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INTRODUÇÃO
Este estudo tem por objetivo efetuar uma análise do romance A filha do
escritor1, de autoria do autor carioca Gustavo Bernardo 2, publicado pela Editora Agir,
no ano de 2008. Para o exame da obra, elegemos como pressupostos teóricos os estudos
de Linda Hutcheon – criadora do termo “metaficção historiográfica” –, somados às teses
do próprio escritor acerca da metaficção.
Com base nesse referencial teórico, faremos um breve estudo do romance,
verificando, em seu enredo, a presença do entrelaçamento da história com a ficção e a
importância da literatura em retomar os fatos, para estender o conhecimento às gerações
seguintes.
1 A METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA
1
Todos os trechos examinados no trabalho foram extraídos da seguinte edição: BERNARDO, Gustavo. A
filha do escritor. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
2
Além de romancista, Gustavo Bernardo é Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ) e Professor de Teoria da Literatura na mesma instituição.
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é essa mesma separação entre o literário e o histórico que hoje se
contesta na teoria e na arte pós-moderna, e as recentes leituras críticas
da história e da ficção têm se concentrado mais naquilo que as duas
formas de escrita têm em comum do que em suas diferenças.
(HUTCHEON, 1991:141).
Como relata a autora, com a arte pós-moderna, história e ficção tendem a ser
abordadas de um ponto de vista que considera o que ambas possuem em comum, ou o
que as caracteriza como complementares entre si. De acordo com a mesma autora
(HUTCHEON, 1991:141), ambas adquirem força dentro da narrativa por meio da
intertextualidade, constituindo-se, assim, na metaficção historiográfica. O leitor, por sua
vez, passa a contextualizar o teor da obra embasado pelo senso crítico e pelo
conhecimento que possui sobre a própria história, dando sentido ao passado, na forma
como agora os fatos lhe são apresentados. Nas palavras de Hutcheon, “parece haver um
novo desejo de pensar historicamente, e hoje pensar historicamente é pensar crítica e
contextualmente”. (HUTCHEON, 1991:121).
Com o recurso da metaficção historiográfica, o escritor recupera fatos ou
personagens reais, trazendo-os para o interior de seu romance, o que lhe permite
estabelecer uma intertextualidade entre o literário e o histórico. Esses elementos reais e
fictícios, uma vez retomados, passam a fazer parte do romance, que é estritamente
ficcional, proporcionando ao leitor “uma dupla conscientização da natureza fictícia e de
uma base no real”. (HUTCHEON, 1991:143). Assim, percebemos que alguns dos
elementos que definem metaficção historiográfica são as retomadas do passado e a
intertextualidade.
Sobre isso, afirma Hutcheon que “a intertextualidade pós-moderna é uma
manifestação formal de um desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do
leitor e também de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto”
(HUTCHEON, 1991:157). Nesses termos, podemos pensar que o leitor passa a refletir
sobre a associação entre o histórico e o ficcional, bem como acerca das “adulterações” –
termo empregado por Hutcheon (1991:122) – dos “fatos” históricos apresentados na
obra, percorrendo, então, um caminho inverso ao da história ficcional: não basta apenas
acompanhar o enredo; é preciso pesquisar ou verificar o que há de verdade sobre os
fatos históricos que estão sendo abordados. Nessa linha de pensamento, a mesma
pesquisadora expõe que,
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Em muitos romances históricos, as figuras reais do passado são
desenvolvidas com o objetivo de legitimizar ou autenticar o mundo
ficcional com sua presença, como se para ocultar as ligações entre
ficção e história com um passe de mágica ontológico e formal.
(HUTCHEON, 1991:152).
139
2 ANÁLISE DE A FILHA DO ESCRITOR SOB O PRISMA DA METAFICÇÃO
HISTORIOGRÁFICA
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Relacionadas ao resgate de dados reais, empregam-se, na obra em estudo,
citações de diversas biografias médicas, além de termos médicos e conceitos sobre
doenças, que ajudam a caracterizar a obra como metaficção historiográfica. É o que
demonstra o trecho abaixo:
141
recordações e experiências que o leitor carrega sobre as atividades dos profissionais da
área da saúde e associando-as com o enredo.
