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ROBERTA SIMÕES

NASCIMENTO
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Capa e Diagramação: Maitê Coelho e Cendi Coelho

N244e Nascimento, Roberta Simões


Estudos de Direito Constitucional Parlamentar [Recurso Eletrônico] / Roberta Simões
Nascimento – São Paulo: Editora JusPodivm, 2023.
542 p.

Formato: E-Book.
Requisitos do Sistema: Adobe Digital Editions.
Modo de Acesso: Word Wide Web.
ISBN 978-85-442-4084-7.

1. Direito Constitucional. 2. Processo Legislativo. 3. Fiscalização e Controle. I.


Nascimento, Roberta Simões. II. Título.

CDD 341.2

Bibliotecária responsável:
Ana Carolina Ribeiro Mois – CRB7 – RJ 007348/0

Todos os direitos desta edição reservados a Edições JusPODIVM.


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a expressa autorização do autor e das Edições JusPODIVM. A violação dos direitos autorais caracteriza crime
descrito na legislação em vigor, sem prejuízo das sanções civis cabíveis.
Sumário

Sumário

Apresentação..................................................................................................................................................................... 7
Kalleo Coura

Prefácio................................................................................................................................................................................... 9
Felipe de Melo Fonte

CAPÍTULO 1
PROCESSO LEGISLATIVO

Sobre a constitucionalidade da ‘devolução’ de medidas provisórias................................ 15


O costume constitucional da devolução in limine de medidas provisórias................. 21
São extensíveis às emendas parlamentares os limites materiais à edição de
MPs?.......................................................................................................................................................................................... 29
Para que servem as emendas aglutinativas?......................................................................................... 37
Tramitação conjunta, iniciativa legislativa ‘por empréstimo’ e autonomia do BC.. 45
Cabe controle de constitucionalidade do veto presidencial?................................................... 53
A emenda ‘supressiva de jabutis’ e o devido processo legislativo....................................... 59
O que é o devido processo legislativo?....................................................................................................... 65
Até onde vai o princípio da simetria nos processos legislativos?......................................... 75
O direito parlamentar e o tema 1.120 da repercussão geral do STF................................ 85
Enrolled Bill Doctrine (EBD)...................................................................................................................................... 95

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Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Qual é o alcance do princípio da irrepetibilidade de PECs?...................................................... 101


É possível emendar a Constituição via deliberação remota durante a
calamidade pública?.................................................................................................................................................... 109
Juízes lobistas?.................................................................................................................................................................. 115
Comentários à tramitação da PEC do Estado de Emergência................................................. 123
Não há prática espúria ou inconstitucional nas emendas de relator............................... 129
Limites são mero detalhe quando o STF decide substituir o Congresso
Nacional................................................................................................................................................................................. 135

CAPÍTULO 2
PODER LEGISLATIVO, FISCALIZAÇÃO E CONTROLE PARLAMENTAR

Que falta fazem as comissões no Poder Legislativo?..................................................................... 145


Para onde foi o bicameralismo no Congresso Nacional?............................................................ 153
Para que serve o quórum nos órgãos colegiados?........................................................................... 161
A votação secreta nas deliberações do Poder Legislativo.......................................................... 171
O que podem fazer, afinal, os Conselhos de Ética e Decoro Parlamentar?................. 181
Supressão do debate parlamentar como instrumento de ‘checks and balances’.... 189
Quem controla os ministros do STF?............................................................................................................ 195
A ‘morte cruzada’ do Executivo e do Legislativo.................................................................................. 201
A ‘incapacidade moral’ do presidente da República........................................................................ 209
Existe hora marcada para se tornar ministro do STF?................................................................... 217
As lições da sabatina de André Mendonça.............................................................................................. 225
O controle parlamentar via requerimentos de informação na Câmara......................... 233
Quem tem ‘notório conhecimento no campo de sua especialidade’?............................. 241
Que tipo de controle cabe em relação às sabatinas?..................................................................... 249

CAPÍTULO 3
IMUNIDADES PARLAMENTARES E ESTATUTO DOS CONGRESSISTAS

Podem ser reeleitos os presidentes da Câmara e do Senado?.............................................. 257


Será tão absurdo assim?.......................................................................................................................................... 265
Sobre as medidas de busca e apreensão no Congresso Nacional...................................... 271

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Sumário

É possível bloquear perfis de parlamentares nas redes sociais?......................................... 279

Prisão de parlamentares e cautelar de afastamento do mandato..................................... 287

Adeus, imunidade parlamentar......................................................................................................................... 295

Perda do mandato é efeito automático e irreversível da condenação penal?.......... 305

CAPÍTULO 4
COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO (CPIS)

Pode o STF determinar a criação da CPI da Pandemia?............................................................... 317

Da constitucionalidade da convocação de governadores e prefeitos por CPIs


federais................................................................................................................................................................................... 327

Precisam os membros das CPIs ser imparciais?................................................................................. 335

Podem as CPIs quebrar o sigilo telemático das redes sociais de seus


investigados?...................................................................................................................................................................... 341

‘Filibusterismo’, falácia e retórica na CPI da Pandemia................................................................. 353

CAPÍTULO 5
TÉCNICA LEGISLATIVA, REGULAÇÃO E TEORIA DA LEGISLAÇÃO

Cabe controle de constitucionalidade por má técnica legislativa?...................................... 363

Técnica legislativa, linguagem neutra e linguagem inclusiva................................................... 371

A responsabilidade por ‘erro legislativo’.................................................................................................... 379

Análise de impacto de gênero............................................................................................................................ 387

Qual peso devem ter as evidências científicas para tomar uma decisão
legislativa?............................................................................................................................................................................ 393

A taxatividade do rol da ANS e o poder normativo das agências reguladoras........ 399

Piso da enfermagem: legisladores contadores?................................................................................. 405

O que a bagagem gratuita em voos revela sobre a dinâmica da regulação............... 411

Nomografia constitucional.................................................................................................................................... 417

Será o fim do Tribunal Constitucional no Chile?................................................................................. 423

A solução da nova Constituição chilena para o ativismo judicial......................................... 429

5
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

CAPÍTULO 6
ELEITORAL

É constitucional a inelegibilidade do parlamentar cassado por quebra de


decoro?................................................................................................................................................................................... 437
Como contar os prazos de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa?..................................... 443
Cassação de candidatos não envolvidos com candidaturas laranjas de sua
coligação................................................................................................................................................................................ 449
É possível obrigar um candidato presidencial a participar de um debate?................. 455

CAPÍTULO 7
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Existe uma inconstitucionalidade ‘circunstancial’?............................................................................ 461


Cabe controle de constitucionalidade quanto à qualidade da deliberação
legislativa?............................................................................................................................................................................ 465
Como se prova a inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar?................ 473
Devem os juízes examinar a argumentação legislativa?.............................................................. 481
Sobrevive a competência senatorial do art. 52, X, da Constituição?.................................. 487

CAPÍTULO 8
TEORIA DO DIREITO

Os legisladores, os juízes, os advogados e a equidade................................................................. 495


Uma apologia do Direito e outros ensaios.............................................................................................. 501
‘Sobre a Dignidade Humana’, de Manuel Atienza.............................................................................. 511

Posfácio
A Doutrina da Subestimação e os Precedentes Predatórios.................................................... 519
Samuel Sales Fonteles

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Apresentação

Apresentação

No dia 5 de agosto de 2020, os leitores do JOTA passaram a ser brinda-


dos com textos periódicos, atualmente quinzenais, da coluna Defensor Legis,
escritos com maestria pela professora Roberta Simões Nascimento, também
advogada do Senado Federal.
Agora você, leitor deste ebook, também poderá fruir da leitura de textos
instigantes que versam, dentre outros assuntos, sobre o funcionamento do Po-
der Legislativo e do processo legiferante, Teoria da Legislação, a instauração e
o procedimento das CPIs, o controle de constitucionalidade, Teoria do Direito,
dentre outros assuntos.
O livro “Estudos de Direito Constitucional Parlamentar” traz fatos histó-
ricos dos tempos em que vivemos relacionados aos Três Poderes – com maior
enfoque no Legislativo. Jair Bolsonaro foi o presidente que mais teve medidas
provisórias devolvidas pelo presidente do Congresso Nacional. Mas é constitu-
cional este movimento que não está previsto na legislação? Os dois primeiros
textos deste ebook tratam deste tema.
Roberta Simões Nascimento não se furta a tomar posições impopulares.
Concorde-se ou não com o mérito do caso discutido, o leitor sempre sai ga-
nhando ao percorrer os argumentos e nuances jurídicas levantados pela ju-
rista. Um exemplo é o artigo intitulado “Pode o STF determinar a criação da
CPI da Pandemia?”. A autora defende que não caberia ao Supremo conceder
uma liminar satisfativa como a requerida no MS 37.760, afinal a judicialização
da política “não deveria implicar o ativismo judicial, ainda mais em funções
essencialmente políticas e em substituição às Casas Legislativas”.

7
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

No artigo, a autora lembra de uma decisão do ministro aposentado Celso


de Mello, que havia negado pedido similar e fundamentado seu convencimen-
to na impossibilidade de se interferir no poder de agenda do presidente do
Senado em conduzir os trabalhos legislativos, por se tratar de questão interna
corporis, em respeito ao princípio da separação dos Poderes. Mas, desta vez, o
desfecho foi diferente. O ministro Luís Roberto Barroso determinou ao presi-
dente do Senado Federal a adoção das providências para a criação e instalação
da CPI da Covid-19. A maioria da Corte referendou a concessão da liminar –
vencido o ministro Marco Aurélio.
As dinâmicas de decisões dos Três Poderes que produzem impactos eco-
nômicos também não escapam a Roberta Simões Nascimento. No artigo “O
que a bagagem gratuita em voos revela sobre a dinâmica da regulação”, escrito
em coautoria com a professora Natasha Salinas, ela pondera que “embora as
agências reguladoras possam ter a priori algum poder de agenda, o Poder Le-
gislativo, o presidente da República e o Poder Judiciário possuirão poder de
veto, de modo que é irrealista pensar que a produção da regulação refletirá
apenas as preferências das agências reguladoras”. A suspensão do piso da en-
fermagem por decisão do ministro Luís Roberto Barroso, referendada poste-
riormente pelo STF, também é tema de artigo, que aponta o risco de o Poder
Judiciário funcionar como uma terceira Casa Legislativa de fato.
Cada coluna de Roberta Simões Nascimento traz argumentos e pondera-
ções relevantes sobre aspectos do funcionamento dos Três Poderes, com um
olhar especial para o Legislativo e sua relação com o Judiciário. Em resumo, o
livro que você, leitor, tem em mãos é imperdível.

São Paulo, 13 de novembro de 2022.

Kalleo Coura
Editor Executivo do JOTA em São Paulo

8
Prefácio

Conheci Roberta Simões Nascimento em 2019, por meio da rede “social”


para professores e pesquisadores academia.edu. De lá para cá, tenho figurado
entre os admiradores declarados dos trabalhos produzidos por ela, sejam aca-
dêmicos, sejam prático-profissionais. As credenciais da Roberta falam por si:
Doutora e Mestre pela prestigiosa Universidade de Brasília, onde também hoje
ocupa a posição de professora adjunta, advogada do Senado Federal e doutora
pela Universidade de Alicante.
O primeiro trabalho de Roberta com o qual tive contato foi o livro Teoria
da Legislação e Argumentação Legislativa: Brasil e Espanha em Perspectiva
Comparada, fruto das suas pesquisas de doutoramento. Naquele tempo, curio-
samente, oferecia um curso de processo legislativo na Fundação Getúlio Var-
gas, no Rio de Janeiro. Como por fruto do destino, o livro chegou às minhas
mãos no momento certo e acabou incluído na lista de leituras da disciplina,
sempre com grandes elogios por parte dos alunos. Em um contexto em que os
manuais básicos de processo legislativo do país seguem sendo as (já antigas)
obras dos professores José Afonso da Silva e Manoel Gonçalves Ferreira Filho,
o trabalho de Roberta veio agregar densidade teórica e novas reflexões essen-
ciais à disciplina.
Na sequência, Roberta gentilmente aceitou o convite de compor o grupo
de professores de Direito Constitucional da Escola Superior de Advocacia Pú-
blica (ESAP), da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, para honra
da nossa instituição. Na pós-graduação em advocacia pública, ela figura entre
os professores mais requisitados, já orientou diversos alunos em trabalhos de

9
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

conclusão de curso, sempre com grandes elogios em todas as áreas. Se o meu


depoimento não for suficiente para o leitor, registro o quão difícil é passar pelo
crivo das avaliações dos residentes da PGE-RJ.
Por todos esses motivos me tornei um assíduo leitor da coluna Defensor
Legis, que ela assina na revista eletrônica JOTA, ao longo dos últimos anos –
que, inclusive, utilizo em aula, vez por outra. Certo dia disse a ela: “por que
você não faz um livro com todos os textos agregados?” Felizmente ela resolveu
levar a sugestão a sério, e a Editora JusPodium, em inteligente decisão edito-
rial, aceitou publicar o trabalho. Como contrapartida pelo incentivo, Roberta
gentilmente me convidou para prefaciar a obra, o que é uma grande honra
para mim.
Pois bem. Como registrado anteriormente, o livro compreende o con-
junto de textos publicados na revista eletrônica JOTA, no período que vai de
2020 a 2022. Os temas escolhidos acompanhavam assuntos momentosos, nor-
malmente ligados à pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal ou a
acontecimentos relevantes da vida pública brasileira. A cada grande questão
jurídica que surgia, lá estava Roberta para comentar: inelegibilidades, reelei-
ção dos presidentes das casas legislativas, imunidade parlamentar, pandemia,
orçamento “secreto”, etc. Quem se aventurar a navegar pela obra, vai encontrar
os últimos 2 (dois) anos do país em revisão. O estilo escolhido é de textos bre-
ves e diretos, marca registrada dos trabalhos publicados no Jota, que buscam
informar e apresentar posições.
Para facilitar a consulta, a autora organizou o livro em oito capítulos, a
saber: (i) processo legislativo, (ii) poder legislativo, fiscalização e controle par-
lamentar, (iii) imunidades parlamentares e estatuto dos congressistas, (iv) co-
missões parlamentares de inquérito, (v) técnica legislativa, regulação e teoria
da legislação, (vi) eleitoral, (vii) controle de constitucionalidade e (viii) teoria
do direito.
Quem ler a obra perceberá que o direito constitucional brasileiro passa
por um momento de inflexão. O diagnóstico de que o Brasil passa por uma
intensa judicialização da vida em geral, e da política em particular, já é antigo.
A novidade é percepção, cada vez mais intensa, de que o Supremo Tribunal Fe-
deral tem proferido decisões que são de difícil recondução ao sistema jurídico
objetivo, muitas vezes confundidas com pura e simples política partidária e,
em outras, puro arbítrio. O professor Rubens Glaezer, da FGV Direito SP, ape-
lidou o fenômeno de catimba constitucional. Neste passo, a reconstrução da
legitimidade da Corte e a discussão sobre uma teoria da constituição adequada

10
Prefácio

à prática brasileira são missões que esperam os acadêmicos e os interessados


no tema. A presente obra ajuda a colocar as pedras nesse edifício, identifican-
do questões e discutindo temas sensíveis, de forma absolutamente desinibida.
Para ficar num exemplo emblemático e contundente, registro a corajosa
passagem de artigo que comenta os equívocos da decisão da Min. Rosa Weber
a respeito do “orçamento secreto”, tema que era objeto de intensa cobertura
jornalística. Diz a autora:
“Em uma democracia de coalizão, não é imoral que os parla-
mentares da base auxiliem o governo a decidir sobre a alocação
de recursos relativos às políticas públicas. Esse toma-lá-dá-cá, se
pode ser chamado assim, deve fazer parte do processo político
normal. Quem conhece a questão das emendas parlamentares
sabe que o beneficiário é o cidadão. Trata-se de verbas carimba-
das que atendem a problemas concretos em locais necessitados.
(...)
Após todas as considerações, o que fica, em resumo, é a impres-
são de que continua existindo um grande desconhecimento so-
bre os meandros do direito financeiro – que em boa hora passa a
ser inserido como matéria obrigatória na graduação em Direito
– e a suspeita de que em várias decisões judiciais ainda predomi-
na a ideia de criminalização da política, o que não deixa de ser
uma faceta da politização dos órgãos da justiça”.

Como registrou o professor e ministro Luís Roberto Barroso na última


edição de seu famoso curso de direito constitucional, o Brasil se transformou
no “maior laboratório de jurisdição constitucional do mundo”. Como conse-
quência, o que se vê é uma intensa produção acadêmica excessivamente cen-
trada no papel dos juízes e tribunais constitucionais, deixando de lado o Poder
Legislativo e o papel dos parlamentares, que são essenciais ao funcionamen-
to das democracias constitucionais. Nesse sentido, os artigos aqui reunidos
restauram, em alguma medida, a “dignidade da legislação, para tomar uma
expressão emprestada de Jeremy Waldron. Não à toa a coluna que dá origem
ao livro se chama Defensor Legis. A defesa das prerrogativas parlamentares e
o conhecimento profundo da dinâmica legislativa marcam, seguramente, os
trabalhos redigidos por Roberta. Nesse sentido, suprem uma lacuna relevante
do direito constitucional brasileiro.
Para concluir, penso que Roberta tem sido uma reserva de racionalidade
no debate público brasileiro. De verdade. Quando tive dúvidas, procurei nos
textos dela o apoio para aclarar as ideias. Nas razões que ela dá, muitas vezes

11
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

encontrei o motivo da minha inquietude com certa decisão ou argumento.


Houve vezes em que discordei, por natural, mas suas ponderações não podem
ser ignoradas pela academia ou pelos práticos do Direito. O leitor tem nas
mãos as férteis reflexões de uma das maiores jovens constitucionalistas em
atuação no Brasil. Boa leitura.

Rio de Janeiro, 11 de novembro de 2022.

Felipe de Melo Fonte


Doutor e Mestre em Direito Público pela UERJ. Master of Laws (LL.M.) pela
Harvard Law School. Professor de Direito Constitucional da FGV
Direito Rio. Procurador do Estado do Rio de Janeiro

12
1
Ca p í tu lo
PROCESSO
LEGISLATIVO
Sobre a constitucionalidade da
‘devolução’ de medidas provisórias
Natureza de ‘medida cautelar’
legislativa justifica o expediente

Com a devolução da MP 979/20201 no último dia 13 de junho, conta-se a


quarta vez na história em que uma medida provisória é devolvida e novamente
se reacenderam as controvérsias quanto à constitucionalidade e consequências
dessa decisão do Presidente do Congresso Nacional.
Sem dúvidas, trata-se de um instrumento forte e poucas vezes utilizado,
muito embora o art. 62, § 5º, da Constituição, incluído pela EC nº 32/01, tenha
constitucionalizado um “juízo prévio” de admissibilidade.
A primeira vez em que uma MP foi devolvida ocorreu em 1989. Editada
no dia 16 de janeiro de 1989, a MP 33/1989 dispensava, isto é, demitia (a par-
tir do dia 1º de março de 1989) servidores civis da Administração Federal e
dos extintos Territórios Federais, que não tenham adquirido estabilidade, nos
termos do art. 19 do ADCT. Da tramitação,2 consta que a devolução ocorreu
no dia 20 de janeiro de 1989, através de Mensagem subscrita pelo então 1º
vice-presidente do Senado, senador José Ignácio Ferreira. Registrou-se, ainda

1. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/06/12/davi-alcolumbre-anuncia-
-devolucao-de-mp-que-autoriza-weintraub-a-nomear-reitores
2. https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/8108

15
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

na tramitação, a perda de eficácia da medida provisória em 15 de fevereiro de


1989.
Da segunda vez em que ocorreu uma devolução de uma medida provisó-
ria, em 2008, o então presidente do Senado Federal Garibaldi Alves devolveu
a MP 446/2008, que alterava as regras para concessão e renovação do Certi-
ficado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS). O argumento
usado foi o de que a MP continha dispositivos “inaceitáveis”.3
Na época, no entanto, mesmo com a devolução, o presidente da Câmara
dos Deputados, o então deputado federal Michel Temer, acabou levando a MP
446/2008 para o plenário dessa Casa Legislativa, e a MP que tinha sido devol-
vida foi formalmente rejeitada4 pelo plenário da Câmara dos Deputados.
Ao responder a Questão de Ordem sobre o tema, o presidente Temer
manifestou sua opinião no sentido de que “a possibilidade de devolução (…)
mostra-se incompatível com a natureza da medida provisória, que, por ter força
de lei desde a sua edição, somente deixará de produzir efeitos nas hipóteses de
rejeição, perda de eficácia pelo decurso de prazo ou revogação”.
Na terceira devolução, o à época presidente do Senado Renan Calheiros
devolveu a MP 669/2015, editada no dia 26 de fevereiro de 2015. A referida
medida provisória reduzia o benefício fiscal de desoneração da folha de paga-
mento em 56 segmentos da atividade econômica (ou seja, implicaria aumento
de tributos). A MP 669/2015 fazia parte de um conjunto de medidas de ajuste
fiscal do governo e gerou muito debate no Plenário, com senadores do PT de-
fendendo a votação da matéria, enquanto senadores da oposição elogiavam a
decisão do presidente Renan. A decisão foi justificada na afirmação de que a
matéria poderia gerar instabilidade jurídica, além de não ser urgente.5
Das vezes em que ocorreu a devolução em 2008 e em 2015, a decisão foi
tomada com base no art. 48, incisos II e XI, do Regimento Interno do Sena-
do Federal, que afirma que cabe ao presidente do Senado Federal “velar pelo
respeito às prerrogativas do Senado e às prerrogativas dos Senadores” e “impug-
nar as proposições que lhe pareçam contrárias à Constituição, às leis ou a este

3. https://www.migalhas.com.br/quentes/74034/presidente-do-senado-decide-devolver-
-ao-executivo-mp-das-filantropicas
4. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Congresso/adc--mpv446.htm
5. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/03/03/renan-anuncia-devolucao-
-da-mp-que-reduz-desoneracao-da-folha-de-pagamento

16
Sobre a constitucionalidade da ‘devolução’ de medidas provisórias

Regimento”. A rigor, portanto, o expediente de devolução de medidas provisó-


rias não conta com previsão expressa.
No entanto, não há por que concluir que a falta de um dispositivo especí-
fico prevendo a devolução das medidas provisórias possa conduzir à impossi-
bilidade dessa decisão, nem que seja como entendimento que preenche uma
lacuna constitucional. Ora, se o Parlamento pode rejeitar a medida provisória
em até 120 dias, a fortiori também pode fazê-lo de plano, devolvendo-a no
início da tramitação.
Além disso, não faria sentido limitar o “juízo prévio” do art. 62, § 5º, da
CF, à competência da Comissão Mista. Em momento algum a Resolução nº 1,
de 2002, do Congresso Nacional,6 atribuiu a esse órgão colegiado fracionário
“exclusividade” na apreciação do cumprimento dos pressupostos constitucio-
nais para a edição de medidas provisórias. Assim, a competência da Comissão
Mista não exclui, nem é incompatível com a possibilidade de devolução das
medidas provisórias pelo presidente do Congresso Nacional.
Nesse sentido, tampouco o rito abreviado instituído pelo Ato Conjunto nº 1,
de 2020,7 das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (para a
aprovação de medidas provisórias durante a pandemia) serviria para afastar
tal competência do presidente. Em tal rito, a Comissão Mista foi substituída
pelo relator, que assume grandes poderes sobre o destino da medida provisó-
ria. Nesse contexto, reconhecer a atuação do presidente contribui para evitar o
indesejável “império do relator” das medidas provisórias, prática já declarada
inconstitucional pelo STF na ADI 4.029.8
Outra das principais indagações sobre a devolução das medidas provisó-
rias diz respeito aos efeitos jurídicos desse ato. Em princípio, com sua edição,
as medidas provisórias têm força de lei imediata, e somente perdem a eficácia
se não forem convertidas em lei no prazo de 120 dias (art. 62, § 3º, da CF) ou,
eventualmente, se forem declaradas inconstitucionais antes disso pelo STF. Se-
ria, então, a devolução uma providência inútil?

6. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescon/2002/resolucao-1-8-maio-2002-497942-
normaatualizada-pl.html
7. https://www.in.gov.br/web/dou/-/ato-conjunto-das-mesas-da-camara-dos-deputadose-
-do-senado-federal-n-1-de-2020-250639870
8. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2227089

17
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Desde logo, entende-se que não. Publicada a devolução pelo Parlamento,


cessa a vigência da medida provisória devolvida. Na prática, a devolução im-
plica na rejeição preliminar desse legislativo, cessando antecipadamente sua
eficácia. Deixar de reconhecer esse efeito concreto da devolução equivaleria a
considerá-la uma ação política sem respaldo jurídico. Não parece ser a melhor
interpretação.
Com atenção a esse ponto sobre os efeitos, em 2015, por exemplo, junta-
mente com a devolução, foi publicado um ato declaratório de perda de eficácia9
da medida provisória devolvida. Em um primeiro momento, o Planalto acei-
tou tal ato declaratório, que inclusive foi inserido no seu Portal de Legislação.
No entanto, dias depois, acabou ignorando-o, tendo editado a MP 671/2015,
cujo art. 37 revogou expressamente a MP 669/2015 que tinha sido devolvida, e
essa segunda MP revogadora foi convertida na Lei nº 13.155/2015.
Desta vez, o Planalto resolveu adotar a mesma posição de 2015, editando a
MP 981 para revogar de forma expressa a MP 979/2020 no mesmo dia em que
foi devolvida pelo presidente do Congresso Nacional.
A devolução da MP 979/2020 ainda chama a atenção para outro ponto
importante: em que situações uma medida provisória pode ser devolvida?
Como se disse, a CF, art. 62, § 5º, confere uma clara autorização para que
as Casas Legislativas realizem um juízo prévio sobre o atendimento dos pres-
supostos constitucionais. Claramente, portanto, caberia a devolução para as
situações em que não restam cumpridos os requisitos de relevância e urgência
ou quando a medida provisória viola o princípio da irrepetibilidade do art.
62, § 10, da CF. Em comum, tratam-se de hipóteses de vícios insanáveis pelo
processo legislativo.
No entanto, pergunta-se: a devolução se presta para rejeitar preliminar-
mente medidas provisórias cujo conteúdo materialmente inconstitucional
poderia ser objeto de emendas parlamentares? O ponto é importante porque
foram dadas duas razões para a devolução da MP 979/2020.
A primeira delas, apontou para a ofensa do princípio da irrepetibilidade,
em razão da MP 914/2019, cuja vigência se encerrou no último dia 1º de ju-
nho. No entanto, basta cotejar os textos para verificar que não há coincidência

9. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Congresso/adc-005-mpv669.
htm

18
Sobre a constitucionalidade da ‘devolução’ de medidas provisórias

de objetos entre as duas medidas provisórias em questão que pudesse atrair a


vedação constitucional do art. 62, § 10, da CF.
A segunda razão dada para a decisão de devolver a MP 979/2020 alegou
a violação à autonomia e gestão democrática das universidades, conforme o
art. 207 da CF (“as universidades gozam de autonomia didático-científica, ad-
ministrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”).
Em tese, o conteúdo dessas disposições normativas poderia ser modifica-
do durante o processo de conversão da medida provisória em lei. No entanto,
as alterações parlamentares não teriam efeito imediato, mesmo o procedimen-
to mais célere de conversão das medidas provisórias em lei leva seu tempo. As-
sim, tendo em vista a possibilidade de uma medida provisória inconstitucional
ter efeitos imediatos concretos e indesejados, a resposta à pergunta formulada
é positiva, de forma a permitir o cabimento da devolução também diante de
conteúdo descabido, por manifesta inconstitucionalidade material no juízo do
presidente do Congresso Nacional.
Nesse caso, como se vê, a devolução das medidas provisórias assume a
natureza jurídica de uma “medida cautelar” legislativa, em franco favor à se-
gurança jurídica, para evitar os referidos efeitos concretos inconstitucionais
indesejáveis. Inclusive, nessa qualidade de cautelar, a devolução de medidas
provisórias sequer dependeria de previsão legal ou constitucional expressa, na
linha do que foi decidido na ADC 410 (que reconheceu a constitucionalidade
poder geral de cautela dos juízes, mesmo na ordem pré-constitucional quando
inexistia técnica processual que o contemplasse).
No caso da MP 979/2020, por exemplo, uma eventual demora na devolu-
ção poderia ter ensejado a designação de reitores pro tempore que gozariam da
presunção de constitucionalidade das leis e dos atos administrativos.
Vista nesses termos, a devolução de medidas provisórias pelo presidente
do Congresso Nacional entra como um importante instrumento de controle
de constitucionalidade prévio por parte do Poder Legislativo, somando-se ao
controle dos atos legislativos já realizado pela Comissões de Constituição e
Justiça (CCJ), pelo exercício da competência do art. 49, inciso V, da CF (para

10. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630103

19
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

sustar atos normativos que exorbitem o poder regulamentar), e pela aprecia-


ção ordinária das medidas provisórias.
Seja como for, ainda que não se reconheça sua juridicidade, a reiteração
da devolução de medidas provisórias nas próximas ocasiões poderá convertê-
-la – se é que isso já não aconteceu – em costume constitucional.

20
O costume constitucional
da devolução in limine de
medidas provisórias
Devolução da MP nº 1.068/2021 mostra
dupla necessidade de regulamentação

Com a devolução da MP nº 1.068/2021, que altera a Lei nº 12.965/2014


(Marco Civil da Internet - MCI), realizada nesta terça-feira pelo presidente do
Congresso Nacional,1 o presidente da República Jair Bolsonaro já entrou para
a história do Brasil como o Chefe do Poder Executivo que mais teve medidas
provisórias devolvidas durante sua gestão.
No mesmo dia, o Supremo Tribunal Federal (STF), pela ministra Rosa
Weber, concedeu medida cautelar na ADI nº 6.991 para suspender os efeitos
da referida MP, sem que isso impedisse o presidente do Congresso Nacional
de exercer “juízo negativo de admissibilidade quanto à Medida Provisória
1.068/2021, extinguindo desde logo o procedimento legislativo resultante de
sua edição” (p. 35).
Ao que parece, o trecho acima transcrito da decisão proferida na ADI nº
6.991 é o aval do STF que faltava para o reconhecimento da devolução das

1. https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/pacheco-devolve-m-
p-de-bolsonaro-que-alterava-marco-civil-da-internet-14092021

21
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

medidas provisórias como um costume parlamentar consolidado no direito


constitucional brasileiro.
Como já defendido em texto passado,2 a despeito da falta de previsão
expressa na Constituição (CF) ou nos regimentos internos das Casas Legisla-
tivas, entende-se que a devolução de medidas provisórias é expediente cons-
titucional, sobretudo quando justificada em analogia a uma “medida cautelar
legislativa”, diante do justo receio de que a manifesta inconstitucionalidade das
suas disposições possa causar efeitos concretos indesejáveis.
É que, como sabido, as medidas provisórias têm força de lei desde a sua
edição, e os atos praticados durante a sua vigência tendem a se tornar perma-
nentes, já que para afastá-los é necessária a aprovação de um decreto legislativo
(DLG), à luz da disciplina do art. 62, § 3º, da CF, norma que confere enormes
poderes para que o Congresso “corrija” os resultados gerados por uma medida
provisória que não obteve a concordância legislativa.
Ocorre que a prática congressual é a de muito raramente editar esses de-
cretos legislativos. Desde a Constituição de 1988, há notícia de que só 5 desses
decretos legislativos que disciplinam as relações jurídicas decorrentes de me-
didas provisórias foram editados:3 DLG nº 166/1991, DLG nº 17/1994, DLG
nº 27/1994, DLG nº 33/1994, e nº 247/2012. Ou seja, essas teriam sido as úni-
cas ocasiões em que foi cumprido o art. 62, § 3º, da CF.
Os quatro primeiros decretos apenas convalidam os efeitos de medidas
provisórias. Hoje, isto é, após a redação dada pela EC nº 32/2001, sequer seria
necessária a edição desses decretos legislativos para tal manutenção, mas antes,
na redação originária do art. 62, parágrafo único, da CF, afirmava-se “As me-
didas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas
em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso
Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes”.
Então, após a EC nº 32/2001, só o DLG nº 247/2012 tornou sem efeito as
relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados com base na
medida provisória. Como se vê, esse tipo de DLG efetivamente corrigindo os

2. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/sobre-a-constitucionalidade-da-devolu-
cao-de-medidas-provisorias-29062020
3. Os primeiros quatro decretos citados foram extraídos da nota de rodapé nº 12 de RODRI-
GUES, Ana Cláudia Manso S. O. A medida provisória não convertida em Lei e a Edição de
Decreto Legislativo. Direito Público, nº 1, pp. 141-147, 2003, p. 145.

22
O costume constitucional da devolução in limine de medidas provisórias

efeitos de medidas provisórias é mais que excepcional nas práticas legislativas


reais.
É mais comum, por exemplo, que o próprio projeto de lei de conver-
são (PLV) faça a função desses decretos legislativos – por exemplo, a Lei
13.135/2015, fruto da conversão da MP nº 664/2014, fixou em seu art.5º: “Os
atos praticados com base em dispositivos da Medida Provisória nº 664, de 30
de dezembro de 2014, serão revistos e adaptados ao disposto nesta Lei”.
Sobre essa solução de técnica legislativa, haveria aqui uma discussão
quanto à possível inconstitucionalidade formal do dispositivo legal, por usur-
pação da competência reservada ao decreto legislativo (art. 62, § 3º, da CF),
mas, como esse continuaria podendo ser editado na hipótese de eventual veto
ao artigo do PLV que disciplinasse os efeitos dos atos jurídicos praticados na
vigência da MP, afasta-se essa hipótese.
Como sabido, quando não editados tais decretos legislativos, incide o art.
62, §§ 11 e 12, da CF, que acarreta a manutenção dos efeitos das medidas pro-
visórias, mesmo após a perda da eficácia. Na prática, tem-se uma verdadeira
ultra-atividade das medidas provisórias rejeitadas de modo expresso, das que
caducaram (decurso do prazo constitucional em silêncio do Congresso Na-
cional), bem como daqueles dispositivos que foram objeto de emendamento
pelos congressistas na conversão em lei (as alterações parlamentares ao texto
da MP só entram em vigor após a sanção presidencial).
Então, é nesse contexto que emerge a constitucionalidade em abstrato da
figura da devolução in limine de medidas provisórias. Não se trata, como se vê,
de mera alternativa ao decreto legislativo do art. 62, § 3º, da CF, ou mesmo ao
PLV como veículo para promover ajustes no conteúdo de medida provisória.
Na verdade, a devolução se volta para situações em que, além do caráter
absolutamente teratológico da medida provisória, haja urgência nessa contra-
-providência do Congresso Nacional, isto é, quando não se mostrar adequado
aguardar a marcha legislativa normal (que seria a rejeição formal da medida
provisória após os debates e tramitação perante a comissão mista e plenários
das Casas Legislativas). Não seria, portanto, “qualquer inconstitucionalidade”
capaz de ensejar esse drástico expediente.
Portanto, a devolução de medidas provisória figuraria como mais uma
espécie de controle de constitucionalidade prévio à disposição do Congresso
Nacional, paralelamente ao controle decorrente da apreciação ordinária das
medidas provisórias, no âmbito da comissão mista do art. 62, § 9º, da CF, e nos

23
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

plenários, ou mesmo, de modo geral, pela atuação da Comissão de Constitui-


ção e Justiça (CCJ) e do exercício da competência para sustar atos normativos
que exorbitem o poder regulamentar (art. 49, inciso V, da CF).
Com isso, não se nega a necessidade de uma disciplina mais objetiva das
hipóteses de cabimento (e dos efeitos) da devolução das medidas provisórias
para retirar a impressão de que se trata de um ato estritamente político (ou
mesmo arbitrário) que carece de qualquer base jurídica. De fato, essa é matéria
que poderá ser veiculada via emenda constitucional ou mesmo resolução do
Congresso Nacional.
A última devolução de medida provisória recaiu sobre a MP nº 979/2020
como modo de evitar a designação de reitores e vice-reitores pro tempore para
universidades federais, institutos federais e para o Colégio Pedro II. Do contrá-
rio, também surgiriam questões sobre os atos praticados por essas autoridades
em exercício, gerando abalos à segurança jurídica. Daí a justificação para a
imediata suspensão de vigência da medida provisória, que seria o principal
efeito acarretado pela devolução pelo Congresso Nacional.
Nada obstante a devolução, o próprio presidente da República revogou
a MP nº 979/2020 com a edição da MP nº 981/2020, em cuja exposição de
motivos registrou sua decisão pela revogação na divergência de mérito quanto
à matéria (alegando que o real alcance da MP nº 979/2020 não teria sido com-
preendido). O poder Executivo aproveitou a oportunidade, ainda, para regis-
trar que a devolução não teria previsão constitucional e, por consequência, tal
devolução não implicaria a perda de eficácia da medida provisória.
No item 14 da exposição de motivos da MP nº 981/2020, figura: “A urgên-
cia e a relevância da Medida Provisória que ora se propõe decorre da necessidade
de restaurar minimamente a segurança jurídica na matéria e evidenciar a perene
disposição de promover a harmonia entre os Poderes e o respeito ao debate demo-
crático na construção de soluções mais adequadas à sociedade.”
Tudo o que foi apresentado até agora, portanto, só reforça a necessidade
de regulamentação do expediente da devolução de medidas provisórias, que
já figura como interpretação legislativa da Constituição, a despeito da falta de
concordância do poder Executivo e de alguns autores. Mas, agora, até o STF
parece ter chancelado o instituto da devolução in limine de medidas provisó-
rias, reconhecendo-o, ainda que implicitamente, como costume praeter legem.
Especificamente para saber se a MP nº 1.068/2021 seria ou não um caso
de devolução, caberia um exame minucioso de seus dispositivos com vistas a

24
O costume constitucional da devolução in limine de medidas provisórias

verificar se algum deles tinham a potencialidade de acarretar semelhante per-


turbação na segurança jurídica (de modo efetivo, não basta uma mera decla-
ração) ou consternação no mundo dos fatos, na forma de um dano irreparável
ou de difícil reparação.
No que interessa à presente análise, os dispositivos mais criticados da MP
nº 1.068/2021 eram o art. 8º-B e 8º-C, que disciplinavam, respectivamente, os
bloqueios das contas de usuários das redes sociais e a chamada “moderação”
de conteúdo pelos provedores de redes sociais.
Atualmente, não existem regras legais aplicáveis para essas condutas, as
quais já vêm sendo realizadas pelas plataformas tomando como parâmetro sua
própria política e seus termos de uso que o usuário anui e concorda como con-
dição para se cadastrar na plataforma (há um contrato de adesão).
Com a MP nº 1.068/2021, passava-se a exigir que ambos (bloqueio e mo-
deração) fossem realizados com motivação e justa causa, tendo-se apresentado
um rol – que, na falta de afirmação expressa em sentido contrário, só poderia
ser considerado exemplificativo (numerus apertus), por força da diretriz her-
menêutica que obriga o intérprete a adotar o sentido da norma conforme a
Constituição – de situações em que se reputa caracterizada a justa causa, tanto
para o art. 8º-B quanto para o art. 8º-C.
Assim, afastado o sentido numerus clausus (porque não constava da nor-
ma e, quando o legislador não restringe, não é dado ao intérprete fazê-lo),
nada obstaria a que os provedores de redes sociais adotassem tais medidas em
outras hipóteses além das listadas na MP, desde que de modo motivado e sob a
pauta de que as medidas de bloqueios e remoções sejam soluções excepcionais,
para evitar uma restrição indevida na liberdade de expressão dos usuários,
direito fundamental previsto no art. 5º, inciso IX, e no art. 220 da CF.
Da leitura da MP nº 1.068/2021, não era possível extrair – nem sequer
em uma interpretação forçada que se sustente – uma proibição absoluta ao
bloqueio ou à moderação pelos provedores de redes sociais. A discussão, por-
tanto, não dizia respeito a ser “contra” ou “a favor” da moderação de conteúdo
por plataformas, como noticiado aqui,4 mas a “em que termos” ou “sob quais
condições” isso será feito por essas plataformas.

4. https://www.jota.info/legislativo/redes-sociais-congresso-moderacao-08092021

25
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Na exposição de motivos da MP, estava afirmado que o propósito era o de


fortalecer a defesa dos direitos e garantias dos usuários das redes sociais, e que
o ato normativo proposto condizia com os princípios do devido processo legal
e das liberdades de expressão, comunicação e manifestação de pensamento.
Ainda nesse documento, registrava-se que “em 2021, cerca de 150 milhões de
brasileiros são usuários de redes sociais no Brasil, o que corresponde a mais de
70% da população”.
Nesse contexto, era plausível a conclusão quanto à necessidade de alguma
regulamentação voltada a disciplinar a temática em questão, já que as redes
sociais se transformaram na ágora moderna. Hoje o espaço público é digital.
Inclusive, a tentativa de disciplinar a atuação dos provedores já figura em ou-
tras iniciativas legislativas.
Por exemplo, o multicitado projeto de lei (PL) nº 2.630/2020, que preten-
de instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência
na Internet, apelidado de PL das Fake News, traz disposições parecidas às da
MP nº 1.068/2021. A disciplina da moderação de conteúdo está no art. 12 da
versão aprovada no dia 30 de junho de 2020 pelo Senado Federal5 e agora em
tramitação na Câmara dos Deputados.
Ainda sobre o tema, vale registrar que está pendente no STF a definição
sobre a constitucionalidade do art. 19 do MCI. Trata-se do tema 987 da reper-
cussão geral, sobre o alcance desse dispositivo, notadamente a necessidade de
prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdos para a responsabi-
lização dos provedores de internet, websites e gestores de aplicativos de redes
sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros, no caso,
quem faz as postagens impugnadas.
Na essência, essa é uma controvérsia sobre “quem, quando, por que e
como se pode remover o que (qual tipo conteúdo), de onde, por que meios e
sob pena de quais consequências jurídicas”. Existem “deveres” por parte desses
provedores ante determinados conteúdos? Existem “limites” de atuação em
face da liberdade de expressão? A remoção de conteúdo pode ser considerada
“censura e ato ilícito”?
Enquanto não se tem uma resposta clara à luz do ordenamento jurídico,
já começam a surgir decisões judiciais que determinam, inclusive, a reinserção

5. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1909983

26
O costume constitucional da devolução in limine de medidas provisórias

de mensagens apagadas pelas plataformas sponte propria (isto é, sem ordem ju-
dicial) e condenam as plataformas no pagamento de indenizações pelos even-
tuais danos materiais ou morais.
Na literatura, prevalece a interpretação de que o art. 19 do MCI não exige
que a remoção de conteúdo esteja condicionada a uma prévia ordem judicial,
ou seja, as plataformas podem agir proativamente e a moderação poderia per-
feitamente ocorrer com base nas próprias regras da plataforma. Mas há tam-
bém quem defenda que essa atuação “extrajudicial” somente seria possível em
relação a conteúdos de nudez ou de atos sexuais de caráter privado, conforme
previsão do art. 21 do MCI.
A análise quanto à constitucionalidade da MP nº 1.068/2021 poderia ser
feita de modo comparado com essas discussões que já estão em andamento
no parlamento e no próprio STF. Se usado esse parâmetro, a rigor, não haveria
muito sentido na devolução da medida provisória por inconstitucionalidade
manifesta. Existem diversas indagações sobre o MCI e propostas legislativas
na mesma linha da MP, que poderia ter sido lida como uma janela de oportu-
nidade para promover e acelerar os debates.
Desaconselhar a devolução da MP, no entanto, não equivale a reputá-la
perfeita. Tanto a MP nº 1.068/2021 apresentava, quanto o PL nº 2.630/2020
apresenta diversos problemas e enfrentavam obstáculos de ordem prática (por
exemplo, como conceituar fake news?) que poderiam e deveriam ser aperfei-
çoados na tramitação legislativa.
Como já tinha sido anunciado, o destino da MP nº 1.068/2021 parecia já
estar selado: ou seria devolvida, ou seria revogada pelo próprio presidente da
República, ou seria rejeitada pelo Congresso Nacional, ou teria seus efeitos
suspensos por decisão liminar do STF (até ser declarada inconstitucional ou
ocorrer a perda de objeto).
Qualquer um desses cenários é péssimo para a dupla janela de oportuni-
dade que a edição da MP nº 1.068/2021 gerava: a disciplina da devolução de
medidas provisórias e a regulamentação da atuação das plataformas de redes
sociais quanto à exclusão de postagens e bloqueio de contas de usuários.

27
São extensíveis às emendas
parlamentares os limites
materiais à edição de MPs?
O alcance do art. 62, § 1º, da CF,
será discutido na ADI 7.005

No último dia 23 de setembro, o Partido da Social Democracia Brasileira


(PSDB) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.005 contra os
arts. 44 e 57, inciso XXXII, da Lei nº 14.195/2021, fruto da conversão em lei da
Medida Provisória (MP) nº 1.040/2021. A ação foi distribuída ao ministro Luís
Roberto Barroso e tinha sido noticiada aqui.1
Os dispositivos impugnados promoveram alterações no Código de Pro-
cesso Civil (CPC) e não figuravam originalmente na MP nº 1.040/2021 – em
razão da vedação do art. 62, § 1º, inciso I, alínea b, da Constituição (CF), in-
serido pela Emenda Constitucional (EC) nº 32/2001 (“É vedada a edição de
medidas provisórias sobre matéria relativa a direito processual civil”). Tais dis-
positivos impugnados foram inseridos por emendas parlamentares durante a
tramitação do Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 15/2021.

1. https://www.jota.info/stf/do-supremo/psdb-contesta-nova-lei-que-muda-cpc-e-prioriza-
-citacao-por-meio-eletronico-24092021?utm_source=socialcampaign&utm_medium=re-
des&utm_campaign=psdb+cpc+24/9

29
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Na petição inicial, sustenta-se a inconstitucionalidade formal desses dis-


positivos com base em dois argumentos: 1) a falta de pertinência temática das
emendas (“jabutis”), em inconstitucionalidade já reconhecida pelo STF na
ADI nº 5.127, na medida em que a MP nº 1.040/2021 tratava originalmente
apenas de direito comercial, societário, administrativo e civil; e 2) a vedação
a que o emendamento parlamentar (e não só a edição de MPs) verse sobre as
matérias listadas no art. 62, § 1º, inciso I, alínea b, da CF.
Registra: “Se é vedado ao presidente editar medida provisória tratando de
direito processual civil, então, por lógica, também é vedado ao Congresso Na-
cional emendar medida provisória para incluir dispositivo de tal conteúdo” (p.
10). Para o autor: “permitir emenda parlamentar que trate de direito processual
civil seria equivalente a conceder ao Congresso Nacional um poder maior do que
aquele que compete ao Presidente da República” (p. 10).
Ainda de acordo com a argumentação inicial, a ratio do art. 62, § 1º, da CF
visaria a impedir que os assuntos nele descritos sejam objeto de medida pro-
visória, não só porque essa figura possui força de lei imediata, mas sobretudo
em razão do regime especial de tramitação (mais acelerado). Do contrário,
restaria esvaziada a norma constitucional, a qual passaria a ser “subvertida” e
“contornada” pelas emendas parlamentares.
Traz à colação o entendimento do STF tomado na apreciação da medida
cautelar na ADI nº 1.753, suspendendo uma MP editada (e reeditada) em 1997
que trazia modificações sobre a ação rescisória. A fundamentação do julgado,
no entanto, alerta-se aqui, restou calcada na falta de urgência e na violação do
princípio da igualdade entre as partes do processo (portanto, uma inconstitu-
cionalidade material), e não propriamente em ter sido a matéria referente ao
direito processual civil.
Além disso, registre-se que tal julgado é anterior à EC nº 32/2001, que
expressamente inseriu os limites materiais à edição de MPs. Ou seja, àquela
época não havia uma proibição nesse sentido, só a que figurava no art. 246 da
CF, inserido pela EC nº 6/1996, que vedou a adoção de MP na regulamentação
de artigo da CF cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promul-
gada a partir de 1995.
De acordo com o autor da ADI nº 7.005, a inconstitucionalidade formal
dos arts. 44 e 57, inciso XXXII, da Lei nº 14.195/2021, surgiria da arguida vio-
lação ao princípio democrático (art. 1º, caput, e parágrafo único, e art. 2º, da
CF), ao devido processo legislativo (art. 5º, inciso LIV, da CF) e ao art. 62, § 1º,
inciso I, alínea b, da CF.

30
São extensíveis às emendas parlamentares os limites materiais à edição de MPs?

Para aferir a pertinência temática das emendas parlamentares em questão,


faz-se necessário examinar a versão original da MP nº 1.040/2021, em cujo
texto lê-se: “Dispõe sobre a facilitação para abertura de empresas, a proteção de
acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado
de Recuperação de Ativos, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais,
a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade e a pres-
crição intercorrente na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil”.
Especificamente no que diz respeito às medidas de facilitação do comér-
cio exterior, destaca-se a previsão de “guichê único eletrônico” (art. 8º), por
meio do qual importadores, exportadores e demais intervenientes possam en-
caminhar documentos, dados ou informações aos órgãos e às entidades da ad-
ministração pública federal direta e indireta como condição para a importação
ou exportação de bens a ponto único acessível por meio da internet.
A notificação do resultado ao demandante será dada por meio do referi-
do guichê único eletrônico (§ 1º), o qual também poderá ser utilizado para o
recolhimento de taxas (§ 3º), restando vedado aos órgãos e às entidades da ad-
ministração pública federal direta e indireta exigir o preenchimento de formu-
lários em papel ou em formato eletrônico ou a apresentação de documentos,
dados ou informações para a realização de importações ou exportações por
outros meios, distintos da solução do guichê único eletrônico (§ 9º).
Segundo a exposição de motivos, as medidas se destinam à “desburocrati-
zação, simplificação e facilitação do comércio exterior de bens e serviços”. O ob-
jetivo é “melhorar o ambiente de negócios no Brasil” e “impactar positivamente
a posição do país na classificação geral do relatório Doing Business do Banco
Mundial”.
Daí também as alterações normativas quanto à disciplina da profissão de
tradutor e intérprete comercial, à obtenção de eletricidade, bem como à posi-
tivação do entendimento sobre a prescrição intercorrente que já figurava no
enunciado nº 150 da Súmula do STF: “Prescreve a execução no mesmo prazo de
prescrição da ação”. Inseriu-se no Código Civil (CC) o art. 206-A: “A prescrição
intercorrente observará o mesmo prazo de prescrição da pretensão”.
Por seu turno, as emendas parlamentares que resultam nos arts. 44 e 57,
inciso XXXII, da Lei nº 14.195/2021, trouxeram providências voltadas para a
racionalização processual, com destaque para a alteração no art. 246 do CPC,
pelo qual a citação será feita preferencialmente por meio eletrônico. Entre ou-
tras providências, criou-se para as empresas públicas e privadas a obrigação de

31
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

manter cadastro nos sistemas de processo em autos eletrônicos, para efeito de


recebimento de citações e intimações.
Além disso, as emendas parlamentares promoveram alterações no art. 921
do CPC, que trata da suspensão da execução. A mais importante delas foi a
nova redação dada ao § 4º, pelo qual o termo inicial da prescrição intercor-
rente passa a ser a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do
devedor ou de bens penhoráveis.
Como se vê, as emendas inseridas pelos parlamentares guardam correla-
ção temática com as matérias versadas no texto original da MP nº 1.040/2021,
tanto a determinação de que a via eletrônica é o meio preferencial (embora
ainda não exclusivo) para comunicações entre o poder público e o administra-
do (passando a incluir o jurisdicionado), quanto o detalhamento da prescrição
intercorrente, temas que já figuravam originalmente no texto da MP.
Na prática, as alterações adicionadas pelo Congresso Nacional se limi-
taram a adequar as normas procedimentais do CPC às novas disciplinas de
direito material propostas pela MP (que modificava o CC).
Ora, uma norma instrumental que fixa o termo inicial da prescrição inter-
corrente (inserida via emenda parlamentar) tem, de forma inegável, correlação
temática com a norma de direito material que fixa o próprio prazo da prescri-
ção intercorrente (texto original da MP). Trata-se de uma relação de acessório
e principal.
No que diz respeito ao uso da via eletrônica, o que houve foi, igualmente,
a extensão dessa previsão (fixada nos processos de importação e exportação)
para o processo civil. Inclusive, vale registrar que a manutenção de uma es-
pécie de “domicílio eletrônico”2 já figura como opção para o recebimento de
comunicações da Receita Federal e o fornecimento de um endereço eletrônico
é exigência para o cadastro na plataforma Gov.br.3
Nesse contexto, a partir do momento em que se estabelece o meio eletrô-
nico como canal de comunicação e intermediação de documentos em deter-
minados processos administrativos (texto original da MP), como negar a per-
tinência temática da adição de providência semelhante nos processos judiciais
(inserida via emenda parlamentar)?

2. https://www.gov.br/pt-br/servicos/optar-pelo-domicilio-tributario-eletronico
3. https://www.gov.br/pt-br

32
São extensíveis às emendas parlamentares os limites materiais à edição de MPs?

Como se vê, no exame da pertinência temática, a análise não pode ficar


adstrita ao “ramo do direito” da matéria veiculada na MP, como pretende a
inicial da ADI nº 7.005. É preciso ir além, sob pena de se converter a perti-
nência temática em um dever tão exigente, que acaba esvaziando o direito dos
parlamentares, na qualidade de representantes eleitos pelo povo, de emendar
as propostas em discussão no Congresso Nacional.
Como já apontado em outra oportunidade,4 a avaliação do que são ou
não emendas “jabutis” é mais complexa, pois há uma ampla gama de situações
em que as matérias inseridas pelos congressistas não são “totalmente” estra-
nhas, mas conexas, como parece ser o caso da ADI nº 7.005.
Então, aqui não haveria violação aos termos da Resolução nº 1/2002, do
Congresso Nacional, art. 4º, § 4º (“É vedada a apresentação de emendas que
versem sobre matéria estranha àquela tratada na Medida Provisória, cabendo
ao Presidente da Comissão o seu indeferimento liminar”), ou “contrabando le-
gislativo” à luz da ADI nº 5.127.
Superada a questão da pertinência temática das emendas parlamentares
apresentadas na Lei nº 14.195/2021, passa-se à pergunta que intitula o texto:
são extensíveis às emendas parlamentares os limites materiais à edição de MPs
listados no art. 62, § 1º, da CF?
Como se acaba de ver, a partir dos próprios termos em que foi redigida no
texto constitucional, a limitação material que figura no art. 62, § 1º, da CF, se
dirige tão-somente à edição das MPs, ou seja, tem como destinatário da norma
só o presidente da República.
Tal restrição não pode ser interpretada de modo extensivo para incluir
entre seus destinatários os congressistas e, com isso, limitar o direito constitu-
cional dos parlamentares de apresentarem emendas a quaisquer proposições
que lhes sejam submetidas à deliberação.
A interpretação constitucional pretendida na ADI nº 7.005 é esdrúxula
não somente porque são diferentes as condutas reguladas, mas também os su-
jeitos destinatários, isto é, quem edita a MP (o presidente) e os que a emendam
(os parlamentares).
Além disso, a pretensão de estender uma proibição prevista para o ato de
legislar como “poder atípico” do Executivo ao “poder típico” do Legislativo

4. https://www.conjur.com.br/2020-jul-06/roberta-nascimento-jabutis-processo-legislativo

33
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

também viola o brocardo hermenêutico de que as exceções se interpretam res-


tritivamente (exceptiones sunt strictissimae interpretationis).
Como já comentado aqui5 e aqui,6 o Congresso Nacional não é um mero
carimbador das MPs ou dos projetos de lei de iniciativa do Poder Executivo.
E a CF não subtraiu o direito parlamentar de propor emendas. No máximo,
condicionou a que as emendas não impliquem aumento de despesa (arts. 63 e
166, §§ 3º e 4º, da CF).
No entanto, como já dito, não existem limites constitucionais expressos
que impeçam a apresentação de emendas parlamentares quanto ao mérito das
propostas enviadas pelo presidente da República, sobretudo em se tratando
de MPs, cujo trâmite mais abreviado torna mais que necessário o aumento da
capacidade deliberativa do Congresso Nacional.
Se é desejável a efetiva deliberação legislativa sobre as propostas em trami-
tação (como ideal regulativo), é preciso deixar claro que o engajamento parla-
mentar nas discussões se dá precisamente por intermédio da apresentação de
emendas. Essa é a medida da participação parlamentar em um debate legislativo.
Nesse contexto, limitar o espectro temático das emendas parlamentares
que podem ser apresentadas nos PLVs, como pretende a ADI nº 7.005, equiva-
le a limitar a capacidade de influência dos parlamentares no resultado final de
uma discussão. O pedido formulado na ADI vai na contramão das tentativas
de reduzir o deficit democrático-deliberativo do Congresso Nacional.
A prevalecer o entendimento almejado na ADI nº 7.005, são previsíveis ao
menos duas consequências: 1) a diminuição da participação parlamentar nos
debates dos PLVs; e 2) o enfraquecimento do Poder Legislativo de modo geral.
É por isso que a restrição constitucional de que certas matérias não se-
jam veiculadas nos textos iniciais das MPs não impede a respectiva inserção
via emenda parlamentar, seja porque tais modificações parlamentares não têm
força de lei imediata – só valem após a sanção presidencial (art. 62, § 12, da
CF) –, seja porque, se os parlamentares poderiam veicular a matéria via pro-
jeto de lei ordinário, a fortiori, também lhes seria dado aproveitar a janela de
oportunidade temática aberta no PLV para fazê-lo.

5. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/tramitacao-conjunta-ini-
ciativa-legislativa-por-emprestimo-e-autonomia-do-bc-12052021?amp
6. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/cabe-controle-de-consti-
tucionalidade-por-ma-tecnica-legislativa-23062021?amp

34
São extensíveis às emendas parlamentares os limites materiais à edição de MPs?

Ora, em se tratando de emendas parlamentares às MPs, o que importa é a


pertinência temática – que, repise-se, não pode ser aferida de forma rasa como
mera adstrição ao mesmo “ramo do direito”, como já assinalado acima. Esse
requisito limitativo quanto ao conteúdo das emendas é o suficiente para evitar
a indesejada “carona” de matérias estranhas no rito abreviado, em violação ao
princípio democrático.
Por isso, não faz sentido limitar, ainda mais, o poder de emenda parla-
mentar para suprimir dele as matérias listadas de forma ampla no art. 62, § 1º,
da CF, em abstrato e ex ante, isto é, independentemente da correlação temática
com o texto original da MP.
E faz menos sentido ainda promover essa limitação a partir da extensão de
uma restrição material voltada especificamente para o presidente da República
(art. 62, § 1º, da CF), privando o Congresso Nacional de promover um debate
legislativo eficiente, atendendo à economia do processo legislativo que concre-
tiza o princípio da eficiência do art. 37, caput, da CF.
O próximo passo desse raciocínio equivocado da ADI nº 7.005 seria exi-
gir que as emendas parlamentares também passassem a apresentar relevância
e urgência. A essa altura, parece desnecessário dizer que isso fulminaria, por
completo, o desenho constitucional traçado para as medidas provisórias na CF
(notadamente, a partir da EC nº 32/2001), e, na prática, aboliria por completo
toda e qualquer emenda parlamentar em PLVs.
O ministro Luís Roberto Barroso, relator designado para a ADI nº 7.005,
é um autodeclarado entusiasta da ideia de democracia deliberativa, entre cujos
fundamentos está o de que as decisões políticas precisam ser tomadas após
debate público livre, amplo e aberto, ao fim do qual são fornecidas razões para
as escolhas feitas (legitimação discursiva).
Considerando isso, espera-se que seu voto seja em favor de que o Con-
gresso Nacional possa aperfeiçoar as propostas legislativas, inclusive as envia-
das por MPs pelo presidente da República, como condição de possibilidade
para a tomada decisões que reflitam a vontade majoritária dos representantes
do povo.
Ambientes democráticos maduros pressupõem a garantia de que os par-
lamentares têm o direito de emendar todas e quaisquer proposições que lhe
sejam submetidas à deliberação, da forma mais ampla possível. Em uma de-
mocracia que se pretende deliberativa, a inconstitucionalidade reside na ten-
tativa de subtrair o principal mecanismo de participação parlamentar que é a
apresentação de emendas no processo legislativo.

35
Para que servem as
emendas aglutinativas?
A discussão nos MS 38.300, 38.303 e
38.304 sobre a PEC dos Precatórios

Antes mesmo da votação em 2º turno na noite desta terça-feira (9), a


PEC nº 23/2021, a nova PEC dos Precatórios, já conta com três mandados de
segurança (MS) ajuizados com vistas a suspender sua tramitação, com argu-
mentações semelhantes de violação ao devido processo legislativo. Mais cedo
nesta terça, a ministra Rosa Weber negou todos os pedidos liminares, como
noticiado aqui.1
No MS nº 38.300, impetrado pelo deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) e
outros parlamentares, argumenta-se, em síntese: 1) que a emenda aglutinativa
substitutiva global nº 1, apresentada às 21h03, e submetida à votação anterior-
mente à apresentação da emenda de redação às 21h55, contraria as normas
regimentais; 2) que o quórum exigido no artigo 60, inciso I, da CF, deveria ter
sido atendido em relação às proposições anteriores sobre as quais incide a fu-
são da emenda aglutinativa; 3) que a emenda de redação apresentada às 21h55
foi intempestiva; e 4) que somente perante as comissões especiais poderiam ser
apresentadas emendas, o que tornaria irregular o texto aprovado pelo plenário.

1. https://www.jota.info/stf/do-supremo/rosa-weber-nega-pedidos-para-suspender-vota-
cao-da-pec-dos-precatorios-09112021

37
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

O MS nº 38.303, impetrado pelo deputado Paulo Sergio Ramos Barboza


(PDT-RJ), segue argumentação semelhante, adicionando o questionamento
quanto ao Ato da Mesa nº 212/2021, que dispensou o registro biométrico na
Casa dos parlamentares no desempenho de missão autorizada pela Câmara
dos Deputados, e, na prática, permitiu que os parlamentares fora do país em
missão oficial (COP 26) pudessem participar da votação por meio do aplicati-
vo Infoleg. Na petição inicial, aduz-se que tal ato configuraria abuso de poder,
que sua aprovação teria ocorrido em desvio de finalidade.
No MS nº 38.304, impetrado pelo deputado Rodrigo Maia (sem partido-
-RJ), além dos argumentos das ações anteriores, avança com argumentos de
mérito para sustentar a inconstitucionalidade material, por esvaziar a autori-
dade da função jurisdicional, promovendo “calote”.
Em resumo, insiste-se na argumentação de que a emenda de redação de-
veria ter sido apresentada previamente na Comissão Especial e com o apoia-
mento necessário de 171 deputados, o que não ocorreu. E, dessa forma, o texto
da emenda aglutinativa substitutiva global nº 1 submetido à votação no Plená-
rio não teria sido aprovado pela CCJ, tampouco na Comissão Especial, o que
violaria o suposto direito líquido e certo à observância do artigo 58, § 1º, e do
artigo 60, inciso I, ambos da CF.
No que diz respeito à contestação do Ato da Mesa nº 212/2021, deve-se
afastar a abusividade da permissão para que a votação de mérito das matérias
constantes da ordem do dia das sessões ou da pauta das reuniões possa ocorrer
pelo aplicativo lnfoleg quando o parlamentar estiver no desempenho de mis-
são autorizada pela Câmara.
Em primeiro lugar, porque os avanços tecnológicos, sobretudo os advin-
dos do Sistema de Deliberação Remota (SDR), devem ser usados para pro-
porcionar inclusão, e não exclusão, dos parlamentares. A necessidade de au-
torização da Casa para participar de missão se presta muito mais para evitar
a incidência do artigo 55, inciso III, da CF (“Perderá o mandato o deputado
ou senador: … que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça
parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão
por esta autorizada”). No entanto, a formalidade se torna obsoleta a partir do
momento em que há tecnologia que permite a participação a distância.
Em segundo lugar, o Ato da Mesa nº 212/2021 não é abusivo, na medida
em que permite que parlamentares votem tanto a favor, quanto contrariamen-
te à matéria objeto de deliberação. Haveria desvio ou excesso de poder caso a

38
Para que servem as emendas aglutinativas?

participação ficasse condicionada a um determinado sentido (votar apenas a


favor – ou contra), o que não ocorre in casu.
Em terceiro lugar, em vez de criticar o avanço em termos de inclusividade,
a reivindicação deveria ser no sentido de estendê-lo também aos parlamenta-
res que ainda não retornaram aos trabalhos presenciais por razões médico-sa-
nitárias. Todos ganhariam com isso.
Agora, sobre as emendas aglutinativas, é preciso começar explicando que
se originam do procedimento adotado por ocasião da Assembleia Constituinte
de 1987-88, inventadas pelo então deputado constituinte Nelson Jobim, sob o
nome de “emendas de transação”.
Para que se compreenda bem a figura, melhor recorrer às palavras de seu
próprio criador: “Você ia para o plenário, você tinha uma votação, e tu não
conseguia aprovar nada, porque nenhum dos textos que estava no plenário
conseguia fazer maioria absoluta que a emenda constitucional que convocou
a Constituinte mandava fazer. Aí, nós inventamos as emendas de transação.
Fui eu que inventei a emenda de transação. Que era uma emenda em que você
pegava… Isso começou assim, ó. Você tinha ene textos para serem votados.
Nenhum deles tinha maioria para votar. Não conseguia votar nada. Ia ficar um
buraco. Chamava-se buraco negro, na época. Aí o que é que a gente fez? Eu
disse: ‘Olha, a única solução é a gente fazer uma negociação política e criar-
mos um texto que possa ser aprovado’. E esse texto seria um texto novo, mas
tinha que conter… tinha que conter… No início, né? Para convencer o pessoal.
Porque os… digamos, os tradicionalistas, os regimentalistas não aceitavam
essa solução. O Paulo Afonso reagiu: “Ah, isso é um absurdo!” e tal. Tu pegava
uma palavra daqui e enfiava lá dentro. Uma palavra daqui… e criava um texto
novo. Na verdade, no início, fiscalizava-se. Depois, esse texto aqui não tinha
nada a ver com esse texto aqui de trás. Aquilo só justificava. Era a emenda de
transação. Que depois foi para o regimento interno da Câmara com o nome de
emenda aglutinativa” (sic).2
Por isso, só o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), que
é de 1989, traz essa figura. O Regimento Interno do Senado Federal (RISF),
sendo de 1970 (e pré-Constituinte de 1987-88), não incorporou as emendas

2. FONTAINHA, Fernando de Castro; PAULA, Christiane Jalles de; SATO, Leonardo Seiichi Sa-
sada; et al (Orgs.). História oral do Supremo (1988-2013), v.9: Nelson Jobim. Rio de Janeiro:
Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, 2015, p. 114.

39
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

aglutinativas, muito embora por vezes as emendas de redação nessa Casa aca-
bem tendo o mesmo papel.
No RICD, consta do artigo 118, § 3º, que “emenda aglutinativa é a que
resulta da fusão de outras emendas, ou destas com o texto, por transação ten-
dente à aproximação dos respectivos objetos.”
Como se acaba de ver do relato de Nelson Jobim, a proibição velada de
utilização das emendas aglutinativas para incluir matéria “inteiramente nova”
foi muito mais para convencer os opositores desse instrumento do que pro-
priamente para funcionar “na prática”, seja porque o controle dessa dinâmica
é dificílimo, seja porque as emendas aglutinativas acabam sendo apresentadas
de última hora, às pressas, para superar rapidamente um eventual impasse e,
assim, alcançar uma ampla maioria. As emendas aglutinativas formalizam esse
acordo. Logo será possível entender por quê.
O grande diferencial das emendas aglutinativas está na possibilidade de
que sejam apresentadas em plenário, inclusive quando já iniciado o processo
de votação, ou seja, quando já encerrada a etapa de discussões (mas desde que
até antes da votação das partes a que se referem). As emendas aglutinativas
não são cabíveis no âmbito das comissões da Câmara, conforme a Questão de
Ordem (QO) nº 176/2007.
Até antes da Resolução nº 21/2021, da Câmara dos Deputados, que pro-
moveu importantes modificações no RICD, as emendas aglutinativas podiam
ser apresentadas por 1/10 dos membros da Casa (ou seja, 52 deputados) ou por
líderes que representassem esse número. Em razão disso, as emendas agluti-
nativas também serviam como instrumento da minoria, inclusive para como
tática parlamentar obstrucionista para inserir modificações e embaralhar as
votações. Não há qualquer limite de número de emendas aglutinativas, tam-
pouco à extensão dos textos aglutinados (QO nº 62/1996).
No entanto, na atual redação do artigo 122 do RICD, dada pela Resolu-
ção nº 21/2021, as emendas aglutinativas se tornaram mais um mecanismo
para a construção de amplos consensos (majoritários), e menos uma obstru-
ção, como deve ser um instrumento dessa natureza, apresentado em fase tão
avançada do processo legislativo e que reduz o “nível informacional” durante
a votação.
Eis o atual artigo 122: “As emendas aglutinativas podem ser apresenta-
das em Plenário, para apreciação em turno único, por ocasião da votação da
parte da proposição ou do dispositivo a que elas se refiram, por Líderes que

40
Para que servem as emendas aglutinativas?

representem a maioria absoluta dos membros da Casa.” Recorde-se que a


maioria absoluta equivale a 257 deputados. Atente-se para esse número exigi-
do para as emendas aglutinativas: é até superior ao 1/3 exigido para a apresen-
tação de emendas a texto de PEC (equivalente a 171 deputados).
O novo quórum para apresentação de emendas aglutinativas legitima,
qual seja, a maioria absoluta, legitima a vontade parlamentar de realizar modi-
ficações do texto no plenário, de forma consentânea com o princípio da supre-
macia do plenário norteia o processo legislativo.
De acordo com o artigo 122, § 2º, do RICD, “Recebida a emenda agluti-
nativa, a Mesa poderá adiar a votação da matéria por uma sessão para fazer
publicar e distribuir em avulsos o texto resultante da fusão.” Como o próprio
termo “poderá” indica, não há obrigatoriedade no adiamento, tratando-se
de uma decisão do Presidente da Câmara dos Deputados. Nesse sentido, por
exemplo, é a QO nº 245/2016.
Como visto, nem sempre é rigorosamente respeitado o requisito de que as
emendas aglutinativas precisariam se assentar em textos constantes das propo-
sições já existentes (sejam substitutivos, proposições apensadas, emendas ou a
original). Essa prática de inovar via emenda aglutinativa vem sendo impugna-
da desde a década de 1990.
Inclusive, no MS nº 22.503 – writ multicitado nesta coluna Defensor Legis
(aqui3 e aqui)4 pela importância em matéria de controle do processo legislati-
vo –, entendeu-se por excluir do exame judicial a alegação de que uma emenda
aglutinativa supostamente inovava, porquanto o assunto é matéria interna cor-
poris, calcada em fundamento exclusivamente regimental.
Inclusive, recentemente o uso de emendas aglutinativas também causou
polêmica por ocasião da tramitação do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº
112/2021, que pretende substituir o Código Eleitoral (segundo a ementa, dis-
põe sobre as normas eleitorais e as normas processuais eleitorais brasileiras).

3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/controle-de-constitucio-
nalidade-qualidade-deliberacao-legislativa-14102020
4. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-que-e-o-devido-pro-
cesso-legislativo-17022021

41
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Como noticiado,5 uma propostas era a quarentena de 5 anos para juízes,


promotores, militares e policiais se candidatarem a cargos eletivos. Durante a
votação, tal quarentena foi objeto de destaque e acabou sendo rejeitada pela
falta de apenas 3 votos (eram necessários 257 e só houve 254).
No entanto, a quarentena (agora de quatro anos) acabou voltando para o
texto precisamente após a apresentação de uma emenda aglutinativa (EMA) nº
2, que foi bastante criticada, na medida em que não guardaria correspondência
com texto prévio (a rigor, o texto destacado previa o prazo de cinco anos, não
o de quatro anos, o que seria uma inovação supostamente proibida em emenda
aglutinativa).
Seja como for, contou com o apoiamento dos líderes nos termos do artigo
122 do RICD e o autógrafo do PLP nº 112/2021 seguiu para o Senado, onde
permanece em tramitação.
Por tudo o que vem sendo explicado, vê-se que as emendas aglutinativas
– longe de manobras regimentais ilícitas – são o que destrava a deliberação
parlamentar, com textos verdadeiramente articulados, negociados, capazes de
reverberar a vontade da maioria parlamentar.
Especificamente no que diz respeito ao artigo 202, § 3º, do RICD – pelo
qual “somente perante a Comissão Especial poderão ser apresentadas emen-
das, com o mesmo quórum mínimo de assinaturas de deputados e nas con-
dições referidas no inciso II do artigo anterior, nas primeiras dez sessões do
prazo que lhe está destinado para emitir parecer” –, é sabido que há muito esse
dispositivo não vincula as práticas parlamentares, que operam na direção de
fazer prevalecer as preferências do plenário da Casa, até mesmo porque, em se
tratando de PEC, o quórum é de 3/5 e a votação nominal.
Por isso, de fato, não faria sentido cristalizar a vontade de um colegiado
diminuto (a comissão especial), em detrimento da maior representatividade
de uma decisão tomada pelo colegiado maior, isto é, o plenário, reiterando que
essa é a instância soberana das Casas Legislativas.
Com isso, as emendas aglutinativas, cuja apresentação também é permiti-
da em relação a PECs – podendo promover, inclusive, a fusão do substitutivo
de Comissão e o texto original da proposição –, são o veículo para produzir a

5. https://www.camara.leg.br/noticias/806524-deputados-aprovam-emenda-que-preve-
-quarentena-eleitoral-para-juizes-e-policiais-acompanhe

42
Para que servem as emendas aglutinativas?

coalizão de ampla maioria necessária para deliberação de reforma constitucio-


nal (ou mesmo qualquer outra espécie legislativa).
Além disso, como bem pontuado pela própria ministra Rosa Weber em
sua decisão ao MS nº 38.300, o artigo 60 da CF não impõe determinações
quanto ao emendamento das PECs. Em suas próprias palavras: “3. À luz do
referido preceito da Magna Carta, não há dispositivo de extração constitu-
cional imediata que exija a apreciação de proposta de emenda constitucional
em comissão, antes da submissão ao Plenário da Casa Legislativa. Tampouco
reputo configurada, na Lei Maior, previsão quanto ao quórum de apresentação
de proposição acessória (emenda parlamentar), veiculada no curso da análise
da proposição principal de alteração constitucional, esta jungida aos termos
do artigo 60, I, II e III, da Constituição da República.” (pp. 14-15).
Por isso, é irrelevante que a apresentação da EMA nº 1 à PEC nº 23/2021
tenha se dado fora da comissão especial, já em plenário, e mesmo antes da
emenda de redação, pois a ordem dos fatores não altera o produto (de modo
semelhante ao que ocorreu aqui).6 Sobretudo no processo legislativo, as for-
mas são meramente instrumentais. O formalismo cuja imposição se pretendia
via Poder Judiciário não deveria conduzir a uma “derrota ao contrário”, em que
meia dúzia de perdedores na arena legislativa reverta no STF um resultado de
312 a 144 votos.
Além de acertadas, as decisões da ministra Rosa Weber nos MS nº 38.300,
nº 38.303 e nº 38.304 merecem o elogio de que caminharam em clara evolução
em relação à sua própria postura por ocasião do MS nº 33.360 (que também
impugnava emendas aglutinativas na tramitação da PEC nº 182/2007). Embo-
ra tenha negado o pedido de medida cautelar naquele então, a ministra chegou
a confrontar o conteúdo das proposições, em cotejo absolutamente contrário à
diretriz do MS nº 22.503 acima mencionado.
No MS nº 33.360, a ministra tinha deixado claro que estava indeferin-
do o pedido liminar porque “1) as duas Emendas Aglutinativas (de nº 22 e
28), comparadas às proposições originais que as ensejaram, fundiram por
transação proposições normativas referentes a objeto similar, sem inovar, em
sentido próprio, em conteúdo; (…)” (p. 22). Ora, não é papel do STF, nem
de seus ministros monocraticamente, conferir se há novidades nos textos das

6. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/tramitacao-conjunta-ini-
ciativa-legislativa-por-emprestimo-e-autonomia-do-bc-12052021

43
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

proposições emendadas ou checar detalhes regimentais da tramitação legisla-


tiva, sem apoio no texto constitucional.
Agora, superada a referida questão procedimental, a PEC nº 23/2021
deverá enfrentar outra sorte de obstáculos no restante de sua tramitação e,
mesmo sendo aprovada, é provável que, quanto às questões de mérito, seja
reproduzido o debate das ADIs nº 4.425 e 4.357 por ocasião da última EC dos
Precatórios (EC nº 62/2009). Já se a futura decisão do STF deverá ser a mesma
ou não nesse caso é matéria para uma próxima coluna.

44
Tramitação conjunta, iniciativa
legislativa ‘por empréstimo’
e autonomia do BC
ADI nº 6.696 deve entender que ordem
dos fatores não altera o produto

Na mesma notícia do dia 10 de fevereiro de 2021 que anunciava a apro-


vação do PLP nº 19/2019 (que, entre outras providências, dispôs sobre a au-
tonomia do Banco Central) já constava a informação de que a matéria seria
judicializada.1
No último dia 29 de abril, no entanto, foi disparado o sinal de alerta com
o advento do parecer da PGR pela inconstitucionalidade formal2 da LC nº
179/2021, lançado na ADI nº 6.696, apresentada pelo Partido Socialismo e Li-
berdade (PSOL) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
Na petição inicial, os partidos políticos sustentam a ocorrência de vício de
iniciativa insanável, sob o argumento de que a LC nº 179/2021 – ao tratar de
matéria referida pelo art. 61, § 1º, inciso II, alíneas c e e, da CF – não poderia

1. https://www.jota.info/legislativo/camara-aprova-autonomia-do-banco-central-e-texto-
-segue-para-sancao-10022021
2. https://www.jota.info/stf/do-supremo/autonomia-do-bc-pgr-diz-que-vicios-formais-de-
vem-ser-corrigidos-29042021

45
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

ter sido fruto de iniciativa parlamentar (o autor do PLP nº 19/2019 foi o sena-
dor Plínio Valério), daí supostamente resultaria sua nulidade in totum.
De acordo com a argumentação dos autores, o apensamento (ocorrido na
Câmara dos Deputados) do PLP nº 112/2019, este sim de autoria do presidente
da República (versando sobre a mesma matéria), ao PLP nº 19/2019 (que já
tinha sido aprovado pelo Senado Federal e estava em tramitação na Câmara)
não seria capaz de suprir o vício, que não seria passível de convalidação.
Na lógica da petição inicial da ADI nº 6.696, era para o PLP nº 19/2019 ter
sido rejeitado na Câmara, de modo a permitir a votação do PLP nº 112/2019
de autoria do Poder Executivo que, em sendo aprovado pela Câmara, seguiria
para apreciação do Senado, na condição de Casa revisora, atendendo-se ao art.
64 da CF.
Como sabido, não foi o que aconteceu, pois o PLP nº 112/2019 de inicia-
tiva do Executivo restou prejudicado diante da aprovação do PLP nº 19/2019,
que, como já tinha sido aprovado pelo Senado, seguiu imediatamente para a
sanção.
Os autores ainda alegam que o entendimento que sustentam sobre o apen-
samento (que seria inconstitucional em relação aos projetos de iniciativa pri-
vativa) já teria sido objeto de duas questões de ordem na Câmara dos Depu-
tados (a de nº 10430/1993 e nº 658/2006, ambas rejeitadas inicialmente pelo
presidente, mas deferidas via recurso à CCJ).
A petição inicial da ADI nº 6.696 ainda avança argumentando supostas
inconstitucionalidades materiais da LC nº 179/2021, mas sem interesse para
o que se pretende tratar na coluna de hoje, concentrada na possibilidade regi-
mental de “apensação” de proposições legislativas em caso de matérias análo-
gas, conexas, idênticas ou correlatas para que tramitem em conjunto e se isso
implica ou não a chamada iniciativa legislativa “por empréstimo”.
A apensação para tramitação conjunta é medida que atende à eficiência
e economicidade do processo legislativo, além de permitir um maior grau de
racionalidade das discussões parlamentares: se as diversas proposições sobre o
mesmo assunto são “concentradas” (isto é, tramitam como se fossem uma só),
oportuniza-se um debate mais organizado.
O instituto, quando aplicado às propostas de emenda à Constituição em
tramitação na Câmara dos Deputados, ainda evita a formação de mais de uma
comissão especial, cujo funcionamento simultâneo acarretaria sobreposição
de trabalhos. Recorde-se que no Senado Federal a própria CCJ concentra as

46
Tramitação conjunta, iniciativa legislativa ‘por empréstimo’ e autonomia do BC

funções de análise da admissibilidade e do mérito das PECs (não sendo neces-


sária a comissão especial como regra geral).
No Regimento Interno da Câmara dos Deputados – RICD, a previsão da
tramitação conjunta de proposições figura nos arts. 142 e 143, ao passo que no
Regimento Interno do Senado Federal – RISF, a disciplina está nos arts. 258
a 260, tendo em ambos sido estabelecidas regras de precedência para definir
qual proposição encabeça e qual(is) fica(m) apensada(s).
Tanto no art. 143, parágrafo único, do RICD, quanto no art. 162, § 1º, do
RISF, está previsto que o regime especial de tramitação de uma proposição
estende-se às demais que lhe estejam apensadas. Esse regramento de fato pode
dar margem a algumas táticas parlamentares.
Por exemplo, se uma das proposições apensadas tramita em regime de
urgência, esse regime será estendido automaticamente a todas as proposições.
Da mesma forma, na hipótese de uma proposição sujeita a deliberação termi-
nativa (isto é, cuja votação dispensa a competência do plenário) no âmbito das
comissões ser apensada a outra sujeita ao plenário, a aprovação do requeri-
mento de tramitação em conjunto tem o efeito de retirar o caráter terminativo,
e ambas seguirão para o plenário.
Com essa tática, como se vê, pode-se alterar completamente o rumo da
proposição, modificando, inclusive, o timing e a arena em que se dá o deba-
te. Mas não foi o que aconteceu no caso da proposta que originou a LC nº
179/2021, cuja tramitação legislativa contou com os passos normais e necessá-
rios, sem interpretação casuística ou uso arbitrário de dispositivos regimentais.
Como o RICD não prevê um tratamento específico diverso, de fato pode
acontecer de um projeto de lei de iniciativa privativa do Executivo ser apen-
sado a outro do Senado que já estava em tramitação na Câmara (justamente o
que houve na situação que resultou na LC nº 179/2021).
Daí vem a pergunta: nesse caso, se a Câmara aprova o projeto já votado
Senado estará abrindo mão de seu poder de ser a Casa iniciadora e também de
dar a última palavra sobre os projetos de iniciativa do Executivo, nos termos
dos arts. 64 e 65 da CF?
Essa questão é o cerne da controvérsia objeto da ADI nº 6.696 e a res-
posta é um rotundo NÃO, na medida em que a norma regimental do art. 143,
inciso II, alínea a, do RICD, que prevê a precedência da proposição do Sena-
do sobre a da Câmara, é plenamente compatível com os arts. 64 e 65 da CF,
sempre e quando a aprovação do projeto oriundo do Senado nessa situação

47
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

não implique o retorno da tramitação para a Casa Alta, o que foi precisa-
mente o que ocorreu no caso da LC nº 179/2021. É dizer, houve a necessária
preponderância da Câmara enquanto Casa Baixa iniciadora dos projetos de
iniciativa do Executivo.
Como visto, o PLP nº 19/2019 já tinha sido aprovado pelo Senado e,
com a aprovação na Câmara, seguiu diretamente para a sanção, ou seja, não
foi o Senado que encerrou a tramitação ou funcionou como última instância,
de forma diversa do previsto constitucionalmente. Como se vê, não houve
qualquer afronta ao processo legislativo bicameral, já que a tramitação pas-
sou pelas duas Casas Legislativas.
Por seu turno, tampouco há que se falar em vício de iniciativa, na medi-
da em que esta foi efetivamente deflagrada pela autoridade competente ainda
na fase deliberativa do processo legislativo, nos termos do PLP nº 112/2019
de autoria do presidente da República, perante a Câmara dos Deputados,
nos exatos termos do art. 64 da CF. Nessa Casa Legislativa, o referido PLP
simplesmente foi apensado ao PLP nº 19/2019.
Como sabido, o respeito ao juízo político de conveniência e oportuni-
dade por parte da autoridade competente para desencadear o processo le-
gislativo não implica a obrigatoriedade de as Casas do Congresso Nacional
aprovarem a matéria nos exatos termos em que lhe foi apresentada.
A CF não subtraiu o direito parlamentar de propor emendas a projetos
de iniciativa reservada, tendo simplesmente colocado alguns limites a essa
possibilidade, conforme os arts. 63 e 166, §§ 3º e 4º, da CF, para evitar o au-
mento de despesa.
A rigor, não existem limites constitucionais expressos que impeçam a
apresentação de emendas parlamentares quanto ao mérito da proposta, in-
clusive para mudá-la substancialmente (a despeito dos eventuais problemas
que isso poderia acarretar na prática).
O poder de iniciativa privativa não se confunde com o poder para
emendar, daí que não seria possível limitar a atuação do Congresso Nacional
a simplesmente aprovar ou rejeitar a proposta apresentada pelo Poder Exe-
cutivo, sendo possível ainda emendá-la (embora se reconheça a existência de
literatura minoritária em sentido contrário).
Seja como for, entende-se pela possibilidade de apresentação de emen-
das parlamentares, inclusive sob a forma de um substitutivo (art. 118 do

48
Tramitação conjunta, iniciativa legislativa ‘por empréstimo’ e autonomia do BC

RICD). Considerando essa lógica, poder-se-ia considerar que a aprovação


do PLP nº 19/2019 pela Câmara equivale a uma emenda substitutiva ao PLP
nº 112/2019, e não a uma rejeição deste último. E como esse “substitutivo”
também foi aprovado pela Casa revisora, a ordem dos fatores não altera o
produto.
Exigir que o Senado Federal se manifeste necessariamente depois da de-
liberação da Câmara dos Deputados com base em interpretação que combi-
na os arts. 64 e 65 da CF (e na suposta inconstitucionalidade da apensação
dos projetos de iniciativa do presidente da República) equivale a desconhe-
cer como são celebrados os acordos políticos que viabilizam a aprovação das
matérias nas Casas do Congresso Nacional.
Mesmo quando se segue a ordem normal de votação, se a Câmara apro-
va um texto e a matéria provoca desacordo no Senado, este só vota a propo-
sição (naturalmente, com as modificações que pretende inserir) se obtiver o
acordo político de que esse novo texto não será rejeitado pela Câmara. Do
contrário, o Senado simplesmente o rejeita.
Tecnicamente, o assunto também pode ser tratado pela chamada inicia-
tiva legislativa “por empréstimo”, pela qual se aproveita a iniciativa exercida
por parte da autoridade competente para promover a deliberação parlamen-
tar.
Nessas situações, resta afastado o vício de iniciativa quando: 1) diploma
normativo de iniciativa parlamentar que reproduz textos de leis revogadas
de iniciativa do Executivo; 2) que repete trechos de projetos de lei encami-
nhados pelo Executivo, mas por alguma razão ainda não apreciados pelo
Congresso; ou 3) que seja compatível com o que dispõem a leis revogadas
e/ou projetos de lei, sem alterar atribuições ou impor obrigações novas aos
órgãos constituídos.
Tal iniciativa legislativa “por empréstimo” já foi chancelada pelo STF
diversas vezes (ADIs nº 3137, 3198, 3263, 3518, 3535, 3585, 3600, 3788, 3814,
que tinham por objeto o Estatuto do Desarmamento). A chave para o seu re-
conhecimento estaria na similitude entre os textos, no caso, a partir do cote-
jo entre o PLP nº 112/2019 e o PLP nº 19/2019. Mas será que o STF teria que
se debruçar artigo por artigo? Não seria isso entrar em aspectos materiais?
Aqui, entende-se que o exame deve ser feito de modo amplo.

49
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Como o conteúdo de ambos converge de forma geral, restaria afastada


qualquer alegação de burla ou fraude à iniciativa legislativa, na medida em
que a discussão no âmbito da Câmara dos Deputados somente foi possível
(e constitucional) pela janela aberta pelo próprio presidente da República,
autoridade competente para desencadear a discussão.
Por tudo o que vem sendo exposto, vê-se que incorre na falácia da falsa
dicotomia o entendimento da PGR no seguinte trecho do parecer: “Então, de
duas, uma: ou a Lei Complementar 179/2021 adveio de projeto de iniciativa
parlamentar e é inconstitucional por violação das alíneas “c” e “e” do inciso II do
§ 1º do art. 61 da Constituição Federal, ou a lei, oriunda de projeto proposto pelo
Presidente da República, é inconstitucional por não ter sido aprovada por ambas
as casas do Congresso Nacional (CF, arts. 64 a 66). Por conseguinte, seja por
vício de iniciativa, seja por afronta ao processo legislativo bicameral, a Lei Com-
plementar 179/2021 há de ser declarada formalmente inconstitucional.” (p. 27).
Na verdade, não há nem uma nem outra inconstitucionalidade. Expli-
que-se.
O art. 143, inciso II, alínea a, do RICD, que prevê a precedência da pro-
posição do Senado sobre a da Câmara, permitiu que se estivesse juridicamente
votando o projeto proposto pelo Executivo, com a Câmara funcionando como
Casa iniciadora, o Senado como Casa revisora.
Com isso, houve aprovação válida pelas duas Casas do Congresso Na-
cional, em conformidade com os arts. 64 e 65 da CF, porque a “apensação” de
proposições legislativas para tramitação conjunta conta com previsão expressa
nos regimentos internos (resoluções aprovadas pelas Casas Legislativas, com
status de atos normativos primários, pelo art. 59, inciso VII, da CF) e a cha-
mada iniciativa legislativa “por empréstimo” já teve sua constitucionalidade
reconhecida pelo STF.
Ora, viu-se que o Senado se manifestou sobre projeto (o PLP nº 19/2019)
materialmente compatível com o do presidente da República. Se o PLP nº
112/2019, de iniciativa deste último, restou prejudicado pela Câmara (em ra-
zão da aprovação do PLP nº 19/2019, por aplicação do art. 163, inciso III, do
RICD), não faria sentido que seguisse para o Senado.
E como a Câmara aprovou projeto que já contava com a aprovação do
Senado, sim, que houve manifestação deste último e o retorno da tramitação à
Casa Alta é que implicaria inconstitucionalidade (dada a necessidade de “pre-
valência” da vontade da Câmara na qualidade de Casa iniciadora). Então, cor-
reta a remessa à sanção.

50
Tramitação conjunta, iniciativa legislativa ‘por empréstimo’ e autonomia do BC

Assim, é equivocado o argumento do parecer da PGR de que o vício de


inconstitucionalidade da LC nº 179/2021 estaria em “o Senado Federal não ter
deliberado sobre o projeto de iniciativa do Presidente da República” (p. 25).
No caso concreto, houve a manifestação conjunta de vontades da Presi-
dência da República, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal na fase
deliberativa do processo legislativo. A norma votada no projeto de lei, que fi-
gurava nas proposições apensadas, foi a mesma nesses 3 órgãos.
Se é assim, não há diferença na ordem neste caso, inexistindo vício de
inconstitucionalidade decorrente da aplicação dos institutos da ‘apensação’
para tramitação conjunta e da iniciativa legislativa ‘por empréstimo’ ao mesmo
tempo.
Convém recordar que o próprio STF já reconheceu que o simples fato de
o projeto ter sido emendado não é o que enseja o retorno do projeto à Casa
iniciadora. Nas palavras no ministro Nelson Jobim na ADC nº 3: “Só retorna-
rá se, e somente se, a emenda tenha produzido modificação de sentido na pro-
posição jurídica. Ou seja, se a emenda produzir proposição jurídica diversa da
proposição emendada. Tal ocorrerá quando a modificação produzir alterações
em qualquer um dos âmbitos de aplicação do texto emendado: material, pessoal,
temporal ou espacial. Não basta a simples modificação do enunciado pela qual
se expressa a proposição jurídica”.
Tal entendimento, aplicado por analogia ao caso que originou a LC nº
179/2021 conduziria à desnecessidade de retorno do projeto de lei ao Senado,
justamente como ocorreu no caso concreto. No entanto, ad argumentandum,
se a Câmara tivesse enviado novamente ao Senado, após a análise da Casa Alta,
a tramitação deveria ter mais uma vez voltado à Câmara dos Deputados, pois
a vontade desta sempre terá prevalência na qualidade de Casa iniciadora dos
projetos de lei do Executivo.
Na prática, a tramitação hipotética acima (assim como desejada na peti-
ção inicial da ADI nº 6.696) equivale a tornar sem fim o processo legislativo,
em intermináveis idas e vindas. Pretensão semelhante já foi rejeitada pelo STF,
valendo a leitura da discussão na ADI nº 2.182, em especial a medida cautelar,
quando a Corte decidiu que rejeição pela Casa iniciadora de partes de substi-
tutivo aprovado na Casa revisora não obriga nova devolução.
Essa é mais uma discussão em que se está diante de tentativa de trans-
plantar a racionalidade do processo judicial para o processo legislativo. Em

51
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

colunas passadas, por exemplo aqui,3 aqui4 e aqui,5 já se criticou a tentativa de


impingir uma excessiva rigidez à marcha legislativa, com apego a tecnicismos
procedimentais que desconsideram a natureza política da formação da vonta-
de legislativa, e servem muito mais como mero pretexto para que os vencidos
no debate político reabram a discussão na esfera judicial. Tomara que a decisão
a ser tomada na ADI nº 6.696 não caia nessa armadilha, decidindo contraria-
mente à CF, cuja ratio foi justamente simplificar o processo legislativo para
permitir que este reflita a vontade majoritária dos representantes do povo.

3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/controle-de-constitucio-
nalidade-qualidade-deliberacao-legislativa-14102020
4. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/direito-parlamentar-stf-
-20012021?amp
5. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-que-e-o-devido-pro-
cesso-legislativo-17022021

52
Cabe controle de constitucionalidade
do veto presidencial?
Não há diferença relevante entre as razões
do veto e as de emenda parlamentar,
mas a forma pode ser controlada

Com a notícia de que o PT ingressou com a ADPF n. 714 para impugnar


os vetos presidenciais lançados ao Projeto de Lei n. 1.562, de 20201 – cuja parte
sancionada resultou na Lei n. 14.019/2020, que alterou a Lei n. 13.929/2020,
que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da pandemia – prontamente
pergunta-se: cabe controle de constitucionalidade do veto presidencial?
Da primeira vez em que se discutiu o tema no STF, na questão de ordem
na ADPF n. 1,2 o então ministro Néri da Silveira reputou a impossibilidade do
controle judicial, pois o veto atacado (então pendente de deliberação junto ao
Congresso Nacional), ao constituir etapa do processo legislativo, estaria reser-
vado à esfera interna corporis. Assim, não se enquadraria no conceito de “ato
do poder público” para fins do art. 1º da Lei n. 9.882/1999. Acrescentou, ainda,
que o projeto de lei, na parte vetada, não é lei, nem ato normativo suscetível de
controle concentrado, pelo que não conheceu da referida ação.

