,
enquanto pacientes, interna e externamente sobre suas vítimas.”
ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 1985.

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