Ao explicitar peculiaridades da medicina, a obra apresenta uma estrutura
narrativa que prende o leitor ao enredo, o que também ocorre graças à forma como os
fatos reais do passado são expostos e se entrelaçam com os fatos do presente, como é o
caso, por exemplo, das lembranças de Lívia, quando descreve o caminho percorrido por
ela, na atual cidade do Rio de Janeiro, até o local marcado para o encontro com seu pai
(2008:104), das investigações médicas feitas por Joaquim para confirmar a loucura da
protagonista e de suas pesquisas nas obras de Machado de Assis, para desvendar a
ligação que as declarações de Lívia possuem com as do romance Ressurreição. Diante
desse conjunto, caberá ao leitor descobrir, deduzir ou reconhecer o que é real e o que é
ficcional, o que faz parte dos fatos históricos e o que foi alterado nessa realidade dentro
do romance. É possível dizer que o autor do romance se apropria de fatos históricos e os
condiciona à estrutura metaficcional, com ajustes que podem tanto reforçar quanto
alterar a história real, como no caso da história conta por Lívia. No momento em que ela
se diz filha de Machado de Assis, há uma possível alteração na realidade, uma vez que o
escritor, segundo sua biografia, morreu sem deixar herdeiros. Leiam-se as palavras de
Lívia:
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encontrei uma filha com esse nome, o escritor e a esposa não tiveram filhas ou filhos.
Também não localizei até agora nenhum caso extraconjugal do Machado, com filhos ou
sem” (2008: 38). Essa afirmação dentro do romance sugere não mais a uma alteração
dos fatos reais, mas a confirmação de dados conhecidos da biografia do escritor.
Nesse romance, percebemos que as obras de autoria de Machado de Assis
figuram como elementos verdadeiros incorporados por Gustavo Bernardo, em sua
ficção, para provocar no leitor o efeito de intertextualidade. Além disso, as referências
às obras literárias de Machado de Assis, aos espaços físicos - como a descrição da Casa
Verde da cidade de Itaguaí - ou aos detalhes do bonde em que a protagonista embarcou,
obrigam o leitor a perceber a presença de dados reais no universo ficcional, de modo a
identificar os dados verdadeiros e os dados ficcionais e verificar como se articulam
esses dois elementos dentro da narrativa. Por exemplo, o leitor poderá se perguntar se o
hospital psiquiátrico do enredo existiu de fato ou não, na medida em que o narrador
deixa em aberto essa probabilidade. Afinal, para o enredo ficcional, o hospital se mostra
presente e concreto, tanto no romance de Gustavo Bernardo, quanto na obra de
Machado de Assis, embora, até o momento nenhuma pesquisa histórica tenha
comprovado a sua existência. Mesmo assim, não há como saber se esse hospital seria o
mesmo referido na em O alienista, ainda que existam grandes coincidências, segundo o
narrador da obra de Gustavo Bernardo, entre a descrição do hospital feita nessa
narrativa e aquela que aparece no romance de Machado de Assis. Diz o narrador em A
filha do escritor:
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Nesse romance, convivem o real e o fictício, pois, além do relato histórico
composto por obras verdadeiras de Machado de Assis, o leitor se depara com a
informação da sua possível prole, como observamos no comentário dos primeiros
capítulos da narrativa, em que a protagonista se apresenta como sendo filha do escritor.
O personagem narrador, Joaquim, também investiga as obras machadianas,
Ressurreição e O alienista para tentar descobrir as semelhanças existentes entre esses
romances e a história de vida da protagonista Lívia. Além disso, Joaquim se refere a
outros aspectos relativos à moça:
Não, não encontrei uma filha com esse nome, o escritor e a esposa não
tiveram filhas ou filhos. Também não localizei até agora nenhum caso
extraconjugal do Machado, com filhos ou sem. Mas a protagonista do
primeiro romance de Machado de Assis, Ressurreição, se chama
justamente Lívia: não deve ser coincidência. (2008:38).
144
CONCLUSÃO
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descobrir o que se manteve e o que foi alterado na narrativa ficcional em relação ao real
histórico.
REFERÊNCIAS
___________. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial, 2010.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 41. ed. São Paulo: Cultrix,
2003.
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