1. https://www.jota.info/stf/do-supremo/pt-quer-que-stf-suspenda-vetos-de-bolsonaro-
-contra-uso-de-mascaras-10072020
2. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=348389

53
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

De fato, o veto tem natureza constitutiva, isto é, integra o processo de for-


mação das leis. Sem a aquiescência do Chefe do Poder Executivo, impede-se
(ainda que momentaneamente) que o projeto de lei aprovado pelo Congresso
Nacional, no todo ou em parte, seja convertido em lei (art. 66, § 1º, da CF). Tal
deliberação executiva gera um incidente consistente na “devolução” da matéria
para nova apreciação por parte dos congressistas (art. 66, § 4º, da CF), que têm
a opção de manter ou não o veto presidencial.
Na segunda vez, o tema foi levado ao STF na ADPF n. 45,3 na qual o au-
tor alegava que o veto esvaziaria, em parte, a obrigatoriedade de aplicação de
recursos mínimos destinados a ações e serviços públicos de saúde, instituída
na CF. A ação acabou sendo julgada prejudicada, por perda superveniente do
objeto, pois o então Presidente enviou projeto de lei ao Congresso Nacional,
que, devidamente aprovado, trouxe norma com idêntico teor ao do dispositivo
vetado.
Não obstante o reconhecimento da prejudicialidade nesse caso, o ministro
Celso de Mello afirmou na decisão:4 “não posso deixar de reconhecer que a
ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-
-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas pú-
blicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC
29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias
governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da
República”. Assim, a partir desse obiter dictum, pareceria possível depreender
o cabimento do controle de constitucionalidade do veto presidencial.
No entanto, como se acaba de ver, o veto sempre pode ser “derrubado”
pelo voto da maioria absoluta dos deputados e senadores (art. 66, § 4º, da CF).
Como sabido, aposto o veto, o Presidente da República precisa comunicar ao
Presidente do Senado Federal, no prazo de 48 horas, os seus motivos. A partir
do recebimento dessas razões, o Congresso Nacional tem 30 dias para apre-
ciar os vetos. Assim, enquanto pendente tal apreciação, reputa-se não atendi-
do o requisito da subsidiariedade da ADPF previsto no art. 4º, § 1º, da Lei n.
9.882/1999, pois existiria “outro meio eficaz de sanar a lesividade” ao preceito
fundamental (no caso, a rejeição do veto pelo próprio Legislativo).

3. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=181935&pr-
cID=2175381
4. https://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm

54
Cabe controle de constitucionalidade do veto presidencial?

Além disso, pretender controlar as motivações do veto presidencial re-


cém-lançado equivaleria à tentativa de revisar, precocemente, a própria deci-
são legislativa ainda em curso de formação. Não há diferença substancial entre
perscrutar as razões do veto presidencial e as de uma emenda parlamentar.
Ocorre que, conforme o MS n. 32.033,5 o sistema brasileiro não admite o con-
trole jurisdicional da constitucionalidade material dos projetos de lei, isto é,
enquanto as normas infraconstitucionais estiverem em elaboração (a exceção
se limita à legitimidade do parlamentar, via mandado de segurança, para coibir
a prática de atos procedimentais incompatíveis com o devido processo legisla-
tivo constitucional). Como o veto implica mera “suspensão” do projeto de lei
(ou parte dele) até a confirmação do Legislativo, somente após essa decisão do
Parlamento terá havido a conclusão da fase constitutiva da lei.
Assim, diante do exercício regular do poder de veto, só o Legislativo po-
deria entrar no mérito desse ato, que nesse ponto seria insindicável pelo Judi-
ciário. Inclusive, por isso, entre outras razões, não se aceitou o MS n. 33.6946
que pretendia submeter ao controle concentrado o mérito do veto.
Agora, se o veto for mantido pelo Congresso Nacional, pergunta-se: não
seria mais técnico impugnar a própria lei via ADI (ou ADO), em lugar do veto
em si? Em outras palavras, por que atacar o veto (enquanto ato do processo
legislativo), quando a suposta inconstitucionalidade já residiria no texto legal
vigente (sem o trecho suprimido pelo veto, enquanto norma resultante do pro-
cesso legislativo)? Nesse caso, entende-se que mais adequado à luz do interesse
de agir (art. 17 do CPC) seria o ajuizamento das demais ações do controle con-
centrado, questionando os dispositivos normativos da lei em vigor, em lugar
de uma ADPF contra o veto presidencial que não tem cunho normativo.
No entanto, o fato é que a APDF n. 714 diverge dessas situações, na me-
dida em que se volta contra a inconstitucionalidade da aposição do próprio
veto (ato de vetar), que teria sido intempestivo. Conforme a petição inicial,7
o PL n. 1.562, de 2020, foi enviado à sanção pela Mensagem n. 7/2020, no
dia 12/06/2020, de modo que o prazo de 15 dias úteis, terminaria no dia
03/07/2020, dia em que efetivamente o Presidente lançou mão do veto em 17

5. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5290006
6. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307440276&ext=.pdf
7. https://images.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/adpf-pt-vetos-presidenciais-proto-
colo.pdf?x73076

55
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

dispositivos, igualmente publicando a Lei n. 14.019/2020. Nada obstante, no


dia 06/07/2020, houve nova publicação que ampliou o veto a mais dois dispo-
sitivos que não constaram da primeira publicação: o art. 3º-B, caput e § 5º, e
o art. 3º-F.
Por isso, segundo o PT, o Presidente da República teria abusado de seu
poder de veto por três razões: 1) a inexistência de incorreção que justificasse
a republicação, no dia 06/07/2020, pois o veto já tinha sido publicado no dia
03/07/2020; 2) a intempestividade do veto suplementar acrescido na segunda
publicação, dado que o prazo de que dispunha se encerrou no dia 03/07/2020;
e 3) a preclusão consumativa, que impediria a aposição de novos vetos após a
promulgação e publicação da lei, em violação ao preceito fundamental do ato
jurídico perfeito (art. 5º, inciso XXXVI, da CF).
Como se vê, se o Congresso Nacional eventualmente mantiver os refe-
ridos vetos adicionais, a ADPF n. 714 claramente terá atendido os requisitos
legais e constitucionais. Isso porque cabe ADPF contra lei ou “ato do Poder Pú-
blico” (seja federal, estadual, distrital ou municipal), normativo ou não, sendo,
também, cabível contra medida judicial “quando for relevante o fundamento
da controvérsia sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, in-
cluídos os anteriores à Constituição” (art. 1º, parágrafo único, inciso I, da Lei
n. 9.882). E, na manutenção do veto pelos congressistas, também restaria aten-
dida a subsidiariedade do art. 4º, § 1º, da Lei n. 9.882/1999.
Nesses termos, reputa-se possível o controle de constitucionalidade do
veto em seus aspectos formais, sobretudo a tempestividade e abrangência (ga-
rantindo, por exemplo, que o veto alcançará somente texto integral de artigo,
de parágrafo, de inciso ou de alínea, conforme o art. 66, § 2º, da CF).
Na ADI n. 1.254,8 o STF afirmou que a elaboração legislativa, na qualida-
de de processo, também está sujeita à regra da preclusão, a qual impediria a re-
tratação do veto. Se o Presidente se arrepende do veto lançado, pode articular
que o Legislativo o rejeite. Mas não há o caminho inverso: não é possível adi-
cionar um veto a destempo. O mesmo raciocínio também se aplicaria à sanção
presidencial: uma vez exercida, não caberia retratação com veto posterior. Por
essa lógica, restaria impedida a aposição de vetos sucessivos após a publicação
da lei, em qualquer caso, inclusive nas situações em que ainda houvesse saldo

8. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=385459

56
Cabe controle de constitucionalidade do veto presidencial?

no prazo do art. 66, § 1º, da CF. Assim, uma vez exercido o veto em relação a
uma proposição, nesse ato se exauriria todo o poder.
Voltando à petição inicial da ADPF n. 714, o autor avança sustentando a
inconstitucionalidade dos vetos por violação aos preceitos fundamentais do
direito à vida (art. 5º, caput, da CF) e do direito social à saúde (art. 6º, caput,
e art. 196 da CF). Registra que o Poder Executivo viria obstando a adoção de
medidas de contenção da pandemia e que os vetos impugnados impediriam o
avanço legislativo rumo à promoção de condutas cientificamente fundamen-
tadas que visariam à contenção da disseminação do vírus e a proteção coletiva
à incolumidade física dos cidadãos.
Nesse ponto, observa-se tentativa de controlar o mérito dos vetos. No en-
tanto, como já dito, por razões de ordem técnica e constitucional, é duvidoso
que seja cabível tal controle, em razão da peculiar natureza jurídico-política do
veto presidencial (equiparável a uma emenda parlamentar), além de ser discu-
tível o cabimento de ADPF, ante a possibilidade de manejo de ADI (ou ADO)
em face do texto da lei sancionada, conforme o caso.
Seja como for, a considerar pelo teor da republicação ocorrida no dia
06/07/20209 já possível antecipar que a defesa presidencial argumentará ter
havido mera “incorreção” na publicação inicial (de 03/07/2020), e não vetos
adicionais inseridos no dia 06/07/2020 como argui o autor. E mais: ainda que
eventualmente venha a ser solicitada, a comprovação desse “erro material” se-
ria difícil, sobretudo pela prática usada nos despachos presidenciais (apresen-
tação de diversas opções de minutas para assinatura). Em caso parecido (na
ADI n. 3146)10, o STF já entendeu não demonstrado o abuso nas circunstân-
cias.
No pior cenário, todo o episódio serviu para registrar o cabimento do
controle de constitucionalidade do veto presidencial em seus aspectos formais,
mas não quanto ao mérito em si (não sendo aplicável a teoria dos motivos de-
terminantes para justificar o desacerto de seu conteúdo). Além disso, sempre
após a deliberação pelo Legislativo, nunca antes, sob pena de, na linha do voto
do min. Teori Zavascki no MS n. 32.033,11 “prematura intervenção do Judiciário
em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no

9. http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-374-rep.doc
10. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=395714
11. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5290006

57
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Parlamento, além de universalizar um sistema de controle preventivo não admi-


tido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justifica-
ção plausível, a prerrogativa constitucional que detém de debater e aperfeiçoar
os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios de inconstitucionalidade”.

58
A emenda ‘supressiva de jabutis’
e o devido processo legislativo

No último dia 29, a mesa da Câmara dos Deputados ajuizou o MS nº


37.227 contra o suposto ato ilegal do presidente do Senado Federal, que te-
ria remetido à sanção presidencial os Projetos de Lei de Conversão – PLVs
nºs 15 e 17, de 2020, aprovados, respectivamente, no bojo da tramitação das
Medidas Provisórias – das MPs nº 936/2020 e 932/2020, quando deveria ter
determinado o retorno das proposições à casa iniciadora, tendo em vista que,
da deliberação do Senado Federal sobre as matérias, resultaram modificações
unilaterais supostamente de mérito por intermédio de emenda supressiva, as
quais exigiriam apreciação pela Câmara dos Deputados como requisito da
conclusão regular do processo legislativo.
Aduz a impetrante, em síntese, que os textos aprovados pela casa revisora
divergem sobremaneira da redação final enviada pela Câmara dos Deputados
ao Senado Federal. Cita que, da redação final aprovada pela casa iniciadora,
foram suprimidos artigos sob o argumento de se tratar de matéria estranha
ao texto original da medida provisória em debate e que, nesses casos, a não
devolução da matéria à casa iniciadora para apreciação das emendas supres-
sivas aprovadas pelo Senado Federal violaria o artigo 62, § 8°, c/c o artigo 65,
parágrafo único, da Constituição e o modelo de bicameralismo. Pela primeira
norma, as medidas provisórias terão sua votação iniciada na Câmara dos De-
putados; pela segunda, sendo o projeto emendado, voltará à casa iniciadora.

59
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Nada obstante a importância da temática, no mesmo dia em que foi au-


tuado houve a desistência do writ. A desistência adia a discussão do ponto
junto ao STF, mas não impede que se teçam algumas considerações sobre a
prática adotada pelo Senado Federal em diversas ocasiões, desde a decisão do
STF na ADI nº 5.127, que considerou inconstitucional, por violação ao princí-
pio democrático e ao devido processo legislativo, a inserção de emenda parla-
mentar, no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, sem
pertinência temática com o seu conteúdo originário. Tratam-se dos chamados
“jabutis” ou “contrabandos legislativos”, que já eram vedados pelo artigo 4º, §
4º, da Resolução nº 1, de 2002, do Congresso Nacional,1 muito embora sempre
houvesse dificuldades para tal controle.
Há situações em que é fácil perceber emendas dispondo sobre matérias
“totalmente estranhas”, mas há diversas situações de emendas “conexas” com
as matérias veiculadas originalmente, tornando a avaliação complexa. Como
ainda não foram estabelecidos (se é que podem sê-lo) critérios objetivos para
definir quais emendas guardam ou não pertinência temática, a avaliação do
que deve ser excluído tem sido casuística. Dentro da Câmara dos Deputados, o
próprio presidente tem impugnado de ofício. No Senado Federal, a praxe tem
sido a provocação, por parte de algum senador, sendo a decisão final submeti-
da ao plenário, mesmo que tenha que ser tudo “previamente acordado” junto
ao próprio presidente da casa (que pode pedir para um senador encampar a
iniciativa), como forma de repartir o ônus político da exclusão da emenda
“jabuti”.
Ao excluir – via emenda supressiva – matérias sem pertinência temática, o
Senado Federal desempenha o papel de casa revisora. Nessa situação, se não se
mexe no restante do texto, conforme a atual praxe senatorial, tais modificações
não retornam para a Câmara dos Deputados.
De fato, não é qualquer alteração no conteúdo do PLV que justifica o re-
torno à casa iniciadora. Somente a emenda que efetivamente modifique o mé-
rito deve implicar a devolução. A rigor, no entanto, a supressão de trechos por
ausência de pertinência temática não tem a natureza jurídica de uma emenda,
apenas “leva” esse nome, isto é, a emenda é apenas o “veículo” por intermédio
do qual se retiram tais fragmentos inconstitucionais do PLV. Isso porque tal

1. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescon/2002/resolucao-1-8-maio-
-2002-497942-normaatualizada-pl.html

60
A emenda ‘supressiva de jabutis’ e o devido processo legislativo

exclusão precisa ficar registrada na tramitação legislativa, por razões de trans-


parência e do próprio devido processo legislativo.
Seguindo por essa linha de raciocínio, existiriam dois tipos de emenda
supressiva: 1) a emenda que propõe a erradicação de uma parte da proposição
com vistas a alterar substancialmente seu mérito; e 2) a emenda destinada a
sanar o vício de inconstitucionalidade da proposição, a partir da exclusão de
“jabutis”. Nessa segunda modalidade, a emenda supressiva não implica modi-
ficação substancial ou rejeição de matéria aprovada pela casa iniciadora, mas
simples “não admissão” delas por parte da casa revisora.
Nesse sentido, inclusive, no Senado Federal, entende-se que a retirada de
emendas “jabutis” equivale ao simples “não conhecimento” delas, diante do
não atendimento dos pressupostos constitucionais, no exercício da competên-
cia prevista no artigo 62, § 5º, da Constituição. De acordo com a expressão
usada na Questão de Ordem nº 6, de 2015,2 do Senado Federal, trata-se de um
“juízo negativo de admissibilidade parcial”, cuja consequência é a de conside-
rar “não escritos” os textos que não guardam conexão com o teor originário
da medida provisória que ensejou PLV. Assim, as emendas que simplesmente
suprimem “jabutis” devem ser equiparadas a meras emendas de redação, não
ensejando o regresso à Câmara dos Deputados, conforme a decisão do STF na
ADC nº 3.
No referido julgado, o então ministro Nelson Jobim assentou-se textual-
mente que “O retorno do projeto emendado à casa iniciadora não decorre do
fato de ter sido simplesmente emendado. Só retornará se, e somente se, a emenda
tenha produzido modificação de sentido na proposição jurídica. Ou seja, se a
emenda produzir proposição jurídica diversa da proposição emendada. Tal ocor-
rerá quando a modificação produzir alterações em qualquer um dos âmbitos de
aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou espacial. Não basta
a simples modificação do enunciado pela qual se expressa a proposição jurídica”.
Vale recordar que emenda de redação é a que visa a sanar vício de lin-
guagem, incorreção de técnica legislativa ou lapso manifesto. De forma se-
melhante, pode-se dizer que a emenda supressiva de “jabutis” também é me-
ramente saneadora do vício de inconstitucionalidade. A supressão de trechos
sem pertinência temática é matéria de ordem pública e, portanto, não deveria

2. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/questoes-de-ordem/-/q/detalhe/2714

61
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

sujeitar-se a maiores discussões, nem ser remetida de volta à Câmara dos De-
putados para deliberação.
A dinâmica em comento – que, enfatize-se, vem sendo adotada pelo Se-
nado Federal em obediência à ADI nº 5.127 – também pode ser assemelhada
ao chamado “fatiamento” das Propostas de Emenda à Constituição (PECs).
Trata-se da retirada da parte controvertida de uma PEC, a partir da aprovação
de um “destaque para constituição de proposição autônoma”. Com isso, a parte
sobre a qual há consenso (a não modificada, já aprovada em dois turnos em
cada casa) é promulgada e a parte modificada pela casa revisora retorna à outra
casa sob a forma de uma nova PEC, apelidada “paralela” (recebendo a mesma
numeração, acrescida de letra do alfabeto correspondente ao expediente A, B,
C etc.). Essa solução – que evita o “pingue-pongue” ad infinitum entre as duas
casas – já foi chancelada pelo STF em diversas ocasiões (ADI nº 2.031, 2.666,
3.367 e 3.472), quando se afirmou a constitucionalidade da promulgação de
PEC objeto de tal “fatiamento”.
De forma semelhante, no caso do processo de apreciação das medidas
provisórias, a matéria objeto de emenda supressiva no Senado Federal poderá
ser objeto de nova iniciativa legislativa (no entanto, chamar de MP “paralela” é
equivocado, pois nesse caso haveria uma proposição autônoma e que seguiria
o rito do processo legislativo ordinário). Registre-se que não existe qualquer
vedação constitucional a essa hipótese, pois o objeto da emenda supressiva não
será alcançado pela irrepetibilidade do artigo 62, § 10, da Constituição.
O aparente problema dessa prática do Senado Federal em não devolver
as emendas supressivas de “jabutis” à casa iniciadora é a contrariedade ao dis-
posto no artigo 7º, § 3º, da Resolução nº 1, de 2002, do Congresso Nacional,
pelo qual: “Havendo modificação no Senado Federal, ainda que decorrente de
restabelecimento de matéria ou emenda rejeitada na Câmara dos Deputados, ou
de destaque supressivo, será esta encaminhada para exame na casa iniciadora,
sob a forma de emenda, a ser apreciada em turno único, vedadas quaisquer no-
vas alterações”.
No entanto, como já argumentado, a rigor, a exclusão de matérias sem
pertinência temática deve receber o mesmo tratamento das emendas de re-
dação, conforme o decidido pelo STF na ADC nº 3. Por mais que implique
“supressão” de texto, não tem natureza de “emenda” (mas apenas leva esse
nome), o que afastaria a aplicação da referida norma. Além disso, a não obser-
vância desse tipo de norma interna corporis do Poder Legislativo não enseja

62
A emenda ‘supressiva de jabutis’ e o devido processo legislativo

inconstitucionalidade, sobretudo quando a providência visa a justamente ga-


rantir a observância da Constituição.
No pedido cautelar formulado no MS nº 37.227, a mesa da Câmara dos
Deputados pleiteava a suspensão dos efeitos da aprovação e envio dos PLVs à
sanção, com a devolução da matéria à Câmara dos Deputados com os corres-
pondentes prazos remanescentes para tanto. Ocorre que a prestação jurisdi-
cional não pode fazer o tempo parar de correr, nem voltar atrás, e o fato é que
já não há “prazo remanescente”, pois no plano fático já escoou o lapso de 120
dias previsto no artigo 62, § 3º, da Constituição.
Além dessa impossibilidade no plano real, o acolhimento da pretensão
da impetrante acarreta o risco de a casa iniciadora voltar a inserir os “jabutis”
que tinham sido excluídos, situação que anularia o papel do Senado Federal,
na qualidade de casa revisora, de retirar emendas sem pertinência temática.
Sustentar ofensa ao bicameralismo nessa prática senatorial equivaleria a ins-
trumentalizá-lo para perverter o processo legislativo, em nome de uma “pre-
ponderância” da casa iniciadora, talvez inexistente nessa situação em que está
em questão a exclusão de “jabutis”.
Ao se debruçar sobre a presente temática por ocasião do MS nº 36.653, o
ministro Gilmar Mendes reputou que a natureza interna corporis da discussão
a tornava insuscetível, naquele momento, de controle jurisdicional, mas não
excluiu a possibilidade de reexame do tema após eventual sanção por parte
do Presidente da República. Na referida ocasião, aconselhou que as casas Le-
gislativas mantivessem “diálogo institucional a fim de encontrar soluções que
atendam aos seus anseios sobre a funcionalidade do sistema, superando, assim,
impasses como o que ora se coloca”.
Por ora, a desistência do MS nº 37.227 revela o sucesso de mais um acordo
entre as casas legislativas. Mas, como se vê, a porta da jurisdição constitucional
permanecerá entreaberta e o STF pode acabar dando uma solução que não
agrade a qualquer das partes envolvidas no processo legislativo.

63
O que é o devido processo legislativo?
Da leitura dos acórdãos do STF há
mais confusão do que luzes

Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido proces-


so legal (art. 5º, inciso LIV, da CF). A essa garantia fundamental se reconhece
um caráter dúplice: material ou substantivo (vinculado à ideia de razoabilida-
de e proporcionalidade) e processual (exigindo a adoção de ritos com previsão
legal, justos e adequados).
Como não poderia deixar de ser, o devido processo também condiciona
a própria criação legislativa, daí a expressão “devido processo legislativo”, que
aparece nos acórdãos do Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente os
que avançam no controle de regularidade do processo de produção das leis.
No entanto, a despeito de muito repetida, não existe muita clareza sobre o
que é, afinal, o devido processo legislativo, como se articula e se desdobra em
concreto. Seria um princípio? Uma regra? Uma garantia? Um valor? Uma cláu-
sula geral? Um direito fundamental de titularidade difusa? É substancialmente
diferente do devido processo legal?
Desde já, convém registrar que não há consenso na literatura e tampouco
o STF contribui para a fixação do conceito de devido processo legislativo, pa-
recendo não acolher uma única visão na sua jurisprudência.
O MS n. 20.257, de 1980, leading case quanto ao cabimento do controle ju-
dicial preventivo, em nenhum momento usou tal expressão. Os parlamentares

65
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

postulantes se limitaram a pleitear o “direito substantivo de não deliberar” as


propostas de emenda à Constituição (PECs), então em discussão.
No caso concreto, discutido à luz da Constituição de 1967, pretendia-se
obstar a tramitação das PECs n. 51 e 52, de 1980, e da Emenda n. 3 a tais
propostas, que pretendiam prorrogar o mandato dos então prefeitos, vice-pre-
feitos e vereadores. Ocorre que, pelo art. 47, § 1º, do texto constitucional com
redação conferida pela EC n. 1/69: “não será objeto de deliberação a proposta
de emenda tendente a abolir a Federação ou a República”.
Conforme o voto do ministro Moreira Alves (que abriu a divergência em
favor do entendimento hoje consagrado), a vedação constitucional se dirigia
ao próprio processamento da proposição, de modo que a inconstitucionalida-
de já existiria no próprio andamento do processo legislativo: “a Constituição
não quer – em face da gravidade dessas deliberações, se consumadas – que sequer
se chegue à deliberação, proibindo-a taxativamente” (p. 338).
A despeito de considerar cabível em tese o mandando de segurança para
tal situação, o ministro acabou denegando a ordem no mérito (pois não con-
siderou a emenda atentatória à República). Seja como for, o fato é que em mo-
mento algum se usou a expressão “devido processo legislativo”.
Ainda assim, o MS n. 20.257 é citado como referência do reconhecimento
do direito subjetivo dos parlamentares ao devido processo legislativo.
Após esse julgamento, outros se seguiram (MS n. 20.247, 20.464, 20.452,
20.471, 21.239, 21.303, 21.374, 21.754, 22.487, 22.972, 23.334, 23.565, entre
tantos outros), e o fato é que, pouco a pouco, o STF foi ampliando as hipóteses
de cabimento do mandado de segurança impetrado por parlamentares, já não
só para os casos de tramitação de PEC em suposta contrariedade às cláusulas
pétreas, mas de forma ampla, para garantir a observância das normas consti-
tucionais que regem o processo legislativo em geral.
Sobre esse uso atípico dessa ação constitucional, mais recentemente em
2002 o ministro Gilmar Mendes declarou tratar-se de uma “(…) variante da
“doutrina brasileira do mandado de segurança, que permite a utilização desse
peculiar instrumento de defesa de direitos subjetivos públicos na solução de even-
tuais conflitos de atribuições ou de conflito entre órgãos, a Organstreitgkeit do
direito constitucional alemão (Lei Fundamental, art. 93, I, n. 1)” (MS n. 24.138,
pp. 85-85).
Ainda assim, trata-se de uma construção frágil, e, como ficará mais claro
adiante, incoerente.

66
O que é o devido processo legislativo?

A ideia no sentido do devido processo legislativo como um direito dos


congressistas ficou mais clara a partir do voto-vista do ministro Celso de Mello
no MS n. 21.374, de 1992, quando defendeu que o descumprimento de normas
regimentais também entraria nessa categoria: “Os atos interna corporis – não
obstante abrangidos pelos círculos de imunidade que excluem a possibilidade de
sua revisão judicial – não podem ser invocados, com essa qualidade e sob esse
color, para justificar a ofensa ao direito público subjetivo que os congressistas
titularizam e que lhes confere a prerrogativa institucional à devida observância,
pelo órgão a que pertencem, das normas constitucionais e regimentais pertinen-
tes ao processo de atuação da instituição parlamentar” (p.108).
Usando-se a expressão “devido processo legislativo” como chave de pes-
quisa no sistema de busca de jurisprudência no STF, observa-se que o pri-
meiro acórdão a usar a expressão é de 1996: o MS n. 22.503, que traz alguns
dos entendimentos mais polêmicos quanto ao controle judicial do processo
legislativo.
Em primeiro lugar, porque fixou que não cabe ao STF conhecer das vio-
lações exclusivamente regimentais. É preciso que se registre, no entanto, que
existem vozes isoladas dissonantes (rejeitando que as normas regimentais se-
jam imunes à apreciação judicial), mas esse entendimento contrário ainda não
chegou a ser consagrado na Corte de forma ampla.
Em segundo lugar, por ter consolidado a interpretação de que a rejeição
de um substitutivo de uma proposta de emenda à Constituição (PEC) não im-
pede que se prossiga na votação da proposição originária, de modo que essa
prática não importa violação ao art. 60, § 5º, da CF (“A matéria constante de
proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de
nova proposta na mesma sessão legislativa.”), que positiva o chamado princípio
da irrepetibilidade das PECs.
A ratio dessa previsão constitucional reside em conferir alguma estabili-
dade ao processo decisório legislativo, de modo a que, em sendo tomada uma
decisão de não aprovar determinada matéria, essa decisão não seja revista den-
tro da mesma sessão legislativa. Com isso, os perdedores da discussão legisla-
tiva ficam impedidos de pressionar por uma nova deliberação imediata sobre
o mesmo assunto. A ideia é fazer com que o restante da pauta legislativa possa
avançar.
O interesse no citado MS n. 22.503 está no fato de que, para uma cor-
rente de interpretação, essa decisão autorizaria uma espécie de “burla à irre-
petibilidade”, chancelando uma tática parlamentar para aprovar determinada

67
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

proposição que já fora expressamente rejeitada. A estratégia consistiria no se-


guinte: em lugar de submeter logo o texto principal para votação, apresenta-se
um substitutivo (com alguma similaridade com a versão inicial) como “balão
de ensaio”.
Se o substitutivo for aprovado, excelente, os efeitos jurídicos serão o de
uma emenda constitucional para todos os fins (em sendo promulgada). No
entanto, se o substitutivo for rejeitado, o entendimento do STF garantiu uma
“segunda chance” de votar a proposição inicial (ou a emenda aglutinativa res-
pectiva), sob o argumento de que o descarte do acessório não poderia ser to-
mado como o do principal, ainda que ambos versem sobre a mesma matéria.
Sem entrar no mérito das críticas ao entendimento do MS n. 22.503, quem
melhor o justificou foi o então ministro Sepúlveda Pertence em seu voto-vista.
Explicou que o entendimento em contrário abriria brechas para que fossem
inseridos alguns “bodes” no substitutivo (leia-se, emendas com o objetivo de
dificultar a aprovação da proposição, inviabilizando a formação da maioria
qualificada), o que teria como consequência a fraude à iniciativa do art. 60 da
CF, já que restaria obstruída a discussão durante toda a sessão legislativa, por
obra de um substitutivo de iniciativa de um só parlamentar.
Além disso, em suas palavras: “Nem é razoável (…) espiolhar coincidências
de conteúdo entre o substitutivo rejeitado, seja com a proposta original, seja com
a emenda aglutinativa. A admissão dessa linha de raciocínio, a pretexto de dar
aplicação ao art. 60, § 5º ou ao art. 67 da Constituição, levaria à total inviabi-
lidade do processo legislativo, sempre que se tratasse de proposições complexas.
Bastaria pensar na elaboração de um Código: é óbvio que sempre haveria, no
substitutivo acaso preferencialmente rejeitado, numerosas coincidências com o
projeto inicial.” (p. 553).
Em outro trecho, com bastante lucidez, consignou a sua visão de que “O
processo legislativo é um mecanismo, em suas diversas fases, em seus diversos
incidentes, é um esforço de alcançar a maioria necessária, mediante transações e
acomodações recíprocas entre as correntes parlamentares, nas quais, muitas ve-
zes, alterações pontuais, em alguns dispositivos, mudam politicamente o destino
de uma proposta complexa” (pp. 553-4).
Subjaz à ideia do ministro a constatação de que não se poderia engessar
o procedimento legislativo somente por causa de certos pontos sensíveis que,
somados, conduziriam à rejeição do todo. Em suas palavras: “Basta, porém,
que se substituam dois ou três pontos de discórdia para que se recomponha a
perspectiva de uma maioria. Isso é do jogo parlamentar, do jogo democrático.

68
O que é o devido processo legislativo?

Lei, na democracia, é sempre a lei possível, mediante as transações recíprocas que


viabilizam a formação da maioria exigida” (p. 554).
Nada obstante, mesmo consagrando em definitivo o que se passou a cha-
mar de “direito de cada parlamentar à observância do devido processo legisla-
tivo” – com destaque para o voto-vista do ministro Celso de Mello nesse sen-
tido –, o acórdão do MS n. 22.503 não traz maiores luzes para a sua definição,
isto é, quais etapas são indispensáveis a esse devido processo legislativo.
Daí a crítica no sentido de que, ao tratar o devido processo legislativo
como um direito subjetivo do parlamentar, o STF em nada contribui para o
esclarecimento do que é essa categoria (o devido processo legislativo), que foi
usada como mero pretexto para a viabilizar o seu controle judicial.
Para evitar toda a confusão gerada por esse entendimento, teria sido mais
adequado do ponto de vista técnico que o STF tivesse reconhecido, simples-
mente, que a legitimidade para desencadear o controle jurisdicional de consti-
tucionalidade do processo legislativo é exclusiva dos parlamentares.
Como não há um prazo para a resposta judicial, esse controle preventivo
anômalo criado pela jurisprudência do STF gera ao menos dois problemas
processuais: 1) se o impetrante não é reeleito ou perde seu mandato, isso im-
plicará sua ilegitimidade ad causam superveniente; e 2) se no curso do julga-
mento, a proposição é aprovada pelo Poder Legislativo, isso acarretará a falta
de interesse de agir superveniente e perda de objeto da ação. Nos dois casos, o
writ será extinto sem resolução de mérito.
Na prática, então, esse mandado de segurança – que apenas encobre uma
“ADI anômala”, preventiva e com iniciativa excepcional – tem o simples efeito
de transferir para o STF a decisão sobre os rumos da lei in fieri ou, na melhor
hipótese, de criar uma supervisão judicial da elaboração legislativa.
Jamais se afirmou, por exemplo, que tal devido processo legislativo de-
terminaria a obrigação de atendimento de todos os pormenores da marcha
processual no Poder Legislativo. Trata-se de uma premissa errônea a de que a
aprovação das leis requer tamanho formalismo procedimental calcado unica-
mente em normas regimentais sem relevo constitucional.
Como se não bastassem todas as incongruências apontadas acima, na
ADI n. 5.127, de 2015, o STF deu um novo status ao devido processo legislati-
vo, alçando-o à categoria de “direito fundamental de titularidade difusa”. Nas
palavras da ministra-relatora, Rosa Weber, trata-se do “direito que têm todos os
cidadãos de não sofrer interferência, na sua esfera privada de interesses, senão

69
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

mediante normas jurídicas produzidas em conformidade com o procedimento


constitucionalmente determinado” (p. 32).
Vale registrar que a petição inicial da ADI n. 5.127 não sustentou a vio-
lação ao devido processo legislativo, tendo-se limitado a fundamentar a in-
constitucionalidade das “emendas jabutis” (sem pertinência temática), sob o
argumento de usurpação da competência exclusiva do presidente da República
para editar medidas provisórias.
A nova categorização do devido processo legislativo lançada na ADI n.
5.127 veio apenas 4 meses após a mesma ministra, na decisão que apreciou a
medida cautelar no MS n. 33.630, associar o devido processo legislativo sim-
plesmente à “correta concatenação” dos atos do processo legislativo no tempo
(p. 15), sem fixação da natureza desse conceito, para rejeitar a cautelar.
Já no MS n. 24.041, o devido processo legislativo apareceu com uma “ga-
rantia”, sem maiores considerações quanto à diferença que isso acarreta, já que,
na maioria das situações, ainda que isso fique só nas entrelinhas, a própria
Corte usa o devido processo legislativo como sinônimo do simples respeito aos
trâmites de aprovação previstos na Constituição, ou seja, uma inconstituciona-
lidade formal igual a todas as demais.
Por essa lógica, é supérflua, problemática e incoerente a consideração de
que o devido processo legislativo é um direito fundamental difuso.
Ainda que se pretendesse, com esse novo status de direito difuso, permitir
o controle popular do devido processo legislativo – via, por exemplo, ação civil
pública para impugnar a própria elaboração legislativa –, ter-se-ia uma ação
natimorta ou, pelo menos, inócua, porque seria ajuizada junto ao primeiro
grau de jurisdição, tendo a União Federal como ré, sendo de competência de
um juiz federal nos termos do art. 109, inciso I, da CF.
Ocorre que, em se tratando de projetos de leis em trâmite no Congresso
Nacional, a mesma pretensão com vistas a assegurar o devido processo legis-
lativo também poderia ser veiculada por parlamentar através de mandado de
segurança, tendo como autoridade coatora o presidente do Senado Federal ou
da Câmara dos Deputados, o que atrairia a competência do STF, nos termos do
art. 102, inciso I, alínea d, da CF.
Como consequência disso, incidiria o disposto no art. 1º, § 1º, da Lei n.
8.437/92: “Não será cabível, no juízo de primeiro grau, medida cautelar inomi-
nada ou a sua liminar, quando impugnado ato de autoridade sujeita, na via de
mandado de segurança, à competência originária de tribunal”. Assim, a ação

70
O que é o devido processo legislativo?

coletiva em primeira instância não serviria ao propósito de tutelar o processo


legislativo das leis em processo de formação no Congresso Nacional, porque
tutela liminar não poderia ser dada pelo juiz singular e, provavelmente, no
curso da demanda o processo legislativo seria finalizado, acarretando a extin-
ção sem mérito do processo por carência de ação.
Mesmo que não existissem tais tecnicismos processuais, o fato é que o de-
senho da Constituição claramente concentrou no STF o julgamento de ações
com vistas a discutir as pretensões de cunho eminentemente político. Difundir
essa competência para os juízes em todo o território nacional via ação coletiva
equivaleria a uma deturpação do controle dos agentes políticos e dos mais
altos representantes dos Poderes da República e acarretaria grave insegurança
jurídica.
Portanto, diferentemente dos tradicionais interesses e direitos difusos a
que se referem os arts. 81 e seguintes do Código de Defesa do Consumidor
(CDC), a defesa do devido processo legislativo durante a elaboração legislati-
va somente pode ser feita pelos parlamentares. Após a aprovação pelo Poder
Legislativo, a violação ao devido processo legislativo somente pode ser susten-
tada, no âmbito concentrado, pelos legitimados listados no art. 103 da CF para
o ajuizamento de ADI.
A defesa do devido processo legislativo em juízo individualmente ou a
título coletivo, pelos legitimados referidos no art. 82 do CDC, apenas ocorreria
de forma concreta e difusa, em nada se diferenciando da sustentação de uma
inconstitucionalidade formal veiculada incidentalmente, é dizer, sem que essa
declaração constitua o pedido principal da ação sendo mera questão prelimi-
nar ou prejudicial (como, aliás, já reconhecido na Reclamação n. 1.733).
Portanto, considerar o devido processo legislativo como um direito fun-
damental de titularidade difusa é tão inadequado quanto concebê-lo como um
direito subjetivo dos parlamentares.
Com a presente argumentação, não se pretende negar a aplicabilidade ou
a relevância do devido processo legislativo, mas simplesmente chamar a aten-
ção para o fato de que as atuais discussões sobre a sua natureza e o seu signifi-
cado estão deslocadas. É necessário restabelecer o rumo.
Desde já, é preciso abandonar as tentativas de ampliar a prerrogativa –
criada judicialmente, insista-se – dos congressistas, e só deles, não extensível
aos partidos políticos, tampouco aos cidadãos não-parlamentares, por se tra-
tar de leis in fieri.

71
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Além disso, a análise do devido processo legislativo deve supor a elabo-


ração legislativa como algo dinâmico, cuja análise demanda uma perspectiva
global, o que parece ser a chave para evitar armadilhas formalistas e tecnicis-
mos procedimentais.
Em todo caso, deve-se ter o cuidado para não transformar a revisão ju-
dicial do processo legislativo em uma manobra que sagre como vencedores
os parlamentares que perderam, na votação da Casa Legislativa, a discussão
legislativa e resistem a aceitar a decisão soberana do Poder Legislativo.
Dessa forma, deve-se rejeitar a pretensão de obter um conceito perfeito
e acabado do que é o devido processo legislativo. Cabe ao Judiciário afirmar
paulatinamente, caso a caso, especialmente com distinções, quais etapas pro-
cedimentais são indispensáveis componentes do chamado devido processo
legislativo, declarando a inconstitucionalidade dos atos normativos em sua
violação somente quando desrespeitem normas constitucionais que regem o
processo legislativo.
A literatura jurídica pode ajudar nessa tarefa de definição do devido pro-
cesso legislativo, sempre e quando se abstenha de reclamar por um controle
judicial da regimentalidade estrita, pautado em normas tão-somente regimen-
tais não previstas na Constituição, cujos problemas já foram abordados em
colunas anteriores, como aqui3 e também aqui.4
Quando à natureza jurídica do devido processo legislativo, parece ser me-
lhor visto como cláusula geral, que não termina de fornecer os critérios de sua
realização, de modo que o devido processo legislativo é um conceito complexo,
com múltiplas dimensões, e sumamente contexto-dependente.
A despeito disso, pode-se dizer que é formado por: a) algumas regras for-
mais, notadamente as constitucionais que fixam os trâmites de aprovação das
leis; b) alguns princípios, como o democrático, que normativamente exigiria
uma produção legislativa com os maiores elementos possíveis de participação
da sociedade.
No entanto, é equivocado pretender fazer caber dentro do devido proces-
so legislativo pretensões como, por exemplo, o contraditório estrito entre os

3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/controle-de-constitucio-
nalidade-qualidade-deliberacao-legislativa-14102020
4. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/direito-parlamentar-stf-
-20012021?amp

72
O que é o devido processo legislativo?

diversos lados da discussão, a ampla defesa dos futuros destinatários das dis-
posições, parlamentares “imparciais”,5 etc., que seriam garantias de um devido
processo legal no âmbito judicial, mas não no legislativo.
A grande vantagem de conceber o devido processo legislativo como cláu-
sula geral reside em garantir-lhe um conteúdo adaptável às circunstâncias em
concreto, sem o engessamento da atividade parlamentar. Como consequência
disso, seu exame pressupõe perscrutar a decisão legislativa como um todo, e
não só uma simples etapa de seu procedimento.
Enquanto não houver uma maior clareza quanto ao que realmente impor-
ta no devido processo legislativo, o STF continuará funcionando como Casa
revisora ad hoc da produção do Congresso Nacional, convertendo a judicia-
lização em verdadeira última etapa do chamado devido processo legislativo,
sem que se saiba o que isso realmente significa.

5. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/precisam-os-membros-das-cpis-ser-im-
parciais-31072020

73
Até onde vai o princípio da simetria
nos processos legislativos?
O lockdown e as linhas básicas do modelo federal
de observância compulsória pelos estados e DF

Ao julgar parcialmente procedente o pedido formulado na ADPF nº 672,


o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu aos estados, Distrito Federal
(DF) e municípios a competência para adotar medidas restritivas em seus res-
pectivos territórios, incluindo as que vêm sendo reunidas com sob a expressão
lockdown, que impõem a suspensão de atividades presenciais, de comércio, de
circulação de pessoas, etc.
Na decisão quanto à medida cautelar, tomada no dia 8 de abril de 2020,
enfatizou-se, ainda, que tais medidas seriam válidas independentemente da
superveniência de ato federal em sentido contrário (essa parte não foi repro-
duzida por ocasião do julgamento do mérito ocorrido no dia 13 de outubro
de 2020), e sem prejuízo da competência da União para estabelecer medidas
restritivas em todo o território nacional.
Embora a ADPF nº 672 tenha registrado que “a validade formal e mate-
rial de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal poderá ser
analisada individualmente”, nada afirmou sobre o procedimento para a adoção
dessas medidas restritivas.
Daí a pergunta: a simples previsão na Lei nº 13.979/2020 autoriza a de-
cretação de lockdown por ato infralegal do chefe do Poder Executivo, sem a
participação do respectivo Poder Legislativo?

75
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

A prevalecer uma resposta afirmativa, seja no plano federal, seja no plano


local, estar-se-ia abrindo uma brecha para o descumprimento da CF, que re-
serva as restrições gerais e em abstrato de direitos e liberdades fundamentais,
baseadas em calamidades ou comoção grave, ao sistema constitucional das cri-
ses (arts. 136 a 141 da CF).
É que, a rigor, somente seria possível determinar um lockdown no bojo
da decretação do estado de defesa – e, em uma leitura estrita, a restrição à li-
berdade de ir, vir e permanecer, bem como o livre exercício de trabalho, ofício
ou profissão e de atividade econômica, por exemplo, só poderiam ocorrer no
estado de sítio (art. 139 da CF).
Em todo caso, as medidas sempre estariam sujeitas ao controle (prévio,
imediato, concomitante e/ou posterior, conforme o caso) pelo Poder Legisla-
tivo.
Se no plano federal o modelo da CF é esse, parte-se da premissa de que, se
o Poder Legislativo não participa desse processo de tomada de decisão sobre o
lockdown, especialmente no âmbito local, na prática, tem-se uma autorização
para que os chefes do Poder Executivo decretem, sozinhos e individualmente,
uma espécie de “estados de defesa locais”, o que não só não conta com previsão
na CF, como também violaria o princípio da simetria que vem norteando esse
tipo de discussão no STF.
Especificamente quanto ao lockdown, há ainda quem defenda que só po-
deria ser decretado pelo presidente da República, o que é ainda mais polêmico.
Aqui, descarta-se essa opção, por ferir a autonomia federativa.
Como tudo indica que esse tema entrará na pauta do STF (o PTB já anun-
ciou que pretende judicializar essa discussão), vale a pena resgatar alguns ca-
sos em que o STF entendeu pela obrigatoriedade de reprodução do modelo fe-
deral de desenho institucional quanto à dinâmica decisória nos demais entes.
No que diz respeito ao processo legislativo estadual, a Constituição de
1988 não estabeleceu normas expressamente voltadas para a disciplina de
como deve ser conduzido o procedimento de elaboração dos atos normativos
estaduais e distritais.
Procedeu-se de forma diferente, por exemplo, em relação à Emenda
Constitucional – EC nº 1/69, cujos arts. 13, inciso III, e 200, parágrafo único,
trouxeram diretrizes para as Constituições dos estados, inclusive, permitindo
a adoção de leis delegadas e proibindo a edição de decretos-leis no âmbito
estadual.

76
Até onde vai o princípio da simetria nos processos legislativos?

O art. 25 da CF se limitou a estabelecer que “os estados organizam-se e


regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta
Constituição”. Dessa parte final, exigindo a observância de alguns elementos
da organização da União, extraiu-se o que se convencionou chamar de “princí-
pio da simetria”, construído jurisprudencialmente (embora longe de alcançar
qualquer clareza de seu comando).
Por seu turno, o art. 11 do ADCT autorizou cada Assembleia Legislativa,
com poderes constituintes decorrentes, a elaborar a Constituição do estado,
no prazo de 1 ano, contado da promulgação da CF em 05 de outubro de 1988,
obedecidos os princípios desta. Com isso, mais uma vez, reforçou-se que a
autonomia estadual ficou restrita a algumas matérias, devendo-se seguir a CF
quanto a outras.
Em razão dessa opção lacunosa da atual CF em relação ao processo le-
gislativo, em um primeiro momento, o STF chegou a duvidar que as regras de
reserva de iniciativa legislativa fossem de observância compulsória.
Tanto que, em 1989, ao apreciar a medida cautelar na ADI nº 56, o pedi-
do foi indeferido, sob o argumento capitaneado pelo ministro Célio Borja de
“falta de indicação de norma da lei fundamental que tornaria obrigatória para
os estados o comando dirigido à União”.
Somente depois, quando foram julgadas as ADI nº 120, 248, 645, 665,
805, entre outras, o STF cuidou de assentar que as regras de reserva de inicia-
tiva legislativa compõem “as linhas básicas do modelo positivo de separação de
poderes da Constituição Federal e, como tal, integram princípio de observância
compulsória pelos estados-membros” (ADI nº 766, com medida cautelar deferi-
da em 1992, e julgamento de mérito em 1998).
A lógica é a de que a reserva de matérias cuja iniciativa legislativa pertence
exclusivamente ao chefe do Executivo é medida que atende ao princípio da
separação dos poderes (CF, art. 2º).
Por isso, logo se impôs que também as normas da CF que limitam o poder
de emenda parlamentar são forçosas aos estados-membros. Nesse sentido, por
exemplo, é a ADI nº 822.
Na década de 90 e nos anos 2000, o tema foi recorrente no STF, como ates-
tam inúmeras (ADIs nº 774, 864, 1.353, 1.391, 1.440, 1.594, 1.434, 2.417, 2.314,
3.167, entre outras) – questionando, sobretudo, leis de iniciativa parlamentar
em matéria de regime jurídico de servidores públicos (maculadas, portanto, de
vício de iniciativa) –, com decisões que reiteraram o entendimento construído

77
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

no sentido de que “é de observância compulsória pelos estados-membros as li-


nhas básicas do modelo federal do processo legislativo”.
Isso significa que os estados-membros são obrigados, ou são apenas auto-
rizados, a adotar medidas provisórias? Quanto a essa controvérsia, logo quan-
do da promulgação da Constituição, os autores se dividiram, nada obstante
a redação originária da atual CF não ter trazido qualquer previsão (de modo
diverso, como já dito, da EC nº 1/69, cujo art. 200, parágrafo único, expres-
samente proibiu que as Constituições dos estados autorizassem a edição de
decretos-leis que corresponderiam às atuais medidas provisórias).
Inclusive, ao julgar o pedido de medida cautelar na ADI nº 812, em 1993,
o STF entendeu por indeferir o pedido liminar que pretendia a suspensão da
previsão da Constituição do estado do Tocantins que estabelecia as medidas
provisórias estaduais.
Na época, prevaleceu o argumento do ministro Moreira Alves: “Não ha-
vendo, na atual Constituição, a proibição de os estados-membros adotarem a
figura da medida provisória (…), não ocorrendo fortes indícios de que esse insti-
tuto atende a peculiaridades excepcionais do plano federal que impeçam seja ele
tido do modelo susceptível de inclusão no processo legislativo estadual” (p. 39).
Com isso, não se proibiu, nem se obrigou, de modo que se trata de uma
faculdade dos estados-membros e do DF a adoção de medidas provisórias no
âmbito local.
Tanto que existem estados-membros que adotaram a figura – como o
Acre (art. 52, inciso V), Maranhão (art. 40, inciso IV), Paraíba (art. 61, inciso
V), Piauí (art. 73, inciso IV), Santa Catarina (art. 48, inciso VI), Tocantins (art.
25, inciso V), etc. –, ao passo que outros não o fizeram, como o Amazonas,
Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, etc.
Depois, o advento da EC nº 5/95 cessou a discussão, ao modificar a re-
dação do art. 25, § 2º, mencionando a “medida provisória estadual” (no caso,
para vedar seu uso quanto à regulação dos serviços locais de gás canalizado).
Como se vê, essa exigência de que o modelo do processo legislativo fede-
ral seja “copiado” pelas demais esferas federativas não é tão estrita.
No mesmo sentido, não exigindo reprodução fiel ao modelo federal, cite-
-se a decisão do STF na ADI nº 825 (cujo mérito foi julgado em 2018), quanto
à constitucionalidade de iniciativa popular para proposta de emenda à Cons-
tituição (PEC) estadual.

78
Até onde vai o princípio da simetria nos processos legislativos?

Como sabido, o art. 60 da CF não previu a possibilidade de iniciativa po-


pular (prevalecendo o entendimento de que é inaplicável no plano federal, não
cabendo aplicação analógica da iniciativa popular para as leis do art. 61, § 2º,
da CF, cujo regramento se destina apenas à legislação infraconstitucional). Na
prática, a indagação da ADI versava sobre a natureza, se taxativa ou não, do rol
de legitimados do art. 60 da CF para propor uma PEC.
A despeito dos votos vencidos dos ministros Alexandre de Moraes, rela-
tor, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello, o STF entendeu que é fa-
cultado aos estados, no exercício de seu poder de auto-organização, a previsão
de iniciativa popular para o processo de reforma das respectivas Constituições
estaduais, em prestígio ao princípio da soberania popular, que contaria com
guarida no art. 1º, parágrafo único, art. 14, incisos I e III, e art. 49, inciso XV,
todos da CF.
À guisa de curiosidade, registra-se que também contam com iniciativa
popular para propor PEC estadual as Constituições dos estados do Acre (art.
53, inciso III), Alagoas (art. 85, inciso IV), Amazonas (art. 32, inciso IV), Bah-
ia (art. 74, inciso IV), Ceará (art. 59, inciso IV), Espírito Santo (art. 69), Pará
(art. 8º, inciso V), Paraíba (art. 62, inciso IV), Pernambuco (art. 17, inciso III),
Rio de Janeiro (art. 111, inciso IV), Santa Catarina (art. 49), São Paulo (art. 22,
inciso IV) e também a Lei Orgânica do Distrito Federal (art. 76).
Em resumo, o STF entendeu na ADI nº 825, a partir da divergência le-
vantada pelo ministro Edson Fachin, que o princípio da simetria não seria
obstáculo à “possibilidade de o estado ampliar as condições do exercício direto
da democracia” (p. 259).
Na construção do ministro Luiz Fux em seu voto-vista, a simples falta de
previsão no texto da CF não conduz à inconstitucionalidade dessa forma de
participação democrática (p. 285), além de considerar que o incremento da
inclusão social seria um vetor do poder público.
Por outro lado, ainda quanto ao processo de modificação das Constitui-
ções dos estados, o STF entendeu pela impossibilidade de se aumentar o quó-
rum de aprovação das respectivas PECs estaduais.
Foi o que se decidiu na ADI nº 486 (em 1997), quanto à previsão inserida,
na Constituição do estado do Espírito Santo, que estabelecera a necessidade do
voto favorável de 4/5 dos membros da Assembleia Legislativa para a aprovação
da proposta.

79
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Como sabido, no plano federal, exigem-se 3/5 dos votos dos respectivos
membros de cada Casa do Congresso Nacional (art. 60, § 2º, da CF). Com
isso, na prática, o constituinte derivado decorrente reformador do estado do
Espírito Santo tinha elevado de 60% para 80% o quórum de aprovação para as
reformas constitucionais no plano local.
Embora tenha admitido em abstrato a possibilidade de se dificultar, ainda
mais, o processo de reforma constitucional, o ministro relator Celso de Mello
expressamente limitou esse poder ao plano federal, pelo Congresso Nacional,
jamais pelos estados-membros (p. 21).
Conforme seu voto, condicionar a reforma da Constituição estadual aos
termos da norma impugnada “além de divergir dos padrões que a CF fixou (…)
culmina por tornar virtualmente imodificável a Constituição estadual, em claro
antagonismo com o postulado que admite a revisabilidade do instrumento cons-
titucional.” (pp. 30-31).
Para reforçar seu argumento, ainda afirmou: “Se se reconhecer, ao estado-
-membro, a possibilidade de agravar, ainda mais, em tema de reforma consti-
tucional, as condições fixadas pela Carta da República, mesmo em divergência
com os padrões superiormente instituídos pelo legislador constituinte originário,
tornar-se-á inevitável admitir, então, que qualquer das unidades federadas, a
pretexto de exercer sua autonomia (mesmo em conflito frontal com o modelo
federal), possa esterilizar e neutralizar, por completo, o exercício, pela Assembleia
Legislativa local, das funções constituintes decorrentes que lhe foram outorgadas
pela Constituição Federal, bastando exigir, para efeito de emenda constitucional,
a votação favorável da unanimidade dos membros do Poder Legislativo esta-
dual…!” (p. 31).
De forma semelhante, convém mencionar outra decisão importante em
matéria de processo legislativo estadual: a ADI nº 2.872, sobre a natureza do
rol, se taxativo ou não, das matérias sujeitas à lei complementar.
No caso concreto, discutia-se se dispositivos da Constituição do estado do
Piauí poderiam exigir lei complementar quanto a situações em que, no plano
federal, impõe-se apenas lei ordinária.
Na prática, tal ampliação submete mais matérias a um quórum qualifica-
do, à formação de uma maioria absoluta, o que apresenta reflexos no processo
legislativo.
Nesse julgamento, chama a atenção a divergência lançada pelo minis-
tro Menezes Direito, em cujo voto-vista afirmou: “Tenho que essa legislação

80
Até onde vai o princípio da simetria nos processos legislativos?

ordinária no âmbito federal, que dispensa o quórum mais rigoroso da lei com-
plementar, não impede, pelo princípio da simetria, que na competência dos esta-
dos-membros seja possível exigir lei complementar (…). A exigência que se faz na
Constituição Federal diz especificamente com a legislação federal, não com a le-
gislação estadual. Não me parece razoável que esse princípio da simetria chegue
ao ponto de inviabilizar a opção do constituinte estadual sobre uma das espécies
normativas disponíveis na Constituição Federal. Em que essa opção violentaria
a organização nacional? Em que essa opção atacaria algum princípio sensível do
estado nacional organizado sob a forma federativa? Em nada, absolutamente
nada.” (p. 14).
O posicionamento, como se vê, está assentado na pura ingenuidade sobre
a essência do processo legislativo (ou, ao menos, de parte dele) como jogo de
poderes e disputa entre as diversas estruturas do estado. O simples fato de se
exigir lei complementar equivale a uma “obstrução antecipada” do jogo.
O julgamento da ADI nº 2.872 se arrastou por vários anos (2005 a 2011),
entretanto, no final, acabou prevalecendo o entendimento do então relator mi-
nistro Eros Grau, no sentido de que não havia fundamento para a restrição, no
plano estadual, do processo legislativo modelado na CF.
Em 2019, o STF voltou a essa mesma discussão na ADI nº 5.003. No caso
concreto, discutia-se a constitucionalidade de dispositivos da Constituição do
estado de Santa Catarina que ampliavam as hipóteses de reserva de lei comple-
mentar presentes no plano federal.
Após tecer considerações sobre a ratio da reserva de lei complementar –
mitigar a influência das maiorias parlamentares circunstanciais no processo
legislativo referente a determinadas matérias – o relator Luiz Fux registrou que
essa opção “decorre de juízo de ponderação específico realizado pelo texto cons-
titucional, fruto do sopesamento entre o princípio democrático, de um lado, e a
previsibilidade e confiabilidade necessárias à adequada normatização de ques-
tões de especial relevância econômica, social ou política, de outro”.
Ainda em suas palavras: “A aprovação de leis complementares depende de
mobilização parlamentar mais intensa para a criação de maiorias consolidadas
no âmbito do Poder Legislativo, bem como do dispêndio de capital político e ins-
titucional que propicie tal articulação, processo esse que nem sempre será factível
ou mesmo desejável para a atividade legislativa ordinária, diante da realidade
que marca a sociedade brasileira – plural e dinâmica por excelência – e da ne-
cessidade de tutela das minorias, que nem sempre contam com representação
política expressiva” (p. 12).

81
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Desta forma, a ampliação da reserva de lei complementar, para além das


hipóteses demandadas no texto constitucional, cria um óbice procedimental
adicional e restringe a discussão de matérias cujo processo legislativo deman-
daria um processo legislativo mais célere.
Aqui, é possível perceber que o entendimento do STF estava preocupado
com a governabilidade no plano estadual.
De forma semelhante, a preocupação com a usurpação da iniciativa priva-
tiva do chefe do Poder Executivo permeou diversas decisões do STF que con-
cluíram pela aplicabilidade das regras de iniciativa privativa para a proposição
de emendas às constituições estaduais.
Como sabido, no plano federal, não se aplica o art. 61, § 1º, da CF, ao
poder de reforma da Constituição, que se sujeita exclusivamente aos limites
fixados no art. 60 da CF. Nesse sentido, por exemplo, cite-se a ADI n. 5.296.
O mesmo raciocínio rege a elaboração das normas originárias das consti-
tuições estaduais ou da Lei Orgânica do Distrito Federal, conforme evidencia-
do, por todas, nas ADIs nº 2.581 e 1.167.
No entanto, uma vez exaurido o poder constituinte originário decorrente
no plano estadual, os parlamentares ficam impedidos de propor emendas à
Constituição sobre matérias sujeitas à competência privativa do chefe do Po-
der Executivo para iniciar projeto de lei, sob pena de esvaziamento desse po-
der de iniciativa reservada.
Essa é justamente a lógica das ADIs nº 2.966, 3.930, 5.075 e 2.616, que de-
clararam inconstitucionais à luz da CF, por vício de iniciativa, emendas cons-
titucionais estaduais que tratavam de regime jurídico de servidores públicos,
em clara tentativa de constitucionalizar matérias que, a rigor, seriam condicio-
nadas ao juízo de conveniência e oportunidade do governador na propositura
de leis ordinárias estaduais.
O balanço de todos esses entendimentos do STF é o seguinte:

1) as linhas básicas do modelo federal do processo legislativo são de


observância compulsória pelos estados-membros e pelo DF, assim
entendidas as regras que dispõem sobre: reserva de iniciativa; deli-
beração (colegiada no Parlamento estadual e prevendo o checks and
balances do Poder Executivo com a sanção ou veto); quórum de vota-
ção; publicação;

82
Até onde vai o princípio da simetria nos processos legislativos?

2) não é permitido o agravamento de procedimentos delineados no pla-


no federal, notadamente a ampliação do quórum de aprovação das
espécies normativas, seja pelo aumento do próprio quórum já qua-
lificado, seja pela adição de mais matérias no rol sujeito ao quórum
qualificado;
3) os estados-membros e DF estão autorizados a ampliar as hipóteses de
iniciativa popular (e, pode-se dizer, a participação popular em geral)
no processo legislativo estadual; e
4) especificamente quanto à iniciativa para modificar a Constituição
estadual, aplica-se o art. 61, § 1º, da CF, de modo a evitar o esvazia-
mento da competência do chefe do Poder Executivo no plano infra-
constitucional.

Até momento, nenhum dos entendimentos analisados parece absurdo,


tendo restado evidenciada a preocupação da Corte em vedar a deturpação do
desenho institucional do arranjo democrático.
Mesmo com todas as críticas que poderiam ser lançadas ao princípio da
simetria, reputa-se que é necessário para o equilíbrio federativo um mínimo
de uniformidade quanto ao processo de elaboração das leis e atos normativos
no plano estadual.
Agora, quanto ao lockdown, ato de nítido caráter normativo, será preciso
aguardar o ajuizamento da ADPF já anunciada pelo PTB para discutir o proce-
dimento que estados, DF e municípios devem seguir para decretá-lo.
Quando esta coluna está sendo escrita (no dia 14 de março de 2021), a
ação ainda não foi protocolada. Seja qual for a argumentação do requeren-
te, no entanto, resta claro o papel do princípio da simetria na discussão: será
preciso um bom fundamento para justificar que no plano federal a dinâmica
decisória seja uma (exigindo a participação do Parlamento) e nas demais es-
feras federadas possa ser outra (bastando mero decreto do governante sem a
participação do Legislativo).

83
O direito parlamentar e o tema
1.120 da repercussão geral do STF
Até que ponto podem ser flexíveis
os trâmites regimentais sem passar
por cima do Estado de Direito?

Como condição de possibilidade da democracia, o Poder Legislativo des-


de sempre se caracterizou pela excentricidade de algumas das regras e costu-
mes que disciplinam o seu funcionamento e que constituem o chamado Direi-
to parlamentar, sobre o qual se passam a tecer algumas considerações gerais.
Pode-se dizer que o Direito parlamentar é ramo do Direito constitucional.
Mas, como a Constituição não esgota a disciplina de toda a atividade parla-
mentar (nem poderia fazê-lo), surgem os regimentos internos das Casas Legis-
lativas e as práticas parlamentares como verdadeiras “fontes especiais” do Di-
reito parlamentar. Naturalmente, tais normas regimentais e os usos e costumes
devem ser interpretados conforme a Constituição, pois o Direito parlamentar
obviamente está subordinado ao texto constitucional.
Como algumas normas dos regimentos internos desenvolvem preceitos
constitucionais, parte da literatura jurídica (especialmente a estrangeira) de-
fende que os regimentos internos possam ser objeto e parâmetro de controle
de constitucionalidade. Atualmente, como já explicado aqui,1 a jurisprudên-
cia do Supremo Tribunal Federal (STF) descarta essa possibilidade.

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/controle-de-constitucio-
nalidade-qualidade-deliberacao-legislativa-14102020

85
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Em resumo, a Corte não aceita a tese da inconstitucionalidade indireta,


por violação de norma infraconstitucional interposta (categoria em que seriam
enquadradas as normas regimentais), e entende que a interpretação e aplica-
ção dos regimentos internos das Casas Legislativas é matéria interna corporis.
Isso até agora, pois esse panorama jurisprudencial pode mudar, conside-
rando o reconhecimento da repercussão geral, no último dia 18 de dezembro
de 2020, quanto à possibilidade controle jurisdicional de constitucionalidade
em relação à interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas.
O leading case do tema 1.120 da repercussão geral é o RE n. 1.297.884, em
que se discute, à luz dos arts. 1º, parágrafo único, 37, caput, 58, § 2º, inciso I, e
65, todos da CF, a validade de acórdão que, em controle incidental, mediante a
interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas, declarou a incons-
titucionalidade formal do art. 4º da Lei n. 13.654/2018, o qual revogou o art.
157, § 2º, inciso I, do Código Penal (CP), alterando o crime de roubo majorado
pelo emprego de arma.
No caso concreto, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
(TJDFT) manteve a sentença que aplicou na dosimetria da pena do recorren-
te, a majorante de uso de arma, que permite o aumento de pena de 1/3 até à
metade. O TJDFT alegou supostos vícios no processo legislativo do Projeto de
Lei do Senado – PLS n. 149, de 2015,2 que originou a Lei n. 13.654/2018, daí a
inconstitucionalidade do art. 4º, que já tinha sido reconhecida pelo Conselho
Especial desse TJ desde 2018.3
O vício formal no processo legislativo que o TJDFT sustenta existir con-
sistiria na inserção a posteriori, pela Coordenação de Redação Legislativa
(CORELE)4 do Senado Federal, do referido dispositivo revogador (que resul-
tou no art. 4º da Lei n. 13.654/2018) no PLS n. 149, de 2015, o qual foi objeto
de aprovação em caráter terminativo perante Comissão de Constituição e Jus-
tiça – CCJ.

2. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/120274
3. https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/informativos/2018/informativo-de
-jurisprudencia-n-382/revogacao-do-inciso-i-do-ss-2o-do-artigo-157-do-codigo-penal-
2013-erro-na-publicacao-do-ato-normativo-revogador-2013-inconstitucionalidade-for-
mal
4. https://www12.senado.leg.br/institucional/estrutura/orgaosenado?codorgao=8943

86
O direito parlamentar e o tema 1.120 da repercussão geral do STF

Tal artigo (que figurava no texto inicial do PLS n. 149, de 2015,5 como art.
3º) e foi efetivamente aprovado perante a CCJ, por um erro material, não cons-
tou da publicação do Diário do Senado Federal n. 171, de 10 de novembro de
20176 (deveria ter figurado na página 142), nos termos do que determina o art.
91, § 2º, do Regimento Interno do Senado Federal (RISF).7 A redação “correta”
foi disponibilizada no dia 20 de novembro de 2017.8
De acordo com a argumentação do TJDFT, por essa divergência entre o
texto efetivamente aprovado pela CCJ e o texto publicado no Diário do Senado
Federal, teria restado prejudicada a faculdade de deliberação dos demais parla-
mentares (sobretudo os que não participaram dos debates e da votação perante
a CCJ), notadamente quanto à possibilidade de interposição do recurso pre-
visto no art. 91, §§ 3º e 4º, do RISF (cujo fundamento é o art. 58, § 2º, inciso I,
in fine, da CF), de 1/10 dos senadores dirigido ao presidente do Senado, para
apreciação da matéria pelo plenário da Casa.
Na decisão do TJDFT, consta: “Embora se possa alegar que mesmo com a
publicação do correto texto final da CCJC não há certeza de que seria interposto
recurso pelos demais Senadores, fato é que uma fase do processo legislativo foi su-
primida, o que não se confunde com matéria interna corporis, em clara violação
aos arts. 58, § 2º, inc. I, da CF e 91 do RISF.”.
Como se vê, definitivamente, o leading case escolhido pelo STF para o
tema 1.120 da repercussão geral não é o melhor pano de fundo para discutir
a possibilidade de controle jurisdicional de constitucionalidade em relação à
interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas.
Em primeiro lugar, porque esse não é o tema do caso concreto (não está
em questão a interpretação de normas regimentais). O acórdão do TJDFT
confunde um erro material de publicação (comum no Poder Legislativo, no
próprio Poder Judiciário ou em quaisquer órgãos da Administração Públi-
ca em geral) com a supressão de uma etapa do processo legislativo. Ou seja,
não houve problema quanto à aplicação do RISF, descumprimento de norma

5. https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3599802&ts=1593918339066&-
disposition=inline
6. https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/21167?sequencia=142
7. https://www25.senado.leg.br/documents/12427/45868/RISF+2018+Volume+1.pdf/cd-
5769c8-46c5-4c8a-9af7-99be436b89c4
8. https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7275778&ts=1593918339433&-
disposition=inline

87
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

regimental ou quebra no iter de aprovação da lei, mas mero cumprimento fa-


lho e logo corrigido pela Casa Legislativa (vide abaixo).
Em segundo lugar, porque, ainda que se considere grave o erro material da
publicação no Diário do Senado Federal, o fato é que o Ofício SF n. 1.247, de
23 de novembro de 2017 – enviado à Câmara dos Deputados,9 encaminhan-
do o PLS n. 149, de 2015, para revisão, nos termos do art. 65 da CF – sanou
tal vício, na medida em que reproduziu e deu publicidade ao texto tal como
aprovado pela CCJ, suprindo o problema anterior da publicação. A redação
correta também tinha sido inserida na tramitação desde o dia 20 de novembro
de 2017. Considerando que a irregularidade foi contornada rapidamente (e
não se tratava de vício insanável, a eventualmente atrair a aplicação da ADI n.
1.050), não há que se falar em prejuízo ao devido processo legislativo consti-
tucional.
Em terceiro lugar, porque o dispositivo cujo vício se alega constava desde
a versão original do PLS n. 149, de 2015, e foi efetivamente aprovado pela CCJ
do Senado Federal – nos termos do Parecer n. 141/2017,10 cujo primeiro pará-
grafo registra a proposta de revogação do art. 157, § 2º, inciso I, do CP. Ou seja,
não se cuida de um “jabuti” inserido por emenda (ou pela CORELE) durante
a tramitação em violação ao princípio democrático. E mais: esse dispositivo
foi mantido pela Câmara dos Deputados na qualidade de Casa revisora, re-
forçando de forma inequívoca a vontade legislativa quanto à sua previsão e
aprovação.
Em quarto lugar, porque, como efeito da decisão do TJDFT, embora esse
não seja o melhor argumento, cria-se uma antinomia parcial entre o repristi-
nado art. 157, § 2º, inciso I, do CP (aumento de 1/3 até a metade pelo “emprego
de arma”) e o art. 157, § 2º-A, inciso I, do CP (aumento de 2/3 da pena pelo
“emprego de arma de fogo”) inserido pela mesma Lei n. 13.654/2018, que re-
vogou o primeiro dispositivo mencionado.
Ora, a revogação legislativa do primeiro dispositivo veio justamente evitar
esse problema de má-técnica legislativa, ainda que tenha como consequên-
cia, criar uma lacuna normativa quanto às chamadas armas brancas e as de

9. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0z-
42mxmjbevy0h64iq68n6x1r127983.node0?codteor=1625279&filename=PL+9160/2017
10. https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7267047&ts=1593918339576&-
disposition=inline

88
O direito parlamentar e o tema 1.120 da repercussão geral do STF

brinquedo, que deve ser resolvida in bonam partem, pela inaplicabilidade de


majorante nessas situações.
Em quinto lugar, e mais importante, porque a decisão do TJDFT pretende
inaugurar um controle judicial da “regimentalidade” estrita que, em princípio,
seria direito subjetivo detido exclusivamente pelos próprios congressistas du-
rante o processo legislativo, sendo certo que nenhum deles o exerceu no caso
concreto (ou reclamou de qualquer embaraço nesse sentido via mandado de
segurança junto ao STF, por exemplo).
No Legislativo, quando o tema é realmente controvertido, por muito me-
nos do que uma divergência da publicação os parlamentares se insurgem, com
requerimentos e recursos, mas não foi o caso desta vez. Ou seja, não caberia ao
Poder Judiciário substituir a ação parlamentar, inclusive porque a aprovação
da lei faz precluir quaisquer recursos regimentais facultados aos parlamenta-
res quanto a etapas do processo legislativo, assim como o trânsito em julgado
acarreta a perda da possibilidade de se interpor recursos contra uma decisão
judicial (ou outros atos praticados no curso do processo).
Inclusive, o próprio STF entende que a aprovação da lei acarreta a per-
da superveniente de objeto dos eventuais writs interpostos por parlamentares
sustentando a violação ao devido processo legislativo (por todos, confira-se o
MS n. 20.910, cujo entendimento foi reiterado em diversas ocasiões e se man-
tém como firme jurisprudência da Corte).
Além disso, a preclusão – em suas modalidades lógica e temporal – ao
interditar a possibilidade de rediscussão das etapas de um procedimento, a
fim de evitar retrocessos e contramarchas, desempenha um importante papel
de certeza e estabilidade, concretizando a segurança jurídica no Direito, o que
não pode ser simplesmente ignorado.
Mesmo que nenhuma das razões acima convença o STF, e a Corte efetiva-
mente acolha a tese de que a divergência na publicação interna do Diário do
Senado Federal (que supostamente não corresponderia ao texto aprovado na
CCJ da Casa) macularia o processo legislativo – pelo hipotético esvaziamento
do art. 58, § 2º, inciso I, in fine, da CF) –, declarando a inconstitucionalidade
da lei dele oriunda, essa situação isolada não se presta para admitir a revisão
geral da jurisprudência consolidada do STF quanto à impossibilidade do con-
trole judicial da matéria estritamente regimental.
O presente caso do RE n. 1.297.884 é, no máximo, de uma distinção (dis-
tinguishing), mas não de superação (overruling) do entendimento do STF nessa

89
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

matéria. Ou seja, a Corte até poderia dar provimento ao recurso in concreto,


mas em consideração exclusiva às circunstâncias fáticas nele envolvidas, sem
aprovar uma tese inovadora subvertendo a que vige hoje.
Em outras palavras, o STF deveria manter a sua posição de que a inter-
pretação e aplicação dos regimentos internos das Casas Legislativas é matéria
interna corporis – porquanto a que melhor atende os valores constitucionais
de modo geral, em especial a separação de poderes (art. 2º da CF) e a sobe-
rania do Parlamento –, só admitindo o controle em caso de abusos, como já
sugerido aqui.11 A regra geral continuaria sendo o não cabimento do controle
judicial da regimentalidade.
No entanto, o fato de o ministro Dias Toffoli ter ficado vencido12 quanto à
reafirmação da jurisprudência consolidada do STF no sentido da impossibili-
dade do controle jurisdicional em relação à interpretação de normas regimen-
tais das Casas Legislativas dispara o alerta quanto ao perigo de vir mais uma
decisão do STF equivocada em matéria de controle do processo legislativo.
Basta recordar do julgamento da ADI n. 4.029, quando o STF teve que
voltar atrás logo no dia seguinte, modulando os efeitos de sua decisão.13 Na
época, a AGU teve que peticionar imediatamente para informar à Corte que,
com sua decisão, mais de 500 leis convertidas sem a análise prévia da comissão
mista do art. 62, § 9º, da CF, seriam declaradas inconstitucionais.
O episódio deixou patente que, por vezes, a Corte não é consciente do
impacto de suas decisões face à realidade do Parlamento. E não se pode per-
doar uma Corte constitucional que não sabe o que faz ou que não tem a exata
dimensão de suas consequências.
O mesmo se diga quanto à decisão monocrática do ministro Luiz Fux,
no MS n. 31.816, que considerou inconstitucional a deliberação aleatória dos
vetos presidenciais pendentes de análise legislativa no Congresso Nacional,
determinando a apreciação em ordem cronológica dos mais de 3 mil vetos que
aguardavam deliberação na época do julgamento.

11. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/controle-de-constitucio-
nalidade-qualidade-deliberacao-legislativa-14102020
12. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=458262&ori=1
13. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2012/03/08/supremo-volta-atras-e-deci-
de-que-mps-precisam-passar-por-comissao-mista-so-a-partir-de-agora

90
O direito parlamentar e o tema 1.120 da repercussão geral do STF

Em boa hora, tal decisão não foi referendada pelo plenário e um dos
argumentos do redator do acórdão, o ministro Teori Zavascki, foi justamente
o de que o entendimento da cautelar sujeitaria “à declaração de inconstitucio-
nalidade formal todas as deliberações do Congresso Nacional tomadas desde
que se venceu o prazo do mais antigo dos vetos pendentes de apreciação, que,
segundo informam os autos, ocorreu há cerca de 13 – treze – anos” (p. 35).
Também essa ocasião reforça a percepção de que o STF tem pouca fami-
liaridade com o dia a dia do Poder Legislativo. A falta de um conhecimento
mais aprofundado sobre as práticas parlamentares reais cobra sua fatura para
a própria Corte e gera distorções no Congresso Nacional: simplesmente não
se pode exigir do processo legislativo o mesmo grau de formalismo presente
em um processo judicial.
É impraticável determinar a observância estrita, em 100% das vezes, de
todos os requisitos regimentais do processo legislativo. Além disso, a falha em
alguns deles não necessariamente deve redundar em inconstitucionalidade da
lei produzida, ao menos não em todos e quaisquer casos.
É precisamente nesse ponto aonde se queria chegar: o caráter flexível do
Direito parlamentar, sobretudo das normas regimentais. No que diz respeito
à atividade essencialmente legislativa, os regimentos internos desempenham
uma função essencial: dirigir os procedimentos, facilitar a iniciativa e regular
os diversos trâmites até a aprovação das leis. Essas regras impulsionadoras do
processo legislativo, no entanto, por vezes são acessórias ou meramente ins-
trumentais (estão a serviço da política). O procedimento legislativo mínimo
é o que está previsto na própria CF e em algumas normas regimentais, mas
não todas.
Com isso, não se pretende afirmar que os regimentos internos das Ca-
sas Legislativas sejam meras recomendações, orientações ou diretrizes não
vinculantes. Mas não se pode negar que algumas de suas disposições são ma-
nifestação do chamado “direito flexível”. Por mais que pareça um disparate, é
essa natureza dispositiva dos regimentos internos o que garante as condições
para o exercício da atividade parlamentar. Daí a constitucionalidade e legiti-
midade do acordo de líderes (RISF, art. 412, inciso III), por exemplo.
A autonomia do Poder Legislativo se traduz na competência para aprovar
suas próprias normas regimentais, e também para modificá-las, tendo como

91
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

único limite a própria Constituição. Como já dito aqui,14 os regimentos não


engessam nem impedem a tomada de decisões colegiadas em outro sentido
hic et nunc. O tempo e a lógica da política são diferentes dos do Direito, os
princípios que regem o processo legislativo são distintos do formalismo que
marca o processo judicial.
A flexibilidade do Direito parlamentar pode ser verificada, por exemplo,
pela quantidade de normas – inclusive de calado constitucional – que regem
o processo legislativo e outras atividades no Congresso Nacional que não vêm
sendo cumpridas desde o início da pandemia.
As particularidades do Direito parlamentar, portanto, consistem não so-
mente na existência desse sistema de fontes próprio, mas também nessas duas
características essenciais: 1) as regras regimentais não podem ser interpretadas
de modo a impedir ou obstaculizar desproporcionalmente as faculdades par-
lamentares, notadamente as que têm assento constitucional, como a função de
aprovar leis; e 2) os usos e costumes parlamentares têm um peso maior do que
em outros ramos do direito. Por essa razão, também não se pode presumir que
qualquer falha procedimental – principalmente a não impugnada – macularia
a formação da vontade legislativa.
As situações em que essas características do Direito parlamentar afrontam
o Estado de direito é uma questão em aberto, que somente pode ser respon-
dida caso a caso, diante das peculiaridades fáticas em concreto. Desde logo,
quanto à discussão do citado RE n. 1.297.884, aqui se entende que não houve
macula que enseje a declaração de inconstitucionalidade do art. 4º da Lei n.
13.654/2018.
Além disso, usar o referido caso para admitir um controle judicial amplo
e geral sobre a interpretação e aplicação dos regimentos internos das Casas Le-
gislativas equivale a uma má-compreensão do papel dessas normas na ativida-
de parlamentar e revelaria, mais uma vez, o equívoco com que o STF concebe
o processo legislativo, na linha dos casos já comentados acima (ADI n. 4.029
e MS n. 31.816).
Então, fica a chamada de atenção para a decisão que o STF tomará no
tema 1.120 da repercussão geral. O leading case escolhido simplesmente não
guarda correspondência com a tese de fundo propalada: não está em discussão

14. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/controle-de-constitucio-
nalidade-qualidade-deliberacao-legislativa-14102020

92
O direito parlamentar e o tema 1.120 da repercussão geral do STF

uma questão de interpretação de normas regimentais, mas sim qual deve ser a
magnitude de uma falha na publicação interna (corrigida rapidamente) para a
higidez do processo legislativo constitucional.
Esclarecido tudo isso, espera-se que a Corte – independentemente do
provimento ou não do RE n. 1.297.884 – mantenha sua firme jurisprudên-
cia no sentido de não aceitar a inconstitucionalidade indireta, por violação
de normas regimentais interpostas (que não reproduzem o texto da CF), e de
entender que a interpretação e aplicação dos regimentos internos das Casas
Legislativas é matéria interna corporis. Do contrário, em sendo admitido de
forma indiscriminada, o controle da regimentalidade das leis causará enorme
insegurança jurídica e tem tudo para não dar certo.

93
Enrolled Bill Doctrine (EBD)
O controle judicial das normas regimentais
no processo legislativo nos Estados
Unidos e suas lições para o Brasil

No último dia 14 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou


o julgamento do tema 1.120 da repercussão geral (comentado em coluna pas-
sada),1 tendo-se fixado a seguinte tese: “Em respeito ao princípio da separação
dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal, quando não caracteri-
zado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo,
é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à inter-
pretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas
Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis.”.
O julgamento contou com uma pequena ressalva do ministro Gilmar
Mendes, para quem “(…) o controle constitucional das normas regimentais pode
ocorrer quando houver violação direta ao texto constitucional, considerando-se
como parâmetro de controle toda a Constituição, e não somente as normas per-
tinentes ao processo legislativo”.
Seja como for, a tese aprovada representa um importante endosso à dou-
trina dos atos interna corporis e joga uma pá de cal quanto às pretensões de

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/direito-parlamentar-
-stf-20012021

95
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

ampliar o controle judicial (que já foi uma criação jurisprudencial, como res-
saltado aqui)2 para alcançar a regimentalidade do processo de elaboração das
leis no Brasil.
Reafirmou-se, assim, a tradicional jurisprudência do STF que admite o
controle do processo legislativo somente nas situações em que se alega viola-
ção de normas constitucionais.
Nesse sentido, o sistema brasileiro se assemelha ao entendimento adotado
pela Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS, na sigla em inglês), em que
prevalece a chamada Enrolled Bill Doctrine (EBD), pela qual a assinatura do
projeto de lei pelos presidentes da House of Representatives (HR) e do Senado
representa um atestado oficial de que a proposição atendeu regularmente a
todas as exigências procedimentais.
De acordo com a Constituição dos Estados Unidos (Artigo I, Seção 7):
“Todo projeto de lei que tiver sido aprovado na Câmara dos Representantes e no
Senado, deverá, antes de se tornar uma Lei, ser apresentado ao Presidente dos
Estados Unidos (…)”.
No processo legislativo norte-americano, aprovado um projeto de lei na
primeira Casa Legislativa, o clerk (que equivaleria a um servidor da carreira
legislativa) prepara o engrossed bill, que representa a versão oficial do projeto
de lei aprovado pela respectiva Casa para ser enviado à Casa seguinte.
Deve-se registrar que lá vige o bicameralismo puro ou simétrico no pro-
cesso legislativo ordinário, ou seja, as duas Casas precisam aprovar exatamente
o mesmo texto, sem a prevalência da Casa iniciadora (no Brasil, essa dinâmica
só é aplicável para a reforma constitucional, nos termos do art. 60, § 2º, da CF).
Assim, após aprovação nas duas Casas do Congresso americano, o clerk
prepara o enrolled bill, que é a versão final do projeto de lei aprovado pelas
duas Casas Legislativas. No Brasil, tais documentos (o engrossed bill e o enrol-
led bill) se intitulam indistintamente como “autógrafo”.
O enrolled bill é assinado pelos presidentes da Câmara dos Representantes
(HR) e do Senado para, na sequência, ser enviado ao chefe do Poder Executivo.
Pela EBD, em sendo aceitas como autênticas pelos tribunais, tais assina-
turas conferem uma presunção absoluta de constitucionalidade do processo

2. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-que-e-o-devido-pro-
cesso-legislativo-17022021

96
Enrolled Bill Doctrine (EBD)

legislativo, tornando-o imune ao controle judicial que pretenda perscrutar


questões procedimentais durante a elaboração da lei.
A EBD foi adotada em 1892 no caso Marshall Field & Co. v. Clark – 143
U.S. 649, no qual Marshall Field e outros importadores contestavam uma lei
aduaneira (Tariff Act de 1º de outubro de 1890) sob o argumento de que a
versão enrolled era diferente da que foi aprovada pelo Congresso (faltava uma
seção, omitida na versão final), com base nos relatórios das comissões e outros
registros ou materiais legislativos.
Ao julgar a matéria, a SCOTUS entendeu que os tribunais não podem
questionar a validade do enrolled bill, pois as assinaturas dos presidentes cons-
tituem um atestado conclusivo de autenticidade, e não seria dado contrastar
tal documento oficial com outros documentos preparatórios para verificar se
neles figura exatamente o que foi assinado.
De acordo com a argumentação tecida nesse julgado, seria muito remota a
hipótese de o presidente Câmara dos Representantes e o presidente do Senado
imporem ao povo uma lei que nunca foi aprovada pelo Congresso. Isso – segue
o argumento – sugeriria uma conspiração deliberada envolvendo presidentes,
comissões e funcionários do Congresso, e uma ação judicial para investigá-los
sobre essa base seria proibida pela separação de poderes.
Argumentou-se também que admitir tal controle judicial (e relativizar a
presunção de regularidade do enrolled bill) criaria um estado de incerteza, au-
mentaria a litigiosidade e minaria a confiança nas leis. Foi dito, ainda, que os
diários legislativos são elaborados em meio à confusão dos trabalhos legislati-
vos e são muito mais propensos a conter erros do que o documento assinado
pelos presidentes, o que dá fé à sua validade.
Desde então, continua vigente o entendimento fixado em Marshall Field
& Co. v. Clark, que não foi objeto de overruling expresso pela SCOTUS, tendo
sido endossado outras vezes (embora seja verdade que não é cumprido por
diversas cortes estaduais lá).
Vale registrar que a EBD remonta à tradição britânica, que a adotou em
1616 (em The King v. Arundel, 80 Eng. Rep. 258). No direito inglês, as leis apro-
vadas pelo parlamento precisavam ser chanceladas pelo rei e marcadas com
seu selo (a promulgação). O ato régio não poderia ser contestado, e o que quer
que tivesse acontecido durante as deliberações parlamentares não teria impor-
tância.

97
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Voltando para os Estados Unidos, em 1990, a SCOTUS afastou a EBD


em United States v. Munoz-Flores, 495 U.S. 385, por se tratar de questão cons-
titucional. No caso, alegava-se a violação da Origination clause (pela qual os
projetos que visem a aumentar a receita devem iniciar pela Câmara dos Re-
presentantes), pois a norma então em discussão teria começado a tramitar no
Senado.
No caso em concreto, a corte acabou considerando que os valores arreca-
dados com as multas instituídas pela norma não iam para o Tesouro (seriam
destinadas a um fundo para reparação das vítimas dos crimes), daí a inexistên-
cia de violação da Origination clause.
No entanto, a SCOTUS avançou na argumentação de que a corte poderia,
sim, verificar o cumprimento da Origination clause, inclusive a partir dos do-
cumentos legislativos (também tendo rejeitado que o caso se tratasse de uma
questão política). Ou seja, lei aprovada em violação da Origination clause não
estaria mais “imune” ao escrutínio judicial.
Em lugar de afirmar a falta de confiabilidade dos registros parlamentares
como feito em Marshall Field & Co. v. Clark (argumento que talvez já não faça
mais muito sentido, dados os avanços tecnológicos da documentação legislati-
va), a Corte evoluiu para simplesmente atribuir maior valor probatório da en-
rolled bill (em comparação com as evidências de outros registros legislativos).
No referido julgado de 1990, é curioso registrar o voto vencido do justice
Scalia, para quem a corte não deveria ir além do próprio enrolled bill, em res-
peito às Casas Legislativas e para não produzir incertezas no Estado de direito,
reivindicando a aplicação do Marshall Field & Co. v. Clark.
De fato, a EBD compartilha com o textualismo (que teve no referido jus-
tice um de seus maiores defensores) a visão de que os materiais preparatórios
(legislative history) não devem ter qualquer peso na determinação da validade
ou do significado da lei.
O justice Stevens também chegou a se manifestar no sentido de que a Câ-
mara dos Representantes seriam um fórum melhor do que o Judiciário para
a resolução de disputas sobre a Origination clause. Mas essas posições foram
deixadas de lado.
A literatura diverge sobre o significado de United States v. Munoz-Flores.
Para alguns, teria implicado a superação de Marshall Field & Co. v. Clark, mui-
to embora prevaleça o entendimento de que simplesmente limitou a EBD à
violação das normas regimentais, tendo afastado a EBD nas situações em que

98
Enrolled Bill Doctrine (EBD)

a discussão envolva dispositivo constitucional (de forma semelhante ao que


ocorre aqui no Brasil).
Em 2006, mais um caso reacendeu a discussão sobre a EBD: o Deficit Re-
duction Act (DRA) de 2005, que foi impugnado por não ter sido aprovado pe-
las Casas da mesma forma, como exige o Artigo I, Seções 1 e 7, da Constituição
dos EUA (nos moldes do bicameralismo puro ou simétrico comentado acima).
A diferença entre uma versão e outra residia em um único artigo. O texto
aprovado pela Câmara aprovou o reembolso de despesas médicas pelo Me-
dicare pelo prazo de 36 meses, ao passo que o Senado limitou o prazo a 13
meses. Embora pareça pequena, essa diferença remontaria à casa dos bilhões
de dólares a (não) serem despendidos pelo referido programa de assistência à
saúde americano.
Ao preparar o enrolled bill, o clerk do Senado “corrigiu” a discrepância,
mantendo o valor menor aprovado pelo Senado, em suposta violação das nor-
mas regimentais, pelas quais somente a aprovação de uma resolução das Casas
Legislativas (concurrent resolution) seria capaz de corrigir o texto de um proje-
to de lei já aprovado nas duas Casas.
Diz-se que os presidentes da Câmara, do Senado e o presidente George
W. Bush tinham plena ciência do “vício” e mesmo assim assinaram o enrolled
bill. No entanto, nenhuma das tentativas de impugnar a constitucionalidade do
DRA teve êxito, por aplicação da EBD, podendo-se concluir por sua vitalidade,
passados quase 120 anos.
É bem verdade que alguns tribunais locais não aplicam a EBD, conferindo
ao enrolled bill uma presunção apenas prima facie de autenticidade, que ad-
mitiria relativização diante de “evidências” extraídas a partir de documentos
legislativos. Esse dado, inclusive, é usado por parte da literatura para defender
a necessidade de superação da EBD (já que o escrutínio judicial da tramitação
legislativa, quando admitido, não trouxe os efeitos catastróficos cuja ocorrên-
cia é sustentada pelos defensores da EBD).
Os detratores criticam a EBD, entre outras acusações, por supostamente
servir de incentivo a que os legisladores desrespeitem as regras do processo
constitucional de formação das leis. Por outro lado, seus partidários advogam
que o afastamento da EBD traria um ônus indevido aos legisladores (de guar-
dar registros examináveis pelos tribunais) e complicaria e aumentaria os cus-
tos dos litígios.

99
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Sem pretender entrar no mérito do argumento quanto às consequências


para a elaboração legislativa (ou para os tribunais), o cerne da questão diz
respeito à separação de poderes e à soberania do Poder Legislativo, que pode
e deve atuar dentro das margens dadas pelo texto constitucional, e é livre para
tomar decisões na falta de determinações expressas da Constituição.
Ao aprovar seus regimentos internos, por exemplo, o parlamento também
está interpretando a Constituição, definindo o que legitimamente atende as
disposições constitucionais para fins de reputar legítimo o processo legislativo
ou outras decisões legislativas.
É por isso que, nas situações em que a Constituição não foi formalmente
descumprida, não cabe o escrutínio judicial, sob pena de converter o Poder
Judiciário em único intérprete da Constituição, retirando qualquer autonomia
do Legislativo para fixar suas rotinas e entendimentos. Por vezes, podem não
ser os melhores, mas não implicam inconstitucionalidade ensejadora de con-
trole judicial.
Voltando para o Brasil, a aprovação da tese quanto ao tema 1.120 da re-
percussão geral deve ser comemorada, mas, infelizmente, não deverá resolver
os velhos problemas da falta de coerência da aplicação da doutrina dos atos
interna corporis. Embora esse defeito também se verifique nos EUA (como se
acaba de ver, a aplicação EBD nos EUA também é problemática), aqui a ques-
tão é agravada pela precária fundamentação das decisões judiciais.
A má técnica vai desde a dificuldade em determinar o que de fato vincula
(a rigor, é a ratio decidendi e não a tese jurídica final aprovada, sendo necessá-
rio separar o que foi determinante do que foi mero obiter dictum), às técnicas
de distinguishing, entre outras falhas que dificultam a consolidação do sistema
de precedentes no país.
Mesmo com a tese, não parece difícil antever que partidos políticos e par-
lamentares continuarão levando ao Judiciário questões jurídicas interna corpo-
ris do Congresso Nacional e parece duvidoso que o STF vá se furtar a realizar
o controle só porque foi aprovada uma tese que diz que “é defeso ao Poder
Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido
e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas”.
Não restam dúvidas de que essa tese será excepcionada em casos futuros
pelo próprio STF. A questão será saber quais são os fatos considerados rele-
vantes, e, sobretudo, se são suficientes para justificar a não observância do
entendimento consolidado. A devida justificação do distinguishing para avan-
çar no controle sobre atos interna corporis se impõe, justamente para evitar a
experiência da EBD nos Estados Unidos.

100
Qual é o alcance do princípio
da irrepetibilidade de PECs?
Inexistência de uma solução para o
impasse é o pior dos cenários

Infelizmente, não foi em 2021 que se resolveu uma interessante questão


envolvendo a aplicação do princípio da irrepetibilidade quanto às propostas de
emenda à Constituição (PECs).
Como sabido, assim dispõe o art. 60, § 5º, da Constituição Federal: “A
matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada
não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”.
A dúvida envolvendo esse dispositivo consiste em saber qual é o seu al-
cance, é dizer se a aplicação do referido dispositivo constitucional se limita
à “mesma Casa” (em que houve a deliberação) ou se vincula as duas Casas
Legislativas.
Dito com outras palavras, trata-se de fixar se o referido dispositivo cons-
titucional (que fala em “nova PEC”) também valeria “para trás”, isto é, para
PECs anteriores já aprovadas na referida Casa Legislativa e ainda em tramita-
ção na outra Casa.
Para a visualização do problema em concreto, imagine-se uma PEC “A”
rejeitada em uma das Casas Legislativas (por exemplo, na Câmara dos Deputa-
dos). Isso impediria a tramitação de outra PEC “B” sobre a mesma matéria no

101
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Senado Federal? No caso em que tal PEC “B” já tivesse sido objeto de delibera-
ção na Câmara dos Deputados anteriormente à rejeição da PEC “A”?
A resposta não é óbvia, nem trivial. Na literatura constitucional, não se
encontram comentários específicos que respondam a essa indagação. (Se al-
gum leitor encontrar, favor entrar em contato com esta colunista). Durante
a tramitação na Assembleia Constituinte, o dispositivo do art. 60, § 5º, não
recebeu sequer uma só emenda.
A depender da interpretação que se adote sobre o seu alcance, haverá pro-
fundas consequências para a autonomia das Casas Legislativas.
Em coluna passada,1 já se explicou que a ratio dessa norma constitucional
é voltada para conter os perdedores de uma deliberação legislativa e permitir
que se avance na discussão dos demais temas da pauta legislativa. Na mes-
ma ocasião, explicou-se o entendimento sumamente importante que consta
do MS nº 22.503, pelo qual o STF entendeu que a rejeição do substitutivo não
atrai a incidência do referido art. 60, § 5º.
Em outra oportunidade,2 igualmente se aproveitou para apresentar a con-
firmação do bicameralismo no Brasil, segundo o desenho institucional adota-
do na Constituição. Restou esclarecido que, especificamente em se tratando
do processo de reforma da Constituição, por força do art. 60, § 2º, adotou-se o
chamado bicameralismo puro ou simétrico, pelo qual as duas Casas Legislati-
vas precisam estar de acordo, sem a preponderância da Casa iniciadora sobre a
Casa revisora (como acontece no processo legislativo ordinário).
A lógica do sistema bicameral obedece à clássica preocupação da limita-
ção do poder pelo poder como meio para evitar o arbítrio e proteger a liberda-
de. A existência de uma segunda Casa Legislativa na arquitetura constitucional
acrescenta um ingrediente de complicação no equilíbrio entre os Poderes, de
modo a proporcionar a desejável moderação dos Parlamentos.
Nesse sentido, o Poder Legislativo, embora uno, é o único poder que surge
como expressão de dois órgãos diferentes, já que toma suas decisões a partir de
dois corpos representativos distintos, absolutamente separados, o que significa
a existência de pontos de vista e interesses completamente diferentes.

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-que-e-o-devido-pro-
cesso-legislativo-17022021
2. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/para-onde-foi-o-bicame-
ralismo-no-congresso-nacional-02092020

102
Qual é o alcance do princípio da irrepetibilidade de PECs?

Com isso, naturalmente, é enorme o potencial para os conflitos de inte-


resses entre as duas Casas Legislativas, especialmente em matérias polêmicas.
Daí a pergunta: o que fazer se Câmara dos Deputados e Senado Federal não
estão de acordo?
Sob essa perspectiva, pode-se afirmar que a Constituição brasileira não
trouxe mecanismos para a resolução de impasses entre as duas Casas Legisla-
tivas. A falta de uma disposição com esse objetivo se sente tanto em relação ao
art. 60, § 5º, quanto em relação ao respectivo § 3º, que trata da promulgação
de PECs.
É por isso que, por exemplo, não se tem uma resposta quanto ao desfecho
da PEC 91/2019, que altera o procedimento de apreciação das medidas pro-
visórias pelo Congresso Nacional. Como sabido, a referida PEC foi aprovada
pelas duas Casas Legislativas desde o dia 12 de junho de 2019 (o assunto foi
noticiado aqui)3, mas ainda aguarda a promulgação.
Sem entrar no mérito sobre a conveniência e oportunidade das novas
regras – que trazem uma profunda modificação no rito de conversão em lei
das medidas provisórias, e certamente abrirão um “novo capítulo” na história
constitucional desse instrumento –, o fato é que a inexistência de uma solução
para o impasse é o pior dos cenários.
Quando a aprovação de uma PEC é ultimada na segunda Casa Legislativa,
o fato é comunicado à outra (ao seu presidente) e é convocada a sessão para a
promulgação da emenda. É o que consta do art. 203, parágrafo único, do Regi-
mento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) e do art. 369 do Regimento
Interno do Senado Federal (RISF).
Nos termos do art. 60, § 3º, da Constituição: “A emenda à Constituição
será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Fede-
ral, com o respectivo número de ordem”. Trata-se de uma sessão conjunta, de
caráter solene, com qualquer número (não há quórum), não sendo admitidas
questões de ordem, conforme o art. 56 do Regimento Comum do Congresso
Nacional (RCCN).
No caso concreto da PEC 91/2019, a Câmara dos Deputados não concorda
com o qualificativo de “emendas de redação” dado a algumas das modificações

3. https://www.jota.info/legislativo/emenda-salva-o-governo-em-pec-aprovada-no-senado-
-que-muda-tramitacao-de-mps-12062019

103
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

aprovadas pelo Senado Federal na referida PEC e entende que a matéria deve-
ria ser devolvida para a apreciação da Câmara, conforme o art. 203, caput, do
RICD, que determina que as emendas do Senado à PEC oriunda da Câmara
dos Deputados devem seguir a mesma tramitação para a aprovação (com pri-
meiro e segundo turnos).
Essa é a lógica do art. 60, § 2º, da CF, o qual somente não se aplica às
emendas de redação, conforme o entendimento adotado no âmbito da ADC
nº 3, em que o STF assentou que:
“O retorno do projeto emendado à casa iniciadora não decorre
do fato de ter sido simplesmente emendado. Só retornará se, e so-
mente se, a emenda tenha produzido modificação de sentido na
proposição jurídica. Ou seja, se a emenda produzir proposição
jurídica diversa da proposição emendada. Tal ocorrerá quando
a modificação produzir alterações em qualquer um dos âmbitos
de aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou
espacial. Não basta a simples modificação do enunciado pela qual
se expressa a proposição jurídica”.

Dessa forma, se as emendas são de redação ou não é um elemento deter-


minante para o rito a ser seguido por uma proposição.
Ocorre que não se vislumbra o que pode ser feito quando uma das Casas
diz que as emendas são de redação e a outra diverge. Não há dispositivo consti-
tucional que regule a temática, obrigando (ou não) a promulgação. Trata-se de
uma questão eminentemente política, a ser resolvida pelo diálogo institucional
entre as próprias Casas Legislativas.
Será essa uma matéria interna corporis insuscetível de controle jurisdi-
cional? A questão, estranhamente, ainda não foi judicializada, mas, mesmo
que o seja, tem toda a aparência de que, no silêncio da Constituição, o Poder
Judiciário não deveria sobrepor sua própria vontade no caso.
Voltando à questão central objeto da coluna de hoje, de um lado, tem-se a
compreensão de que o art. 60, § 5º, da Constituição, vincularia as duas Casas
do Congresso Nacional, independentemente de onde houve a deliberação.
Considerando o arsenal de proposições em tramitação (sempre há pro-
postas sobre diversos assuntos em alguma “gaveta”), dessa interpretação sur-
giria a possibilidade de uma das Casas poder interferir no andamento dos tra-
balhos da outra e, em alguma medida, “voltar atrás” quanto às suas próprias
deliberações prévias, impedindo que um aval já dado siga adiante na outra
Casa Legislativa.

104
Qual é o alcance do princípio da irrepetibilidade de PECs?

Na prática, dessa interpretação surgiria uma espécie de poder de veto, blo-


queando, ao menos por um tempo, determinada discussão. Além disso, traria
para o processo legislativo uma ratio ao estilo lex posterior, o que talvez não
combine com a dinâmica do jogo político envolvido nas leis in fieri.
Do outro lado, tem-se a interpretação de que o art. 60, § 5º, não impediria
a segunda Casa de apreciar PEC já aprovada pela primeira Casa, que já estives-
se em tramitação nessa segunda Casa, quando a primeira rejeitou outra PEC
sobre a mesma matéria.
Dito com outras palavras, se matéria semelhante já tivesse sido aprovada
pela primeira Casa em PEC precedente, que já esteja tramitando na segunda
Casa, essa PEC mais antiga não seria afetada pela rejeição de uma PEC poste-
rior pela primeira Casa, porquanto outrora já aprovada nessa Casa e em regu-
lar trâmite na segunda Casa.
Essa segunda interpretação tem a vantagem de não bloquear um debate
legislativo e, além disso, salvaguardar a autonomia das Casas Legislativas. É
possível que não solucione o problema da divergência em concreto, e o impas-
se recairia no momento da promulgação, cujo problema se acaba de comentar.
Em se tratando de PECs, não caberia a aplicação analógica do art. 67 da
Constituição, pelo qual a matéria constante de projeto de lei rejeitado poderá
constituir objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante pro-
posta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso
Nacional.
O referido dispositivo do art. 67 da Constituição relativiza a irrepetibili-
dade no processo legislativo ordinário, chamando-se a atenção para o detalhe
de que qualquer uma das Casas Legislativas (por sua maioria absoluta) pode
“destravar” o princípio da irrepetibilidade no processo legislativo ordinário.
No entanto, tradicionalmente, rejeitam-se as analogias das regras do
processo legislativo ordinário no processo de reforma da Constituição. Nes-
se sentido, por exemplo, já se rejeitou a aplicação do art. 64 (“A discussão e
votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Su-
premo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara
dos Deputados”) às PECs de iniciativa do presidente da República (art. 60,
inciso II).
O entendimento figura do Parecer nº 692/1995, da CCJ do Senado Fede-
ral, relatado pelo senador Bernardo Cabral: “2. Inexiste (…) regra escrita, na

105
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Constituição vigente, que estabeleça a obrigatoriedade do início da tramitação


legislativa das propostas de emenda à Constituição de iniciativa do Presidente
da República pela Câmara dos Deputados”.
No referido parecer, lê-se, ainda:
“10. (…) o Poder Executivo pode – sendo-lhe facultado – enca-
minhar suas propostas de emendas ao texto constitucional, ora
para a Câmara dos Deputados, ora para o Senado Federal, pois
a regra do artigo 64, que o obriga a encaminhar os projetos de lei
de sua autoria para a Câmara, é uma regra excepcional que deve
ser interpretado de forma estrita abrangendo, apenas, a hipótese
do projeto de lei, não se estendendo, por conseguinte, à hipótese da
proposta de emenda à Constituição (…)”.

Da mesma forma, afasta-se a aplicação do art. 61, § 1º, da Constituição


(que traz as matérias de iniciativa privativa do Presidente da República) para
as PECs, de modo que, no plano federal, entende-se que as PECs não estão
sujeitas às regras de iniciativa privativa. No mesmo sentido, confira-se a ADI
nº 5296.
Além disso, tampouco se aplica o art. 61, § 2º, que disciplina a iniciativa
popular, não se admitindo no plano federal a iniciativa popular em PECs. Vale
registrar que, quando expressamente prevista nas cartas estaduais, a iniciativa
popular é constitucional, como decidiu o STF na ADI nº 825.
A questão do alcance do art. 60, § 5º poderia ter sido dirimida por oca-
sião da discussão da PEC 135/2019, que foi rejeitada pela Câmara. A referida
PEC pretendia acrescentar o § 12 ao art. 14 da Constituição para dispor que,
na votação e apuração de eleições, plebiscitos e referendos, seja obrigatória
a expedição de cédulas físicas, conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas
em urnas indevassáveis, para fins de auditoria. A proposição ficou conhecida
como PEC do Voto Impresso
Conforme a interpretação quanto ao alcance do princípio da irrepetibili-
dade das PECs, poderia ter-se dado andamento à PEC 113/2015, que já tinha
sido aprovada na Câmara e estava em tramitação no Senado. Entre outras dis-
posições, a PEC 113/2015 determinava a impressão e confirmação do voto
pelo eleitor na urna eletrônica.

106
Qual é o alcance do princípio da irrepetibilidade de PECs?

Na Câmara, a matéria tinha sido aprovada como PEC nº 182-J/20074 no


dia 12 de agosto de 2015. A previsão do voto impresso figurava no art. 9º da
PEC, que acrescentava os seguintes parágrafos ao art. 14 da Constituição:
“Art. 14. …………………………………………………..
……………………………………………………….….
§ 13. No processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o re-
gistro de cada votação, que será depositado, de forma automática
e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado.
§ 14. O processo de votação não será concluído até que o eleitor
confirme a correspondência entre o teor do registro de seu voto,
após impresso e exibido pela urna eletrônica, e o voto que efetuou.
§ 15. No processo estabelecido nos §§ 13 e 14, será garantido o
total sigilo do voto.” (NR)

Tal PEC nº 182-J/2007 aprovada pela Câmara chegou ao Senado ainda em


2015, com o número PEC 113/2015 (nessa época, ainda não vigia a identifi-
cação única das proposições na Câmara e Senado, que só começou a partir de
2019,5 daí os números diferentes).
Durante a tramitação da PEC 113/2015 no Senado, foi aprovado o Re-
querimento nº 1416, de 2015, para destacar os artigos 1º ao 7º e 9º ao 11 da
PEC 113/2015 para que constituam proposta autônoma. No caso, a matéria
destacada deve ser autuada como PEC 113-A, -B, -C, -D, conforme a letra que
corresponda, sendo encaminhada para a CCJ.
Da versão original da PEC 113/2015, só o seu art. 4º (com modificações)
foi convertido em emenda, no caso, a EC 91/2016, que facultou ao detentor de
mandato eletivo desligar-se do partido pelo qual foi eleito nos 30 dias seguin-
tes à promulgação da EC, sem prejuízo do mandato, não sendo essa desfiliação
considerada para fins de distribuição dos recursos do fundo partidário e de
acesso gratuito ao tempo de rádio e televisão.
Em resumo, portanto, a proposta do voto impresso devidamente aprovada
pela Câmara segue em tramitação na CCJ do Senado, onde poderia ter sido
objeto de deliberação.

4. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1372703&fi-
lename=Tramitacao-PEC+182/2007
5. https://www.camara.leg.br/noticias/550104-projetos-terao-numeracao-unica-na-cama-
ra-e-no-senado-a-partir-de-2019/

107
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

A questão não chegou a ser problematizada formalmente em 2021, pois


não houve interesse político do Senado em pautar o voto impresso, mas fica
aqui a reflexão quanto ao alcance que deve ser dado ao art. 60, § 5º, para o futu-
ro, sempre preservando a autonomia e independência de cada Casa, principal-
mente no processo legislativo de PECs. Em se tratando da reforma constitucio-
nal, a vontade de uma só das Casas Legislativas não pode vincular a da outra.

108
É possível emendar a Constituição
via deliberação remota durante
a calamidade pública?
Em meio à pandemia, questão de fundo
do MS n. 37.059 passou despercebida

Como noticiado no último dia 13 de abril, o Ministro Ricardo Lewando-


wski negou seguimento ao mandado de segurança impetrado pelo senador
Alessandro Vieira (Cidadania-SE),1 questionando a tramitação da Proposta
de Emenda à Constituição – PEC n. 10, de 2020,2 apelidada de “PEC do Or-
çamento de Guerra”, aprovada pela Câmara dos Deputados no dia 03 de abril,
o que resultou no encaminhamento das discussões para o Senado Federal.3
Ao negar seguimento ao writ, vislumbrando se tratar de questão interna
corporis, a decisão4 deixou passar despercebido o cerne do questionamento
feito no MS n. 37.059: É possível aprovar uma PEC pelo Sistema de Delibera-
ção Remota (SDR) durante o estado de calamidade pública?

1. https://www.jota.info/stf/do-supremo/lewandowski-nega-mandado-de-seguranca-con-
tra-tramitacao-da-pec-da-guerra-13042020
2. https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2242583
3. https://www.jota.info/legislativo/aprovada-pela-camara-pec-da-guerra-segue-para-vota-
cao-no-senado-03042020
4. https://images.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/ms-37059.pdf?x73076

109
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Viu-se que o SDR5 foi desenvolvido para evitar paralisia institucional e


preencheu a importante lacuna do texto constitucional, já que a Constitui-
ção de 1988 não traz qualquer hipótese de “fechamento” do Poder Legislativo
(mesmo durante o estado de sítio, por exemplo, o Congresso Nacional funcio-
na ininterruptamente, conforme o art. 137, § 3º). Simplesmente não havia – até
então – previsão de deliberações online. Assim, é graças ao SDR que o Poder
Legislativo tem podido funcionar para colaborar com a resolução da crise
acarretada pela pandemia da Covid-19.6
Levada ao extremo, a argumentação do impetrante de que o SDR é in-
constitucional conduziria a impedir todos os trabalhos dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário por videoconferência (as próprias sessões virtuais do
Plenário do STF), o que seria um absurdo, impossível de se admitir no atual
cenário de pandemia e distanciamento social. O Poder Legislativo precisa con-
tinuar ativo e responsivo às demandas da população (até mesmo para tocar um
processo de impeachment via deliberação remota).
Justamente porque o SDR assegura o pleno funcionamento do devido pro-
cesso legislativo constitucional, não faria sentido, nem seria razoável distinguir
entre as espécies legislativas que podem ser aprovadas por essa sistemática e as
que não. Todas as espécies legislativas de atos normativos primários elencados
no art. 59 da CF são aptas a serem deliberadas pelo SDR.
Para poder funcionar plenamente, o Parlamento precisa aprovar quais-
quer medidas que forem necessárias para combater a pandemia, inclusive, se
for o caso – como mostra ser o presente – uma emenda à Constituição.
A pretensão do impetrante de barrar a tramitação da PEC n. 10, de 2020,7
além de não encontrar amparo no texto da Constituição, implicaria deixar o
Poder Legislativo de mãos atadas, impedido de atuar por prazo indeterminado
(já que não se sabe por quanto tempo a crise da Covid-19 durará).
Ora, o Congresso Nacional não pode ser colocado em situação que o
impeça de funcionar normalmente, com autorização somente para aprovar
determinadas espécies legislativas, mas não outras. A soberania popular e o

5. https://www.jota.info/stf/supra/sistema-de-deliberacao-remota-deve-vir-acompanhado-
-do-estimulo-a-participacao-social-06042020
6. https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/entenda-como-o-congresso-
-tem-mantido-atividades-durante-pandemia-de-covid-19-21042020
7. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141443

110
É possível emendar a Constituição via deliberação remota durante a calamidade pública?

exercício da competência legislativa ou são plenos ou não existirão. Não cabe


qualquer supressão ou gradação das atividades parlamentares, sob pena de
ofensa ao Estado Democrático de Direito.
Tampouco as atuais circunstâncias da pandemia importam proibição a
que se emende a Constituição. Como sabido, o art. 60, § 1º, estabeleceu como
limitações circunstanciais – em que é vedada a alteração do texto constitu-
cional – somente a vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de
estado de sítio, em decorrência da gravidade e da anormalidade institucionais.
Fora dessas situações, não há que se reputar impedida a reforma constitucio-
nal, de modo que a PEC n. 10, de 2020, pode perfeitamente seguir seu curso. O
texto constitucional não deixou espaço para limites circunstanciais implícitos
à reforma da Constituição.
As hipóteses constitucionais referidas no art. 60, § 1º, da Constituição,
têm caráter exaustivo e não podem ser aplicadas analogicamente ao estado de
calamidade pública. A própria Constituição escolheu sua gramática para lidar
com os diversos níveis de crise e não é possível deturpar os vocabulários e seus
significados, sob pena de tratar igualmente situações claramente diferentes.
Os efeitos práticos decorrentes do estado de calamidade pública diferem
das consequências envolvidas na decretação de intervenção federal, estado de
defesa ou de estado de sítio. Há uma clara gradação nos estados de crise.
O reconhecimento da situação de calamidade pública se dá por iniciativa
do Poder Executivo e reconhecimento por parte do Congresso Nacional, no
âmbito da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e
Municípios.
Nessa situação, de acordo com a LRF, art. 65, serão suspensas a limitação
de empenho, a contagem de prazos e disposições referidas nos arts. 9º, 23, 31 e
70 da LRF. Na prática, isso significa a possibilidade de descumprir determina-
das metas e limites de despesas públicas. Além disso, o estado de calamidade
pública permite a abertura de crédito extraordinário, nos termos do art. 167, §
3º, da Constituição, e autoriza a instituição de empréstimo compulsório, con-
forme o art. 148, inciso I, da Constituição.
Dessa forma, pode-se dizer que o estado de calamidade pública contem-
pla uma situação de anormalidade, em que a capacidade de atuação do poder
público está comprometida, mas em um nível que ainda não se equipara aos
estados de exceção referidos no art. 60, § 1º, da Constituição, quais sejam, a

111
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

intervenção federal (art. 34), o estado de defesa (art. 136) e o estado de sítio
(art. 137), o mais grave de todos na escala da crise.
Seguindo por essa linha de raciocínio, as medidas constitucionais mais
extremas (com todas as consequências nelas implicadas) somente podem inci-
dir diante de situações fáticas de ainda maior excepcionalidade que a situação
de calamidade pública. E a avaliação do presente contexto – que culminou na
decisão de, ao menos por enquanto, não decretar ou solicitar as medidas cita-
das no art. 60, § 1º – é privativa do Presidente da República.
Assim, a partir do momento em que a própria Constituição disciplinou de
forma diferente os diversos níveis de intensidade das crises, não cabe atribuir
as consequências normativas da intervenção, estado de defesa e estado de sítio
ao estado de calamidade pública, que é um minus em relação às primeiras. Não
se pode subverter a ordem constitucional posta, sustentando impedimentos
inexistentes à reforma constitucional, pois, longe de salvaguardar os direitos,
isso os prejudicaria ainda mais.
No writ, o impetrante ainda argumentou que faltaria justificação à PEC
n. 10, de 2020.8 No entanto, a PEC n. 10, de 2020, conta com justificação
suficiente. O próprio CPC, art. 374, inciso I, positivou que não dependem de
prova os fatos notórios. De forma inquestionável, vive-se uma crise e a matéria
trazida na PEC é necessária para enfrentar a pandemia, facilitando os atos de
gestão e conferindo salvaguarda jurídica aos envolvidos.
Além disso, a PEC trouxe uma cláusula expressa de vigência temporária,
prevendo sua revogação automática com o encerramento do estado de calami-
dade pública, de modo que não afeta o núcleo dos compromissos constitucio-
nais de forma permanente.
A mera circunstância de a motivação não ter sido registrada formalmente
nos documentos que instruem a tramitação (processado) perante a Câmara
dos Deputados não quer dizer que a medida careça de motivação. Em primeiro
lugar, porque os modos de fundamentar decisões judiciais e decisões legislati-
vas são diferentes, e não é possível exigir dessas últimas o grau de formalização
necessária para a validade das primeiras.

8. https://www.jota.info/stf/do-supremo/lewandowski-nega-mandado-de-seguranca-con-
tra-tramitacao-da-pec-da-guerra-13042020

112
É possível emendar a Constituição via deliberação remota durante a calamidade pública?

A justificação dos atos legislativos se dá pela deliberação parlamentar, ou


seja, pela confrontação pública de razões para modificar (ou não) o ordena-
mento jurídico, conforme a argumentação legislativa levada a cabo nas sessões
das comissões e do plenário, documentado pelas atas taquigráficas e diários
das sessões, que representam a fonte por excelência das razões legislativas.
Haverá justificação legislativa se presente o debate parlamentar, como de
fato vem ocorrendo para a aprovação da PEC n. 10, de 2020, tanto na Câmara
dos Deputados, quanto no Senado Federal, cujas sessões legislativas por vi-
deoconferência são públicas, transmitidas em tempo real, garantindo-se a ne-
cessária transparência e publicidade a todos os atos que vêm sendo praticados,
inclusive quanto às discussões e ao emendamento.
Em segundo lugar, deve-se levar em consideração o contexto de crise
acarretada pela pandemia, que torna a suposta exigência de saturar a motiva-
ção ainda menos razoável diante das capacidades institucionais e da própria
redução de funcionários que assessoram e auxiliam nessas tarefas de formali-
zar nos papéis e documentos as razões que estão sendo apresentadas oralmen-
te durante os debates parlamentares.
Além disso, somente é possível avaliar com precisão uma argumentação
legislativa ao final do processo de elaboração normativa. Dado o seu caráter
dinâmico, com frequência razões eventualmente ruins são substituídas por
melhores, e a evolução dos debates tende a se refletir em emendas e aperfei-
çoamento da versão final do texto aprovado.
Pretender analisar a motivação de um projeto de lei apenas pelo que cons-
ta de sua justificação (por ocasião da iniciativa) equivale a considerar somente
os argumentos da petição inicial em um processo judicial: assim como não
há garantia de que serão aceitos pelo juiz, as razões aduzidas em momento
tão embrionário não permitem saber o que de fato servirá de fundamento à
aprovação da lei.
No último dia 14 de abril o impetrante apresentou agravo regimental9
contra a decisão do Ministro Lewandowski, insistindo nos argumentos da pe-
tição inicial, notadamente o de que o SDR a não se aplicaria à aprovação de
emendas à Constituição e que faltaria justificação à PEC n. 10, de 2020.

9. https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5891080

113
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Com isso, podendo se manifestar novamente nos autos MS n. 37.059, o


Ministro Lewandowski terá a oportunidade de assentar a resposta a essas três
questões que, mais cedo ou mais tarde, chegarão ao plenário do STF, e afirmar
desde já que:
1) o SDR se presta à aprovação de todas as espécies legislativas elencadas
no art. 59 da Constituição; 2) o art. 60, § 1º, da Constituição, não se aplica ana-
logicamente ao estado de calamidade pública, de forma que é constitucional
a tramitação da PEC n. 10, de 2020; e 3) a avaliação da justificação legislativa
somente é possível ao final do processo legislativo, sob pena de indevida e
precoce ingerência nas discussões parlamentares, as quais devem seguir seu
próprio curso sem interferência judicial.

114
Juízes lobistas?
Ministros do STF são atores políticos, mas
não deixam de ser magistrados só porque
estão sem a toga ou fora do tribunal

O título desta coluna se inspira no clássico ensaio de Mauro Cappelletti


“Juízes legisladores?”, escrito em 1992, em que o autor investiga as razões do
crescente protagonismo judicial nas sociedades, abrindo com a seguinte afir-
mação: “O presente estudo comparativo não tem a finalidade de demonstrar a
verdade banal, embora infinitas vezes negada ou ocultada, em todas as épocas e
com inexaurível perseverança, da criatividade da jurisprudência”.
De modo semelhante, trata-se de saber, não se existe um lobby judicial,
mas se e quando é legítimo.
Até o dia 10 de junho de 2021, a notícia era a de que o voto impresso já
tinha o apoio da maioria1 na Comissão Especial da Câmara dos Deputados,
contando com a posição favorável de 21 dos 32 deputados que então compu-
nham o colegiado (a rigor, o total de membros deveria ser 34, mas dois assen-
tos estavam vagos).
Na véspera (dia 09 de junho de 2021), o ministro Luís Roberto Barroso
esteve no plenário da Câmara dos Deputados debatendo com congressistas

1. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,voto-impresso-tem-apoio-de-maioria-em-
-comissao-e-deve-avancar-na-camara,70003742299

115
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

três temas: a regulamentação do combate às fake news; o voto impresso; e os


sistemas eleitorais. Para quem quiser ver, o vídeo da sessão especial está aqui.2
A discussão preponderante foi sobre o voto impresso, que é o objeto da
Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 135/2019, que pretende acres-
centar o § 12 ao art. 14 da CF para dispor que, na votação e apuração das elei-
ções, plebiscitos e referendos, seja obrigatória a expedição de cédulas físicas,
conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas em urnas indevassáveis, para fins
de auditoria. Na prática, prevê-se a adoção de urnas eletrônicas que permitam
a impressão de votos para possibilitar a auditagem das eleições.
Logo na abertura de seu discurso no plenário da Câmara dos Deputados,
o ministro Barroso fez questão de enfatizar que não é parlamentar (nem da
base, nem da oposição), que estava no “lugar correto” para esse debate (que é a
Câmara dos deputados) e que falava no papel de “ator institucional”.
Ainda assim, não deixa de ser, no mínimo, curioso um ministro do Su-
premo Tribunal Federal (STF), mesmo na posição de presidente do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), participar do debate público fora do tribunal, sem
sua toga, na ausência de ações judiciais em que precisa valorar fatos e atribuir
sentido às palavras das normas.
Sem pretensões de entrar no mérito sobre se a PEC nº 135/2019 deve-
ria ou não ser aprovada, aqui interessa mais analisar a guinada que houve no
rumo dos debates legislativos desde a “participação” de ministros do STF, des-
tacando a presença dessa espécie de lobby e quais são as fronteiras, por mais
vaporosas que sejam, desse tipo de atuação.
Sob essa ótica, é interessante examinar com lupas e pinças algumas das
palavras do ministro Barroso na Câmara. Confira-se o trecho a seguir: “Eu
apenas esclareço, e talvez nem precisasse, que eu sou um ator institucional, eu
não sou um ator político, as escolhas políticas competem ao Congresso Nacional.
O meu papel é interpretar a Constituição, as leis, seguir as decisões do Supremo
Tribunal Federal. Mas eu gosto de participar do debate público de aprimoramen-
to das instituições. Ninguém vai ter vestígio das minhas opções políticas, eu não
participo do varejo político, mas da preocupação com as instituições.”.
Não é novidade que os membros do STF (e das cortes constitucionais em
geral) tomam decisões políticas. O próprio ministro Barroso reconhece que

2. https://www.youtube.com/watch?v=lxb60sv5Kcg

116
Juízes lobistas?

a interpretação da Constituição envolve uma “dose de subjetividade” e que


“sempre haverá, ainda que residualmente, um traço político nas decisões de um
tribunal constitucional”.3
Por isso, ministros do STF não deixam de ser “atores políticos” (nem mes-
mo quando afirmam o contrário).
Acontece que são uma espécie de políticos diferente dos parlamentares,
com muito mais poderes do que esses últimos. Basta recordar que os minis-
tros do STF têm poderes para suspender “cautelarmente” leis em vigor, dar a
“última palavra” sobre a Constituição (ainda que o Congresso Nacional possa
reabrir o debate depois) e também podem mandar prender (e soltar) não ape-
nas aqueles que têm foro por prerrogativa de função.
Além disso, os ministros do STF não precisam estar filiados a partidos
políticos, nem se submeter a eleições periódicas para renovar seus mandatos.
São atores políticos privilegiadíssimos, que podem tocar suas agendas po-
lítico-jurídicas, priorizando seletivamente o julgamento (ou fazendo pedidos
de vista) de certos temas, em detrimento de outros, entre os inúmeros proces-
sos pendentes.
Isso para ficar só na formação da pauta, sem mencionar a escolha estra-
tégica do método decisório de cada caso, o que pode envolver não usar suas
decisões prévias.
Por fim, os ministros do STF podem atuar de forma praticamente livre de
obstáculos: basta a concordância de 6 ministros para que uma decisão tenha
efeitos erga omnes (sem contar o uso das decisões monocráticas com o mes-
mo efeito, já criticado aqui).4 Gozam de imunidade “na prática” (embora não
prevista na CF) mais ampla que a dos parlamentares, como pontuado aqui5.
Ao mesmo tempo, portanto, são atores políticos que continuam sendo
“autoridade judicial”. É irrelevante que estejam fora do tribunal ou sem a toga.
É por isso que seus pronunciamentos, opiniões e atividades políticas, ainda

3. BARROSO, Luís Roberto. Sem Data Venia: Um Olhar Sobre o Brasil e o Mundo. Rio de Janeiro:
História Real, 2020, p. 197.
4. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/para-que-serve-o-quo-
rum-nos-orgaos-colegiados-14042021
5. https://www.conjur.com.br/2020-jun-24/nascimento-quem-controla-ministros-stf

117
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

que fora dos autos de um processo judicial, chamam a atenção e têm um peso
diferente das falas e razões apresentadas por outros juristas.
Em se tratando de debates legislativos, um dos problemas dessas opiniões
emitidas por ministros do STF é a violação ao art. 36, inciso III, da LC nº 35/79
(a Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN), que a rigor impediria
a manifestação sobre temas que fatalmente serão objeto de julgamento pela
corte. A menção a esse dever, inclusive, vem sendo reiteradamente suscitado
nas sabatinas dos candidatos a ministro do STF para se evadir de responder
perguntas sobre determinados assuntos.
Daí a dúvida: até que ponto é legítima essa atuação dos juízes como lobis-
tas? Mesmo em se reconhecendo o novo papel do STF na política, possuiriam
os ministros poder para intervir na agenda antes mesmo que a decisão legis-
lativa tenha sido tomada e independentemente da judicialização da questão?
Seja qual for a resposta, isso foge ao conceito de revisão judicial e significa
que, em lugar de arbitrar, os ministros tomaram parte no conflito político.
Sequer há decisões políticas com roupagem de jurídicas. Sai o direito, fica só
política pura. Ao saltar instituições, cresce o risco de populismo judicial.
A rigor, não há ilicitude na atividade de lobby em geral e a tentativa de
persuadir os legisladores pode contribuir para o debate público, o pluralismo
de ideias e a melhor equalização dos interesses em questão. A despeito de sua
má fama, o lobby também pode ser bom, trazer contribuições positivas e ser
salutar para a aprovação de leis melhores.
Um dos problemas do lobby em geral ocorre quando existe um desequi-
líbrio na representação dos interesses (quase sempre associado a uma atuação
opaca dos grupos que os representam) e disso resulta a concessão de vantagens
ou privilégios injustificados. Daí porque alguns defendem a regulação do lob-
by, com medidas que promovam transparência e accountability, apostando na
exposição pública e monitoramento do lobby.
Atualmente, não estando regulamentado, o lobby pode partir de qualquer
lado: grupos de interesses, organizações não governamentais, entidades de
classe, da própria Administração Pública, dos entes federados, assessorias par-
lamentares dos ministérios, profissionais das relações governamentais, escri-
tórios especializados nessa atividade, incluindo quaisquer agentes que tenham
poder de barganha, ou seja, também membros da cúpula do próprio Poder
Judiciário.

118
Juízes lobistas?

Em passado não muito remoto, por exemplo, foi determinante a articu-


lação do então ministro do STF Nelson Jobim para a aprovação da Reforma
do Poder Judiciário (EC nº 45/2004), tendo sido ele um dos mais ferrenhos
defensores da criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
De fato, especialmente em se tratando de matérias que afetam o Poder Ju-
diciário – como os reajustes na remuneração da magistratura –, tem sido aber-
tamente noticiado o lobby dos ministros do STF nos bastidores. Recorde-se,
por exemplo, da revogação da liminar na Ação Originária nº 1.773, que auto-
rizava o pagamento do auxílio-moradia para os juízes, ocorrida após “acerto”
entre o então presidente da República Michel Temer, o do STF Dias Toffoli e o
ministro relator Luiz Fux. O tomá-lá-dá-cá foi noticiado aqui.6
Há quem repute que esse tipo de episódio seja uma forma degenerada de
atuação política dos ministros do STF. Aqui se discorda dessa visão, na medida
em que, de acordo com a própria CF, art. 96, inciso II, o Poder Judiciário dis-
põe da iniciativa legislativa para os assuntos que enumera, inclusive a fixação
do subsídio de seus membros e dos juízes.
Assim, algum grau de lobby judicial é tolerável – e até esperado7 – à luz
do desenho institucional de 1988, nas matérias pertinentes ao funcionamento
do Poder Judiciário e ao regime jurídico de seus integrantes.
Mas chama a atenção quando tal atuação ultrapassa interesses mais cor-
porativistas, como nesse caso do debate sobre o “voto auditável”. O episódio
poderia marcar o começo de uma discussão necessária sobre o grau, os modos,
os limites e a aceitabilidade do lobby praticado pelos ministros do STF.
Se o lobby ocorre às claras, a partir da exposição de posições (ainda que
antecipadas) na forma de argumentos, de forma pública, não é possível ques-
tionar sua legitimidade, já que não deixa de ser uma forma de participação
democrática. Nesse sentido, por exemplo, a nota pública firmada por minis-
tros do STF (noticiada aqui)8 é plenamente aceitável, mesmo sendo de matiz
político, assim como o são as notas comumente veiculadas por associações de
magistrados.

6. https://www.jota.info/justica/fux-revoga-liminares-que-autorizavam-pagamento-de-au-
xilio-moradia-para-juiz-e-mp-26112018
7. https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/05/lobby-incansavel.shtml
8. https://www.jota.info/eleicoes/voto-impresso-nao-e-adequado-como-auditoria-dizem-
-ex-presidentes-do-tse-desde-88-02082021

119
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

No entanto, parece existir um claro problema se o lobby, seja de onde


partir, for feito sem os registros públicos, fora de um ambiente “institucional”.
Não se diga “às escondidas”, já que o jantar ocorrido no dia 21 de junho de
2021 com a participação dos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes
e mais 11 líderes de partidos foi amplamente noticiado pela imprensa,9 que
ainda publicou a declaração que teria sido feita pelo ministro no sentido de
que “seria melhor que a questão [do voto impresso] não chegasse ao STF”.
No episódio 3 do podcast “Supremo na semana” (produzido institucio-
nalmente pelo próprio STF) que foi ao ar no dia 26 de junho, o ministro Ale-
xandre de Moraes também declarou que “a maioria da população acredita nas
urnas eletrônicas” e que o voto impresso “não contribui para a democracia”.
Sem dúvidas, tais opiniões não pretendiam formar jurisprudência.
Ao que parece, as palavras de quem não deixa de ser autoridade judicial
mesmo sem toga (com poder para mandar prender e mandar soltar, como
dito) resultaram bastante “persuasivas” (para não dizer poderosas na barga-
nha), pois pouco tempo depois disso os partidos passaram a se movimentar
trocando os membros da comissão especial,10 capaz de mudar completamente
o rumo das proposições legislativas, em tradicional tática parlamentar apon-
tada aqui.11
Diante desse panorama, é duvidoso que seja dado aos ministros do STF
bloquearem um debate legislativo no Congresso Nacional, manifestando-se ex
ante de modo contrário sobre leis in fieri, fora do locus de deliberação judicial,
antes mesmo de a matéria ter sido levada ao tribunal por algum dos legitima-
dos nos diversos instrumentos processuais disponíveis.
Por mais que sejam homens públicos, e sustentem ter interesse institu-
cional, ministros do STF não deveriam entrar nesse debate dessa maneira. A
própria prudência – necessária virtude judicial – recomenda que autoridades
judiciais não entrem em bate-bocas, nem participem de articulações opacas,
até para evitar a impressão de que são parciais ou partidários.

9. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2021/06/uniao-de-11-partidos-contra-vo-
to-impresso-teve-atuacao-de-alexandre-de-moraes-nos-bastidores.shtml
10. https://oglobo.globo.com/brasil/partidos-contrarios-ao-voto-impresso-trocam-deputa-
dos-na-comissao-especial-1-25085786
11. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/que-falta-fazem-as-co-
missoes-no-poder-legislativo-25112020

120
Juízes lobistas?

Nas palavras do ministro Barroso: “No mundo, ninguém deve presumir


demais de si mesmo. Nem tampouco ficar aquém do papel que lhe cabe. Há um
equilíbrio entre prudências e ousadias que dá legitimidade à atuação dos tribu-
nais. Nem sempre é fácil encontrar esse caminho do meio.”12
Como a atuação política dos ministros fora dos autos dos processos parece
ter vindo para ficar, ao menos em assuntos alheios aos interesses corporativos
da magistratura, a intensidade do lobby deveria ser menor. Mesmo compondo
o Poder Judiciário, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) desempenha função
administrativa (e não jurisdicional) ao organizar as eleições. Trata-se de ati-
vidade vinculada, que deve respeitar os desígnios e a política pública traçada
pelo parlamento.
Novamente em seus escritos, o ministro Barroso chega a declarar que “A
democracia vive do equilíbrio entre eles [os três Poderes], sem que nenhum pos-
sa pretender ser uma instância hegemônica”. Na mesma passagem, mais adian-
te, afirma: “Como regra geral, decisões políticas devem ser tomadas por quem
tem voto. Nessa linha, se o Congresso Nacional tiver atuado, editando uma lei,
a postura do Judiciário deve ser de autocontenção, de deferência para com o
parlamento”.13
Para efeito de contraste em termos de postura judicial, convém recordar
o que o justice Antonin Scalia costumava repetir sobre a Constituição ser um
documento “limitado”, no sentido de não conter tudo (dizer algumas coisas,
mas não dizer outras), sem que disso resultem inconstitucionalidades de um
sem número de opções legislativas. Daí a brincadeira de que seu trabalho seria
muito mais fácil se, em lugar de escrever seus votos, houvesse um carimbo que
só registrasse “estúpido, mas constitucional” (stupid but constitucional).
Enquanto isso, aqui no Brasil, vê-se justamente o contrário dessa autocon-
tenção: os juízes adotam uma postura de protagonistas na formulação, con-
dução e avaliação das políticas públicas, em tentativa de sobreposição a aos
legisladores eleitos. Ministros do STF tentam definir o que o Congresso Nacio-
nal deve ou não aprovar, influindo diretamente no poder de agenda das Casas

12. BARROSO, Luís Roberto. Sem Data Venia: Um Olhar Sobre o Brasil e o Mundo. Rio de Janeiro:
História Real, 2020, p. 202.
13. BARROSO, Luís Roberto. Sem Data Venia: Um Olhar Sobre o Brasil e o Mundo. Rio de Janeiro:
História Real, 2020, p. 201.

121
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Legislativas. Como se vê, na política parlamentar também vige a máxima da


sabedoria popular “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
A volta do recesso parlamentar dirá se o lobby supremo – feito por re-
presentantes do STF, não representantes do povo – foi determinante para o
desfecho da PEC nº 135/2019. Seja qual for o resultado, convém começar uma
discussão séria sobre o grau, os modos, os limites e a aceitabilidade do lobby
praticado pelos ministros do STF.

122
Comentários à tramitação da
PEC do Estado de Emergência
Uso estratégico do Sistema de Deliberação Remota,
apensação e quebra de interstício entre turnos

No último dia 30 de junho, o Senado Federal tinha aprovado a PEC


1/20221 (lá apelidada de PEC do Estado de Emergência), que, entre outras
disposições, institui um estado de emergência até o dia 31 de dezembro de
2022. Ao chegar na Câmara dos Deputados, tal proposição foi apensada à PEC
15/20222 (até então PEC dos Biocombustíveis), a qual foi aprovada no último
dia 13, e promulgada já no dia seguinte, tornando-se a EC 123/2022.
Com isso, acrescentou-se o artigo 120 ao ADCT e criou-se um “estado
de emergência”, figura que até então não constava do texto constitucional, e
cujo principal propósito é permitir a abertura de crédito extraordinário para
atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra,
comoção interna ou calamidade pública.
O estado de emergência decorreria da elevação extraordinária e impre-
visível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos

1. https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pec-1-2022
2. https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pec-15-2022

123
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

sociais dela decorrentes. Na prática, a nova norma dispensa a observância dos


limites previstos para as despesas públicas.
Embora a expressão seja enganosa – porque é inevitável associá-la ao re-
cém-extinto estado de emergência em saúde pública –, deve-se registrar que a
novidade constitucional não confere quaisquer poderes sequer semelhantes ao
estado de defesa ou estado de sítio, tendo contornos exclusivamente financei-
ros (mas nem por isso menos importantes).
À coluna de hoje, interessa chamar a atenção para a tramitação dessa PEC,
repleta de táticas parlamentares típicas da dinâmica nas casas políticas, valen-
do os comentários como tentativa de apresentar melhor a natureza estratégica
do processo legislativo.
Em primeiro lugar, registre-se a já indicada apensação para a tramitação
conjunta. O assunto já foi tratado em coluna passada,3 à qual se remete para
evitar a repetição da explicação dessa faculdade prevista nos regimentos in-
ternos (RICD, artigos 142 e 143, RISF, artigos 258 a 260), análoga à reunião
de ações judiciais dos artigos 57 e 58 do Código de Processo Civil (CPC). A
rigor, não há problema na apensação de proposições com diferentes estágios
de tramitação (decorrência lógica do artigo 139, inciso I, do RICD), como se
deu na situação concreta.
No caso da PEC 1/2022, apensada à PEC 15/2022, o detalhe esteve no
dado de que esta última já estava na fase de comissão especial e já havia decor-
rido o seu prazo para emendamento (RICD, artigo 202, § 3º), o que contribuiu
para restringir o debate da primeira, que sequer chegou a passar pela fase da
admissibilidade junto à CCJ da Câmara (RICD, artigo 202, caput), tendo-se
aproveitado o parecer já dado à PEC 15/2022.
A Câmara já tinha procedido da mesma forma em outras ocasiões, não
reabrindo os prazos regimentais. Além disso, não custa recordar que a apen-
sação é matéria exclusivamente regimental, não passível de controle judicial,
como já reconhecido na própria ADI nº 6.696, sobre a LC 179/2021 (autono-
mia do BC), aprovada via apensação para tramitação conjunta.
Em segundo lugar, chamando a atenção para as intercorrências legislati-
vas, menciona-se a “suspensão” da sessão semipresencial que vinha ocorrendo

3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/tramitacao-conjunta-ini-
ciativa-legislativa-por-emprestimo-e-autonomia-do-bc-12052021

124
Comentários à tramitação da PEC do Estado de Emergência

na terça-feira, dia 12 de julho, em razão da interrupção da conexão à internet,


a qual é indispensável à utilização do Infoleg,4 aplicativo usado para as vo-
tações remotas. O presidente da Câmara chegou a chamar a Polícia Federal,
prometendo providências, conforme explicou em nota.5
A questão é que, para poder continuar com a votação no dia seguinte, o
presidente da Câmara dos Deputados acabou liberando a sistemática integral-
mente remota. O episódio evidencia que o Sistema de Deliberação Remota
(SDR), não só tende a ser incorporado definitivamente no pós-pandemia, mas
também poderá ser mais uma ferramenta do arsenal de táticas parlamenta-
res.6
A decisão sobre se uma sessão será presencial, semipresencial ou integral-
mente remota pode ser determinante para o êxito da proposição legislativa.
Sem dúvidas, nesse caso, não fosse pela tecnologia do SDR, a PEC não teria
sido aprovada na sessão do dia 13 de julho, quando não se chegava a contar
com 200 deputados fisicamente no plenário.
Quem acompanha o Legislativo sabe que, nas matérias polêmicas, o pre-
sidente da Câmara dos Deputados (quando quer ver aprovada a PEC) não se
atreve a iniciar os trabalhos com menos de 450, 470 deputados em plenário.
Fala-se que a garantia de aprovação mesmo só se dá com 490 deputados para
cima. Um número menor do que esses é um cenário sempre arriscado no cál-
culo político. Lembre-se de que são necessários 308 votos (3/5 da Casa).
Por força do Ato da Mesa nº 235/2022,7 vinha sendo necessário que os
deputados registrassem a presença de modo exclusivamente presencial para
fins de quórum,8 nos postos de registro biométrico instalados nos plenários.
Realizado esse registro presencial, é que restaria liberada a votação por meio
do aplicativo lnfoleg (podendo ocorrer também de forma presencial, claro).
Daí a diferença que faz permitir a votação 100% remota (ou seja, com o quó-
rum contado também remotamente) em relação à semipresencial.

4. https://www2.camara.leg.br/infoleg/aplicativo/
5. https://static.poder360.com.br/2022/07/nota-Arthur-Lira-13.jul_.2022.docx.pdf
6. https://www.academia.edu/49088957/13_TÁTICAS_PARLAMENTARES_PARA_APROVA-
ÇÃO_DAS_LEIS
7. https://www2.camara.leg.br/legin/int/atomes/2022/atodamesa-235-12-abril-
-2022-792507-publicacaooriginal-164968-cd-mesa.html
8. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/para-que-serve-o-quo-
rum-nos-orgaos-colegiados-14042021

125
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

A rigor, mais uma vez, não há inconstitucionalidade na prática, sempre e


quando a decisão de alteração seja no sentido de mudar a sessão do presencial
para o remoto (pois todos terão acesso ao aplicativo de onde estiverem), mas
jamais do remoto para o presencial, pois isso praticamente impediria a articu-
lação das minorias que estejam fora de Brasília.
Nem mesmo a regra do artigo 150, parágrafo único, do RICD, de distri-
buição dos avulsos da matéria com antecedência mínima de 4 horas supriria a
mudança das regras do jogo assim em cima da hora, de uma noite para o dia
seguinte, impedindo o deslocamento físico de parlamentares até o Palácio do
Congresso Nacional em tempo hábil. Mesmo assim, a questão do uso do SDR
continua sendo interna corporis.
Em terceiro lugar, traz-se à luz a velha questão da quebra de interstício
entre turnos de votação de PECs, também ocorrida na tramitação da PEC do
Estado de Emergência. Aqui, começa-se recordando que o artigo 60, § 2º, da
CF, limitou-se a estabelecer que “a proposta será discutida e votada em cada
Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obti-
ver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”.
Como se vê, não há no texto constitucional qualquer previsão de lapso
temporal mínimo que deva ser observado entre um turno e outro de votação,
de modo que a norma de regência desse interstício é o regimento interno de
cada Casa Legislativa. No Senado Federal são 5 dias úteis e na Câmara dos
Deputados são 5 sessões (RISF, artigo 362, e RICD, artigo 202, § 6º).
Nada obstante, são conhecidas as práticas legislativas de quebrar os in-
terstícios regimentais ou de aprovar calendários especiais abreviando toda a
tramitação de PECs. É frequente que a discussão e votação ocorram no mesmo
dia e que não mais que 1 hora entremeie os dois turnos, como ocorreu com a
EC 62/2006 (sobre precatórios), que chegou a ser objeto de ADIs sob o argu-
mento de inconstitucionalidade formal por inobservância do devido processo
legislativo.9 O caso foi analisado pelo STF nas ADIs nº 4.357 e 4.425.
No julgamento, prevaleceu o voto do ministro Luiz Fux, que divergiu do
ministro relator Ayres Britto. Em seu voto, o ministro entendeu que a inter-
ferência judicial no processo legislativo precisa “gozar de lastro forte e categó-
rico no que prevê o texto das normas da Constituição Federal”. Do contrário,

9. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-que-e-o-devido-pro-
cesso-legislativo-17022021

126
Comentários à tramitação da PEC do Estado de Emergência

continuou, há o risco “de sufocar e de engessar a dinâmica própria aos agentes


políticos eleitos, aprisionando-a por força externa em fórmulas rígidas que não
se ajustam bem à cambiante necessidade de acomodar uma ampla gama de an-
seios sociais divergentes no Parlamento” (p. 52).
Nesse sentido, entendeu que o argumento de vício formal da EC 62/2009
não se fundava em “um cotejo claro e inequívoco entre a forma exigida pela
Constituição e aquilo que levado a cabo pelo Congresso Nacional” (p. 52), sendo
fruto, na verdade, de uma construção abstrata a partir qual, na opinião do
ministro, não seria possível extrair “a imprescindibilidade de um interstício mí-
nimo entre os dois referidos turnos” (p. 53).
Subjaz ao argumento a ideia de que o constituinte não fixou um inters-
tício no artigo 60, § 2º, “de modo a explicitar um espaço de tempo que servisse
de parâmetro objetivo para o exame do grau de solidez da vontade política de
reformar a Constituição” (p. 53). Embora pudesse tê-lo feito, não o faz. Isso,
diferentemente, de como procedeu no artigo 29, caput, ou no artigo 32, caput,
da CF, que expressamente determinaram o interstício mínimo de 10 dias entre
os turnos de votação da Lei Orgânica dos Municípios, e para a Lei Orgânica do
DF, respectivamente.
Com a referência a essas normas a título de comparação, o ministro Fux
argumentou que não houve intenção do constituinte em dar o mesmo trata-
mento à reforma constitucional. É dizer, houve silêncio eloquente.
Somando-se ao argumento da intenção do constituinte, o ministro ainda
se valeu do argumento gramatical quanto ao significado diverso das expres-
sões “dois turnos” e “interstício mínimo”, de modo a afastar a equivalência ou
a correlação entre uma e outra. Em resumo, o entendimento do ministro Fux
para afastar a violação ao artigo 60, § 2º, da CF, restou baseado na falta de um
parâmetro objetivo nesse dispositivo constitucional que obrigue a um lapso
temporal mínimo entre turnos nas votações das Casas Legislativas.
Historicamente, o ministro Fux ainda resgatou que a previsão de um in-
terregno entre as deliberações esteve presente com regras diferentes nas Cons-
tituições de 1824, 1891, 1934 e 1946, mas não nas de 1937, 1967 ou 1969. Com
isso, concluiu que o interstício entre turnos não era uma figura desconhecida
e houve uma opção da Assembleia Constituinte em afastá-lo.
O entendimento do STF parece suficientemente fundamentado e, em-
bora frustre as expectativas de diversos autores que criticam a supressão do

127
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

interstício entre turnos, a partir dele, é possível entrever que o processo legis-
lativo real, como foi o da PEC 1/2022, é bastante diferente do ideal.

128
Não há prática espúria
ou inconstitucional nas
emendas de relator
É descabida a conotação dada pelas
expressões ‘orçamento secreto’ ou
‘orçamento paralelo’ às emendas RP 91

Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº


854, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) sustenta existir um desvirtua-
mento da execução orçamentária, pelo Poder Público, com relação ao Resul-
tado Primário (RP) n° 9 (despesa discricionária decorrente de emenda de re-
lator-geral, exceto recomposição e correção de erros e omissões) da Lei Orça-
mentária Anual (LOA) de 2021.
O PSOL sustenta que as emendas de relator, identificadas como RP 9, su-
postamente estariam sendo executadas sem observância de critérios legais e
afrontam os princípios da impessoalidade e da eficiência (art. 37, caput, da
CF). Aduz que práticas noticiadas como “orçamento secreto” configurariam

1. Artigo escrito em coautoria com MATEUS FERNANDES VILELA LIMA (Advogado do Sena-
do Federal, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de
São Paulo) e HUGO SOUTO KALIL (Advogado do Senado Federal, Mestre em Direito pelo
Instituto Brasiliense de Direito Público).

129
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

violação aos postulados constitucionais da legalidade, impessoalidade, mo-


ralidade e publicidade (art. 37, caput, da CF); do regime constitucional das
emendas (art. 166 da CF); da transparência do orçamento público e do dever
constitucional de disponibilização de informações orçamentárias, contábeis e
fiscais pela administração pública (art. 163-A da CF).
Decorridos cinco meses do ajuizamento da ação, a ministra Rosa Weber
deferiu o pedido liminar monocraticamente, ad referendum do plenário, para:
1) que seja dada ampla publicidade, em plataforma centralizada de acesso pú-
blico, aos documentos encaminhados aos órgãos e entidades federais que em-
basaram as demandas e/ou resultaram na distribuição de recursos das emen-
das de relator-geral (RP 9), no prazo de 30 dias corridos; 2) que sejam adotadas
as providências necessárias para que todas as demandas de parlamentares vol-
tadas à distribuição de emendas de relator-geral, independentemente da mo-
dalidade de aplicação, sejam registradas em plataforma eletrônica centralizada
mantida pelo órgão central do Sistema de Planejamento e Orçamento Federal
previsto nos arts. 3º e 4º da Lei nº 10.180/2001; e 3) suspender, integral e ime-
diatamente, a execução dos recursos orçamentários oriundos do identificador
RP-9 da LOA de 2021 até o final do julgamento de mérito da ADPF nº 854.
Feita essa explicação dos fatos, passa-se à verdadeira problemática.
Em primeiro lugar, não cabe ao Poder Judiciário, que não é lócus de dis-
cussão do orçamento, alterar as escolhas legitimamente feitas pelos legislado-
res, não sendo possível – e menos ainda por decisão monocrática e sem ur-
gência – a suspensão da LOA, nem a determinação de que o Poder Legislativo
adote forma específica de execução orçamentária.
Na verdade, a decisão acarreta um perigo inverso, na medida em que pa-
ralisa um número incalculável de obras e serviços, muitos deles vinculados à
saúde, à educação e à segurança pública, com danos irreparáveis às comunida-
des beneficiárias e com desperdício de recursos públicos já empregados.
Em segundo lugar, recorde-se que as emendas parlamentares ao orçamen-
to encontram assento no art. 166 e seguintes da CF e constituem recurso legí-
timo de representação de interesses no desempenho da função legislativa. São
instrumento importante de descentralização de recursos públicos da União
para estados e municípios. E há, não apenas no âmbito dos Poderes Legislati-
vos, mas também no Poder Executivo e no Ministério Público, instrumentos
suficientes e adequados para a fiscalização da regularidade dos empregos dos
recursos orçamentários.

130
Não há prática espúria ou inconstitucional nas emendas de relator

Em terceiro lugar, atenta-se para o fato de que a decisão monocrática da


ministra Rosa Weber ignora a diferença existente entre as emendas individuais
e de bancada, reguladas pela CF e detalhadas nas LDOs, e das emendas de
relato geral, cujo regramento era até recentemente inexistente – mesmo nas
LDOs –, de modo que a decisão simplesmente tenta aplicar o regime jurídi-
co das primeiras (emendas individuais e de bancada) às últimas (emendas do
relator), contrariamente às previsões normativas. Aprofunde-se na explicação
desse ponto.
As emendas individuais e de bancada dispõem de procedimentos padro-
nizados e centralizados no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento
(SIOP), diferentemente das emendas de relator. Como dito, as primeiras são
reguladas pela CF e mais detalhadamente, em termos procedimentais, pelas
LDOs (na LDO 2021, arts. 74 a 76, por exemplo), as quais efetivamente ditam
o rito a ser seguido ou determinam a necessidade de regulamentação infra
legal.
No entanto, para as emendas de relator-geral, diante da inexistência de
norma expressa, não é obrigatório o mesmo procedimento. De fato, diante
da inexistência de disposição legal que vincule a indicação do autor (seja o
relator-geral ou alguém por ele indicado), é forçoso concluir que a execução
orçamentária dessas dotações deve seguir as mesmas regras utilizadas para as
demais dotações discricionárias. Isso significa, inclusive, seguir os critérios e
balizadores orçamentários utilizados por cada ministério responsável para a
execução das despesas sob sua alçada, incluindo os arts. 77 e 142 da LDO 2020
(art. 86 e 162 da LDO 2021).
Em outras palavras, a decisão da ministra Rosa Weber, ao pretender equi-
parar as emendas do relator às emendas individuais e de bancada, acaba por
contrariar a legislação orçamentária atualmente em vigor, porque as despesas
marcadas com RP 9, por terem sido inseridas pela relatoria-geral do PLOA e
por não haver normas específicas de regência, devem observar o mesmo regi-
me de execução do restante das dotações do Poder Executivo. O RP 9 é apenas
um marcador sobre a origem da dotação e não define o seu regime de execu-
ção orçamentária.
Esse é o argumento técnico, devendo-se avançar para, em quarto lugar,
consignar o argumento de ordem política. As emendas de relator foram so-
mente uma forma de devolver à política o controle sobre a participação dos
parlamentares no governo de coalizão, depois do orçamento impositivo.

131
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Em uma democracia de coalizão, não é imoral que os parlamentares da


base auxiliem o governo a decidir sobre a alocação de recursos relativos às
políticas públicas. Esse toma-lá-dá-cá, se pode ser chamado assim, deve fazer
parte do processo político normal. Quem conhece a questão das emendas par-
lamentares sabe que o beneficiário é o cidadão. Trata-se de verbas carimbadas
que atendem a problemas concretos em locais necessitados.
Conforme a Resolução do Congresso Nacional nº 1/2006,2 que discipli-
na a tramitação de matéria orçamentária, as emendas individuais têm papel
de atendimento pontual e local, sendo tipicamente pulverizadas, com atendi-
mento especificamente voltado para diversos beneficiários locais. As emendas
de bancada, por sua vez, visam atender às necessidades estaduais, de porte
maior e tipicamente mais estruturantes, sem possibilidade de atendimento
pelas emendas individuais. Em ambos os casos, há um sentido intrínseco de
direcionamento dos recursos, pois as demandas são melhor individualizadas.
É justamente por isso que essas emendas têm suas regulamentações constitu-
cionais mais detalhadas nas LDOs.
Por seu turno, as emendas de relator-geral têm a função de fazer a con-
certação final do orçamento, bem como de reforçar dotações de abrangência
nacional, que congregam interesses de diversos parlamentares e bancadas, não
sendo condizentes com a pulverização de indicações. Por essa razão, não há
regulação nas LDOs quanto a procedimentos de execução/indicação, deven-
do a execução dessas dotações seguir, conforme demonstrado, a extensa base
normativa orientadora de toda a execução orçamentária do Poder Executivo.
Adicionalmente, a Portaria Interministerial ME/Segov-PR nº 6.145/20213
já regulou minimamente a execução das emendas de relator-geral justamente
nesse sentido. Segundo essa norma, caso seja necessário obter informações
adicionais quanto ao detalhamento das dotações classificadas com RP 9, o
ministro da pasta respectiva poderá solicitá-las ao autor da emenda, ou seja,
ao relator-geral, muito embora as informações recebidas do relator-geral não
sejam consideradas vinculantes à execução dessas programações, porque elas
devem se conformar às prioridades do Poder Executivo quanto à execução de
políticas públicas.

2. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescon/2006/resolucao-1-22-dezembro-
-2006-548706-normaatualizada-pl.html
3. https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-me/segov-pr-n-6.145-de-
-24-de-maio-de-2021-321788756

132
Não há prática espúria ou inconstitucional nas emendas de relator

Com isso, vê-se que tal sistemática não significa um cheque em branco
para o gasto da verba pública, uma vez que a realização da despesa deverá
seguir as normas constitucionais e infraconstitucionais próprias da execução
orçamentária do Poder Executivo, bem como a necessária fiscalização pelos
órgãos de controle.
Portanto, a execução das emendas do relator observa a legislação de re-
gência e que é aplicável para toda e qualquer dotação constante do orçamento
da União, ou seja, obedece às regras que o próprio Poder Executivo observa
para executar as demais despesas discricionárias, inexistindo inconstituciona-
lidade ou ilegalidade nos procedimentos que vêm sendo adotados, a deman-
dar – também por essa razão – a modificação ou o não referendo da decisão
cautelar.
Em quinto lugar, esclarece-se que é descabida a conotação dada pela ex-
pressão “orçamento secreto”, ou “paralelo”, uma vez que quaisquer programas,
ou projetos, bem assim a realização de despesas ou a assunção de obrigações
pela administração pública, devem ser sempre precedidas de autorização orça-
mentária (art. 167, incisos I e II, da CF). E, como se acaba de ver, as emendas,
inclusive as de relator, somente podem ser aprovadas depois de atendidas to-
das as condições de admissibilidade previstas na legislação fiscal (teto, resulta-
do fiscal, regra de ouro, mínimos constitucionais, etc.) e o consenso necessário
para a aprovação da própria LOA.
A própria Resolução do Congresso Nacional nº 1/2006, art. 144, expres-
samente determina que é vedada a apresentação de emendas que tenham por
objetivo a inclusão de programação nova, bem como o acréscimo de valores a
programações constantes dos projetos, ressalvada a finalidade de corrigir erros
e omissões de ordem técnica ou legal.
Após todas as considerações, o que fica, em resumo, é a impressão de que
continua existindo um grande desconhecimento sobre os meandros do direito
financeiro – que em boa hora passa a ser inserido como matéria obrigatória na
graduação em Direito – e a suspeita de que em várias decisões judiciais ainda
predomina a ideia de criminalização da política, o que não deixa de ser uma
faceta da politização dos órgãos da justiça.

133
Limites são mero detalhe
quando o STF decide substituir
o Congresso Nacional
Decisão do Supremo sobre as emendas
de relator não é ‘tão correta’ quanto
pareceria superficialmente

Quando o assunto é o comportamento decisório do Supremo Tribunal


Federal (STF) em relação ao Poder Legislativo, pesquisas quantitativas indi-
cariam que, de modo geral, a maioria das decisões tende a ser deferente, sem
intervir nas matérias interna corporis, abstendo-se de alterar a composição das
forças políticas em cooperação ou conflito no Congresso Nacional.
No entanto, pode-se dizer que, de tempos em tempos, sempre aparece
uma exceção para contrariar a regra geral, com o STF tomando uma decisão
de forma inesperada, com grande impacto político. Essas decisões acabam ge-
rando muito mais barulho, e um dos grandes interesses teóricos nelas está nas
características que compartilham entre si.
Nesse sentido, quando entra em ação o “Supremo Parlamentar”, seria
possível afirmar que um traço comum das decisões, ao menos a partir das
fundamentações respectivas, é o pouco conhecimento revelado das práticas
parlamentares. Duas claras tendências que aparecem nessas decisões mais po-
lêmicas são a idealização dos trabalhos legislativos e o excessivo engessamento
(pela via da “juridificação”) da política nos parlamentos.

135
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Em alguma medida, isso aconteceu na ADI nº 4.0291 (quanto à institui-


ção das comissões mistas para medidas provisórias), na liminar monocrática
que chegou a ser dada no MS nº 31.816 (sobre ordem cronológica de apre-
ciação dos vetos presidenciais, embora não tenha sido ratificada), na ADI nº
5.1272 (proibindo as emendas “jabutis”, sem pertinência temática), entre ou-
tros casos, e agora se repete com a decisão tomada nas ADPFs nº 850, 851 e
854,3 que suspendeu “integral e imediatamente a execução dos recursos orça-
mentários oriundos do identificador de resultado primário nº 9 (RP 9)”.
Seria necessário mais tempo e espaço para aprofundar o padrão decisório
do “Supremo Parlamentar”. Na coluna de hoje, o que se pretende revelar são
os problemas dessa última decisão em comento que suspendeu parte da LOA
2021, para mostrar que, nestas poucas vezes em que o STF decide confrontar o
Congresso Nacional, a Corte troca os pés pelas mãos.
Para começar, afirma-se que a decisão tomada nas ADPFs nº 850, 851 e
854 contraria o artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
(LINDB), pelo qual “nas esferas administrativa, controladora e judicial não se
decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as
consequências práticas da decisão”. O parágrafo único do referido dispositi-
vo impõe ainda a seguinte obrigação de motivação por parte do julgador: “a
motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da
invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive
em face das possíveis alternativas”.
O STF também reconheceu na Pet nº 8.002 que é dever do magistrado
“examinar as consequências imediatas e sistêmicas que o seu pronunciamento
irá produzir na realidade social”.
Nada obstante, a decisão se fundamentou em parâmetros normativos su-
mamente vagos como equidade, eficiência, impessoalidade, moralidade etc.
Com isso, há flagrante omissão quanto à consideração das seguintes conse-
quências práticas:

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/medidas-provisorias-e-estrategias-anti-
-democraticas-em-tempos-de-covid-19-14042020
2. https://www.jota.info/justica/stf-declara-que-contrabando-em-mps-e-costume-inconsti-
tucional-15102015
3. https://www.jota.info/stf/do-supremo/emendas-de-relator-maioria-no-stf-vota-para-
-manter-liminar-de-rosa-weber-09112021

136
Limites são mero detalhe quando o STF decide substituir o Congresso Nacional

1) A paralisação de diversas obras e serviços públicos, fruto da progra-


mação financeiro-orçamentária aprovada em lei pelo Congresso Nacional,
embaralhando o planejamento da ação estatal e a implementação de políticas
públicas, em prejuízo dos destinatários finais do gasto público, in casu, os cida-
dãos e em prejuízo para as empresas fornecedoras dos equipamentos ou obras
já contratados com recursos do RP-9;
2) O cancelamento dos empenhos já realizados a título de RP-9, regis-
trando-se que só em 2021 tal rubrica perfaz o montante de R$ 16,8 bilhões,
dos quais, atualmente, R$ 9,3 bilhões já foram empenhados (salientando que,
desse valor, R$ 4,6 bilhões foram destinados ao Ministério da Saúde) e R$ 3,5
bilhões já foram pagos a partir da utilização de RP-9 (dados extraídos da Nota
da Câmara dos Deputados); e
3) Como consequência do referido cancelamento, a destinação dos re-
cursos públicos cuja execução orçamentária foi suspensa será a sua devolução
ao Tesouro Nacional, destinação à formação de superávit e amortização dos
juros da dívida pública, em lugar de serem destinados às políticas públicas de
utilidade direta para os cidadãos, sendo até possível falar em “desperdício” de
recursos.
Um dos problemas da decisão está no fato de que a suspensão alcançou
não uma mera previsão orçamentária in abstrato na LOA, mas a execução or-
çamentária in concreto, já iniciada, e esse elemento da realidade precisa ser
levado em consideração pelo STF, o que não ocorreu na decisão.
Como sabido, após a devida autorização (isto é, previsão expressa do gasto
na LOA), as fases ou estágios da despesa pública são: empenho, liquidação e
pagamento, conforme a Lei nº 4.320/1964.
Em relação aos recursos identificados como RP-9, diversas dotações orça-
mentárias já foram empenhadas, liquidadas e pagas antes da suspensão.
Tal como foi prolatada, a decisão alcançou indistintamente situações jurí-
dicas materialmente diversas que englobam:

1) Atos jurídicos perfeitos, por exemplo, serviços prestados, obras pú-


blicas concluídas e bens e produtos entregues e já pagos regularmente
com verbas oriundas do identificador RP-9;
2) Direitos adquiridos, por exemplo, serviços prestados, obras públi-
cas concluídas e bens e produtos entregues e já liquidados, embo-
ra ainda não pagos, na forma dos arts. 62 e 63 da Lei nº 4.310/1964

137
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

(enfatizando-se que a liquidação é o ato administrativo que antecede,


é pressuposto do e atesta o direito adquirido ao pagamento);
3) Situações protegidas pela confiança legítima e boa-fé objetiva por
parte dos regularmente contratados pelo poder público que já ini-
ciaram a prestação de serviços, execução de obras e fornecimento de
bens e produtos, ou seja, situações em que a execução do próprio
contrato administrativo assinado pelo poder público está em anda-
mento, o que confere aos contratados o direito de receber o paga-
mento, ao menos, da parcela já executada do contrato, nos termos do
artigo 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993 – recordando-se que
essa antiga lei de licitações e contratos ainda está em vigor, dado o
prazo de vacatio legis do artigo 193 da Lei nº 14.133/2021; e
4) Meras expectativas de direito em relação a gastos previstos na LOA
2021, mas sem que tenha sido realizado o empenho ou, mesmo que
tenha sido realizado o empenho, ainda não houve a contratação ou,
ainda que tenha havido, não se iniciou a execução do contrato admi-
nistrativo.

Insista-se: a posição clássica na literatura do direito financeiro e na juris-


prudência do STF (AR nº 929, RE nº 79.111) de que a previsão orçamentária
não geraria quaisquer direitos – mas meras expectativas – apenas se aplica às
situações descritas no item 4 acima nas quais ainda não teve início a execução
do contrato administrativo relacionado à dotação.
As situações descritas nos itens 1 a 3 acima, por já terem início de exe-
cução contratual, liquidação e até pagamento pela Administração Pública,
geram, sim, direitos como consta da moderna doutrina administrativa e rei-
teradamente decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) – por exemplo,
REsps nº 876.140, nº 662.924, nº 545.471. A desconsideração desse fato na de-
cisão liminar gera verdadeiro “caos administrativo”, violando o princípio geral
do Direito expresso no artigo 884 do Código Civil que veda o enriquecimento
ilícito (da Administração em desfavor dos contratados que não deram causa
à nulidade orçamentária e, por conseguinte, do contrato administrativo que
ficará sem os respectivos recursos orçamentários para sua execução).
A decisão do STF, se não for modificada ou modulada em seus efeitos, po-
derá acarretar uma onda de judicialização em massa envolvendo ações de res-
ponsabilidade civil contra as três esferas (União Federal, estados e municípios)

138
Limites são mero detalhe quando o STF decide substituir o Congresso Nacional

ante a ausência de contraprestação e pagamento às empresas contratadas que


beneficiaram o poder público com bens e serviços.
Por isso, em situações como essa, para evitar o “vácuo jurídico”, recomen-
da-se a adoção da técnica adotada na ADI nº 3.649, em que foram modulados
os efeitos da declaração de inconstitucionalidade para preservar os contratos
celebrados à luz da lei considerada inconstitucional.
In casu, para evitar um prejuízo desmensurado, a decisão precisava ter ob-
servado se o prejuízo da anulação ou bloqueio será maior do que o decorrente
da manutenção do ato considerado inválido.
Inclusive, foi essa ponderação em desfavor da nulidade que aconteceu no
julgamento do tema nº 445 da repercussão geral do STF, que firmou a tese: “em
atenção aos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima, os Tribu-
nais de Contas estão sujeitos ao prazo de cinco anos para o julgamento da lega-
lidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma ou pensão, a contar
da chegada do processo à respectiva Corte de contas”.
A omissão apontada na decisão é indicativo de que pode se repetir o que
ocorreu por ocasião da ADI nº 4.029, em que o STF teve que “voltar atrás” e
modular os efeitos da determinação, de modo a evitar que “uma situação de
inconstitucionalidade propicie o surgimento de panorama igualmente incons-
titucional”, como foi expressamente consignado na decisão.
Além disso, observa-se que a decisão das ADPFs não especificou, de
modo preciso, as atribuições de cada uma das instituições responsáveis pelo
cumprimento das alíneas a e b do seu dispositivo, que faz menção indistinta:
1) ao Congresso Nacional (Senado Federal e Câmara dos Deputados), 2) à Pre-
sidência da República, 3) à Casa Civil da Presidência da República e 4) ao Mi-
nistério da Economia, os quais, como sabido, são instituições completamente
diferentes, organicamente separadas, sem que seja possível depreender qual
seria o papel de cada uma delas no cumprimento da determinação judicial.
Como se não bastasse tudo isso, existe uma contradição entre as deter-
minações das alíneas a (conferir publicidade) e b (centralização das RP-9 em
plataforma) – que podem ser atendidas nos próximos dias pelos destinatários
da ordem judicial – e a suspensão que consta da alínea c, que, tal como figura
na decisão, ocorrerá “até final julgamento de mérito desta arguição de descum-
primento”.

139
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Ora, a partir do momento em que as alíneas a e b sejam atendidas, não


faz sentido que a alínea c preveja que os valores permaneçam bloqueados até o
final do julgamento, sem data para ocorrer.
Por tudo o que se acaba de explicar, resta evidenciado que, mais uma vez,
o STF decide sobre questão que não conhece a fundo, guiando-se por alega-
ções que distorcem (ou não abordam todos) os fatos e, além disso, dispensan-
do pouca atenção ao significante impacto no interesse dos destinatários dos
recursos.
Houve clara realocação judicial de valores orçamentários em desconside-
ração dos critérios que nortearam a distribuição de recursos no plano legisla-
tivo e democrático.
Cabe observar que tal alocação dos recursos orçamentários foi decidida
por maioria dos congressistas em consonância com o processo legislativo or-
çamentário, sua destinação seguiu a Lei nº 8.666/93 e a legislação atinente a
contratos e convênios administrativos, transferências voluntária e obrigatória,
sem afastar a fiscalização dos respectivos órgãos internos e externos de contro-
le nas diferentes esferas federativas, nem proibir o Ministério Público e Poder
Judiciário de exercerem suas atribuições quando for o caso.
A decisão registra que, em relação aos recursos públicos consignados sob
a rubrica RP-9, teria sido verificada “a inobservância de quaisquer parâmetros
de equidade ou padrões de eficiência na eleição dos órgãos e entidades bene-
ficiários dos recursos alocados, restando constatada a inexistência de critérios
objetivos, orientados pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência (CF, artigo 37, caput ), aptos a orientar a destinação dos
recursos identificados pelo classificador RP 9”.
Ora, é equivocada a premissa de que todos os municípios e regiões devam
ser contemplados de maneira igualitária com os recursos identificados como
RP-9, porque a realidade (e, sobretudo, a necessidade) é diferente em cada can-
to do país, sendo essa desigualdade formal de tratamento fundamental para
corrigir as desigualdades regionais – objetivo da República previsto no artigo
3º, III, in fine, da CF – e atingir-se a tão almejada igualdade material com de-
senvolvimento nacional e erradicação de pobreza.
Além disso, não se pode menosprezar que existem parlamentares mais e
menos atuantes, isto é, com maior ou menor disposição para trabalhar em prol
da destinação de mais recursos às suas bases eleitorais. Essa é uma possível
explicação para eventuais disparidades na distribuição.

140
Limites são mero detalhe quando o STF decide substituir o Congresso Nacional

Enfim, tudo isso para mostrar que a decisão tomada nas ADPFs nº 850,
851 e 854 não é “tão correta” quanto pareceria superficialmente, sobretudo
quando se investiga mais a fundo o direito de regência e as consequências.
Assim, eventual resposta do Congresso Nacional estaria longe de repre-
sentar uma reação injustificada ao decidido pelo STF, seja a constitucionali-
zação da dinâmica dos recursos RP-9 (ou eventual mecanismo substitutivo),
seja a tentativa de restrição dos poderes do STF, que, como se vê, não vêm
encontrando muitos limites.

141
2 Ca p í tu lo
PODER LEGISLATIVO,
FISCALIZAÇÃO E CONTROLE
PARLAMENTAR
Que falta fazem as comissões
no Poder Legislativo?
Processo legislativo das crises até justifica
suspensão dos colegiados por um
tempo. A questão é: até quando?

Desde o dia 20 de março deste ano – quando o Congresso Nacional re-


conheceu o estado de calamidade pública, por intermédio do Decreto Legis-
lativo – DL nº 6/2020 – foram suspensos os trabalhos de todas as comissões,
permanentes e temporárias do Poder Legislativo, até que sejam retomadas as
atividades regulares do Congresso Nacional.
No Senado Federal, a expressa previsão nesse sentido veio com a decisão
do seu presidente no dia 22 de abril (com efeitos retroativos), em resposta à
Questão de Ordem nº 1/2020,1 formulada pelo senador Angelo Coronel, ten-
do por objeto específico a CPMI das Fake News. Na prática, a decisão acabou
servindo de fundamento para a paralização dos demais colegiados e também
de outros órgãos fracionários, como o Conselho de Ética e Decoro Parlamen-
tar.
Com isso, somente há duas comissões em funcionamento no Congresso
Nacional: 1) a comissão mista destinada a acompanhar a situação fiscal e a

1. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/questoes-de-ordem/-/q/detalhe/2866

145
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à emergência de


saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (Co-
vid-19),2 criada pelo próprio DL nº 6/2020; e 2) a comissão mista da reforma
tributária,3 cujo funcionamento também tinha sido suspenso em um primeiro
momento, mas em 31 de julho de 2020 voltou a funcionar.
A decisão de suspender as comissões por conta da pandemia, sobretudo
no primeiro momento, parece justificada. De fato, havia dificuldades suficien-
tes inerentes à própria virtualização das deliberações, de modo que se mostrou
razoável concentrar os esforços parlamentares no plenário, até mesmo como
forma de promover maior rapidez das decisões urgentes naquele momento.
Então, o funcionamento das comissões poderia acarretar atrasos indesejados
nas respostas legislativas de enfrentamento à crise da pandemia.
No entanto, nem por isso a opção legislativa deixa de ser problemática sob
alguns aspectos, os quais também precisam ser considerados, sobretudo agora,
passado o ápice da crise e em razão do longo período sem a participação desses
colegiados no processo de formação da vontade legislativa. Antes de abordar
os problemas acarretados pela falta das comissões, convém fazer um breve res-
gate sobre a relevância delas no Poder Legislativo.
Com a atual CF, pela primeira vez estabeleceu-se a obrigatoriedade de as
Casas Legislativas manterem tais colegiados especializados, conforme se de-
preende do art. 58: “O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões perma-
nentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no
respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação”.
Assim, o texto constitucional não deixou espaço para a não adoção dessa
forma de organização dos trabalhos do Poder Legislativo. Apenas a discipli-
na do funcionamento e das atribuições das comissões é remetida aos interna
corporis acta. Isso significa o reconhecimento constitucional da importância e
da utilidade desses órgãos fracionários, sobretudo para o processo legislativo.
Essa conclusão pressupõe alguns conhecimentos extrajurídicos e práticos so-
bre a dinâmica parlamentar e a organização interna do Poder Legislativo.
Em primeiro lugar, a necessidade de racionalização dos trabalhos legis-
lativos. Ao serem formadas por um número relativamente pequeno de par-
lamentares, as comissões proporcionam a divisão de tarefas e otimização do

2. https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2342
3. https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2334

146
Que falta fazem as comissões no Poder Legislativo?

trabalho. Órgãos muito numerosos como os Parlamentos têm inevitavelmente


um processo decisório de custos elevados (quanto mais agentes envolvidos,
mais difícil e demorado alcançar o resultado). Nesse contexto, sendo menores,
as comissões facilitam a tomada de (algumas) decisões coletivas, mostrando-
-se essenciais para o regular funcionamento do Poder Legislativo.
Desta forma, assim como dentro do Poder Judiciário existem as turmas
e câmaras, as comissões representam o elemento básico da organização dos
trabalhos dentro do Parlamento.
Em segundo lugar, tem-se a demanda de especialização dos debates par-
lamentares. Ao serem criadas em função de áreas temáticas, as comissões per-
mitem um debate mais abalizado das proposições legislativas. Considerando a
grande quantidade de temas sob exame no Poder Legislativo de forma simul-
tânea, seria impossível esperar de todos os parlamentares um conhecimento
informado sobre todos assuntos.
Como as comissões tendem a ser formadas por parlamentares com mais
experiência e versados na matéria respectiva do colegiado, isso garante um
nível mais aprofundado das discussões.
Em regra, nas comissões são tratados os aspectos mais técnicos das pro-
posições. Trata-se da mesma lógica que permeia alguns tribunais, como o STJ,
em que se segmentam as competências das turmas por temas.
Nesse sentido, por exemplo, o Regimento Interno da Câmara dos Deputa-
dos – RICD,4 em seu art. 32 traz a lista vigente das comissões especializadas
e suas respectivas esferas de atuação: hoje são um total de 25 as comissões per-
manentes. No Regimento Interno do Senado Federal – RISF,5 tal lista figura
no art. 72, contando com 13 comissões permanentes.
Tais números ensejam, por parte da literatura, a crítica de uma “excessiva
especialização”, que pulverizaria a atuação parlamentar. Talvez de fato fosse o
caso de encontrar o equilíbrio ideal, tanto do número de comissões, quanto da
quantidade de seus membros. No entanto, ainda assim, o fato é que as comis-
sões multiplicam a capacidade legislativa de debater temas simultaneamente.

4. https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-cama-
ra-dos-deputados
5. https://www25.senado.leg.br/documents/12427/45868/RISF+2018+Volume+1.pdf/cd-
5769c8-46c5-4c8a-9af7-99be436b89c4

147
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Em terceiro lugar, a exigência de um locus para a participação popular. É


nas comissões onde se pode garantir uma melhor “escuta ativa” das deman-
das sociais. Conforme expressamente prevê o art. 58, § 2º, incisos II, III, IV e
V, da CF, as comissões podem: realizar audiências públicas com entidades da
sociedade civil; convocar ministros de Estado para prestar informações sobre
assuntos inerentes a suas atribuições; receber petições, reclamações, represen-
tações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades
ou entidades públicas; e solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cida-
dão, sobretudo os expertos.
Sem dúvidas, o plenário não permitiria a realização ideal quanto ao nível
de participação desejado, daí mais uma vez a importância desse sistema de
descentralização funcional do Parlamento: as comissões são o locus por ex-
celência da participação popular, que é tão importante para a construção de
determinadas leis.
Em quarto lugar, tem-se o imperativo de informação, que se associa aos
elementos participativo e de especialização que acabaram de ser mencionados,
mas exige uma ênfase de modo separado. O art. 50, § 2º, da CF, autoriza as co-
missões a encaminhar pedidos escritos de informações a ministros de Estado
ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da
República.
Assim, a estrutura das comissões possibilita a produção de informações
(sobretudo de ordem fática) necessárias para uma decisão legislativa mais in-
formada. A apreciação dessas informações pelo colegiado também tenderia a
ser menos politizada (do que no plenário), embora não necessariamente isso
garanta mais racionalidade. Além disso, as informações ficam armazenadas
pelas equipes que compõem o corpo permanente de funcionários do Poder
Legislativo (staff), o que traria mais continuidade ao fluxo dos trabalhos.
Em quinto lugar, tem-se a reivindicação de eficiência na atividade legis-
lativa. Nesse sentido, pela primeira vez a atual CF delegou poderes legislativos
plenos às comissões – na Constituição de 1946, art. 67, § 5º, incluído pela EC
nº 17/65, chegou-se a prever essa possibilidade, mas por intermédio de dele-
gação legislativa específica das Casas para cada caso, não de forma automática
como ocorre desde 1988.
Assim, as comissões podem votar projetos de leis em caráter terminativo,
isto é, dispensando a deliberação do plenário (seja para aprovar, seja para re-
jeitar as proposições). Conforme expressamente prevê o art. 58, § 2º, inciso I,

148
Que falta fazem as comissões no Poder Legislativo?

da CF, as matérias votadas nas comissões em caráter terminativo somente vão


a plenário se houver recurso de um décimo dos membros da Casa respectiva.
Embora essa “novidade” só tenha chegado aqui em 1988, o poder legislati-
vo conclusivo das comissões já era empregado em outros Parlamentos mundo
afora, como na Itália (art. 72.3 da Constituição de 1948)6 e na Espanha (art.
75.2 da Constituição de 1978).7 No entanto, até hoje, não é adotada no Reino
Unido,8 nem na Alemanha,9 tampouco em outros países em que as comis-
sões existem, mas não com poderes tão amplos como no sistema instituído
nos EUA.10
A lógica de que as comissões tenham poderes para votar projetos de leis
em caráter conclusivo vem da necessidade de diminuir a sobrecarga do plená-
rio dos Parlamentos. Um dos principais problemas dessa faculdade legislativa
conclusiva das comissões, no entanto, está na definição de quais matérias fi-
cam sujeitas a essa dispensa de aprovação por parte do plenário.
No RISF, tal lista está especificada no art. 91, que, além de prever hipóteses
de tramitação terminativa obrigatória nas comissões, confere amplas margens
para o presidente, ouvidos os líderes, submeter ao poder terminativo das co-
missões outras matérias, com exceção das proibidas (também expressamente
listadas ali). No RICD, as matérias figuram no art. 24, inciso II. Neste último,
usa-se a terminologia “apreciação conclusiva”, em lugar da expressão “caráter
terminativo” empregada pelo RISF.
Nos dois regimentos, também foram previstas maneiras de retirar maté-
rias (que seriam aprovadas em caráter terminativo) do âmbito das comissões.
São basicamente três: 1) decurso do prazo de apreciação; 2) apensação a ou-
tra proposição (RISF, art. 258; RICD, art. 142); e 3) requerimento de urgência
(RISF, art. 336, inciso III; RICD, art. 155).
Na primeira situação, o RICD, art. 52, § 6º, garante que, esgotados os
prazos regimentais para o exame das proposições, o presidente da Câmara
dos Deputados poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer deputado,

6. https://www.governo.it/it/costituzione-italiana/parte-seconda-ordinamento-della-repub-
blica/titolo-i-il-parlamento/2852
7. https://www.boe.es/legislacion/documentos/ConstitucionCASTELLANO.pdf
8. https://www.parliament.uk/about/how/committees/
9. https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80060000.pdf
10. https://www.house.gov/committees

149
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

determinar o envio de proposição pendente de parecer à comissão seguinte


(quando mais de uma for designada para apreciar a matéria) ou diretamente
ao plenário. O RISF traz previsão semelhante no art. 255, inciso II, alínea c,
item 5, c/c art. 119.
Outra maneira de interferir no funcionamento das comissões diz respeito
à troca de seus membros, pois não há mandato.
Assim, a qualquer tempo, independentemente da apresentação de razões,
os membros das comissões podem ser substituídos pelos líderes, que têm esse
poder estratégico para mudar a composição desses colegiados (RISF, arts. 80 e
81; RICD, art. 10, inciso VI, e art. 28).
Diante desses instrumentos que podem tirar parte do poder desses órgãos
fracionários, alguns entendem que as comissões cumpririam papel meramente
secundário no processo legislativo.11 Ainda assim, trata-se de um falso dilema
o debate sobre o que é mais importante para o Poder Legislativo, se as comis-
sões ou o plenário. Na verdade, não se pode prescindir de nenhum dos dois.
Sem prejuízo do plenário, o fato é que as comissões ampliam as possibilidades
de participação dos legisladores e da sociedade.
Além das considerações de ordem jurídica, institucional e quanto à efi-
ciência dos trabalhos, é preciso registrar que as comissões também cumprem
uma importante função de arena decisória dentro dos Parlamentos, de modo
a equilibrar o exercício do poder, evitar abusos e abrir espaço para os proces-
sos de negociação política (logrolling). Funcionam como subsistema político,12
ainda que muitos dos acordos fechados nessa instância acabem não valendo na
rodada do plenário.
Seja como for, na prática, os presidentes das comissões também têm po-
der de agenda, inclusive para barrar proposições (gatekeeping powers), e po-
dem confrontar a atuação do presidente da Casa Legislativa e do próprio Po-
der Executivo. Podem funcionar como uma “pedra no sapato”. Por seu turno,
como já comentado, as comissões igualmente ensejam margem à atuação po-
lítica, dado o poder dos líderes em alterar sua composição, com impactos no
resultado dos trabalhos do colegiado.

11. https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/wDtxXwxzJzwMcr39ZmjD86m/?format=pdf&lang=pt
12. https://www.jstor.org/stable/1952367

150
Que falta fazem as comissões no Poder Legislativo?

Com isso, vai-se notando o papel fundamental desempenhado pelas co-


missões, tanto para aprovar proposições dispensando a deliberação do ple-
nário, quanto como rota obrigatória de passagem dos projetos de lei, como
instância para debatê-los melhor e para a apresentação de emendas, sobretudo
para “moldar” a deliberação do plenário quanto a determinados projetos de lei.
Após essa exposição, vê-se que a suspensão dos trabalhos das comissões
durante a pandemia – que poderia parecer um detalhe singelo e justificado
pelas circunstâncias – na verdade torna sem efeito uma previsão de ordem
constitucional, o art. 58, caput, da CF, e ainda traz consequências para o rito
de aprovação das leis e o jogo de poder político dentro das Casas Legislativas.
Com a paralização das comissões, é como se parte do Poder Legislativo
estivesse morta.
No caso do Senado, comissões de peso e grande influência no curso dos
debates parlamentares – como a Comissão de Constituição, Justiça e Cidada-
nia (CCJ) e a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) – deixaram de desem-
penhar seus papeis importantes nos conflitos legislativos.
Nem mesmo a virtualização da deliberação legislativa pela implantação
do Sistema de Deliberação Remota (SDR), a tramitação sumária das medi-
das provisórias, a separação das sessões conjuntas do Congresso Nacional, a
suspensão do trancamento da pauta deste último, as flexibilizações quanto ao
quórum de votações – ou quaisquer outras modificações feitas no processo le-
gislativo durante a pandemia – causam tanta diferença na deliberação quanto
o não funcionamento das comissões.
Nesses meses em que as comissões não vêm funcionando, diversas maté-
rias importantes foram aprovadas13 sem o debate aprofundado nesses órgãos
colegiados, que funcionam como uma “primeira instância deliberativa”. Por
exemplo: a que foi apelidada “PEC do Orçamento de Guerra”, resultante na
EC nº 106/2020; o “Plano Mansueto”, que acabou sendo desfigurado e resultou
na LC nº 173/2020, que concedeu o auxílio financeiro emergencial da União
aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios para mitigar os efeitos da
pandemia.

13. https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2020/04/coronavirus-propostas-de-
-enfrentamentro-aprovadas-no-senado

151
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Mais recentemente, cite-se o Projeto de Lei Complementar – PLP nº 133,


de 2020,14 que disciplina o pagamento das perdas de arrecadação provocadas
pela aprovação da Lei Kandir (LC nº 87/1996), cujo assunto tinha sido objeto
de acordo homologado no âmbito da ADO nº 25 junto ao STF.15
Convém recordar que a falta das comissões já ensejou a inconstituciona-
lidade declarada na ADI nº 4.029, especificamente para as comissões mistas
para analisar as medidas provisórias (art. 62, § 9º, da CF).
Após tal decisão do STF, com a obrigação de criar tais colegiados, muitas
críticas vêm sendo dirigidas à ineficiência da atuação deles, sobretudo pelas
razões já expostas acima: manejo estratégico da composição, “inutilidade” de
alguns debates que são completamente alterados no plenário e inércia de um
grande número de colegiados, que acabam simplesmente consumindo o tem-
po da tramitação sem efetivamente contribuir para o debate. O problema, no
entanto, é mais uma vez das práticas constitucionais, não de desenho, de forma
semelhante ao apontado aqui.16
Agora que os parlamentares estão familiarizados com o SDR, o caso seria
de reavaliação da decisão de suspensão dos órgãos fracionários, que poderiam
funcionar também virtualmente ou mesmo de forma semipresencial, consi-
derando a retomada de parte dos trabalhos nas dependências do Congresso
Nacional.
Trata-se de usar o desenho institucional para dar um empurrãozinho no
comportamento dos parlamentares. De modo geral, os ganhos advindos da
especialização, dos debates nas comissões, e mesmo da politização, são mui-
to superiores às perdas em termos de celeridade (ou suposta ineficiência) da
tramitação.

14. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/142075
15. https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADO25QOVotoMGM3.pdf
16. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/sabatina-senado-noto-
rio-conhecimento-especialidade-30092020

152
Para onde foi o bicameralismo
no Congresso Nacional?
SDR determinou que sessões conjuntas
ocorrem em separado, com impactos na
apreciação dos vetos presidenciais

Em termos de desenho institucional, o Poder Legislativo pode ser uni-


cameral – isto é, composto por uma única Casa Legislativa – ou bicameral,
situação em que Parlamento é formado por duas Casas que dividem o poder
da elaboração normativa. A rigor, não existe um modelo “melhor” que outro,
mas sim que “funcione” (ou não) na respectiva realidade, dentro do marco dos
demais constrangimentos institucionais em que se insere.
A despeito disso, a doutrina costuma tecer considerações sobre as vanta-
gens e riscos de cada um. Por exemplo, associa-se o unicameralismo à ideia
de um Parlamento mais eficiente (mais rápido, simples, menos custoso, que
evitaria duplicidades de trabalho e impasses), sendo frequente encontrá-lo em
Estados unitários, menores e que adotam o sistema de governo parlamentar.
Por seu turno, o bicameralismo contempla a necessidade de limitar o po-
der por outro poder, funcionando, assim, como um subproduto do princípio
da separação dos poderes. Entre as vantagens do modelo bicameral, estão: 1) a
instituição de uma segunda Casa capaz de controlar o que é feito pela primei-
ra, com uma revisão e maior reflexão a partir de um corpo mais experiente (a
depender do critério de recrutamento); e 2) a especialização da representação,

153
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

que também se torna mais variada, com a segunda Casa mais voltada para os
interesses de entes regionais, socioculturais ou de contestação democrática,
proporcionando um equilíbrio no sentido contramajoritário e em detrimento
de maiorias de ocasião (se adotado o fator de incongruência eleitoral).
A divisão do Poder Legislativo em duas Casas é mais frequentemente en-
contrada em Estados federais, com maior dimensão territorial e que adotam o
sistema de governo presidencial.
No entanto, o que realmente importa é desvelar quais são os incentivos
que tais desenhos institucionais acarretam no comportamento de seus mem-
bros e nos demais atores políticos. Em outras palavras, interessa saber que es-
tratégicas emergem a partir da arquitetura constitucional do Poder Legislati-
vo – sobretudo no sistema bicameral, em que também há uma interação das
próprias Casas Legislativas entre si – e quais são seus impactos na performance
do governo. Trata-se da ótica desde uma análise econômica do processo legis-
lativo ou teoria da escolha pública (public choice theory).
Antes de avançar nesse ponto, convém explicar o modelo brasileiro. O
Congresso Nacional é composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado
Federal (art. 44 da CF). Aqui, o bicameralismo é do tipo federativo, pois veio
atender, de modo especial, à forma federal do Estado, na medida em que na
Câmara estão os representantes do povo (art. 45 da CF), ao passo que no Se-
nado estão os representantes dos Estados e do Distrito Federal (art. 46 da CF).
Em contraste, por exemplo, com o bicameralismo aristocrático inglês, em que
uma das Casas representa a nobreza (Câmara dos Lordes) e a outra os plebeus
(Câmara dos Comuns). Nos dois casos, resta evidenciado que são duas forças
de natureza bastante distintas que “moldam” as decisões legislativas.
Pode-se dizer que o bicameralismo brasileiro adotou, ao mesmo tempo,
três formatos. Em primeiro lugar, para a aprovação de emendas à Constituição,
tem-se um bicameralismo “puro” ou simétrico, com perfeito equilíbrio entre
as duas Casas Legislativas, como instituído no art. 60, § 2º, da CF (para ser
aprovada, a PEC precisa ser discutida e votada em cada Casa, em dois turnos,
devendo obter três quintos dos votos dos respectivos membros).
Em segundo lugar, para a aprovação das demais espécies legislativas do
art. 59 da CF (com exceção das emendas à Constituição já referidas acima),
o bicameralismo é “mitigado” ou assimétrico, porquanto o constituinte tenha
previsto as figuras da Casa iniciadora e da Casa revisora (art. 65 da CF), com
a preponderância da primeira sobre a segunda. Além disso, especificamente

154
Para onde foi o bicameralismo no Congresso Nacional?

em se tratando de resoluções, cada Casa atua de forma isolada, autônoma ou


unicameral.
Como se vê, no desempenho regular das funções legislativas, as duas Ca-
sas funcionam separadamente, muito embora – convém recordar – o cons-
tituinte tenha decidido uni-las por ocasião da revisão da Constituição, após
5 anos da sua promulgação. Pelo art. 3º do ADCT, previu-se que a revisão
constitucional seria aprovada pelo voto da maioria absoluta das duas Casas,
em sessão unicameral, ou seja, com deputados e senadores ao mesmo tempo,
com votos computados conjunta e indistintamente (e o peso do voto de um
deputado seria igual ao de um senador). Disso resultaram as Emendas Cons-
titucionais de Revisão (ECR), que apenas puderam ser promulgadas durante a
janela temporal que já se fechou (foram editadas apenas 6 no ano de 1994).1
Em terceiro lugar, para completar o modelo brasileiro de bicameralismo,
a CF ainda estabeleceu o que se pode chamar de “híbrido”: situações em que
as duas Casas devem se reunir em sessões conjuntas (que não devem ser con-
fundidas com reuniões unicamerais acima), e, em caso de deliberação, os votos
são contados separadamente. Em regra, primeiro votam os deputados, depois
os senadores, exceto nas situações de apreciação de veto presidencial a projeto
de iniciativa de senador, conforme o art. 43, § 2º, do Regimento Comum do
Congresso Nacional – RCCN.2
As sessões conjuntas ocorrem para: promulgar emendas à Constituição
(art. 60, § 3º), discutir e votar o orçamento (art. 48, inciso II, c/c art. 166,
caput), delegar ao presidente da República poderes para elaborar leis delega-
das (art. 68), e, ainda, conforme o art. 57, § 3º, da CF, sem prejuízo de outras
situações previstas na CF, para: I – inaugurar a sessão legislativa; II – elaborar
o regimento comum e regular a criação de serviços comuns às duas Casas;
III – receber o compromisso do presidente e do vice-presidente da República;
IV – conhecer do veto e sobre ele deliberar.
É sobre esse último caso que se queria chamar a atenção: pela CF, os ve-
tos presidenciais são apreciados em sessão conjunta do Congresso Nacional
e podem ser rejeitados pela maioria absoluta de deputados e senadores. Isso
significa que, para o Congresso Nacional derrubar um veto do presidente da
República, são necessários 257 votos na Câmara dos Deputados e também 41

1. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/ECR/quadro_ecr.htm
2. https://www25.senado.leg.br/documents/59501/97171143/RCCN.pdf/

155
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

votos no Senado Federal. Trata-se de regra mantida nos textos constitucionais


desde a Constituição de 1946.
Pelo art. 66, § 4º, da CF, essa deliberação deve ocorrer no prazo de até 30
dias a contar do recebimento dos motivos do veto. Esgotado esse prazo, os
vetos pendentes de deliberação há mais de 30 dias acarretam o sobrestamento
das demais deliberações do Congresso Nacional (art. 66, § 6º, da CF). Trata-se
do conhecido “trancamento da pauta” (no caso, da pauta do Congresso Nacio-
nal, e não de cada uma das Casas Legislativas).
Como sabido, desde o início da pandemia do coronavírus (Covid-19), as
deliberações tanto da Câmara, quanto do Senado vêm ocorrendo por intermé-
dio de seus respectivos Sistemas de Deliberação Remota (SDR) – instituído, na
primeira, pela Resolução nº 14, de 2020 (regulamentada pelo Ato da Mesa nº
123, de 2020),3 e, no segundo, pelo Ato da Comissão Diretora nº 7, de 2020.4
Tais atos não trouxeram previsão expressa quanto à possibilidade de apre-
ciação dos vetos presidenciais via SDR (e de fato, desde março não se reali-
zavam sessões para votá-los). No entanto, na linha do que foi argumentado
aqui,5 tal omissão dos referidos atos não é capaz de suprimir qualquer das
competências constitucionalmente previstas do Poder Legislativo. Assim, não
há problema na deliberação remota dos vetos presidenciais retomada em agos-
to.
Ocorre que não foi criado um SDR específico para o Congresso Nacional,
isto é, que reunisse as duas Casas Legislativas ao mesmo tempo. Isso, a despeito
da aparente viabilidade técnica da ferramenta, capaz de reunir até 600 partici-
pantes simultaneamente6 – lembrando que são 513 deputados e 81 senadores
(= 594 parlamentares). Assim, durante a pandemia, em razão dos SDR, as ses-
sões conjuntas do Congresso Nacional vêm sendo realizadas separadamente.
Mais especificamente: as sessões conjuntas têm sido divididas em horários.
Na sessão do último dia 19 de agosto, por exemplo, às 10h ocorreu só com os

3. https://www2.camara.leg.br/legin/int/atomes/2020/atodamesa-123-20-marco-
-2020-789867-norma-cd-mesa.html
4. https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2020/03/17/ato-da-comissao-diretora-
-no-7-de-2020
5. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/e-possivel-emendar-a-constituicao-via-
-deliberacao-remota-durante-a-calamidade-publica-29042020
6. https://www12.senado.leg.br/institucional/covid/gestao-administrativa/o-que-funciona-
-na-area-legislativa-do-senado

156
Para onde foi o bicameralismo no Congresso Nacional?

deputados, às 16h só com senadores, e às 19h só com deputados.7 O terceiro


horário se deu justamente para que a Câmara apreciasse os vetos dos projetos
iniciados no Senado.
Esclareça-se que, do ponto de vista jurídico, tais sessões conjuntas no SDR
continuam sendo unitárias, de forma análoga às audiências no Poder Judiciá-
rio (conforme o art. 365 do CPC), que seguem sendo contínuas, mesmo diante
de uma excepcional e justificada cisão, permitindo o desmembramento em da-
tas diferentes. É também a mesma lógica da unicidade dos julgamentos nos tri-
bunais: uma vez iniciado, os votos prolatados em datas subsequentes formam
parte do mesmo ato de julgamento colegiado, pois nas palavras do min. Cezar
Peluso, o julgamento colegiado “é materialmente fragmentado, mas é unitário
do ponto de vista jurídico” (questão de ordem na Rcl nº 1.503).8
Já sob a ótica institucional, essa nova dinâmica legislativa implicou, na
prática, uma espécie de “fracionamento” da deliberação parlamentar quanto
aos vetos e, consequentemente, maior margem para o comportamento estraté-
gico entre as Casas Legislativas perante o Palácio do Planalto. É dizer, houve o
aumento dos custos da decisão legislativa.
Foi o que aconteceu, por exemplo, no último dia 19 de agosto, quando o
Senado rejeitou um veto presidencial.9
Como a decisão final legislativa ainda dependeria da análise da Câmara
(que pela sistemática do SDR se daria num momento subsequente ainda que,
juridicamente, fosse a mesma sessão já iniciada), criou-se uma brecha maior
para uma espécie de barganha política que não existiria no modelo de deli-
beração desenhado originalmente pelo constituinte. No caso citado, somente
no dia seguinte, e após negociações com o governo, a Câmara manteve o veto
presidencial.10
Outra consequência que acabou sendo atribuída às “sessões conjuntas,
mas separadas” do Congresso Nacional é a não aplicação do trancamento da

7. https://www.congressonacional.leg.br/sessoes/agenda-do-congresso-senado-e-cama-
ra/-/agenda/2020-08-19
8. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595365
9. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/08/19/senado-derruba-veto-a-rea-
justes-a-policiais-medicos-e-professores-na-pandemia-texto-depende-da-camara
10. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,camara-mantem-veto-de-bolsonaro-a-
-reajustes-de-servidores-publicos-ate-fim-de-2021,70003407088

157
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

pauta previsto na CF, art. 66, § 6º.11 O argumento apresentado nesse senti-
do foi o de que, como as sessões não são simultâneas, não se caracterizariam
como “sessão conjunta” para fins do trancamento previsto na CF. Além disso,
insistiu-se na justificativa apresentada quanto à impossibilidade das sessões
síncronas, em razão de dificuldades técnicas na autenticação necessária para a
contagem dos votos dos parlamentares em separado. Ainda assim, é duvidosa
a implicação disso sobre o trancamento da pauta do Congresso Nacional.
No entanto, o fato é que tal “flexibilização” do trancamento também se
justifica no presente momento e contexto, pois atende às necessidades de-
correntes da pandemia, na medida em que tem permitido que os projetos de
matéria orçamentária (tão necessários nesse momento) sejam aprovados mais
rapidamente,12 pois não ficam retidos pelo sobrestamento das deliberações.
Assim, a leitura estrita da CF nesse ponto, em lugar de proteger direitos, tende-
ria a prejudicá-los, o que legitima a interpretação parlamentar adotada.
A mesma reflexão vale para o funcionamento do Congresso Nacional, de
modo geral, ante as atuais recomendações de distanciamento social. Sem dú-
vidas, é melhor, mais legítimo e democrático ter um Parlamento funcionando,
ainda que remotamente, do que o contrário, especialmente ante a notícia de
que vários Parlamentos ao redor do mundo fecharam em razão da pandemia.13
O Poder Legislativo teve que lidar com inúmeros desafios, ainda em cur-
so, o que exige um chamado à compreensão para com a presente conjuntura,
pois importa mais que os debates legislativos continuem ocorrendo, e refletin-
do as preferências das maiorias quanto às soluções para enfrentar a crise.
Do ponto de vista interno, tais medidas adotadas pelo Congresso Nacional
vêm sendo elogiadas, com indicadores apontando para uma maior eficiência
nas deliberações. De fato, as sessões conjuntas tradicionalmente são palco das
diversas táticas parlamentares obstrucionistas, com diversas protelações e com
frequência são derrubadas por falta de quórum, o que foi reduzido com o SDR.
Os parlamentares, especialmente os senadores, estão muito satisfeitos (alguns

11. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/13/vetos-nao-trancam-pauta-
-de-sessoes-remotas-do-congresso-nacional
12. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/06/23/davi-alcolumbre-anuncia-
-que-vetos-presidenciais-serao-examinados-em-1o-de-julho
13. https://ial-online.org/wp-content/uploads/2020/07/Covid-19Legislatures-26-6-20-FW1.
pdf

158
Para onde foi o bicameralismo no Congresso Nacional?

já há muito se queixavam e deixaram de frequentar tais sessões conjuntas). Por


isso, há chances de que o modelo tenha vindo para ficar.
A mudança nesse desenho da análise dos vetos presidenciais é uma de-
manda congressista relativamente antiga, contando, inclusive, com propostas
de emenda à Constituição para mudar o desenho atual da CF, aplicável para as
reuniões presenciais. Nesse sentido, cite-se, por exemplo, a mais recente delas,
a PEC nº 224, de 2019,14 de autoria do senador Angelo Coronel. Pela proposta,
somente os vetos a projetos de lei de natureza orçamentária permaneceriam
com deliberação em sessão conjunta. Fora dessa hipótese, a apreciação dos
vetos seria feita separadamente em cada uma das Casas.
Agora, retomando à indagação suscitada inicialmente, fica mais fácil per-
ceber quais são as consequências do bicameralismo brasileiro quanto à análise
dos vetos presidenciais e os incentivos que esse novo desenho acarretaria no
comportamento dos parlamentares.
Da existência de uma segunda Casa Legislativa e dos seus poderes, sur-
gem diferenças importantes nas relações entre Poder Legislativo e Poder Exe-
cutivo no Brasil e na dinâmica da tomada de decisões. Como se vê, a arquite-
tura constitucional e o desenho interno do Poder Legislativo importam muito.
A apreciação de vetos em sessões conjuntas (e simultâneas) acaba sen-
do uma forma de diminuir o poder do Congresso Nacional frente ao Poder
Executivo, especialmente em comparação com um desenho em que tal deli-
beração ocorra em “sessões conjuntas, mas separadas”, com o já mencionado
“fracionamento” da decisão legislativa. Um lapso temporal maior no processo
decisório pode gerar o incentivo a decisões, por assim dizer, mais calculadas,
planejadas e negociadas.
Por um lado, a Casa que analisa o veto em primeiro lugar teria mais po-
der sobre a segunda Casa para manter um veto presidencial. Por exemplo: se
na Câmara se decide pela manutenção, a análise sequer segue para o Senado
e decisão dos deputados é a final. Por outro lado, se a Casa que analisa pri-
meiramente rejeita um veto presidencial, a Casa que analisa por último tem
aumentados seus poderes de negociação e barganha política junto do Poder
Executivo, pois dependeria só dela a confirmação ou não do aceno à derruba-
da do veto presidencial, ensaiado pela Casa Legislativa anterior.

14. https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8054544&ts=1594008755330&-
disposition=inline

159
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Como a maioria dos projetos de leis é iniciada na Câmara dos Deputados,


que apreciaria os vetos presidenciais em primeiro lugar na maior parte dos
casos (pela já citada regra do art. 43, § 2º, do RCCN)15, o Senado Federal ten-
deria a sair ganhando significativamente com esse novo desenho, pois estaria
em suas mãos “salvar” o governo.
A pauta dos vetos que serão votados em setembro já foi divulgada.16 Só
resta saber se, cessada a pandemia e fora do SDR, o bicameralismo no Con-
gresso Nacional realmente irá por esse caminho.

15. https://www25.senado.leg.br/documents/59501/97171143/RCCN.pdf/
16. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/08/28/congresso-define-vetos-de-
-bolsonaro-que-serao-votados-em-setembro

160
Para que serve o quórum
nos órgãos colegiados?
Se um parlamentar sozinho não pode
tomar decisões políticas, tampouco
deveria podê-lo um ministro do STF

Uma das características associadas ao processo de tomada de decisões


em órgãos colegiados é a de que não se deve transferir o poder decisório (em
nome do todo) a uma fração muito pequena de seu número total de membros.
Isso vale tanto para os parlamentos, quanto para os tribunais.
No Poder Judiciário, essa lógica per se (infelizmente) não é capaz de supri-
mir decisões monocráticas que eventualmente podem ser necessárias diante
de situações excepcionais de grave urgência, sempre e quando resulte impossí-
vel a reunião do colegiado a tempo de evitar danos irreparáveis (nos períodos
de recesso, por exemplo).
Fora dessas situações, parece desnecessário dizer que a natureza colegiada
dos tribunais exigiria a fixação de um número mínimo de membros para vali-
dar suas deliberações. A rigor, a não instauração da reunião (ou, a inexistência
de quórum na sessão) deveria tornar inviável a decisão.
Quando uma porção muito diminuta de um órgão colegiado atua, existe
o risco de que essa decisão represente justamente o contrário do que votaria
a pluralidade. Se isso acontece em concreto (e, sobretudo, se os efeitos dessa

161
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

opção particular se protraem no tempo), há abuso de poder, já que este foi


usurpado em detrimento do órgão colegiado.
Se esse vício não é contornado imediatamente, o perigo adicional é o de
que outra fração do órgão colegiado anule o que foi decretado antes, em uma
guerra cuja vergonhosa derrota será necessariamente de todos: dos membros
envolvidos, da instituição e dos destinatários dessas ordens desencontradas.
Diferentemente do que se passa nos tribunais, no Poder Legislativo, resul-
taria impossível que a vontade de único parlamentar pudesse representar a da
Casa Legislativa inteira. A CF, art. 47, estabelece claramente: “Salvo disposição
constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa e de suas Comissões
serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus mem-
bros”.
Tal texto normativo trouxe duas regras: uma relativa ao quórum de deli-
beração (número de membros necessários para se proceder ao processo deci-
sório) e outra quanto à necessidade de maioria para a aprovação (número de
votos favoráveis).
Pela primeira regra, exige-se um quórum de deliberação consistente na
presença da maioria absoluta para legitimar a votação – isso equivale ao com-
parecimento de, pelo menos, 257 deputados na Câmara dos Deputados e 41
senadores no Senado Federal.
Com menos parlamentares, não é possível iniciar os processos de votação.
Pela segunda regra, diante desse quórum de deliberação, as decisões só podem
ser tomadas pela maioria simples (ou relativa) dos presentes.
Como ressalvado no dispositivo mencionado, a própria CF traz exceções
expressas, que demandam uma maioria qualificada de aprovação.
É o caso, por exemplo:

a) da maioria absoluta para a aprovação dos projetos de lei complemen-


tar (art. 69 da CF) e das emendas constitucionais de revisão (art. 3º do
ADCT, de eficácia já exaurida);
b) da necessidade de 3/5 para a aprovação das propostas de emenda à
Constituição (art. 60, § 2º, da CF) e dos tratados e convenções in-
ternacionais sobre direitos humanos aos quais se pretenda conferir
status de emendas constitucionais (art. 5º, § 3º, da CF);
c) da exigência de 2/3 para autorizar a instauração de processo contra o
presidente e o vice-presidente da República e os ministros de Estado

162
Para que serve o quórum nos órgãos colegiados?

(art. 51, inciso I, da CF) e para a condenação nos crimes de responsa-


bilidade (art. 52, parágrafo único, da CF); e
d) da necessidade de 2/5 do Congresso Nacional para a não renovação
da concessão ou permissão para o serviço de radiodifusão sonora e
de sons e imagens (art. 223, § 2º, da CF).

Chama-se a atenção para a forma de aferir essa maioria qualificada pre-


vista na CF: deve-se levar em conta o total de membros da Casa Legislativa (e
não o número de participantes ou os votos registrados na deliberação).
Essa interpretação hoje parece óbvia, mas o tema já chegou a ser objeto
do MS nº 20.452, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a tese de
que a contagem se referia aos que emitissem voto (tese essa que se valeu da
ambiguidade da expressão “dois terços dos votos dos membros” usada no art. 48
da EC nº 1/69).
Embora o art. 47 da CF seja claro quanto à necessidade do voto da maioria
simples (ou relativa) dos presentes, não definiu de antemão o que conta como
“voto válido”, isto é, qual é o tratamento que deve ser dado aos votos em branco
e às abstenções verificadas nas votações.
O Regimento Interno do Senado Federal – RISF, art. 288, § 2º, determina
que serão computados, para efeito de quórum, os votos em branco e as absten-
ções. Ou seja, esses são excluídos no resultado final (não entram como votos
válidos).
Com isso, por exemplo, se estiverem presentes 45 senadores, dos quais 20
votaram sim, 18 votaram não e 7 se abstiveram, serão apenas 38 os votos váli-
dos (45 – 7 = 38), e a proposição terá sido aprovada com 20 votos, que é mais
da metade desses votos válidos.
Essa forma de cálculo, no entanto, poderá ser problemática nas situações
em que o número de abstenções e/ou o dos votos em branco for elevado. Ima-
gine-se, hipoteticamente, uma deliberação no Senado Federal com o seguinte
resultado: presentes 41 senadores, 13 votos favoráveis, 7 votos contrários e 21
abstenções.
Aplicando-se a regra de cálculo regimental, a proposição terá sido aprova-
da por 13 votos, muito embora esse número não corresponda à maioria sim-
ples dos presentes.

163
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Levada essa forma de cálculo ao extremo, bastaria um único voto favorá-


vel para considerar a matéria aprovada, desde que não haja votos em contrário
e os demais tenham votado em branco ou manifestado abstenção.
Para sanar o problema mencionado, a melhor solução parece ser o es-
tabelecimento de uma regra para fixar, adicionalmente à existente, que uma
proposição somente será considerada aprovada quando o número de votos
favoráveis superar a quantidade de votos contrários, brancos e abstenções. Do
contrário, considera-se que foi rejeitada, tal como acontece quando não se for-
ma o quórum qualificado exigido constitucionalmente.
Nessa linha, inclusive, mencione-se o entendimento do Parecer da Comis-
são de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal nº 1.010, de
2004, que conclui pela necessidade de que a quantidade de votos “sim” efetiva-
mente alcance a maioria simples dos votantes.
Portanto, onde a CF, art. 47, diz “maioria dos votos”, deve-se entender
como a necessidade de que o número de votos favoráveis seja superior à quan-
tidade de votos contrários, brancos e abstenções.
Ainda quanto ao quórum, vale registrar que, pelo art. 51 do RISF, o presi-
dente não vota, mas conta para a formação do quórum, assim como o senador
que se declare impedido de votar, por ter interesse pessoal na matéria, nos
termos do art. 306 do RISF.
Outra questão interessante diz respeito ao momento em que se deve re-
putar constituído o quórum. Em uma leitura estrita, o art. 47 da CF exigiria
que somente diante da presença da maioria absoluta dos membros pudesse ser
aberta a sessão.
No entanto, o art. 155 do RISF autoriza que, ante a presença de 1/20 da
composição do Senado, sejam iniciados os trabalhos, ou seja, basta que este-
jam pelo menos 4 senadores para o início da sessão. Já o art. 108 permite que
as comissões se reúnam com a presença de 1/5 de seus membros.
Por seu turno, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados – RICD,
art. 79, § 2º, prevê que as sessões podem ser iniciadas com a presença de 1/10
dos deputados, ao passo que as comissões podem iniciar suas reuniões se me-
tade dos membros estiverem presentes ou, com qualquer número, se não hou-
ver matéria sujeita a deliberação ou se a reunião se destinar a conhecimento,
exame ou instrução de matéria de natureza legislativa, fiscalizatória ou infor-
mativa, ou outros assuntos (art. 50).

164
Para que serve o quórum nos órgãos colegiados?

Já o Regimento Comum do Congresso Nacional – RCCN, art. 28, permite


que as sessões conjuntas sejam abertas com a presença mínima de 1/6 da com-
posição de cada Casa (ou seja, com 14 senadores e 86 deputados).
Na prática, portanto, ao fixar um quórum de abertura, os regimentos in-
ternos estabelecem uma espécie de quórum in constituendo, na medida em que
as sessões e reuniões são iniciadas sem que o número constitucional mínimo
para a votação tenha sido alcançado de plano, de modo que esse número míni-
mo exigido pode ir se formando ao longo da sessão ou reunião.
Nada obstante a importância do quórum, desde o início da pandemia,
o processo legislativo das crises tem imposto sacrifícios à presença dos par-
lamentares e observa-se que as regras quanto ao quórum têm sido umas das
mais flexibilizadas, tanto na experiência internacional, quanto no Brasil.
Na Câmara dos Deputados, por exemplo, o art. 6º do Ato da Mesa nº
123, de 2020, permite que o parlamentar registre sua presença no Sistema de
Tramitação e Informação Legislativas – Infoleg a partir de 2 horas antes do
horário designado para a sessão.
Para efeito de quórum de abertura da sessão e de início da ordem do dia,
considera-se como presença esse registro do parlamentar no Infoleg, o qual é
válido para todo o tempo da sessão, ou seja, não há verificação posteriormente.
Como se vê, houve uma clara flexibilização do quórum ou, se se prefere, criou-
-se uma ficção de modo a operacionalizar a ideia de quórum.
Por seu turno, no Senado Federal, o Ato da Comissão Diretora nº 7/2020,
art. 11, § 2º, estabeleceu que o quórum será apurado apenas no momento da
votação, independentemente do número de parlamentares conectados na fase
de discussão da matéria. Em tempos normais, a medida implicaria uma clara
subversão da lógica de um quórum para abrir os trabalhos, discutir e deliberar
sobre as matérias.
Considerando que no âmbito do Poder Legislativo o quórum de delibera-
ção e a maioria necessária para a aprovação das decisões são previstos no texto
constitucional, a observância dessas regras é formalidade essencial à validade
das decisões, sobretudo das leis aprovadas.
Justamente por isso, ao redor do quórum giram diversas táticas parlamen-
tares que podem ser usadas estrategicamente na barganha política ou paralisa-
ção do processo decisório, como, por exemplo, o pedido de verificação de vo-
tação (RICD, art. 185, §§ 1º e 4º, e RISF, art. 293, inciso III), cujo objetivo nada

165
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

mais é do que certificar se ainda há quórum, pois é natural o esvaziamento do


plenário durante a sessão, especialmente nas longas.
Essas regras regimentais têm importância fulcral na atividade parlamen-
tar: havendo-se procedido a uma verificação de votação, só será permitida
nova verificação após o decurso de 1 hora, exceto em caso de requerimento
de 1/10 dos deputados ou de líderes que representem esse número (RICD, art.
185, § 4º). A mesma regra está no RISF, art. 293, inciso V.
Outra tática parlamentar sobre o quórum consiste na chamada “obstrução
legítima”, declarada pelo líder do partido ou do bloco parlamentar, por inter-
médio da qual se cria uma ficção jurídica, qual seja, a retirada da presença dos
parlamentares representados somente para o cômputo do quórum da sessão,
mesmo com sua permanência física ali em plenário.
De resto, a presença dos parlamentares é considerada para os demais fins,
especialmente o constante do art. 55, inciso III, da CF. No RICD, a obstrução
legítima consta do art. 82, § 6º. No RISF, figura no art. 13, § 2º.
Na prática, funciona como uma verdadeira “ausência ficta”, e precisa ser
comunicada à Mesa para que se proceda à baixa no quórum, o que também
pode acabar derrubando a sessão. Trata-se de um expediente bastante usado
pelas minorias como uma maneira de dificultar a obtenção do número míni-
mo de votos necessários e, assim, forçar negociações políticas.
Por tudo isso, mais uma vez vai-se vendo a importância dos desenhos
institucionais na conformação do processo decisório no Poder Legislativo. No
Parlamento, por mais que algumas regras possam ser flexibilizadas (como um
quórum menor de abertura e a figura da “obstrução legítima”), jamais se abre
mão do quórum, e as decisões são sempre coletivas, como deve ser em órgãos
colegiados. É impensável uma lei aprovada (sequer provisoriamente) por um
único congressista.
Para o Poder Judiciário, a CF não chegou a fixar um quórum para a aber-
tura dos trabalhos. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN (LC
nº 35/79) tampouco. A matéria acabou ficando para a disciplina dos regimen-
tos internos dos tribunais, a despeito de o CPC, art. 941, § 2º, ter estabelecido
que, no julgamento de apelação ou de agravo de instrumento, a decisão será
tomada, no órgão colegiado, pelo voto de 3 juízes.
No Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal – RISTF, art. 143,
consta que o plenário se reúne com a presença mínima de 6 ministros, tendo
o parágrafo único fixado o quórum de 8 ministros para a votação de matéria

166
Para que serve o quórum nos órgãos colegiados?

constitucional e para a eleição do presidente e do vice, dos membros do Con-


selho Nacional da Magistratura e do Tribunal Superior Eleitoral.
Especificamente para a declaração de inconstitucionalidade por parte dos
tribunais, a CF, art. 97, fixou o quórum da maioria absoluta de seus membros
(ou dos membros do respectivo órgão especial) para que possam declarar a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.
A previsão constitucional de maioria qualificada também foi a estabele-
cida no art. 103-A da CF: exige-se o voto de 2/3 dos membros do STF para a
aprovação de súmulas vinculantes.
No plano infraconstitucional, a Lei nº 9.868/99, art. 27, também exigiu a
maioria de 2/3 para a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucio-
nalidade. E para a ADPF, o mesmo quórum é necessário para a restringir os
efeitos da decisão, nos termos do art. 11 da Lei nº 9.882/99.
Não se desconhece que ao relator são conferidos importantes poderes,
com destaque para a incumbência do art. 932, inciso II, do CPC, para apreciar
o pedido de tutela provisória nos recursos e nos processos de competência ori-
ginária do tribunal. O problema não está na existência dessa atribuição.
A questão é que, como órgão de cúpula, o STF também desempenha uma
função política e é nesse ponto em que o poder do relator – por ser enorme,
porque uma decisão individual tem os mesmos efeitos que uma colegiada –
precisa ser exercido com parcimônia e responsabilidade.
É que o exercício da jurisdição constitucional em caráter individual é uma
clara deturpação de seu desenho. A jurisdição constitucional foi pensada para
ser exercida colegiadamente. É preciso sensibilidade para entender que algu-
mas questões (seja pela matéria, seja pelo momento) não devem ser amparadas
na vontade de um só ministro, ainda que de forma provisória, sem que o tema
já tenha passado pela deliberação colegiada anteriormente.
Sempre que as decisões envolvam questões políticas, implementação de
políticas públicas ou escolhas morais controvertidas na sociedade, não é dese-
jável que os ministros decidam individualmente, isoladamente, de forma mo-
nocrática. Isso pela mesma razão pela qual não é dado a um único parlamentar
tomar uma decisão dessa monta sozinho.
Enquanto isso não acontece na prática, surgem propostas para tentar res-
tringir o poder do relator para tomar decisões monocráticas na Corte.

167
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Na semana passada, foram apresentadas duas propostas no Senado Fede-


ral com esse propósito: a PEC nº 8, de 2021 e o PL nº 816, de 2021. A primeira,
de autoria do senador Oriovisto Guimarães reproduz, em parte, o texto da
PEC nº 82, de 2019, também de sua autoria, que já havia sido rejeitada pelo
plenário, com 38 votos favoráveis, 15 contrários e 1 abstenção.
Na PEC rejeitada, pretendia-se:

a) fixar que os pedidos de vista fossem “coletivos”, limitados a 4 meses,


com a automática reinclusão na pauta;
b) proibir a concessão de liminares e cautelares de forma monocrática;
c) determinar ao presidente a convocação extraordinária dos membros
do plenário (ou do órgão especial) para decidir sobre o pedido de
cautelar durante o recesso; e
d) limitar a que sejam colegiadas as decisões que suspendam a trami-
tação de proposição legislativa, que afetem políticas públicas ou que
criem despesas para qualquer Poder.

Agora, na PEC nº 8, de 2021, além das propostas anteriores, foram adicio-


nas as seguintes:

e) o sobrestamento da pauta de votações do STF, após 1 ano do decurso


do prazo do pedido de vista; e
f) a vedação de concessão de decisão monocrática, que suspenda ato do
presidente da República, do presidente do Senado Federal, do pre-
sidente da Câmara dos Deputados ou do presidente do Congresso
Nacional.

Por seu turno, o PL nº 816, de 2021, de autoria do senador Marcos do Val,


pretende estabelecer que as decisões monocráticas prolatadas por ministro
do STF ou do STJ que reconheçam ou decretem a nulidade de ato praticado
em processo penal só tenham eficácia após a ratificação pelo órgão colegiado
competente.
Só pela descrição das propostas legislativas, é possível perceber que algu-
mas têm constitucionalidade duvidosa, outras são desnecessárias (o prazo de
10 dias para o pedido de vista, por exemplo, já figura no art. 940 do CPC), ao
passo que certas alterações engessariam os trabalhos da jurisdição constitucio-
nal de maneira excessiva, com potenciais efeitos indesejados.

168
Para que serve o quórum nos órgãos colegiados?

Em todo caso, nenhuma dessas medidas seria necessária se o STF (ou


melhor, cada um de seus membros) adotasse uma postura mais parcimonio-
sa, sensível e responsável no uso das prerrogativas monocráticas de relator. À
semelhança do Parlamento, o STF precisa aprender a ser um órgão colegiado,
mormente quando sua decisão ostente nítido conteúdo político, porque o ob-
jeto da lide versa sobre atos ou omissões de agentes eleitos pelo voto do povo.

169
A votação secreta nas deliberações
do Poder Legislativo
A retirada da obrigação constitucional
implica na sua proibição?

Ao se adotar uma sistemática secreta de escrutínio, permite-se o conhe-


cimento do resultado final da votação, embora não seja possível saber como
votou, individualmente, cada parlamentar. Existem argumentos contra e a fa-
vor de seu uso e vale a pena revisitar as normas, os argumentos e o que já foi
decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quanto a esse assunto, sobretu-
do com a proximidade das próximas eleições para as Mesas das Casas do Con-
gresso Nacional, que contam com previsão regimental de que sejam secretas.
A EC n. 76/2013, que alterou a redação do art. 55, § 2º, e do art. 66, § 4º,
da Constituição Federal, para “abolir” a votação secreta nos casos de perda
de mandato de deputado ou senador e de apreciação de veto, foi o resultado
de uma longa tramitação legislativa iniciada com a PEC n. 349, de 2001,1
que ainda pretendia ter retirado as previsões do voto secreto que acabaram
persistindo até hoje no art. 55, incisos III, IV e XI, da CF (respectivamente,
aprovação de autoridades, de embaixadores e destituição do Procurador-Geral
da República antes do término de seu mandato).

1. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=28376

171
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

O gatilho para a aprovação da referida EC tinha sido a grande repercussão


gerada pela votação secreta que culminou na não-cassação do então deputado
Natan Donadon,2 que tinha sido condenado pelo STF a 13 anos de prisão por
peculato e formação de quadrilha, e caberia à Casa Legislativa decidir sobre a
perda do mandato com base no art. 55, inciso VI, da CF. O placar marcou 233
votos a favor da cassação, 131 contra e 41 abstenções (eram necessários, no
mínimo, 257 votos).
À época, o então presidente da Câmara dos Deputados chegou a decla-
rar que, enquanto o voto continuasse secreto, não colocaria em votação mais
nenhum processo de perda de mandato.3 Três meses depois desse episódio,
estava promulgada a EC n. 76/2013. Já à luz da nova redação constitucional, e
após processo junto ao Conselho de Ética e Demoro Parlamentar, o deputado
Natan Donadon teve seu mandato cassado por 467 votos e 1 abstenção.4
O voto aberto, de certa forma, constrange os parlamentares.
Por seu turno, a previsão do voto secreto que figurava na redação originá-
ria do art. 53, § 2º (para a apreciação da prisão em flagrante crime inafiançável
dos congressistas) já tinha sido suprimida desde a EC n. 35/2001.
Muito embora nas duas modificações constitucionais tenha-se tentado
passar a mensagem de que as alterações realizadas na CF pretendiam “proibir”
a votação secreta, basta ter estudado um pouco de teoria do direito para saber
que a mera retirada de uma previsão normativa que estabelece uma obrigação
não implica estabelecer automaticamente seu contrário, isto é, uma proibição.
Ainda há o campo deôntico da permissão no universo das normas jurídicas.
Nesse contexto, tem-se que as ECs n. 35/2001 e n. 76/2013 simplesmente
criaram uma lacuna constitucional, já que as novas redações não trazem qual-
quer previsão quanto à sistemática de votação nas situações que disciplinam.
Na verdade, então, houve mera desconstitucionalização da sistemática de vo-
tação.

2. https://epoca.oglobo.globo.com/tempo/noticia/2013/08/camara-mantem-mandato-de-
-bnatan-donadonb.html
3. https://www.camara.leg.br/noticias/413103-camara-mantem-mandato-do-deputado-na-
tan-donadon-preso-ha-dois-meses/
4. https://www.camara.leg.br/noticias/426555-em-votacao-aberta-camara-cassa-mandato-
-de-natan-donadon/

172
A votação secreta nas deliberações do Poder Legislativo

Na prática, a votação secreta apenas deixou de ser obrigatória por for-


ça de previsão constitucional, não sendo possível disso extrair sua vedação.
Pelo contrário, como sabido, as normas “não obrigatório x”, “não proibido x”
e “permitido x” são logicamente equivalentes e significam o mesmo. Se esse
resultado jurídico foi fruto de uma má escolha de técnica legislativa ou se tudo
isso foi feito de caso pensado já é outra discussão.
Embora o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD)5 tenha
alterado seu art. 240, § 1º, para prever a votação ostensiva para a cessação do
mandato de deputado, continuou trazendo em seu art. 251, inciso I, alínea b, a
votação secreta para a deliberação sobre a prisão (art. 53, § 2º, da CF). Por seu
turno, o Regimento Interno do Senado Federal (RISF),6 art. 291, continuou
prevendo a votação secreta tanto para a cassação de mandato de senadores
(art. 55, § 2º, da CF), quanto para resolver sobre a prisão.
Assim, os regimentos internos são a norma de regência aplicável, não ha-
vendo que se falar em antinomia ou inconstitucionalidade, diante do que na
verdade é uma lacuna constitucional quanto à sistemática de votação, que foi
simplesmente “desconstitucionalizada”, trazendo a permissão para adotá-la ou
não, conforme as previsões regimentais.
Daí, a correção da decisão tomada pelo então presidente do Senado, Re-
nan Calheiros, pela votação secreta quanto à deliberação sobre a prisão do en-
tão senador Delcídio do Amaral.7 No entanto, sabedor do caráter “polêmico”
do tema (e sobretudo da opinião pública em sentido contrário), recorreu de
ofício de sua própria decisão – que tinha sido dada em resposta à Questão de
Ordem n. 7, de 20158 – para que o plenário desse a palavra final, que acabou
sendo a adoção da votação aberta, cujo resultado foi a manutenção da prisão
com 52 votos a favor e 20 contrários.9

5. https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-cama-
ra-dos-deputados
6. https://www25.senado.leg.br/documents/12427/45868/RISF+2018+Volume+1.pdf/cd-
5769c8-46c5-4c8a-9af7-99be436b89c4
7. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/11/25/modalidade-de-voto-sobre-
-prisao-de-delcidio-provoca-discussao-em-plenario/
8. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/questoes-de-ordem/-/q/detalhe/2715
9. https://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?https://www1.folha.uol.com.br/po-
der/2015/11/1711143-plenario-estabelece-o-voto-aberto-em-analise-de-prisao-de-delci-
dio.shtml

173
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Naquela ocasião, a sistemática de votação chegou a ser judicializada, com


a impetração do MS n. 33.908. A decisão liminar do ministro Edson Fachin,
lavrada já após a deliberação do Senado quanto ao ponto, chegou a determinar
o voto aberto, sob o argumento de que a publicidade dos atos de exercício do
poder é a regra, que decorre do princípio republicano e da expressão do Estado
de direito, somente podendo ser excepcionada nas hipóteses expressamente
estabelecidas no texto da Constituição, o que não seria o caso concreto.
O ministro Edson Fachin chegou a afirmar: “Sendo assim, não há liberdade
à Casa Legislativa em estabelecer, em seu regimento, o caráter secreto dessa vota-
ção, e, em havendo disposição regimental em sentido contrário, sucumbe diante
do que estatui a Constituição como regra”. Com outras palavras, o eminente
ministro vislumbrou ser taxativo (numerus clausus) o rol de casos de votação
secreta, sendo a Constituição o único lugar para a sua previsão. Com toda a
vênia, nada tem menos base jurídica do que essa ilação, que na prática retira
do Congresso Nacional o que pode ser uma proteção contra a irracionalidade
das multidões: a permissão para adotar a votação secreta em determinadas
circunstâncias.
Depois, mais uma vez ignorando o “silêncio” constitucional quanto à sis-
temática de votação, quando da decisão sobre as medidas cautelares aplicadas
pela Primeira Turma do STF ao senador Aécio Neves, o ministro Alexandre
de Moraes determinou, no MS n. 35.265, realização de votação aberta, osten-
siva e nominal. Além do princípio republicano e do princípio da publicidade,
acrescentou ter o eleitor “direito de pleno e absoluto conhecimento dos posicio-
namentos de seus representantes”.
Nesse writ, o ministro Alexandre de Moraes ainda considerou não recep-
cionado o art. 291, inciso I, alínea c, do RISF, desde a nova redação dada pela
EC n. 35/01. É verdade que o juízo de recepção à luz de emenda à Constituição
não exige a observância do art. 97 da Constituição (cláusula de reserva de ple-
nário), mas em se tratando de ato interna corporis de outro Poder, essa decisão
não deveria ter sido tomada de forma monocrática.
Além disso, como já explicado aqui, a reforma constitucional implicou
mera desconstitucionalização da matéria, do que resulta ser de técnica jurí-
dica duvidosa a mencionada decisão de não recepção, por estar-se diante de
uma norma posterior que não é contrária à mais antiga, é dizer, não haveria
qualquer antinomia que necessitasse ser solucionada pelo critério hierárquico.
O outro caso julgado pelo STF envolvendo o voto secreto foi o da ADPF
n. 378, sobre o rito do impeachment, quando se entendeu que todas as votações

174
A votação secreta nas deliberações do Poder Legislativo

deveriam ser abertas, de modo a permitir maior transparência, controle dos


representantes e legitimação do processo. Textualmente, o ministro Roberto
Barroso, redator para o acórdão, consignou: “No silêncio da Constituição, da
Lei n. 1.079/1950 e do Regimento Interno sobre a forma de votação, não é admis-
sível que o Presidente da Câmara dos Deputados possa, por decisão unipessoal e
discricionária, estender hipótese inespecífica de votação secreta prevista no RI/
CD, por analogia, à eleição para a Comissão Especial de impeachment.”.
Também apareceram outros argumentos: a publicidade como regra geral
nas democracias, a magnitude do processo de impeachment, o uso da votação
aberta no caso Collor, cuja manutenção favoreceria a segurança jurídica e a
lógica de que a votação aberta pode ser capaz de afastar determinadas pres-
sões. Mas, sem dúvidas, do ponto de vista estritamente jurídico, o parâmetro
mais importante a ser verificado é o seguinte: (i) a existência da previsão do
sigilo em ato normativo (seja na CF, lei ou regimento interno); (ii) a natureza/
relevância da deliberação para o controle finalístico/popular do ato; e (iii) a
preservação da previsibilidade do procedimento, quando necessário.
Nesse sentido, chega-se aonde se queria: quanto à eleição das Mesas das
Casas Legislativas (art. 57, § 4º), o texto da CF jamais trouxe qualquer previsão
quanto à modalidade deôntica da sistemática de votação, isto é, se a votação
secreta é proibida, obrigatória ou permitida. Por seu turno, no RICD, art. 7º, e
no RISF, art. 60, caput, figura que “A eleição dos membros da Mesa será feita em
escrutínio secreto (…)”.
No entanto, dada a controvérsia das discussões anteriores, nas últimas
eleições para a Mesa do Senado, foi impetrado o MS n. 36.169, pretendendo
assegurar a votação aberta e a declaração de inconstitucionalidade do art. 60,
caput, do RISF. Na decisão liminar, o ministro Marco Aurélio tinha determi-
nado o voto aberto, sem chegar a fundamentar mais profundamente seu en-
tendimento (limitou-se a mencionar o princípio democrático e o princípio da
publicidade). A decisão tinha sido proferida no dia 19 de dezembro de 2018 e
as eleições para a Mesa ocorreriam no dia 1º de fevereiro de 2019.
Ocorre que o então presidente do STF Dias Toffoli suspendeu a eficácia
dessa decisão no dia 9 de janeiro de 2019, na SS n. 5.272, apresentada pela
Mesa do Senado, reconhecendo o risco à ordem pública, em função da viola-
ção do princípio da separação dos poderes. De fato, a alteração da sistemática
de votação ensejaria alteração artificial das forças políticas envolvidas no es-
crutínio, cujos efeitos se protrairiam no tempo, com consequências impor-
tantes quanto às altas decisões políticas nacionais, em interferência indevida

175
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

nos assuntos internos do Poder Legislativo, colocando em cheque o sistema de


checks and balances.
Então, fazendo o distinguishing dos casos anteriores da Corte, o ministro
Dias Toffoli registrou que as decisões passadas (notadamente o MS n. 33.908 e
a ADPF n. 378) versavam sobre o “papel institucional” das Casas Legislativas,
ao passo que “matérias respeitantes aos atos de organização das Casas Legisla-
tivas ou que respeitassem apenas à interpretação do regimento interno de qual-
quer daquelas casas continuaram sendo abordadas por esta Corte como matéria
interna corporis e, desse modo, impassíveis de apreciação pelo Poder Judiciário,
sob pena de violação à Separação dos Poderes”.
O ministro, em síntese, considerou que a votação da Mesa é ato de mera
organização dos trabalhos, que se esgota no âmbito interno da Casa, impas-
sível de censura externa, registrando, ainda, a presença do voto secreto em
outros Parlamentos, utilizado, inclusive, para as eleições de suas presidências
(dos Parlamentos estrangeiros). Mencionou, ainda, o Regimento Interno do
próprio STF (RISTF),10 que prevê o voto secreto na eleição para o presidente
da Corte e o seu vice (art. 12, § 1º).
Por fim, parecendo entender bem o espírito das eleições da Mesa das Ca-
sas Legislativas, consignou: “A escolha da Mesa Diretiva importa, para além de
uma seleção do dirigir administrativo da Casa, uma definição de ordem política,
intimamente relacionada à natural expressão das forças político-ideológicas que
compõe as casas legislativas – que se expressa, por exemplo, na definição das
pautas de trabalho e, portanto, no elenco de prioridades do órgão – impactando
diretamente na relação do Poder Legislativo com o Poder Executivo. Essa atua-
ção, portanto, deve ser resguardada de qualquer influência externa, especial-
mente de interferências entre Poderes.”. Ou seja, razões de segurança jurídica
reclamavam a manutenção da forma de votação secreta estabelecida no RISF.
De fato, a votação aberta tem sérios impactos nos trabalhos legislativos:
por um lado, oportuniza maior controle por parte dos meios de comunicação,
das lideranças partidárias e do próprio Poder Executivo sobre a atuação parla-
mentar; por outro, no entanto, tem o efeito de inibir o voto sincero, tolhendo
a liberdade do parlamentar, que pode se sentir constrangido diante de penas
por indisciplina e retaliações. Já a votação secreta, ao tempo em que implica

10. https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf

176
A votação secreta nas deliberações do Poder Legislativo

irresponsabilidade perante os eleitores, permite a separação entre o sujeito que


vota e o resultado da votação (só importa este último).
Desse modo, vê-se que a deliberação secreta tem suas virtudes institucio-
nais. Como indica Adrian Vermeule: “Sem transparência, os agentes ganham
menos com a adoção de posições que ressoam com as paixões populares imedia-
tas, portanto, a transparência pode exacerbar os efeitos das patologias da toma-
da de decisão (…)”.11
A despeito da decisão na SS n. 5.272, a eleição para a Mesa do Senado em
2019 foi marcada por fortes discussões, brigas e tumulto. No dia 1º de feverei-
ro, foi publicado um edital contendo as regras de condução dos trabalhos para
a eleição da Mesa,12 que suprimia a votação secreta. Horas após a publicação, o
edital foi revogado13 pelo senador, então candidato à presidente e no exercício
interino da presidência do Senado, Davi Alcolumbre. Em resposta à Questão
de Ordem n. 1, de 2019,14 sua decisão pela votação aberta foi aprovada pelo
plenário, o que foi decidido por 50 votos a 2 contrários.
No entanto, impugnou-se tal decisão do plenário e, na madrugada do dia
1º para o dia 2 de fevereiro (às 3h45), o ministro Dias Toffoli a declarou nu-
la,15 ao apreciar a petição avulsa na SS n. 5.272, determinando mais uma vez
a votação secreta e a observância do RISF, art. 60, caput. Contrariando, então,
o discurso de sua própria decisão anterior, interferiu em matéria que suposta-
mente deveria ser interna corporis. Assim, no final das contas, a eleição acabou
sendo fechada, mas não sem mais polêmica.
Isso porque a primeira votação foi anulada após serem apuradas 82 cédu-
las na urna (ocorre que são apenas 81 senadores). Por consenso, os senadores
decidiram triturar as cédulas sem apurá-las e realizar uma nova votação. Du-
rante a segunda votação, então candidato Renan Calheiros retirou sua candi-
datura, e o senador Davi Alcolumbre foi eleito com o voto de 42 senadores.16

11. https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=495569
12. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/02/01/senado-divulga-edital-com-
-regras-para-as-reunioes-de-posse-e-de-eleicao-de-presidente-da-casa
13. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/02/01/alcolumbre-revoga-regula-
mento-da-eleicao-da-mesa-e-propora-novas-regras
14. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/questoes-de-ordem/-/q/detalhe/2841
15. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339450530&ext=.pdf
16. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/02/02/davi-alcolumbre-e-eleito-
-novo-presidente-do-senado-federal

177
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Em seu discurso de vitória, o novo presidente tinha prometido acabar


com o “segredismo”17 e vem sendo cobrado por sua promessa.18 É duvidoso,
no entanto, que isso de fato aconteça. O Projeto de Resolução do Senado n.
53, de 201819 – apresentado pelo senador Lasier Martins ainda em novembro
de 2018, para mudar o RISF e estabelecer a votação aberta para as eleições da
Mesa – está sem movimentações desde abril de 2019.
Nesse contexto, também parece difícil que deixe de se repetir toda a con-
fusão em torno da sistemática de votação nas eleições da Mesa marcadas para
o próximo dia 1º de fevereiro de 2021. Há grandes chances de que toda a li-
tigância volte a ocorrer, não só pela judicialização da política, mas sobretudo
pelo incentivo a isso dado pela própria dinâmica decisória do STF: ministros
dispostos a decidir monocraticamente, inclusive em sentido contrário às deci-
sões passadas da própria Corte.
O que se espera, ao menos, é o amadurecimento institucional, sobretudo
por parte dos ministros do STF na compreensão das questões jurídicas que
envolvem a adoção do voto secreto: 1) em primeiro lugar, a mera retirada
da Constituição de uma conduta antes obrigatória – ainda mais sem vedá-la
expressamente – equivale à desconstitucionalização e, portanto, à permissão
para realizar o não realizar a conduta, não à sua proibição; 2) em segundo lu-
gar, ante a falta de norma constitucional expressa em sentido contrário (proi-
bindo textualmente a votação secreta), deve-se aplicar a previsão regimental
de regência da matéria; e 3) em terceiro lugar, notadamente para a eleição das
Mesas, o voto secreto é mecanismo de proteção da independência dos parla-
mentares, em especial das minorias, garantindo que estes não serão persegui-
dos pelos grupos majoritários eleitos ou pelo próprio Poder Executivo, que é
interessado nessas eleições, podendo funcionar como mecanismo de exercício
de poder (empowerment) por parte desses grupos menores.
Analisada nesses termos, vê-se que a votação secreta é prerrogativa salu-
tar, a ser usada em situações excepcionais previstas regimentalmente, sobretu-
do quando se requer a máxima independência possível da manifestação parla-
mentar. A manutenção do voto secreto é garantia necessária à autonomia dos

17. https://www.metropoles.com/brasil/veja-o-1o-discurso-de-david-alcolumbre-como-pre-
sidente-do-senado
18. https://oglobo.globo.com/epoca/guilherme-amado/davi-alcolumbre-cobrado-por-pro-
messa-para-acabar-com-votacoes-secretas-do-senado-24635276
19. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/134659

178
A votação secreta nas deliberações do Poder Legislativo

congressistas (ainda que isso se dê à custa da máxima transparência), sem pre-


juízo de que os próprios parlamentares optem, espontaneamente, por declarar
seus votos ou ponderem abri-los pela influência dos meios de comunicação e
da opinião pública. A decisão da abertura ou não do voto secreto deve brotar
exclusivamente do foro íntimo do parlamentar. A ver nas próximas eleições da
Mesa haverá avanços institucionais nesse sentido.

179
O que podem fazer, afinal,
os Conselhos de Ética e
Decoro Parlamentar?
Direito e política se misturam na punição
disciplinar dos congressistas

Os Conselhos de Ética e Decoro Parlamentar (CEDP) das Casas Legislati-


vas do Congresso Nacional, curiosamente, não contam com expressa previsão
no texto constitucional. A despeito disso, tais colegiados cumprem um papel
importante (e ainda pouco explorado), o que justifica algumas considerações
sobre suas competências e, sobretudo, quanto aos seus limites de atuação.
No Senado Federal, o CEDP foi instituído pela Resolução nº 20, de 1993.1
A Câmara dos Deputados, somente pela Resolução nº 25, de 2001,2 criou
seu próprio CEDP. Nos dois casos, a criação do CEDP se dá no exercício da
competência constitucional atribuída às Casas Legislativas para dispor sobre
a própria organização e funcionamento, conforme os arts. 51, inciso IV, e 52,
inciso XIII, da CF. Desse modo, as Casas são livres para desenhar tais órgãos.

1. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/conselhos/-/conselho/cedp/legislacao
2. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescad/2001/resolucaodacamaradosdeputados-
-25-10-outubro-2001-320496-publicacaooriginal-1-pl.html

181
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Do ponto de vista organizacional, a existência de um órgão com atribui-


ções de autorregulação disciplinar, fazendo as vezes de corregedoria, é provi-
dência salutar, que entraria como uma espécie de compliance, proporcionando
um monitoramento das condutas parlamentares. No entanto, a ideia não é tão
consensual quanto pareceria. O desenho do CEDP é alvo de críticas, como,
por exemplo, a de José Sarney,3 para quem os parlamentares teriam direito a
um julgamento isento, e não político partidário, pelo que o CEDP seria um
“tribunal de exceção”.
A atribuição básica de tais conselhos é a de zelar pela observância da
Constituição, do Regimento Interno e do Código de Ética e Decoro Parlamen-
tar, zelando pela dignidade do mandato e da própria Casa Legislativa. Na prá-
tica, isso significa que tais conselhos recebem e apreciam as representações e
denúncias contra os parlamentares por quebra de decoro, podendo recomen-
dar a aplicação de alguma das penalidades previstas nos respectivos Códigos
de Ética.
No Senado, as penas são: advertência; censura; perda temporária (suspen-
são) do exercício do mandato; e perda do mandato. Na Câmara, são: censura,
verbal ou escrita; suspensão de prerrogativas regimentais; suspensão temporá-
ria do exercício do mandato; e perda do mandato. As penalidades disciplinares
são apenas uma das diferenças quanto aos conselhos de cada uma das Casas
Legislativas.
Especificamente quanto à pena de perda do mandato dos congressistas,
convém enfatizar que o CEDP apenas propõe sua aplicação, cabendo ao ple-
nário da Casa Legislativa respectiva a decisão final sobre a perda do mandato
por procedimento declarado incompatível com o decoro parlamentar (art. 55,
inciso II, da CF). Ou seja, a atuação do CEDP não implica subtração dessa
competência do plenário.
Um dos principais traços distintivos quanto à atuação do CEDP do Senado
Federal diz respeito à norma constante do art. 14, § 1º, inciso III, da Resolução
nº 20, de 1993, que expressamente estabelece a necessidade de contemporanei-
dade entre os atos praticados e a legislatura como requisito de procedibilidade
para a responsabilização política no âmbito dessa Casa Legislativa.

3. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2108200906.htm

182
O que podem fazer, afinal, os Conselhos de Ética e Decoro Parlamentar?

A não observância dessa exigência enseja o arquivamento preliminar da


denúncia ou representação, como regra geral, exceto quanto a alguns atos pra-
ticados após a diplomação e ainda antes da posse, nos termos do art. 3º, inciso
I, da mencionada Resolução nº 20, de 1993. No âmbito da Câmara dos Depu-
tados, inexiste tal requisito da contemporaneidade como condição de proce-
dibilidade.
Trata-se de uma limitação temporal que funciona como uma espécie de
“prescrição” em relação aos supostos atos indecorosos dos senadores, pratica-
dos em legislaturas passadas, sobretudo quanto a mandatos fora do Congresso
Nacional. Outra maneira de entendê-la é como uma “limitação de competên-
cia” – no caso, autoimposta pela própria Casa Legislativa – para o julgamento
político de fatos ocorridos antes da legislatura corrente.
Sua justificativa reside na tentativa de se impedir que o processo de res-
ponsabilização política seja usado como 1) instrumento de perseguição po-
lítica, 2) manobra de perpetuação ou eternização de disputas eleitorais ou 3)
nas situações em que seja duvidosa a existência de circunstâncias objetivas de
reprovação, sobretudo quando o parlamentar se sagrou eleito para um novo
mandato, sendo certo que todas essas são ocasiões completamente avessas à
lógica da responsabilização política em uma democracia.
Além disso, observa-se que o ordenamento jurídico dispõe de outros
meios de impugnação dos fatos supostamente indecorosos ocorridos antes da
legislatura em curso, inclusive com seus próprios prazos específicos, como é o
caso da ação de impugnação de mandato, que deve ser ajuizada no prazo de 15
dias contados da diplomação, conforme o art. 14, § 10, da CF. Perdida a opor-
tunidade pela via própria, a decadência não deveria ensejar a possibilidade de
veicular a punição via processo político.
Considerando tais aspectos, o requisito da contemporaneidade em co-
mento também cumpriria à lógica de divisão dos poderes e competências dos
órgãos julgadores, sem que dela resultasse qualquer tipo de brecha para im-
punidade de fatos ocorridos em legislaturas anteriores, pois existiriam outros
meios e procedimentos apropriados.
Em síntese, trata-se muito mais de uma opção política do Senado Federal
– mais especificamente da política disciplinar de responsabilização por quebra
de decoro parlamentar – no sentido de que, terminada a legislatura, o que por-
ventura tenha acontecido ao seu tempo não pode ensejar a perda de um novo
mandato obtido.

183
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Nessa opção – que, enfatize-se, é de livre escolha da Casa Legislativa –,


não se vislumbra qualquer ofensa a princípios ou valores jurídicos, insistin-
do-se que compete privativamente ao Senado Federal dispor sobre o proce-
dimento para a perda do mandato por ato incompatível com o decoro parla-
mentar, que se insere, juntamente com os outros assuntos que envolvem sua
organização, funcionamento, e demais matérias listadas em numerus apertus
no art. 52, inciso XIII, da CF.
É bem verdade que, por ocasião do julgamento do MS nº 23.388, o STF já
entendeu que não há impedimento a que se leve adiante um processo discipli-
nar contra deputado federal, por atos anteriores ao (então) atual mandato. No
entanto, para a correta compreensão da decisão judicial, cumpre extrair sua
ratio decidendi.
Tal entendimento do STF foi tomado em relação a processo de cassação
no âmbito da Câmara dos Deputados, não em relação ao Sendo Federal, em
1999, ocasião em que a exigência de contemporaneidade não figurava como
requisito de procedibilidade nas normas internas da Câmara dos Deputados
(como não figura até hoje), nem estava prevista na redação originária da Reso-
lução nº 20, de 1993, do Senado Federal.
O requisito somente foi expressamente inserido com o advento da Reso-
lução nº 25, de 2008, que modificou a Resolução nº 20, de 1993, exigindo-se
a contemporaneidade entre os atos praticados e a legislatura como condição
legal de procedibilidade, averiguada na admissibilidade preliminar da repre-
sentação por fato sujeito à pena de perda ou suspensão do mandato de Senador
da República.
Não custa recordar que as resoluções emanadas do Poder Legislativo são
espécie legislativa que têm o poder normativo primário das leis em geral, ocu-
pando a mesma posição hierárquica das leis complementares, das leis ordiná-
rias, das medidas provisórias, conforme o art. 59 da CF. Portanto, a atual previ-
são do art. 14, § 1º, da Resolução nº 20, de 1993, do Senado Federal, representa
a “lei em vigor” para todos os fins.
Além disso, compulsando atentamente o acórdão do MS nº 23.388, é pos-
sível perceber que o cerne do entendimento nele consubstanciado diz respei-
to à impossibilidade de controle judicial do ato que resultou na cassação do
então deputado federal impetrante (ou seja, o mérito da quebra de decoro)
– extraindo daí a legalidade e constitucionalidade do procedimento levado a
cabo dentro da Câmara dos Deputados. Não se discutiu propriamente sobre a

184
O que podem fazer, afinal, os Conselhos de Ética e Decoro Parlamentar?

necessidade de identidade da legislatura atual e a dos fatos que se pretendiam


apurar para a cassação do mandato respectivo.
Na verdade, a discussão sobre a contemporaneidade nesse caso foi me-
ramente colateral, um verdadeiro obiter dictum, tendo surgido simplesmente
porque já fora apresentada como matéria de defesa durante o próprio processo
disciplinar (que pretendia ver aplicada tal contemporaneidade), com a devida
recusa por parte do então relator do processo de cassação ainda na Câmara dos
Deputados. Diante disso, o impetrante protocolou o mandamus insistindo na
necessidade de observar a contemporaneidade no procedimento por quebra
de decoro, o que foi rejeitado pelo STF.
A admissibilidade das representações contra senadores compete ao pre-
sidente do próprio CEDP, nos termos do art. 14, § 1º, da Resolução nº 20, de
1993. A despeito da autorização dada na referida norma para que a admissi-
bilidade seja feita de forma monocrática, subsiste a faculdade de o presidente,
sempre que considerar relevante a matéria, submeter a decisão ao colegiado,
tendo em vista que o CEDP é um órgão de composição múltipla e, sempre que
possível, atendendo ao juízo de conveniência e oportunidade, a colegialidade
se sobrepõe à individualidade no processo de tomada de decisões.
Ainda quanto à decisão de admissibilidade, criou-se o costume de ouvir
previamente a Advocacia do Senado Federal – ADVOSF, que opina sobre a
ocorrência de alguma das situações que ensejam o não seguimento da denún-
cia ou representação. O parecer dado pelo órgão jurídico é meramente opina-
tivo e não vincula a decisão do CEDP ou de seu presidente.
Da decisão que determina o arquivamento da representação, cabe recurso
ao próprio colegiado do CEDP, subscrito por pelo menos 5 de seus membros,
interposto no prazo de 2 dias úteis, contados da publicação da decisão (art. 14,
§ 2º, da Resolução nº 20, de 1993).
A discussão sobre a contemporaneidade, que poderia parecer uma fili-
grana jurídica, é o cerne Petição do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar
– PCE nº 1, de 2020,4 em trâmite do Senado Federal, contra o senador Flá-
vio Bolsonaro. Os fatos narrados na petição de autoria do Partido Socialismo
e Liberdade – PSOL dizem respeito a eventos ocorridos quando o senador
ainda era deputado estadual, ou seja, antes da atual legislatura. A petição está

4. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/140778

185
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

pendente de admissibilidade, tendo recebido parecer da ADVOSF pelo arqui-


vamento, com base no já mencionado art. 14, § 1º, inciso III, da Resolução nº
20, de 1993.
Neste ano, ainda foram apresentadas a PCE nº 2, de 2020,5 contra o pre-
sidente do Senado Federal; a PCE nº 3, de 2020,6 contra o próprio presidente
do CEDP; as PCEs nº 4, 5 e 6, de 2020,7 todas contra o senador Jorge Kajuru; e
a última, a PCE nº 7, de 2020,8 contra o senador Chico Rodrigues, o que vem
gerando pressões para que o CEDP retome suas reuniões,9 que tinham sido
suspensas desde 20 de março de 2020, em razão da pandemia (assim como
também foram suspensos os trabalhos nas demais comissões10 da Casa Le-
gislativa). Além das PCEs de 2020, ainda existem PCEs de 2019 pendentes de
apreciação pelo CEDP.
Na Câmara dos Deputados, tampouco é muito diferente o acúmulo de
representações11 pendentes de decisão pelo seu CEDP, com destaque para a
petição apresentada pelo deputado Léo Mota contra a deputada Flordelis, acu-
sada de assassinar seu próprio marido.
Nas duas Casas, a retomada dos trabalhos do CEDP depende de uma de-
cisão política, aprovando ato normativo interno que autorize o funcionamento
do colegiado na modalidade remota (ou, eventualmente, semipresencial). Na
Câmara, já foi apresentado o Projeto de Resolução nº 53, de 2020,12 nesse sen-
tido. No Senado, o assunto ainda está pendente de definição.13
Hoje não haverá espaço para aprofundar nas peculiaridades da tramitação
do processo por quebra de decoro parlamentar, mas convém registrar que a

5. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141192
6. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/144577
7. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/144962
8. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/145152
9. https://www12.senado.leg.br/tv/programas/noticias-1/2020/10/jayme-campos-diz-que-
-nao-havera-omissao-do-conselho-de-etica-sobre-peticao-contra-chico-rodrigues
10. https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2020/04/23/senado-suspende-prazos-de-
-comissoes-mistas-e-cpi-das-fake-news-e-prorrogada-por-tempo-indeterminado
11. https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/eticaedecoro/processos.html
12. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2261310
13. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/10/22/ato-da-mesa-nao-permite-
-reuniao-diz-presidente-do-conselho-de-etica

186
O que podem fazer, afinal, os Conselhos de Ética e Decoro Parlamentar?

decisão da Casa Legislativa que determina (ou não) a perda do mandato do


parlamentar é assunto de natureza interna corporis.
A responsabilização disciplinar dos congressistas por suas próprias Casas
Legislativas é sanção política, da órbita doméstica do próprio Parlamento, não
cabendo ao Poder Judiciário entrar no mérito da decisão legislativa, em res-
peito ao princípio da separação dos poderes. Nesse sentido, por exemplo, por
todos, cite-se o RE nº 382.344.
A despeito disso, a judicialização envolvendo os trabalhos dos CEDP é
frequente. E a jurisprudência do STF vem confirmando a natureza política
desses julgamentos. No MS nº 21.861, por exemplo, afastou-se a ocorrência de
ofensa aos princípios do contraditório e do devido processo legal, alegadas por
deputado federal em processo de cassação de mandato parlamentar.
No caso concreto, haviam sido indeferidos no processo disciplinar os
pedidos de oitivas de testemunhas arroladas (haviam sido indicados 7 parla-
mentares, mas 3 dos nomes foram considerados protelatórios) e de realização
de perícia técnica em parte do material colhido durante a sindicância (fitas
magnéticas), com o objetivo de verificar a autenticidade das vozes gravadas.
Nesse decisum, o STF adotou uma postura de autocontenção no controle
judicial da decisão legislativa em matéria disciplinar, haja vista o cumprimen-
to do rito estipulado, isto é, a garantia mínima do devido processo legal, com
contraditório e ampla defesa. O ministro Marco Aurélio ainda reforçou com
a seguinte consideração: “Ademais, tendo em vista o juízo político da Câmara,
no julgamento do deputado, por quebra de decoro parlamentar, não é possível a
afirmativa no sentido de que o indeferimento de uma certa prova teve influência
ou não na formulação do juízo mencionado”. Assim, vê-se que a compreensão
sobre a natureza política do julgamento serviu de fundamento para que não se
entrasse no mérito do eventual cerceamento de defesa.
Com isso, é possível perceber a natureza da atuação do CEDP: sua deci-
são é eminentemente política, influenciada pela atmosfera do momento, e não
necessariamente jurídica ou baseada em provas ou evidências quanto aos fatos
indecorosos.
Além disso, do ponto de vista estritamente jurídico, os poderes do CEDP
são limitados. Por exemplo, não tem competência para convocar testemunhas
(apenas para convidar) e, diferentemente de uma CPI, não tem acesso a in-
formações sigilosas, nem tem competência para determinar a quebra de si-
gilo bancário, conversas telefônicas e dados fiscais. Tampouco tem condições

187
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

(capacidade institucional) de atender pedidos parlamentares no sentido de


realização de perícias e outras diligências semelhantes.
Embora fosse desejável o aperfeiçoamento institucional do CEDP nas Ca-
sas Legislativas sob vários aspectos (juntamente com o aprimoramento do sis-
tema de sanções disciplinares), o maior problema continuará sendo a atitude
cultural compartilhada no meio político. Muitas vezes, insiste-se em “aguardar
o desfecho judicial”, desdiferenciando a responsabilidade política da oriunda
do processo penal. Parte da maturidade institucional necessária para o funcio-
namento do CEDP passa justamente por dissociar sua atuação do “jurídico”.

188
Supressão do debate
parlamentar como instrumento
de ‘checks and balances’
O art. 49.3 da Constituição francesa e a garantia
da aprovação das leis essenciais ao governo

Existe algum dever dos Parlamentos em colaborar com a governabilida-


de? A pergunta pode soar estranha no país do presidencialismo de coalizão,
em que o presidente precisa negociar o apoio dos parlamentares ao governo
a cada votação e cujo fracasso implica nas chamadas “pautas-bomba”, com a
aprovação de projetos que aumentam o gasto público.
Tradicionalmente, o toma-lá-dá-cá passa pela indicação de cargos e libe-
ração de emendas orçamentárias; no passado já chegou a envolver a compra
dos votos dos parlamentares de forma ilícita, na prática conhecida por “men-
salão”; e até hoje tal dinâmica continua recebendo críticas, inclusive pela for-
ma que tomou quanto às emendas identificadas como RP-9.1
Do ponto de vista institucional, o tradicional diagnóstico da realidade
brasileira a partir da Constituição de 1988 aponta para a existência de amplos
poderes por parte do presidente da República para implementar sua agenda de

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/emendas-de-relator-nao-ha-pratica-es-
puria-ou-inconstitucional-09112021

189
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

governo. Nesse sentido, Fernando Limongi e Argelina Figueiredo,2 por exem-


plo, chegam a sustentar uma preponderância do Executivo sobre o Congresso.
Entre os instrumentos de que dispõe o presidente brasileiro, no entanto,
em termos de força (e eficácia), nada se compara ao expediente do art. 49.3
da Constituição francesa, que força um compromisso de responsabilidade de
lado a lado, muito peculiar do sistema francês, que, recorde-se, adota o se-
mipresidencialismo. Lá, o Executivo é dual, composto por um presidente e
um primeiro-ministro, que funciona como chefe de governo (ladeado por um
conselho de ministros).
Com a invocação do art. 49.3 da Constituição francesa,3 o primeiro-mi-
nistro pode suprimir o debate parlamentar de determinados projetos de lei,
procedendo à sua aprovação automática, independentemente de votação, no
prazo de 24 horas, exceto se for aprovada, pela maioria dos membros da As-
sembleia Nacional, uma moção de censura que tenha sido subscrita por pelo
menos um décimo dos parlamentares (o equivalente a 58 assinaturas).
Então, se nenhuma moção de censura for apresentada, o texto é adotado.
Em sendo apresentada a moção de censura nos moldes indicados, abre-se o
prazo de 48 horas para o debate da moção. A votação não pode ocorrer antes
do decurso desse prazo. Se for aprovada a moção, o primeiro-ministro deve
apresentar sua renúncia ao presidente da República. Se rejeitada, o projeto ou
proposta do governo é tido como aprovado.
Para submeter a responsabilidade do governo perante a Assembleia Na-
cional, o primeiro-ministro precisa do aval do conselho de ministros, porque
a responsabilidade é solidária. Além disso, de fato, a medida é drástica e im-
popular: na prática, é quase a imposição de uma lei ao próprio Parlamento,
pois impede a apresentação de emendas parlamentares e põe fim às discussões
legislativas. Por isso, para os críticos, o art. 49.3 é antidemocrático.
Ainda assim, desde 1958 (quando entrou em vigor a atual Constituição
francesa), o expediente constitucional já foi usado em 87 ocasiões. Quase to-
dos os governos recorreram ao dispositivo. Na última vez, em 2020, o art. 49.3

2. https://www.scielo.br/j/ln/a/7P5HPND88kMJCYSmX3hgrZr/?format=pdf&lang=pt
3. https://www.conseil-constitutionnel.fr/le-bloc-de-constitutionnalite/texte-integral-de-la-
-constitution-du-4-octobre-1958-en-vigueur

190
Supressão do debate parlamentar como instrumento de ‘checks and balances’

foi aplicado após a oposição apresentar mais de 40 mil emendas4 (exatamente


41.888) para obstruir a deliberação da reforma previdenciária. É para esse tipo
de bloqueio institucional que o dispositivo tem servido, sua introdução con-
torna a falta de uma maioria parlamentar sólida.
Na redação originária de 1958, a aplicação do art. 49.3 era possível em
relação a qualquer matéria e por quantas vezes o governo quisesse. Na reforma
constitucional de 23 de julho de 2008, restringiu-se o alcance do art. 49.3 aos
projetos de lei de finanças ou de previdência social e limitou-se sua invocação
a uma vez por sessão legislativa.
Como se vê, com o art. 49.3 da Constituição francesa, conferiu-se ao go-
verno uma medida extrema e poderosa para veicular seu programa político.
Um dos autores da Constituição francesa, Michel Debré, justificou5 a
disposição excepcional em razão da experiência naquela época (em referência
ao processo decisório do ordenamento anterior, a chamada Quarta República,
inaugurada com a Constituição de 1946). Em sua opinião, viu-se a necessidade
de garantir no Legislativo, apesar das manobras parlamentares obstrutivas, a
adoção das medidas indispensáveis ao governo.
O espírito é o que foi bem captado pelo editorial do Le Monde:6 “A As-
sembleia Nacional não pode bloquear o funcionamento das instituições sem
arriscar ser dissolvida”.
É claro que essa ferramenta não deveria ser banalizada, ao menos isso não
seria algo desejável. A previsão de um mecanismo de “checks and balances”
como o art. 49.3 da Constituição francesa deveria funcionar mais ou menos
como a “morte cruzada” do Equador já comentada em coluna passada,7 e
servir mais para dissuadir do que propriamente para se utilizar.
Trata-se de um chamado para que o Poder Legislativo exerça seu papel
de orientar politicamente as ações do Estado no sentido da realização de fins,

4. https://www.lemonde.fr/politique/article/2020/02/29/reforme-des-retraites-le-
-gouvernement-annonce-recourir-a-l-article-49-3-pour-faire-adopter-son-pro-
jet_6031362_823448.html
5. https://mjp.univ-perp.fr/textes/debre1958.htm
6. https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/03/03/le-mauvais-usage-de-l-article-49-3-de-
-la-constitution_6031659_3232.html
7. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/a-morte-cruzada-do-exe-
cutivo-e-do-legislativo-03022021

191
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

metas e valores importantes para a sociedade. O processo legislativo (e o Parla-


mento, de modo geral) não pode ser um palco para o puro “filibusterismo” ou
a permanente utilização de táticas parlamentares obstrucionistas.8
Por mais que já seja lugar comum a ideia de Jeremy Waldron de que os
desacordos são vitais em uma democracia e que as legislaturas tenham mais
capacidade institucional para lidar com esse tipo de conflito, a prática de uma
obstrução ilimitada ou rotineira pode se tornar inconstitucional. A ideia de
que existem limites à obstrução parlamentar já tinha sido colocada aqui.9
Neste sentido, seria possível atribuir aos Parlamentos uma “função de go-
vernabilidade”, isto é, de contribuir para que sejam tomadas decisões que con-
cretizem e desenvolvam a Constituição, de colaborar, de forma minimamente
proativa, para o aperfeiçoamento das propostas, sem simplesmente travar as
negociações.
Não se afigura legítimo aos Parlamentos o comportamento institucional
de paralisia decisória. A fragmentação não é justificativa para que o Legislativo
deixe de proceder à orientação política do governo, a partir da determinação
dos objetivos prioritários para o país e da discussão dos instrumentos mais
adequados para convertê-los em realidade, harmonizando os interesses das
maiorias e das minorias.
Assim entendida, a função de governabilidade dos Parlamentos não é
contraditória com a tradicional função de controle político exercida sobre os
governos. Na verdade, ambas as funções (de governabilidade e de controle par-
lamentar) estão conectadas e se complementam.
Longe de relegar ao Parlamento a função de mero “carimbador” das pro-
postas encaminhadas pelo Poder Executivo, a tarefa reclamada consiste na tí-
pica atividade política de proporcionar a participação dos partidos políticos
na construção das decisões, ou seja, uma atuação propositiva, voltada para
superar os impasses.
Para que o ideal normativo da democracia deliberativa possa funcionar, é
preciso instituições que deem um “empurrãozinho” para destravar a pauta de
debates. Bastaria a ameaça de um “tratoraço”. No caso do Brasil, no entanto,

8. https://www.academia.edu/49088957/13_TÁTICAS_PARLAMENTARES_PARA_APROVA-
ÇÃO_DAS_LEIS
9. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/as-licoes-da-sabatina-de-
-andre-mendonca-08122021

192
Supressão do debate parlamentar como instrumento de ‘checks and balances’

não existem tais mecanismos institucionais, nem nada sequer parecido ao art.
49.3 da Constituição francesa.
Olhando para a realidade brasileira, fica a impressão de que a Constitui-
ção de 1988, na raiz da preocupação com o fechamento do Congresso Nacio-
nal no regime anterior, quis mais “fortalecê-lo” do que “enquadrá-lo”. Basta
uma leitura das atribuições do Congresso Nacional, notadamente os arts. 48 e
49 da Constituição Federal, para ver que não há “compromissos” voltados para
a criação de boas relações entre o Executivo e o Legislativo.
A Constituição não trouxe quaisquer instrumentos voltados para chamar
o Parlamento à responsabilidade nas situações em que as medidas considera-
das importantes para o governo ficam dormitando “nas gavetas” do Congresso
Nacional. Nessa situação, o presidente fica refém, não existe nada que o jurí-
dico possa fazer e resolver essa equação de engenharia política e institucional
não é simples. Existe o poder de agenda do Legislativo, mas até mesmo esse
poder encontra limites.
Independentemente do governo, convém que o Congresso Nacional co-
mece, quanto antes, a discutir os objetivos permanentes do país (como a ma-
nutenção da integridade territorial, soberania, inclusive energética e alimen-
tar, independência, etc.) e circunstanciais (voltados para atender às demandas
mais urgentes à maioria da população, que assim sinalizou ao eleger determi-
nado partido ou candidato com seu programa de governo). Assim se previne o
pior e se superam crises político-institucionais.

193
Quem controla os ministros do STF?

Uma nova interpretação do artigo 142 da Constituição tem gerado deba-


tes acalorados no meio jurídico. Do texto “As Forças Armadas (...) destinam-se
à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de
qualquer destes, da lei e da ordem” vem-se extraindo permissão para uma su-
posta “intervenção militar” ou, em vernáculo mais suavizado, a atuação das
Forças Armadas como poder moderador (cf. aqui1 e aqui)2 no caso de um po-
der “invadir a competência” de outro.
A controvérsia e a repercussão gerada em torno do tema, no entanto, dei-
xaram de abordar o problema subjacente que a proposta hermenêutica queria
resolver: quem é competente para controlar os ministros do STF? Em que oca-
siões se pode fazê-lo? De que maneira?
Esse vazio é criador e criatura de aberrações. Não é de hoje que o Poder
Judiciário é criticado pela tradição de limitadas investigações e punições de
juízes. De tão raros e reservados que são esses processos, quase não se fala no
regime jurídico da responsabilização de magistrados da Corte Máxima. Como
consequência, alguns pensam que sequer existe accountability para os minis-
tros do STF e que esses podem fazer tudo.
Desde logo, convém registrar que resulta impensável e inconcebível usar
o artigo 142 da CF para transferir o controle do STF às Forças Armadas, pois

1. https://www.conjur.com.br/2020-mai-02/ives-gandra-harmonia-independencia-poderes
2. https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira

195
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

isso violaria a separação dos poderes, princípio fundamental da república (ar-


tigo 2º). Na prática, o emprego da referida norma constitucional equivaleria a
suprimir o STF, atentando contra uma cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, inciso
III) e fazendo o presidente da República incorrer em crime de responsabilida-
de, atacando o livre exercício do Poder Judiciário (artigo 85, inciso III).
No entanto, isso não cria um salvo-conduto para que os ministros do STF
possam fazer o que quiserem sem responsabilização. Mesmo os que exercem
a jurisdição constitucional são passíveis de falhas e críticas, mas cujo controle
deve ser feito única e exclusivamente nos termos previstos na Constituição e
na lei.
Nesse sentido, deve-se recordar que os ministros do STF estão sujeitos à
responsabilização política ou impeachment pelo Senado Federal, a quem com-
pete privativamente julgá-los por crime de responsabilidade (artigo 52, inciso
II). O rito segue a Lei nº 1.079/50, a condenação depende do voto favorável
de dois terços dos votos do Senado Federal e a sanção consiste na perda do
cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem
prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis. Embora esse mecanismo seja o
mais lembrado, não é o único.
Há o regime de responsabilização criminal, que seguirá o rito da Lei nº
8.038/90. Nesse caso, os ministros do STF também se submetem ao julgamen-
to dos próprios pares nos crimes comuns, conforme o artigo 102, inciso I,
alínea “b”, da CF, cuja competência também se estende para o julgamento de
ação de improbidade administrativa conforme a questão de ordem na Pet nº
3211. Quando o crime comum for de ação penal pública, a iniciativa cabe ao
procurador-geral da República, de ofício ou provocado pelo ofendido (via re-
presentação), conforme for o caso.
Do ponto de vista disciplinar, os ministros do STF ainda se submetem à
Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional, LC nº 35/79), cujas disposi-
ções, nas palavras do próprio ministro Gilmar Mendes, “constituem um regime
jurídico único para os magistrados brasileiros”3, pelo que resultaria impossível
deixar de fora os próprios ministros do STF, como magistrados que são.
Com base na Loman, artigo 42, podem ser aplicadas as penas de dispo-
nibilidade e de aposentadoria compulsória (aqui, refere-se à pena disciplinar,

3. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional.
15. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p.1155.

196
Quem controla os ministros do STF?

não à modalidade de inatividade a que se refere o artigo 40, inciso II, da CF,
aos 75 anos de idade, embora ambas tenham o mesmo nomen juris). Pelo pa-
rágrafo único do artigo 42, desembargadores e ministros não estão sujeitos às
penas de advertência e de censura. Já a pena de remoção compulsória (de uma
turma para a outra) se mostra inviável no STF, pois, na prática, implicaria uma
permuta.
Como sabido, a diferença entre as penas de disponibilidade e de aposen-
tadoria compulsória se refere à possibilidade de retorno ou não para o cargo,
já que a disponibilidade implica um afastamento temporário (por pelo menos
dois anos), ao passo que a aposentadoria compulsória é definitiva.
Normalmente, as penas disciplinares são aplicadas pelo próprio tribunal
a que está vinculado o juiz ou pelo Conselho Nacional de Justiça. Conforme a
decisão na ADI nº 3367, contudo, o CNJ não tem qualquer competência sobre
o STF e seus ministros, sendo este o órgão máximo do Poder Judiciário nacio-
nal, a que aquele está sujeito.
Assim, embora não atue o CNJ, o próprio Pleno do STF pode fazer as
vezes de órgão corregedor – atuando de ofício ou mediante representação fun-
damentada do Poder Executivo ou do Legislativo, do Ministério Público ou
do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – com vistas à im-
posição das penas disciplinares, aplicando, no que couber, o rito do artigo 27
da Loman. A representação poderá ser rejeitada liminarmente por manifesta
improcedência.
Em sendo aceita, inicia-se o processo administrativo, assegurada a ampla
defesa, sendo possível, a partir da instauração do processo, ou no curso dele,
determinar-se o afastamento do ministro do exercício das suas funções, sem
prejuízo dos vencimentos e das vantagens, até a decisão final (artigo 27, § 3º,
da Loman), que deverá ser tomada pelo voto da maioria absoluta dos membros
do tribunal (artigo 93, inciso X, da CF).
Para infrações disciplinares graves, ainda seria possível a demissão ou
perda do cargo. A vitaliciedade do artigo 95, inciso I, da CF – também apli-
cável aos ministros do STF, inclusive desde a posse – garante que a perda do
cargo só possa se dar por sentença judicial transitada em julgado. Para isso,
seria necessário o ajuizamento de uma ação civil própria, cuja iniciativa, em
se tratando de um ministros do STF, cabe ao procurador-geral da República.
Embora não haja previsão expressa no artigo 102 da CF, não há dúvida de que
a competência para processar e julgar originariamente essa ação será também
do próprio STF.

197
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

O problema da accountability dos ministros do STF é que – no atual regi-


me sancionador – todas as medidas existentes implicam afastar o magistrado
de suas funções. Talvez seja por isso que o sistema não venha funcionando
na prática. Faltam sanções mais amenas que permitam a responsabilização do
ministro sem necessariamente apartá-lo do cargo, em um sistema de penas
graduais.
Seja como for, se tais mecanismos de controle dos ministros do STF não
funcionam – ou porque soam demasiado drásticos, ou porque ensejam com-
portamento estratégico ou atuação corporativa por parte dos controladores –
que se criem outras formas de repressão para as condutas menos graves, mas
que funcionem de forma efetiva – como, por exemplo, a advertência, a censu-
ra, a remoção de relatoria ou outras ideias que começam a surgir.
O que não parece admissível é uma situação em que nenhum desses con-
troles funcione na prática e os ministros do STF fiquem sem qualquer conten-
ção. A simples perspectiva de abertura de um processo de responsabilização
já poria freios a possíveis desvios. A certeza do castigo – nem que seja sob a
forma do desgaste público – é o que previne os excessos e, parafraseando Ce-
sare Beccaria, a eloquência das paixões.4
É verdade que o artigo 41 da Loman estabelece que, salvo os casos de
impropriedade ou excesso de linguagem, o magistrado não pode ser punido
ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que
proferir. No entanto, como bem consignado pelo STJ no RMS nº 15.316, “im-
plícita nessa norma está a exigência de que essas mesmas decisões não infrinjam
os valores primordiais da ordem jurídica e os deveres de conduta impostos ao juiz
com o desiderato de assegurar a sua imparcialidade”.
Aqui, não se está defendendo que os ministros do STF devam ser punidos
por quaisquer atos em específico, mas apenas se questiona que na ordem his-
tórica inaugurada pela Constituição de 1988 sequer foi aberto um único pro-
cesso administrativo ou judicial para responsabilização de ministro do STF,
em que, garantindo-se a ampla defesa e devido processo legal, fosse apurada
eventual falta cometida.
O certo é que esse estado de coisas – de não responsabilização dos minis-
tros do STF – é terreno fértil para atuações e interpretações heterodoxas da

4. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 60.

198
Quem controla os ministros do STF?

Constituição, por todos os lados, sendo a esdrúxula intervenção militar com


base no artigo 142 da CF só mais um exemplo de solução completamente erra-
da para um problema complexo.

199
A ‘morte cruzada’ do
Executivo e do Legislativo
Seria o curioso instituto do Equador uma
alternativa melhor do que o impeachment?

Quando se volta a falar de impeachment no Brasil, vale a pena conhecer a


figura jurídica da “morte cruzada”, alcançada como consequência da aplicação
dos artigos 130 e 148 da Constituição do Equador de 2008.
Em síntese, tais dispositivos estabelecem a possibilidade recíproca de des-
tituição: tanto o Poder Legislativo pode destituir o presidente da República,
quanto o presidente da República pode dissolver a Asamblea Nacional (como é
chamado o equivalente ao Congresso Nacional do Equador).
Ocorre que, nos dois casos, é como se (para usar uma metáfora do boxe)
quem dá um nocaute levasse outro igual. Se a Asamblea Nacional remove o
presidente da República, fica automaticamente dissolvida: são convocadas no-
vas eleições gerais tanto para o Poder Executivo, quanto para o Poder Legis-
lativo. Da mesma forma, se o presidente da República dissolve a Asamblea
Nacional, fica automaticamente destituído.
De acordo com o artigo 130 da Constituição do Equador, a Asamblea Na-
cional pode destituir o presidente em dois casos: 1) por avocar funções que
não lhe correspondem constitucionalmente (como, por exemplo, tirar os ma-
gistrados da cúpula judicial), conforme prévio parecer favorável do Tribunal
Constitucional; ou 2) por grave crise política e comoção interna.

201
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Concluído o procedimento previsto na lei, em 72 horas, a Asamblea Na-


cional resolverá em decisão fundamentada, com base em meios de defesa apre-
sentados pelo presidente da República. Para a destituição, é necessário o voto
favorável de 2/3 de seus membros. Esse poder só pode ser exercido uma única
vez durante os 3 primeiros anos da legislatura.
No caso de destituição, o vice-presidente assumirá a presidência da Repú-
blica. Então, no prazo máximo de 7 dias após a publicação da resolução de des-
tituição, devem ser convocadas eleições legislativas e presidenciais antecipadas
(para uma mesma data) para o resto do período respectivo.
Por seu turno, o presidente da República pode dissolver a Asamblea Nacio-
nal em três situações: 1) quando, a seu juízo, esta tiver assumido funções que
não lhe correspondem constitucionalmente, também após parecer favorável
do Tribunal Constitucional; 2) se esta se obstruir repetidamente e injustifica-
damente à execução do Plano Nacional de Desenvolvimento (que equivaleria
à aprovação das leis do programa de governo); ou 3) por grave crise política
e comoção interna. Esse poder também só pode ser exercido pelo presidente
uma única vez nos primeiros 3 anos do mandato, que é de 4 anos.
Da mesma forma, no prazo máximo de 7 dias após a publicação do decre-
to de dissolução, serão convocadas eleições legislativas e presidenciais (para a
mesma data) para o resto do período respectivo.
Até a instalação da nova Asamblea Nacional, o presidente da República
pode, com prévio parecer favorável do Tribunal Constitucional, expedir decre-
tos-leis de urgência econômica, que podem ser aprovados ou revogados pelo
órgão legislativo (posteriormente).
Dentro do sistema de freios e contrapesos, trata-se da incorporação de
uma ferramenta típica do parlamentarismo ao sistema presidencialista. No en-
tanto, diferentemente da moção de censura, que dispensa a apresentação de
razões para a perda de confiança, a figura equatoriana exige uma motivação
mínima – muito embora não chegue ao nível de exigência de um impeach-
ment, o qual ainda dependeria da prática de condutas específicas.
Está claro que a “morte cruzada” e o impeachment não são figuras equi-
valentes, o que prejudicaria qualquer comparação. Inclusive, a Constituição
do Equador também traz sua própria modalidade de julgamento político do
presidente da República pela prática de crimes, conforme o art. 129.
A grande diferença em relação ao impeachment é, ao mesmo tempo, o
principal atrativo da “morte cruzada”: se o Poder Legislativo entender que o

202
A ‘morte cruzada’ do Executivo e do Legislativo

presidente da República incorre nas situações da “morte cruzada”, tanto o pre-


sidente quanto os membros da Asamblea Nacional devem deixar seus cargos.
O instituto foi inserido como novidade na Constituição do Equador de
2008. Tal hibridismo resultou das necessidades políticas equatorianas após su-
cessivas rupturas institucionais – desde 1830, o Equador já teve 20 Constitui-
ções, e chegou à média de uma nova Constituição a cada 8 anos –, em uma ten-
tativa de neutralizar a hegemonia política de um dos poderes sobre os demais.
À pergunta: a morte cruzada é compatível com um sistema presidencialis-
ta? A resposta parece ser sim, pois há tantas variações concretas, que o correto
seria falar em presidencialismos, já que o modelo admite certas anomalias em
seus mecanismos de freios e contrapesos, desde que mantida a separação de
poderes.
Como ainda não foi usada desde a sua instituição, a figura desperta dúvi-
das sobre se é simplesmente ineficaz ou se está realmente conseguindo alcan-
çar seu objetivo de conferir alguma estabilidade na política do Equador.
Fica a reflexão: será que os mecanismos de checks and balances só funcio-
nam se forem aplicados na prática? Seriam necessariamente ruins as ferramen-
tas de uso preponderantemente latente ou de cunho dissuasório-persuasivo
(com salvaguardas que desestimulam a sua utilização)?
Talvez, o grande valor da “morte cruzada” residiria justamente em servir
de advertência aos poderes. Por isso, mesmo nunca implementada, a solução
desperta curiosidade, nem que seja só no plano teórico.
É bem verdade que só a história poderá responder se o instituto acabou
favorecendo maus políticos que passaram impunes. Mas o interessante está
em fazer com que a decisão de remover um presidente também seja sentida
na “própria carne” do Legislativo, fazendo “doer” também nos parlamentares.
É a ideia da “pele em risco” (skin in the game) explorada pelo trader de op-
ções financeiras e filósofo Nassim Taleb, que usa justamente os políticos como
exemplo de assimetria na sociedade: por vezes, sem arriscar a própria pele, os
políticos mantêm os ganhos e vantagens de governar, transferindo os prejuízos
e desvantagens de suas ações aos governados.5

5. TALEB, Nassim Nicholas. Arriscando a própria pele: assimetrias ocultas no cotidiano. Rio de
Janeiro, Objetiva, 2018, p. 66.

203
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

A “morte cruzada” corrigiria essa assimetria, permitindo que, além do


presidente, os parlamentares passem a arcar também com as consequências
de suas ações.
Aqui, não se defende que a inovação jurídica equatoriana seja usada como
modelo para Brasil. A possibilidade de o presidente da República dissolver o
Parlamento e convocar novas eleições até chegou a existir na Constituição de
1937, art. 167, parágrafo único, mas sem que o presidente caísse junto (ou seja,
a medida era tão autocrática quanto a própria a Carta de 1937). Hoje, à luz da
atual Constituição de 1988, a providência seria inconstitucional e crime de
responsabilidade, por atentar contra “o livre exercício do Poder Legislativo”,
nos termos do art. 85, inciso II.
A ideia é chamar a atenção para a necessidade de uma medida que gere
real equilíbrio entre os poderes, sem instabilidade política ou paralisia decisó-
ria. Além disso, é necessário que os mecanismos de checks and balances não
desvirtuem as naturezas e funções dos poderes, em especial do Poder Legisla-
tivo. Este argumento ficará claro mais adiante.
Não é de hoje que o sistema presidencialista (não o modelo puro, mas o
existente concretamente nos países) é apontado como uma das principais ra-
zões para o fracasso das democracias latino-americanas. Karl Loewenstein já
afirmava que o “tipo americano de governo” é o de mais difícil funcionamento.
Embora, haja quem discorde de que o problema seja o presidencialismo6 em
si, tal diagnóstico é a opinião majoritária.
De fato, os sistemas presidenciais funcionam mal em países muito dividi-
dos e com sistemas partidários fragmentados, e não oferecem soluções institu-
cionais eficazes para crises ou remédios para o bloqueio institucional.
No caso do Brasil, os últimos anos mostram que o sistema presidencialista
desenhado na Constituição de 1988 apenas vem encobrindo um parlamen-
tarismo “branco” ou informal, dado o crescente protagonismo institucional
do Congresso Nacional, sem que isso implique necessariamente perda de go-
vernabilidade (pois o presidente que se rende às negociações junto ao Poder
Legislativo consegue se manter no cargo).

6. http://www.cieplan.org/wp-content/uploads/2019/12/Reforma-partidos-politicos_Capi-
tulo_1_P1.pdf

204
A ‘morte cruzada’ do Executivo e do Legislativo

Ou seja, os mecanismos constitucionais que sustentariam a preponderân-


cia do Poder Executivo na CF – 1) a extensa lista de matérias de iniciativa
legislativa privativa do presidente da República, 2) o poder de editar medidas
provisórias, 3) a faculdade de solicitar urgência em projetos de lei, e 4) o poder
de veto, mesmo com a possibilidade de ser derrubado – não têm sido suficien-
tes para garantir um Poder Executivo institucionalmente forte.
Na prática, os poderes do Congresso Nacional são enormes, o dia a dia
revela que a aprovação das leis de interesse do governo requer um tipo especial
de acordo, formado a partir de uma coalizão, resultado de negociações que
incluem, não só o conteúdo das medidas legislativas (que costumam desfigu-
rar as propostas de iniciativa do presidente), mas também uma série de outras
questões, como a aprovação de emendas orçamentárias, distribuição de recur-
sos de forma mais ampla, indicação de cargos na administração pública, etc.
Nesse toma-lá-dá-cá, a simples ameaça de uma “morte cruzada” poderia
abrir o caminho para negociações em que o presidente não fique refém da
maioria necessária para governar. Não dando certo, sairia como mártir.
No entanto, como aqui não se permite nada parecido à dissolução do Par-
lamento, quando surge uma crise, o impeachment costuma ser apresentado
como solução para o sistema se livrar de um presidente incompetente ou im-
popular.
Mas, por ser um processo demorado e depender de amplas articulações,
o impeachment não é (ao menos segundo a experiência mostra até agora) uma
ferramenta adequada para problemas de conjuntura. A convulsão e a tensão
precisam ser persistentes e subir em escalada para formar a atmosfera “propí-
cia” à remoção do presidente do cargo.
No momento em que este texto é escrito (dia 31 de janeiro de 2021), isso
ainda não vem acontecendo, ao menos segundo o termômetro que é a ferra-
menta Google Trends: no Brasil, o ápice de buscas pela palavra impeachment
ocorreu entre 17 e 23 de abril de 2016. Embora as pesquisas venham subindo
desde o dia 12 de janeiro de 2021, o número ainda é infinitamente inferior ao
da época do último impeachment no país.
Mas já que o impeachment parece estar entrando para a agenda de 2021,
convém recordar que se trata de um julgamento político – ou político-jurídico
– mas jamais estritamente jurídico. E aqui se chega ao que se queria comentar
sobre o papel do Poder Legislativo nesse processo, conforme o desenho insti-
tucional que lhe foi reservado na Constituição de 1988.

205
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Didaticamente, seria possível classificar as funções constitucionais do Po-


der Legislativo em: 1) função legislativa: para elaborar leis em geral (art. 48); 2)
função orçamentária: para aprovar o orçamento proposto pelo presidente da
República (art. 166); 3) função de fiscalização contábil, financeira e orçamen-
tária (art. 70); 4) função de controle externo: desempenhada com auxílio do
Tribunal de Contas (art. 71) e da comissão mista de orçamento (art. 166, § 1º);
5) função de controle do governo, incluindo a convocação de ministros e au-
toridades (art. 50); 6) função de direção política, com destaque para a compe-
tência exclusiva de aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar
o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas (art. 49, inciso
IV); 7) função de informação (art. 50, § 2º); 8) função de expressão ou repre-
sentação: inerente a todo Parlamento composto de representantes eleitos do
povo (arts. 45 e 46); 9) função de investigação: desempenhada pelas comissões
parlamentares de inquérito – CPIs (art. 58, § 3º); e 10) função de julgamento
de crimes de responsabilidade (art. 51, inciso I, art. 52, incisos I e II, e art. 86).
No que interessa à coluna de hoje, as duas últimas atribuições merecem
um aprofundamento.
Da leitura dos dispositivos constitucionais, observa-se que dentro do Po-
der Legislativo só as CPIs têm poderes de investigação próprios das autorida-
des judiciais (art. 58, § 3º), sendo certo que tais poderes não devem ser confun-
didos com os poderes de pedir informações (art. 50, § 2º).
Ou seja, ao que parece, o constituinte quis atribuir tais poderes de inves-
tigação somente a uma fração do Legislativo: o grupo dos parlamentares que
integrem as CPIs – para cuja criação é necessário o requerimento de 1/3 dos
membros das Casas, em conjunto ou separadamente –, de modo que os po-
deres de investigação não são uma atribuição “difusa” da qual todos os parla-
mentares possam se valer individualmente ou fora desse colegiado fracionário.
Outro ponto importante: os poderes de investigação parlamentar exigem,
ainda, que a apuração seja quanto a um “fato determinado”, sendo essa uma
das condições impostas pela Constituição para a instauração da própria CPI.
Relatos vagos, fatos genéricos e meras opiniões não são suficientes para inau-
gurar o exercício dos poderes de investigação dentro do Congresso Nacional.
Por seu turno, no julgamento do presidente da República, seu vice-pre-
sidente e dos ministros de Estado por crime de responsabilidade, compete à
Câmara dos Deputados apenas o juízo de “admissibilidade”. O art. 51, inciso I,
traz a competência para “autorizar, por 2/3 de seus membros, a instauração de
processo”, não estabelece “poder para investigar”.

206
A ‘morte cruzada’ do Executivo e do Legislativo

Já o Senado Federal funciona como tribunal de julgamento político, con-


duzido pelo presidente do STF. Quanto às autoridades listadas no art. 52, in-
ciso II, o Senado Federal se encarrega sozinho da admissibilidade, processa-
mento e julgamento.
Explicado tudo isso, o que se extrai de conclusão é que, ao menos à luz da
atual CF, é duvidoso que exista uma atribuição (ou sequer uma autorização)
constitucional para o Poder Legislativo (ou de quaisquer de suas Casas) usar o
mecanismo de impeachment para “investigar” o presidente da República.
Em primeiro lugar, porque, como já dito, o poder de investigar do Con-
gresso Nacional se concentra nas CPIs. Instrumentalizar o impeachment para
investigar o que quer que seja equivaleria a uma deturpação do instituto, da
lógica do sistema acusatório vigente no país (em que são separadas as funções
de acusar e julgar) ou, no mínimo, a uma inversão de ordem dos procedimen-
tos (como uma denúncia que vem antes do inquérito).
Em segundo lugar, porque, como consequência do anterior, se o objeti-
vo é investigar, não seria necessário instaurar procedimento de impeachment.
Para isso, já existem a possibilidade de criação de uma CPI ou o próprio art.
50 da CF, pelo qual a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, ou qualquer
de suas comissões podem convocar autoridades e pedir informações sobre
assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a
negativa.
Em terceiro lugar, porque, se para instaurar uma CPI é necessário “fato
determinado”, então, a fortiori, para admitir o processamento de uma denún-
cia de impeachment (que é muito mais grave), é preciso cumprir requisito se-
melhante, sob a forma de uma mínima exposição do fato que configura crime
de responsabilidade e todas as suas circunstâncias (até mesmo para permitir a
defesa), acompanhada, ainda, de “justa causa” consistente em lastro probatório
mínimo que embase a acusação. Portanto, isso reconduz à impossibilidade de
usar o impeachment como meio de investigação, sob pena de confundir causa
e consequência.
Remover do cargo um presidente da República para impedir que, com
o poder que o cargo lhe confere, ele cause mais danos à nação, de fato é uma
decisão que cabe ao Poder Legislativo, mas cada vez mais fica a impressão que
o impeachment é uma ferramenta mal compreendida no Brasil: uns preten-
dem usá-lo como se fosse uma moção de censura (sem a prática de crimes de
responsabilidade), outros querem instrumentalizá-lo como “procedimento de

207
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

investigação”, o que converteria o Congresso Nacional em uma grande CPI,


sem qualquer lastro constitucional.
Daí que a ideia da “morte cruzada”, mesmo com todas as críticas, tem o
mérito de garantir algum skin in the game parlamentar, evitando desvio de
finalidade e invocações temerárias de impeachment.
Ao mesmo tempo em que demandaria o sacrifício dos parlamentares se
a destituição do chefe do Executivo for utilizada, confere ao presidente da Re-
pública algum tipo de “efeito persuasivo” para a colaboração do Congresso
com o governo. Mas, como diria Millôr Fernandes: “Grande erro da natureza
é a incompetência não doer”, uma máxima que parece ter aplicação geral nessa
discussão.

208
A ‘incapacidade moral’ do presidente da República

A ‘incapacidade moral’ do
presidente da República
Seria o instituto do Peru um dos rumos
para o impeachment no Brasil?

De acordo com o artigo 113, inciso 2, da Constituição do Peru de 1993,


o Congreso pode declarar a “incapacidade moral permanente” do presidente
da República e, com isso, o cargo fica vago (assume o primeiro vice-presiden-
te). Assim como comentado em relação ao instituto da ‘morte cruzada’1 do
Equador, essa declaração não equivale ao impeachment, o qual também tem
previsão expressa nos artigos 99 e 100 da Constituição do Peru.
Do artigo 117, infere-se que o impeachment fica limitado às hipóteses de
o presidente: 1) trair a pátria; 2) impedir eleições presidenciais, parlamentares,
regionais ou municipais; 3) dissolver o Congreso fora das situações autorizadas
no artigo 134; ou 4) impedir o funcionamento ou reunião do Congreso ou dos
órgãos do sistema eleitoral.
A figura da incapacidade moral do presidente foi inserida pela primeira
vez na Constituição peruana de 1828 (artigo 83). Não constou na Constituição
de 1934, mas voltou a aparecer no texto constitucional de 1839 (artigo 81),
sob a expressão de “perpétua impossibilidade moral”, também para reconhecer

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/a-morte-cruzada-do-exe-
cutivo-e-do-legislativo-03022021

209
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

a vacância do cargo de presidente da República. Desde então, o instituto foi


mantido nas constituições seguintes, com pequenas modificações ao longo do
tempo.
Embora sua natureza jurídica seja controvertida (aqui prefere-se consi-
derá-la uma “sanção política”), o fato é que um dos problemas que envolvem
sua aplicação é nunca terem sido definidas as condutas (ações ou omissões),
por parte do presidente, que pudessem ensejar sua permanente incapacidade
moral para o exercício do cargo. Além disso, a Constituição tampouco fixou o
procedimento a ser obedecido, e sequer o quórum de votação.
Somente em 2003, houve um avanço, com o advento da Sentencia nº 0006-
2003-AI/TC, em cujo § 3 o Tribunal Constitucional exortou o Congreso a que
disciplinasse tal procedimento, prevendo necessariamente uma maioria qua-
lificada (de não menos que os 2/3 do impeachment), pois seria atentatório ao
princípio da razoabilidade que uma maioria simples pudesse destituir o cargo
mais alto da nação.
Com isso, no mesmo ano de 2003, adicionou-se o artigo 89-A ao Regi-
mento Interno do Congreso de la República, para estabelecer as regras:

• O pedido de vacância por incapacidade moral deve ser formulado


por uma moção assinada por pelo menos 20% dos congressistas (o
que resulta no número de 26, já que os membros do Congreso totali-
zam 130 lá). A moção precisa, ainda, especificar os fundamentos de
fato e de direito em que se sustenta, indicar documentos ou o lugar
onde tais documentos se encontrem;
• Tal moção tem preferência sobre todas as outras da ordem do dia e,
recebido tal pedido de vacância, uma cópia é enviada ao presidente
da República no prazo mais rápido possível;
• A admissibilidade do pedido exige o voto de pelo menos 40% (ou
seja, 52) congressistas, devendo a votação ser efetuada na sessão ime-
diatamente seguinte àquela em que a moção foi apresentada;
• Uma vez admitida a moção, a sessão de debate e votação do pedido
de vacância ocorrerá no prazo de pelo menos 3 dias e, no máximo,
até 10 dias, contados a partir da votação de admissão. É possível, no
entanto, pelo voto de 4/5 (isto é, 104 congressistas), que seja acor-
dado um prazo menor ou mesmo o debate e votação imediatos. Em
todo caso, o presidente da República poderá exercer pessoalmente

210
A ‘incapacidade moral’ do presidente da República

seu direito de defesa, pessoalmente ou com a assistência de um advo-


gado, por até 60 minutos;
• Para declarar a incapacidade moral (e, portanto, a vacância da Pre-
sidência da República), é necessário o voto de 2/3 dos membros do
Congreso (ou seja, 87 votos). A decisão constará de uma resolução do
Congreso, que deverá ser publicada nas 24 horas seguintes, e vale a
partir da comunicação ao presidente declarado incapaz moralmente,
ao presidente do Conselho de Ministros ou da sua publicação, o que
ocorrer primeiro.

Do que foi explicado acima, destaca-se que a regulamentação do proce-


dimento para a declaração da incapacidade moral do presidente da República
no Peru ficou a cargo, exclusivamente, do Congreso, o qual optou por atribuir
a legitimidade para o pedido a um grupo de parlamentares.
Além disso, observa-se que não foi fixado um “órgão intermediário” com
poderes para avaliar as condições de procedibilidade da moção, a qual vai dire-
ta e rapidamente ao plenário. A decisão, portanto, é puramente política.
Ademais, o único direito de defesa assegurado ao presidente é o tempo de
60 minutos antes do debate e votação do pedido de vacância, já que até mesmo
o prazo de 3 dias acima comentado pode ser reduzido com a concordância de
4/5 dos congressistas.
Tais peculiaridades de desenho institucional estão longe de representar
meros detalhes. Daí a impropriedade de se conceber a declaração de incapaci-
dade moral peruana como uma modalidade de impeachment.
Isso porque, na prática, a figura da incapacidade moral do presidente da
República no Peru confere a abertura para que seja possível sancionar uma
grande quantidade de condutas não listadas no já referido artigo 117 do texto
constitucional peruano (que ensejariam o impeachment). Na verdade, dado
o apelo à moralidade, estariam abarcadas uma lista infinita de condutas que
sequer são infração a qualquer norma jurídica.
A essa altura, parece desnecessário enfatizar os problemas envolvidos na
aplicação de normas vagas como essa, que exigiriam técnicas mais sofisticadas
de interpretação, inclusive de ponderação, de modo a conciliar outros interes-
ses em jogo, notadamente para impedir seu uso de modo desarrazoado para
embaraçar ou subtrair o exercício da presidência da República.

211
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

No caso do Peru, já foram destituídos 3 presidentes a partir da declaração


de incapacidade moral: Guillermo Billinghurst, em 1914, Alberto Fujimori,
em 2000, e Martín Vizcarra, em 2020. No caso desse último, a moção foi apre-
sentada no dia 20 de outubro de 2020, admitida no dia 2 de novembro (com 60
votos a favor, 40 contrários e 18 abstenções) e aprovada no dia 9 de novembro
do mesmo ano (com 105 votos a favor, 19 contra, e 4 abstenções).
Embora a frequência com que o instituto venha sendo utilizado na prática
não sugira um número abusivo, é inegável que no Peru a declaração de in-
capacidade moral tem um procedimento fácil, simples, rápido, sem cláusulas
de resfriamento e com poucas margens de articulação para o presidente da
República.
Quanto a esse aspecto, trata-se do oposto do que se observa no impeach-
ment brasileiro, que é um processo sumamente longo, que transcorre em duas
Casas, com ampla possibilidade de virada de jogo. Reitera-se, no entanto, que,
como as figuras não são equivalentes, a comparação fica um pouco distorcida.
Nada obstante, vem chamando a atenção iniciativas aqui no Brasil que
pareceriam aproximar as duas figuras. Foi o caso, por exemplo, da declaração
dada no último dia 17 de julho pela deputada federal e presidente nacional do
Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, para quem é preciso que a
Constituição seja alterada para fixar um mecanismo que obrigue o presidente
da Câmara dos Deputados a pautar os pedidos de impeachment que envolvam
crimes descritos objetivamente, fundamentados, públicos.
Como sabido, a Constituição de 1988 é omissa quanto aos detalhes do
procedimento de impeachment e o Regimento Interno da Câmara dos Deputa-
dos – RICD, art. 218 (§§ 2º e 3º), atribuiu ao presidente dessa Casa Legislativa,
em caráter monocrático, o juízo preliminar quanto ao cumprimento dos requi-
sitos formais de admissibilidade do pedido.
Nem na CF, nem no RICD, foram fixados prazos para o exercício dessa
competência, o que a deixaria no âmbito do poder de agenda do presidente
da Câmara dos Deputados, o qual teria poderes para, conforme o seu juízo de
conveniência e oportunidade políticas, escolher o momento para exercê-la. A
rigor, não seria exigível uma imediaticidade na análise desses pedidos (embora
tampouco tenha cabida uma demora muito longa e injustificada).
Sobre esse ponto, é aguardada a decisão que será dada no Mandado de
Segurança – MS nº 38.034, ajuizado no último dia 2 de julho, pelo deputado
federal Rui Falcão (PT-SP) e o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad,

212
A ‘incapacidade moral’ do presidente da República

sustentando existir omissão inconstitucional do presidente da Câmara dos De-


putados em apreciar ao menos um dos mais de cento e vinte pedidos de impea-
chment contra o presidente Jair Bolsonaro. Com o writ, os autores pretendem
suprir a alegada omissão.
Em resumo, sustentam que, ao julgar a ADPF nº 378, o STF reconheceu
que “o recebimento operado pelo Presidente da Câmara dos Deputados configura
juízo sumário da admissibilidade da denúncia para fins de deliberação colegia-
da”, de modo que os impetrantes teriam direito líquido e certo a tal apreciação
sumária do pedido e o ato omissivo seria ilegal.
Os autos foram distribuídos à ministra Cármen Lúcia. Na tramitação,
consta despacho do último dia 9 de julho do presidente da Corte entendendo
que o caso não se enquadra no art. 13, inciso VIII, do Regimento Interno do
STF (“São atribuições do Presidente (…) decidir questões urgentes nos períodos
de recesso ou de férias”).
Ainda que implicitamente, trata-se do reconhecimento de que não há
pressa nessa discussão, nem perecimento de direito em jogo no caso. Com
isso, será incoerente que, mais adiante, sobrevenha uma decisão fixando um
prazo (que não conta com qualquer suporte no texto da CF) para o presidente
da Câmara dos Deputados exercer a competência atribuída pelo RICD.
Eventual decisão nesse sentido – além de subtrair as competências legis-
lativas atribuídas às Casas Legislativas para disciplinar seus procedimentos in-
ternos (e, portanto, violar a separação dos poderes prevista no art. 2º da CF)
– subverterá o desenho do impeachment no Brasil e sua natureza de processo
jurídico-político, ou seja, para cujo andamento as circunstâncias (e a leitura
dessa conjuntura pelos parlamentares) importam tanto quanto o preenchi-
mento de formalidades jurídico-processuais.
Para além desse dado, não se pode exigir do presidente de uma Casa Le-
gislativa que se dispa de suas vestes de parlamentar integrante de partido po-
lítico e atue de modo estritamente neutro (ou apartidário), sobretudo quando
ocupa o cargo porque foi eleito pelos seus pares, os quais sabiam de antemão
de que o candidato, uma vez eleito, atuaria em favor dos interesses de seu par-
tido ou bloco (seja da base do governo, seja da oposição, conforme o caso) e
exerceria influência sobre os assuntos de sua alçada.
Ora, é natural e esperado que o presidente de uma Casa Legislativa as-
sim proceda. Sequer do ponto de vista normativo poderia ser diferente. Ou,
por acaso, é possível imaginar neutralidade de um presidente da Câmara dos

213
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Deputados ou do Senado Federal? Isso seria negar a própria natureza política


dos parlamentos e da atividade legislativa.
O presidente da Câmara dos Deputados é um agente político dotado de
legitimidade representativa conferida por seus eleitores e também por seus
pares, responsável pela prática de atos que, além de jurídicos, são políticos, e
que terão impacto em outro Poder do Estado e na condução das políticas de
governo.
O presidente da Câmara dos Deputados não é equiparável, portanto, a
um servidor público que desempenha funções estritamente administrativas
e opera por atos vinculados. É verdade que não se trata de um poder absolu-
to (o conferido pelo art. 218 do RICD), mas há sim juízo de conveniência e
oportunidade política quanto ao momento, por mais que os juristas tenham
dificuldades de lidar com isso.
É por todo o exposto que, acaso venha a ser dada, a decisão no MS nº
38.034 (e o mesmo raciocínio vale para a ADPF nº 867, noticiada aqui)2 seria
tão teratológica quanto a que determinou a criação da CPI da Pandemia (MS
nº 37.760), em que, na prática, sem qualquer base em sua própria jurispru-
dência, o STF substituiu o lugar do presidente do Senado Federal e esvaziou
o poder de agenda da Casa Legislativa para acordar o momento de leitura do
requerimento e instalação do referido colegiado investigativo. O tema foi tra-
tado aqui.3
Em resumo, a dinâmica sobre a admissibilidade das denúncias de impea-
chment até pode ser objeto de reformas regimentais, desde que oriundas do
seio do próprio Poder Legislativo, jamais a partir de uma decisão do STF.
Outra iniciativa que acaba aproximando o impeachment da incapacidade
moral peruana é o Projeto de Resolução da Câmara – PRC nº 49/2021, da de-
putada Adriana Ventura em coautoria com os deputados Paulo Ganime, Ale-
xis Fonteyne, Tiago Mitraud e Vinicius Poit, todos do Partido Novo.
Pela proposta, pretende-se acrescentar o § 2º-A ao art. 218 do RICD para
fixar o prazo máximo de 60 dias (30 dias, prorrogáveis por igual período), para

2. https://www.jota.info/stf/do-supremo/fux-deixa-para-nunes-marques-decisao-sobre-an-
damento-de-impeachment-na-camara-19072021
3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/pode-o-stf-determinar-a-
-criacao-da-cpi-da-pandemia-31032021?amp=1

214
A ‘incapacidade moral’ do presidente da República

que o presidente da Câmara decida fundamentadamente sobre o recebimento


ou não da denúncia.
O PRC pretende adicionar, ainda, o § 2º-B, pelo qual a assinatura da maio-
ria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados (ou seja, 257 deputa-
dos) tem o efeito de “receber” a denúncia automaticamente, de modo que esse
“apoio” parlamentar seria o suficiente para iniciar a tramitação, enviando-se o
processo já para a Comissão Especial do art. 19 da Lei nº 1.079/50, que define
os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento.
É duvidosa a constitucionalidade desse § 2º-B, que parece pretender con-
ferir às denúncias de impeachment um efeito semelhante ao que o STF atribuiu
aos requerimentos de criação de CPIs, fazendo-as operar de “pleno direito”,
esvaziando o poder de agenda para a definição das prioridades nos processos
decisórios legislativos.
É difícil prever se tais iniciativas parlamentares contam com o apoio ne-
cessário para serem aprovadas (seja a PEC, seja o PRC). O mais provável é que
não, já que, se houvesse a maioria parlamentar necessária, nem o próprio pre-
sidente da Câmara conseguiria resistir às pressões, e as forças recairiam para
a admissibilidade das próprias denúncias de impeachment, sem a necessidade
de mudar o procedimento para facilitar o rito e, assim, viabilizar a tramitação
desses pedidos represados.
No entanto, como sabido, dado o processo decisório do STF como é, uma
simples decisão (inclusive monocrática) pode acabar tendo o mesmo efeito das
propostas comentadas acima e mudar toda a dinâmica do processo político
brasileiro em matéria de remoção do presidente da República (mas, claro, sem
a legitimidade parlamentar). Por mais que o impeachment brasileiro seja mais
demorado que a declaração de incapacidade moral peruana, na prática, serão
poucas as diferenças entre os dois institutos se o STF intervir na questão.

215
Existe hora marcada para se
tornar ministro do STF?
A dificuldade com a competência
do art. 52, inciso III, da CF

Na última segunda-feira dia 11 de outubro, o ministro Ricardo Lewan-


dowski negou seguimento ao MS nº 38.216, que havia sido impetrado pelos
senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Jorge Kajuru (Podemos-GO)
contra a suposta demora do presidente da Comissão de Constituição e Justiça
(CCJ) do Senado Federal, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), em pautar
a apreciação da indicação do Sr. André Mendonça para o cargo de ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF). A notícia foi veiculada aqui.1
As informações prestadas pela autoridade apontada como coatora – em
peça cuja leitura se recomenda veementemente para a compreensão da dimen-
são da discussão – já indicavam que seria esse o desfecho, como noticiado
aqui.2 Agora a questão parece estar sacramentada com a decisão monocrática
do ministro Lewandowski.

1. https://www.jota.info/stf/do-supremo/lewandowski-nega-pedido-para-forcar-realizacao-
-de-sabatina-de-mendonca-pela-ccj-11102021
2. https://www.jota.info/legislativo/alcolumbre-ao-stf-data-de-sabatina-de-mendonca-de-
pende-de-amadurecimento-politico-06102021

217
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Da ratio desse decisum, extraem-se pelo menos três importantes conse-


quências. Em primeiro lugar, não há direito líquido e certo dos parlamentares
violado pela suposta omissão do presidente da CCJ do Senado Federal ou, se
se prefere, não há direito líquido e certo à marcação, sem demora, da data para
a sabatina dos candidatos a ministro do STF.
Em segundo lugar, a marcação dessa data é matéria interna corporis do
Congresso Nacional, insuscetível de apreciação judicial. Como sabido, nem a
Constituição, nem o art. 383 do Regimento Interno do Senado Federal (RISF)
preveem um lapso temporal que deva ser observado na convocação do candi-
dato para a arguição pública.
Nada obstante tais omissões normativas, com a decisão tomada no MS
nº 38.216, foram reconhecidos tanto o poder de agenda da Casa Legislativa,
quanto a natureza eminentemente política dessa competência senatorial. O
ministro considerou que o presidente da CCJ tem poder de agenda consistente
no poder de ordenar e dirigir os trabalhos do colegiado.
Em terceiro lugar, não há que se falar em prevaricação do presidente da
CCJ. Sim, com a chancela que se acaba de dar no MS nº 38.216, o retardamento
da inclusão na pauta não poderá ser tipificado no art. 319 do Código Penal
(“Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo con-
tra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.”).
Em coluna passada,3 já se comentou de forma geral sobre sabatinas de
autoridades pelo Senado Federal, em especial quanto aos titulares de outros
cargos que a lei determinar, nos termos da alínea d do referido dispositivo
constitucional, que confere ao Senado um mecanismo típico do sistema de
freios e contrapesos que garante a participação (e o controle) parlamentar no
processo de escolha daqueles que ocuparão cargos de alto escalão, a partir da
indicação do presidente da República.
Sobretudo no caso da escolha dos ministros do STF (art. 101, parágrafo
único, da CF), é possível apontar ao menos três funções na missão do Senado
Federal: em primeiro lugar, a já indicada função de controle prévio; em se-
gundo lugar, a função de legitimação, consistente no respaldo democrático,
conferido via representantes eleitos pelo povo, do candidato; e, em terceiro

3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/sabatina-senado-noto-
rio-conhecimento-especialidade-30092020

218
Existe hora marcada para se tornar ministro do STF?

lugar, a função de orientação política, que também corresponde à representa-


ção popular.
Como se vê, a aprovação de autoridades pelo Senado Federal é uma ativi-
dade substancialmente diferente da função legislativa em sentido estrito (não
se trata de legislar, nem há que se cogitar de uma violação ao devido processo
legislativo), da função orçamentária, da fiscalização contábil, financeira e or-
çamentária ou das demais funções listadas aqui.4
De modo específico, essa função de direção política (nesse ponto compar-
tilhada com o poder Executivo) consiste no estabelecimento de diretrizes, de
prioridades em matéria de políticas públicas, orientação da política nacional
de modo geral, etc. Nesse caso da indicação de ministros do STF, trata-se de
averiguar mais do que o simples “notável saber jurídico” e a “reputação ilibada”
do candidato.
A partir do momento em que o sentido do texto constitucional depende (e
muito) de quem o interpreta, torna-se imperioso também o escrutínio sobre o
que pensa o candidato, pois isso condiciona o que de fato está em jogo, sobre-
tudo do lado do presidente da República: a constitucionalidade das políticas
públicas do governo.
A grande questão nessa matéria é que as diversas abordagens sobre a in-
dicação de ministros do STF não resolvem os problemas que as instituições
ainda precisam resolver. Na maioria das vezes, são feitas construções que mais
atendem às posições ideológicas e não dão conta da politização desse tema. Há
até mesmo um certo preconceito com a natureza política de certas competên-
cias como essa em questão do Senado Federal.
Por que será que os juristas menosprezam tanto a política?
Seja como for, o fato é que sequer do ponto de vista normativo seria pos-
sível conceber uma escolha fora da dinâmica da política (por mais que os as-
pectos pessoais do candidato também importem). Sobre essa questão, convém
recordar que tais aspectos que influenciaram a indicação não necessariamente
determinarão a atuação do futuro ministro.
Aqui, convém reproduzir as palavras de Gustavo Zagrebelsky comentan-
do sobre a realidade do Tribunal Constitucional italiano: “Naturalmente, no

4. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/a-morte-cruzada-do-exe-
cutivo-e-do-legislativo-03022021

219
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

momento da escolha quem designa ou nomeia o faz com base em uma avaliação
sobre a pessoa, uma avaliação de diversos aspectos, inclusive os relativos a ati-
vidades anteriores. Mas essa avaliação não estabelece uma relação bilateral: o
indicado ou nomeado não tem nada a “devolver” e, se necessário, é bom que ele
ou ela o diga imediatamente. Nos Estados Unidos, falou-se de “ingratidão força-
da”: o juiz recém-nomeado demonstrava sua independência ao dar uma opinião
diferente daquela esperada pelo presidente que o havia nomeado.”.5
Dito de outra maneira, a legitimidade da origem que espelha uma indica-
ção chancelada pela maioria parlamentar não se confunde com a legitimidade
que só o exercício no cargo com independência poderá conferir, essa, sim, a
que verdadeiramente importa.
É claro que determinados candidatos podem, de antemão, gozar de um
prestígio suficiente a ponto de reunirem em torno de si um apoio generalizado
entre os senadores. No entanto, quando o bloqueio de um nome se dá por ra-
zões políticas, é nesse mesmo terreno que a questão deve ser resolvida.
Por isso, considerações estritamente jurídicas têm pouco a oferecer na
problemática senatorial. Por outro lado, o “jurídico” poderia, sim, jogar luzes
sobre os impactos que a vacância do cargo de ministro do STF gera no funcio-
namento da corte.
Em primeiro lugar, tem-se a paralisação dos processos que compunham
o acervo do ministro Marco Aurélio, cuja aposentadoria gerou a vaga. Pedi-
dos urgentes podem ser conhecidos pelo presidente ou distribuídos a outros
ministros, mas, ainda assim, há um desfalque e um prejuízo às ações paradas.
Em segundo lugar, tem-se o prejuízo na distribuição de novos processos,
que ainda não podem contar com o futuro ministro, de modo que as ações
recém-ajuizadas são divididas só entre os ministros que já estão na corte, o que
acarreta uma sobrecarga no trabalho dos atuais ministros.

5. No original: “Naturalmente, en el momento de la elección quien designa o nombra lo hace


basándose en una apreciación en la que se valoran distintos aspectos, también los relativos a
las actividades desarrolladas anteriormente. Pero esta apreciación no establece una relación
bilateral: el designado o nombrado no tiene nada que “devolver” y, si es necesario, es bueno
que lo diga inmediatamente. En los Estados Unidos se hablaba de “obligada ingratitud”: el juez
recién nombrado demostraba su independencia dando una opinión distinta a la esperada por
el presidente que le había nombrado” (ZAGREBELSKY, Gustavo. Principios y votos. El Tribunal
Constitucional y la política. Madrid: Trotta, 2008, p. 51).

220
Existe hora marcada para se tornar ministro do STF?

Em terceiro lugar, registra-se o que talvez seja o problema mais grave de


todos: a vacância do cargo de ministro do STF acentua o problema dos empa-
tes nos julgamentos. O Regimento Interno do STF (RISTF) disciplina a ques-
tão só em algumas poucas situações. Antes de examiná-las, convém registrar
a que seria a melhor solução: a que constava do art. 40 revogado pela Emenda
Regimental nº 35/2009.
A redação original do art. 40 do RISTF previa: “Para completar quórum no
Plenário, em razão de impedimento ou licença superior a três meses, o Presidente
do Tribunal convocará Ministro licenciado, ou, se impossível, Ministro do Tribu-
nal Federal de Recursos, que não participará, todavia, da discussão e votação das
matérias indicadas nos arts. 7º, I e II, e 151, II.”.
Após a Constituição de 1988, com a extinção do Tribunal Federal de Re-
cursos, tal convocação regimental chegou a recair sobre ministros do Superior
Tribunal de Justiça (STJ). Não parecia existir um problema com essa prática,
expurgada com Emenda Regimental nº 35/2009.
Um dos casos mais célebres dessa convocação de membros do STJ para
completar o STF foi o MS nº 21.689, impetrado pelo então já ex-presidente
Fernando Collor contra a pena de inabilitação para o exercício de função pú-
blica por 8 anos que lhe fora aplicada nos termos do art. 52, parágrafo único,
da CF.
O julgamento contou com a participação dos ministros José Dantas, Tor-
reão Braz e William Patterson, do STJ, em substituição aos ministros Sydney
Sanches, que se declarou impedido, e Francisco Rezek e Marco Aurélio, que se
declararam suspeitos.
Sem dúvidas, a convocação nos moldes do antigo art. 40 do RISTF seria a
alternativa que acabaria com os casuísmos na solução dos empates e oportu-
nizaria julgamento “real”, isto é, deliberação efetiva, e não mero critério para
definição do resultado nos casos de empate.
Para perceber a falta que esse dispositivo faz, basta fazer o contraste com
as regras remanescentes do RISTF (arts. 13, inciso IX; 146; 150; e 250), cujas
contradições, incoerências e inobservâncias na própria jurisprudência do STF
ficarão para uma próxima coluna.
Como paralelo, vale registrar que o STJ conta com a previsão regimental
que permite a convocação de desembargadores para compor provisoriamente
a corte. Conforme o art. 56 do Regimento Interno do STJ (RISTJ): “Em caso
de vaga ou de afastamento de Ministro, por prazo superior a trinta dias, poderá

221
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

ser convocado Juiz de Tribunal Regional Federal ou Desembargador, sempre pelo


voto da maioria absoluta dos membros da Corte Especial.”.
Em atendimento a essa previsão, atualmente estão convocados o desem-
bargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) Olindo Hercula-
no de Menezes, em função da aposentadoria do ministro Nefi Cordeiro, e o
desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TFR5) Manoel de
Oliveira Erhardt, para ocupar provisoriamente a vaga do ministro aposentado
Napoleão Nunes Maia Filho.
Essa lógica faz todo o sentido, especialmente em se considerando que o
próprio STJ decidiu não haver pressa na indicação dos nomes para os cargos
vagos. No último dia 09 de agosto, a corte entendeu por aguardar o retorno
presencial das sessões para votar a indicação dos candidatos que constarão das
listas a serem enviadas ao presidente da República (confira aqui).6
Recorde-se que, pelo art. 104 da CF, o STJ conta com 33 ministros, com a
seguinte composição: 1/3 dentre juízes dos TRFs e 1/3 dentre desembargado-
res dos Tribunais de Justiça, indicados em lista tríplice elaborada pelo próprio
Tribunal; e 1/3, em partes iguais, dentre advogados e membros do Ministério
Público Federal, Estadual, do Distrito Federal e Territórios, alternadamente,
indicados na forma do art. 94 da CF.
Assim, é elaborada uma lista sêxtupla pelos órgãos de representação das
respectivas classes, a partir da qual o tribunal formará lista tríplice, envian-
do-a ao presidente da República, que escolherá um de seus integrantes para
nomeação.
Na prática, a dinâmica em curso no STJ permite que a corte controle não
só o tempo (determinante para a definição de quem serão os indicados na lis-
ta), mas também a escolha de quem compõe a corte provisoriamente.
Então, voltando ao tema central de hoje, todo o imbróglio envolvendo
a indicação do presidente da República feita na Mensagem n° 36/2021 serve
para que se perceba que nem os juristas, nem parlamentares via judicialização,
nem os ministros conseguirão resolver o impasse por questões políticas.
Por isso, nesse contexto, o melhor cenário seria o retorno de regra se-
melhante à que constava da redação original do art. 40 do RISTF, pois, com a

6. https://www.jota.info/justica/stj-aguardara-retorno-presencial-para-indicar-novos-minis-
tros-09082021

222
Existe hora marcada para se tornar ministro do STF?

decisão no MS nº 38.216, a perspectiva é a de que a indefinição possa se arras-


tar ainda mais. Com a regra indicada, ao menos seriam atenuados os proble-
mas gerados no funcionamento da corte pela demora e prestigiados julgamen-
tos com verdadeira maioria de votos no lugar de meros critérios de desempate.
Assim, fica a lição: não existe hora marcada para o candidato indicado
se tornar ministro do STF, nem ocupar qualquer outro cargo cuja sabatina e
nomeação dependa do aval do Senado Federal.

223
As lições da sabatina de
André Mendonça
Quais são os limites da obstrução parlamentar?

Na último dia 1º de dezembro, a indicação de André Mendonça ao Supre-


mo Tribunal Federal (STF) foi aprovada pelo plenário do Senado, com 47 vo-
tos a favor e 32 contrários. Na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
(CCJ), onde foi realizada a sabatina de André Mendonça, o indicado obteve 18
votos a favor e 9 contrários, como noticiado aqui.1
Foram 105 dias de espera (a Mensagem nº 36/2021 tinha chegado à CCJ
no dia 18 de agosto). E o desfecho do episódio traz importantes lições, além
das já comentadas em coluna passada.2
Ao negar seguimento ao MS nº 38.216, de forma correta, o ministro Ri-
cardo Lewandowski se absteve de exercer qualquer tipo de controle, deixando
para a própria Casa Legislativa a solução do impasse (quanto à marcação da
data da sabatina) paras as vias políticas.
A referida decisão evitou emitir juízo de valor quanto ao comportamento
in concreto do presidente da CCJ, se legítimo ou ilegítimo. No entanto, embo-
ra isso não tenha sido afirmado com todas as letras no MS nº 38.216, não há

1. https://www.jota.info/legislativo/andre-mendonca-aprovado-ccj-stf-01122021
2. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/existe-hora-marcada-pa-
ra-se-tornar-ministro-do-stf-13102021

225
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

inconstitucionalidade no comportamento parlamentar obstrutivo à aprovação


do nome indicado pelo presidente da República.
Ou seja, o silêncio eloquente também é uma resposta possível do Senado
Federal. Não é inconstitucional deixar de votar a indicação. Isso nunca ocor-
reu antes na experiência brasileira em relação a um indicado para o cargo de
ministro do STF, mas não haveria problema em que acontecesse desta vez ou
em qualquer momento futuro.
Observe-se, inclusive, que é relativamente comum que o Senado deixe de
avançar com diversas indicações de nomes para cargos em que a lei determi-
na a arguição pública (artigo 52, inciso III, alínea f, da Constituição Federal,
sobretudo diretores de agências reguladoras). E mais: por vezes a sabatina é
realizada, mas o nome fica meses aguardando a inclusão na Ordem do Dia
para votação em plenário.
Inclusive, no ano de 2020, em razão da pandemia da Covid-19, essa com-
petência senatorial passou seis meses em “hibernação”, como apontado aqui.3
Ou seja, eventuais demoras são da praxe da atuação parlamentar na escolha de
autoridades.
Agora, a legitimidade dessa suposta atuação obstrutiva adviria de ser uma
decisão coletiva, não isolada. Essa é a ratio dos mecanismos de obstrução: uma
ação coordenada, ainda que por um grupo minoritário, mas que contenha al-
gum nível de apoio entre outros senadores e/ou partidos políticos. O espaço
para a atuação individual não vai muito além do uso da palavra e alguns re-
querimentos previstos no Regimento Interno do Senado Federal, mesmo para
os presidentes dos colegiados.
Ainda sob esse aspecto, é importante enfatizar que a decisão do STF não
implicou o reconhecimento judicial da possibilidade jurídica de obstrução de
um só parlamentar à revelia de seus pares no caso. Como dito, a decisão não
entrou nesse mérito. Assim, o juízo quanto ao assunto (isto é, quais são os
limites da obstrução parlamentar individual) deve partir da própria Casa Le-
gislativa.
A correta compreensão do referido pronunciamento judicial não pode-
ria conduzir à conclusão de que o presidente da CCJ teria poderes de veto

3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/sabatina-senado-noto-
rio-conhecimento-especialidade-30092020

226
As lições da sabatina de André Mendonça

ou obstrução absolutos, tampouco à consideração de que a discussão estaria


encerrada dentro do Senado, como se inexistissem mecanismos regimentais
alternativos com vistas a superar uma eventual obstrução que passasse a ser
considerada ilegítima entre a maioria parlamentar (ou seja, na hipótese de se
formar um juízo no sentido de que essa não seria a vontade política da Casa
Legislativa).
Dito com outras palavras, a decisão do STF não foi um cheque em branco
para o presidente da CCJ atuar como bem entendesse, pessoalmente, de forma
isolada, com independência da vontade parlamentar coletiva. Os presidentes
das comissões e das Casas Legislativas apenas espelham seus pares, não lhes
sendo dado atuar de forma isolada ou autocrática.
Ao que tudo indica, ao menos por algum tempo, a atuação do presidente
da CCJ (em negar pautar o tema) reverberou a vontade política da maioria
da Senado Federal. No entanto, as circunstâncias da política podem mudar
rapidamente, e a obstrução há pouco tolerada (e mesmo considerada legítima)
pode passar a ser entendida como um abuso das prerrogativas institucionais,
se a maioria parlamentar resolver trocar de posição por quaisquer razões. É o
que parece ter acontecido no caso da sabatina do ex-ministro André Mendon-
ça.
No caso concreto, a questão foi resolvida politicamente: o presidente da
CCJ acabou marcando a sabatina.
Mas, caso o presidente da CCJ tivesse insistido na recusa em fazê-lo, en-
tender que não existiriam mecanismos regimentais para contornar uma cir-
cunstância dessa natureza equivaleria a atribuir a um único parlamentar pode-
res de veto e de obstrução absolutos, maiores do que os do próprio presidente
da Casa Legislativa e demais lideranças parlamentares, o que, além de absurdo
do ponto de vista jurídico e político, fugiria ao espírito do Regimento Interno
do Senado e do direito parlamentar brasileiro.
Embora os mecanismos regimentais alternativos não tenham sido utili-
zados no caso do ex-ministro André Mendonça, caberia listar, em abstrato, o
que poderia ter sido feito à luz do Regimento Interno para superar a hipótese
em que o silêncio eloquente do presidente da CCJ contrariasse a posição insti-
tucional da Casa Legislativa.
Em primeiro lugar, seria possível a substituição do presidente da comissão
(artigos 80 e 81 do Regimento Interno do Senado), na medida em que não
há mandato e o assento pertence ao partido ou bloco parlamentar, cujo líder

227
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

indica os nomes ao presidente da Casa Legislativa. Então, esse instrumento de


controle da atuação do presidente da CCJ caberia ao partido ou bloco parla-
mentar respectivo.
Em segundo lugar, os legitimados poderiam apresentar uma representa-
ção por suposta quebra de decoro parlamentar em face do presidente da CCJ,
em razão de sua conduta ser entendida em abstrato como possível abuso de
prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional (artigo 55, § 1º,
da CF).
Nesse caso, registre-se que a Resolução nº 20/1993, do Senado Federal,
que institui o Código de Ética e Decoro Parlamentar, faculta o afastamento
cautelar do representado do cargo que eventualmente exerça, desde que exista
indício da alegação de prática de ato incompatível com o decoro parlamentar
ou fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação à imagem do
Senado Federal (artigo 15-A, § 2º).
Em terceiro lugar, o presidente do Senado poderia proceder à convocação
do presidente da CCJ para dar explicações, com fundamento no artigo 48, in-
ciso XXII, do RISF.
Em quarto lugar, na eventualidade de ser marcada reunião da comissão,
seria possível a utilização da faculdade do artigo 108 do Regimento Interno,
para iniciar a reunião com a presença de, no mínimo, um quinto dos mem-
bros, ainda que sem o presidente da CCJ.
Em quinto lugar, e talvez o mecanismo mais drástico de todos, seria pos-
sível o requerimento para a adoção do regime de urgência, conforme os arts.
336 e seguintes do RISF, permitindo que a matéria fosse afetada para apre-
ciação direta pelo Plenário. Embora juridicamente possível, como se passa a
explicar a seguir, definitivamente não seria o desejável em termos de desenho
institucional.
É bem verdade que a Constituição, artigo 52, inciso III, não definiu quem,
dentro do Senado Federal, deteria a atribuição para proceder às sabatinas das
autoridades indicadas. Por seu turno, a Constituição, artigo 58, § 2º, tampouco
colocou as arguições públicas de autoridades como uma competência “priva-
tiva” das comissões.
No entanto, como se depreende do próprio artigo 58, caput, da CF, que
expressamente delegou ao regimento interno a definição das competências das
comissões, as atribuições dos referidos colegiados fracionários são uma maté-
ria tipicamente regimental.

228
As lições da sabatina de André Mendonça

Do texto constitucional não é possível extrair qualquer comando mais es-


pecífico voltado para o Senado, seja quanto ao procedimento detalhado para
a escolha de autoridades, seja quanto à competência para a realização das sa-
batinas. Nesse assunto, portanto, vigoram unicamente as disposições do Re-
gimento Interno, que não apresentam qualquer mácula à luz da Constituição.
De acordo com o Regimento, artigo 383, que fixa o procedimento para a
escolha de autoridades, as arguições públicas são realizadas pelas comissões. No
caso da arguição para o cargo de ministro do STF, de acordo com o artigo 101,
inciso II, alínea i, a comissão competente é a CCJ, que teria o prazo de 20 dias
úteis para analisar a matéria, segundo o artigo 118, inciso II do Regimento.
Muito embora o texto constitucional ou o Regimento Interno do Senado
não tenham estabelecido (desde um ponto de vista jurídico) que as sabatinas
são uma atribuição “exclusiva” das comissões, pode-se afirmar (desde um pon-
to de vista político e à luz das práticas legislativas continuadas) que assim tem
sido, o que daria preferência a esses colegiados para a realização da sabatina.
Trata-se de um costume parlamentar com status constitucional. Não há
notícias de arguições públicas de autoridades realizadas diretamente pelo ple-
nário do Senado no passado.
Como parâmetro de comparação, na Câmara dos Deputados existe previ-
são regimental de que o plenário pode ser sede de audiências públicas e comis-
sões gerais para debater matéria relevante, por proposta conjunta dos líderes
ou a requerimento de um terço dos deputados, discutir projeto de lei de ini-
ciativa popular ou receber ministro de Estado (Regimento Interno da Câmara
dos Deputados, artigo 91).
No entanto, no Senado isso não se verifica. A eventual aprovação de uma
providência nesse sentido geraria algumas perplexidades e dificuldades de or-
dem prática, que convém suscitar.
Em primeiro lugar, pela dinâmica do Regimento Interno, as inquirições
são feitas pelos membros da respectiva comissão. A rigor, cada senador in-
terpelante disporá de 10 minutos, assegurado igual prazo para resposta, ime-
diata, do interpelado, facultadas réplica e tréplica, ambas também imediatas,
por cinco minutos (artigo 383, inciso II, alínea f). Há um número menor de
participantes.
É verdade que, em aplicação do artigo 112 do Regimento, qualquer se-
nador pode participar dos trabalhos e debates de qualquer comissão de que
não seja membro, sem direito a voto, e não haveria impedimentos a que os

229
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

senadores que não são da CCJ façam perguntas (inclusive, é o que acontece
em alguma medida). Apenas há regras de preferência para os membros da
própria comissão. Seja como for, é indiscutível que a realização das arguições
nas comissões oportuniza um debate mais especializado e de maior qualidade.
Na eventualidade de a sabatina ser realizada no plenário, pergunta-se: to-
dos os senadores poderiam fazer perguntas? Em caso positivo, essa possibili-
dade não implicaria submeter o candidato a um constrangimento adicional
em relação aos que lhe antecederam nessa etapa de arguição senatorial? Quais
seriam os procedimentos de organização? Considerando a arquitetura do ple-
nário, onde o candidato inquirido ia ficar: sentado na mesa que preside os
trabalhos ou no parlatório? Tudo isso provocaria interferências na dinâmica
prática da sabatina.
Em segundo lugar, as arguições nas comissões funcionam como um dou-
ble check, somando-se à votação em plenário. Trata-se de um procedimento de
escolha em duas etapas. Assim, na eventualidade de a matéria ser levada dire-
tamente ao Plenário, estaria sendo feita uma modificação no desenho institu-
cional do procedimento. É duvidoso que um eventual by-pass das comissões,
afetando tal competência diretamente para o Plenário, seja uma providência
neutra em termos de procedimento deliberativo.
No rito normal, o relator indicado na CCJ apresenta um “relatório” à co-
missão (artigo 383, inciso II, alínea a, do Regimento) e, após a arguição do
indicado, o referido relatório é votado pelo colegiado (alínea g). Na sequência,
a matéria segue para o Plenário, onde a votação se dá já sobre o nome do in-
dicado. Por seu turno, na eventual hipótese de a arguição ser realizada direta-
mente no plenário, pergunta-se: seria designado relator para ler o “parecer”
em plenário, antes ou depois da arguição pública?
Em terceiro lugar, por mais que o Regimento, artigo 406, retire a força
obrigatória das questões de ordem (só a adquirem se incorporadas ao próprio
Regimento), caso, pela primeira vez na história, a sabatina de autoridades seja
realizada diretamente pelo plenário, esse simples fato gerará, sim, um “prece-
dente” com vistas a casos futuros, e não só quanto aos indicados para o cargo
de ministro do STF. O episódio tenderia a ser suscitado dentro de um lapso
temporal cada vez mais reduzido, com risco de enfraquecimento e esvazia-
mento da atuação das comissões.
Em resumo, embora não haja exclusividade na Constituição Federal ou
no Regimento Interno do Senado, do ponto de vista prático, existe, sim, uma
preferência no sentido de que as sabatinas sejam realizadas no âmbito das

230
As lições da sabatina de André Mendonça

comissões. No entanto, sem prejuízo das considerações acima, não haveria


óbice constitucional ou regimental a uma decisão institucional em sentido di-
verso, já que o plenário é a instância decisória máxima das Casas Legislativas.
Como sabido, o próprio Regimento Interno, artigo 412, inciso III, prevê
que o Plenário pode superar até mesmo as disposições regimentais. Então, a
fortiori, também poderia tomar uma decisão quanto a esse caso.
Menos mal que não tenha sido necessário suscitar qualquer desses me-
canismos regimentais para superar a recalcitrância na marcação da sabatina.
Saber o que poderia ter acontecido representa um grande alívio. E a mais im-
portante das lições do episódio que fica é essa: a inexistência, à luz do direi-
to parlamentar brasileiro, de poderes de obstrução individuais absolutos, sob
pena de se reconhecer a um único parlamentar poderes maiores do que os do
próprio presidente da Casa Legislativa e demais lideranças parlamentares, o
que fugiria ao espírito do Regimento Interno do Senado e da Constituição.

231
O controle parlamentar
via requerimentos de
informação na Câmara
RICs foram o terceiro tipo de proposição
legislativa mais protocolada em 2021

Nos termos do art. 50, § 2º, da Constituição, as Mesas da Câmara dos


Deputados e do Senado Federal poderão encaminhar pedidos escritos de in-
formações a ministros de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente
subordinados à Presidência da República, importando em crime de respon-
sabilidade a recusa, ou o não atendimento, no prazo de 30 dias, bem como a
prestação de informações falsas.
Ressalte-se a severidade da sanção cominada, que também conta com a
respectiva previsão na Lei 1.079/1950, art. 13, item 4 (“São crimes de respon-
sabilidade dos Ministros de Estado: Não prestarem dentro em trinta dias e sem
motivo justo, a qualquer das Câmaras do Congresso Nacional, as informações
que ela lhes solicitar por escrito, ou prestarem-nas com falsidade”).
O referido dispositivo constitucional teve sua redação atual dada pela
Emenda Constitucional de Revisão nº 2/1994, que adicionou as demais autori-
dades, além dos ministros de Estado, como possíveis destinatárias dos reque-
rimentos de informação (RICs).
Apesar de relativamente desconhecidos, os RICs foram o terceiro tipo de
proposição legislativa mais protocolada em 2021 na Câmara dos Deputados,

233
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

perdendo apenas para as emendas de comissão e para os projetos de lei, con-


forme o levantamento feito pelo aluno da graduação em direito da Universida-
de de Brasília (UnB) Gustavo Fernando Fröhlich.
Quando a análise é ampliada para o lapso temporal da última déca-
da (2011 a 2021) e tendo como filtro só os demais instrumentos de controle
parlamentar da administração, os RICs ocupam o primeiro lugar, no topo do
ranking dos instrumentos legislativos de controle mais usados por deputados
federais, representando 67,59% de todas as proposições no período. Foram
11.788 o número de RICs encaminhados entre 2011 e 2021.
Na segunda posição estão os projetos de decreto legislativo (PDC) previs-
tos no art. 49, inciso V, da Constituição, que estabelece a competência exclu-
siva do Congresso Nacional para sustar os atos normativos do Executivo que
exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. No
referido intervalo (2011-2021), foram 4.467 PDCs, representando 25,61% do
volume.
Os dados foram extraídos do Sileg, o sistema da Câmara dos Deputados
que reúne informações sobre as proposições legislativas – projeto de lei, emen-
da, projeto de lei complementar, proposta de emenda à Constituição (PEC),
requerimento etc. – e permite o acompanhamento da tramitação nesta Casa
Legislativa, desde a apresentação até o arquivamento ou aprovação, sendo
possível consultar o inteiro teor das proposições e outras informações sobre a
atuação dos deputados, a agenda das comissões e as atas.
O levantamento foi organizado no seguinte quadro:

Quantidade
Instrumento (2011-2021)
Objetivo Fundamento legal
legislativo
(n) (%)

Obrigar ministro de Es- (a) Constituição


Requerimento tado, sob pena de perda Federal (art. 50, §
de Informação do cargo, a prestar infor- 2º); (b) Regimento 11.788 67,59%
(RIC) mações sobre assunto Interno (art. 115 ao
de sua pasta 116)

234
O controle parlamentar via requerimentos de informação na Câmara

Quantidade
Instrumento (2011-2021)
Objetivo Fundamento legal
legislativo
(n) (%)

Sustação dos atos nor-


mativos do Poder Exe- (a) Constituição Fe-
Projeto de De- cutivo que exorbitem do deral (art. 49, V); (b)
creto Legislativo poder regulamentar ou Regimento Interno 4.467 25,61%
(PDC) dos limites de delegação (arts. 24, XII, 108 e
legislativa (vide art. 49, V, 109, II e § 2º)
da CF)

Obrigar ministro de Es-


tado, sob pena de perda
(a) Constituição
do cargo, a comparecer
Requerimento Federal (art. 50,
perante comissão ou pe-
de Convocação caput); (b) Regimen- 579 3,32%
rante o plenário da Casa
(REQ) to Interno (arts. 24
para prestar informa-
e 117)
ções sobre assunto de
sua pasta

Proposta de Instauração de Tomada (a) Constituição Fe-


Fiscalização e de Contas Especial no deral (art. 70); (b)
522 2,99%
Controle Tribunal de Contas da Regimento Interno
(PFC) União (art. 61)

Investigar fato com po-


deres próprios das au-
toridades judiciais, além
de outros previstos nos
(a) Constituição Fe-
Requerimento regimentos das Casas,
deral (art. 58); (b)
para criação para – ao final – apre- 85 0,49%
Regimento Interno
de CPI (RCP) sentar relatório circuns-
(art. 35)
tanciado de infrações
civis e/ou penais para
responsabilização de
agentes

Quantidade (2011-2021) 17.441 100%

Fonte: Elaboração por Gustavo Fernando Fröhlich,


a partir das informações extraídas do Sileg

Esses números mostram que é preciso conhecer melhor tal instrumento.


Na Câmara dos Deputados, a tramitação dos RICs está no art. 116 do
Regimento Interno (RICD). O comando expressamente limita o uso do
RICs, determinando que somente poderão se referir a ato ou fato, na área de

235
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

competência do ministério, incluídos os órgãos ou entidades da administração


pública indireta sob sua supervisão: a) relacionado com matéria legislativa em
trâmite, ou qualquer assunto submetido à apreciação do Congresso Nacional,
de suas Casas ou comissões; b) sujeito à fiscalização e ao controle do Con-
gresso Nacional, de suas Casas ou comissões; c) pertinente às atribuições do
Congresso Nacional.
O requerimento de informação não pode conter pedido de providências a
tomar, consulta, sugestão, conselho ou interrogação sobre propósitos da auto-
ridade a que se dirige (art. 116, inciso III, do RICD).
Por matéria legislativa em trâmite se entende a que seja objeto de proposta
de emenda à Constituição, de projeto de lei, de decreto legislativo ou de medi-
da provisória em fase de apreciação pelo Congresso Nacional, por suas Casas
ou comissões (§ 1º).
Constituem atos ou fatos sujeitos à fiscalização e ao controle do Congres-
so Nacional, de suas Casas e comissões (art. 116, § 2º, c/c art. 60):
“I - os passíveis de fiscalização contábil, financeira, orçamentária,
operacional e patrimonial referida no art. 70 da Constituição;
II - os atos de gestão administrativa do Poder Executivo, incluídos
os da administração indireta, seja qual for a autoridade que os
tenha praticado;
III - os atos do presidente e vice-presidente da República, dos mi-
nistros de Estado, dos ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF), do procurador-geral da República e do advogado-geral da
União que importarem, tipicamente, crime de responsabilidade;
IV - as petições, reclamações, representações ou queixas apresen-
tadas por pessoas físicas ou jurídicas contra atos ou omissões das
autoridades ou entidades públicas.”

Embora o RICD expressamente contemple a possibilidade de RICs dirigi-


dos ao esclarecimento de atos dos ministros do STF, é duvidoso que tal previ-
são regimental conte com respaldo constitucional, especialmente por conta do
princípio da separação dos Poderes (art. 2º da Constituição). Perceba-se que o
próprio art. 50, § 2º, da CF, não contempla o Judiciário como destinatário dos
RICs.
Inclusive, ao julgar a ADI nº 2.911 sobre dispositivo da Constituição do
Espírito Santo, o STF julgou inconstitucional a previsão que estabelecia a con-
vocação do presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) para
prestar, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado,

236
O controle parlamentar via requerimentos de informação na Câmara

importando crime de responsabilidade a ausência injustificada desse chefe de


Poder. No caso, o STF entendeu que a Constituição capixaba extrapolara o
paradigma da Constituição Federal quanto às fronteiras do esquema de freios
e contrapesos. O mesmo raciocínio valeria, então, para a norma regimental
em comento.
Por outro lado, mesmo não figurando expressamente no RICD, a Questão
de Ordem nº 180/2012 admitiu a possibilidade de RICs dirigido a governador
de estado na hipótese de envolver a fiscalização de recursos federais. Fora des-
sa situação não seria admitido, pois entendeu-se que não é dado ao Poder Le-
gislativo da União se imiscuir em assuntos político-administrativos de outras
unidades da federação.
Os RICs podem ser apresentados pelos parlamentares e devem ser es-
critos e dirigidos ao presidente da Mesa, que, a rigor, teria o prazo de cinco
sessões para ouvir a Mesa e despachá-los, determinando a publicação da res-
pectiva decisão no Diário da Câmara dos Deputados. No entanto, esse é um
prazo impróprio, nem sempre a Mesa é ouvida de fato, e a prática revela que os
requerimentos de autoria de alguns parlamentares têm tramitação mais célere
do que a de outros (que podem ficar aguardando por anos até).
A proposição será considerada prejudicada quando, apresentado o RIC,
a informação chegar à Casa espontaneamente ou se já tiver sido prestada em
resposta a RIC anterior, devendo-se publicar no Diário da Câmara dos Depu-
tados ou enviar cópia ao deputado interessado.
A Mesa tem a faculdade de recusar requerimento de informação formu-
lado de modo inconveniente, ou que contrarie o disposto no próprio RICD.
Dessa decisão, cabe recurso ao plenário, a ser apresentado no prazo de cinco
sessões (a contar da publicação do despacho indeferitório no Diário da Câ-
mara dos Deputados). O recurso será decidido pelo processo simbólico, sem
discussão, sendo permitido o encaminhamento de votação pelo autor do re-
querimento e pelos Líderes, por cinco minutos cada um (art. 115, parágrafo
único, do RICD).
Dessas regras procedimentais, chama-se a atenção para o fato de que nem
a Constituição, nem o regimento concederam aos deputados federais livre
acesso às informações, de modo isolado. A própria literalidade do art. 50, § 2º,
da CF, preceitua que “as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal
poderão encaminhar (…)”. Não há prerrogativa ou direito subjetivo por parte
do parlamentar em ver encaminhado um RIC de sua autoria.

237
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

A função legislativa de fiscalização e controle da administração pública,


exercida a partir dos requerimentos de informação, é competência conferida
ao Legislativo, ou seja, com caráter colegiado (total ou fracionário), de modo
que não pode ser exercida diretamente pelo parlamentar, sem passar pela in-
termediação e anuência dos órgãos de direção da Casa Legislativa.
Quanto a esse ponto, o STF também já declarou a inconstitucionalidade
de lei do estado de São Paulo que pretendia burlar tal apreciação pela Mesa
da Assembleia Legislativa, conferindo aos deputados estaduais poderes para a
realização sponte propria de diligências de fiscalização e controle, incluindo o
livre acesso às dependências de qualquer órgão da administração, o poder para
examinar de imediato de todo e qualquer processo, arquivo etc. e o poder para
requerer informações a respeito desses documentos.
Nas palavras do ministro relator Sepúlveda Pertence por ocasião da ADI
nº 3.046 (julgada em 2004):
“(…) 4. O poder de fiscalização legislativa da ação administrativa
do Poder Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de cada câ-
mara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembleia
Legislativa, no dos Estados; nunca, aos seus membros individual-
mente, salvo, é claro, quando atuem em representação (ou presen-
tação) de sua Casa ou comissão”.
Nada obstante a clareza dos pontos acima explicados, a questão voltou
a ser discutida por ocasião do RMS nº 28.251-AgR, julgado em outubro de
2011. Desta vez, o deputado federal Octávio Leite havia ingressado com o writ
perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), com vistas a obter informações
sobre o projeto de implementação de teleférico no Complexo do Alemão, no
âmbito do então existente Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), de
responsabilidade do Ministério das Cidades.
No STJ, o mandado de segurança foi extinto, sem resolução de mérito,
por falta de legitimidade ativa ad causam do parlamentar, nos termos do art.
50, § 2º, da CF, que conferiu a prerrogativa às Mesas das Casas Legislativas,
não sendo permitido ao parlamentar, pessoalmente, requerer as mencionadas
informações. Inconformado, o parlamentar interpôs recurso ordinário ao STF,
tendo ministro relator Ricardo Lewandowski negado provimento ao recurso.
Foi interposto o agravo regimental, e do RMS nº 28.251-AgR julgado lê-se
o seguinte fragmento de sua ementa:
“I – O direito de requerer informações aos Ministros de Estado
foi conferido pela Constituição tão somente às Mesas da Câmara

238
O controle parlamentar via requerimentos de informação na Câmara

dos Deputados e do Senado Federal e não a parlamentares indivi-


dualmente. Precedentes. II – O entendimento pacífico desta Corte
é no sentido de que o parlamentar individualmente não possui
legitimidade para impetrar mandado de segurança para defender
prerrogativa concernente à Casa Legislativa a qual pertence”.
Um mês após esse julgamento veio a Lei 12.527/2011, a Lei de Acesso à
Informação (LAI), que regula o acesso a informações previsto no art. 5º, inciso
XXXIII, da CF, pelo qual todos têm direito a receber dos órgãos públicos infor-
mações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão
prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas
cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Note-se
que, diferentemente dos RICs do art. 50, § 2º, da CF, não há que se falar em
“crimes de responsabilidade” automático para os requerimentos da LAI.
O advento da LAI representou uma importante novidade para a atuação
parlamentar. A partir do momento em que os requerimentos de acesso à infor-
mação podem ser apresentados por parte dos cidadãos diretamente, no exercí-
cio do direito fundamental à informação, a mesma possibilidade não poderia
ser negada aos parlamentares, os quais não deixam de ser cidadãos só porque
estão investidos no mandato. Naturalmente, tais requerimentos com funda-
mento na LAI não precisam passar pela intermediação das Mesas e conferem
a possibilidade de uma atuação direta do parlamentar.
A constitucionalidade do uso dessa ferramenta por parlamentares foi
confirmada pelo STF por ocasião do julgamento do RE nº 865.401, tendo-se
aprovado a seguinte tese de repercussão geral (tema nº 832): “O parlamentar,
na condição de cidadão, pode exercer plenamente seu direito fundamental de
acesso a informações de interesse pessoal ou coletivo, nos termos do art. 5º,
inciso XXXIII, da CF e das normas de regência desse direito”.
O caso concreto envolvia o pedido do então vereador do município de
Guiricema (MG), Marcos Antônio Ribeiro Ferraz, que, após ter feito solicita-
ções à Mesa da Câmara Municipal, sem sucesso, resolveu encaminhar direta-
mente ao prefeito da cidade os requerimentos de acesso à informação, na qua-
lidade de vereador e cidadão. Com a negativa de atendimento, o parlamentar
ajuizou a ação, cujo desfecho acabou sendo concedido só pelo STF.
Corretamente, a corte fez o “distinguishing” com relação ao entendimento
da ADI nº 3.046 e do RMS nº 28.251-AgR. Da ementa do julgado de relatoria
do ministro Dias Toffoli, lê-se:
“3. O parlamentar não se despe de sua condição de cidadão no
exercício do direito de acesso a informações de interesse pessoal ou

239
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

coletivo. Não há como se autorizar que seja o parlamentar trans-


formado em cidadão de segunda categoria”.

O acesso à informação assegurado pela LAI, no entanto, fica sujeito à res-


pectiva disciplina, ou seja, dá-se sem prejuízo das situações em que a legislação
determina limitações de acesso (dados pessoais, intimidade ou vida privada)
ou sigilo da informação. Além disso, como já enfatizado, recusa, o atraso (não
atendimento no prazo de 30 dias), bem como a prestação de informações fal-
sas, não acarretarão ipso facto crime de responsabilidade, sem prejuízo das
sanções próprias da LAI.
De tudo o que foi exposto até agora, vê-se que é firme o entendimento
do STF no sentido de que a lei, seja federal, estadual ou municipal, não pode
conferir a parlamentar, individualmente, o poder de requisitar informações
ao Poder Executivo. Inclusive, em novo julgamento finalizado no dia 13 de
dezembro de 2021 (na modalidade virtual), o STF voltou a repetir essa con-
clusão na ADI nº 4.700, declarando inconstitucional expressão “a qualquer
Deputado” do art. 101, caput, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. O
ministro relator Gilmar Mendes teve o cuidado de enfatizar que fica ressalvada
a possibilidade de o parlamentar atuar na condição de cidadão, nos termos do
já citado art. 5º, inciso XXXIII, da CF.
Enfim, com a explicação das distinções entre os RICs e os requerimentos
com base na LAI, resta inconteste a importância de ambas as ferramentas de
controle parlamentar, cada qual com suas peculiaridades, chamando-se a aten-
ção para o potencial dos RICs como instrumento de pressão política, muito
embora ainda não devidamente explorado nas práticas legislativas, especial-
mente em razão de suas graves consequências.
Isso porque ainda é precário o controle efetivo das respostas aos RICs,
sem contar que vários deles acabam se perdendo pelo meio do caminho. Al-
guns RICs não são encaminhados nos prazos regimentais (e, com isso, perde-
-se o “timing”), outros são mal formulados, trazendo pedidos muito genéricos
ou incorrendo nas proibições regimentais, com a solicitação de providências,
formulação de consultas, sugestões, conselhos ou pedidos de explicações sobre
os propósitos da autoridade.
O tema voltará a esta coluna futuramente.

240
Quem tem ‘notório conhecimento
no campo de sua especialidade’?
Algumas particularidades nas sabatinas
de autoridades pelo Senado Federal1

“Faça da sua ausência o bastante para que alguém sinta sua falta, mas não
a prolongue demais para que esse alguém não aprenda a viver sem ti”. De auto-
ria desconhecida, a frase poderia funcionar de alerta para uma reflexão sobre
o papel da competência insculpida no art. 52, incisos III e IV, da CF.
Segundo tais dispositivos constitucionais, compete privativamente ao Se-
nado Federal aprovar previamente, por voto secreto, após arguição pública, a
escolha de magistrados, nos casos estabelecidos nesta Constituição; ministros
do Tribunal de Contas da União indicados pelo presidente da República; go-
vernador de Território; presidente e diretores do Banco Central; procurador-
-geral da República; titulares de outros cargos que a lei determinar; e os chefes
de missão diplomática de caráter permanente.
Quanto a esses últimos, vale registrar o desuso do caráter sigiloso das ar-
guições, tendo-se equiparando o rito do inciso IV ao estabelecido para o inciso

1. Artigo escrito em coautoria com NATASHA SALINAS (Professora do Programa de Pós-gra-


duação (Mestrado e Doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em
Direito da FGV Direito Rio, Doutora e Mestre em Direito pela USP, Master of Laws (LL.M.)
pela Yale Law School).

241
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

III do art. 52 da CF, garantindo-se maior transparência, moralidade e impes-


soalidade, ainda que por força de mutação constitucional.
A competência do Senado Federal para sabatinar autoridades é um meca-
nismo típico do sistema de freios e contrapesos, na medida em que garante a
participação (e o controle) parlamentar no processo de escolha daqueles que
ocuparão cargos de alto escalão, a partir da indicação do presidente da Repú-
blica.
A ideia subjacente a essa arguição senatorial é a verificação parlamentar
quanto a se o candidato cumpre os requisitos objetivos e subjetivos para o
cargo – notadamente o “notório conhecimento no campo de sua especialida-
de” –, a partir de uma interação dialógica e dinâmica. Diferentemente de uma
simples análise de documentos (sobretudo o currículo), trata-se de examinar
o perfil, a desenvoltura do candidato e suas habilidades diante da importância
do cargo que será desempenhado.
Embora as sabatinas mais lembradas sejam as dos candidatos a ministros
do STF (art. 101, parágrafo único, da CF), ao todo são mais de 400 os cargos
sujeitos à aprovação do Senado Federal,2 merecendo destaque especial os di-
rigentes das agências reguladoras, foco especial deste artigo.
Sob a cláusula geral “titulares de outros cargos que a lei determinar”, a
Constituição autorizou que a lei estenda o controle prévio do Senado Federal
sobre nomeações para cargos na esfera federal, em ampliação introduzida pela
primeira vez na CF/88.
É isso o que talvez justifique a escassa produção bibliográfica sobre essa
competência do art. 52, inciso III, alínea f, da CF, somado aos raros casos de ju-
dicialização em torno do seu exercício – e, ainda assim, fora da jurisdição cons-
titucional do STF (por exemplo, a ação popular nº 1023136-96.2018.4.01.3400,
perante a Seção Judiciária do Distrito Federal, em que se tentava barrar a saba-
tina de indicados para a Agência Nacional de Mineração).
Desde o início da pandemia, de todas as competências do Parlamento,
sem dúvidas, a aprovação de autoridades foi uma das mais prejudicadas pela
recomendação de distanciamento social, na medida em que o Sistema de Deli-
beração Remoto (SDR) do Senado Federal – instituído pelo Ato da Comissão

2. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/autoridades

242
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Diretora nº 7, de 20203 – não permitiria a votação “de forma secreta”,4 como


exige a CF. Assim, tornou-se necessário tomar providências para a segurança
dos senadores, servidores da Casa e candidatos.
Somente com a aprovação do Ato da Comissão Diretora nº 9, de 2020,5
publicado do último dia 15 de setembro, disciplinou-se o funcionamento se-
mipresencial do Senado Federal, em caráter experimental, entre os dias 21 e
24 de setembro, para sabatinar e votar autoridades. O caráter semipresencial
inédito conferiu autorização para que os senadores pudessem participar de
modo remoto para o debate e a leitura de relatório, exigindo presença na hora
da votação dos nomes indicados.
De acordo com tal ato, os presidentes da Comissão de Relações Exteriores
e Defesa Nacional (CRE) e da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
(CCJ) ficaram autorizados a disciplinar o funcionamento da sabatina das auto-
ridades que lhe são submetidas. Entre as regras, estão: a) o acesso ao plenário
da Comissão; b) a forma como o sabatinado se apresentará (se presencialmen-
te ou por via remota); c) a ordem e tempo das exposições; d) o momento em
que será iniciada cada votação.
Como se vê, no geral, foi mantido o rito disciplinado no Regimento In-
terno do Senado Federal – RISF,6 art. 383, embora tenha-se dado uma brecha
para adaptações, conforme o caso, a juízo do presidente da comissão.
O grande destaque do ato foi a instalação de totens de votação externos
ao plenário7 (incluindo postos drive-thru posicionados em diferentes locais
dentro das dependências do Senado Federal), com as mesmas funcionalidades
dos dispositivos de votação existentes antes da pandemia e posicionados nos
assentos do plenário e das comissões.

3. https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2020/03/17/ato-da-comissao-diretora-
-no-7-de-2020
4. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/27/senadores-terao-esquema-
-seguro-para-votacoes-secretas-durante-a-pandemia
5. https://adm.senado.leg.br/normas/ui/pub/normaConsultada;jsessionid=BE96CA51EE-
0B2E8EF64CDBA83B5B72DD.tomcat-1?0&idNorma=288567
6. https://www25.senado.leg.br/documents/12427/45868/RISF+2018+Volume+1.pdf/cd-
5769c8-46c5-4c8a-9af7-99be436b89c4
7. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/09/16/senado-toma-medidas-pa-
ra-garantir-seguranca-sanitaria-durante-as-sessoes-semipresenciais

243
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

A participação popular continua garantida pelos canais institucionais –


e-Cidadania8 ou pelo Alô Senado (0800-612211) –, pelos quais os cidadãos
podem enviar perguntas que podem ser lidas na hora da sabatina.
Na semana do esforço concentrado (21 a 24 de setembro), foram aprova-
das 34 indicações de embaixadores e 3 indicações ao Superior Tribunal Militar
(STM). Antes do final do dia 23 de setembro (quarta-feira), todos já estavam
devidamente aprovados pelo plenário do Senado Federal.9
Só no dia 21 de setembro (segunda-feira), o mutirão da CRE começou às
8h da manhã e durou mais de 12h, com somente 2 intervalos entre os turnos
(entre uma sabatina e outra, o tempo de preparação foi de apenas 2 minutos
para a higienização do recinto), tendo resultado na sabatina e aprovação de
todos os 32 nomes (dos quais apenas 6 compareceram presencialmente às de-
pendências do Senado Federal, sendo que os outros 26 participaram remota-
mente). Em média, cada sabatina durou pouco menos de meia hora.
Em várias das sabatinas ocorridas nesse dia, foram arguidos ao mesmo
tempo candidatos a postos diferentes (ainda que de embaixador), ou seja, hou-
ve sabatinas não só “em bloco”, mas “em grupo”, de forma simultânea. Cada
candidato teve 5 minutos para se apresentar e apenas 3 minutos para respon-
der às perguntas.
Em diversas arguições, não houve perguntas por parte de vários senadores
e, em muitos casos, o tempo de perguntas e intervenções diversas dos senado-
res (de abertura e de fechamento, por exemplo) demoraram mais que o tempo
das respostas dos candidatos (e isso, além das intervenções que se limitavam a
fazer elogios e desejar boa sorte aos sabatinados).
Ademais, por vezes, em suas intervenções, os senadores dirigiram, a um
só tempo, perguntas completamente diferentes a cada um dos sabatinados,
misturando os assuntos e impondo quebras na progressão diálogos, que fica-
ram prejudicados, já que não houve réplicas, nem espaço para contestação das
respostas dos candidatos.

8. https://www12.senado.leg.br/ecidadania/principalaudiencia
9. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/09/23/senado-conclui-esforco-
-concentrado-para-votar-autoridades

244
Quem tem ‘notório conhecimento no campo de sua especialidade’?

Embora o presente contexto de pandemia justifique as sabatinas “em blo-


co” (e até mesmo “em grupo”), parece desnecessário pontuar que esse modelo
não seria o desejado.
Além disso, é duvidoso que concretize o desígnio constitucional de efetivo
controle dos nomes indicados, reforçando a crítica de que o Senado Federal,
por vezes, funciona como mero “carimbador” das indicações do presidente da
República.
Isso, sem prejuízo da hipótese de que o controle senatorial seria realizado
de forma prévia, em momento ainda anterior ao próprio envio da mensagem
presidencial com a indicação do nome, a partir da antecipação das possíveis
preferências e objeções parlamentares quanto aos candidatos.
Nesse primeiro momento do esforço concentrado, ficaram de fora os no-
mes para as agências reguladoras, mas que devem ser sabatinados em breve. A
tirar pela experiência da semana passada, os indicados não deverão ter muitas
preocupações quanto ao novo modelo semipresencial.
A despeito das críticas, sem dúvidas, a retomada das sabatinas nesse mo-
delo semipresencial, ainda que em caráter experimental, é um importante
avanço, na medida em que a paralisação do rito de escolha de autoridades des-
de março deste ano – ainda que perfeitamente justificada em razão da pande-
mia – tem graves consequências práticas. Por exemplo, cite-se a atual situação
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, cuja atual diretoria no
contexto de pandemia é formada por maioria de interinos.10
Alguns estudos empíricos11 já dirigiam críticas à dinâmica das sabatinas
dos indicados para as agências reguladoras, com números bastantes revela-
dores sobre os espaços para a melhoria do funcionamento dessa importante
competência senatorial.
De fato, o retrato das arguições no Senado Federal na prática é o de que:
a) as sabatinas são meramente protocolares, com sessões rápidas e por vezes
esvaziadas; b) há baixa participação dos parlamentares e da sociedade; c) trata-
-se de rito com prazos meramente impróprios, podendo ser demorado, o que
ocasiona vacâncias de cargos e paralisia decisória nas agências e outros órgãos
públicos; d) o Senado funciona mais como mero “chancelador” das indicações

10. https://www.gov.br/anvisa/pt-br
11. https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/24851

245
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

(altas taxas de aprovação), do que propriamente controlador das indicações do


chefe do poder executivo, etc.
Inclusive, para contornar um dos problemas da dinâmica concreta das sa-
batinas, a Lei nº 13.848/2019 alterou a redação do art. 10 da Lei nº 9.986/2000,
trazendo a figura da “lista de substituição”, para contornar a vacância ensejada
pela demora na aprovação dos indicados no Senado Federal.
A lista é formada por 3 servidores da agência, ocupantes dos cargos de
superintendente, gerente-geral ou equivalente hierárquico, escolhidos e desig-
nados pelo presidente da República entre os indicados pelo Conselho Diretor
ou pela Diretoria Colegiada, observada a ordem de precedência constante do
ato de designação para o exercício da substituição.
O mesmo substituto exercerá interinamente o cargo por no máximo 180
dias contínuos, após o que deve ser convocado outro substituto, na ordem da
lista. Além disso, cada servidor permanecerá na lista de substituição por, no
máximo, 2 anos contínuos, somente podendo a ela ser reconduzido após 2
anos.
Na ausência da referida “lista de substituição”, exercerá o cargo vago, in-
terinamente, o superintendente ou o titular de cargo equivalente, na agência
reguladora, com maior tempo de exercício na função.
Como se vê, as agências reguladoras aprenderam a viver sem as sabatinas,
e a “lista de substituição” foi a forma encontrada para isso, não sem seus pró-
prios problemas e disputas.12 Seja como for, na prática, formalizou-se a desig-
nação dos “interinos” – que já era adotada desde antes, mesmo sem previsão
legal –, cuja atuação deveria ser pontual e excepcional. Embora o mecanismo
não chegue a ser inconstitucional (por burla ao art. 52 da CF), não deixa de ser
menos legítimo do que o processo regular.
Tudo isso revela que, tal como vêm sendo feitas, a sabatina de autoridades
pelo Senado Federal é um dos casos de práticas constitucionais que precisam
ser aperfeiçoadas.
Não necessariamente a partir de uma mudança formal no texto constitu-
cional (não parece haver problemas na CF nesse ponto), mas sobretudo desde
um agir parlamentar menos politicamente estratégico e mais guiado pela cen-
tralidade discursiva e argumentativa. Há pelo menos dois caminhos possíveis.

12. https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/agu-ans-anvisa-agencias-29052020

246
Quem tem ‘notório conhecimento no campo de sua especialidade’?

Em primeiro lugar, a partir da própria cultura institucional do Poder Le-


gislativo – já que existe uma clara correlação entre a popularidade do presiden-
te da República (isto é, sua força política) e a aprovação do indicado no Senado
Federal. No entanto, isso dependeria de condições políticas cuja criação e ma-
nejo (se é que possíveis) são mais complexos.
Em segundo lugar, os aperfeiçoamentos poderiam partir da teoria, a
quem caberia – após a realização de mais pesquisas empíricas – a elaboração
de sugestões de lege ferenda para o aprimoramento do rito de escolha das au-
toridades, e cuja adoção seja viável na realidade.
De antemão, seria possível vislumbrar, por exemplo, a proibição de aber-
tura do painel de votações antes do encerramento da sabatina (isto é, da etapa
em que ainda estão transcorrendo os diálogos, com perguntas e respostas), e
a determinação de que cada parlamentar deva fazer pelo menos um questio-
namento ao candidato, na linha do sugerido por Rodrigo de Camargo Rodri-
gues.13
Ainda resta um vasto campo para o aprofundamento teórico, cujo cami-
nho a ser percorrido passa por responder às seguintes questões:

1) quais elementos traduzem um “notório conhecimento no campo de


sua especialidade”?
2) que tipos de perguntas deveriam ser feitas em uma sabatina pelo Se-
nado Federal? (isto é, quais perguntas se prestam efetivamente a ar-
guir os candidatos?)
3) quais informações a respeito dos indicados são úteis? (o foco deve ser
o currículo, o projeto para a gestão e o que mais?)
4) quanto ao desenho institucional das sabatinas, seria interessante con-
centrar todas as sabatinas em uma única comissão? (ou permanecer
tal como é hoje, em que a atribuição é dividida e a competência para
arguir se dá conforme a área temática?)
5) como conferir mais transparência e efetiva participação parlamentar?

13. https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/556152/TCC_Rodrigo%20de%20
Camargo%20Rodrigues.pdf?sequence=1&isAllowed=y

247
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

6) como abreviar o prazo de duração do processo de escolha das autori-


dades, sem que seja necessário recorrer a sabatinas “em bloco” ou “em
grupo”?
7) quais são os outros aperfeiçoamentos possíveis no processo de trami-
tação?

Essas perguntas devem ser respondidas antes que seja tarde demais, e já
tenha se consolidado o esvaziamento da competência senatorial quanto ao
controle das autoridades indicadas pelo Poder Executivo.

248
Que tipo de controle cabe
em relação às sabatinas?
Arguições de dirigentes das agências
reguladoras são foco de mais atenção

A atuação do Senado Federal na aprovação de autoridades foi inserida


pela primeira vez na Constituição de 1946 (art. 63, inciso I), tendo-se repetido
na Constituição de 1967 (art. 45, inciso I) e na EC nº 1/69 (art. 42, inciso III)
até chegar na atual redação da Constituição de 1988, art. 52, incisos III e IV,
dispositivos objetos de colunas passadas, como aqui,1 aqui2 e aqui3.
O interesse em continuar discorrendo sobre o tema advém da aparente
dificuldade de compreensão (por parte de diversos atores) de que as sabatinas
têm natureza eminentemente política, tratando-se de assunto interna corporis,
cujo mérito político é insuscetível de controle de legalidade, seja pelo Poder
Judiciário, Ministério Público ou Tribunal de Contas da União (TCU).

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/sabatina-senado-noto-
rio-conhecimento-especialidade-30092020
2. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/existe-hora-marcada-pa-
ra-se-tornar-ministro-do-stf-13102021
3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/as-licoes-da-sabatina-de-
-andre-mendonca-08122021

249
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Inclusive, recorde-se que esse foi o entendimento do MS nº 38.216, quan-


do o ministro relator Ricardo Lewandowski negou seguimento ao writ sob o
argumento de que não havia direito líquido e certo dos parlamentares no que
diz respeito às sabatinas e que essas são matéria interna corporis, cujo controle
é impossível na via judicial.
Na verdade, as sabatinas já são em si mesmas um instrumento de controle
parlamentar sobre as indicações do presidente da República. Daí a perplexi-
dade: como controlar o exercício de uma competência que já é de controle
parlamentar?
A parte “administrativa” do processo se exaure com a indicação, que de
fato está sujeita a requisitos constitucionais e legais, notadamente o art. 5º e o
art. 8º-A da Lei 9.986/2000, incluído pela Lei 13.838/2019, que ficou conhecida
como Lei Geral das Agências Reguladoras. Enviada a mensagem pelo presi-
dente da República, todo o procedimento senatorial é interno, cuja regulação
está sujeita à reserva de regimento interno.
Nada obstante, o fato é que esse processo de indicação e aprovação de
autoridades via sabatinas guarda semelhança com o concurso público: ambos
são formas de provimento de cargos públicos, submetidas ao princípio da livre
acessibilidade aos cargos públicos, desde que observados os requisitos legais,
nos termos do art. 37, incisos I e II, da CF.
Justamente por essa lógica, a comprovação dos requisitos legais neces-
sários ao exercício da função pública, porquanto estritamente vinculados ao
exercício das atribuições do cargo, deve ocorrer no momento da investidura
no cargo público, ou seja, na posse.
Inclusive, após reiteradas decisões repetindo esse raciocínio, o entendi-
mento jurisprudencial foi consolidado nos termos do enunciado nº 266 da
Súmula do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “O diploma ou habilitação legal
para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o
concurso público”.
Embora o verbete se refira a concursos públicos, mencionando tão so-
mente a exigência de diploma ou habilitação legal, da leitura dos acórdãos que
conduziram à aprovação da súmula é possível extrair a ratio decidendi no sen-
tido de que não devem ser feitas restrições de caráter meramente formal como
condição de acessibilidade a cargos públicos.
Ao contrário, devem-se evitar quaisquer restrições ou proibições ainda na
fase de certame, a fim de que o universo de candidatos seja o maior possível,

250
Que tipo de controle cabe em relação às sabatinas?

permitindo maior concorrência e que a escolha recaia sobre aquele que de-
tenha os maiores méritos, concretizando o interesse público e o princípio da
eficiência vazado no art. 37, caput, da CF.
Eventuais condições de acesso ao cargo público até podem ser feitas, mas
apenas se legitimam quando instituídas para serem aferidas quando do instan-
te do provimento do cargo, é dizer, no momento da posse.
Dessa forma, o mesmo raciocínio da Súmula nº 266 do STJ seria aplicável
por analogia à sabatina, notadamente as regras de impedimento do art. 8º-A
acima mencionado, ante a semelhança que a indicação e sabatina da autori-
dade guardam com o concurso público como requisito de acesso aos cargos
públicos e, especialmente, quando inexistente norma constitucional expressa
nesse sentido, o que, sim, poderia mudar a lógica do raciocínio.
Inclusive, é por isso que excepcionalmente o enunciado nº 266 não se apli-
ca aos concursos para a magistratura e para membro do Ministério Público,
pois a matéria é regulada no art. 93, inciso I, e no art. 129, § 3º, da CF, ambos
com redação dada pela EC nº 45/04, que constitucionalizou a exigência de
experiência mínima de 3 anos de atividade jurídica, passando esse requisito a
ser exigido ainda antes da posse conforme a Resolução nº 75/2009 do CNJ e
Resolução nº 14/2006 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Portanto, as eventuais restrições para o acesso de cargos públicos, mesmo
quando legalmente previstas e dotadas de razoabilidade, podem ser conside-
radas pelo Senado Federal como obrigatórias somente para o exercício das
atribuições do cargo.
Dito em outras palavras, o preenchimento dos requisitos legais (bem
como a ausência de impedimentos) não precisa se fazer presente já no mo-
mento da indicação da autoridade ou mesmo no instante da sabatina sena-
torial, pela mesma razão pela qual não seria possível exigir que o candidato a
concurso público já preenchesse todos os requisitos legais de provimento do
cargo almejado no momento da inscrição e participação no certame.
Naturalmente, pode o Senado Federal com base no art. 52, inciso III, alí-
nea f, da CF entender como suficiente, portanto, a apresentação pelo sabatina-
do dos respectivos comprovantes de habilitação e de não impedimento apenas
no momento da futura posse.
As indicações e as respectivas arguições são políticas. Os requisitos do art.
5º da Lei 9.986/2000, com redação dada pela Lei 13.838/2019, não retiram esse
caráter. Assim, o simples fato de o nome indicado pelo presidente da República

251
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

e aprovado pelo Senado Federal não ser do agrado de alguns atores não se
presta à movimentação de um suposto controle de legalidade da arguição e de
aprovação de autoridades.
Nos últimos tempos, no entanto, aumentam o número de notícias de fatos
ou inquéritos civis no âmbito do Ministério Público pretendendo a anulação de
sabatinas (por exemplo, os que tiveram por objeto as Mensagens SF nº 96/2020
e nº 31/2021), ações populares sustentando violação aos princípios da mora-
lidade e da impessoalidade (por exemplo, a de nº 1070666-28.2020.4.01.3400)
e agora até mesmo decisões cautelares proferidas pelo TCU determinando a
suspensão de arguição no Senado, mesmo a unidade jurisdicionada sendo
“Presidência da República” (Processo nº 001.016/2022-9).
Ora, as sabatinas fazem parte de um processo legislativo, não administra-
tivo. Por consequência, deve ser aplicada a mesma jurisprudência do STF que
afasta o controle jurisdicional prévio do processo legislativo fora das hipóteses
de violação de normas constitucionais que fixam procedimentos, na linha do
MS nº 32.033.
Recorde-se a própria tese aprovada para o tema 1.120 da repercussão ge-
ral do STF: “Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no art.
2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas
constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário
exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do al-
cance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de
matéria interna corporis”.
Assim, as sabatinas sujeitam-se unicamente ao controle quanto às normas
constitucionais de regência e ao controle de natureza política, esse último rea-
lizado exclusivamente pelos próprios parlamentares, sobretudo nos casos em
que são exigidas maiorias qualificadas, dado que tal quórum pressupõe um
consenso pluripartidário, exigindo uma ampla participação das legendas no
processo.
Fora dessas hipóteses, qualquer outro tipo de controle de legalidade pre-
ventivo representa subtração ou embaraço da livre formação da vontade sena-
torial.
Sobretudo no caso do controle pretendido pelo TCU, não tem cabida
perguntar se esse novo “arranjo institucional” é bom ou desejável para uma
eventual melhoraria da qualidade da regulação e da governança nas agências

252
Que tipo de controle cabe em relação às sabatinas?

reguladoras. Trata-se de uma pura e simples inconstitucionalidade, mais um


caso de “ativismo controlador”.
O perigo desse tipo de atuação é, daqui a pouco, que passe a perscrutar até
mesmo os nomes rejeitados nas sabatinas. A primeira rejeição de um indica-
do para dirigente de agência ocorreu em 2003 (Luiz Alfredo Salomão,4 para
a ANP), depois ocorreram duas em 2009 (Bruno Pagnoccheschi,5 e Paulo
Vieira,6 ambos para a ANA), e mais uma em 2012 (Bernardo José Figueiredo
Gonçalves de Oliveira,7 para a ANTT). Em 2015, houve a primeira rejeição
de um diplomata (Guilherme Patriota,8 que havia sido indicado para a OEA).
Para o CNJ e o CNMP, já foram rejeitados diversos nomes.
Embora ainda sejam poucas as rejeições de candidatos sabatinados, mos-
tra-se que o procedimento de arguição não é meramente protocolar. A rejeição
é decisão política, que, assim como a aprovação, não comporta uma revisão
por parte de outro órgão.
Como se vê, a falta de um controle de legalidade ou regimentalidade das
sabatinas não é um caso de lacuna a ser preenchida ou de falha no sistema,
sobretudo porque estão previstos outros mecanismos de controle posterior,
como a convocação e o convite dessas autoridades para prestar informações,
nos termos do art. 50, caput, e § 1º, da CF.
Cada vez que se retira parcela das atribuições dos parlamentos (e a com-
petência para sabatinar e aprovar autoridades não é a única que vem sendo
usurpada por outros órgãos), morre também uma parte da liberdade dos ci-
dadãos. Substituir as decisões políticas do Legislativo o enfraquece. E sem um
Parlamento forte, não há controle parlamentar possível.

4. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2003/06/24/senado-rejeita-indicacao-
-para-agencia-nacional-do-petroleo
5. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,termo-pizzaiolos-usado-por-lula-irrita-se-
nadores,403332
6. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2009/12/17/interna_politi-
ca,161472/candidato-indicado-por-partido-para-uma-das-diretorias-da-ana-acaba-veta-
do-por-senadores.shtml
7. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/103776
8. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/05/19/senado-rejeita-indicacao-
-de-guilherme-patriota-para-a-oea

253
3 Ca p í tu lo
IMUNIDADES
PARLAMENTARES E ESTATUTO
DOS CONGRESSISTAS
Podem ser reeleitos os presidentes
da Câmara e do Senado?
ADI 6.524 poderá definir se houve mutação
constitucional do art. 57, § 4º, da CF

O ajuizamento da ADI n. 6.524 no último dia 5 de agosto1 lançou luzes


sobre uma discussão que os órgãos de comunicação já vinham relatando2
estar ocorrendo nos bastidores de Brasília: as articulações (incluindo a possí-
vel aprovação de uma emenda à Constituição) em favor da reeleição do atual
presidente do Senado Federal dentro da mesma legislatura, o que pareceria
não ser possível com base em uma interpretação literal do texto constitucional
hoje vigente.
Antecipando-se a qualquer definição sobre um eventual acordo político
concreto, o PTB resolveu judicializar imediatamente o tema, com o propósi-
to declarado de “afastar interpretações inconstitucionais de dispositivo cons-
titucional reproduzido com distorções nos Regimentos Internos do Senado
Federal e da Câmara dos Deputados, dando a eles interpretação conforme à
Constituição Federal de 1998”.

1. https://www.jota.info/stf/do-supremo/ptb-aciona-stf-para-impedir-reeleicao-dos-presi-
dentes-do-senado-e-da-camara-05082020
2. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/02/24/interna_politi-
ca,830143/mesmo-vetada-reeleicao-de-maia-e-alcolumbre-e-considerada-opcao.shtml

257
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

A norma constitucional referida é a que consta do art. 57, § 4º, pelo qual
“Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de
fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição
das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para
o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.”.
A atual redação desse dispositivo foi dada pela EC n. 50/2006, cujo propó-
sito foi o de promover mera alteração de redação para que o período do man-
dato fosse grafado também por algarismo arábico e não apenas por extenso.
Assim, conforme os documentos legislativos,3 não se pretendeu alterar quais-
quer dos âmbitos de validade da norma jurídica, que permaneceu a mesma, ou
seja, a rigor, trata-se de norma constitucional originária.
Já entendeu o STF que o art. 57, § 4º, da CF, não é de reprodução obri-
gatória nas Constituições dos Estados-membros, conforme a ADI n. 793,4
reiterada em outras ocasiões (ADI n. 792, 1.528, 2.371). Assim, fora do plano
federal, há margem para decisão em sentido diverso do estabelecido na CF.
Dentro das Casas Legislativas do Congresso Nacional, consolidou-se a
interpretação de que a vedação desse art. 57, § 4º, da CF, só alcança a eleição
realizada dentro da mesma legislatura, ou seja, não se considera recondução
a eleição para o mesmo cargo em legislaturas diferentes, ainda que sucessivas.
Assim, a norma constitucional não vedaria a eleição para o 3º e 4º anos da le-
gislatura X e, na sequência, a eleição para o 1º e 2º anos da legislatura X+1. In-
clusive, essa interpretação foi expressamente consignada no regimento interno
da Câmara dos Deputados,5 art. 5º, § 1º, cuja aprovação ocorreu em 1989.
Em outras palavras, a interpretação constitucional legislativa – isto é, leva-
da a cabo pelo Poder Legislativo – da citada norma constitucional entende que
o sentido da proibição do art. 57, § 4º, da CF, seria o de impedir que o eleito
no 1º ano da legislatura venha a ser reeleito no 3º ano dessa mesma legislatu-
ra, além de, naturalmente, vedar a reeleição para além de um único período
subsequente.

3. https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4787029&ts=1594016407583&-
disposition=inline
4. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266538
5. https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-cama-
ra-dos-deputados

258
Podem ser reeleitos os presidentes da Câmara e do Senado?

No âmbito do Senado Federal, cujo regimento interno é de 1970, tal inter-


pretação ficou por conta do Parecer n. 555, de 1998, da Comissão de Consti-
tuição, Justiça e Cidadania – CCJ.6 Em resumo, após um resgate histórico sobre
a eleição dos membros das mesas das Casas do Congresso Nacional desde a
Constituição Imperial de 1824 até a atual, tal opinativo conclui que a expressão
“eleição imediatamente subsequente” do art. 57, § 4º, não deve ser lida de ma-
neira isolada, mas sim com referência ao trecho da mesma norma que prevê a
eleição “no primeiro ano da legislatura”.
Dessa forma, diante da passagem de uma legislatura para outra, está-se
diante de “nova eleição”, mas não propriamente de “reeleição”, o que permitiria
aos eleitos no 3º ano da legislatura serem reconduzidos na eleição seguinte.
Além disso, o parecer fundamenta que as restrições de direitos, em es-
pecial as inelegibilidades, devem ser interpretadas restritivamente. Por fim,
argumenta o advento da EC n. 16/1997, que inseriu no art. 14, § 5º, da CF a
possibilidade de reeleição para os chefes do Poder Executivo, iria ao encontro
da interpretação legislativa sustentada para o art. 57, § 4º, da CF, e art. 59,
caput, do regimento interno do Senado Federal.7
Aparentemente heterodoxa, tal interpretação constitucional legislativa em
comento conta com a concordância de grandes doutrinadores, como Michel
Temer,8 Celso Bastos,9 entre outros, embora de fato existam os que dela dis-
cordem, como José Afonso da Silva.
Na petição inicial da ADI n. 6.524,10 o PTB sustenta: a) que o art. 5º, §
1º, do RICD, assim como a interpretação do citado Parecer n. 555, de 1998,
da CCJ do Senado, contrariariam o art. 57, § 4º, da CF, cujo texto não faria
distinções entre as “eleições imediatamente subsequentes”, sejam na mesma
legislatura ou na seguinte; b) que entendimento diverso contrariaria os princí-
pios democrático e republicano, bem como a suposta intenção do constituinte
em vedar que minorias se perpetuem no poder.

6. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753396255&pr-
cID=5972250
7. https://www25.senado.leg.br/documents/12427/45868/RISF+2018+Volume+1.pdf/cd-
5769c8-46c5-4c8a-9af7-99be436b89c4
8. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz14129809.htm
9. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz05129810.htm
10. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753396247&pr-
cID=5972250

259
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Da leitura da inicial, observa-se que, em nenhum momento, fez-se alusão


às notícias divulgadas pela mídia sobre as pretensões de reeleição do atual pre-
sidente do Senado (dentro da mesma legislatura), inteligentemente evitando
basear-se em meras ilações que poderiam conduzir à falta de interesse proces-
sual. De toda sorte, a abrangência do pedido formulado na ADI – para afastar
qualquer interpretação que conduza à possibilidade de reeleição – já serviria
para impedir eventual aspiração nesse sentido, seja na mesma legislatura ou
na seguinte.
Dado o contexto, convém fazer um apanhado geral sobre a temática da
reeleição dos chefes de poderes, iniciando pelo Judiciário. A CF, no art. 96,
inciso I, alínea a, deixou de trazer qualquer comando sobre a reeleição nos tri-
bunais. Especificamente no âmbito do STF, seu próprio regimento interno,11
art. 12, vedou a reeleição do presidente e do vice para o período imediato. A
atual regra da LC n. 35/1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LO-
MAN), art. 102, também veda a reeleição. No entanto, eventual disciplina em
sentido contrário não violaria a CF, que assim deu plena independência ao
Poder Judiciário nesse ponto.
Por seu turno, quanto ao Executivo, a CF trouxe, em seu texto originário,
a inelegibilidade dos chefes do Poder Executivo para novo sufrágio em perío-
do imediatamente subsequente. Somente com o advento da EC n. 16/1997,
inseriu-se a possibilidade de reeleição, com a atual redação dada ao art. 14, §
5º, da CF.
Quanto ao Poder Legislativo, já se adiantou o que diz o art. 57, § 4º, da CF,
bem como qual é interpretação legislativa desse texto, assentada pelo RICD
desde 1989 e, pela CCJ do Senado, desde 1998.
Passados dez anos disso, em 2008, surgiu nova dúvida: o presidente da
Casa Legislativa que assume para cumprir mandato-tampão pode ser reeleito?
Era o caso do então presidente do Senado Federal Garibaldi Alves Filho, que
fora eleito em dezembro de 2007, após a renúncia do senador Renan Calhei-
ros12 para finalizar o biênio 2007-2008.
Respondendo a tal indagação, o então advogado Luís Roberto Barroso
consignou, logo na primeira página de seu parecer,13 que “A matéria em dis-

11. https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf
12. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1312200714.htm
13. https://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/11/art20161114-05.pdf

260
Podem ser reeleitos os presidentes da Câmara e do Senado?

cussão não envolve princípio fundamental do Estado brasileiro, não cuida de


aspecto essencial para o funcionamento do regime democrático nem tampouco
interfere com direitos fundamentais da cidadania. Isso significa que ela está mais
próxima do universo das escolhas políticas do que da interpretação constitucio-
nal”.
O hoje ministro do STF reconheceu a existência da ambiguidade contida
no art. 57, § 4º, da CF, e registrou que, respeitadas as balizas constitucionais, o
STF tende a privilegiar as próprias Casas Legislativas na resolução das matérias
interna corporis.
A despeito disso, o senador Garibaldi Alves Filho acabou sequer se candi-
datando à época e quem venceu a eleição subsequente para presidir o Senado
Federal no biênio 2009-2010 foi o senador José Sarney.
Nada obstante, a mesma dúvida voltou a surgir em 2016, quando o de-
putado federal Rodrigo Maia, que também assumira a presidência da Câmara
dos Deputados após a saída antecipada do presidente anterior (o deputado
Eduardo Cunha), pretendeu candidatar-se à reeleição. Dessa vez, o advogado
Heleno Taveira Torres foi quem emitiu parecer14 pela possibilidade de reelei-
ção do presidente da Casa Legislativa que assume em decorrência da vacância
do presidente eleito no 1º ano da legislatura. É dizer, admitiu-se a reeleição
dentro da mesma legislatura, por parte de quem assumiu mandato-tampão,
sem que isso viole o art. 57, § 4º, da CF, cuja proibição seria inaplicável ao caso.
Tal possibilidade também foi chancelada pelo STF no MS n. 34.574,15
cuja fundamentação foi reiterada nos demais writs impetrados contra a candi-
datura do deputado Rodrigo Maia (MS n. 34.599, 34.602, 34.603). Após negar
o pedido de medida cautelar,16 o min. Celso de Mello não conheceu da impe-
tração sob o argumento de que se tratava a questão de matéria interna corporis,
com apoio nos pareceres dos ilustres juristas já citados.
O fato é que, ao longo dos anos, sem que tivesse havido qualquer processo
formal de mudança do texto do art. 57, § 4º, da CF, houve as seguintes reelei-
ções de chefes das Casas Legislativas do Congresso Nacional: a) no Senado
Federal: Antônio Carlos Magalhães (eleito para o biênio 1997-1998 e reeleito

14. https://static.poder360.com.br/2017/02/HelenoTorres-parecerRodrigoMaia-31jan2017.
pdf
15. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=314980224&ext=.pdf
16. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311141842&ext=.pdf

261
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

para o biênio 1999-2000), José Sarney (eleito para o biênio 2009-2010 e reelei-
to para o biênio 2011-2012) e Renan Calheiros (eleito para o biênio 2013-2014
e reeleito para o biênio 2015-2016); e b) na Câmara dos Deputados: Michel Te-
mer (eleito para o biênio 1997-1998 e reeleito para o biênio 1999-2000), Marco
Maia (eleito para o biênio 2010-2011 e reeleito para o biênio 2012-2013) e
Rodrigo Maia (eleito em 2016 para mandato-tampão, reeleito para o biênio
2017-2018 e, depois, para o biênio 2019-2020).
Nesse contexto, parece estar-se diante de uma tensão entre a Constitui-
ção formal escrita de 1998 e os fatos sobre os quais seu texto se projeta, isto é,
a Constituição da realidade em 2020. As práticas parlamentares parecem ter
mudado o sentido do texto constitucional do art. 57, § 4º, da CF, e resta saber
se, na substância, essa mutação é constitucional ou não.
Não é novidade que a Constituição não se esgota em seu texto e que os
órgãos legislativos estão autorizados a interpretá-la, fixando seu significado
e alcance, pela aprovação de emendas à Constituição e de leis que a comple-
tam. Contudo, a interpretação constitucional legislativa não se dá somente por
meios formais ou por intermédio do processo legislativo. O costume parla-
mentar – ainda de modo sub-reptício – também pode, pouco a pouco, conferir
nova aplicação às normas constitucionais, inclusive por exigências de ordem
prática (como ilustram as vacâncias acima mencionadas). Disso, resultariam
mutações constitucionais, cujo lastro democrático em concreto adviria da
qualidade, detida pelos legisladores, de representantes da sociedade.
Nesse sentido, outro exemplo de costume constitucional parlamentar é
o desuso do caráter sigiloso das arguições do art. 52, inciso IV, da CF, pois as
reuniões da Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal (encarregada
de sabatinar os candidatos a chefe de missão diplomática de caráter perma-
nente) são públicas, transmitidas em tempo real e interativas.17 Na prática,
houve uma aproximação do rito do inciso IV ao estabelecido para o inciso III
do citado art. 52 da CF. Como tal desuso (mesmo sendo contra legem) atende
a exigências de transparência, moralidade e impessoalidade – as quais desa-
conselhariam o cumprimento da referida norma nos tempos atuais –, seria
admissível como processo de mudança constitucional.
Como se vê, o desenvolvimento do processo político é um campo fér-
til para o surgimento de mutações constitucionais. É verdade que, a rigor, a

17. https://www12.senado.leg.br/ecidadania/principalaudiencia

262
Podem ser reeleitos os presidentes da Câmara e do Senado?

mutação constitucional – na qualidade de processo informal de mudança da


Constituição – não poderia alterar a letra, nem os limites de fundo fixados
pelo constituinte. No entanto, esse limite textual já foi relativizado pelo próprio
STF, como, por exemplo, na ADI n. 4.277,18 que conferiu interpretação con-
forme ao art. 1.723 do Código Civil.
Nesse contexto, a ADI n. 6.524 ofereceria uma oportunidade para o STF
assentar em definitivo se o processo de mutação em curso do art. 57, § 4º, da
CF, de fato é constitucional ou não. Ocorre que também existe a chance de que
a corte não conheça do mérito da ADI, na linha do já citado MS n. 34.574, con-
siderando que essa é matéria de funcionamento interno das Casas Legislativas
e, portanto, insindicável pela via judicial.
Assim, além de ensejar a reflexão sobre a reeleição dos chefes dos poderes,
em especial do Legislativo, todo esse imbróglio serve também para mostrar
os riscos que envolvem a decisão política de judicializar uma questão: para-
doxalmente, em lugar de proibir, a ADI n. 6.524 poderá acabar facilitando o
caminho da reeleição do atual presidente do Senado, seja porque o STF pode
declarar que a matéria é interna corporis (conferindo plena autonomia ao Po-
der Legislativo), seja porque o STF poderá desde já reconhecer que houve uma
mutação constitucional no art. 57, § 4º, da CF (pois os sentidos da vedação à
reeleição teriam caído em desuso, por costume parlamentar, além de não mais
se justificar a vedação à reeleição, ante a atual redação do art. 14, § 5º, da CF).
As chances de isso acontecer, segundo a atuária, são de 50%.

18. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635

263
Será tão absurdo assim?
Parlamentar eleito para Legislativo diverso
não pode ter proteção menor do que de
mandatário reeleito para a mesma Casa1

Em brilhante texto publicado pelo JOTA,2 o professor Diego Werneck


Arguelhes sustenta que a tese de defesa do hoje senador da República Flávio
Bolsonaro – que acabou sendo acolhida no último dia 25 de junho pelo Tribu-
nal de Justiça do Rio de Janeiro – TJRJ (no HC nº 0000744-92.2020.8.19.0000)
– é absurda.
Muito resumidamente, o autor sustenta que a pretensão de aplicar as re-
gras de competência vigentes no momento dos fatos (quando o paciente era
deputado estadual) não encontraria guarida no entendimento do STF assenta-
do na questão de ordem na AP nº 937,3 julgada em 2018.
Além disso, esbarraria no entendimento que resultou na revogação do
enunciado nº 394 da Súmula do STF,4 em 1999, e no julgamento da ADI nº

1. Artigo escrito em coautoria com ANTÔNIO FELIPE DE AMORIM CADETE (Juiz Federal Subs-
tituto junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região).
2. https://www.jota.info/stf/supra/caso-queiroz-foro-privilegiado-23062020
3. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748842078
4. “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por
prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a
cessação daquele exercício.” (cancelada).

265
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

2797,5 em 2005, que declarou inconstitucional o art. 84, § 1º, do CPP, que
havia sido inserido pela Lei nº 10.628/2002.
Aqui, propõe-se um novo olhar, enfrentando a questão sob a ótica exclu-
siva das normas e princípios constitucionais e do que foi debatido na questão
de ordem na AP nº 937, já que, se esse julgamento está sendo tomado como
precedente, deve representar – defende-se aqui – verdadeiro overruling (su-
peração) em relação aos outros que o antecederam em matéria de foro por
prerrogativa de função.
Nesta perspectiva, o último entendimento do STF deve ser analisado de
forma separada, e não somado, nem conjugado aos anteriores, sob pena de, aí
sim, conduzir a resultados absurdos.
O caso fático da AP nº 937 envolvia a situação de um deputado federal
que, concorrendo nas eleições para a Prefeitura de Cabo Frio (RJ) em 2008, foi
acusado de captação ilícita de sufrágio. Como foi eleito prefeito, o réu teve sua
denúncia recebida pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro – TRE-
-RJ em 2013.
Com o fim de seu mandato, o caso foi enviado para a primeira instân-
cia em 2014, ali tendo permanecido enquanto o réu esteve sem mandato. Em
2015, no entanto, o réu (que figurava como suplente) assumiu como deputado
federal, e os autos foram remetidos ao STF.
Ocorre que, em 2016, o réu novamente se afastou do mandato (diante do
retorno do titular), tendo ficado nessa situação sem foro por alguns meses até
reassumir outra vez como suplente e, pouco depois, ser efetivado no mandato,
em virtude da perda do cargo pelo eleito.
Como se não bastassem todas as intercorrências já citadas, o réu ainda
veio a ser eleito prefeito de Cabo Frio mais uma vez, assumindo em 2017. O
caso, nas palavras do min. Luís Roberto Barroso, “revela a disfuncionalidade
prática do regime de foro”.6
Entender bem a circunstância fática da AP nº 937 é importante, pois per-
mite a clareza necessária para separar os diferentes tipos de situação que po-
dem surgir. De um lado, está o caso daqueles cujas sucessivas mudanças de
cargos resultaram no “sobe e desce de autos”, em atenção às regras de foro do

5. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=395710
6. https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ap937QO.pdf

266
Será tão absurdo assim?

mandato atual, inclusive, entremeando períodos em que não se ocupou qual-


quer mandato, com remessa dos autos à primeira instância.
Trata-se, claramente, do que o min. Marco Aurélio denominou “elevador
processual”, problema que se quis combater com a restrição do foro promovida
no julgamento da AP nº 937.
Assim, a solução então encontrada foi a de aplicar o foro por prerrogati-
va de função apenas aos crimes cometidos (1) durante o exercício do cargo e
(2) relacionados às funções desempenhadas, deixando, portanto, de fora da
competência do STF os supostos crimes praticados antes do exercício do atual
mandato.7
O novo entendimento foi aplicado imediatamente para todos processos
então em curso, aplicando-se uma “regra de prorrogação de competência” do
tribunal no sentido de que, finda a instrução processual, a competência para
processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente
público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que
seja o motivo.
A partir do referido julgado, vê-se, por exemplo, que é um caso fácil o de
um político que, por não ter sido reeleito, perde o foro tout court (e a eventual
ação ajuizada após esse fato tramitará na primeira instância).
Da mesma forma, também é fácil o caso de um parlamentar que, por su-
cessivas reeleições, conserva seu mandato e seu foro em relação aos crimes
eventualmente cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às fun-
ções para as quais foi reeleito (a ação tramitará junto ao respectivo tribunal).
Entretanto, do outro lado, está o caso não enfrentado pela questão de or-
dem na AP nº 937. Trata-se da situação do parlamentar eleito para mandato
em Casa Legislativa diversa, de forma ininterrupta, sem claros ou espaços va-
zios.
Esse é o caso do senador da República Flávio Bolsonaro, que continua
ostentando um mandato parlamentar, embora não mais no plano estadual, e
sim no Congresso Nacional, sem qualquer interrupção na continuidade entre
as legislaturas.

7. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=314282324&ext=.pdf

267
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Tais particularidades fáticas e jurídicas fazem com que o entendimento da


AP nº 937 não seja aplicável ao referido caso por estar-se diante de um distin-
guishing (ou distinção).
Nesse sentido, as conclusões da AP nº 937 permanecem válidas e não fo-
ram, nem devem ser revogadas para os demais processos. Entretanto, uma vez
demonstrado que o caso do senador Bolsonaro se trata de situação particula-
rizada por uma hipótese fática distinta, e que também há uma questão jurídica
não examinada antes, impõe-se solução jurídica diversa da simples subsunção
à tese fixada na AP nº 937, dado que se discute matéria inédita, que não foi
debatida durante a formação do referido precedente.
Isso porque naquela ocasião não se vislumbrou a hipótese de o parlamen-
tar, sem nunca ter deixado de ostentar a condição de mandatário – e, portanto,
conservando sempre algum foro – somente ter ajuizada a ação contra si quan-
do já não mais ocupa o cargo que detinha à época dos fatos imputados.
Portanto, há uma lacuna no referido julgado, a qual deve ser preenchida
preferencialmente pela analogia (art. 4º da LINDB), isto é, pelo argumento a
simili. Em sendo assim, sem dúvidas, a situação do senador Bolsonaro guarda
mais semelhança com quem já tinha foro e se reelegeu para o mesmo cargo
do que com outrem que, por não mais ser ocupante de cargo eletivo, perdeu
definitivamente o foro por prerrogativa de função. Portanto, a solução do caso
deve se pautar no primeiro paradigma (político reeleito), não no último (po-
lítico não reeleito).
São três os argumentos que conduzem a essa conclusão. Em primeiro lu-
gar, o argumento teleológico. A fixação de foro em razão do exercício de man-
dato eletivo constitui garantia constitucional do agente público, que se dá em
razão do interesse público em prol de que bem exerça o seu mandato, não no
interesse pessoal de seu ocupante.
O constituinte entendeu por bem que determinadas autoridades deve-
riam ser julgadas por tribunais, de forma a proporcionar-lhes maior isenção,
independência e estabilidade, diante da peculiar posição que ocupam.
Assim, por mais que sejam legítimas as interpretações restritivas promo-
vidas pelo STF para pôr fim ao “elevador processual” na questão de ordem na
AP nº 937, não se afigura possível distorcer as finalidades do próprio instituto
constitucional do foro por prerrogativa de função, que foi previsto para prote-
ger os detentores de determinados cargos.

268
Será tão absurdo assim?

A interpretação restritiva não pode esvaziar tal foro, denegando-o a quem


de fato faz jus a tal garantia, não como “privilégio pessoal”, mas para resguar-
dar o desempenho de suas funções.
Em segundo lugar, o argumento apagógico (ou ad absurdum). É obrigação
do intérprete excluir interpretações (de normas ou de decisões judiciais) que
conduzam a resultados absurdos.
In casu, interpretar as regras constitucionais (e o entendimento da questão
de ordem na AP nº 937) de forma a negar o foro para quem se elege para um
cargo com foro (mesmo que em outra instância) equivaleria a negar a própria
existência do foro, em verdadeira situação apagógica.
Ora, se o chamado foro privilegiado se mantém quando há reeleição para
o mesmo cargo sucessivamente, é natural que a mesma lógica deva ser aplicada
àquele que, já ocupante de cargo político, elege-se imediatamente para manda-
to parlamentar em outra Casa Legislativa.
Nessa situação, pode-se até discutir qual foro deveria prevalecer (se o
atual ou o passado), mas jamais seria admissível negar o foro, impedindo que
o julgamento originário seja realizado por um tribunal.
Nesse caso, submeter uma autoridade que permanece com foro ao juízo
monocrático da primeira instância é tão sem sentido quanto absolver um sus-
peito por excesso – e não falta – de provas. Assim, a dúvida sobre qual o foro
competente não pode resultar na simples negativa do foro tal como o paradoxo
do Asno de Buridan.
Em terceiro lugar, o princípio da isonomia, que se traduz na obrigação
de conferir às situações de desigualdade o respectivo tratamento diferenciado.
Nesse sentido, tentar estabelecer um foro idêntico para agentes que se encon-
tram em situações que não são equiparáveis implica ofender tal preceito.
Quem se manteve, de forma contínua, em mandato eletivo com prerroga-
tiva de foro deve ter o mesmo tratamento de quem se reelegeu para o mesmo
cargo, porque terá havido (1) o exercício de mandatos legislativos, e (2) de
forma ininterrupta, ainda que em Casa Legislativa diferente.
Por tudo isso, com vistas a evitar o indesejado “elevador processual”, e, ao
mesmo tempo, garantir a proteção contra casuísmos, perseguições ou favore-
cimentos pessoais, a solução mais simples é tratar o parlamentar que se elege
para outra Casa Legislativa da mesma forma que se trata o mandatário reeleito
na mesma Casa Legislativa, enquanto durarem os mandatos.

269
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Com essa solução, não se está estendendo o foro a quem não mais o tem,
mas simplesmente se estabelecendo que, para os que “mudaram de foro”, a
fixação da competência é determinada pelo cargo ocupado na data do cometi-
mento da suposta prática criminosa.
Assim, sem ampliar o foro de prerrogativa de função, nem implicar dis-
funcionalidades práticas, a tese acolhida pelo TJRJ evita o sobe e desce de pro-
cessos e não esvazia a garantia constitucional dos congressistas.

270
Sobre as medidas de busca e
apreensão no Congresso Nacional
Urge o entendimento quanto ao protocolo
para a execução dessas ordens, com
requisitos, limites e competência

É verdade que a imunidade parlamentar do art. 53 da CF não assegura


prerrogativa contra medidas cautelares de busca e apreensão (art. 240 e seguin-
tes do CPP), do que resulta a possibilidade jurídica de sua determinação em
face dos congressistas.
No entanto, algumas perplexidades surgem – para além dos eventuais fa-
tos subjacentes que pudessem justificar tal providência – quando se vislum-
bra a execução desses mandados na sede do Congresso Nacional e, sobretudo,
dentro dos gabinetes parlamentares.
Não se trata apenas de uma questão de separação de poderes (art. 2º da
CF), que por si só já apontaria para a impossibilidade de uma medida dessa na-
tureza criar óbices ou perturbar o pleno funcionamento do Poder Legislativo,
de forma desproporcional ou injustificada.
Ora, assim como não se pode vislumbrar uma intervenção por parte das
Forças Armadas junto ao STF, é inimaginável que ordens judiciais de busca e
apreensão criem embaraços às atividades legislativas dentro do Parlamento.
Portanto, tem-se aqui o primeiro limite a tais medidas cautelares: ainda
que dirigidas a parlamentares, não poderiam afetar os trabalhos das Casas

271
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Legislativas como um todo, pelo que estaria proibido, por exemplo, sua reali-
zação nos dias de sessões deliberativas.
Aqui, não custa recordar que as dependências do Congresso Nacional,
como sede do Poder Legislativo, gozam da mesma garantia de inviolabilidade
de domicílio, nos termos do art. 5º, inciso XI, cuja extensão alcança qualquer
recinto onde se exerce atividade profissional.1
A perplexidade tampouco é somente porque tais ordens de busca e
apreensão têm potencial para obstaculizar, direta ou indiretamente, o pleno e
regular exercício do mandato parlamentar e de suas funções legislativas, o que
também per se implica dificuldades para sua operacionalização.
É que, em se tratando de congressista, essa situação deve provocar a re-
messa dos autos em 24h para que a Casa Legislativa respectiva, com base no
art. 53, § 2º, da CF, resolva sobre a medida cautelar, pelo voto da maioria de
seus membros.
Esse deve ser o procedimento em razão do decidido na ADI nº 5526,2
quando se admitiu a possibilidade de aplicação, aos membros do Poder Legis-
lativo, das medidas cautelares diversas da prisão do art. 319 do CPP, aplicando-
-se por analogia as disposições do art. 53, § 2º, quanto à deliberação legislativa.
A despeito de tal julgado ter se referido a medidas cautelares pessoais não
detentivas, o raciocínio também deve ser aplicável às cautelares de busca e
apreensão de objetos, porquanto presente o mesmo cerceamento direto ou
indireto ao mandato, já que onde existe a mesma razão, deve ser aplicado o
mesmo direito (ubi eadem ratio ibi idem jus).
Assim, em respeito à lógica consubstanciada na ADI nº 5526, a diligência
nas dependências do Congresso Nacional geraria a obrigação de armazena-
mento do material retido até tal decisão por parte da Câmara ou do Senado.
Do contrário, o controle legislativo ex post não seria capaz de restaurar o status
quo ante.
Eis, assim, um segundo limite: uma vez apreendidos objetos ou docu-
mentos dentro do Congresso Nacional, seria necessário lacrá-los a fim de que,
nem a autoridade policial, nem a judicial possam acessá-los até a deliberação

1. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=539135&p-
gI=1&pgF=100000
2. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=747870228

272
Sobre as medidas de busca e apreensão no Congresso Nacional

legislativa, que poderá: 1) rejeitar a medida cautelar, devolvendo os documen-


tos ao parlamentar; 2) ratificá-la, entregando sua totalidade às autoridades de
persecução criminal; ou ainda 3) adotar um eventual meio-termo, enviando
apenas parte do material confiscado pela busca e apreensão.
Nesse ponto, desnecessário frisar que por documentos deve-se entender
não somente papéis manuscritos e impressos, mas também arquivos em for-
mato eletrônico, armazenados em mídia magnética ou digital, HDs, computa-
dores, tablets, celulares, etc.
Além disso, a rigor, existem documentos inerentes à atuação parlamentar
que não poderiam ser apreendidos, pois conexos às atividades legislativas ou
porque estariam protegidos pelo sigilo da fonte previsto no art. 53, § 6º, da CF,
pelo qual os deputados e senadores não serão obrigados a testemunhar sobre
informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem
sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações.
Dessa norma constitucional, portanto, é possível extrair um terceiro li-
mite às buscas nos escritórios dos parlamentares: não seria possível apreen-
der documentos relacionados ao exercício do mandato, nem os que pudessem
comprometer o sigilo da fonte, o que também atende à garantia de exercício
profissional do art. 5º, inciso XIV, da CF. A operacionalização desse limite se
dá por intermédio do armazenamento já sugerido para os fins do art. 53, § 2º,
da CF.
Por essa razão, inclusive, foi correta a decisão do min. Dias Toffoli na Rcl
nº 42.335, que suspendeu a busca e apreensão no gabinete do senador José
Serra3 no último dia 21 de julho. No fundamento, a principal razão foi justa-
mente a “extrema amplitude da ordem de busca e apreensão”, que impossibili-
taria “a delimitação de documentos e objetos que seriam diretamente ligados
ao desempenho da atividade típica do mandato”.4
Nesse ponto, a decisão é impecável. De fato, não se pode admitir a utili-
zação dessas ordens de busca para a realização de devassas ou fishing expedi-
tion. Inclusive, o mesmo raciocínio poderia ser aplicado a outras medidas de
investigação, como quebras de sigilo e interceptações telefônicas. É duvidoso

3. https://www.jota.info/stf/do-supremo/toffoli-suspende-busca-e-apreensao-no-gabinete-
-de-jose-serra-no-senado-21072020
4. https://images.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/rcl-42335-mc.pdf?x73076

273
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

que juízes de primeira instância possam determiná-las sem gerar ruídos: a sis-
temática tem tudo para não funcionar bem.
Vale registrar que a mesma linha de raciocínio fundamenta decisões no
direito comparado, de que é exemplo o caso Brown Williamson Tobacco Corp v.
Williams,5 julgado em 1995 pela Corte de Apelações do Distrito de Columbia
(Estados Unidos), e reiterado em 2007 quando do caso US v. Rayburn House
Office Building.6
Nessas ocasiões, entendeu-se que a execução de mandados de busca e
apreensão no gabinete parlamentar não pode apreender materiais “protegidos
pela imunidade parlamentar” ou implicar intromissão no processo legislativo.
Assim, as três limitações propostas acima não devem ser entendidas como
ampliação indevida da imunidade parlamentar, blindagem institucional, nem
artifícios para impedir ou postergar investigações contra parlamentares.
Trata-se apenas de zelar pelas prerrogativas dos congressistas, garantir a
efetividade das proteções constitucionais asseguradas aos legisladores brasilei-
ros, fechando brechas para a intervenção nas atividades do Congresso Nacio-
nal ou para a intimidação de parlamentares.
Nesse contexto, é grave que o entendimento da referida Rcl nº 42.335 não
tenha prevalecido para o deputado Paulinho da Força,7 cujo gabinete tam-
bém fora alvo de buscas no último dia 14 de julho.
A Mesa da Câmara dos Deputados chegou a apresentar a Rcl nº 42.446,
mas o min. Marco Aurélio negou seguimento ao pedido8 em 29 de julho,
em decisão que sequer justificou o afastamento da ratio decidendi da Rcl nº
42.335. Já a Rcl nº 42.448 ajuizada em favor da deputada Rejane Dias, que tam-
bém teve mandados cumpridos em seu gabinete na Câmara dos Deputados no
passado dia 27 de julho, sequer foi apreciada ainda9 (no momento em que se
escreve este texto, no dia 02 de agosto de 2020).

5. https://caselaw.findlaw.com/us-dc-circuit/1300512.html
6. https://caselaw.findlaw.com/us-dc-circuit/1247862.html
7. https://www.jota.info/stf/do-supremo/marco-aurelio-nega-pedido-para-suspender-bus-
cas-no-gabinete-de-paulinho-da-forca-29072020
8. https://images.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/rcl-42446.pdf?x73076
9. https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5967925

274
Sobre as medidas de busca e apreensão no Congresso Nacional

Já há alguns anos, sobretudo desde o julgamento do caso do “Mensalão”


(AP nº 470), tem sido possível observar o fenômeno da “criminalização da po-
lítica”, em um crescente ativismo judicial contra a classe política, com diversas
viradas jurisprudenciais desfavoráveis e construções interpretativas que cada
vez mais criminalizam as atividades dos políticos e esvaziam as prerrogativas
parlamentares. Não há espaço para tecer mais considerações sobre o ponto
hoje, mas fica o alerta para a problemática.
Embora seja preocupante a inobservância dos limites acima menciona-
dos, sem dúvidas, o maior problema das medidas de busca e apreensão no
Congresso Nacional diz respeito à competência para a sua decretação.
Por ocasião da AC nº 4.29710 e da Rcl nº 25.537,11 o STF entendeu que
seria possível um juízo de primeira instância determinar a busca e apreensão
na sede do Congresso Nacional, não havendo nisso automática e necessária
usurpação da competência do STF.
A peculiaridade desses casos concretos, no entanto, reside em que as or-
dens se dirigiam a servidores da Polícia Legislativa do Senado Federal, que
estavam sendo investigados no âmbito da Operação Métis12 junto à primeira
instância da Justiça Federal.
Na ocasião, os mandados foram cumpridos nas dependências do Senado
Federal, quatro policiais legislativos chegaram a ser presos temporariamente,
bem como apreendidos equipamentos de inteligência do acervo da Polícia Le-
gislativa da Casa.
À época, ainda em 2016, a Mesa do Senado Federal ajuizou a ADPF nº
424,13 contestando tal possibilidade. A ação, da relatoria do min. Ricardo Le-
wandowski, ainda está pendente de julgamento.
É sabido que, como decorrência da decisão tomada na questão de ordem
na AP nº 937, ao restringir a aplicação do art. 102, inciso I, alínea b, da CF, o
STF reconheceu tacitamente, quando não aplicável o foro por prerrogativa de
função, a competência de milhares de juízes de primeira instância espalhados

10. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753092745
11. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752198218
12. https://www.jota.info/docs/veja-integra-inquerito-que-apura-se-policiais-senado-obs-
truiram-lava-jato-21102016
13. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=597248225&pr-
cID=5082248

275
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

pelo país para a decretação de medidas de busca e apreensão contra congres-


sistas.
De fato, não é possível separar o poder cautelar da competência jurisdicio-
nal. No entanto, por tudo o que vem se expondo aqui, é temerário deixar em
aberto a possibilidade ilimitada para qualquer juiz determinar tais buscas no
Congresso Nacional: põe-se em risco a independência política e funcional do
Parlamento, diante de eventuais interferências indevidas de órgãos judiciais.
Isso, além de outras dificuldades de ordem prática, como o transporte do ma-
terial apreendido para qualquer parte do país.
Mesmo em se reconhecendo a autoridade do julgamento da questão de
ordem na AP nº 937, parece ser necessário que o STF volte a debater o tema
para resolver o problema criado quanto às cautelares de busca e apreensão na
sede das Casas Legislativas federais, além de solucionar os demais pontos dei-
xados em aberto pela referida decisão.14
Aqui, entende-se que o ideal seria estabelecer que somente o STF pode
decidir pela realização de busca e apreensão na sede do Poder Legislativo Fe-
deral, sendo manifestamente incabível tal decisão por parte de outros tribunais
ou juízes de primeira instância, ainda que com base na questão de ordem na
AP nº 937.
Em não estando essa opção sobre a mesa, o second best seria determinar
que o cumprimento de quaisquer diligências na sede do Parlamento depen-
deria de prévia autorização do STF (ou seja, o juiz precisaria primeiro sub-
meter a medida à mais alta Corte), o que contribuiria para filtrar melhor a
indispensabilidade de tais providências tão invasivas para as investigações dos
congressistas.
Isso porque reputa-se que qualquer busca e apreensão tem potencial para
atingir o mandato atual, ainda que as investigações se refiram a fatos passados,
não sendo possível uma dissociação a priori ainda que os fatos investigados
não guardem relação com a legislatura em curso.
Disso viria a competência do STF em conferir sempre um exequatur às
buscas e apreensões dirigidas aos parlamentares em seu recinto profissional,
exercendo um controle de legalidade prévio da cautelar, sem prejuízo da apre-
ciação posterior da própria Casa. Inclusive, a atuação do STF facilitaria tal

14. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/sera-tao-absurdo-assim-09072020

276
Sobre as medidas de busca e apreensão no Congresso Nacional

dinâmica, já que também caberia ao próprio STF a remessa dos autos à Casa
Legislativa para fins do art. 53, § 2º, da CF.
Adicionalmente, e sem que implique exclusão das alternativas anteriores
para preservar as garantias constitucionais dos legisladores, apresenta-se como
alternativa possível a adoção de um protocolo para a execução das ordens de
busca e apreensão no Parlamento, de forma análoga ao que se fez na Austrá-
lia15 – onde tal documento foi assinado desde 2005 pelas autoridades equiva-
lentes aos presidentes do Senado, da Câmara, procurador-geral da República
e ministro da Justiça.
Diferentemente da opção do Parlamento do Canadá,16 cujo presidente
pode negar o acesso da polícia, a solução australiana parece acertada, pois es-
tabelece rito prévio, bem como procedimento a ser assegurando na execução,
que garante ao parlamentar a oportunidade de copiar os documentos a serem
apreendidos, juntamente com a possibilidade reivindicar seu parliamentary
privilege em relação a documentos ou objetos apreendidos, porque diretamen-
te relacionados à atividade legislativa ou exercício do mandato.
No Brasil, enquanto não se chega a um acordo semelhante, vai-se vendo o
desrespeito à institucionalidade em paralelo a uma grande (e problemática) se-
letividade dos parlamentares que conseguem fazer valer (ainda que em parte)
suas prerrogativas constitucionais e dos que não alcançam fazê-lo.

15. http://www.aph.gov.au/~/media/02 Parliamentary Business/22 Chamber Documents/


Dynamic Red - 45th Parliament/01 - 30 August 2016/SSG025P1016083017291
16. https://www.ourcommons.ca/procedure-book-livre/en/document?sbdid=abb-
c077a-6dd8-4fbe-a29a-3f73554e63aa&sbpid=00578540-4ac4-4004-bbd5-4f1110b9dd73

277
É possível bloquear perfis de
parlamentares nas redes sociais?
ADI n. 6.494 é oportunidade para
avanços na liberdade de expressão
e na imunidade parlamentar1

A resposta não é tão óbvia e, antes de chegar a ela, convém contextualizar


a discussão sobre a legalidade do bloqueio (ou suspensão) de contas nas redes
sociais de forma geral.
Na ADI n. 6.494,2 o presidente da República solicita que seja conferida
interpretação conforme à Constituição aos arts. 282 e 319 do CPP, e aos arts.
15, 19 e 22 da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), “para estabelecer
que essas normas não autorizam a imposição de medidas cautelares de bloqueio/
interdição/suspensão de perfis de redes sociais”. Embora a inicial da ADI não o
mencione, a iniciativa está relacionada a decisões judiciais que determinaram
bloqueios de perfis bolsonaristas3 no âmbito de inquéritos em curso no STF.

1. Artigo escrito em coautoria com HUGO SOUTO KALIL (Advogado do Senado Federal, Mes-
tre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público).
2. https://images.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/agu-adpf-redes-sociais.pd-
f?x73076
3. https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/stf/do-supremo/twitter-blo-
queia-perfis-de-bolsonaristas-globalmente-devido-a-nova-decisao-de-moraes-30072020

279
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

O pedido do presidente se fundamenta na inexistência do poder geral de


cautela no âmbito processual penal (o que impossibilitaria as medidas caute-
lares inominadas) e na ocorrência de violações às liberdades de manifestação
do pensamento, de exercício profissional e às imunidades parlamentares. Sus-
tenta, ainda, o risco da demora para pedir o deferimento cautelar do pedido,
com suspensão das vigentes ordens judiciais de bloqueio de perfis de usuários
de redes sociais.
De fato, o poder geral de cautela (no sentido de um poder indiscrimi-
nado) não deve ser admitido no âmbito do processo penal, em homenagem
à taxatividade e à legalidade penal estrita. Como consequência, as medidas
cautelares penais dependem de prévia cominação legal. Contudo, o próprio
art. 3º do CPP autoriza expressamente a interpretação extensiva e a analógica.
Quanto à impossibilidade de medida cautelar inominada penal, invoca-se,
mutatis mutandis, as decisões do STF nas ADPFs n. 3954 e 444,5 nas quais
restou rejeitada a tese que defendia a possibilidade de condução coercitiva do
investigado como meio menos gravoso em substituição à prisão temporária.
Desse modo, é vedado ao juiz criar novas figuras de medidas cautelares
pessoais (porque estaria a laborar fora do figurino constitucional, que exige a
obediência à forma processual como mecanismo de asseguração dos direitos
fundamentais do acusado).
No entanto, não lhe é vedado, em tese, atribuir significação extensiva ou
analógica àquelas modalidades já estabelecidas – o que parece se adequar à
hipótese dos autos, em especial quanto aos fattispecie de proibição de acesso
e de proibição de contato (art. 319, incisos II e III, do CPP). Dessa maneira,
não se pode admitir, em caráter abstrato e a priori, uma impossibilidade ou
invalidade absoluta de toda e qualquer medida de bloqueio de perfis. Haverá
situações em que a providência será justificada diante das respectivas circuns-
tâncias fáticas.
Ocorre, no entanto, que tal espécie de decisão é gravíssima e afeta signifi-
cativamente, ou ao menos tem o potencial de fazê-lo, a liberdade de expressão
e de manifestação do pensamento, e, ainda, de exercício profissional, notada-
mente em caso de jornalistas.

4. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340212844&ext=.pdf
5. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749900186

280
É possível bloquear perfis de parlamentares nas redes sociais?

O bloqueio dos perfis em rede social pode ser equiparado, em alguma me-
dida, à pena de prisão no âmbito da internet, porquanto não se limita a retirar
a visibilidade de uma manifestação específica, ou de uma postagem, mas gera
a indisponibilidade virtual da própria pessoa investigada, autora dos supostos
delitos. Não se dirige contra o fato (o conteúdo de determinadas postagens),
mas contra seu autor, de modo integral. Mais grave que impedir o acesso do
investigado às suas contas nas redes sociais só o banimento delas, que equiva-
leria à pena capital, excluindo em definitivo o perfil do usuário numa morte
virtual do acusado.
Esse ponto (o caráter drástico da providência), portanto, elimina a possi-
bilidade de que a ADI n. 6.494 se resolva como um ‘caso fácil’, de mera subsun-
ção, pois passa a exigir deliberada e considerada ponderação entre os princí-
pios constitucionais em colisão.
Além disso, a liberdade de expressão ocupa espaço proeminente no catá-
logo dos direitos fundamentais – e tal proeminência deve conformar e limitar
a possibilidade jurídica do emprego da medida cautelar em discussão.
Sem grande dificuldade, pode-se afirmar que o STF adotou, a partir do
julgamento da ADPF n. 1306 (caso da Lei de Imprensa), uma espécie de dou-
trina de posição preferencial – já conhecida e muito aplicada pela Suprema
Corte Americana ao longo do Séc. XX – para os direitos relativos à liberdade
de expressão e manifestação do pensamento.
No referido acórdão, lê-se expressamente que há precedência dos direitos
de liberdade ao bloco do direito à honra, imagem, intimidade, vida privada,
etc., cuja incidência deve se dar a posteriori – mediante as figuras do direto de
resposta e da indenização.
Tal linha de interpretação foi reafirmada na ADPF n. 1877 (alusiva à
“Marcha da Maconha”), na ADI n. 4.8158 (que tratou das biografias não-au-
torizadas), entre outros. Da última, lê-se expressão de conteúdo fortíssimo: “A
Constituição do Brasil proíbe qualquer censura. O exercício do direito à liberda-
de de expressão não pode ser cerceada pelo Estado ou por particular”.

6. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411
7. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5956195
8. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=308558531&ext=.pdf

281
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Na linha do voto do min. Celso de Mello na citada ADPF n. 187, são


admitidas ressalvas à liberdade de expressão – notadamente pela importação
das advertências do Justice Holmes diante da manifestação de perigo grave e
iminente (clear and present danger), do uso de fight words (manifestações que
podem desencadear reações violentas), da incitação ao ódio público e, ainda,
“toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacio-
nal, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao
crime ou à violência”, nos termos do artigo 13.5 da Convenção Americana de
Direitos Humanos.9
A partir desses marcos – segundo o postulado da integridade (art. 926 do
CPC) –, é possível defender leitura menos abrangente do que a pretendida pelo
Presidente da República, a fim de compatibilizar a necessidade de conferir res-
posta eficaz a manifestações criminosas em ambiente virtual com as legítimas
liberdades civis e de imprensa. Nesse sentido, entende-se:

a) Que, nos termos expressos pela ADPF n. 130 e pela ADI n. 4.815, a
liberdade de expressão, de manifestação do pensamento e a liberdade
jornalística devem prevalecer, em regra, sobre o direito à honra, in-
timidade e vida privada, cuja reparação deve ser obtida a posteriori,
sendo nestas hipóteses vedado o bloqueio de perfil, embora permi-
tida a posterior indisponibilização das postagens ofensivas, devida-
mente individualizadas, em concreto, nos termos do Marco Civil da
Internet e da lei civil;
b) Essa prevalência deve revestir-se de caráter absoluto quando a ma-
nifestação ofensiva à honra se der no contexto de crítica de natureza
política, ideológica ou artística, por incidência direta do art. 220, § 2º,
da CF;
c) Não prevalecem necessariamente, contudo, essas liberdades em re-
lação a outras formas e manifestações de delitos, que envolvam bens
jurídicos de maior relevo. Em especial, quando um perfil em rede
social seja usado como veículo permanente para a prática de outros
crimes. Tem-se em mente, por exemplo, um perfil que divulgue ima-
gens de conteúdo vedado pelos crimes relativos à prática de pedofilia;
o caso de perfis especificamente criados para instigação ao suicídio

9. https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm

282
É possível bloquear perfis de parlamentares nas redes sociais?

(caso “Pateta”)10; perfis abertos com a finalidade de prática de atos


de estelionato; etc. Em todos esses casos, seria possível o bloqueio do
perfil, como mecanismo de interrupção da prática delitiva – e, ano-
te-se, nenhuma dessas atividades pressupõe dúvida sobre a vontade
do agente, quanto à inexistência de manifestação de opinião política,
ideológica, artística ou religiosa;
d) Da mesma forma, há autorização para o bloqueio judicial de perfis
que sejam usados para, em abuso da liberdade de expressão, incitar
diretamente o ódio contra pessoas, povos e grupos sociais, ou provo-
car reações violentas, que representem perigo real e imediato (como
uma convocação para a prática de ato criminoso), na linha do prece-
dente do caso Ellwanger (HC n. 82.424)11 e da advertência contida
na ADPF n. 187, mencionada.

Sem embargo, especificamente no que diz respeito aos parlamentares, a


solução a ser dada deve adotar um parâmetro diferente em relação aos demais
cidadãos. É que, enquanto no exercício do mandato, o parlamentar goza de
especial proteção constitucional quanto às suas manifestações de pensamento.
Da CF, art. 53, caput, lê-se textualmente que “Os Deputados e Senadores são
invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
Tal norma constitucional impõe a obrigação de que qualquer ordem judi-
cial deve respeitar o bem jurídico nela consagrado, inclusive as decisões com
apoio o art. 7º, inciso II, do Marco Civil da Internet, que autorizaria a interrup-
ção judicial violando o fluxo de comunicações pela internet.
A partir do momento em que as redes sociais constituem, para o parla-
mentar, a extensão da ágora – termo grego que alude ao espaço público de
deliberação política, local em que eram manifestadas as opiniões públicas nas
cidades gregas –, os perfis dos parlamentares constituem verdadeiros e inequí-
vocos instrumentos de exercício do mandato.
De fato, não é plausível cogitar do pleno exercício de mandato parla-
mentar, sobretudo no âmbito federal, sem a presença de seu titular nas redes

10. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/07/com-homem-pateta-criminosos-ten-
tam-levar-criancas-ao-suicidio.shtml
11. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79052

283
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

sociais, porque se trata do locus onde se desenvolvem muitas das discussões


públicas e da prestação de contas do mandatário a seus eleitores.
Na rede, as interações são velozes, simultâneas e dinâmicas, sendo um dos
possíveis caminhos para os eleitores acessarem informações diretamente da
fonte (o parlamentar) e formarem o juízo sobre em quem votarão nas próxi-
mas eleições. Com isso, não restam dúvidas de que as postagens dos congres-
sistas nas redes sociais são atividade parlamentar e política.
Seguindo por essa linha de raciocínio, a imunidade material parlamentar
se estende plenamente para o ambiente das redes sociais, como já reconheceu
o próprio STF na Pet n. 5.875,12 n. 5.956,13 n. 8.630,14 AO n. 2.002,15 entre
outros, que expressamente declararam que o exercício da atividade parlamen-
tar não se exaure no âmbito espacial do Congresso Nacional, de modo que a
inviolabilidade constitucional do art. 53 da CF alcança as comunicações vei-
culadas em redes sociais, como natural projeção do exercício das atividades
parlamentares.
Conforme a jurisprudência do STF, em se tratando de opinião manifesta-
da fora do recinto do Parlamento, o reconhecimento da imunidade se sujeita
à presença do nexo de causalidade entre o que foi dito ou escrito e o desempe-
nho da função legislativa (prática in officio) ou em razão dela (prática propter
officium).
Assim, toda manifestação que guarde, ainda que remotamente, relação
com o mandato parlamentar deve ser compreendida na imunidade, pois é ir-
relevante o meio empregado para propagar suas palavras e opiniões. E ainda
mais importante: mesmo nos casos em que um parlamentar, em determinadas
manifestações (postagens), exceda aos limites da imunidade constitucional, a
eventual resposta deve ser sempre limitada àquela manifestação concreta e a
posteriori, jamais a partir da inativação das contas dos parlamentares nas redes
sociais.
Isso porque o eventual bloqueio do perfil do titular de mandato repre-
sentaria violento rompimento de mecanismo legítimo e necessário da comu-
nicação entre parlamentar e eleitor, em prejuízo do princípio democrático.

12. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311714791&ext=.pdf
13. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=14623595
14. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752499451
15. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=308768846&ext=.pdf

284
É possível bloquear perfis de parlamentares nas redes sociais?

Ilustrativamente, equivaleria à aposição de uma mordaça ao parlamentar que


ocupa o púlpito no plenário de sua Casa Legislativa. Tratar-se-ia de avanço
indevido sobre atividade política stricto sensu, em desrespeito à separação de
Poderes, tornando inviável o alcance público das opiniões, palavras e votos do
titular do mandato legislativo, que gozam de proteção constitucional.
Dessa forma, em especial quanto aos parlamentares, tem-se por absolu-
tamente vedado o bloqueio de perfil. Apenas eventuais manifestações concre-
tas, quando não conexas à atividade política e, portanto, não abrangidas pela
imunidade constitucional, é que poderiam ser judicialmente removidas a pos-
teriori, de modo individualizado, em caso de ilícito. Ou seja, o parlamentar ja-
mais poderia ser proibido de acessar sua conta nas redes sociais, podendo, no
máximo, sofrer a remoção pontual de conteúdos eventualmente ilegais, com a
necessária justificação na decisão judicial.
Por fim, sem prejuízo da vedação absoluta do bloqueio de perfis de con-
gressistas, nos estritos termos da decisão na ADI n. 5.526,16 qualquer medida
cautelar tomada pelo Poder Judiciário que interfira no mandato parlamentar
deve ser comunicada à Casa Legislativa correspondente dentro de 24 horas,
para que delibere sobre sua manutenção ou cancelamento, em aplicação ana-
lógica do disposto no art. 53, § 2º, in fine, da CF.
Em resumo, entende-se adequada a fixação de interpretação conforme
à Constituição aos arts. 282 e 319 do CPP e aos arts. 15, 19 e 22 da Lei n.
12.965/2014 para considerar admissível, em caráter excepcional, o bloqueio de
perfis, ressalvado o seguinte:

1) Perfis de titulares de mandato parlamentar federal, em qualquer caso,


não podem sofrer bloqueio judicial, por ofensa à separação de pode-
res (art. 2º da CF) e à imunidade parlamentar material (art. 53, caput,
da CF);
2) Não podem sofrer bloqueio os perfis de quaisquer investigados
quando as postagens alegadamente ilícitas se limitem ao contexto de
crimes contra a honra ou possam ser reconduzidas à manifestação
legítima de natureza política, ideológica ou artística, cuja censura é
vedada pelo art. 220, § 2º, da CF; e

16. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=314935383&ext=.pdf

285
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

3) Na eventual hipótese de bloqueio de perfil de parlamentar federal,


deve a medida ser tomada exclusivamente pelo STF e, ainda, ser co-
municada à Casa Parlamentar respectiva no prazo de 24 horas, nos
termos da decisão na ADI n. 5.526 e conforme o disposto no art. 53,
§ 2º, da CF.

286
Prisão de parlamentares e cautelar
de afastamento do mandato
As verdadeiras dúvidas que subjazem à Pet nº 9.218

Não há dúvidas de que, desde a expedição do diploma, os membros do


Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime
inafiançável. É o que diz o art. 53, § 2º, da CF. Da expressão “não poderão ser
presos”, extrai-se a proibição de qualquer outra espécie de prisão cautelar, in-
clusive a prisão preventiva prevista no artigo 312 do CPP.
Embora isso não esteja escrito na norma, entende-se que referida proibi-
ção não inclui a prisão de congressista decorrente de sentença condenatória
passível de execução, é dizer, a prisão material ou para o cumprimento da pena
(nesse sentido, por exemplo a AP nº 935, que determinou o início imediato da
execução da pena quanto ao senador da República Acir Gurgacz).1
Assim, além dessa hipótese, a única possibilidade de prisão de congres-
sistas se limita à que foi expressamente contemplada no texto constitucional:
prisão em flagrante de crime inafiançável. E, como bem sabido, exceções in-
terpretam-se restritivamente, de modo que não caberia exegese extensiva ou
analogia para admitir outras modalidades de prisões cautelares (preventiva ou
temporária) de congressistas.

1. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=390720&caixaBus-
ca=N

287
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

A despeito da referida previsão constitucional e de sua interpretação, en-


tre as razões apontadas pelo ministro Roberto Barroso na Pet nº 9.2182 – que
determinou o afastamento do senador da República Chico Rodrigues de seu
mandato pelo prazo de 90 dias – está a de que persistiria “fundada dúvida sobre
a legitimidade de decretação de prisão preventiva de parlamentar federal”(§§ 34
e seguintes da decisão).
Nesse contexto, o caso é de revisitar a decisão paradigma – notadamente
após o advento da EC nº 35/2001 que conferiu a atual redação do art. 53 da CF
– que determinou a prisão cautelar de congressista protegido por imunidade
parlamentar no curso de seu mandato. Trata-se da decisão tomada em 2015
na Ação Cautelar – AC nº 4.039,3 que decretou a prisão preventiva do então
senador da República Delcídio do Amaral, o primeiro a ser preso no exercício
do mandato. Mais especificamente, convém observar atentamente a engenho-
sa construção do então relator ministro Teori Zavascki a partir do item 13 da
decisão (página 35 e seguintes).
Para justificar a prisão cautelar do senador Delcídio do Amaral sem que
isso violasse o texto constitucional, o ministro Teori enfatizou que as con-
dutas em tese imputadas ao senador Delcídio do Amaral atenderiam aos
tipos: 1) de organização criminosa, nos termos do art. 2º, caput, da Lei nº
12.850/2013(“Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por
interposta pessoa, organização criminosa”), e 2) de obstrução de investigação
(“Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a
investigação de infração penal que envolva organização criminosa”), conforme
o art. 2º, § 1º, também da Lei nº 12.850/2013.
Registre-se que tais crimes comportariam fiança – a lista dos crimes
inafiançáveis se limita aos seguintes: racismo (art. 5º, inciso XLII, da CF),
tortura, tráfico, terrorismo e tortura, hediondos e equiparados (art. 5º, inciso
XLIII, da CF), ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem
constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, inciso XLIV, da CF) e crimes
contra o sistema financeiro nacional (art. 31 da Lei nº 7.492/1986).
No entanto, a despeito do cabimento da fiança para os crimes de orga-
nização criminosa e de obstrução de investigação, o ministro relator afirmou
que in casu estariam presentes os motivos que autorizariam a decretação da

2. https://images.jota.info/wp-content/uploads/2020/10/decisao-pet-9218.pdf?x73076
3. https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Acao_Cautelar_4039.pdf

288
Prisão de parlamentares e cautelar de afastamento do mandato

prisão preventiva, nos termos do art. 324, inciso IV, do CPP, o que impediria a
fiança in concreto. Em outras palavras, o ministro Teori Zavascki “converteu”
os crimes mencionados em inafiançáveis.
Além disso, e aqui vem o ponto para o qual se queria chamar a atenção, o
ministro Teori fundamentou que as mencionadas condutas criminosas eram
pacificamente reconhecidas como crime permanente. A consequência prática
disso é a incidência do art. 303 do CPP, segundo o qual, nas infrações perma-
nentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a perma-
nência. Ou seja, o senador da República Delcídio do Amaral poderia ser preso
em “situação de flagrância” tal como exigiria o texto constitucional.
Com isso, já caberia a imediata incidência do art. 310 do CPP, de acordo
com o qual, após receber o auto de prisão em flagrante, o juiz poderá converter
o flagrante em prisão preventiva, quando presentes os requisitos constantes
do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas
cautelares diversas da prisão. Foi justamente isso o que fez o ministro Teori
Zavascki: considerando presente elevada clareza probatória quanto ao crime
permanente que justificaria a prisão “em flagrante” do senador, determinou
desde logo sua prisão preventiva, mesmo sem que tivesse ocorrido de fato a
mencionada prisão em flagrante.
A rigor, a interpretação canônica do art. 53, § 2º, da CF, não comportaria
o salto hermenêutico dado pelo ministro Teori Zavascki na AC nº 4.039 para
determinar a prisão preventiva de senador da República Delcídio do Amaral
no curso de seu mandato: sem que os crimes fossem inafiançáveis in abstracto
e sem que tivesse havido uma prévia prisão em flagrante.
Outro ponto importante sobre a AC nº 4.039: a decisão monocrática (to-
mada no dia 24 de novembro de 2015) foi referendada pela 2ª Turma do STF
logo no dia seguinte (em 25 de novembro de 2015),4 com a determinação de
envio dos autos à Casa Legislativa para resolver sobre a prisão, como determi-
na o art. 53, § 2º, da CF.
Embora a construção interpretativa do ministro Teori Zavascki seja cri-
ticável, a gravidade dos fatos – que vieram lastreados em material robusto –
acabou justificando a providência, tanto que a medida foi referendada pela
Segunda Turma do STF e, por seu turno, mantida pelo plenário do Senado

4. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=304778

289
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Federal,5 com ampla maioria (foram 59 votos pela manutenção e 13 absten-


ções), em votação ocorrida no mesmo dia 25 de novembro de 2015. Depois,
passados 80 dias de sua prisão, após processo disciplinar por quebra de decoro
parlamentar, o senador Delcídio do Amaral teve seu mandato cassado pelo
plenário do Senado Federal, com 74 votos a favor e nenhum contra.6
Depois disso, em 2017, no âmbito da AC nº 4.327, determinou-se ao se-
nador Aécio Neves as seguintes medidas cautelares diversas da prisão: 1) a
suspensão de suas funções parlamentares; 2) o recolhimento domiciliar no-
turno; 3) a proibição de contatar outros investigados por qualquer meio; 4) a
proibição de se ausentar do país, com entrega de passaporte.
Todas as cautelares impostas contam com previsão legal no art. 319 do
CPP. Por um momento, tais medidas cautelares chegaram a ser afastadas por
decisão monocrática do ministro Marco Aurélio,7 mas foram restabelecidas
pela 1ª Turma do STF por ocasião do julgamento de agravo interposto pela
PGR. Na decisão, por unanimidade, foi negado o pedido de prisão preventiva.
Tendo-se remetido os autos à Casa Legislativa para a deliberação sobre
as cautelares impostas ao senador Aécio Neves, desta vez o Senado Federal
levantou todas as medidas determinadas pelo STF,8 garantindo o retorno do
senador ao seu mandato, por maioria absoluta, com 44 votos contra e 26 a
favor da manutenção das medidas cautelares.
Ainda em 2017, o julgamento da ADI nº 5.526 acabou assentando a possi-
bilidade de o STF impor quaisquer das medidas cautelares do art. 319 do CPP,
tendo-se determinado que as medidas cautelares que impossibilitem, direta ou
indiretamente, o pleno e regular exercício do mandato parlamentar e de suas
funções legislativas, serão remetidos dentro de 24 horas à Casa respectiva, nos
termos do art. 53, § 2º, da CF. Enfatize-se que o julgamento da ADI nº 5.526
foi por 6 x 5 votos.

5. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/11/25/senadores-decidem-man-
ter-prisao-de-delcidio-do-amaral
6. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/10/senado-cassa-o-mandato-
-de-delcidio-do-amaral
7. https://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=348351&caixa-
Busca=N
8. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/10/17/senado-devolve-mandato-
-a-aecio-neves

290
Prisão de parlamentares e cautelar de afastamento do mandato

Dito tudo isso, retorne-se à argumentação do ministro Barroso na Pet nº


9.218 em relação ao senador Chico Rodrigues. Em juízo preliminar quanto ao
caso concreto, o ministro reputou não estarem caracterizados os delitos de la-
vagem de dinheiro (Lei nº 9.613/1998, art. 1º, caput) e de embaraço à investiga-
ção de infração penal que envolva organização criminosa (Lei nº 12.850/2013,
art. 2º, §1º). No entanto, a despeito de ter afastado a tipificação proposta pela
Polícia Federal, não chegou a tecer considerações sobre qual seria o correto
enquadramento das supostas condutas típicas do senador.
Nada obstante, registrou a presença dos pressupostos para a prisão pre-
ventiva, por necessidade da instrução criminal e para assegurar a aplicação da
lei penal (§ 30 da decisão). Mas consignou que não decretaria a prisão por duas
razões: 1) fundada dúvida a respeito da possibilidade de decretação de prisão
preventiva de parlamentar federal; e 2) respeito ao colegiado, fazendo alusão
ao decidido na ADI nº 5.526 (§ 40 da decisão).
Por um lado, a decisão se afigurou correta ao não decretar a prisão pre-
ventiva. Mas as razões para isso não são as mencionadas pelo ministro Bar-
roso. Na verdade, como visto, uma leitura estrita do texto constitucional (e
atualmente prevalecente) não permite extrair, a partir do art. 53, § 2º, qualquer
possibilidade de prisão preventiva. Em relação aos congressistas, só seria auto-
rizada pela CF a prisão em flagrante de crime inafiançável.
É verdade que, também como já explicado aqui, a própria jurisprudência
do STF já foi além disso, tendo a decisão na AC nº 4.039 decretado prisão
preventiva na hipótese de crime (mesmo não sendo inafiançável) cujo caráter
permanente ensejasse “a situação de flagrância”.
Ocorre que esse não seria o caso do senador Chico Rodrigues, pois, como
se acaba de ver, foram afastadas as tipificações de lavagem de dinheiro e de em-
baraço à investigação. As condutas até poderiam ter sido enquadradas como
corrupção passiva (art. 317 do CP), mas esse crime jamais seria permanente,
tendo toda a doutrina e jurisprudência se consolidado no sentido de que tal
tipo é formal9 e se consuma com a solicitação ou recebimento da vantagem
indevida (ou a aceitação da promessa de tal vantagem). Então, seja como for,
também à luz da jurisprudência do STF (AC nº 4.039), estaria afastada a pos-
sibilidade da prisão preventiva do senador.

9. https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201300562437&
dt_publicacao=10/10/2014

291
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Por outro lado, no entanto, anda mal a decisão em insistir que “nada se
decidiu, de modo claro e definitivo, sobre a possibilidade ou não de decretação
da prisão preventiva” na ADI nº 5.526 (§ 38). Em sua decisão, o ministro sim-
plesmente não fez qualquer alusão à referida AC nº 4.039, que seria a decisão
paradigma nesse assunto. Disso resultam pelo menos quatro graves problemas
na Pet nº 9.218.
Em primeiro lugar, a sintomática resistência quanto à aplicação dos enten-
dimentos do próprio do STF. São ignoradas as decisões passadas e isso aconte-
ce com frequência, sobretudo quando o ministro não concorda com o decisum
cuja existência é omitida. Mesmo sendo de turma, a decisão na AC nº 4.039
deveria ter sido citada na fundamentação da Pet nº 9.218, seja para acolhê-la,
afastá-la ou superá-la.
Em segundo lugar, a argumentação deixa entrever, de forma cada vez mais
clara, que o ministro Barroso pretende expandir, ainda mais, o entendimen-
to da Corte quanto às exceções da incoercibilidade pessoal dos congressistas
(freedom from arrest). Basta ler seu voto (vencido) lançado na ADI nº 5.526
– manifestando-se pela improcedência do pedido, ou seja, para que fosse dis-
pensado o aval do Poder Legislativo previsto no art. 53, § 2º, da CF – para
entender sua visão de que seria necessário restringir as prerrogativas parla-
mentares, via ativismo judicial, para combater a corrupção.
Em terceiro lugar, outro grave problema da decisão tomada na Pet nº
9.218 está no fato de ter sido tomada em caráter monocrático. Um ministro,
individualmente, não deveria ter poderes para determinar o afastamento de
parlamentares do exercício de suas funções. Trata-se de uma medida drástica,
excepcionalíssima. Por mais que um ministro personifique o STF ao tomar
uma decisão monocrática, tem-se a subtração da vontade do eleitorado (leia-
-se: milhares ou até mesmo milhões de pessoas), pois um congressista é um
representante escolhido pelo povo, via eleições democráticas e diretas.
Pela severidade da medida, cautelares de suspensão do mandato de par-
lamentares eleitos jamais deveriam ser decretadas sem o imediato referendo
do colegiado. Isso, até mesmo por razões de reciprocidade: um senador da Re-
pública sozinho não poderia, por exemplo, decretar o afastamento de um mi-
nistro do STF em um processo de impeachment em curso no Senado Federal.
Em quarto lugar, especialmente em se tratando de senadores da Repúbli-
ca, medidas cautelares de afastamento do mandato trazem graves consequên-
cias à representação dos Estados-membros, cujos interesses contariam com o
voto de apenas 2 senadores – e não mais 3 como determina o art. 46, § 1º, da

292
Prisão de parlamentares e cautelar de afastamento do mandato

CF –, com potencial para desequilibrar o pacto federativo em votações impor-


tantes em curso.
De acordo com o Regimento Interno do Senado Federal – RISF,10 art. 45,
a convocação do suplente somente se dá nos casos de: 1) vaga (definitiva); 2)
de afastamento do exercício do mandato para investidura nos cargos referidos
de Ministro de Estado, de Governador de Território, de Secretário de Estado,
do Distrito Federal, de Território, de Prefeitura de Capital ou de chefe de mis-
são diplomática temporária, ou 3) de licença por prazo superior a 120 dias.
Assim, a rigor, uma cautelar de afastamento do mandato não acarreta a
convocação do suplente e a representação do Estado-membro respectivo fica
desfalcada. Esse é um debate importante e, inclusive, foi objeto das ADPFs
64311 e 644,12 ajuizadas por ocasião da cassação do mandato da senadora
Selma Arruda (juntamente com seus suplentes) pelo TSE, que determinou a
realização de novas eleições. O objetivo das referidas ADPFs era o de garantir
a posse do candidato remanescente de maior votação nominal no pleito ao
Senado pelo mesmo Estado-membro para assunção temporária no mandato.
Inclusive, deu-se a liminar nesse sentido.13
Com tudo isso, agora vê-se que as verdadeiras dúvidas quanto à Pet nº
9.218 não são quanto ao cabimento da prisão preventiva em face de congres-
sistas, porquanto incabível no caso do senador Chico Rodrigues. Há, na ver-
dade, um dilema mais difícil e a dúvida é sobre como chegar a um equilíbrio.
De um lado, o combate à corrupção. Criminosos, sobretudo se políticos, de
fato precisam ser punidos. Daí, tolera-se um justificado cuidado para que a
interpretação quanto às imunidades parlamentares não as converta em salvo-
-conduto para a prática de crimes.
Por outro lado, no entanto, por mais graves que sejam os fatos, parlamen-
tares têm prerrogativas constitucionais que precisam ser respeitadas. Em de-
terminadas circunstâncias, defender o Poder Legislativo pode parecer uma ta-
refa ingrata, mas é preciso lembrar que o estatuto dos congressistas (sobretudo

10. https://www25.senado.leg.br/documents/12427/45868/RISF+2018+Volume+1.pdf/cd-
5769c8-46c5-4c8a-9af7-99be436b89c4
11. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751749408&pr-
cID=5840807
12. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751754222&pr-
cID=5841458
13. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15342276790&ext=.pdf

293
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

o art. 53, § 2º, da CF) se presta à proteção da função, não das pessoas, e isso
faz parte do devido processo legal constitucional. Quem viola a Constituição
para combater a corrupção incorre no mesmo vício do bandido e se torna
descumpridor da lei.

294
Adeus, imunidade parlamentar
Seja qual for a eventual nova redação
da CF, nada será como antes

A imunidade parlamentar não se confunde com impunidade. Na sua con-


cepção clássica, como, por exemplo, a britânica, conforme o artigo 9º da Bill of
Rights de 1689, a ideia da imunidade é a de que “a liberdade de expressão e de-
bates ou os processos no Parlamento não devem ser impugnados ou questionados
em nenhum tribunal ou lugar fora do Parlamento.”.
Não se pretendia, portanto, a completa irresponsabilidade, mas tão-so-
mente uma proteção quanto à intromissão de órgãos alheios ao Parlamento,
o que poderia acabar alterando sua composição, oriunda da vontade popular.
De fato, dada sua relevância pública e a visibilidade decorrente do man-
dato representativo, a opção de deixar o parlamentar exposto a numerosas e
reiteradas ações judiciais exigindo responsabilização criaria verdadeiro em-
baraço ao exercício do mandato, perturbando também o funcionamento da
própria Casa Legislativa.
Pela mesma lógica, do ponto de vista material, confere-se ao congressista
uma espécie de plus à liberdade de expressão que têm os demais cidadãos, de
modo a evitar que o medo a retaliações, o receio e a excessiva prudência colo-
quem o parlamentar em um estado de coação moral permanente. Só assim se
garante o livre funcionamento das instituições parlamentares.

295
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Os temas da prisão de parlamentares e da cautelar de afastamento do


mandato já foram tratados em coluna passada.1 Na oportunidade, criticou-se
a linha hermenêutica que vem sendo usada pelo STF para, na opinião desta
colunista, “reescrever” o estatuto constitucional dos congressistas da Consti-
tuição de 1988.
O que já era grave, tornou-se ainda mais com a decisão que determinou
a prisão do deputado federal Daniel Silveira2 no último dia 16 de fevereiro.
Como sabido, a determinação foi adotada de ofício pelo ministro Alexandre
de Moraes nos autos do Inquérito n. 4.781, tendo sido referendada pela unani-
midade da Corte em sessão plenária no dia seguinte e perdura até o momento
em que se escreve o presente texto (no dia 28 de fevereiro), mesmo quando
sabido que a prisão em flagrante tem natureza meramente pré-cautelar e não
permite o encarceramento sine die sem a adoção de uma das providências do
art. 310 do CPP.
O episódio é polêmico, com muitas nuances que já vêm sendo objeto de
amplo debate e, mesmo sem pretender analisar seus aspectos técnicos, a colu-
na de hoje não poderia deixar de repisar que esse caso só acentua a deterio-
ração das prerrogativas parlamentares no país. Convém, portanto, fazer um
breve resgate desse caminho ladeira a baixo.
Pela redação originária do art. 53, caput, da CF, estabeleceu-se: “Os Depu-
tados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos.”. A grande
novidade da redação inaugurada em 1988 foi a supressão da expressão “no
exercício do mandato” presente nas Constituições anteriores. A ideia do cons-
tituinte era conferir uma imunidade absoluta. Mas não adiantou.
Mesmo sem que isso estivesse escrito no texto constitucional, logo fixou-
-se o entendimento de que tal imunidade material só protege os parlamentares
nos atos, palavras, opiniões e votos proferidos no exercício do mandato (in
officio) ou em razão deste (propter officium).
O leading case que abriu essa brecha para a verificação de um nexo de
implicação das palavras parlamentares – como se fosse possível dissociar com-
pletamente as condutas do congressista enquanto parlamentar e enquanto

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/prisao-de-parlamenta-
res-cautelar-afastamento-mandato-21102020
2. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/prisao-de-parlamenta-
res-cautelar-afastamento-mandato-21102020

296
Adeus, imunidade parlamentar

cidadão – foi a AP n. 292, julgada em 1989, a primeira envolvendo a imunida-


de material julgada após a Constituição de 1988.
No caso concreto, um deputado federal fora denunciado pelo Ministério
Público por ter criticado um juiz da cidade de Tefé-AM, em entrevista à im-
prensa local, quando declarou o seguinte: “Ao contrário desse juiz irresponsável,
para não chamá-lo de venal … o egrégio Tribunal do Estado saberá restabelecer
a dignidade da justiça, reformando a decisão que constitui um fato escandaloso,
sem precedentes na história da magistratura amazonense”. Em outro fragmen-
to, o deputado afirmou que tal juiz teria “colocado a sua toga a serviço dos inte-
resses de grupos” e “envergonharia o Poder Judiciário do Amazonas”.
À época, o voto do ministro Célio Borja registrou a controvérsia sobre o
alcance do art. 53, caput, da CF: se abrangeria apenas manifestações emitidas
da tribuna da Casa, ou se cobriria também as opiniões manifestadas onde quer
que seja, é dizer, toda a atividade política, independentemente de estar ou não
no recinto parlamentar.
Acabou prevalecendo o primeiro entendimento, com base no voto do mi-
nistro relator Octavio Gallotti, de que a acusação tratava de “entrevista conce-
dida à imprensa, e não de opinião, palavras ou voto proferido no Parlamento” (p.
14). Com isso, rejeitou-se a incidência do art. 53, caput, da CF, sob o argumen-
to de que as declarações seriam “sem relação com exercício do mandato” (cha-
mando-se a atenção para o papel que o locus das declarações desempenhou).
No mérito, o réu foi absolvido, mas permaneceu em definitivo a restrição
da imunidade material do art. 53, caput, da CF às situações que guardem cone-
xão com o desempenho da função legislativa. O referido decisum foi confirma-
do por outros que lhe seguiram, como, por exemplo, o Inq n. 396.
Somente em 1991, por ocasião do julgamento do Inq n. 510, o STF assen-
tou de forma clara que a imunidade do art. 53, caput, alcança palavras e opi-
niões fora do Congresso Nacional, desde que ligados à tarefa de representante
do povo. O voto do ministro relator Celso de Mello evidencia a irrelevância
do local em que proferido o discurso parlamentar para fins da imunidade,
instituto que funciona como condição e garantia de independência do Poder
Legislativo.
Ainda assim, continuou prevalecendo o entendimento de que a imunida-
de material só protege o congressista “no exercício do ofício congressual”.
Vale registrar que nem mesmo a EC n. 35/2001, que conferiu a atual re-
dação do dispositivo, e inseriu expressamente a palavra “quaisquer” em adição

297
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

ao texto da redação originária do referido art. 53, caput – de modo a afastar


eventuais dúvidas quanto ao caráter peremptório da disposição constitucional
– conseguiu reverter essa restrição que foi feita à noção de imunidade par-
lamentar pelo STF. A norma continuou sendo interpretada como se nunca
tivesse sido modificada.
Nesse sentido, por exemplo, cite-se o Inq n. 1710 (julgado em 2002),
quando os ministros expressamente se debruçaram sobre a inclusão do vo-
cábulo ‘quaisquer’. Incorrendo em uma clara contradição, o ministro Sydney
Sanches afirmou o seguinte: “A expressão [quaisquer] não me passou desaper-
cebida. Acredito que foi posta para afastar dúvidas nos casos em que o parla-
mentar emite opiniões, nessa específica qualidade. Imagine-se, porém, hipótese
diversa: o parlamentar é condômino de um prédio, participa de uma reunião de
condomínio e, às tantas, ofende o síndico. É opinião emitida como parlamentar?
Parece-me que não. Opinião de condômino. Outro caso: na rua, o parlamentar se
desentende com alguém que está dirigindo veículo, a seu lado e o ofende. Estará
emitindo opinião que deva ser beneficiada pela imunidade? A meu ver, não.” (p.
385).
Em outras palavras, considerou que a inserção do vocábulo “quaisquer”
não cumpria qualquer papel no texto da CF, ignorando o brocardo de que a lei
não contém palavras inúteis (verba cum effectu sunt accipienda).
Com isso, ignorou-se a mudança normativa trazida pela EC n. 35/2001 e
afastou-se a imunidade parlamentar no caso concreto, em que, de acordo com
relator, estava-se diante de ofensas proferidas “entre colegas de um escritório de
advocacia, sem qualquer relação com o exercício do mandato parlamentar”. O
mérito, no entanto, acabou sendo pela rejeição da queixa-crime.
Somente em 2003, com o Inq n. 1.958, acabou surgindo um entendimento
“menos restritivo” à imunidade parlamentar: assentou-se que, muito embora
seja dado distinguir entre as ofensas dentro e fora do Parlamento, somente
quanto a estas últimas cabe perquirir a conexão com o mandato. Ou seja, os
pronunciamentos feitos no interior das Casas Legislativas estariam acoberta-
dos pela inviolabilidade absoluta.
Com efeito, reconhecida a conexão com o desempenho do mandato, a
rigor, não haveria que se perquirir nada mais, pois a imunidade incidiria inde-
pendentemente do conteúdo das mensagens veiculadas. É dizer, também estão
abarcadas pela imunidade as ofensas pessoais, insultos dirigidos aos interlo-
cutores, xingamentos, palavrões, palavras de baixo calão, etc., muito embora

298
Adeus, imunidade parlamentar

todas essas formas de liberdade de expressão não sejam o modelo ideal de


debate político.
Nesse sentido, pela clareza, confira-se, por exemplo, o RE n. 600.063 (jul-
gado em 2015, com repercussão geral), que teve como redator do acórdão o
ministro Luís Roberto Barroso, em cuja ementa se lê: “Embora indesejáveis, as
ofensas pessoais proferidas no âmbito da discussão política, respeitados os limi-
tes trazidos pela própria Constituição, não são passíveis de reprimenda judicial.
Imunidade que se caracteriza como proteção adicional à liberdade de expressão,
visando a assegurar a fluência do debate público e, em última análise, a própria
democracia”.
Especificamente quanto a ofensas, a jurisprudência da Corte já entendeu
imunes ofensas como: 1) um deputado federal afirmando que um dirigente
esportivo “foi detido, investigado e indiciado pela Polícia Federal por possíveis
crimes contra o sistema financeiro, corrupção e formação de quadrilha” (Inq n.
3.887, de 2014); 2) o mesmo deputado federal anterior se referindo a outro
dirigente desportivo como tendo “passado ligado à Ditadura, sem moral” e que
dava pena “ver a CBF passando suas diretorias de um ladrão para outro” (AO
n. 1.770 AgR, de 2015); 3) um senador xingando outro senador de “ladrão,
mentiroso, senador do mal, corrupto, covarde e frouxo” (AO n. 2002, de 2016);
4) um senador chamando cidadão de “bajulador” e “lambe o ovo do governa-
dor” (Pet n. 6.487, de 2017); 5) um senador tachando outro senador de “maior
propineiro do país” (Pet n. 6.268, de 2018); 6) as declarações de um deputado
federal referindo-se à família de outros parlamentares de “sinônimo de roubo,
enriquecimento ilícito, assalto, safadeza, por-no-gra-fia”, entre outros insultos
(Pet n. 7.107 AgR, de 2019); 7) um senador que chamou um governador de
“metido a intelectual, mas é vazio e inculto” e “chumbrega que não é o mesmo
que brega: no dicionário Michaelis, significa desprezível” (Pet n. 8.945, de 2020).
Na citada Pet n. 7.107 AgR, por exemplo, quanto às palavras empregadas
em concreto, a ministra Rosa Weber afirma: “Apesar de lamentáveis e traduto-
ras de falta de civilidade em relações que se almejam de respeito e tolerância em
sociedades civilizadas, há que se reconhecer a incidência da imunidade material
parlamentar.” (p. 9).
A mesma ministra, no entanto, em oportunidades anteriores já tinha de-
cidido de outra maneira. Por exemplo, a AP n. 926 (de 2016), a imunidade foi
afastada sob o argumento de que as declarações não guardavam relação com
o exercício do mandato parlamentar, porquanto também em meio a ofensas
pessoais de que o ofendido “costuma espancar seu pai” e tem “desequilíbrio

299
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

mental”. Como esse caso envolvia ofensas recíprocas, aplicou-se o perdão ju-
dicial e ninguém foi condenado.
O caráter pessoal da ofensa também foi determinante para afastar a imu-
nidade no Inq n. 3.932 (julgado em 2016), em que o então deputado federal
Jair Bolsonaro foi acusado de incitação ao crime de estupro por afirmar que
“não estupraria” a deputada Maria do Rosário porque ela “não merece”. O re-
lator ministro Luiz Fux entendeu que as declarações não tinham teor sequer
minimamente político, de modo que não guardavam relação com o exercício
do mandato.
Nesse caso, para afastar o entendimento da própria Corte no sentido de
que as palavras proferidas dentro do recinto da Casa Legislativa têm imunida-
de absoluta, nesse Inq n. 3.932 o ministro retomou o argumento de que foram
proferidas em “entrevista a veículo de imprensa” – sendo irrelevante que o par-
lamentar estivesse em seu gabinete o momento em que concedeu a entrevista
– para afastar a imunidade (p. 25).
Em todos esses casos que se acaba de mencionar, o que se observa de
forma geral é a tendência de o STF aplicar a imunidade inclusive às ofensas,
quando em um contexto de crítica, debate político ou fiscalização da coisa pú-
blica. O importante é que a ofensa (mesmo a de caráter pessoal) esteja ligada à
atividade do parlamentar.
Nas palavras do ministro Luiz Fux: “Para que as afirmações feitas pelo par-
lamentar possam ser relacionadas ao exercício do mandato, elas devem revelar
teor minimamente político, referido a fatos que estejam sob debate público, sob
investigação do Congresso Nacional (CPI) ou dos órgãos de persecução penal ou,
ainda, sobre qualquer tema que seja de interesse de setores da sociedade, do elei-
torado, organizações ou quaisquer grupos representados no parlamento ou com
pretensão à representação democrática”.
Nessas situações, como já dito, a aplicação da imunidade não estaria con-
dicionada à gravidade, contundência, exasperação, má educação, grosseria ou
baixo nível das palavras. Inclusive, a própria Corte por vezes consignou que
“Eventual excesso praticado pelo parlamentar deve ser apreciado pela respectiva
Casa Legislativa, que é o ente mais abalizado para apreciar se a postura do que-
relado foi compatível com o decoro parlamentar ou se, ao contrário, configurou
abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional, nos ter-
mos do art. 55, § 1º, da Constituição” (Pet n. 6.587, de 2017).

300
Adeus, imunidade parlamentar

A despeito disso, a Corte vem usando o expediente de considerar “sem


relação direta com o exercício do mandato” os discursos mais desrespeitosos
(em especial, os abjetos e lamentáveis), mas que, ainda assim, guardariam re-
lação com a representação popular (reverberando o que pensa uma parcela,
mesmo pequena, do eleitorado).
Isso aconteceu, por exemplo, na Pet n. 7.174, pela Primeira Turma do STF,
tomada por 4 a 1 – vencido (curiosamente) o ministro Alexandre de Moraes
–, pela qual o colegiado afastou a imunidade e aceitou a queixa-crime contra o
deputado federal Wladimir Costa por chamar artistas de “vagabundos da Lei
Rouanet”. O caso foi noticiado aqui.3
Nessa decisão, chama a atenção a intervenção do ministro Luís Roberto
Barroso: “Presidente, acho, verdadeiramente, que a imunidade parlamentar ma-
terial é essencial para o desempenho do mandato. Mas eu preciso dizer a Vossa
Excelência que li com inusual desconforto a aceitação, como legítima, de uma
atitude pela qual você chama alguém de membro de quadrilha, vagabundo, ver-
dadeiro ladrão, patifa e bandidos, e considerar que isso esteja na normalidade do
exercício parlamentar” (p. 16).
O ministro Marco Aurélio, por seu turno, confessou: “A partir do momen-
to em que não se receba queixa como essa, estar-se-á, em última análise, estimu-
lando a persistência do procedimento no âmbito da Câmara. Depois, reclama-se
que o nível é muito baixo, consideradas as instituições pátrias.” (p. 17). Como
se vê, com a decisão, o STF enviar “uma mensagem” ao Congresso Nacional,
assim como no caso do deputado Daniel Silveira.
Esse tipo de conduta é preocupante para o futuro da imunidade parla-
mentar. Isso sem contar o paradoxo, se levado em consideração o entendi-
mento do STF na questão de ordem na AP n. 937, de acordo com o qual o foro
por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o
exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
Ao se retirar a imunidade material das falas dos congressistas, ainda que
de forma implícita, isso implica o reconhecimento de que as palavras ques-
tionadas não se deram “na condição de parlamentar” e, portanto, o eventual
crime cometido em concreto não teria processamento perante o próprio STF,
sendo competência de juiz de primeiro grau.

3. https://www.jota.info/stf/do-supremo/wladimir-costa-reu-stf-10032020

301
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Com vistas a contornar essa e outras perplexidades (como o problema


das buscas e apreensões já comentado aqui)4, foi apresentada a Proposta de
Emenda à Constituição – PEC n. 3, de 2021, para modificar a redação do art.
53 e outros da CF. O texto ainda está na fase de negociações e tratativas po-
líticas, mas já recebeu uma enxurrada de críticas, o que torna incerto o seu
desfecho. No entanto, seja qual for a redação que venha a ser aprovada, já não
há mais imunidade parlamentar como antes.
Ilustrativa nesse sentido é a fala do próprio presidente da Câmara dos
Deputados,5 o deputado federal Arthur Lira, no último dia 19 de fevereiro,
na sessão que deliberava sobre a prisão do deputado Daniel Silveira. Após a
intervenção da deputada Talíria Petrone, à 1h52min, o presidente afirma: “Eu
só faço uma ressalva que todo direito de expressão para todos os parlamentares…
mas eu quero frisar: a partir de hoje, esta Mesa será rigorosíssima com qualquer
tipo de adjetivação inadequada no plenário desta Casa. Doa em quem doer. Te-
nham cuidado e responsabilidades com as falas dos senhores deputados dentro
do plenário desta Casa”.
De forma semelhante, o senador Davi Alcolumbre, ao sagrar-se presiden-
te da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ do Senado, no úl-
timo dia 24 de fevereiro, declarou: “Eu, como senador da República, terei mais
tempo para tomar providências contra aqueles que se excederam, aqueles que
avançaram o sinal e saíram do debate das ideias. Durante dois anos não tive
condições de fazer isso. Não é plausível ter colegas nossos que passam dos limites
todos os dias e se acham imunes a tudo. Caberá ao órgão colegiado atuar nesses
processos. Vamos ter que fazer urgentemente, antes que o Supremo tome uma
decisão contra esta Casa, contra aqueles que se excedem dos limites naturais de
palavras, opiniões e votos”.
É bem verdade que a autolimitação das Casas é possível e desejável. Os
excessos parlamentes devem ser contidos por quebra de decoro parlamentar,
na forma do art. 55, § 1º, da CF, mas jamais pelo múltiplo desrespeito ao art.
53 da CF, como vem ocorrendo, inclusive com a convalidação de prisões que
violam o estatuto dos congressistas.

4. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/sobre-as-medidas-de-
-busca-e-apreensao-no-congresso-nacional-05082020
5. https://www.youtube.com/watch?v=wiDDd7PfEbs

302
Adeus, imunidade parlamentar

Ocorre que todos esses movimentos acima narrados evidenciam, de for-


ma cada vez mais clara, a deterioração do ambiente de autonomia, destemor,
liberdade e transparência necessário ao livre exercício do mandato parlamen-
tar.
Tanto dentro, quanto fora das Casas Legislativas, está-se apagando a fron-
teira entre o que são “ameaças” e o que são “críticas fortes”, com linguagem pe-
sada, agressiva, carregada de insultos e palavrões, mas sem palavras de ordem
ou incitação concretas e, portanto, sem um “perigo claro e iminente” (clear
and present danger), parâmetro usado para limitar a liberdade de expressão
nos Estados Unidos.
Como já disse Voltaire: “Para saber quem controla sua vida, simplesmente
descubra quem você não tem permissão para criticar”. Assim a imunidade par-
lamentar vai se despedindo, e a língua – que seria o mais mortífero dos ins-
trumentos sem ponta, nas palavras do jornalista e escritor Shannon Fife – fica
contida por uma mordaça.

303
Perda do mandato é efeito
automático e irreversível
da condenação penal?
O debate da Constituinte e a jurisprudência do STF

O deputado ou senador que sofrer condenação criminal em sentença


transitada em julgado terá a perda do mandato decidida pela Câmara dos De-
putados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação
da respectiva mesa ou de partido político representado no Congresso Nacio-
nal, assegurada ampla defesa. Essa é a norma que se extrai do artigo 55, inciso
VI, e § 2º, da Constituição Federal. O referido § 2º teve a redação dada pela
EC 76/2013, que retirou a previsão originária no sentido de que tal votação
ocorreria por voto secreto, ou seja, a matéria foi desconstitucionalizada, como
já comentado aqui.1
A literatura costuma criticar o referido dispositivo constitucional por uma
aparente contradição entre o comando do caput do artigo 55 (“Perderá o man-
dato o Deputado ou Senador”) e o do seu § 2º (“…a perda do mandato será
decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal…”). Daí a con-
trovérsia sobre se a perda do mandato parlamentar é ou não efeito automático

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/a-votacao-secreta-nas-
-deliberacoes-do-poder-legislativo-09122020

305
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

e irreversível da sentença penal condenatória. Por isso, convém apresentar o


debate parlamentar travado na constituinte.
O artigo 55 da CF correspondeu ao artigo 68 do Projeto A (levado à vo-
tação no 1º turno) e a redação promulgada (com a inserção do inciso VI nas
hipóteses do § 2º) se deve à Emenda 2P01895-5, apresentada pelo constituinte
Antero de Barros, submetida à votação em destaque (a partir do Requerimen-
to nº 1.941, de autoria do constituinte Fernando Lyra). Toda a discussão pode
ser encontrada na Ata da 224ª Sessão da Assembleia Nacional Constituinte,
em 14 de março de 1988.2
Em resumo, ao encaminhar a votação, o constituinte Nelson Jobim explica
que se pretendeu diferenciar dois tipos de situações: de um lado, aquelas em
que a decretação da perda do mandato é competência do Plenário de cada uma
das Casas (e, portanto, é uma decisão política e discricionária); e, do outro
lado, as hipóteses em que a competência é da mesa de cada uma das Casas
(com efeito meramente declaratório e vinculado).
Justificando a emenda parlamentar para que, na hipótese de condenação
criminal, o ato seja de competência do Plenário, e não da mesa da respectiva
Casa, o constituinte Nelson Jobim indica que o contrário geraria, nas suas pa-
lavras, uma “hipótese absurda” e deu o seguinte exemplo: “um Deputado ou
um Senador que viesse a ser condenado por acidente de trânsito teria imedia-
tamente, como conseqüência da condenação, a perda do seu mandato, porque
a perda do mandato é pena acessória à condenação criminal” (p. 215). De fato,
como explicado, o ato da mesa seria meramente declaratório.
E segue o constituinte Nelson Jobim: “Visa a emenda a repor este equívo-
co e fazer com que a competência para a perda do mandato, na hipótese de
condenação em ação criminal ou em ação popular, seja do Plenário da Câ-
mara ou do Senado, e não de competência da mesa. Deste modo, tratar-se-ia de
decisão política a ser tomada pelo Plenário de cada uma das Casas, na hipótese
de condenação judicial de um Parlamentar, e não teríamos uma imediata entre
a condenação e a perda do mandato, em face da competência que está contida
no projeto. Portanto, faço um apelo aos Srs. Constituintes para que corrijam este
equivoco, a fim de que, nas hipóteses de condenação em ação criminal ou em
ação popular, a perda do mandato seja uma decisão soberana do Plenário da
Câmara ou do Plenário do Senado”.

2. https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/N015.pdf

306
Perda do mandato é efeito automático e irreversível da condenação penal?

Na sequência, endossando que a competência para definir a perda do


mandato em caso de condenação criminal deve ser do Plenário das Casas, ma-
nifestou-se o constituinte Bernardo Cabral: “O Plenário é que deve julgar se
um crime culposo, por acidente de trânsito, por atropelamento, implica perda
de mandato parlamentar”. Após mais encaminhamentos no mesmo sentido,
a emenda foi aprovada com 407 votos a favor, 16 contrários e seis abstenções.
Assim, à luz da intenção original dos constituintes, resta claro que a perda do
mandato não é efeito automático, nem irreversível, da condenação penal.
Inexiste no texto constitucional incompatibilidade entre a manutenção
do cargo de parlamentar e o cumprimento de uma prisão. No entanto, como
a Constituição acaba sendo o que o STF decide, cabe registrar as sucessivas
idas e vindas em relação ao artigo 55, § 2º, da CF. Foram operadas verdadeiras
“mutações constitucionais”.
Deve-se começar citando a AP nº 470 (caso do mensalão). Nesse julgado
de 2012, construiu-se o seguinte raciocínio: “O Supremo Tribunal Federal re-
cebeu do Poder Constituinte originário a competência para processar e julgar os
parlamentares federais acusados da prática de infrações penais comuns. Como
consequência, é ao Supremo Tribunal Federal que compete a aplicação das penas
cominadas em lei, em caso de condenação. A perda do mandato eletivo é uma
pena acessória da pena principal (privativa de liberdade ou restritiva de direi-
tos), e deve ser decretada pelo órgão que exerce a função jurisdicional, como um
dos efeitos da condenação, quando presentes os requisitos legais para tanto”.
Dessa forma, contrariando a literalidade do artigo 55, § 2º, da CF, deci-
diu-se que caberia ao poder Judiciário decidir, em definitivo, sobre a perda
do mandato, pois não caberia ao poder Legislativo deliberar sobre aspectos
da decisão condenatória criminal, emanada do Poder Judiciário, proferida em
detrimento de membro do Congresso Nacional. Ou seja, afastou-se a aplica-
ção do artigo 55, § 2º, da CF, quando a perda do mandato for decretada pelo
próprio poder Judiciário.
A questão da perda automática do mandato foi longamente debatida na
AP nº 470. A favor da tese, votaram os ministros Joaquim Barbosa, Luiz Fux,
Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello. Ficaram vencidos, entenden-
do que só a Casa Legislativa poderia decidir, os ministros Dias Toffoli, Ricardo
Lewandowski, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Com a decisão na AP nº 470 o
artigo 55, § 2º, da CF só seria aplicável no silêncio da sentença condenatória,
incidindo a previsão do artigo 92 do Código Penal.

307
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Já por ocasião do julgamento da questão de ordem na AP nº 396 (caso Na-


tan Donadon) em 26 de junho de 2013, entendeu-se que a perda do mandato
parlamentar de réu condenado pelos crimes de peculato e quadrilha derivaria
da suspensão dos direitos políticos enquanto durarem os efeitos da condena-
ção, com base no artigo 15, inciso III, da CF (“É vedada a cassação de direitos
políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de condenação criminal
transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”).
No caso concreto, após sua condenação em 28 de outubro de 2010 (quan-
do não era parlamentar), o réu juntou cópia de sua diplomação como depu-
tado federal (diploma expedido pelo TRE-RO em 21 de dezembro de 2010),
sustentando matéria de fato superveniente de ordem pública, cognoscível em
sede de segundos embargos de declaração, para reivindicar as prerrogativas
dos arts. 53, § 2º, e 55, § 2º, da CF.
A construção da ministra relatora Cármen Lúcia com base no artigo 15,
inciso III, da CF (uma norma geral) pretendia afastar o artigo 55, § 2º, da CF
(uma norma especial), no caso concreto, sob o argumento de que a suspensão
de direitos políticos seria inócua se o novo mandato parlamentar pudesse es-
vaziá-la. Ora, deve-se alertar aqui, o poder decisório das Casas Legislativas,
como constitucionalmente previsto, não pode ser interpretado como sinôni-
mo de esvaziamento da condenação.
Logo depois do julgamento da AP nº 396-QO, em 8 de agosto de 2013,
a questão voltou ao STF na AP nº 565 (caso Ivo Cassol) e, em razão da nova
composição da corte, retornou-se ao entendimento no sentido de que a deci-
são sobre a perda do mandato compete à Casa Legislativa, não sendo automá-
tica. Votaram nesse sentido Teori Zavascki, Luís Roberto Barroso, Dias Toffo-
li, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Ficaram vencidos os
ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Joaquim Barbosa.
Reforce-se que essa é uma decisão do plenário.
Nesse julgado, é interessante consignar o interessante debate travado entre
o ministro Luís Roberto Barroso e o então ministro presidente Joaquim Bar-
bosa às páginas 287-288:
“O senhor ministro Luís Roberto Barroso – Presidente, eu não vo-
tei, perdão, nessa questão da perda do mandato.
Então, gostaria de fazê-lo, para dizer que o meu posicionamento
doutrinário é o de que deveria decorrer logicamente do sistema
que a condenação implicasse a perda do mandato. Portanto, acho
que essa seria a solução natural.

308
Perda do mandato é efeito automático e irreversível da condenação penal?

Nada obstante isso, encontro obstáculo intransponível na literali-


dade do artigo 55, VI e seu parágrafo 2º. De modo que, embora,
ache que seja incongruente, a incongruência foi cometida pelo
Constituinte. E, portanto, como posso interpretar a Constituição,
mas, às vezes, infelizmente, não possa emendá-la…
O Senhor Ministro Joaquim Barbosa (Presidente) – Mas estamos
aqui para interpretar a Constituição e não para acrescer incon-
gruências àquelas já criadas pelo Constituinte.
O Senhor ministro Luís Roberto Barroso – Mas há uma… O texto
é literal, Presidente.
O Senhor ministro Joaquim Barbosa (Presidente) – Nós temos de
ter muito claras, ministro Barroso, as consequências das nossas
decisões, porque condenar um parlamentar a cinco anos ou quatro
anos e meio – cinco anos e meio, quatro anos e meio – e deixar,
à discricionariedade do Congresso, a perda ou não do mandato,
Vossa Excelência sabe no que resultará.
O Senhor ministro Luís Roberto Barroso – Não acho isso bom,
porém está na Constituição…
O Senhor ministro Joaquim Barbosa (Presidente) – Mas Vossa Ex-
celência estará aqui para presenciar a consequência disso.
O Senhor ministro Luís Roberto Barroso – É porque está na Cons-
tituição, e eu infelizmente não sou constituinte, não tive nenhum
votinho sequer, de modo que eu lamento que tenha essa disposi-
ção. Mas ela está aqui.”

No entanto, não vai demorar muito, e o ministro Barroso logo mudou sua
postura, como se indicará adiante.
Por agora, importa registrar que, como consequência desse julgado, em
28 de agosto de 2013, o caso anterior do Natan Donadon acabou sendo sub-
metido à Câmara dos Deputados, que manteve o mandato do deputado por
votação secreta (teriam sido necessários 257 votos para a cassação, mas houve
só 233 votos a favor, 131 contra e 41 abstenções). Esse episódio originou a
aprovação da EC nº 76/2013, já comentada aqui.3
Nesse mesmo dia 28 de agosto de 2013, o então presidente da Câmara dos
Deputados, Henrique Eduardo Alves, determinou a convocação do suplente,

3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/a-votacao-secreta-nas-
-deliberacoes-do-poder-legislativo-09122020

309
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

pois o deputado Donadon ficaria impossibilitado de desempenhar suas fun-


ções, considerando que a condenação foi de 13 anos de reclusão, com regime
inicial de cumprimento necessariamente fechado (nos termos do artigo 33, §
2º, alínea a, do CP, o condenado a pena superior a 8 anos inicia a execução no
regime fechado). Assim, não houve perda do mandato.
Ainda no mesmo dia, o deputado federal Carlos Sampaio chegou a im-
petrar mandado de segurança voltado para impedir que fosse levada a cabo a
deliberação do artigo 55, § 2º, da CF, no caso Donadon e, em seu lugar, fosse
imediatamente declarada a perda do mandato com base no artigo 55, § 3º, da
CF. A liminar no MS nº 32.326 foi concedida monocraticamente pelo ministro
Barroso para suspender os efeitos da deliberação do plenário da Câmara.
Deve-se registrar o seguinte trecho: “33. Este imbroglio relativamente à
perda de mandato parlamentar, em caso de condenação criminal, deve funcio-
nar como um chamamento ao Legislativo. O sistema constitucional na matéria
é muito ruim. Aliás, o Congresso Nacional, atuando como poder constituinte
reformador, já discute a aprovação de Proposta de Emenda Constitucional que
torna a perda do mandato automática nas hipóteses de crimes contra a Admi-
nistração e de crimes graves. Até que isso seja feito, é preciso resistir à tentação
de produzir este resultado violando a Constituição. O precedente abriria a
porta para um tipo de hegemonia judicial que, em breve espaço de tempo,
poderia produzir um curto circuito nas instituições” (p. 34).
Mesmo assim, tal decisão, lavrada no dia 2 de setembro de 2013 (portanto,
já depois da solução dada pela Câmara), registrou que a regra geral do artigo
55, § 2º, da CF, não se aplica em caso de condenação em regime inicial fechado
por tempo superior ao prazo remanescente do mandato parlamentar. Nessa
hipótese, a perda do mandato se dá como resultado direto e inexorável da con-
denação, sendo a decisão da Câmara vinculada e declaratória.
Como se vê, mesmo o ministro Barroso tendo declarado que não podia
“emendar” a Constituição na AP nº 565, e afirmado que era preciso “resistir
à tentação” no MS nº 32.326, na prática, seu entendimento no writ acabou
por acrescentar uma exceção não originalmente escrita no texto do artigo 55,
§ 2º, da CF. Essa tese embasou o julgamento da AP nº 694 (caso Paulo Feijó)
em 2 de maio de 2017, quando então passou a representar a posição da 1ª
Turma. Isso só foi possível porque entre 2014 e 2020 a competência penal do
STF era das turmas. Acertadamente, proposta do ministro Fux para mudar

310
Perda do mandato é efeito automático e irreversível da condenação penal?

o regimento interno foi aprovada devolvendo o julgamento das ações penais


ao plenário.4
A ratio da interpretação na AP nº 694 é a seguinte: a condenação que
impõe o cumprimento da pena em regime fechado é incompatível com o tra-
balho externo. Como a progressão de regime depende do cumprimento de, no
mínimo, 1/6 da pena, isso per se consumaria a ausência do congressista por 1/3
das sessões ordinárias da Casa Legislativa, que é uma causa de perda automáti-
ca do mandato, nos termos do artigo 55, inciso III, e § 3º, da CF.
Na prática, a tese usa o artigo 55, § 3º, da CF, para esvaziar o artigo 55, §
2º, da CF. Tal interpretação subverte o princípio hermenêutico da especiali-
dade das normas, enquadrando a hipótese fática de condenação criminal em
dispositivo normativo diverso do constitucionalmente previsto, e que trata de
matéria estranha, qual seja, a ausência injustificada do parlamentar a 1/3 das
sessões. Ora, os âmbitos normativos não se confundem, o constituinte clara-
mente conferiu tratamentos diferentes a cada situação.
Além de per se incorreto, o entendimento do STF subtrai a competência
constitucional das Casas Legislativas para decidir quanto à perda do mandato
e, ao mesmo tempo, impede que as Casas eventualmente considerem as faltas
justificadas diante do quadro fático, ou mesmo inexistentes, dado o advento da
tecnologia que permite a deliberação remota. Na melhor hipótese, antecipa os
efeitos jurídicos de fato ainda não ocorrido (ao tempo da condenação, não há
inassiduidade, mas mera expectativa de que ocorra no futuro).
Contra a referida decisão lançada na AP nº 694, em 21 de fevereiro de
2018, a mesa da Câmara dos Deputados ajuizou a ADPF nº 511,5 sob relato-
ria do ministro Barroso, o mesmo idealizador da tese impugnada. Na petição
inicial, cuja leitura aqui se recomenda altamente, sustenta-se que a referida
interpretação da 1ª Turma confunde exercício e titularidade de mandato parla-
mentar: “A imposição de pena privativa de liberdade impossibilita, em princípio,
o exercício do mandato, mas a decisão sobre a sua titularidade deve permanecer
com a Casa a que pertencer o Parlamentar condenado” (p. 14).

4. https://www.jota.info/stf/do-supremo/gilmar-para-fux-nao-e-assim-que-procede-presi-
dente-e-coordenador-entre-iguais-07102020
5. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=717900316&pr-
cID=5356406

311
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Argumenta-se, ainda, que a decisão condenatória transitada em julgado


pode ser desconstituída, ter sua eficácia suspensa ou ser mitigada de várias
formas, independentemente do regime inicial de execução da pena, como, por
exemplo: por meio de anistia, graça, indulto, superveniência de legislação mais
favorável, abolitio criminis ou revisão criminal. “Por essa razão, a preservação
da titularidade do mandato parlamentar possui uma utilidade intrínseca, ainda
que potencial, mesmo quando o exercício do mandato se encontre obstaculizado
pelo cumprimento de pena privativa de liberdade” (p. 14).
De acordo com a inicial, a perda do mandato como consequência neces-
sária da condenação acaba por estender a jurisdição criminal a bem jurídico (o
mandato popular) que não se encontra à sua disposição.
Nada obstante, em decisão publicada no último dia 11 de abril de 2022,
o ministro relator entendeu pela perda superveniente de objeto da ADPF nº
511, em razão do encerramento do mandato do então parlamentar em 31 de
janeiro de 2019, assim, em suas palavras, “não fazendo sentido o debate sobre
quem seria competente para declarar a perda do mandato do deputado” (p. 4).
Como se vê, o que não faz sentido é essa estratégia decisória. Inclusive,
contra essa última decisão, a mesa apresentou um agravo regimental,6 por
coincidência, no mesmo dia da condenação do deputado Daniel Silveira (AP
nº 1.044) a 8 anos e 9 meses de reclusão, o que reaviva toda a discussão sobre
o entendimento da AP nº 694, mostrando o caráter objetivo dessa discussão.7
Com a edição do decreto presidencial,8 a tese da AP nº 694 deixaria de
ser aplicável ao caso do deputado Daniel Silveira (pois já não haverá mais pri-
são em regime fechado), mas perdura o interesse em “devolver” ao Congresso
Nacional a decisão sobre o mandato.
Enfim, compete ao Legislativo, não ao Judiciário, decidir sobre a perda
do mandato parlamentar em razão de condenação criminal, que pela CF não
é efeito automático, nem irreversível, da sentença condenatória. Se Câmara e
Senado podem até mesmo sustar o andamento da ação penal (artigo 53, § 3º,

6. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=760304560&pr-
cID=5356406
7. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/04/lira-vai-ao-stf-para-congresso-definir-
-cassacoes-em-casos-como-o-de-daniel-silveira.shtml
8. https://www.jota.info/stf/do-supremo/graca-x-indulto-entenda-o-perdao-dado-por-bol-
sonaro-a-daniel-silveira-22042022

312
Perda do mandato é efeito automático e irreversível da condenação penal?

da CF), que é o mais, a fortiori, também podem o menos, que é afastar um


efeito secundário da condenação (a perda do mandato).

313
4 Ca p í tu lo
COMISSÕES PARLAMENTARES
DE INQUÉRITO (CPIS)
Pode o STF determinar a
criação da CPI da Pandemia?
O poder de agenda das Casas Legislativas e o
direito das minorias em jogo no MS n. 37.760

No último dia 11 de março de 2021, os senadores da República Alessandro


Vieira (Cidadania/SE) e Jorge Kajuru (Cidadania/GO) impetraram o Mandado
de Segurança – MS n. 37.760, que foi distribuído para o ministro Luís Roberto
Barroso, que, no mesmo dia, proferiu despacho registrando que analisará o pe-
dido liminar após a prestação de informações, “em razão da excepcionalidade
da apreciação de medidas de urgência sem a oitiva da parte contrária”.
O writ se volta contra o suposto ato ilegal do presidente do Senado Fede-
ral relativo ao processamento do Requerimento SF n. 21139.59425-24, apre-
sentado no último dia 15 de janeiro de 2021, de iniciativa do senador Randolfe
Rodrigues (Rede/AP), e subscrito por mais 30 senadores, para a instalação
de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para “apurar as ações e omissões
do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil e, em
especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de
oxigênio para os pacientes internados”.
Aduzem os impetrantes, em síntese, que o presidente do Senado Federal,
ao deixar (1) de enviar o requerimento à publicação e (2) de instalar a refe-
rida comissão, fere direito líquido o certo dos impetrantes, na condição de
integrantes da minoria parlamentar prejudicada, de constituir CPI, nos ter-
mos consubstanciados no art. 58, § 3º, da CF, e na jurisprudência do Supremo

317
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Tribunal Federal (STF), citando os MS n. 24.831, n. 24.849 e n. 26.441 e a ADI


n. 3.619.
Reclamam que já decorreram quase 2 meses da apresentação do Reque-
rimento SF n. 21139.59425-24 (e cerca de 40 dias da eleição e posse do atual
presidente da Casa) e que o pedido sequer foi dado como lido, não constando
no sistema do Senado Federal qualquer tramitação da CPI em tela.
Requerem, em sede liminar, que seja determinada “a adoção das provi-
dências para a efetiva instalação da CPI”, nos exatos termos do Requerimento
citado. Em caráter definitivo, pedem a confirmação da liminar.
É bem verdade que o art. 58, § 3º, da CF, estabelece: “As comissões parla-
mentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autori-
dades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas,
serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto
ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a
apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o
caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade
civil ou criminal dos infratores.”.
Da leitura do texto constitucional, portanto, seriam apenas 3 os requisitos
indispensáveis para a criação de uma CPI: 1) o requerimento subscrito por,
no mínimo, 1/3 dos membros das Casas, em conjunto ou separadamente; 2) a
indicação precisa do fato determinado a ser apurado (o objeto da investigação
parlamentar); e 3) a indicação do prazo certo, isto é, a previsão do tempo de
duração dos trabalhos.
Ao julgar o MS n. 26.441, o STF entendeu que a instalação de CPIs é “di-
reito público subjetivo das minorias parlamentares”, não sendo possível a uti-
lização de mecanismos regimentais para frustrar o exercício da prerrogativa
constitucional à investigação parlamentar.
No caso concreto, após a apresentação do requerimento para a instalação
da CPI do Apagão Aéreo (destinada a investigar as causas, consequências e os
responsáveis pela crise do sistema de tráfego aéreo brasileiro, desencadeada
após o acidente aéreo ocorrido no dia 29 de setembro de 2006, envolvendo um
Boeing 737-800 da Gol (voo 1907) e um jato Legacy da América Excel Aire, no
qual morreram 154 pessoas), o então presidente da Câmara dos Deputados, o
deputado Arlindo Chinaglia, paralisou os trabalhos em razão da questão de
ordem apresentada pelo líder do PT, o deputado Luiz Sérgio, que sustentou a
falta de requisitos para a criação da CPI.

318
Pode o STF determinar a criação da CPI da Pandemia?

A questão de ordem foi denegada pelo presidente, mas o deputado apre-


sentou recurso dirigido à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
(CCJ) da Casa, que emitiu parecer dando provimento ao recurso, parecer esse
que foi confirmado pelo plenário da Câmara (com 308 votos favoráveis, e 141
desfavoráveis), de modo que se deu razão ao autor da questão de ordem e, por-
tanto, desconstitui-se a decisão anterior de criação da CPI do Apagão Aéreo.
Ao deferir o pedido de medida liminar formulado no MS n. 26.441, o
ministro relator Celso de Mello não determinou a imediata instalação da CPI,
tendo-se limitado a afastar os efeitos da deliberação plenária da Câmara dos
Deputados que havia impedido a instalação da comissão, de modo a restituir a
validade do ato primeiro que havia reconhecido a criação da mencionada CPI.
É interessante notar que o próprio ministro Celso de Mello afirma textual-
mente em sua decisão: “não se revelar constitucionalmente viável, a esta Supre-
ma Corte, mediante simples provimento de caráter liminar, deferir ‘a instalação
e o funcionamento provisórios da CPI (…)’. É que não existem, em nosso sistema
político-jurídico, nem a instituição provisória, nem o funcionamento precário de
Comissão Parlamentar de Inquérito, cuja instalação, por isso mesmo, dependerá
da eventual concessão, pelo Supremo Tribunal Federal, deste mandado de segu-
rança.” (pp. 22-23).
Convém enfatizar, mais uma vez, a extensão da referida decisão liminar –
que se limitou a afastar os efeitos jurídicos definitivos e irreversíveis do ato que
desconstituía a criação da CPI, tendo apenas PERMITIDO, mas não OBRI-
GADO, a imediata instalação da comissão em questão –, já que esse ponto não
é captado com essa exatidão da simples leitura da ementa da decisão de mérito
do citado MS n. 26.441.
Destaque-se o seguinte fragmento desse último decisum: “Preenchidos
os requisitos constitucionais (CF, art. 58, § 3º), impõe-se a criação da Comis-
são Parlamentar de Inquérito, que não depende, por isso mesmo, da vontade
aquiescente da maioria legislativa. Atendidas tais exigências (CF, art. 58, § 3º),
cumpre, ao Presidente da Casa legislativa, adotar os procedimentos subsequentes
e necessários à efetiva instalação da CPI, não se revestindo de legitimação cons-
titucional o ato que busca submeter, ao Plenário da Casa legislativa, quer por
intermédio de formulação de Questão de Ordem, quer mediante interposição de
recurso ou utilização de qualquer outro meio regimental, a criação de qualquer
comissão parlamentar de inquérito.”.
Como se vê, a leitura isolada desse texto sem o respectivo contexto pode-
ria fazer crer que o STF teria poderes para determinar a instalação imediata

319
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

da CPI, o que não é caso, pois na verdade a competência da Corte se limita


a afastar os embaraços carentes de previsão constitucional apostos à criação
desses colegiados.
Do contrário, de modo obtuso, em lugar de contemplar as minorias par-
lamentares, acabar-se-ia devolvendo às maiorias a decisão final quanto à de-
terminada CPI (e, pior, sob o argumento destas no sentido de que não fora
observado o próprio art. 58, § 3º, da CF).
Então, o grande mérito do MS n. 26.441 foi esclarecer que o requerimento
de instauração das CPIs não necessita de ratificação por parte do plenário da
Casa Legislativa (cuja manifestação, no caso concreto, tinha culminado no ar-
quivamento da CPI do Apagão Aéreo). Ou seja, se o presidente da Câmara ou
do Senado reconhece que o requerimento preenche os requisitos constitucio-
nais, esse ato esgota o procedimento de criação, não cabendo qualquer recurso
para desconstituir essa decisão.
Essa mesma lógica foi a da decisão tomada na ADI n. 3.619, que declarou
inconstitucionais normas da Consolidação do Regimento Interno da Assem-
bleia Legislativa do Estado de São Paulo que fixavam a necessidade de aguar-
dar 24 horas de sua apresentação para submeter o requerimento propondo a
criação de CPI à discussão e votação no plenário.
Na prática, o regramento do Poder Legislativo estadual tinha criado con-
dições adicionais à criação de CPIs estaduais, não previstas no art. 58, § 3º,
da CF, norma que garantiu a instalação desses colegiados de investigação no
Legislativo federal independentemente de deliberação plenária.
Ainda quanto à ADI n. 3.619, reforce-se que também nessa oportunidade
a Corte se limitou a remover obstáculos inconstitucionais à criação de CPIs,
sem determinar a instalação de qualquer CPI em concreto.
Os casos fáticos do MS n. 26.441 e da ADI n. 3.619, portanto, são diferen-
tes da situação do MS n. 37.760 para a criação da CPI da Pandemia, na medida
em que ainda não existe qualquer encaminhamento do presidente do Senado
sobre o Requerimento SF n. 21139.59425-24, objeto desse último writ.
A agenda legislativa tem sido ocupada por pautas prementes e mais urgen-
tes, precisamente para debelar a crise acarretada pela pandemia da Covid-19,
além da votação da Lei Orçamentária, entre outras prioridades. Ademais o
Congresso Nacional está funcionando de forma remota (ou semipresencial),
não sendo possível o livre acesso do público às suas dependências. Inclusive, as

320
Pode o STF determinar a criação da CPI da Pandemia?

comissões e colegiados fracionários estão suspensos desde o dia 20 de março


de 2020, como já comentado aqui.1
Levar em consideração as circunstâncias, e respeitar as decisões do pre-
sidente do Senado quanto à ordem de preferência dos trabalhos legislativos,
não significam outorgar-lhe “poder de decisão” quanto à criação da CPI, mas
sim respeitar seu dever de zelar para que não haja desvios nas (e das) funções
legislativas.
Nesse contexto, a falta de apreciação da matéria até o presente momento
não implica qualquer ato omissivo com o intuito de provocar procrastinação
ou atraso deliberado. O fato é que simplesmente ainda não houve condições ou
tempo hábil para a leitura do requerimento em plenário para que a comissão
seja instalada.
Portanto, inexiste qualquer decisão concreta por parte do presidente do
Senado Federal com eficácia de negar a instalação da CPI da Pandemia. Esse
fato não é razão para que o STF substitua o ato que é competência do presiden-
te das Casas Legislativas. Assim, resta caracterizada a falta de interesse proces-
sual do MS n. 37.760, pois inexiste qualquer pretensão resistida.
Além disso, justamente para evitar que tais pedidos de investigação se
transformem em abuso de prerrogativa constitucional, em atuação de maneira
inconsequente, é preciso levar a sério a apreciação dos requerimentos de cria-
ção de CPI, para que sejam usadas com racionalidade.
Inclusive, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados – RICD, art.
35, § 4º, em boa hora limitou a 5 o número de CPIs funcionando simultanea-
mente. A lógica é, a uma só vez, evitar o mencionado abuso e impedir a disper-
são de atenções tanto em relação às demais funções e atribuições legislativas
previstas na CF (o Congresso Nacional não pode limitar sua atuação às CPIs),
quanto sobre os temas investigados (ou os trabalhos deixarão a desejar).
Embora o Regimento Interno do Senado Federal – RISF não conte com
limitador semelhante ao do RICD, convém que a Casa adote a mesma parci-
mônia, talvez até mais, dado o número inferior de parlamentares no Senado
para dar conta das CPIs.

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/que-falta-fazem-as-co-
missoes-no-poder-legislativo-25112020

321
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Isso, sem contar que existem outros pedidos de CPI que igualmente es-
tão aguardando a leitura para a respectiva instalação. Por exemplo, cite-se o
pedido para a criação da CPI da Crise Ambiental (com 29 assinaturas, para
“investigar queimadas na Amazônia e no Pantanal e desmonte da fiscalização
ambiental”).
Ademais, existem outras CPIs 3 cujos requerimentos já foram lidos no
Senado: 1) CPI do Desmatamento na Amazônia Legal; 2) CPI sobre a situação
das vítimas e familiares do acidente da Chapecoense; e 3) CPI das Queimadas
e Desmatamento na Amazônia Legal. Por fim, recorde-se de que há comissões
em funcionamento (embora suspenso em razão da pandemia), com destaque
para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI das Fake News.
O exame criterioso por parte do presidente do Senado, após a oitiva das
áreas técnicas da Casa Legislativa, é o que impede a instalação de CPIs temerá-
rias, como, por exemplo, a CPI dos Tribunais Superiores (que contava com 27
assinaturas, para “investigar o exercício exacerbado de suas atribuições por parte
de membros dos tribunais superiores do país”), cujo pedido foi arquivado pelo
então presidente do Senado, Davi Alcolumbre.
Voltando à petição inicial do MS n. 37.760, quanto às demais decisões do
STF citadas, vale registrar que tampouco são paradigmas para o caso da CPI da
Pandemia os MS n. 24.831 e n. 24.849 sobre a CPI dos Bingos.
Isso porque esses últimos acórdãos versam sobre o impasse na indicação
dos membros que comporiam a referida CPI. No caso concreto, o presidente
do Senado tinha solicitado aos líderes a indicação dos nomes, mas alguns dos
líderes se abstiveram de tal indicação, tendo o presidente da Casa se recusado
a suprir tal omissão.
Então, em síntese, o que se decidiu nesses MS n. 24.831 e n. 24.849 foi que
incumbe ao presidente da Casa Legislativa, enquanto dirigente da Mesa, e não
aos líderes partidários, viabilizar a composição e a organização das CPIs. Ora,
desnecessário comentar que não é esse o problema da CPI da Pandemia.
Seja como for, a partir da análise dessas decisões já tomadas pelo STF
quanto à criação de CPIs, é possível perceber que, ao menos até agora, não
existem acórdãos que tenham expressamente “ordenado ao Poder Legislativo a
criação de uma CPI”. Nem mesmo por ocasião da polêmica CPI da Petrobrás
registrou-se tamanha ingerência da Corte sobre o Poder Legislativo.
Na época, muito resumidamente, tinha sido apresentado um primeiro re-
querimento de criação da CPI da Petrobrás pelos partidos de oposição e, na

322
Pode o STF determinar a criação da CPI da Pandemia?

sequência, os partidos da base do governo apresentaram um segundo requeri-


mento de maior amplitude.
Diante disso, o então presidente Renan Calheiros (MDB/AL) entendeu
pela criação de uma só CPI, a partir dos fatos indicados no requerimento apre-
sentado por último (por uma CPI da Petrobrás supostamente “mais abrangen-
te”), e submeteu de ofício sua própria decisão à CCJ, que aprovou a criação da
CPI única mais ampla.
Contra essa decisão, foram apresentados os MS n. 32.885 e n. 32.899. Ao
apreciar o pedido de medida liminar, a ministra Rosa Weber – pode-se dizer
– “dirimiu a divergência legislativa” quanto à amplitude da CPI, tendo suspen-
dido o ato do presidente do Senado, decidindo em favor da criação da primeira
CPI (com o escopo mais restrito).
Mesmo nesse caso, subjaz à decisão da ministra a lógica de que o ato do
presidente do Senado, sob o pretexto de criar uma CPI única mais ampla, na
prática, implicava obstaculizar o direito das minorias parlamentares à insta-
lação da CPI “nos exatos moldes” pretendidos a partir do requerimento for-
mulado. Assim, o conteúdo da decisão foi, mais uma vez, predominantemente
desconstitutivo de embaraços à instalação da CPI.
Do ponto de vista estritamente processual, faltam requisitos para a con-
cessão da medida liminar pleiteada no MS n. 37.760 para determinar a criação
da CPI da Pandemia, na medida em que falta fumus boni iuris (como dito,
inexiste ato do presidente do Senado Federal que tenha implicado negação de
instalação da CPI ou qualquer vulneração do direito da minoria parlamentar),
tampouco estando presente qualquer periculum in mora (uma vez que a qual-
quer tempo a decisão pode ser tomada, sem que a pendência da criação nesse
momento acarrete lesão a direito dos impetrantes).
Além disso, a concessão de medidas liminares satisfativas como a pleitea-
da no MS n. 37.760 somente pode se dar em circunstâncias absolutamente ex-
traordinárias, o que não é o caso, pois não haveria o perecimento de qualquer
direito sem a liminar.
Vale registrar, ainda, que não é a primeira, nem será a última vez em que
parlamentares lançam mão do expediente em questão: o ajuizamento de man-
dado de segurança para forçar a criação de CPI. A judicialização da política,
no entanto, não deveria implicar o ativismo judicial, ainda mais em funções
essencialmente políticas e em substituição às Casas Legislativas.

323
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Por isso, a rigor, o MS n. 37.760 deveria receber a mesma sorte do MS n.


36.673, impetrado, coincidentemente, pelo mesmo senador Jorge Kajuru, com
petição inicial que trazia idêntica argumentação para compelir o presidente do
Senado Federal a criar a CPI das Confederações Esportivas em 2019. O citado
writ não foi conhecido, restando prejudicado exame da medida cautelar.
Em sua decisão, o ministro Celso de Mello, além de acolher a argumenta-
ção das informações apresentadas pela Advocacia do Senado Federal quanto
à falta de tempo hábil para a apreciação e a ausência de comportamento (da
autoridade apontada como coatora) apto a frustrar o exercício do direito cons-
titucional à investigação parlamentar por parte das minorias legislativas, ainda
fundamentou seu convencimento na impossibilidade de se interferir no po-
der de agenda do presidente do Senado em conduzir os trabalhos legislativos,
por se tratar de questão interna corporis, em respeito ao princípio da separação
dos poderes (art. 2º da CF).
Em outras palavras, o ministro Celso de Mello entendeu que não seria
possível subordinar a agenda de deliberações do Poder Legislativo de modo a
fixar a prioridade ou o momento da leitura e publicação do requerimento de
instalação de CPI.
É o que se infere do trecho: “Nem se diga que se revelaria possível, na espé-
cie, qualquer provimento viabilizador de intervenção jurisdicional em área sub-
metida ao poder de agenda do Presidente da Mesa Diretora do Senado Federal,
pois o exercício dessa prerrogativa institucional ajusta-se ao domínio estrito dos
atos “interna corporis”, circunstância essa que torna inviável a possibilidade ju-
rídica de qualquer atuação do Poder Judiciário, constitucionalmente proibido de
interferir na intimidade dos demais Poderes da República, notadamente quando
provocado a determinar a prática ou a ordenar a abstenção de atos desvestidos
de transcendência constitucional, como a ‘leitura e publicação’ de requerimento
subscrito, entre outros, pelo ora impetrante” (p. 6).
Na sequência, o ministro ainda citou o MS n. 22.494, pelo qual as matérias
relativas à interpretação de normas do regimento interno são imunes à crítica
judiciária, circunscrevendo-se no domínio interna corporis; o MS n. 21.374,
que entendeu não ser possível compelir o presidente da Câmara dos Deputa-
dos a acolher requerimento de urgência-urgentíssima para discussão e votação
imediata de projeto de resolução de autoria do impetrante; o MS n. 23.388,
reiterando que não cabe mandado de segurança para discutir deliberação da
Casa Legislativa quanto a processo por quebra de decoro parlamentar; e o MS

324
Pode o STF determinar a criação da CPI da Pandemia?

n. 24.356, segundo o qual as controvérsias puramente regimentais estão imu-


nes ao controle judicial.
Após ainda mais considerações sobre a autonomia do Parlamento, o mi-
nistro Celso de Mello concluiu que a situação concreta deveria esgotar-se na
esfera doméstica do próprio Poder Legislativo. Em suas palavras: “a ordem de
prioridade estabelecida nas agendas das Mesas Diretoras do Senado Federal e da
Câmara dos Deputados deve constituir matéria suscetível de apreciação e resolu-
ção pelas próprias Casas que integram o Congresso Nacional” (p. 10).
A decisão do ministro Celso de Mello no citado MS n. 36.673 parece im-
pecável e coerente com seu entendimento lavrado no célebre MS n. 27.931,
que alçou o poder de agenda a verdadeiro núcleo essencial da independência
entre os poderes (considerando constitucional a interpretação legislativa dada
ao art. 62, § 6º, da CF, que restringiu as espécies legislativas submetidas ao
trancamento da pauta de deliberações pelo excesso de prazo na tramitação de
medidas provisórias, conhecida como “doutrina Temer”).
No momento em que se escreve este texto (no dia 28 de março), ainda está
pendente a decisão do ministro Barroso quanto ao pedido liminar no MS n.
37.760 sobre a CPI da Pandemia. Se até a publicação deste texto a decisão ain-
da não tiver sido tomada, fica aqui a sugestão de que MS n. 36.673 sobre CPI
das Confederações Esportivas seja usado como parâmetro. E, em todo caso,
se o ministro Barroso resolver determinar “a instituição provisória da CPI da
Pandemia” por força de uma decisão liminar monocrática, permanece a crítica
à luz dos preceitos jurídicos e da jurisprudência do próprio STF.

325
Da constitucionalidade da
convocação de governadores e
prefeitos por CPIs federais
Autonomia federativa versus princípio
republicano na ADPF nº 848

Às vezes, no Brasil, surgem alguns mantras sem base jurídica sólida, que
acabam sendo repetidos de modo acrítico e, na falta de uma análise mais de-
tida, essas ideias se tornam verdadeiros dogmas. Esse parece ser o caso da dis-
cussão sobre a possibilidade de a CPI da Pandemia poder (ou não) convocar
governadores e prefeitos.
Os argumentos tradicionalmente invocados para sustentar a suposta falta
de amparo legal da convocação de chefes do Poder Executivo são, basicamente,
a afronta ao pacto federativo e a separação dos poderes.
Costuma-se citar, ainda, o art. 146, inciso III, do Regimento Interno do
Senado Federal – RISF, pelo qual não se admitirá comissão parlamentar de in-
quérito sobre matérias pertinentes aos Estados. Isso, como se esse dispositivo
regimental pudesse ser interpretado independentemente do que está na Cons-
tituição (ou mesmo para esvaziar previsões constitucionais), obnubilando a
hierarquia das normas.
A interpretação conforme, a sistemática e a apagógica têm passado lon-
ge dos raciocínios desenvolvidos sobre o tema, chegando-se a extrair como

327
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

conclusão a impossibilidade de convocação de autoridades estaduais ou muni-


cipais, a despeito da literalidade do art. 2º da Lei nº 1.579/1952.
De acordo com essa norma: “No exercício de suas atribuições, poderão as
Comissões Parlamentares de Inquérito determinar diligências que reputarem ne-
cessárias e requerer a convocação de ministros de Estado, tomar o depoimento
de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir indiciados, in-
quirir testemunhas sob compromisso, requisitar da administração pública direta,
indireta ou fundacional informações e documentos, e transportar-se aos lugares
onde se fizer mister a sua presença.”.
Para os fins da garantia de não-autoincriminação, é irrelevante a condição
do convocado, se indiciado ou testemunha, de modo que o direito ao silên-
cio do depoente é inarredável, independentemente do nomen juris usado pela
CPI. Cabe exclusivamente ao discernimento de quem está depondo invocar tal
garantia (e não ao de quem pergunta).
À luz de uma leitura constitucional (como não poderia deixar de ser, já
que todas as normas precisam ser interpretadas conforme a Constituição), a
única autoridade que não poderia ser convocada por uma CPI é o presidente
da República, em razão da imunidade que lhe é assegurada enquanto chefe de
Estado – e não de governo – nas normas do art. 50 e do art. 86 da CF.
O art. 50 estabelece que Câmara dos Deputados e o Senado Federal, ou
qualquer de suas comissões, poderão convocar Ministro de Estado ou quais-
quer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República
para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente deter-
minado. Houve silêncio eloquente quanto à convocação do chefe máximo.
As previsões do art. 86 estabelecem a imunidade à prisão cautelar do
presidente da República – que nas infrações comuns somente pode ser preso
após sentença condenatória executável –, bem como a imunidade temporária
à persecução penal por tais crimes não funcionais, praticados em momento
anterior ou no curso do mandato.
Com o art. 86, § 4º, da CF, não se assegurou uma irresponsabilidade penal
absoluta do presidente da República. Em relação aos crimes não funcionais,
basta cessar a presidência para sua responsabilização. E mesmo na vigência do
mandato presidencial, é possível a persecutio criminis por ilícitos penais prati-
cados in officio ou propter officium, desde que obtida previamente a autorização
da Câmara dos Deputados, conforme o art. 86, caput, pelo qual se exige que
a acusação seja admitida por 2/3 da Casa como condição de procedibilidade.

328
Da constitucionalidade da convocação de governadores e prefeitos por CPIs federais

Vale registrar que o STF já se manifestou no sentido de que tal norma é de


reprodução proibida por parte dos Estados-membros. De acordo com a ADI
nº 978, que contou com o ministro Celso de Mello como redator do acórdão:
“Os Estados-membros não podem reproduzir em suas próprias constituições o
conteúdo normativo dos preceitos inscritos no art. 86, §§ 3º e 4º, da Carta Fe-
deral, pois as prerrogativas contempladas nesses preceitos da Lei Fundamental
– por serem unicamente compatíveis com a condição institucional de chefe de
Estado – são apenas extensíveis ao presidente da República”.
O mesmo entendimento foi endossado pela Corte diversas vezes, como,
por exemplo, no Inquérito nº 3.983, da relatoria do ministro Teori Zavascki: “A
previsão constitucional do art. 86, § 4º, da Constituição da República se destina
expressamente ao chefe do Poder Executivo da União, não autorizando, por sua
natureza restritiva, qualquer interpretação que amplie sua incidência a outras
autoridades, (…)”.
A discussão foi sacramentada de vez com a ADI nº 5.540: “Não há funda-
mento normativo-constitucional expresso que faculte aos Estados possuírem em
suas Constituições estaduais a exigência de autorização prévia da Assembleia
Legislativa para o processamento e julgamento de Governador por crime comum
perante o Superior Tribunal de Justiça”.
Por ocasião da referida ADI nº 5.540, entendeu-se que a exigência de au-
torização prévia do Poder Legislativo foi prevista apenas para o presidente da
República, e não comporta interpretação extensiva aos governadores de Esta-
do, tratando-se de norma que excepciona a regra geral de ausência de condi-
ção de procedibilidade política para o processamento de ação penal.
De fato, como delineado no julgado, a exigência de autorização prévia de
Assembleia Estadual para o processamento e julgamento de governador de
Estado perante o STJ ofende o princípio republicano (art. 1º, caput, da CF), a
separação de Poderes (art. 2º, caput) e a igualdade (art. 5º, caput).
Inclusive, chama-se a atenção para uma das razões aduzidas pelo ministro
Barroso por ocasião dos debates na ADI nº 5.540 (na página 32): de 52 pedidos
de autorização formulados pelo STJ a parlamentos estaduais para a abertura de
ação penal contra governadores, somente 1 foi autorizado e 36 pedidos sequer
foram respondidos. Daí a justa virada quanto à autorização prévia do Poder
Legislativo (a Corte chegou a entender tratar-se de norma de imitação, ou seja,
de reprodução facultativa).

329
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Aqui, acredita-se que essa lógica é a chave para a compreensão da consti-


tucionalidade da convocação de governadores por CPIs federais.
Há uma clara tensão entre autonomia federativa e princípio republicano
que deve ser resolvida em favor deste último, de modo a permitir a responsa-
bilização política e jurídica dos governantes.
Em coluna passada,1 já se discorreu sobre a aplicação do princípio da
simetria envolvendo os processos legislativos, e, na prática, sustentar a impos-
sibilidade de a CPI federal convocar governadores e prefeitos é uma tentativa
de usar tal princípio da simetria para estender o regime jurídico do chefe do
Poder Executivo federal aos dos demais entes da federação.
Ocorre que o STF já entendeu que a CF conferiu tratamento diferenciado
apenas ao chefe do Poder Executivo federal e que somente a própria CF (e
não o constituinte decorrente nas Constituições estaduais) poderia estendê-lo
(ADI nº 1.021).
Seguindo por essa linha de raciocínio, não seria possível “blindar” gover-
nadores e prefeitos com uma sorte de privilégio político-funcional (o de não
poderem ser convocados para depor em CPI instaurada no plano federal) não
contemplado pela CF nem, a rigor, pela jurisprudência do STF.
Ora, a partir do momento em que governadores e prefeitos não contam
com o tratamento privilegiado do art. 86, §§ 3º e 4º, da CF, tampouco seria
extensível a tais autoridades a lógica que impede a convocação do presidente
da República por uma CPI.
Convém recordar, inclusive, que o desvio de verba sujeita a prestação de
contas perante órgão federal (no caso, o Tribunal de Contas da União – TCU)
atrai a competência da Justiça Federal para processar e julgar os prefeitos, con-
forme o enunciado da Súmula nº 208 do STJ, que reconhece o interesse da
União na matéria.
Nessa situação, não se cogita de afronta ao pacto federativo, até mesmo
porque o art. 49, inciso X, da CF, prevê que cabe ao Congresso Nacional fisca-
lizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder
Executivo. Essa atribuição é exercida também por intermédio das CPIs e nela
não existe afronta à separação de poderes.

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/ate-onde-vai-o-principio-
-da-simetria-nos-processos-legislativos-17032021

330
Da constitucionalidade da convocação de governadores e prefeitos por CPIs federais

A CPI da Pandemia foi criada para “Apurar, no prazo de 90 dias, as ações


e omissões do Governo Federal no enfrentamento da Pandemia da Covid-19 no
Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a
ausência de oxigênio para os pacientes internados; e as possíveis irregularida-
des em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos
públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de
serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos, se valendo para isso de recur-
sos originados da União Federal, bem como outras ações ou omissões cometidas
por administradores públicos federais, estaduais e municipais, no trato com a
coisa pública, durante a vigência da calamidade originada pela Pandemia do
Coronavírus “SARS-CoV-2”, limitado apenas quanto à fiscalização dos recursos
da União repassados aos demais entes federados para as ações de prevenção e
combate à Pandemia da Covid-19, e excluindo as matérias de competência cons-
titucional atribuídas aos Estados, Distrito Federal e Municípios.”.
No seu objeto, portanto, está incluída a possibilidade de investigação de
governadores e prefeitos (e naturalmente, outras autoridades estaduais e lo-
cais) por desvio de recursos federais, sendo certo que, nessa situação, não se
trata de investigação sobre assunto da autonomia dos entes federados, já que o
emprego dos valores repassados pela União em razão da pandemia é vinculado
(e não de livre gestão).
Portanto, o limite material das CPIs no plano federal (de não invadir as
áreas em que a CF atribuiu competência aos Estados ou Municípios) não se
confunde com a impossibilidade de investigação (e, portanto, também de soli-
citar o indiciamento) de governadores e prefeitos nos casos em que a investiga-
ção da CPI alcance condutas quanto ao emprego de verbas federais.
Em tendo sido admitida tal possibilidade de investigação (que está dentro
do escopo da CPI da Pandemia), não se afigura possível esvaziar essa atribui-
ção sustentando uma “imunidade perante CPI federal” inexistente no texto
constitucional e, ainda mais grave, contrária ao princípio republicado e à ratio
do regime jurídico dos chefes de Executivo estaduais e municipais.
Vale registrar que, caso se tratasse de investigação conduzida junto às
autoridades judiciárias, governadores e prefeitos não poderiam sustentar tais
argumentos para se abster de comparecer e colaborar, seja na qualidade de
indiciados, seja na qualidade de testemunhas. O art. 221 do CPP garante, no
máximo, a opção de ajuste quanto ao local, dia e hora em que serão inquiridos.
Além disso, pergunta-se: se foi admitido o objeto de investigação dos re-
cursos, e se em tese será permitido o mais (isto é, pedir o indiciamento), qual

331
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

é a razão para não se permitir o menos (a convocação para depor) perante a


CPI? Não faz o menor sentido rejeitar esse argumento a fortiori.
Por tudo o que já se expôs até agora, a separação de poderes e o pacto
federativo não servem como escudo para que governadores e prefeitos passem
incólumes à CPI da Pandemia. Nem mesmo o suposto “precedente” do STF
sobre a matéria se presta a tanto.
Em 2012, ao apreciar a medida cautelar no MS nº 31.689, para afastar a
possibilidade de o então governador Marconi Perillo ser convocado pela CPMI
do (Carlinhos) Cachoeira, o ministro Marco Aurélio limitou-se a usar o argu-
mento da autonomia dos Estados-membros, em decisão que beira à nulidade
por mácula ao art. 93, inciso IX, da CF, que exige que sejam fundamentadas
todas as decisões.
A decisão proferida em caráter monocrático simplesmente registrou:
“Este mandado de segurança ganha contornos preventivos. As razões expendidas
a título de causas de pedir surgem com relevância maior. Valores precisam ser
conciliados, preservando-se princípios caros à República Federativa do Brasil.
Em um primeiro exame, a interpretação sistemática do Texto Maior conduz a
afastar-se a possibilidade de comissão parlamentar de inquérito, atuando com os
poderes inerentes aos órgãos do Judiciário, vir a convocar, quer como testemu-
nha, quer como investigado, Governador. Os estados, formando a União indis-
solúvel referida no art. 1º da Constituição Federal, gozam de autonomia e esta
apenas é flexibilizada mediante preceito da própria Carta de 1988”.
O parágrafo acima transcrito foi o único que fundamentou a decisão limi-
nar para assegurar ao impetrante o não-comparecimento à CPMI, cujo subse-
quente encerramento dos trabalhos acarretou a perda superveniente do objeto
do MS nº 31.689, sem que jamais a referida decisão monocrática tivesse sido
ratificada pela Corte.
Diante dessa situação, será mesmo correto afirmar que o STF tem um
“entendimento consolidado” sobre o assunto? Seja como for, agora se afigura
uma oportunidade para a correção de rumos.
Na ADPF nº 848, os governadores do DF, AL, AM, AP, BA, ES, GO, MA,
PA, PE, PI, RJ, RS, RO, SC, SP, SE e TO se insurgiram contra a convocação
perante a CPI da Pandemia, argumentando violação ao pacto federativo, ao
princípio da separação dos poderes e, ainda, que a convocação de governado-
res para depor em CPI federal configuraria “verdadeira hipótese de intervenção
federal fora do rol constitucional autorizativo” (p. 8).

332
Da constitucionalidade da convocação de governadores e prefeitos por CPIs federais

Ora, se a violação dos princípios constitucionais sensíveis previstos no


art. 34, inciso VII, da CF (como a forma republicana e a prestação de contas
da administração pública, direta e indireta) autorizaria a intervenção da União
nos Estados e no DF (o mais) – o que, por seu turno, implicaria o afastamento
do governador –, por que não serviria para permitir a simples convocação por
CPI (o menos), ainda mais quando garantido o direito à não-autoincrimina-
ção?
Como narra a própria inicial da ação, o critério estabelecido foi o de con-
vocar os governadores dos Estados onde houve operação policial sobre os gas-
tos com a Covid-19. A fiscalização dos entes subnacionais, nesse sentido, é
medida que se impõe a uma CPI entre cujos objetos está a verificação sobre se
as ações dos administradores públicos federais (em repassar recursos) seriam
(ou não) suficientes ou adequadas.
No momento em que este texto está sendo escrito (no dia 06 de junho de
2021), ainda não saiu a decisão da ministra Rosa Weber, relatora da ADPF nº
848, mas estes comentários já servem de crítica, se aceitos os argumentos da
ação.
A eventual decisão no sentido da impossibilidade de convocação de go-
vernadores e prefeitos por CPI federal é um enorme desserviço que se presta
ao combate à corrupção e ao necessário accountability das ações de combate à
pandemia. Restaria esvaziado em parte o poder de investigação das CPIs, na
contramão da tendência de reforçar as capacidades federais.
Basta imaginar uma situação completamente indesejável (mas não impos-
sível de ocorrer na prática) de falência das instituições locais de investigar e
processar crimes. Recorde-se que esse foi um dos argumentos usados no jul-
gamento da ADI nº 5.540 e não à toa foi criada a previsão de federalização da
competência para julgar hipóteses de grave violação de direitos humanos, nos
termos do art. 109, § 5º, inserido pela EC nº 45/2004.
Uma decisão do STF que venha a limitar os poderes de investigação de
CPI federal – já que não poder convocar limita a colheita de acervo probató-
rio rumo a um eventual pedido de indiciamento – vai na contramão do lema
“quanto mais vigilância, melhor”. Até mesmo o efeito moralizador da simples
criação da CPI fica prejudicado com esse tipo de interpretação. Esse, sim, seria
um “precedente” que marcaria negativamente a atuação das CPIs doravante.
Considerando que os requerimentos foram regularmente apresentados e
aprovados pelo colegiado, uma decisão do STF que os invalide equivaleria à

333
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Corte poder escolher (no lugar dos próprios parlamentares que compõem a
CPI) quem pode ser ouvido (e quem não). Estar-se-ia diante de mais uma in-
tervenção judicial na seara legislativa: além de determinar a criação da CPI, o
STF passaria a conduzir os trabalhos, em substituição aos seus membros.
Ademais, na prática, criar-se-ia uma imunidade para governadores e pre-
feitos não prevista no texto original da CF. A construção, como visto, é frá-
gil: trata-se de interpretação que se vale do pacto federativo e da separação
dos poderes em detrimento do princípio republicano, e vai na contramão da
coerência com decisões passadas do próprio STF sobre o regime jurídico dos
chefes do Poder Executivo estaduais e municipais.

334
Precisam os membros das
CPIs ser imparciais?
MS nº 37.115 acusa CPMI das Fake News de
falta de falta de imparcialidade judicial

No MS nº 37.115,1 onze deputados federais sustentam que o presidente


e a relatora da CPMI das Fake News estariam atuando “de forma tendenciosa”,
desvirtuando o objeto de investigação da comissão e convertendo-a em “tri-
bunal de exceção”.
Justificam a impetração para proteger o direito líquido e certo (que supos-
tamente estaria sendo violado) ao desempenho de suas atividades legislativas.
Basicamente, consignam que as autoridades apontadas como coatoras esta-
riam incorrendo em “suspeição” ao participar de programas, conceder entre-
vistas e manifestar posicionamentos sobre as investigações.
A ocasião enseja uma oportunidade para assentar em que sentido os par-
lamentares que compõem comissões processantes com atribuições judiciali-
formes – como é o caso das CPIs e da comissão especial de impeachment –
precisam ser imparciais.
Vale registrar que a imparcialidade judicial – aplicável aos juízes que
atuam no Poder Judiciário – é princípio implícito (pois não conta com previsão

1. https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5904333

335
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

expressa no texto constitucional) que funciona como marco garantidor da in-


dependência judicial, pressuposto da atividade jurisdicional.
É, ao mesmo tempo, princípio e dever dos juízes. Isso porque a imparcia-
lidade judicial está correlacionada ao direito dos cidadãos (especificamente,
dos jurisdicionados) a julgamentos conforme o direito, livres de influências
externas, e não conforme as relações políticas, interesses e outras particulari-
dades e valores alheios ao direito, provenientes do sistema social ou inerentes
ao âmbito político.
Nesse sentido, são incorretas as associações entre a imparcialidade judi-
cial e uma decisão do juiz “conforme sua própria convicção” ou mesmo “equi-
distante”. A correta compreensão da imparcialidade judicial implica associá-la
à “obediência ao direito”, de forma neutra, com independência quanto às par-
tes envolvidas ou o objeto do processo, semelhante a um “terceiro”.
Disso é possível extrair da imparcialidade judicial uma dimensão objetiva
e uma dimensão subjetiva. A primeira, como já dito, decorre da obrigação de
decidir em conformidade com as razões que o direito fornece, as razões jurí-
dicas.
A segunda provém da obrigação de abstenção diante de situações que pu-
dessem ensejar conflito de interesses ou interpretações no sentido de que a
decisão judicial teria sido motivada de fato (isto é, “explicada”) por relações de
parentesco ou outros interesses, ainda que seu conteúdo (leia-se, a justifica-
ção) apresente conformidade ao direito.
Inclusive, é por isso que o princípio da imparcialidade judicial justifica
uma série de restrições impostas aos juízes, como, por exemplo, a proibição de
dedicar-se à atividade político-partidária (art. 95, parágrafo único, inciso III,
da CF) e a submissão a regras de impedimento e suspeição, conforme os arts.
144 e 145 do CPC.
Trata-se de uma forma de conferir ainda mais credibilidade às razões da-
das para as decisões judiciais. Portanto, em resumo, a imparcialidade judicial
se associa à ideia de que os únicos motivos dos juízes (para decidir tal como fa-
zem) são o cumprimento de seu dever de decidir conforme o direito, de modo
que a “explicação” coincida com a “motivação” (justificação) da decisão.
Ora, logo se vê que a lógica da atuação parlamentar é algo divergente dis-
so. Os congressistas necessariamente são filiados a partidos políticos e repre-
sentam os interesses de seus eleitores.

336
Precisam os membros das CPIs ser imparciais?

Ademais, não se sujeitam a regras de impedimento ou suspeição. Tudo


isso se mostra em parte incompatível com uma atuação que possa ser chamada
de “totalmente imparcial”.
No entanto, a relativa falta de imparcialidade dos membros das CPIs não
pode ser tomada como sinônimo de (ou autorização para) atuação por moti-
vos desonestos, espúrios ou ilegítimos.
Ou seja, a mencionada dimensão objetiva da imparcialidade está presente
na atuação parlamentar: as decisões tomadas no âmbito de uma CPI são (e
precisam ser) conforme o direito.
Além disso, na qualidade de investigadores, os membros das CPIs se atêm
aos fatos, isto é, não podem construir uma “realidade inexistente” ou, no caso
da CPMI das Fake News, incorrer no vício do próprio objeto que investigam:
as fake news. Assim, pode-se afirmar que os parlamentares são indiferentes à
verdade dos fatos investigados e, nesse ponto, novamente está presente a im-
parcialidade.
Na verdade, portanto, a falta de uma “total” imparcialidade dos parlamen-
tares significa apenas que o móvel da atuação tem também, em parte, essência
política, isto é, tem na base interesses, visões e valores dos partidos políticos
envolvidos na disputa dentro do Poder Legislativo.
Isso porque é característica das CPIs uma tensão irresolúvel entre o escla-
recimento objetivo dos fatos para os quais foram criadas e a avaliação política
dos resultados das investigações (do que foi ou vai sendo apurado) confor-
me as ideologias e critérios dos partidos políticos na arena parlamentar. Essa
deliberação é essencialmente valorativa e deve refletir a visão de mundo dos
partidos políticos e dos eleitores representados.
É que, em alguma medida, os membros das CPIs também funcionam
como atores políticos e, em consequência, partes interessadas. Mas, note-se
bem, o viés político fica cingido ao momento do julgamento, à avaliação, à
qualificação jurídica dos fatos levantados pelos trabalhos da CPI.
E, precisamente nesse ponto, tal “parcialidade” é atenuada pela “colegiali-
dade”, na medida em que tal decisão essencialmente política da CPI é tomada
em conjunto por todos os seus membros, após debates e deliberação. Aqui, a
decisão da CPI se dá no uso dos poderes e da competência constitucionalmen-
te atribuída no art. 58, § 3º, da CF.
Além disso, convém recordar que a proporcionalidade da representa-
ção partidária também está garantida nas CPIs (art. 58, § 1º, da CF), o que

337
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

só reforça a legitimidade de suas decisões como órgão fracionário do Poder


Legislativo.
Adicionalmente, é importante registrar que tal decisão aprova as razões
consignadas no relatório final, ou seja, um documento necessariamente escri-
to e motivado, o que igualmente afasta a possibilidade de arbitrariedades.
Como sabido, a decisão é arbitrária se não apresenta (ou não está calcada
na) devida justificação, tendo como único suporte a vontade, o capricho ou o
abuso da autoridade ou do tomador da decisão, sem fundamento técnico-jurí-
dico aceitável. Ora, esse não é o caso da decisão final das CPIs.
Nessa relativa falta de imparcialidade das CPIs, portanto, inexiste qual-
quer mácula à Constituição, à legalidade ou ao Estado de direito, na medida
em que o Poder Legislativo está desenhado precisamente para gerir o dissenso
inerente à atuação política, sendo as CPIs o maior exemplo de garantia do di-
reito das minorias parlamentares.
Nesses moldes, tal atuação parlamentar “parcial”, além de encontrar res-
paldo legal, é justamente o que se espera de uma CPI, sobretudo quando cria-
da para tratar de assunto polêmico. Isso porque a comissão, mesmo sendo de
investigação, não deixa de ser “parlamentar”, isto é, voltada para finalidades
próprias ao Parlamento.
E o componente de conflito político-partidário é inerente no quadro de
um Poder Legislativo democrático e pluralista, inclusive como decorrência da
atuação das CPIs. Justamente por isso o relatório final da CPI (que eventual-
mente venha a sugerir responsabilidades) jamais pode ser equiparado a uma
sentença judicial, devendo ser encaminhado a outras autoridades para as devi-
das providências (art. 6º-A da Lei nº 1.579/52).
O entendimento aqui explicitado – no sentido de que não se exige im-
parcialidade dos parlamentares – conta com a chancela do próprio STF. Por
ocasião do MS nº 21.623,2 o STF entendeu que não há que se falar em apli-
cação das regras de impedimento e suspeição aos senadores da República na
qualidade de julgadores participantes do processo de impeachment.
A mesma argumentação embasou o entendimento tomado na medida
cautelar na ADPF nº 378,3 quando se dispensou a imparcialidade por parte

2. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=85565
3. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10444582

338
Precisam os membros das CPIs ser imparciais?

do presidente da Câmara dos Deputados, que não se submete às regras de


impedimento e suspeição, cuja aplicação analógica seria impossível no rito da
Lei nº 1.079/50.
Concluiu-se que parlamentares estão autorizados a exercer suas funções,
inclusive de fiscalização e julgamento, com base em suas convicções político-
-partidárias, devendo buscar realizar a vontade dos representados.
A inexigibilidade de imparcialidade serviu, inclusive, para considerar
constitucional o próprio rito de votação adotado pela comissão especial sobre
a abertura do processo de impeachment. Ou seja, não há que se perquirir pela
imparcialidade sequer quanto ao procedimento adotado, se os trabalhos têm
respaldo legal, conforme se infere da medida cautelar na ADI nº 5.498.4
A mesma lógica, portanto, deve ser aplicável à condução dos trabalhos
no âmbito da CPMI das Fake News. Não cabe cobrar imparcialidade de seus
membros ou de sua atuação, desde que pautados em conformidade com as
regras constitucionais, legais e regimentais.
De fato, não se afigura razoável exigir atuação isenta dos parlamentares
que compõem CPIs, cujas criação, instauração e funcionamento são essencial-
mente contramajoritários, a exigir posicionamento público explícito e claro
por parte de seus membros.
Como são instrumentos de fiscalização essenciais para as atividades par-
lamentares, que viabilizam o controle de competência do Parlamento, é pre-
ciso que se conceda espaço para as CPIs desempenharem seu múnus, o que
naturalmente inclui as ações de seus membros, inclusive por intermédio de
opiniões manifestadas no exercício de suas funções em entrevistas concedidas
nos meios de comunicação e perante as mídias sociais, sob pena de esvazia-
mento da garantia consubstanciada no art. 53, caput, da CF, pelo qual os de-
putados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas
opiniões, palavras e votos.
Assim, não só inexiste qualquer incompatibilidade, como seria impossível
dissociar o desempenho da função legislativa e a atuação nos cargos de presi-
dente e relatora da CPMI das Fake News.
O fato de os parlamentares ocuparem temporariamente cargos na CPI não
retira seus direitos de emitir declarações em livre expressão de suas convicções

4. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12872463

339
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

político-ideológicas, sobretudo em matéria afeta ao poder de controle do Par-


lamento sobre a administração do país.
O presidente e a relatora da CPMI das Fake News não podem ter menos
direitos que outros parlamentares que não ocupem tais cargos e essa condição
jamais poderia servir para afastar a liberdade de expressão inerente ao man-
dato eletivo.

340
Podem as CPIs quebrar o sigilo
telemático das redes sociais
de seus investigados?
Ainda que não consiga os dados de que necessita,
CPMI das Fake News não deve acabar em pizza

No último dia 13 de março, o Presidente da CPMI das Fake News notifi-


cou as redes sociais Facebook e Twitter para advertir que o não cumprimento
das solicitações formuladas pela comissão atrai a incidência dos crimes de de-
sobediência e obstrução de investigação. As duas empresas vêm apresentando
uma série de objeções para não fornecer as informações solicitadas pela co-
missão parlamentar.
A CPMI das Fake News foi criada a partir da aprovação do Requerimen-
to n. 11, de 2019, com a finalidade de investigar os ataques cibernéticos e a
utilização de perfis falsos nas redes sociais para influenciar os resultados das
eleições 2018, esquema que ficou conhecido como “Mensalinho do Twitter”.1
Os trabalhos de investigação da CPMI das Fake News dependem de que
Facebook e Twitter forneçam as informações e dados das contas pessoais dos
investigados, pinçados a partir dos perfis que postaram mensagens de conteú-
do ofensivo, difamatório, injurioso e calunioso. A CPMI não chegou a esses

1. https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?0&codcol=2292

341
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

nomes de forma aleatória, mas a partir das próprias mensagem enviadas pu-
blicamente nas redes sociais.
A quebra do sigilo telemático pleiteada pela CPMI das Fake News tem
indiscutível natureza de indagação probatória e não se inclui na esfera de
competência dos magistrados e tribunais, à semelhança do entendimento já
consolidado em relação aos sigilos fiscal, bancário e telefônico. Nesse sentido,
por exemplo, cite-se o MS n. 23.452, em que o STF reconheceu que as CPIs
podem, por autoridade própria, determinar a quebra do sigilo de dados fiscais,
bancários e telefônicos.
Somente quanto à interceptação telefônica a Constituição estabeleceu
cláusula de reserva de jurisdição (CF, art. 5º, inciso XII), a qual não pode ser
estendida razoavelmente à situação em que se pleiteia a obtenção, junto às re-
des sociais, dos dados cadastrais do investigado que informam qualificação
pessoal, filiação e endereço, bem como a confirmação da autenticidade de en-
vios verificáveis publicamente. As mensagens postadas nas redes sociais não
se equiparam à comunicação com vistas à aplicação analógica da regra cons-
titucional restritiva do art. 5º, inciso XII.
Diferentemente de uma interceptação telefônica, não se pretende mo-
nitorar o envio de mensagens em tempo real nas redes sociais, mas sim
unicamente proceder ao account preservation, consistente na preservação do
conteúdo disponível das contas nas redes sociais, juntamente com o histórico
de conversas, lista de contatos, histórico de páginas acessadas, relação de se-
guidores, histórico de login efetuado, contendo o horário (timestamp) comple-
to com fuso horário e os endereços de IPs utilizados para esses logins com a
porta lógica (source port), incluindo a preservação do conteúdo eventualmente
apagado da conta.
Nesse sentido, o pedido de informações junto às empresas Facebook
e Twitter deve ser equiparado a um pedido de quebra do sigilo das infor-
mações telefônicas, o qual, como já dito, é possível de ser determinado pela
CPMI, por autoridade própria, conforme pacífica jurisprudência do STF.
O alcance da expressão constitucional que confere às CPIs “poderes de
investigação próprios das autoridades judiciais” (art. 58, § 3º) se dá em função
das medidas necessárias aos seus trabalhos de investigação e apuração dos fa-
tos para os quais foram criadas. O paralelo é a atividade do “juiz de garantia”.
Como não poderia deixar de ser, a CPI não detém poderes ilimitados,
nem absolutos, de forma que sua competência se limita à prática de atos

342
Podem as CPIs quebrar o sigilo telemático das redes sociais de seus investigados?

relacionados à investigação, devendo sempre respeitar o postulado da reserva


de jurisdição. Assim, os poderes da CPI não podem ostentar conteúdo juris-
dicional, de ius persequendi ou diligências para cuja realização a Constituição
tenha atribuído imposição explícita de que somente podem ser determinadas
por decisão de juiz.
Além disso, impõe-se às CPIs motivar a necessidade da diligência, cuja
decisão deve vir devidamente fundamentada na existência de indícios aponta-
dos em face dos investigados. A necessidade de motivação, no entanto, não
se confunde com obrigação de saturar a justificação do ato, sendo certo que
a motivação sucinta não se confunde com ausência de motivação2. A su-
posta exigência de motivar exaustivamente não se mostra razoável diante
das capacidades institucionais e da própria lógica de funcionamento das
CPIs, cuja atuação temporal por no máximo 180 dias e orçamento limitado
impingem um ritmo dinâmico aos trabalhos.
De acordo com uma das informações prestadas, o Facebook Brasil só “ven-
de publicidade” e quem controla e hospeda os dados é o Facebook Inc., sediado
em Palo Alto, na Califórnia. A lei americana impediria o compartilhamento
de dados, em especial o Stored Communications Act, especialmente o artigo
2702 (18 U.S.C. § 2702),3 que veda a divulgação de dados correspondentes
a conteúdo das comunicações. Assim, o Facebook Brasil entende que só pode
entregar à CPMI das Fake News os dados de registro (log data), nome e e-mail,
mas não o endereço físico associado ao IP. Alega o Facebook Brasil que essa
informação poderia ser obtida pela comissão via provedor de internet.
Ainda de acordo com a argumentação do Facebook Brasil, seria necessário
usar o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da
República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da Améri-
ca – MLAT, promulgado pelo Decreto n. 3.810/2001, cuja validade teria sido
garantida pela liminar da ADC n. 51.4 Ocorre que as CPIs correspondem
ao importante instrumento democrático do direito investigação dos setores

2. A suficiência da motivação da CPMI das Fake News foi questionada no MS n. 36.932,


tendo sido concedida medida liminar pelo Ministro Roberto Barroso: http://portal.stf.
jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15342359258&ext=.pdf e http://portal.stf.jus.br/
processos/downloadPeca.asp?id=15342379414&ext=.pdf
3. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/uscode/text/18/2702
4. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340132050
&ext=.pdf

343
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

minoritários da sociedade representados pelas minorias parlamentares, cuja


atuação independe de autorização ou homologação judicial.
Toda a situação acima narrada se mostra surreal. Como é possível as redes
sociais terem dados cadastrais de seus usuários brasileiros e as autoridades
públicas se verem impedidas de acessar essas informações? Isso, especialmente
quando esses usuários são suspeitos de praticar ilícitos em território nacional.
Cabe lembrar que as CPIs são instrumentos de exercício do poder de
fiscalização inerente ao Poder Legislativo, que têm por objetivo primordial a
investigação de fatos para o aprimoramento da legislação pátria e, por conse-
guinte, para o aperfeiçoamento das instituições e da sociedade.
Tanto é assim que eventuais fatos delituosos descobertos pelas CPIs de-
vem ser comunicados ao Ministério Público para que sejam tomadas as me-
didas cabíveis junto ao Poder Judiciário. Ao Poder Legislativo caberá propor
(por meio das conclusões do relatório final da CPI) melhorias na legislação
para corrigir os fatos constatados no curso das investigações.
Por tudo isso, já se podem entrever os indícios de que, ainda que não
consiga os dados de que necessita, a CPMI das Fake News não vai acabar em
pizza. No relatório final, a comissão terá a oportunidade de: 1) recomendar a
inserção de forma expressa na Lei n. 1.579/62 – que dispõe sobre as CPIs – do
poder das comissões parlamentares para, manu propria, determinar a quebra
do sigilo telemático; e, especialmente 2) propor uma regulação mais clara so-
bre a guarda e acesso aos “dados brasileiros”, isto é, produzidos por usuários
do país. Definitivamente, o atual armazenamento dos dados somente no es-
trangeiro – e, ainda mais grave, de forma imune à legislação brasileira – é algo
incompatível com a soberania nacional e o atual cenário institucional do país.
Cabe prisão em flagrante por ordem de CPI com funcionamento re-
moto?
O falso testemunho e os ‘poderes de investigação próprios das autoridades
judiciais’
Conforme a regra constitucional expressa do art. 58, § 3º, as comissões
parlamentares de inquérito (CPIs) terão poderes de investigação próprios das
autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas
Casas.
De acordo com a regulamentação infraconstitucional da Lei n. 1.579/62,
que dispõe sobre as CPIs, com redação dada pela Lei n. 13.367/16, tais po-
deres de instrução incluem a possibilidade de determinação de uma série de

344
Podem as CPIs quebrar o sigilo telemático das redes sociais de seus investigados?

diligências que a CPI reputar necessárias, como, por exemplo: 1) requerer a


convocação de Ministros de Estado, 2) tomar o depoimento de quaisquer au-
toridades federais, estaduais ou municipais, 3) ouvir os indiciados, 4) inquirir
testemunhas sob compromisso, 5) requisitar da administração pública direta,
indireta ou fundacional informações e documentos, e 6) transportar-se aos
lugares onde se fizer mister a sua presença (art. 2º). Trata-se esse de rol mera-
mente exemplificativo.
Isso porque, nas palavras do ministro Paulo Brossard no HC n. 71.039:
“(…) Ao poder de investigar corresponde, necessariamente, a posse dos meios
coercitivos adequados para o bom desempenho de suas finalidades; eles são dire-
tos, até onde se revelam eficazes, e indiretos, quando falharem aqueles, caso em
que se servirá da colaboração do aparelho judiciário. Os poderes congressuais, de
legislar e fiscalizar, hão de estar investidos dos meios apropriados e eficazes ao
seu normal desempenho. O poder de fiscalizar, expresso no inciso X do art. 49 da
Constituição, não pode ficar condicionado a arrimo que lhe venha a dar outro
Poder, ainda que, em certas circunstâncias, ele possa vir a ser necessário.”.
Pela lógica do referido acórdão, concede-se autoexecutoriedade às deci-
sões das CPIs, isto é, os meios necessários ao desenvolvimento de suas atri-
buições e finalidades de investigação, como a intimação de testemunhas, a
requisição de papéis, diretamente, sem a necessidade de colaboração de outro
Poder.
Em outro trecho do citado HC n. 71.039, afirma o ministro Brossard: “Di-
ficilmente a comissão poderia cumprir sua missão se, a todo momento e a cada
passo, tivesse de solicitar a colaboração do Poder Judiciário para intimar uma
testemunha a comparecer e a depor. (…) Se a comissão parlamentar de inquérito
não tivesse meios compulsórios para o desempenho de suas atribuições, ela não
teria como levar a termo os seus trabalhos, pois ficaria à mercê da boa vontade
ou, quiçá, da complacência de pessoas das quais dependesse em seu trabalho.
Esses poderes são inerentes à comissão parlamentar de inquérito e são implícitos
em sua constitucional existência. Não fora assim e ela não poderia funcionar
senão amparada nas muletas que lhe fornecesse outro Poder, o que contraria a
lógica das instituições. (…)”.
A partir disso, tem-se que as CPIs têm autonomia para garantir a efetiva-
ção de suas decisões – sobretudo em caso de recalcitrância de quem deve aten-
der os pedidos, especialmente quanto ao envio de documentos e informações
–, o que inclui a competência para proceder diretamente a medidas de busca

345
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

e apreensão, sem necessidade de requerer previamente sua adoção junto ao


Poder Judiciário.
Esse entendimento consta do já mencionado HC n. 71.039, tendo sido rei-
terado posteriormente no MS n. 21.872, quando o STF reconheceu a possibi-
lidade de a CPI do Orçamento determinar busca e apreensão no domicílio de
investigado. Também o STJ, no HC n. 3.985, já reconheceu o poder de realizar
busca e apreensão às CPIs e, consequentemente, a licitude das provas advindas
dessa providência.
Além disso, convém recordar que as CPIs também podem, por autoridade
própria, determinar a quebra do sigilo de dados fiscais, bancários e telefônicos.
Nesse sentido, por exemplo, confira-se o julgamento do MS n. 23.452, um clás-
sico em matéria de poderes das CPIs.
A possibilidade de a CPI quebrar o sigilo telemático das redes sociais de
seus investigados (já defendida aqui)5 pende de confirmação por parte do
STF. O fundamento legal desse poder da CPI seria a aplicação, por analogia,
do art. 17-B da Lei n. 9.613/98, pelo qual a autoridade policial e o Ministério
Público terão acesso, exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que
informam qualificação pessoal, filiação e endereço, independentemente de au-
torização judicial, mantidos, entre outros, pelos provedores de internet.
As empresas então destinatárias (Facebook e Twitter) deixaram de atender
aos pedidos realizados pela CPMI das Fake News para que fornecessem os
dados cadastrais dos usuários de suas plataformas, arguindo a existência de
liminares em ações ajuizadas por investigados (como o MS n. 36.932), bem
como sob o argumento de óbice procedimental, porque supostamente incidi-
ria o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre Brasil e Estados
Unidos da América (MLAT), promulgado pelo Decreto n. 3.810/2001, objeto
de discussão na ADC n. 51, ainda pendente de julgamento.
Ocorre que o MLAT é inaplicável, em primeiro lugar, porque se está dian-
te de investigação no âmbito do Poder Legislativo, não de processo jurisdicio-
nal, sendo certo que o mencionado acordo internacional versa sobre “Assis-
tência Judiciária em Matéria Penal”. Ora, como já dito, as CPIs têm poderes
autônomos, atribuídos pelo próprio texto constitucional, independentemente
de ordem ou intervenção judicial.

5. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/podem-as-cpis-quebrar-o-sigilo-telema-
tico-das-redes-sociais-de-seus-investigados-24032020

346
Podem as CPIs quebrar o sigilo telemático das redes sociais de seus investigados?

Em segundo lugar, como consequência do anterior, observa-se a desne-


cessidade de expedição de “carta rogatória” no âmbito das CPIs, sob pena de
subversão dos poderes de investigação constitucionalmente atribuídos nos
termos do art. 58, § 3º, da CF. Além disso, os pedidos de informações oriun-
dos das CPIs não dependem de qualquer tipo de “homologação” por quem
quer que seja, dispensando também qualquer tipo de intervenção diplomática,
como se estabelece no MLAT.
Seja como for, essa é uma discussão que interessa mais à CPMI das Fake
News, cujo funcionamento permanece suspenso, do que propriamente à CPI
da Pandemia.
Como não poderia deixar de ser, a CPI não detém poderes ilimitados,
nem absolutos, e nada obstante a chancela do STF quanto ao cabimento de
busca e apreensão realizada diretamente pela CPI, independentemente de pré-
vio requerimento junto ao Poder Judiciário, a possiblidade de decretação de
prisão no âmbito das CPIs segue uma lógica diferente, devendo sempre respei-
tar o postulado da reserva de jurisdição.
Assim, os poderes da CPI não podem ostentar conteúdo jurisdicional ou
conter diligências para cuja realização a CF tenha atribuído imposição explíci-
ta de que somente podem ser determinadas por decisão de membro do Poder
Judiciário. A impossibilidade decorre do princípio da separação dos poderes
inscrito no art. 2º da CF.
Nesse sentido, por exemplo, o STF já entendeu que não é possível às CPIs
a decretação de indisponibilidade de bens de particular, por se tratar de provi-
mento de natureza cautelar, não sendo ato de instrução (MS n. 23.466).
É por isso que as CPIs não podem determinar medidas sobre as quais
incide a cláusula constitucional da reserva de jurisdição, como a interceptação
telefônica, nos termos do art. 5º, inciso XII, da CF, e a decretação da prisão de
qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância.
O art. 5º, inciso LIV, da CF, estabelece “ninguém será privado da liberdade
ou de seus bens sem o devido processo legal”, sem prejuízo do que prevê o art.
5º, inciso LXI, pelo qual “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por
ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos
casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;”.
A possibilidade de decretação de prisão em flagrante por crime cometido
nas dependências do Congresso Nacional – o que inclui, portanto, o âmbito de
atuação das CPIs – também já foi reconhecida pelo próprio STF no enunciado

347
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

n. 397 da Súmula da própria Corte: “O poder de polícia da Câmara dos Depu-


tados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências,
compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a reali-
zação do inquérito.”.
A partir dos dispositivos acima, tem-se que os parlamentares integrantes
de uma CPI têm poderes – dentro de sua competência para a prática de atos
relacionados à investigação – para decretar a prisão em flagrante daquele que
comparece à sessão da comissão, vislumbrando-se desde já duas situações que
hipoteticamente ensejariam o exercício dessa prerrogativa.
Em primeiro lugar, o crime de falso testemunho do art. 342 do CP (“fazer
afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador,
tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial,
ou em juízo arbitral”) ou o tipo específico do art. 4º, inciso II, da Lei n. 1.579/52
(“fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito,
tradutor ou intérprete, perante a CPI”), sem prejuízo do direito ao silêncio ou à
não-autoincriminação (art. 5º, inciso LXIII, da CF).
Aqui, o crime envolve a conduta de distorcer a verdade – seja com o intui-
to de beneficiar, seja com o propósito de prejudicar outrem (no caso, o réu ou
o investigado) –, bem como a de não se pronunciar sobre a verdade, mesmo
sabendo da relevância de fatos. Trata-se de crime formal, que se consuma no
momento do término do depoimento e no local em que este foi prestado.
Em segundo lugar, o crime de desacato do art. 331 do CP (“desacatar fun-
cionário público no exercício da função ou em razão dela”) também poderia
ensejar a prisão em flagrante no âmbito das CPIs. Naturalmente, isso se daria
nos moldes da decisão do STF na ADPF n. 496 (portanto, restaria afastada a
possibilidade de a CPI se valer da prisão em flagrante para ofensas praticadas
via imprensa ou pelas redes sociais).
No momento em que este texto está sendo escrito (no dia 25 de abril),
ainda não há confirmação sobre qual será a modalidade de funcionamento da
CPI da Pandemia (presencial, remota ou semipresencial).
Até agora, sabe-se apenas que a primeira reunião da CPI da Pandemia
será de modo semipresencial, com a instalação de urnas eletrônicas na área
externa ao plenário da comissão e na garagem coberta do Senado (em siste-
ma drive-thru), como foi feito na eleição do presidente da Casa e, antes, na

348
Podem as CPIs quebrar o sigilo telemático das redes sociais de seus investigados?

retomada das sabatinas de autoridades, e já explicado aqui.6 Os parlamentares


que não estejam presentes fisicamente podem pedir a palavra pelo Sistema de
Deliberação Remota (SDR).
No entanto, dada a orientação de que a CPI da Pandemia deverá funcio-
nar com distanciamento social (com limitação de cadeiras disponíveis) e de
forma a garantir limite físico de segurança, pode-se imaginar que ao menos
algumas inquirições possam vir a ser colhidas a distância.
Nessa hipótese de depoimento por videoconferência, e na eventualidade
de o depoente incorrer em algumas das situações em que caberia prisão em
flagrante, ainda assim poderia a CPI determinar essa prisão de modo remoto?
A resposta parece ser sim. O simples fato de o depoente estar fisicamente
fora das dependências do Congresso Nacional não seria um empecilho, já que
a “presença virtual” juridicamente continua sendo presença, especialmente
nos tempos de pandemia.
Ora, a possibilidade de interrogatório por videoconferência foi prevista
pela Lei n. 11.900/2009, que modificou o Código de Processo Penal – CPP e
previu a possibilidade do réu preso ser interrogado por sistema de videocon-
ferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em
tempo real.
Com o advento da pandemia, também o Poder Judiciário se viu obrigado
a adotar medidas de distanciamento social e suspensão ou restrição do expe-
diente presencial, tendo o Conselho Nacional de Justiça – CNJ regulamentado
a realização de audiências virtuais por videoconferência nas Resoluções n. 313,
n. 314, n. 318 e n. 329, todas de 2020, devendo-se observar a maior equivalên-
cia possível com os atos em que há presença física.
Com essa normatização, restam equiparados, para todos os efeitos legais,
os atos virtuais por meio de videoconferência aos atos presenciais.
Assim, assentada a possibilidade jurídica de funcionamento virtual de
uma comissão judicialiforme como é a CPI (o que também adviria da impos-
sibilidade de supressão de competências constitucionais do Poder Legislativo

6. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/sabatina-senado-noto-
rio-conhecimento-especialidade-30092020

349
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

já argumentada aqui)7, a dúvida que surge diz respeito a como se daria a


operacionalização dos atos materiais e executórios para uma eventual prisão
em flagrante no âmbito da comissão parlamentar.
Aqui, acredita-se que seria possível a CPI se valer, por analogia, da lógica
adotada pelo STF no âmbito do Inquérito n. 4.781, em que a Corte conside-
rou que a expressão “na sede ou dependência do tribunal” abrangeria todo o
território nacional, em se tratando de crime cometido em ambientes virtuais
e redes sociais que podem ser acessados por qualquer dispositivo no Brasil
conectado à internet.
Inclusive, recorde-se que, para a prisão do deputado federal Daniel Silvei-
ra, o ministro relator Alexandre de Moraes inovou criando a figura do “man-
dado de prisão em flagrante”.
Sem pretensões de entrar no mérito das críticas quanto à contradictio in
terminis que envolve a utilização de uma ordem “escrita” para prender alguém
em situação de flagrância, descreve-se apenas o fato de que a medida foi usada
para efetivar a privação da liberdade quando o autor do suposto fato delituoso
se encontrava em local diverso daquele em que estava a autoridade responsável
por proferir a ordem de prisão, uma vez presentes os requisitos do art. 302,
incisos I ou II, do CPP.
Desta forma, a ordem contendo a voz da prisão em flagrante poderia in-
continente ser reduzida a termo pelos servidores que assessoram a comissão,
assinada pelo respectivo presidente e transmitida por ofício eletrônico para
operacionalização dessa prisão em flagrante por ordem da CPI, para que a uni-
dade da Polícia Federal do local onde está o depoente cumpra imediatamente
a medida de constrição de liberdade.
Fora das situações acima indicadas em que caberia a prisão em flagrante,
diante da ocorrência de crimes, o que a CPI poderia fazer é postular as chama-
das prisões cautelares (preventiva e temporária), em requerimento dirigido ao
Poder Judiciário.
Muito embora o art. 311 do CPP e o art. 2º da Lei n. 7.960/89, que dis-
põe sobre prisão temporária, estabeleçam que o pedido de prisão preventi-
va e de prisão temporária sejam formulados pelo Ministério Público ou pela

7. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/e-possivel-emendar-a-constituicao-via-
-deliberacao-remota-durante-a-calamidade-publica-29042020?amp

350
Podem as CPIs quebrar o sigilo telemático das redes sociais de seus investigados?

autoridade policial, deve-se reconhecer que as CPIs também podem postular


tal prisão para satisfazer o interesse da investigação.
Como já visto, as CPIs têm poderes para investigar, mas não têm poderes
de indiciar, incriminar, processar, nem julgar pessoas. Isso porque tais atribui-
ções foram outorgadas ao Poder Judiciário, Ministério Público e Autoridade
Policial.
Nas situações em que os fatos são, de antemão, sabidamente criminosos,
não são investigáveis por quaisquer das Casas do Congresso Nacional, nem
mesmo por intermédio de suas CPIs, já que essas se destinam a conduzir pro-
cedimento investigatório sobre “fato determinado” de relevante interesse na-
cional cujo esclarecimento auxiliará na produção legiferante. Em outras pala-
vras, não se pode criar uma CPI exclusivamente para investigar um crime (que
se sabe já ocorrido), sob pena de desvio de finalidade do colegiado.
Entretanto, se, no decurso das investigações parlamentares, uma CPI se
depara com condutas (que sugerem práticas) criminosas, seu dever é tomar
as providências para dar conhecimento aos órgãos competentes, aplicando a
cláusula final do art. 58, § 3º, da CF, que determina que as conclusões da CPI
sejam encaminhadas, se for o caso, ao Ministério Público, para que promova a
responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
De fato, o Ministério Público é o órgão a quem compete, privativamente,
promover a ação penal pública, nos termos do art. 129, inciso I, da CF.
Assim, a despeito de estarem investidas dos poderes de investigação
próprios das autoridades judiciais, diante da prática de quaisquer crimes, a
atribuição das CPIs consiste na elaboração de notícia-crime, anexando-se os
documentos comprobatórios respectivos, dirigida ao Ministério Público, para
que este tome as medidas judiciais cabíveis.
Considerando todo o arcabouço jurídico explicado até agora, e tendo em
vista o atual contexto fático em que se encontra a CPI da Pandemia, o eventual
funcionamento semipresencial (ou mesmo remoto) da comissão – por mais
que imponha novos desafios e dificuldades para os trabalhos (como a custó-
dia de documentos sigilosos, por exemplo) – não pode servir de empecilho
para que o colegiado lance mão dos meios necessários para o exercício de suas
atribuições e finalidades consagradas na CF. Da mesma forma, a virtualização
tampouco pode ser escusa para que a CPI deixe de se valer de suas prerrogati-
vas legais e já reconhecidas pela jurisprudência do STF.

351
‘Filibusterismo’, falácia e
retórica na CPI da Pandemia
Existe valoração racional do conjunto
fático-probatório nas CPIs?

As comissões parlamentares de inquérito (CPIs) são uma das áreas de


atuação com mais destaque do Congresso Nacional. A um só tempo, são le-
gítimo instrumento de exercício do poder de fiscalização inerente ao Poder
Legislativo, e cumprem o papel de monitorar a vida política nacional.
Inevitavelmente, funcionam como tentativas de desestabilização do go-
verno e são palco de acirradas disputas entre base e oposição. Dentro do Poder
Legislativo, todas atividades têm natureza política e essa essência é indissociá-
vel da atuação da CPI, mesmo diante do compromisso de buscar “a verdade
dos fatos apurados”.
É a partir dessas características, e dentro desse contexto, que se deve com-
preender o discurso parlamentar na reconstituição dos fatos e na valoração das
provas materiais conforme o seu relatório final.
As inquirições nas CPIs não podem ser tomadas como uma atividade pro-
batória estritamente imparcial, racional, pautada na sinceridade e voltada para
a apuração objetiva da verdade (entendida como exata correspondência com
o que ocorreu no mundo dos fatos, o que, além de ingênuo, é epistemologica-
mente duvidoso).

353
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Por vezes, as inquirições e o uso da palavra servem mais como espaço para
monólogos parlamentares ou perguntas meramente retóricas (que ficarão sem
resposta), e não dirigidas ao inquirido, como seria o esperado em uma sessão
de oitiva para esclarecer os fatos sob investigação.
Entre outras intervenções de parlamentares sem qualquer interrogante –
como as dos senadores Humberto Costa (PT-PE), Kátia Abreu (PP-TO), etc.
– no último dia 20 de maio chamou a atenção a fala da senadora Mara Gabrilli
(PSDB-SP), que admitiu não estar interessada na resposta do então inquirido,
o ex-ministro Eduardo Pazuello: “Porque, na verdade, eu não estou nem inte-
ressada na resposta dele. Então, posso concluir com mais uma pergunta?”
De lado a lado na CPI da Pandemia, observa-se a tática parlamentar cha-
mada “filibusterismo” (do inglês, filibuster) consistente no uso excessivo da
palavra com o intuito claro de estender o debate, aproveitar a notoriedade dos
holofotes e, estrategicamente, criar uma cortina de fumaça, em lugar de efeti-
vamente colaborar com a discussão.
Na prática, o “filibusterismo” é uma das táticas obstrucionistas, cujo pro-
pósito é retardar ou impedir a votação da matéria, por intermédio da mono-
polização dos debates. Trata-se de um problema em especial no Senado dos
Estados Unidos (lá essa é uma prática rotineira), desde 1806, quando se revo-
gou das regras procedimentais a chamada previous question motion (pela qual
o voto da maioria simples forçava o encerramento dos debates e o início da
votação).
Um dos maiores “filibusteiros” do Senado americano chegou a discursar
por 23 horas ininterruptamente. O uso da tática foi mudando ao longo do
tempo. Hoje, para “calar um “filibusteiro” é necessário o voto de 60 senadores
(lá são 100 no total). Toda essa volta serve para ilustrar essa velha tática dos
oradores nos Parlamentos.
Esse é o comportamento típico dos parlamentares da oposição, seja qual
for o seu espectro ideológico, especialmente no âmbito das comissões, e na
CPI da Pandemia não ia ser diferente (daí a importância de que esses colegia-
dos tenham prazo determinado de funcionamento).
O que surpreendeu agora foi a utilização dessa estratégia por parte do
próprio inquirido, como se viu da oitiva do ex-ministro Eduardo Pazuello, que
se valeu de respostas longas, prolixas, com detalhes irrelevantes e muitas voltas
para endossar sua versão dos fatos e gerar ruído e dispersão.

354
‘Filibusterismo’, falácia e retórica na CPI da Pandemia

Por diversas vezes, o ex-ministro foi chamado à atenção, como, por exem-
plo, quando o presidente da CPI, o senador Omar Aziz (PSD-AM), alertou (na
sessão do dia 19 de maio): “Muitas perguntas que o Senador Renan está fazendo
são “sim” ou “não”. Vamos ser mais objetivos.”.
Incorrendo em manifesta gafe (e que, ao mesmo tempo, endossa a estra-
tégia de tergiversação e revela o auditório para quem se dirigia), o ex-ministro
respondeu: “Eu vou colocar aqui uma ideia aos senhores. Eu acredito que nós
temos uma população brasileira toda nos olhando, e respostas simplórias, sem
contextualização, sem a compreensão do que nós estamos falando, não vão aten-
der às pessoas que estão nos esperando. Eu vou responder a todas as perguntas
– todas, sem exceção. E coloco de uma outra forma: vocês podem ter certeza, eu
não vou ficar repetindo uma palavra. Eu vim com bastante conteúdo e eu pre-
tendo deixar claro à população brasileira e a todos os senhores todos os fatos e
todas as verdades que aconteceram sob a minha gestão, sob a nossa gestão. Então
me desculpe: perguntas com respostas simplórias eu gostaria até que não fossem
feitas. Perguntem-me coisas com profundidade, perguntem coisas com bastante
profundidade.”.
Imediatamente, o inquirido ouviu do presidente: “General, V. Exa. não vai
dizer para a gente o que (rectius) nós vamos perguntar ou não. (…) Quem decide
isso aqui são os Senadores. V. Exa. está aqui para responder às perguntas dos
Senadores, e para muitas delas basta um “sim” ou um “não”. Quando a gente fala
muito e não consegue explicar nada é que fica difícil para a gente ficar ouvindo.”.
Só com esses fragmentos acima, já se torna patente que é inútil a preten-
são de impedir a atuação política de quem quer que seja, sobretudo dos repre-
sentantes dos cidadãos. Onde há poder, há disputa. E ninguém pode pretender
ver-se livre da atuação política dos membros do Congresso Nacional, sobre-
tudo quando os próprios inquiridos também agem politicamente em prol de
seus ideais e interesses políticos. Como já comentado aqui,1 é diferente a im-
parcialidade exigível dos membros das CPIs.
As principais atividades probatórias das CPIs consistem nas oitivas (de
testemunhas, investigados e especialistas) e nas solicitações de informações.
Quanto às primeiras, vale registrar que, pela primeira vez na história, o sena-
dor Renan Calheiros (MDB-AL) abriu uma caixa de perguntas no Instagram

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/precisam-os-membros-das-cpis-ser-im-
parciais-31072020

355
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

para seus seguidores enviarem perguntas que gostariam de ver feitas ao ex-mi-
nistro Eduardo Pazuello.
Assim, formulou a seguinte pergunta: “Se o ministério não seguia as orien-
tações da OMS, quais eram as orientações que seguia naquele momento o minis-
tério? Essa é uma pergunta de internauta. Ontem eu fiz uma indagação na rede
social se as pessoas queriam contribuir com perguntas para esse depoimento, e
essa pergunta foi uma pergunta feita principalmente por familiares das vítimas
da Covid.”. Essa novidade da participação social tende a ser incorporada nos
ritos e reforça o caráter político das CPIs.
Nas oitivas, é possível observar que os parlamentares inquiridores desem-
penham papel assimétrico, variando conforme o interrogado sustente uma
versão propícia ou contrária aos interesses de quem interroga.
Nesse sentido, existem diversas modalidades de perguntas que podem ser
usadas estrategicamente conforme os cenários e o grau de informações que o
depoente oferece e que se pretende obter. Vale a pena conhecer algumas das
táticas de interrogatório.
De um lado, as perguntas abertas, gerais, oferecem ampla liberdade de
resposta, permitindo que o inquirido exponha as circunstâncias gerais, esta-
dos de ânimo, sensações e opiniões sobre os fatos perguntados.
Como exemplo, veja-se a pergunta do senador Renan Calheiros dirigida
ao ex-ministro Eduardo Pazuello (logo na abertura dos trabalhos da sessão do
dia 19 de maio): “Pergunto, Ministro, V. Exa. pode nos detalhar quais eram suas
qualificações para ocupar o segundo maior cargo do Ministério da Saúde e, mais
tarde, para assumir o cargo de ministro?”.
Normalmente, as perguntas abertas são usadas para que a resposta apre-
sente uma versão propícia dos fatos. Mas também podem ser usadas como
“nariz de cera” com vistas a, mais adiante, conduzir o inquirido a contradições
com suas próprias falas ou com a de outros depoentes.
Por outro lado, perguntas fechadas, específicas, se prestam a que o inqui-
rido simplesmente confirme ou negue a informação constante da pergunta. O
objetivo desse tipo de interrogação é tirar, ao máximo possível, o espaço do
inquirido, tentando obter maior controle sobre suas respostas. As perguntas
fechadas podem ser neutras, afirmativas, negativas ou informativas.
Como exemplo de pergunta fechada neutra, cite-se a seguinte do senador
Renan Calheiros dirigida ao ex-ministro Eduardo Pazuello: “Já como ministro,

356
‘Filibusterismo’, falácia e retórica na CPI da Pandemia

V. Exa. teve autonomia para formar sua equipe de gestores?”. Ao que o ex-mi-
nistro respondeu “Cem por cento”.
Como exemplo de pergunta fechada afirmativa, observa-se a seguinte
(com mesmos os interlocutores): “Em 11 de fevereiro deste ano, V. Exa. com-
pareceu a uma sessão do Senado Federal para debater a pandemia. (…) Aqui V.
Exa. disse textualmente aos Senadores, aspas: “A Pfizer, mesmo que nós aceitás-
semos todas as condições impostas, a quantidade que nos ofereceram desde o iní-
cio foi 500 mil doses em janeiro, 500 em fevereiro e 1 milhão em março, 6 milhões
no total do primeiro semestre. Senhores, nós não podíamos ficar só nisso.” – fecha
aspas. O Sr. Carlos Murillo, da Pfizer, nesta Comissão, desmentiu esse total de
6 milhões de doses e entregou documento atestando que a oferta sempre foi 70
milhões de doses da vacina. Pergunto: V. Exa. confirma essa informação sobre as
6 milhões de doses que deu aos Senadores?”.
Como exemplo de pergunta fechada informativa, envolvendo os mesmos
interlocutores: “Com que frequência V. Exa. se reunia com o Presidente da Re-
pública durante sua gestão?”. A resposta foi “Menos do que eu gostaria”.
Já a chamada pergunta complexa ou sugestiva consiste na insinuação feita
sob a forma de pergunta. O tradicional exemplo é “O que você tomou no café
da manhã no dia em que matou sua esposa?”. Trata-se de uma falácia (ou para-
logismo, dependendo da intenção), na medida em que incorpora uma resposta
na própria pergunta e tem o objetivo de fazer o inquirido cair uma armadilha,
pois corre o risco de endossar a premissa nela contida.
No âmbito do processo judicial, esse tipo de pergunta é proibido, devendo
ser inadmitida pelo juiz, nos termos do art. 459 do CPC (“As perguntas serão
formuladas pelas partes diretamente à testemunha, começando pela que a arro-
lou, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem
relação com as questões de fato objeto da atividade probatória ou importarem
repetição de outra já respondida.”).
No entanto, dificilmente o presidente da CPI atuaria para indeferir uma
pergunta assim, tolhendo a palavra de outro parlamentar. Tanto que na sessão
do último dia 19 de maio da CPI da Pandemia, ouviu-se do senador Renan Ca-
lheiros a seguinte pergunta complexa dirigida ao ex-ministro Eduardo Pazuello:
“Por que as medidas tomadas por vossa excelência não foram suficientes para
evitar o colapso?”.
Com isso, parece desnecessário seguir explicando que as inquirições nas
CPIs são um tipo de discurso político que não se encaixa (nem de perto) em

357
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

um modelo de diálogo racional que se atém somente aos fatos. Esse ponto é
importante e diz muito sobre os efeitos jurídicos do relatório final da CPI.
Como sabido, o objetivo primordial da CPI é investigação de fatos para o
aprimoramento da legislação pátria e, por conseguinte, para o aperfeiçoamen-
to das instituições e da sociedade.
As CPIs não têm o poder de julgar ou de punir. Inclusive, as conclusões
da CPI não necessariamente vinculam as instituições a cargo da responsabi-
lização jurídica de autoridades. De acordo com o art. 1º da Lei nº 10.001/00,
o presidente da Casa Legislativa encaminhará o relatório da CPI respectiva, e
a resolução que o aprovar, aos chefes do Ministério Público da União ou dos
Estados, ou ainda às autoridades administrativas ou judiciais com poder de
decisão, conforme o caso, para a prática de atos de sua competência.
O citado art. 459 do CPC ainda proíbe perguntas que não tiverem relação
com as questões de fato objeto da atividade probatória, justamente com vistas
a impedir ruídos, evitar tergiversações e proporcionar economia processual
para que as provas colhidas sejam apenas as necessárias à apuração (em analo-
gia ao que dispõe o art. 370, caput, do CPC).
Nada obstante, como exemplo de pergunta que contraria esse postulado,
cite-se a formulada pelo senador Angelo Coronel (PSD-BA) ao ex-ministro
Ernesto Araújo (na sessão do dia 18 de maio): “(…) o senhor não desejaria
aproveitar seu depoimento para pedir desculpas à Senadora [Kátia Abreu] e se
retratar, talvez, por aquelas palavras com que o senhor a acusou injustamente,
levianamente?”.
O mesmo senador Angelo Coronel também formulou a seguinte pergunta
ao ex-ministro Eduardo Pazzuelo (na sessão do dia 20 de maio): “Só um pouco
saindo até do escopo da CPI, mas eu tenho curiosidade. (…) o senhor acha que,
com essa missão que o senhor diz que foi cumprida, o senhor está preparado ou
se acha preparado, ou quer mesmo ser candidato a Governador ou Senador pelo
Amazonas em 2022?”.
Ainda pelo art. 459 do CPC, não serão admitidas perguntas que importa-
rem repetição de outra já respondida. Na CPI da Pandemia, no entanto, foram
várias as repetições de perguntas, tanto que se chegou a levantar questão de
ordem (no dia 19 de maio). A insistência nas mesmas perguntas poderia ser
considerada, no mínimo, uma demonstração de insatisfação para com as res-
postas que vinham sendo dadas pelo inquirido.

358
‘Filibusterismo’, falácia e retórica na CPI da Pandemia

A fixação formal dos fatos na CPI vai-se misturando, portanto, a um jogo


retórico-persuasivo cuja dinâmica retórica traz, inexoravelmente, riscos de re-
lativismo e decisionismo. Aqui, o antídoto para uma tomada de decisão sim-
plesmente com base no que se crê (e de forma desvinculada de rastros empíri-
cos) é a exigência de que as conclusões venham justificadas em argumentação
que demonstre o embasamento de suas afirmações.
Nada obstante, por mais que a CPI seja um procedimento de caráter in-
vestigativo, voltado para a angariar elementos de informação sobre fatos, não
se pode negar a natureza política desse inquérito parlamentar não policial (art.
4º, parágrafo único, do CPP).
Existe um juízo político ínsito ao seu funcionamento e que submete as
conclusões da CPI às injunções do jogo político-parlamentar. Além disso, con-
vém lembrar que o relatório final é fruto da “vontade da maioria”, sendo um
documento submetido a discussão e votação pelo colegiado.
A CPI do Banestado em 2003, por exemplo, acabou sendo encerrada sem
relatório final. A CPMI dos Correios em 2005, por seu turno, sofreu fortes
pressões políticas e seu relatório final acabou sendo modificado na última
hora para retirar o nome de Fábio Luís Lula da Silva, filho do então presidente
da República e sócio da empresa GameCorp, que supostamente teria recebido
recursos de concessionária de serviços públicos.
Além disso, atenuou-se tal episódio no relatório, que nessa parte ficou
inconclusivo quanto à ilicitude da operação: “Sem dúvida, cabe ao Ministério
Público, angariar novas informações e esclarecer à nação sobre esta questão de-
licada que desacata a cidadania e fere a credibilidade política do país.” (p. 1.386,
vol. 3 do relatório final).
O relatório da CPMI dos Correios ainda se absteve de mencionar o pró-
prio presidente Lula, o que, de certa forma, ocultou um dos supostos benefi-
ciários do chamado “Mensalão”.
Mas nem por isso as CPIs (sempre) “acabam em pizza”. CPIs passadas já
abriram caminho para o impeachment de um presidente da República (Fer-
nando Collor, após a CPI do Paulo César “PC” Farias, em 1992), para a cassa-
ção de deputados federais (após a CPI dos Anões do Orçamento, em 1993-4),
de um senador da República (Luiz Estevão, após a CPI do Judiciário, em 1999-
2000) e já culminou na renúncia de outros parlamentares.
Recorde-se que o relatório final da CPMI dos Correios alcançou 1.857
páginas, com a solicitação do indiciamento de 118 pessoas, e expôs a existência

359
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

do “Mensalão”, e fundamentou a acusação feita na Ação Penal nº 470, que, por


seu turno, redundou na condenação e prisão de diversos operadores do siste-
ma de pagamento de propinas a parlamentares da base em troca da votação de
projetos de interesse do governo.
Em resumo, como se vê, nas CPIs a valoração do conjunto fático-proba-
tório tem mais valor político do que jurídico, mas nem por isso as atas taqui-
gráficas e demais documentos oficiais produzidos deixam de ter enorme rele-
vância para a atuação de outras autoridades e para o estudo da argumentação
legislativa.

360
5 Ca p í tu lo
TÉCNICA LEGISLATIVA,
REGULAÇÃO E TEORIA
DA LEGISLAÇÃO
Cabe controle de constitucionalidade
por má técnica legislativa?
Abuso para esvaziar o poder de veto
presidencial no caso do PLV nº 7, de 2021,
sobre a desestatização da Eletrobras

Não é nenhuma novidade que o mau emprego de expressões, a imprecisão


de frases e outros lapsos na redação das leis acarretam problemas e dificulda-
des à aplicação do direito.
A constatação da importância da técnica legislativa tem conduzido a ado-
ção de diversas providências tendentes à melhoria da qualidade das leis, mas,
como sabido, tais iniciativas esbarram na política. Por isso, não raro são postos
em vigor textos contraditórios, com linguagem quase hermética (a ser com-
preendida somente por um círculo muito restrito de especialistas), contendo
disposições esdrúxulas e, por vezes, ininteligíveis.
O recurso a textos vagos, por exemplo, é estratégia que atende ao jogo
político, especialmente nos cenários em que há desacordos e interesses diver-
gentes. Legislar com normas vagas pode servir tanto à criação de legislação
simbólica (sem intenção de que sejam produzidos efeitos concretos, mas úteis
como sinalização política), quanto à delegação de poderes para a burocracia
(encarregada de regulamentá-la e definir seus sentidos) ou ao próprio Poder
Judiciário.

363
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Também é possível manejar as regras da técnica legislativa para atender a


objetivos políticos a partir do “fracionamento da norma”. O propósito pode ser
o de “escondê-la” (fazendo a norma parecer algo diferente do que realmente é).
É ilustrativo, por exemplo, o caso do art. 20, incisos I e II, e § 1º, da Lei nº
12.772/2012. À luz de uma técnica legislativa bem empregada, tal § 1º deveria
ter sido um inciso III. Ocorre que, tal como feita, a opção é usada com finalida-
des hermenêuticas espúrias, a partir de um cálculo deliberado possivelmente
ainda na gênese da norma.
Tal “fatiamento” da norma no processo legislativo ainda pode acabar sen-
do feito em relação a um trecho controvertido, supostamente para contornar
a divergência a partir de uma emenda “de redação”. Na verdade, no entanto, a
manobra pode ser mero pretexto para facilitar um eventual veto presidencial
da parte indesejada.
Essa tática faz parte do jogo parlamentar. Por isso, uma estratégia inteli-
gente é amarrar bem a norma, associando-a a outra mais relevante, de modo a
“impedir” o veto pelo presidente da República, como ficará mais claro adiante.
O caso do Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 7, de 2021 (oriundo da
Medida Provisória – MP nº 1.031/2021), aprovado no último dia 17 de junho
pelo Senado Federal (e noticiado aqui),2 leva essa lógica ao extremo, a desa-
fiar até mesmo aqueles (como esta colunista) para quem a inobservância das
regras de técnica legislativa não ensejaria o controle de constitucionalidade.
Pois bem, confira-se a problemática instaurada no caso em comento.
A MP nº 1.031/2021, art. 1º, § 1º, limitou-se a estabelecer: “A desestatiza-
ção da Eletrobras será executada na modalidade de aumento do capital social,
por meio da subscrição pública de ações ordinárias com renúncia do direito de
subscrição pela União.”
Já na Câmara dos Deputados, o referido dispositivo foi emendado para
adicionar, no mesmo art. 1º, § 1º, que tal desestatização (…) estará condiciona-
da à contratação prévia de geração termelétrica movida a gás natural pelo Poder
Concedente (…)” com ainda mais detalhes sobre tal contratação, bem como à
prorrogação dos contratos do Programa de Incentivos às Fontes Alternativas

2. https://www.jota.info/legislativo/senado-aprova-mp-da-eletrobras-com-placar-aperta-
do-42-a-37-17062021

364
Cabe controle de constitucionalidade por má técnica legislativa?

de Energia Elétrica – Proinfa. Tudo isso nesse mesmo art. 1º, § 1º, que repre-
senta o coração da MP nº 1.031/2021.
No Senado Federal, o art. 1º, § 1º, do PLV em comento “engordou” ainda
mais, alcançando o tamanho de quase uma página inteira (confira-se na pági-
na 31 do parecer do relator).3
O artigo conta com 652 palavras, totalizando 3.197 caracteres. Tudo isso
sem um ponto sequer. Não por acaso, o dispositivo já vem sendo apelidado de
artigo “à Saramago”, em alusão ao autor português José Saramago (1922-2010),
famoso por usar períodos longos e fazer uso da pontuação de forma não con-
vencional.
Como sabido, parte da literatura (por exemplo, na Espanha, Piedad Gar-
cía-Escudero Márquez, e, no Brasil, Carlos Roberto de Alckmin Dutra) defen-
de a “inconstitucionalidade por inobservância da técnica legislativa” (legística
formal), a despeito de as “regras” de boas práticas na arte de legislar não terem
natureza propriamente jurídica (e menos ainda constitucional) para servir de
parâmetro de controle da validade das leis.
A própria Lei Complementar – LC nº 95/98, que dispõe sobre a elabora-
ção, a redação, a alteração e a consolidação das leis, no art. 18, estabelece que
“Eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo
regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento”.
Inclusive, a palavra “legística” – usada para designar o ramo de conheci-
mento que se ocupa do estudo dos métodos e técnicas voltadas para agregar
maior qualidade aos textos legais, desde a concepção, redação, elaboração e
controle dos seus efeitos práticos – sequer foi incorporada aos dicionários bra-
sileiros (Aurélio, Houaiss, etc.), nem aos documentos oficiais no Brasil (Ma-
nual de Redação da Presidência da República, Manual de Redação Legislativa
e Parlamentar do Senado Federal, etc.).
O referido art. 1º, § 1º, e outras emendas parlamentares inseridas no PLV
têm sido consideradas “jabutis”, sob o argumento de que não guardariam per-
tinência temática com o propósito original da MP nº 1.031/2021.

3. https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8981490&ts=1623960301033&-
disposition=inline

365
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Esse tipo de juízo, como já comentado aqui,4 não é tão simples: há situa-
ções em que as emendas parlamentares são apenas parcialmente estranhas ao
texto inicial, guardando alguma correlação com o tema tratado, o que as deixa
em uma fronteira nebulosa entre a legitimidade e a ilegitimidade.
O problema é que essa zona cinzenta costuma ser carregada de discordân-
cias e, na falta de critérios objetivos para definir categoricamente uma emenda
como “jabuti”, a controvérsia deve ser resolvida a partir de negociações, dentro
das próprias Casas Legislativas.
Essa dinâmica (possibilidade de emendamento e prevalência da von-
tade das maiorias, ouvidas as minorias) faz parte da lógica do Parlamento.
O Congresso Nacional não é um mero carimbador das medidas provisórias ou
dos projetos de lei de iniciativa do Poder Executivo, na linha do já explicado
aqui.5
Sem pretensões de entrar no mérito sobre se a previsão da contratação das
termelétricas e as outras emendas parlamentares são ou não “jabutis”, o fato é
que, mesmo que se considere que não são, persiste na redação do art. 1º, § 1º,
do PLV, um problema de possível abuso da técnica legislativa: o propósito da
redação parece ter sido o de juntar todas as normas em um só dispositivo para
impossibilitar eventual veto por parte do presidente da República.
Como sabido, a CF, art. 66, § 2º, estabelece que o veto parcial somente
abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea. Inclu-
sive, o descumprimento dessa formalidade poderia ensejar o controle de cons-
titucionalidade do próprio veto, como ato autônomo passível de impugnação,
na linha do que foi argumentado aqui.6
Em uma situação como essa do art. 1º, § 1º, do PLV nº 7, de 2021, o pro-
blema da má técnica legislativa é a possível violação ao princípio da separação
de poderes (art. 2º da CF).
Então, pergunta-se: não seria o caso de o presidente poder usar sua prer-
rogativa para que o veto parcial alcance o texto integral de uma “norma in-
teira” (ou “disposição”, no sentido usado por Riccardo Guastini), ainda que

4. https://www.conjur.com.br/2020-jul-06/roberta-nascimento-jabutis-processo-legislativo
5. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/tramitacao-conjunta-ini-
ciativa-legislativa-por-emprestimo-e-autonomia-do-bc-12052021
6. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/cabe-controle-de-constitucionalidade-
-do-veto-presidencial-16072020

366
Cabe controle de constitucionalidade por má técnica legislativa?

figure redigida em meio a outras no mesmo artigo, parágrafo, inciso ou alínea?


Sobretudo quando a má técnica legislativa foi empregada precisamente para
esvaziar o poder de veto presidencial?
Essa seria uma boa oportunidade para conferir uma nova interpretação
ao art. 66, § 2º, da CF, a fim de adaptá-lo, inclusive, às expressões latinas “in
limine”, “in fine”, ou mesmo em português “primeira parte”, “segunda parte”,
“terceira parte”, etc., tradicionalmente usadas para fazer referências às diversas
normas que figuram em um mesmo dispositivo normativo.
Nesse sentido, por exemplo, confiram-se as normas constantes do mesmo
art. 12, inciso I, alínea c, da CF, com redação dada pela EC nº 54/2007 (“São
brasileiros natos os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira,
[desde que sejam registrados em repartição brasileira competente] ou [venham a
residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de
atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira]”).
De lege ferenda, das vezes em que o legislador ordinário se valesse des-
sa técnica legislativa para inserir diversas normas em um mesmo dispositivo,
deveria ser possível o veto parcial para alcançar uma norma inteira, mesmo
que remanescesse algum texto na unidade de divisão do diploma normativo
(desde que, claro, com capacidade para “sobreviver” e fazer sentido sem a parte
vetada).
A ratio do art. 66, § 2º, da CF, foi a de impedir que o veto pudesse ser em-
pregado para inverter o sentido da norma. Como hipóteses cita-se o eventual
veto somente à palavra “não” de um texto, transmutando uma proibição em
uma permissão, ou a um “exclusivamente”, tornando um rol taxativo (numerus
clausus) em exemplificativo (numerus apertus).
Tal possibilidade é endossada também por analogia à própria técnica de
decisão no controle concentrado de declaração parcial de inconstitucionali-
dade, que pode alcançar meras palavras, sem necessidade de abarcar o texto
integral.
Nesse sentido, recorde-se da decisão tomada na medida cautelar da ADI
nº 3.472, que suspendeu a eficácia das expressões “e do Ministério Público”,
“respectivamente” e “ao Ministério Público da União”, contidas no art. 5º, § 1º,
da Emenda Constitucional - EC nº 45/2004.
O argumento acolhido nessa ação foi o de que o Senado Federal teria pro-
movido emendas substanciais (a despeito de usar a denominação “de redação”,

367
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

como ocorre com frequência nessa Casa Legislativa), sem submeter à reapre-
ciação da Câmara dos Deputados (violação ao art. 60, § 2º, da CF).
Quanto ao referido caso da ADI nº 3.472, há quem critique a inadequação
da técnica decisória adotada (para defender que a decisão deveria ter alcança-
do todo o dispositivo, justamente em analogia ao art. 66, § 2º, da CF).
Em outro exemplo de decisão que se valeu da técnica em comento, na ADI
nº 3.417 se declarou a inconstitucionalidade da expressão “com aplicação subsi-
diária, a juízo de seu Plenário, das normas legais compatíveis, do Regime Jurídi-
co Único, vigorantes para os servidores desse órgão”, que figurava no art. 70, § 4º,
da Lei Orgânica do Distrito Federal (Lei Complementar Distrital nº 1/1994),
que tratava dos conselheiros do Tribunal de Contas do Distrito Federal.
Entendeu-se que a expressão acima seria incompatível com o princípio da
simetria, nos termos do art. 75 da CF, a exigir a paridade das garantias, vanta-
gens e prerrogativas entre os membros do Tribunal de Contas e os membros
da Magistratura.
Como se vê, não seria absurdo o entendimento de que o veto parcial pu-
desse alcançar apenas parte do texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso
ou de alínea, desde que não haja uma completa deturpação da norma.
Aqui, convém recordar o que dispõe o Manual de Redação da Presidência
da República quanto à boa técnica legislativa:
• Cada artigo deve tratar de um único assunto;
• O artigo conterá, exclusivamente, a norma geral, o princípio. As
medidas complementares e as exceções deverão ser expressas por
meio de parágrafos;
• Quando o assunto requerer discriminações, o enunciado comporá o
caput do artigo, e os elementos de discriminação serão apresentados
sob a forma de incisos;

Ainda de acordo com o referido Manual, o parágrafo constitui disposição


secundária do artigo, em que se explica ou modifica a disposição principal.
Os incisos, por seu turno, são elementos que se prestam à discriminação
do artigo ou parágrafo, quando não for adequado condensar o assunto no pró-
prio artigo ou não for o caso de constituir um parágrafo.
As alíneas também constituem desdobramentos dos incisos e parágrafos.
No entanto, por mais desejável que seja a observância das regras de elabo-
ração legislativa, aqui acredita-se que esse problema de atecnia (sozinho) não

368
Cabe controle de constitucionalidade por má técnica legislativa?

deve servir para a declaração de inconstitucionalidade de uma lei aprovada


pelo Congresso Nacional. É muito pouca a densidade normativa de um supos-
to “dever constitucional de boa conformação legislativa” extraível do art. 59,
parágrafo único, da CF.
Trata-se de construção semelhante ao devido processo legislativo,7 que
não determina quais são os comportamentos exigíveis para o seu alcance, e
acaba dependendo de uma série de outros elementos (por exemplo, uma teoria
da legislação, uma concepção ideal sobre como as leis deveriam ser feitas) para
determinar as condutas a serem praticadas pelos legisladores, os procedimen-
tos a serem adotados ou as qualidades concretas de uma lei “bem conformada”,
o que continuará recaindo em um elevado grau de subjetivismo e insegurança
jurídica.
Além disso, no caso em comento, o problema reside mais na violação à se-
paração de poderes, por obstaculizar o exercício do poder de veto presidencial.
Por isso, se tal prática parlamentar (de embaraçar o veto) se tornar fre-
quente, seria melhor admitir uma interpretação evolutiva do art. 66, § 2º, da
CF, do que transferir a decisão final ao STF, por intermédio de controle de
constitucionalidade, como provavelmente ocorrerá no caso do PLV nº 7, de
2021, com a consequente lei oriunda da conversão da MP nº 1.031/2021.
Como se vê, a questão é altamente judicializável, seja sob o argumento de
inconstitucionalidade de supostas emendas “jabutis”, seja por má técnica legis-
lativa, com o risco de jogar fora o bebê juntamente com a água da banheira,
declarando-se a inconstitucionalidade da desestatização tão-somente por ter
sido embalada nessa opção de técnica legislativa.

7. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-que-e-o-devido-pro-
cesso-legislativo-17022021

369
Técnica legislativa, linguagem
neutra e linguagem inclusiva
Relevância, vantagens, desvantagens
e meios de implementar

No último dia 15 de junho de 2021, o governador do Estado de Santa


Catarina editou o Decreto estadual nº 1.329, cujo art. 1º proibiu o uso da cha-
mada “linguagem neutra de gênero” nas escolas e órgãos públicos do Estado,
o que inclui documentos escolares oficiais, provas, grade curricular, material
didático, comunicados, editais de concursos, etc., abrangendo todas as formas
verbais faladas e escritas e, naturalmente, os textos normativos.
Em poucas palavras, essa linguagem que se pretende neutra propõe a ado-
ção de pronomes “não-binários” para representar pessoas que não se sentem
abarcadas pelas categorias “tradicionais” (sem gênero, pangêneros, transe-
xuais, travestis, intersexo, etc., ao todo já foram catalogadas 31 nomenclaturas
de gênero pela Comissão de Nova York).
Por exemplo, sugere a substituição de “ele/ela” por “ilu”; “dele/dela” por
“dilu”; “meu/minha”, por “mi/minhe”; “seu/sua” por “su/sue”; “aquele/aquela”
por “aquelu” e “o/a” por “le”. No passado, o movimento já pleiteou a adoção
do “x” ou da “@” no lugar das vogais de palavras que indicavam gênero com
o mesmo propósito. Mas parece que essas últimas foram deixadas para trás.
De acordo com a reivindicação, tal “estratégia gramatical” seria uma fer-
ramenta para efetivar a igualdade, garantir um “ambiente livre e democrático

371
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

para a construção de identidades”, e representar minorias a partir da palavra.


Não se poderia pretender uma língua “rígida e estática” – argumentam os de-
fensores da linguagem neutra – diante de uma sociedade em transformação.
Eis o que dispõe o decreto proibitivo em comento: “Art. 1º. Fica vedada a
todas as instituições de ensino no Estado de Santa Catarina, independentemente
do nível de atuação e da natureza pública ou privada, bem como aos órgãos liga-
dos à Administração Pública Estadual, a utilização, em documentos oficiais, de
novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portugue-
sa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas e nacionalmente ensi-
nadas. Parágrafo único. Nos ambientes formais de ensino, fica vedado o emprego
em documentos oficiais de linguagem que, contrariando as regras gramaticais da
língua portuguesa, pretendam se referir a gênero neutro.”.
Insurgindo-se contra tal previsão, no último dia 05 de julho, o Partido dos
Trabalhadores (PT) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº
6.925, distribuída ao ministro Nunes Marques, argumentando que o decreto,
em síntese: a) extrapola os limites da competência para editar decretos de ca-
ráter autônomo ou regulamentar; b) viola os direitos à igualdade, à não-discri-
minação, o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à educação; e
c) contraria os direitos das minorias que vêm sendo reconhecidos pelo Supre-
mo Tribunal Federal (STF) em ações como a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) nº 787 (que determinou a adoção de medidas
para garantir o respeito à identidade de gênero no SUS), ADPF nº 132 e ADI
nº 4.277 (que reconheceram a união homoafetiva), ADI nº 4.275 (que permi-
tiu a alteração do registro civil da pessoas transgêneros), e RE nº 646.721 (que
garantiu o regime sucessório à união homoafetiva).
De acordo com a petição inicial da ADI nº 6.925, o decreto estadual re-
presenta “uma violência de gênero, por reforçar os preconceitos e a discriminação
incrustados na sociedade” (p. 13) e promove “censura prévia às diversas possibi-
lidades de ser e existir das crianças e adolescentes em formação” (p. 16). O tema
foi noticiado aqui.1
A discussão também já estava posta na Câmara dos Deputados, com a
tramitação dos Projetos de Lei (PLs) nº 5.248/2020, nº 5.198/2020, que pre-
tendem estabelecer o direito dos estudantes de todo o Brasil ao aprendizado

1. https://www.jota.info/stf/do-supremo/genero-neutro-escolas-sc-stf-06072021

372
Técnica legislativa, linguagem neutra e linguagem inclusiva

da língua portuguesa de acordo com a norma culta e vedar a utilização dessas


novas formas de flexão de gênero.
Parece não ser necessário (e tampouco é o objetivo da coluna de hoje)
tecer maiores reflexões quanto à inexistência de normas constitucionais sobre
o assunto, seja para determinar seja para proibir a adoção da chamada lingua-
gem neutra. Na verdade, esse assunto sequer deveria ter chegado ao STF. Aqui,
apenas se aproveita dessa discussão como pano de fundo para problematizar
uma discussão anterior à da linguagem neutra, consistente na adoção da cha-
mada linguagem inclusiva.
Desde uma perspectiva feminista, a reivindicação da linguagem inclusiva
propõe a inclusão “do feminino” nas elaborações linguísticas. O argumento
desse campo de estudos é o de que as mulheres ficam “escondidas” pelo uso do
masculino de forma genérica (para fazer referência, não só ao homem, mas a
todos os seres humanos), o que deixaria as mulheres em um plano renegado.
Daí o surgimento e disseminação das duplicações de gênero em até sim-
ples saudações (como o “bom dia a todos e todas”) para dar visibilidade às
mulheres (e para evitar a pecha de discriminação pelo uso da linguagem).
Em outra vertente, por exemplo, a Lei nº 12.605/2012, determinou o em-
prego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou grau em di-
plomas. Com isso, diplomas e certificados devem ser emitidos com a flexão de
gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada.
Por seu turno, o Decreto nº 49.994/2012, do governador do Estado Rio
Grande do Sul, estabeleceu a utilização da linguagem inclusiva de gênero nos
atos normativos, nos documentos e nas solenidades do Poder Executivo Esta-
dual. Com isso, ficou proibida a utilização de vocábulos que designem o gê-
nero masculino com o alcance estendido à mulher e determinou-se que toda
referência à mulher deverá ser feita expressamente utilizando-se, para tanto, o
gênero feminino.
Do ponto de vista da técnica legislativa, trata-se de um movimento no
sentido diametralmente oposto ao que fixou o Parlamento do Reino Unido em
1850 com o Act for shortening the Language used in Acts of Parliament (13 & 14
Vict. c. XXI), pelo qual em todos os atos normativos as referências no gênero
masculino devem ser consideradas e tomadas para incluir o gênero feminino,
a menos que o contrário quanto ao gênero seja expressamente previsto. Esse
Interpretation Act 1850 continua em vigor até hoje.

373
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Somente em 2007, uma declaração escrita do Líder da Câmara dos Co-


muns anunciou uma mudança na política (de técnica legislativa do governo),
cujos projetos de lei passariam a adotar, na medida do possível, a chamada
gender-neutral drafting, ou seja, uma redação neutra em termos de gênero, à
medida que praticável, a um custo não superior ao razoável em termos de bre-
vidade e inteligibilidade. Desde então, vem-se adotando a nova diretriz com
alguma flexibilidade (mais para leis novas, mantendo-se a anterior para emen-
dar as antigas).
Vale registrar que, ainda antes disso, outros manuais de estilo estrangeiros
já traziam recomendações como, por exemplo, abandonar o uso de palavras
como chairman (devendo-se usar em substituição chairperson, president, pre-
siding person, officer, member, etc.). É o que se vê desde 1996 no Legislation
Manual Structure and Style2 da Nova Zelândia.
De forma semelhante, os relatórios produzidos pelo British Columbia Law
Institute3 recomendam, basicamente, evitar o uso dos pronomes pessoais
como estratégia para obter a escrita “livre de gênero” (gender-free), apresen-
tando exemplos de como fazer isso sem distorções significativas ou perdas de
conteúdo.
Inclusive, vale registrar que esse estilo gender-neutral (em inglês, neutro
em termos de gênero) pareceria já ser o suficiente tanto para os fins da lingua-
gem inclusiva quanto da neutra.
Assim, dentro dos estudos de técnica legislativa Brasil afora, vê-se que a
adoção do que aqui seria chamado “linguagem inclusiva” encontra mais adep-
tos. Na prática, consiste na recomendação de utilização, sempre que possível,
de termos como “pessoa”, “indivíduo”, “quem”, “seres humanos”, para não mar-
car o gênero diretamente.
No Brasil, o que há de mais próximo a esses documentos de estilo é o Ma-
nual para uso não sexista da linguagem,4 elaborado pelo Governo do Estado
do Rio Grande do Sul, que traz diversos exemplos de construções inclusivas

2. https://www.lawcom.govt.nz/sites/default/files/projectAvailableFormats/NZLC%20R35.
pdf
3. https://www.bcli.org/project/gender-free-legal-writing-managing-personal-pronouns/
4. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3034366/mod_resource/content/1/Manual%20
para%20uso%20não%20sexista%20da%20linguagem.pdf

374
Técnica legislativa, linguagem neutra e linguagem inclusiva

(sem as enfadonhas duplicações de gênero). A estratégia é utilizar palavras


verdadeiramente genéricas (e não simples “masculinos plurais”).
Por exemplo, tal Manual propõe substituir “os meninos”, por “as crianças”
ou “a infância”; “os homens”, por “a população” ou “o povo”; “os cidadãos’, por
“a cidadania”; “os filhos”, por “a descendência” ou “a prole”; “os trabalhadores”,
por “o pessoal”; “os professores”, por “o professorado” ou “o corpo docente”;
“os eleitores”, por “o eleitorado”; “os jovens”, por “a juventude”; “os homens”,
por “a humanidade”, entre diversas outras opções de construções impessoais
e não sexistas.
Nessas situações, a dupla menção ao masculino e feminino se torna des-
necessária. Na verdade, inclusive, a repetição ou duplicação de gênero (embo-
ra a mais óbvia) é uma das piores estratégias para lidar com a questão, na me-
dida em que tende a alongar os textos legislativos e torná-los mais cansativos
para os leitores. Além disso, eventuais lapsos do legislador na redação podem
acabar sendo interpretados em desfavor de um dos gêneros.
De todo modo, na Austrália, precisamente esse é o comando da Drafting
Direction 2.1,5 que determina que, nas proposições legislativas (drafting le-
gislation), o pronome pessoal masculino deve sempre ser acompanhado por
um pronome pessoal feminino, exceto nos raros casos de legislação destinada
a ser aplicada às pessoas de um sexo, mas não do outro (como, por exemplo, a
legislação sobre licença-maternidade).
Nada obstante, lá os redatores têm discricionariedade para decidir, no
caso concreto, se seria melhor evitar o uso de pronomes por completo, repe-
tindo o substantivo que seria representado.
Iniciativa parecida com a do Manual do Rio Grande do Sul acaba de vir do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que no último dia 27 de maio de 2021 apre-
sentou seu Guia de linguagem inclusiva para flexão de gênero: aplicação e uso
com foco em comunicação social.6 Segundo explicado, a medida veio atender
à Resolução nº 376/2021, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe
sobre o emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou

5. https://www.opc.gov.au/sites/default/files/dd2.1.pdf
6. https://www.tse.jus.br/++theme++justica_eleitoral/pdfjs/web/viewer.html?file=https://
www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/arquivos/tse-guia-de-linguagem-inclusiva/@@do-
wnload/file/Guia%20de%20Linguagem%20Inclusiva%20–%20Secom%20TSE.pdf

375
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

demais designações na comunicação social e institucional do Poder Judiciário


nacional. A iniciativa é semelhante à da Lei nº 12.605/2012 já citada.
Nesse contexto, não deverá demorar para que apareça alguma diretriz
preparada pelos parlamentos brasileiros, voltada, especificamente, para a ela-
boração de atos normativos. Com o intuito de colaborar com essa provável
empreitada, passa-se a oferecer algumas sugestões.
Além das duplicações de gênero (indesejadas, opina-se aqui, mas even-
tualmente inevitáveis) e da utilização de expressões genéricas não sexistas
(como as sugeridas no Manual do Rio Grande do Sul referidas acima), outras
estratégias de técnica legislativa que adota a linguagem inclusiva são: a simples
omissão de pronomes pessoais (que muitas vezes são usados de forma desne-
cessária) ou a substituição por pronomes relativos (que, quem, cujo, etc.) ou
indefinidos invariáveis (alguém, ninguém, outrem, etc.).
Então, por exemplo, o art. 1.606 do Código Civil de 2002 (CC) – “A ação
de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdei-
ros, se ele morrer menor ou incapaz” – poderia transformar-se em “A ação de
prova de filiação compete à prole, enquanto viver, passando aos sucessores, se
morrer em estado de menoridade ou incapacidade”.
Ainda nesse sentido, também são válidas a reorganização sintática da sen-
tença para a voz passiva (por mais que a boa técnica de redação prefira a voz
ativa, por ser mais simples e curta). Por exemplo, o art. 395, parágrafo único,
do CC – “Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá
enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos” – ficaria “A prestação torna-
da inútil devido à mora poderá ser enjeitada pela pessoa credora, que poderá
exigir a satisfação das perdas e danos”.
Adicionalmente, outra técnica de redação legislativa inclusiva pode ser
a utilização de “etiquetas” (tagging), utilizando-se das definições legislativas,
presentes em leis que trazem a tradicional construção “Para os fins desta Lei,
consideram-se: (…)” seguida dos incisos com as definições pertinentes.
Adotando a técnica em comento, ilustrativamente, confira-se o art. 6º da
Lei nº 14.133/2021 (a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos),
cujos incisos VI e VIII conceituaram, respectivamente, “autoridade: agente pú-
blico dotado de poder de decisão” e “contratado: pessoa física ou jurídica, ou
consórcio de pessoas jurídicas, signatária de contrato com a Administração”.
Aqui, embora claramente o propósito não tenha disso o de adotar uma “lin-
guagem inclusiva”, acaba tendo esse efeito.

376
Técnica legislativa, linguagem neutra e linguagem inclusiva

Enfim, é verdade que o simples uso de expressões mais neutras ainda não
será o suficiente para, de forma isolada, combater preconceitos. Mas, já que o
assunto está posto, é possível concluir que a técnica legislativa pode se adaptar.
Assim, quando não for muito custoso em termos de “economia da linguagem”
(em que menos é mais), convém evitar o uso do masculino genérico, assim
como das duplicações de gênero, priorizando o uso de termos que não apre-
sentem a variação de gênero.

377
A responsabilidade por
‘erro legislativo’
A culpa dos legisladores por leis
malfeitas e que causam danos

Parlamentos não existem somente para legislar, mas indiscutivelmente


essa é a principal atividade desempenhada pelo Poder Legislativo, ainda que
alguns de seus membros deem mais atenção às questões orçamentárias, ao
controle do governo ou às indicações de cargos e autoridades.
Do exercício dessa função legislativa – como de qualquer outro ato es-
tatal – podem surgir danos. Se em tempos de normalidade já se discutia a
possibilidade de responsabilizar o Estado por atos legislativos, agora, então, a
demanda se acentua, diante de diversas medidas legislativas adotadas durante
a pandemia, como o fechamento de estabelecimentos comerciais, a restrição
de locomoção e de atividades consideradas não essenciais, etc.
Além disso, os desenvolvimentos teóricos mais recentes vêm acrescen-
tando uma série de pautas normativas de cuidado e diligência na criação das
leis, a demandar dos legisladores cada vez mais atenção para com a atividade
legislativa típica, a partir de ferramentas como a análises de impacto ex ante e
ex post e consultas públicas, entre outras.
Nesse sentido, vem-se pedindo que os legisladores, assim como os cien-
tistas, baseiem suas decisões em fatos, estados de coisas e evidências. Pede-
-se, ainda, que as medidas legislativas sejam “proporcionais” (imponham o

379
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

mínimo sacrifício possível), sejam aptas a resolver os problemas a que se desti-


nam (adequada relação meios-fins), e, de preferência, apresentem a respectiva
motivação. Somente assim a legislação seria “racional”.
Nesse contexto, então, surge a pergunta: é possível responsabilizar o Es-
tado por “erro legislativo”? Por leis que, diante de informações empíricas mais
atualizadas, foram inúteis (tendo acarretado, assim, danos desproporcionais)?
Ou mesmo por leis que simplesmente se mostraram inefetivas, porquanto não
alcançaram suas finalidades? É possível atribuir imprudência, negligência ou
imperícia ao legislador?
Em tempos passados, a máxima pela qual “the Parliament can do no
wrong” consolidava, não só a soberania parlamentar, mas sobretudo a confian-
ça nas intenções do Parlamento, que não se desviaria do direito, das regras do
jogo e do bem comum. Daí, exsurgiria uma presunção absoluta de legalidade,
que também serviu de fundamento (por muito tempo) para rejeitar a respon-
sabilidade civil por atos legislativos.
Além da soberania, os outros argumentos nesse sentido são: o caráter de
normas gerais e abstratas dos atos legislativo (que atingiriam por igual toda a
coletividade) e o fato de os legisladores serem representantes eleitos pela pró-
pria sociedade, que lhes confere um mandato para a criação do direito (ius
novum).
No entanto, modernamente, já não se aceita a tese da total irresponsabili-
dade, porquanto incompatível com a noção de Estado de direito. Desse modo,
convém apresentar as situações em que tal responsabilização tem sido admi-
tida.
No Brasil, a responsabilidade civil do Estado se dá com base na regra geral
do art. 37, § 6º, da CF, que não excluiu os atos legislativos de sua abrangência.
De acordo com esse dispositivo: “As pessoas jurídicas de direito público e as
de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos
que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito
de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Assim, a responsabilidade seria do Estado, não do próprio Poder Legis-
lativo (que não tem personalidade jurídica), nem dos parlamentares em ca-
ráter pessoal. Recorde-se que, pelo art. 53 da CF, os deputados e senadores
são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e
votos, do que decorreria a impossibilidade de responsabilização pessoal desses

380
A responsabilidade por ‘erro legislativo’

agentes políticos que, na qualidade de representantes dos interesses da socie-


dade, editam leis.
Considerando o paralelo com o Poder Judiciário, essa lógica parece acer-
tada: os juízes não têm responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais que pra-
ticam (RE nº 228.977). O CPC, art. 143, estabelece somente duas situações em
que os juízes podem ser pessoalmente responsabilizados no exercício de suas
funções jurisdicionais: 1) quando procedem com dolo ou fraude; ou 2) quando
recusam, omitem ou retardam, sem justo motivo, providência que deva orde-
nar de ofício ou a requerimento da parte (aqui, quando decorrem 10 dias após
instados a fazê-lo).
A diferença é que os atos dos juízes não ensejam responsabilidade objetiva
do Estado (RE nº 553.637 ED) fora das situações em que esteja legalmente pre-
vista (no caso, o art. 5º, inciso LXXV, da CF, que prevê a indenização por erro
judiciário e por prisão além do tempo fixado na sentença).
A primeira situação em que a jurisprudência brasileira reconhece a res-
ponsabilidade civil do Estado por atos legislativos é a hipótese de lei declarada
inconstitucional. De fato, a Constituição é um limite intransponível pela ativi-
dade legislativa e impõe o dever de acatá-la em todas as situações.
Esse foi o debate, por exemplo, no RE nº 8.889, quando (na prática, ainda
que com outras palavras) se reconheceu a responsabilidade por “dano tributá-
rio” gerado pela cobrança de tributo logo declarado inconstitucional (e que, no
caso concreto, tinha implicado a sanção de proibição de circulação por parte
do serviço de ônibus).
Mais recentemente, no RE nº 153.464 e no RE nº 169.871, o ministro Cel-
so de Mello chegou a registrar sua posição pela indenizabilidade dos danos
acarretados pela Lei nº 8.024, de 12 de abril de 1990, mais conhecida como
Plano Collor, cujos dispositivos determinaram o bloqueio de ativos financei-
ros.
Sua manifestação se deu em obiter dictum, na medida em que seguiu o en-
tendimento do RE nº 149.587, considerando a discussão prejudicada, ante de-
volução dos ativos que tinham sido bloqueados, ante o advento da Lei nº 8.088,
de 31 de outubro de 1990 (esse também foi o desfecho da própria ADI nº 534).
No entanto, o que importa é a consignação de que os danos eventualmen-
te causados pelo Estado por leis inconstitucionais podem ser discutidos na via
própria.

381
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Para isso, é necessária a prévia declaração de inconstitucionalidade da


lei. No caso do Plano Collor, como dito, isso não chegou a ocorrer, de modo
que a responsabilização também ficou prejudicada. Nesse sentido, o REsp nº
571.645, relatado pelo ministro João Otávio de Noronha, que consignou: “Ape-
nas se admite a responsabilidade civil por ato legislativo na hipótese de haver
sido declarada a inconstitucionalidade de lei pelo Supremo Tribunal Federal em
sede de controle concentrado”.
Além do pressuposto da declaração de inconstitucionalidade (que para
parte da doutrina também seria possível no controle difuso), é necessário
comprovar os requisitos tradicionais da responsabilidade civil: o dano, a ação
legislativa e o nexo de causalidade entre o dano e a ação legislativa. Portanto,
a mera declaração de inconstitucionalidade não faz surgir presunção absoluta
quanto ao dano.
A segunda situação que vem sendo reconhecida como apta a ensejar a
responsabilidade civil do Estado por atos legislativos é a de leis de efeitos con-
cretos. Na prática, está-se diante de verdadeiro ato administrativo individuali-
zado que tem apenas a forma de lei, já que materialmente se perdeu o caráter
geral e abstrato.
Nesse caso, basta que a lei cause dano injusto a um grupo determinável,
independentemente da sua constitucionalidade. O fundamento da responsa-
bilidade recai no princípio da repartição dos encargos sociais, como corolário
do princípio da igualdade perante a lei.
Do ponto de vista teórico, até seria possível questionar o condicionamen-
to da indenização à declaração de inconstitucionalidade ou a se cuidar de lei
de efeitos concretos, já que, mesmo abstratas, genéricas e, inclusive (em tese)
constitucionais, as leis teriam potencial para causar danos.
Hipoteticamente, bastaria que a lei impusesse ônus (sacrifícios) anormais
que não atendessem ao interesse público. No entanto, ao menos no Brasil, a
deflagração da responsabilidade civil do Estado por atos legislativos é mais
rígida, exigindo a prévia desconstituição da presunção de constitucionalidade
das leis.
No que diz respeito à omissão legislativa – que seria a terceira situação em
que teoricamente caberia responsabilidade civil por (falta de) ato legislativo
–, a jurisprudência brasileira é oscilante. No MI nº 283, o STF já chegou a
reconhecer – uma vez ultrapassado o prazo assinalado para o legislador sanar
a mora – a faculdade de obter, pela via processual adequada, a condenação da

382
A responsabilidade por ‘erro legislativo’

União pelas perdas e danos acarretados pela falta da edição da lei necessária
ao gozo do direito.
Posteriormente, quanto à falta da lei referida no art. 37, inciso X, da CF
(de iniciativa do Poder Executivo para a revisão geral dos vencimentos), o STF
entendeu que a indenização era impossível por implicar no próprio reajuste
(RE nº 500.811 AgR).
Nesse sentido, no RE nº 565.089, fixou-se a seguinte tese de repercussão
geral: “O não encaminhamento de projeto de lei de revisão anual dos vencimen-
tos dos servidores públicos, previsto no inciso X do art. 37 da CF/1988, não gera
direito subjetivo a indenização. Deve o Poder Executivo, no entanto, pronunciar-
-se de forma fundamentada acerca das razões pelas quais não propôs a revisão”.
De forma semelhante, na ACO nº 792 AgR-ED, o ministro Edson Fachin
consignou: “O reconhecimento judicial de omissão legislativa em cumprir seu
mister institucional em contrariedade a dispositivo constitucional não implica
em reconhecer, de pleno direito, que durante o período de vigência do comando
sem a edição da espécie legislativa houve violação ao patrimônio jurídico dos
destinatários da norma, sob pena de restar caracterizada atípica hipótese de res-
ponsabilidade civil do Estado por ausência de ato legislativo”.
Assim, atualmente, parece predominar na jurisprudência do STF o enten-
dimento de que não cabe indenização por omissão dos legisladores.
Como se vê, nos casos acima em que é admitida, está-se diante de res-
ponsabilidade em caráter objetivo. Ou seja, não há que se perquirir elemento
subjetivo quanto à conduta dos agentes políticos na elaboração de atos norma-
tivos. De fato, parece problemático pretender atribuir “culpa” aos legisladores.
De ser assim, o Poder Judiciário estaria censurando o Parlamento pela
edição de leis não necessariamente inconstitucionais e sem deixarem de ser
gerais e abstratas que – em razão do carácter imperfeito do processo pelo qual
foram elaboradas – causam danos. Na prática, implicaria sair de um extremo
(da irresponsabilidade, “the Parliament can do no wrong”) para outro: o Estado
como um segurador praticamente universal.
Dito com outras palavras, seria inconcebível considerar culposa a conduta
dos legisladores, por supostamente terem agido – no processo de elaboração
das leis – com negligência imprudência e imperícia.
Tal pretensão equivaleria à responsabilização civil do Estado “por má téc-
nica legislativa” – ou, como aqui se chamou, por “erro legislativo”, aqui enten-
dido como as situações em que as leis apresentam problemas de efetividade ou

383
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

que passam a carecer de base empírica, diante do advento de novas informa-


ções científicas.
Ora, a elaboração legislativa é tarefa complexa, nela atuam inúmeros ato-
res (não só os parlamentares), seguindo diversas etapas necessárias até culmi-
nar na aprovação das leis. Não se deve idealizar essa atividade dos legisladores,
nem se pode julgá-la sob o viés retrospectivo.
Muitas das decisões legislativas são pautadas por meras especulações so-
bre seus efeitos. Além disso, os legisladores não são serem oniscientes e onipo-
tentes, nem são capazes de processar toda a informação necessária (que muitas
vezes sequer está completamente disponível) para tomar suas decisões.
Assim, é necessário descartar a ideia de que os legisladores sejam (ou
precisem ser) perfeitos e completamente racionais. A atividade legislativa se
desenvolve sob circunstâncias contextuais, nas quais estão presentes aspectos
técnicos – obviamente –, mas também diversos constrangimentos institucio-
nais, não só jurídicos, mas sobretudo políticos.
Outras demandas de ordem prática – inclusive a própria urgência com
que muitas decisões legislativas precisam ser tomadas – fazem com que os
legisladores precisem se afastar dos princípios ideais que deveriam nortear a
elaboração legislativa.
Daí que, diante de um “erro legislativo” ou do fracasso das leis, não há que
se falar em responsabilidade civil do Estado para a reparação dos eventuais
danos acarretados por isso.
Por essa lógica, ao menos quanto aos atos legislativos editados durante a
pandemia – em relação aos atos de gestão, essa é uma outra discussão –, não
caberia indenização em face do Estado para reaver o prejuízo causado e os
lucros cessantes. Isso, ao menos fora das circunstâncias em que já se reconhece
a responsabilidade civil por atos legislativos: 1) leis inconstitucionais; e 2) leis
de efeitos concretos.
Tampouco haveria que se falar em responsabilidade civil por omissão le-
gislativa imprópria, calcada em um suposto dever de cuidado do Estado para
com seus cidadãos em matéria de saúde, pois está-se diante de situação que
justamente exclui a responsabilidade: caso fortuito, força maior ou, se se pre-
fere, evento imprevisível e irresistível provocado por causas que escapam à
atuação do Estado. Daí serem inexigíveis leis contrafáticas que pudessem ter
evitado ou mitigado os efeitos da pandemia da Covid-19.

384
A responsabilidade por ‘erro legislativo’

Se os efeitos desejados com as leis não se dão – seja por falha de planeja-
mento, pelo advento de novas informações antes não consideradas ou por ou-
tros efeitos imprevisíveis (consequências de segunda ordem não antevistas) –,
o caso é de simplesmente reiniciar o ciclo da elaboração legislativa, corrigindo
as falhas das leis via modificação ou revogação de suas disposições, sempre a
partir dos diagnósticos resultantes da avaliação legislativa. É o que se discute,
por exemplo, quanto a diversas medidas adotadas durante a pandemia, como
o lockdown.1
Os deveres legisprudenciais não são propriamente jurídicos – mas políti-
cos e pré-jurídicos – e seu descumprimento não enseja ato ilícito que implique
o dever de indenizar. Até pode-se falar em leis “menos legítimas”, mas não só
por isso em inconstitucionais ou ilegais. As diversas exigências feitas aos legis-
ladores se sobrepõem e não é possível conferir sempre prioridade a algumas
delas, em detrimento de outras. Cada caso é um caso.
Com isso, não se pretende menosprezar todo o cuidado e atenção que
se deve ter ao legislar, tema que a cada dia se reveste de maior importância.
Trata-se apenas de colocar os assuntos em seus devidos lugares. A teoria da le-
gislação e suas boas práticas precisam ser adotadas por convicção dos próprios
participantes da prática legislativa, não pela via judicial ou sob a ameaça de
uma “pedagógica” indenização por responsabilidade civil do Estado.
Assim, tanto por conta das circunstâncias da legislação, quanto em razão
do caráter meramente moral e metodológico das pautas para melhorar a ela-
boração legislativa, não parece possível qualquer pretensão de responsabiliza-
ção, seja dos legisladores, seja do Estado, por leis ruins. Para o bem ou para o
mal, a responsabilização dos legisladores pelas leis que fazem só pode ter como
juízes os próprios cidadãos, via eleição para chancelar ou rejeitar a plataforma
político-ideológica dos candidatos.

1. https://www.thesun.co.uk/news/11472216/coronavirus-lockdowns-waste-time-50-dea-
ths-care-homes-sweden-expert/

385
Análise de impacto de gênero
Já é hora de começar a institucionalizar essa etapa
na elaboração de leis e atos normativos no Brasil

Diante dos últimos avanços da legislação em favor da institucionaliza-


ção das análises de impacto legislativo e regulatório – notadamente a Lei n.
13.874/2019, a Lei n. 13.848/2019 e o Decreto n. 10.411/2020 –, convém cha-
mar a atenção para a necessidade de inserção da análise de impacto de gênero
como ferramenta útil em prol do avanço da igualdade de gênero na criação,
interpretação e aplicação das normas jurídicas.
A importância dessa etapa foi revelada, por exemplo, com o recente episó-
dio do auxílio emergencial. É possível que análise de impacto de gênero tivesse
identificado um efeito indesejado da Lei n. 13.982/2020, cujo art. 2º-B, § 3º, es-
tabeleceu que a mulher provedora de família monoparental receberá 2 (duas)
cotas do auxílio emergencial criado pela referida lei, em razão da pandemia.
Como noticiado,2 diversas mulheres se viram impedidas de receber tais
valores porque seus ex-cônjuges realizaram o cadastro junto aos sistemas do
governo antes, e como se tivessem a guarda dos filhos, impedindo o recebi-
mento do auxílio pelas mulheres. O problema somente foi corrigido com a

2. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/beneficio-emergencial-para-mulheres-
-chamem-o-pessoal-das-humanas-11052020

387
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

aprovação do PL n. 2.508/2020,3 que garantiu prioridade de recebimento do


auxílio emergencial à mulher provedora de família uniparental, em caso de
conflito de informações.
A igualdade de gênero como princípio e valor dos ordenamentos jurídicos
é pauta que, embora não seja uma novidade, vem cobrando cada vez maior
atenção por parte dos pesquisadores e autoridades. A análise de impacto legis-
lativo e regulatório, por seu turno, mesmo sendo mais recente, já conta com
considerável literatura dando conta de sua utilidade para o aperfeiçoamento
da legislação, muito embora os instrumentos normativos que internalizaram
a análise de impacto não tenham contemplado a questão de gênero. Trata-se,
então, apenas de integrar ambas temáticas com vistas à promoção de maior
igualdade entre homens e mulheres (obviamente extensível aos transgêneros).
Normas aparentemente neutras podem ter impacto diferenciado entre
homens e mulheres. Não é verdade que normas que não diferenciem quanto ao
gênero sejam igualitárias necessariamente. Reconhecer essa realidade impõe a
obrigação de o Estado adotar instrumentos aptos para identificar de que ma-
neira os atos normativos podem afetar de forma diferente homens e mulheres,
bem como evitar que isso aconteça. À teoria, cabe a construção de um modelo
capaz de oferecer métodos para um direito antidiscriminatório mais abran-
gente, isto é, que não se limite às políticas públicas de igualdade stricto sensu.
O adágio popular afirma que “quem procura acha”. Pela mesma lógica, o
que não se procura não se vê. O fato de as desigualdades de gênero não terem
sido visibilizadas não significa que elas não existam. Em espanhol, diz-se que
o que não se avalia se desvaloriza (“todo que no se evalúa se devalúa”), despre-
za-se. Para contornar esse problema, a perspectiva de gênero pode cumprir
uma função epistêmica importante, oferecendo aos tomadores de decisão um
instrumento capaz de tornar visíveis os estereótipos de gênero.
Assim, a instituição e a efetiva adoção da análise de impacto de gênero
em todos os processos de tomada de decisões normativas, contribuiria para
identificar melhor e evitar qualquer tipo de discriminação, direta ou indireta,
por razão de sexo e, especialmente, assimetrias derivadas da maternidade, das
obrigações familiares e do estado civil, no plano da elaboração do direito.

3. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/08/weverton-comemora-
aprovacao-de-projetos-em-prol-das-mulheres/senado-aprova-prioridade-as-mulheres-
-para-receber-auxilio-emergencial-em-familia-monoparental

388
Análise de impacto de gênero

Essa ideia pode ser denominada “transversalidade de gênero” (a despeito


da tradução confusa feita da expressão gender mainstreaming) constante no
parágrafo 201 da Declaração e Plataforma de ação da IV Conferência Mundial
sobre a Mulher,4 realizada em Pequim, em 1995. Trata-se de assegurar que a
perspectiva de gênero passe a integrar todas as áreas e políticas públicas em
todas as esferas e níveis de atuação governamental. Incorporar tal transversa-
lidade é a maneira de eliminar a discriminação produzida por uma estrutura
sistêmica.
A prioridade da divisão homem/mulher naturalmente não pretende des-
considerar outras diferenciações importantes, sobretudo quanto a classe, ida-
de, raça, religião, origem geográfica, etc. Aqui, trata-se apenas de um recorte
que, longe de prejudicar as demais categorias, tende a aumentar o número de
beneficiados (as mulheres são metade da população mundial), o que conse-
quentemente ajuda na redução da discriminação quanto às demais variáveis
mais fracionárias.
Na Espanha, a análise de impacto de gênero foi instituída com a Ley
30/2003, de 13 de octubre,5 embora a Catalunha já a realizasse de forma pio-
neira desde 2001. Regulada pelo Real Decreto 931/2017, de 27 de octubre,6
estabeleceu-se que a tal análise contempla o impacto por razão de gênero, na
infância e adolescência e na família, e que consiste em analisar e avaliar os
resultados desde a perspectiva da eliminação das desigualdades e de sua con-
tribuição para a realização dos objetivos de igualdade de oportunidades e de
tratamento entre homens e mulheres, considerando os indicadores da situação
de partida, de previsão de resultados e de previsão de impacto.
De acordo com o guia metodológico para a elaboração do relatório da
análise de impacto normativo,7 devem ser utilizadas estatísticas que definem
o número e as porcentagens de mulheres e homens afetados pelo objeto e âm-
bito de aplicação da norma, bem como as características principais das situa-
ções das mulheres e homens (idade, renda, estado civil, localização geográfica,
se são desempregados, etc.). No que diz respeito à previsão dos resultados, de-
vem ser analisados três aspectos: a) resultados diretos da aplicação da norma,

4. http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf
5. https://boe.es/buscar/pdf/2003/BOE-A-2003-18920-consolidado.pdf
6. https://www.boe.es/buscar/pdf/2017/BOE-A-2017-13065-consolidado.pdf
7. http://www.mptfp.es/dam/es/portal/funcionpublica/gobernanza-publica/simplificacion/
impacto-normativo/guia_metodologica_ain.pdf#page=1

389
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

expressados em termos quantitativos e desagregados por sexo; b) incidência


sobre os papeis e estereótipos de gênero; e c) contribuição para o desenvolvi-
mento dos objetivos de igualdade de oportunidades.
Na sequência, avaliação propriamente dita do impacto de gênero qualifica
os resultados previstos, de acordo com a seguinte escala: 1) negativo: quando
não se preveja uma eliminação ou diminuição das desigualdades detectadas ou
não contribua para as políticas de igualdade; 2) nulo (ou neutro): quando não
existem desigualdades de partida em relação à igualdade de oportunidades e
de tratamento entre mulheres e homens, não se preveja modificação alguma
dessa situação; e 3) positivo: quando se preveja uma diminuição ou elimina-
ção das desigualdades detectadas e contribua para os objetivos das políticas
de igualdade. Se for o caso, devem constar do relatório as medidas comple-
mentares, que tenham sido introduzidas com o propósito de corrigir situações
de desigualdade detectadas (remediar o impacto negativo) ou para reforçar a
igualdade de oportunidades (fortalecer o impacto positivo).
Outro aspecto de destaque quanto à experiência espanhola diz respeito à
determinação no sentido de que o relatório de impacto de gênero acompanha
todos os anteprojetos de lei e propostas de regulamentos (decretos) elaboradas
pelo departamento competente antes da aprovação da proposta normativa.
Como se vê, a análise de impacto de gênero deve levantar, analisar e pon-
derar as consequências que possam advir da aprovação de projetos de leis ou de
regulamentos em geral. A ideia é detectar sobretudo possíveis efeitos negativos
de propostas normativas aparentemente neutras. É importante a consideração
das consequências tanto no curto, quanto no longo prazo, pois tais variáveis
são relevantes para a análise das diversas opções normativas, considerando
todos os seus aspectos positivos e negativos.
Nesses termos, utilizar a análise de impacto de gênero na elaboração legis-
lativa se traduz, não em legislar para as mulheres, mas considerá-las por oca-
sião da elaboração legislativa. Mais precisamente, considerar as consequências
para esse grupo, considerando, não palpites, mas dados, com método de aná-
lise. Sua especificidade consiste em, por ocasião do exame de uma proposta
normativa, responder às seguintes questões: a opção adotada afeta a igualdade
de gênero? Há geração direta ou indireta de desigualdade? As medidas preju-
dicam o acesso igualitário a bens e serviços por parte de homens e mulheres?
Há consequências que acarretem algum desequilíbrio de gênero de forma ge-
ral? Algum gênero será mais afetado do que outro?

390
Análise de impacto de gênero

Além de embasar a decisão legislativa, a avaliação de impacto de gêne-


ro – como material preparatório que é – tem valor interpretativo, podendo
servir para a compreensão da occasio legis, elemento importante tanto para a
interpretação histórica, quanto teleológica. Assim, a avaliação de impacto de
gênero também é útil para a aplicação da norma aprovada.
A falta, até o momento, de uma devida procedimentalização da análise de
impacto de gênero – isto é, como etapa necessária da tomada de decisão nor-
mativa – não significa uma total ausência de preocupação para com a questão,
dado o avanço observado nos últimos anos dentro do próprio direito, que vem
contemplando cada vez mais medidas destinadas à implementação da igual-
dade real de gênero. Nada obstante, parece ser o momento de avançar ainda
mais, incorporando a análise de impacto de gênero como etapa necessária e
formalizada na elaboração de leis e atos normativos no Brasil.
Os principais obstáculos para a adoção da análise de impacto de gênero
no país consistem: 1) na (ainda) falta de tradição sólida na análise de impacto
das leis e atos normativos em geral, não só quanto ao gênero; 2) na carência
de um acervo metodológico acessível às equipes encarregadas de realizar tais
avaliações; e, ainda, 3) na falta de recursos para capacitação de pessoal e para a
própria realização das avaliações, que naturalmente têm custos.
Por fim, registre-se que, embora a adoção da avaliação de impacto de gê-
nero seja um instrumento importante e útil, capaz de identificar obstáculos à
igualdade entre homens e mulheres e propor alternativas para contornar os
eventuais problemas, ainda antes da aprovação da proposta normativa, não
se deve depositar nessa proposta uma expectativa ingênua no sentido de que
será capaz de resolver todos os problemas do processo decisório da elaboração
normativa ou da desigualdade em geral.
Além das falhas dos próprios aplicadores dos métodos de análise do im-
pacto, os tomadores de decisão, por razões políticas, podem também acabar
simplesmente desconsiderando os dados levantados (a análise tem caráter in-
formativo, não vinculante), existindo o risco de que a avaliação de impacto de
gênero se converta uma mera formalidade. Mesmo assim, é um passo impor-
tante a ser dado no Brasil.

391
Qual peso devem ter as
evidências científicas para tomar
uma decisão legislativa?
As dúvidas e dificuldades não resolvidas
com o julgamento da ADI 5779 pelo STF

No último dia 14 de outubro, o STF finalizou o julgamento1 da ADI


5779, e, por 7 votos a 3, declarou inconstitucional a Lei nº 13.454/2017, que
autorizava a produção, a comercialização e o consumo, sob prescrição médica,
dos anorexígenos sibutramina, anfepramona, femproporex e mazindol.
A referida lei foi fruto da aprovação do PL 2431/2011, em cuja justificativa
se colocava o problema da obesidade, considerada uma doença grave que afeta
mais de 30 milhões de brasileiros, e a existência de divergência na comuni-
dade científica quanto aos efeitos dessas substâncias, ou seja, “as evidências”
(abandonando o preciosismo e usando a tradução literal já consolidada do
inglês evidence) estariam sendo interpretadas de modo diferente entre os es-
pecialistas.
O PL tinha sido apresentado após a Agência Nacional de Vigilância Sa-
nitária (Anvisa) ter concluído que as substâncias anfepramona, femproporex

1. https://www.jota.info/stf/do-supremo/sibutramina-stf-invalidar-lei-inibidores-de-apeti-
te-14102021

393
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

e mazindol não apresentariam eficácia a médio e longo prazo e produziriam


efeitos colaterais.
Especificamente em relação à sibutramina, seu uso tinha sido permitido
com restrições: a Anvisa estabeleceu uma dose máxima diária e limitação do
tratamento no tempo, com vistas a conter os efeitos colaterais e o risco de de-
pendência, tendo exigido termo de responsabilidade do médico prescritor e
termo de ciência do paciente.
Embora seu inteiro teor ainda não esteja disponível, o julgamento da ADI
5779 vem sendo comemorado por supostamente ter fortalecido a agência, na
medida em que manteve sua decisão prévia quanto ao assunto. Sem pretensões
de desmerecer a atuação do referido órgão técnico, a coluna pretende proble-
matizar o principal argumento utilizado no voto do ministro Edson Fachin,
cuja divergência sagrou o entendimento vencedor.
De acordo com a minuta divulgada, o entendimento foi que a Lei nº
13.454/2017 padecia de inconstitucionalidade material por proteção insufi-
ciente do direito à saúde, na medida em que excluiu as substâncias da garantia
de segurança por que passam os demais produtos destinados à saúde humana.
No entanto, recorde-se, o contexto é de incerteza ou divergência científica.
Aqui começa o primeiro problema da fundamentação, na medida em que
o voto do ministro Fachin, para chegar a essa conclusão, remeteu ao julgamen-
to da ADI 5501, que declarou inconstitucional2 a Lei nº 13.269/2016, que au-
torizava o uso da fosfoetanolamina sintética (apelidada de “pílula do câncer”)
por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna.
Ocorre que, neste caso da ADI 5501, de fato a substância não tinha pas-
sado previamente pela Anvisa (nenhuma empresa chegou a protocolar pedido
de registro da fosfoetanolamina sintética na agência sanitária). Ou seja, no
referido caso concreto, sem prévio procedimento junto à Anvisa, o Congresso
Nacional aprovou a lei outrora impugnada.
Por isso, ainda em 2016, um mês após a aprovação da Lei nº 13.269/2016,
o STF suspendeu sua eficácia, sob o argumento de que a substância não teria
passado pelos testes clínicos, de forma que seria “no mínimo temerária – e po-
tencialmente danosa – a liberação genérica do medicamento sem a realização
dos estudos clínicos correspondentes, em razão da ausência, até o momento,

2. https://www.jota.info/stf/do-supremo/pilula-do-cancer-stf-inconstitucional-26102020

394
Qual peso devem ter as evidências científicas para tomar uma decisão legislativa?

de elementos técnicos assertivos da viabilidade da substância para o bem-estar


do organismo humano” (p. 11).
Na época do julgamento da medida cautelar na ADI 5501, Fachin tinha
se manifestado pela interpretação da Lei nº 13.269/2016 conforme a Consti-
tuição, de modo a assegurar o acesso à substância somente aos pacientes ter-
minais, e de forma provisória, condicionada ao término de estudos clínicos
acerca de sua segurança e eficácia. A posição pareceria mais adequada a esse
tipo de contexto.
Tais condicionamentos são bastante importantes, pois também a própria
Lei nº 13.269/2016, art. 4º, in fine, tinha estabelecido, na prática, uma cláusula
de vigência temporária, pois produziria efeitos apenas “enquanto estiverem em
curso estudos clínicos acerca dessa substância”. Ou seja, o Poder Legislativo
teve o cuidado de não substituir definitivamente o Executivo.
A referida lei tinha feito apenas uma opção política no sentido de, en-
quanto perdurassem dúvidas, temporariamente atender ao clamor público e
social de assegurar, dentro da liberdade individual, o tratamento àqueles que já
tinham perdido as esperanças de sucesso pelos tratamentos ortodoxos.
Eis o teor do dispositivo normativo: “Art. 4º Ficam permitidos a produ-
ção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou
uso da fosfoetanolamina sintética, direcionados aos usos de que trata esta Lei,
independentemente de registro sanitário, em caráter excepcional, enquanto
estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância. Parágrafo único.
A produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição e dispensação
da fosfoetanolamina sintética somente são permitidas para agentes regular-
mente autorizados e licenciados pela autoridade sanitária competente”.
Repita-se: a substituição legislativa da Anvisa seria temporária, enquanto
estivesse em curso o procedimento administrativo de aprovação do registro
– ou não – do fármaco. Uma vez prolatada a decisão administrativa definiti-
va, essa prevaleceria. Assim a Lei nº 13.269/2016 garantia o devido espaço de
atuação administrativa da Anvisa, incluindo a última palavra da agência na
questão da viabilidade científica do medicamento.
No entanto, por seu turno, como se acaba de explicar, em relação aos
anorexígenos da Lei nº 13.454/2017, houve prévia manifestação negativa por
parte do órgão sanitário. Isso por si só já tornaria criticável a mera remissão,
sem mais, ao julgamento da ADI 5501, sem identificar seus fundamentos
determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles

395
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

fundamentos, como exige o art. 489, § 1º, inciso V, do Código de Processo


Civil (CPC).
Com isso (a existência de decisão da Anvisa), a atuação do Legislativo, por
intermédio da aprovação da Lei nº 13.454/2017, poderia ser entendida como
uma discordância para com as conclusões da agência sanitária.
Em uma situação como essa (em que há divergência entre órgãos quanto
à interpretação a ser dada às evidências disponíveis), não deveria ter o STF
chamado audiências públicas para a oitiva de especialistas?
A partir dessa perspectiva, vê-se que a ADI 5779 remota um tema mal
compreendido na jurisprudência e mal debatido na teoria: qual peso devem
ter as evidências científicas para a tomada de uma decisão legislativa? Seja ele
qual for, e parece certo que é variável de caso a caso, diante das dúvidas ou
incerteza científica, há, sim, espaço para a atuação legislativa.
Ainda quanto à fundamentação do voto vencedor na ADI 5779, ao menos
o ministro Fachin teve o cuidado: 1) de registrar que a competência da Anvisa
para autorizar a comercialização de substâncias não é privativa; e 2) de não
excluir de forma abstrata, categórica e absoluta a possibilidade de o Congresso
Nacional regulamentar a comercialização de substâncias.
No entanto, quanto à tal possibilidade de atuação legislativa, o referido
ministro impôs um elevado ônus: a inércia ou dano à saúde por omissão da
agência reguladora (p. 19), além de exigir, em suas palavras, “minudente re-
gulamentação, indicando, por exemplo, formas de apresentação do produto,
disposições relativas à sua validade e condições de armazenamento, dosagem
máxima a ser administrada, entre outras” (p. 14).
Ou seja, estabeleceu que eventual lei em substituição da atuação da Anvisa
contenha uma densidade normativa com especificidades pouco condizentes
com a atuação legislativa (em que deveriam predominar normas gerais). Os
detalhes impostos por Fachin se esperariam mais de uma norma regulamentar
ou administrativa, mas não do Congresso.
Esse ponto não deve passar desapercebido, na medida em que representa
um claro avanço em relação a um dos aspectos do debate travado por ocasião
da medida cautelar na ADI 5501.
Durante esse julgamento, em seu voto particular, o ministro Luís Rober-
to Barroso chegou a afirmar que a Lei nº 13.269/2016 violaria o princípio da
separação de Poderes, sob o argumento de que o ato legislativo macularia a

396
Qual peso devem ter as evidências científicas para tomar uma decisão legislativa?

suposta “reserva de administração” que garantiria à Anvisa competências ex-


clusivas na matéria.
Dito com outras palavras, na opinião inicial do ministro Barroso, jamais o
Legislativo poderia “interferir” no exercício dessa função administrativa, que
deveria ser desempenhada com exclusividade, em espaço verdadeiramente
imune ao controle legislativo.
Menos mal que essa consideração constou apenas do voto do ministro
Barroso e parece não refletir nem compor a ratio decidendi do STF sobre a ma-
téria. Do contrário, o Legislativo estaria alijado, em definitivo, de discussões
desse tipo.
Essa problemática não é nova. Recorde-se também o debate por ocasião
do julgamento da ADI 5592, que conferiu interpretação conforme ao art. 1º,
§ 3º, inciso IV, da Lei nº 13.301/2016, para fixar o sentido segundo o qual a
aprovação das autoridades sanitárias e ambientais competentes e a compro-
vação científica da eficácia da medida são condições prévias e inafastáveis à
incorporação de mecanismos de controle vetorial por meio de dispersão por
aeronaves.
Ora, mas isso já era precisamente o que constava do dispositivo, basta
verificar a sua redação: “Art. 1º. (…) § 3º São ainda medidas fundamentais
para a contenção das doenças causadas pelos vírus de que trata o caput: (…)
IV – permissão da incorporação de mecanismos de controle vetorial por meio
de dispersão por aeronaves mediante aprovação das autoridades sanitárias e da
comprovação científica da eficácia da medida”.
Nessa linha, até seria possível criticar a Lei nº 13.454/2017, por sua técnica
legislativa, isto é, por não ter ressalvado de modo expresso a eventual decisão
revisora da Anvisa e a necessidade de condução de novos estudos voltados a
dirimir a divergência empírica.
No entanto, esses seriam vícios que justificariam, no máximo, uma in-
terpretação conforme, mas jamais uma declaração de inconstitucionalidade,
nos termos em que foi feito na ADI 5779, e menos ainda com base na decisão
tomada anteriormente na ADI 5501, que se absteve de fazer uma análise ade-
quada da verdadeira controvérsia.
É preocupante a lógica que subjaz ao entendimento da corte, pois não
resolve questões como: de quem é o ônus da prova quanto às evidências cien-
tíficas de que a substância tem efeitos positivos e não causa efeitos colaterais?

397
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

E, diante de incertezas ou divergência, quem deve fazer as escolhas sobre o que


deve ser feito (se proibição ou permissão)?
Nem sempre a evidência empírica e os critérios estritamente técnicos se-
rão determinantes para a aprovação de uma lei. Estabelecer que absolutamente
todas as decisões legislativas cumpram esse requisito é impor um dever dema-
siado exigente, isso travaria a maior parte da produção legislativa. A eficácia
e a efetividade de determinados cursos de ação não são os únicos critérios a
nortear a decisão legislativa.
Sobretudo diante de incertezas científicas ou divergências quanto ao valor
que deve ser dado às evidências disponíveis, deve-se reconhecer o espaço para
a atuação democrática do Congresso Nacional. Interesses em conflito possuem
valor intrínseco na política. Ao se negar essa face do processo decisório, são
grandes as perdas em termos de experimentação e criação de novas evidências,
paradoxalmente, baseadas em políticas públicas (e não o contrário).

398
A taxatividade do rol da ANS
e o poder normativo das
agências reguladoras
Será a ADI nº 7.088 a nova ADI nº 4.874?

O advento da Lei 14.307/2022 foi noticiado aqui.1 Fruto da conversão


em lei da Medida Provisória 1.067/2021, a nova lei alterou a Lei 9.656/1998,
que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, para dis-
ciplinar os prazos e o processo administrativo de atualização das coberturas no
âmbito da saúde suplementar.
Não é novidade que compete à Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS) elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão
referência básica às operadoras de planos de assistência à saúde (artigo 4º, in-
ciso III, da Lei nº 9.961/2000).
Por isso, a atualização desse rol a partir da chamada Avaliação de Tecnolo-
gias em Saúde (ATS) no âmbito da ANS não deveria gerar polêmica. Ambas as
competências, isto é, a de elaborar e a de atualizar o rol da ANS, estão inseridas
na função normativa das agências reguladoras para editar atos de regulação
setorial.

1. https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/rol-da-ans-analise-de-novos-reme-
dios-deve-ser-feita-em-ate-180-dias-23032022

399
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

No entanto, já no dia seguinte à publicação da Lei 14.307/2022, foi ajui-


zada a ADI nº 7.088 pela Associação Brasileira de Proteção aos Consumidores
de Planos e Sistema de Saúde (Saúde Brasil) contra o artigo 10, §§ 4º, 7º e 8º,
da Lei 9.656/98, com redação dada pela nova lei.
Em síntese, tais normas estabelecem que a amplitude das coberturas no
âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de
alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS; e que atuali-
zação do rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar pela ANS será
realizada por meio da instauração de processo administrativo, a ser concluído
no prazo de 180 dias, contado da data em que foi protocolado o pedido, pror-
rogável por 90 dias corridos quando as circunstâncias o exigirem.
Em se tratando de tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral,
incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados
ao tratamento e adjuvantes, e de tratamentos antineoplásicos ambulatoriais
e domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de
câncer e hemoterapia, na qualidade de procedimentos cuja necessidade esteja
relacionada à continuidade da assistência prestada em âmbito de internação
hospitalar, os processos administrativos de atualização deverão ser analisados
de forma prioritária e concluídos no prazo de 120 dias, contado da data em que
foi protocolado o pedido, prorrogável por 60 dias corridos quando as circuns-
tâncias o exigirem.
Para a autora da ADI, no entanto, tais novos prazos legais para a análise da
agência com vistas à inclusão de novos tratamentos teriam instituído, na práti-
ca, a taxatividade do rol da ANS, pois as operadoras passarão a negar, de modo
supostamente abusivo, os procedimentos e eventos que não estejam na lista.
Como se vê, a questão agora levada ao STF versa sobre a interpretação
infraconstitucional dada à lei – mais especificamente, sobre a natureza taxativa
ou não do rol da ANS. Com isso, o que há é uma tentativa, por via oblíqua, de
deslocar para o STF a discussão que está em curso no STJ, com o julgamento
de dois Embargos de Divergência no âmbito da Segunda Seção, quais sejam,
o EREsp nº 1.886.929 e o EREsp nº 1.889.704, ambos da relatoria do Ministro
Luís Felipe Salomão. O assunto vem sendo noticiado aqui.2

2. https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/julgamento-do-rol-da-ans-enten-
da-23022022

400
A taxatividade do rol da ANS e o poder normativo das agências reguladoras

Nesse caso da ADI nº 7.088 – assim como no da ADC nº 71 comentado


aqui – a prematura intervenção por parte do STF implica verdadeira usurpa-
3

ção da competência constitucional atribuída ao STJ no artigo 105, inciso III,


da CF. É mais adequado aguardar a finalização do referido julgamento em cur-
so no STJ, cujo resultado interpretativo pode, inclusive, tornar desnecessária a
intervenção do STF para solucionar a controvérsia.
A grande questão, no entanto, é que essa ADI nº 7.088 tem tudo para ser a
nova ADI nº 4.874, com todos os riscos que esse julgamento representou para
o poder normativo das agências reguladoras.
Por ocasião do julgamento da referida ADI nº 4.874, o grande receio era
que o STF declarasse inconstitucional a Resolução nº 14/2002 da Agência Na-
cional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – que proibiu a fabricação, importa-
ção e comercialização, no país, de produtos fumígenos derivados do tabaco
que contenham substâncias ou compostos aditivos – e, com isso, fizesse ruir o
núcleo fundamental do modelo regulatório brasileiro, retirando a autoridade
normativa das agências.
Pois agora a história se repete com a ADI nº 7.088. Ainda que a ação não
verse sobre uma resolução da ANS em concreto, a discussão sobre a taxativida-
de ou não do rol de procedimentos, dos prazos e das demais regras do processo
administrativo para a atualização da amplitude das coberturas no âmbito da
saúde suplementar toca no cerne do processo decisório da ANS.
É dentro desse arcabouço normativo que a agência exerce seu papel re-
gulatório de verificar a pertinência, o respaldo científico e a viabilidade da
incorporação de novos procedimentos. Houve uma clara intenção legislativa
de adotar no âmbito da saúde suplementar diversos procedimentos já adota-
dos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Prova disso é o esclarecedor
parecer apresentado pela relatora da MP na Câmara, a deputada federal Silvia
Cristina (PDT-RO).4
A Lei 14.307/2022 representa a opção legislativa com vistas a equacio-
nar um delicado problema gerado, de um lado, pela crescente oferta de no-
vas tecnologias em saúde; e, do outro lado, pelas dúvidas sobre a eficácia e a

3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/os-legisladores-os-jui-
zes-os-advogados-e-a-equidade-19082020
4. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2124114&fi-
lename=PRLP+3+%3D%3E+MPV+1067/2021

401
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

segurança de novos protocolos clínicos, pela escassez de recursos para custear


tais avanços científicos de forma automática e pelas dificuldades de gestão
(aprovisionamento de recursos), de modo a evitar que se onerem demais os
usuários.
A pretensão da ADI nº 7.088 é no sentido de que sejam declarados in-
constitucionais as mencionadas previsões legais, especialmente os prazos, sob
o argumento de que tais dispositivos violam o direito à saúde (artigo 6º, caput),
a competência da União, estados, Distrito Federal e municípios para legislar
sobre proteção e defesa da saúde (artigo 24, inciso XII), o dever do Estado de
garantir a saúde (artigo 196), o direito adquirido (artigo 5º, inciso XXXVI), o
caráter essencial dos serviços de saúde (artigo 197), e a defesa do consumidor
(artigo 170, inciso V).
Ocorre que a eventual suspensão ou declaração de inconstitucionalida-
de do artigo 10, §§ 4º, 7º e 8º, da Lei 9.656/98, com redação dada pela Lei
14.307/2022, vai criar um verdadeiro problema de gestão por parte das ope-
radoras de planos de saúde. A incerteza quanto a quais tratamentos devem
ser cobertos (e a partir de que momento) é uma álea que será repassada aos
consumidores, que acabarão arcando com essa conta.
Além disso, a retirada dos prazos do processo administrativo de atualiza-
ção do rol não resolverá as futuras controvérsias em concreto entre as opera-
doras de planos de saúde e os usuários. Esse é um assunto que inevitavelmente
ficará a cargo da jurisdição ordinária, pois não é passível de resolução pela via
da jurisdição constitucional.
Outro detalhe importante: são tais prazos que dão sustentação à regra
de inclusão automática estabelecida no artigo 10, § 9º, da Lei 9.656/98, com
redação dada pela Lei 14.307/2022. Somente após finalizados os prazos sem
manifestação conclusiva da agência, será realizada a inclusão provisória desses
novos procedimentos até que haja decisão definitiva da ANS, garantida a con-
tinuidade da conclusão de eventual assistência já iniciada a usuários, mesmo
que a decisão final seja desfavorável à inclusão no rol da ANS.
No julgamento da ADI nº 4.874, fixou-se a aplicação da doutrina da defe-
rência nos moldes seguintes:
“Definidos na legislação de regência as políticas a serem perse-
guidas, os objetivos a serem implementados e os objetos de tutela,
ainda que ausente pronunciamento direto, preciso e não ambíguo
do legislador sobre as medidas específicas a adotar, não cabe ao
Poder Judiciário, no exercício do controle jurisdicional da exegese

402
A taxatividade do rol da ANS e o poder normativo das agências reguladoras

conferida por uma Agência ao seu próprio estatuto legal, simples-


mente substituí-la pela sua própria interpretação da lei. Deferên-
cia da jurisdição constitucional à interpretação empreendida pelo
ente administrativo acerca do diploma definidor das suas próprias
competências e atribuições, desde que a solução a que chegou a
agência seja devidamente fundamentada e tenha lastro em uma
interpretação da lei razoável e compatível com a Constituição”.

Como se vê, tais parâmetros dados na ADI nº 4.874 para a aplicação da


deferência estão presentes na ADI nº 7.088. Só resta saber se o STF seguirá seu
precedente.

403
Piso da enfermagem:
legisladores contadores?
Os problemas do controle semiprocedimental
que suspendeu o piso na ADI nº 7.2221

No último dia 4 de setembro, como noticiado pelo JOTA,2 o ministro do


STF Luís Roberto Barroso suspendeu, por medida cautelar na ADI nº 7.222, a
Lei14.434/2022, que fixou o piso da enfermagem, em nível nacional.
A decisão acolheu argumentos levantados pela autora da ação,3 a Confe-
deração Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaú-
de), quanto aos vícios do processo legislativo que culminou na lei. O principal
vício formal consistiria da usurpação da iniciativa privativa do poder Executi-
vo para propor a lei que implicou em aumento de remuneração de servidores
públicos.

1. Artigo escrito em coautoria com NATASHA SALINAS (Professora do Programa de Pós-gra-


duação (Mestrado e Doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em
Direito da FGV Direito Rio, Doutora e Mestre em Direito pela USP, Master of Laws (LL.M.)
pela Yale Law School).
2. https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/barroso-suspende-piso-salarial-da-en-
fermagem-04092022
3. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=762158976&pr-
cID=6455667

405
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Argumentos materiais também foram admitidos pelo ministro para con-


ceder a cautelar, como a alegação de que a Lei 14.434/2022 estaria violando o
princípio federativo, ao interferir drasticamente na autonomia financeira de
Estados e Municípios.
Mas a decisão do ministro Barroso não se restringiu a questões puramen-
te formais ou materiais de constitucionalidade. Há uma importante linha de
argumentação adotada pelo ministro, presente no item IV (página 23) do seu
voto, que não pode ser caracterizada como um controle exclusivamente for-
mal, tampouco exclusivamente material.
O aqui denominado controle semi-procedimental4 do processo legisla-
tivo foi decisivo para suspender os efeitos da Lei 14.434/2022. É sobre esse
aspecto da decisão do ministro que se passa a comentar.
Em resumo, o ministro acatou o argumento de que o processo legislativo
que instruiu a Lei 14.434/2022 teria se baseado em estudo de impacto financei-
ro inadequado, pois estimou o custo direto dos novos pisos salariais, mas “não
comprovou a viabilidade econômica de sua implementação”.
A hipótese é a de que o grupo de trabalho encarregado de produzir o
estudo de impacto financeiro não teria analisado adequadamente os “efeitos
econômicos” da adoção do piso da enfermagem, que se traduziriam em demis-
sões em massa de profissionais, diminuição da qualidade e oferta dos serviços
de saúde dos sistemas público e suplementar de saúde.
É curioso que o ministro prontamente aceitou os estudos apresentados
pela CNSaúde em conjunto com outras entidades representativas como “evi-
dências” de que os impactos da nova lei seriam mais prejudiciais do que bené-
ficos ao setor de saúde. O “detalhe” é que o único estudo citado na decisão teve
por metodologia a entrevista de quase 2,5 mil entidades privadas hospitalares,
das quais foi possível extrair a percepção dessas entidades sobre os efeitos da
adoção do referido piso salarial (§ 47 do voto). Qual é a fiabilidade desse mé-
todo de quantificação do impacto?
Ou seja, para suspender a lei, o ministrou considerou que o estudo eco-
nômico desenvolvido pelo grupo de trabalho parlamentar5 foi inadequado,

4. Bar-Siman-Tov é o autor da expressão. Cf. BAR-SIMAN-TOV, Ittai. Semi-Procedural Judicial


Review, Legisprudence, v. 6, n. 3, p. 271-300, 2013.
5. https://www.camara.leg.br/noticias/853079-relator-de-grupo-de-trabalho-aponta-im-
pacto-de-r-163-bi-com-novo-piso-da-enfermagem/

406
Piso da enfermagem: legisladores contadores?

ao mesmo tempo em que considerou como satisfatórios os referidos estudos


apresentados pela autora. Ocorre que, além de não justificar adequadamente
por que os estudos desenvolvidos pelos parlamentares não são confiáveis, o
ministro ainda encampou uma objeção quanto à “dificuldade de implementa-
ção dos pisos” (§ 53), que nada tem a ver com a constitucionalidade do proce-
dimento ou conteúdo da lei.
O argumento ad terrorem de que o piso aumentaria o desemprego entre
aqueles que pretende beneficiar; geraria a falência de unidades de saúde ou o
repasse dos custos aos usuários de serviços privados de saúde; reduziria a ofer-
ta desses serviços por particulares; e acarretaria sobrecarga do sistema público
é infirmada a partir da “unanimidade” das entidades representativas do setor
de hospitais (§ 48). Mas até que ponto isso é uma “evidência” para a decisão
legislativa ou uma simples valoração política dessas consequências? A dificul-
dade da legislação baseada em evidências é debatida aqui.6
Nesse cenário, as perguntas que merecem ser feitas são as seguintes: 1) tri-
bunais constitucionais podem declarar inconstitucionais leis cujos processos
legislativos não foram devidamente instruídos por estudos que analisam seus
impactos econômicos e sociais? 2) juízes possuem condições institucionais e
materiais para avaliar estudos de impacto legislativo realizados no curso dos
processos legislativos? 3) quais os desafios, ou problemas práticos, envolvidos
em um eventual reconhecimento do controle judicial sobre as escolhas meto-
dológicas adotadas nos processos de formação da lei?
Como neste espaço não será possível responder todas essas questões, cabe
um parêntese para indicar que tribunais mundo afora têm exercido esse con-
trole judicial semiprocedimental, na linha do já comentado em coluna passa-
da.7 Já é uma realidade em países como Colômbia, Estados Unidos, Israel,
Peru e Alemanha, além do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal
Europeu de Direitos Humanos. Alguns desses casos são comentados aqui.8

6. https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/253
7. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/controle-de-constitucio-
nalidade-qualidade-deliberacao-legislativa-14102020
8. https://revista.anpal.org.br/wp-content/uploads/2022/02/Artigo_07_Roberta_Simoes_
Nascimento.pdf

407
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Em parte, subjaz ao controle semiprocedimental, a chamada “virada legís-


tica” que marcou as últimas décadas de pensamento jurídico europeu e vem
9

propiciando a aplicação de modelos de decisão racional a processos de produ-


ção de leis. Consequentemente, essa tendência tem surtido efeitos no controle
judicial do processo legislativo em todas as partes.
Uma das decisões paradigmáticas nesse sentido foi o caso Hartz IV, jul-
gado em 2010 pelo Tribunal Constitucional alemão (BVerfGE 125, 222). Aí,
declarou-se inconstitucional uma lei que fixava um auxílio social básico não
contributivo para cada filho, sob o fundamento de que os legisladores deixa-
ram de fundamentar os valores a partir da apresentação dos métodos adotados
para determinar as quantias do auxílio, consistente em 345 euros para o 1º fi-
lho, 90% do valor para o 2º filho, e 80% do valor original para os demais filhos.
No caso, mesmo considerando que os valores do auxílio eram suficientes
para garantir o mínimo existencial, os magistrados exerceram um controle que
denominaram de “baixa intensidade” do conteúdo final da lei. Ou seja, o tri-
bunal não decidiu que o resultado da lei é materialmente incompatível com a
Constituição, mas única e exclusivamente que o modo pelo qual ela foi produ-
zida não era suficientemente racional para a promulgação do projeto.
No entanto, diferentemente do caso Hartz IV – em que os legisladores
deixaram de apresentar estudo demonstrativo dos valores do auxílio básico –,
no processo legislativo que culminou na Lei 14.434/22, o referido estudo foi
apresentado. Restou atendido o artigo 113 do ADCT, pelo qual “a proposição
legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser
acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.
O artigo 113 do ADCT não prevê a necessidade de que esse estudo indi-
que a origem dos recursos necessários para cobrir essa despesa, como pare-
ceria exigir o ministro Barroso em sua decisão. A discriminação da origem
dos recursos seria necessária apenas para a formulação de leis orçamentárias,
conforme prevê o artigo 166, § 3º, da CF, ou nos termos da LRF, artigos 16 e 17.
Isso não significa, no entanto, que os parlamentares não tenham consi-
derado a efetiva viabilidade econômico-financeira da instituição do piso sa-
larial dos enfermeiros. Esta foi aferida a partir de um conjunto probatório
amplo, que incluiu desde negociações com entidades patronais do setor, até o

9. https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/57/225/ril_v57_n225_p125.pdf

408
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

recebimento de mais de 500 documentos10 provenientes de Casas Legislativas,


prefeituras, associações e entidade de saúde favoráveis à medida.
No entanto, na decisão do ministro Barroso, a percepção desses atores
teve menor peso do que a percepção das entidades representadas pela CNSaú-
de para a adoção do piso da enfermagem.
No dispositivo da decisão (§ 60), lê-se que a Lei 14.434/2022 foi suspensa
até que sejam aportados aos autos os subsídios necessários à avaliação de seus
impactos no prazo de 60 dias, à luz dos quais a cautelar será reapreciada. Aqui,
há o uso claramente inadequado desse instrumento (para sanar supostas dú-
vidas epistêmicos que apenas mascaram a discordância quanto ao mérito da
decisão legislativa).
Estaria o ministro sugerindo que os legisladores agora também precisam
ser “contadores”, apresentando uma memória de cálculos detalhada, com dis-
criminação das metodologias da estatística e da matemática escolhidas? Em
relação a quais tipos de proposições isso deverá ser feito? Aquelas sem a esti-
mativa de impacto passarão a ser devolvidas? Essa medida chegou a ser adota-
da por um tempo,11 mas logo foi abandonada.
Como se vê, o controle semiprocedimental surge como um “substituto”
do controle material das decisões legislativas. Sua ratio pareceria ser das mais
nobres: uma espécie de autocontenção do Judiciário, diante da ampla margem
de atuação política, e das dificuldades para a indicação de uma inconstitucio-
nalidade material, dadas as limitações institucionais e materiais para examinar,
por exemplo, a proporcionalidade e razoabilidade das opções.
Ocorre que a opção pelo controle de constitucionalidade semiprocedi-
mental ou de baixa intensidade produz, no mínimo, um paradoxo: se juízes
não dispõem de capacidade institucional para analisar o mérito das decisões
legislativas, como eles serão capazes de avaliar se o método adotado para a
adoção de uma opção legislativa foi aplicado corretamente?
Levados às últimas consequências, os efeitos do controle semiprocedi-
mental são irracionais, uma vez que os tribunais passariam a ter poderes de
declarar a inconstitucionalidade de leis pela suposta falta de observância de

10. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141900https:/www25.
senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141900
11. https://www2.camara.leg.br/a-camara/presidencia/noticias/maia-anuncia-que-vai-devol-
ver-projeto-que-aumenta-gasto-sem-provisao

409
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

“pautas metodológicas” (que sequer contam com previsão legal ou constitu-


cional). Pior, os tribunais fariam isso sem ter condições efetivas de avaliar se
os métodos empregados pelos legisladores eram insuficientes ou se realmente
estavam equivocados em cada caso.
O risco é o Poder Judiciário, funcionado como terceira Casa Legislativa
de fato, usar esse plus de exigências metodológicas e justificatórias por parte
dos legisladores (indo além do que determina a CF) como mero pretexto para
substituir os juízos político e de ponderação próprios da oportunidade e con-
veniência de se legislar. Seria o triunfo do “tricameralismo à brasileira”.

410
O que a bagagem gratuita em voos
revela sobre a dinâmica da regulação
A interação entre agências, Congresso
Nacional e Presidência da República1

No último dia 14 de junho, o presidente da República vetou o art. 8º do


Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 5/2022, oriundo da Medida Provisória
nº 1.089/2021, também conhecida como MP do Voo Simples. A parte sancio-
nada tornou-se a Lei 14.368/2022.
O dispositivo vetado, fruto de emenda parlamentar durante a tramitação
do PLV, pretendia acrescentar um inciso ao art. 39 da Lei 8.078/1990 – Código
de Defesa do Consumidor (CDC) – para vedar, entre as demais práticas abusi-
vas, a cobrança de qualquer tipo de taxa por até um volume de bagagem com
peso não superior a 23 kg em voos nacionais e não superior a 30 kg em voos
internacionais.
Aqui não se pretende ingressar na discussão sobre a plausibilida-
de das razões do veto2 do presidente, de caráter essencialmente econômico

1. Artigo escrito em coautoria com NATASHA SALINAS (Professora do Programa de Pós-gra-


duação (Mestrado e Doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em
Direito da FGV Direito Rio, Doutora e Mestre em Direito pela USP, Master of Laws (LL.M.)
pela Yale Law School).
2. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Msg/Vep/VEP-299-22.htm

411
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

(apresentou-se, por exemplo, a justificativa de que a proibição da cobrança das


bagagens aumentaria o preço das passagens aéreas), tampouco se vai entrar na
questão dos “incentivos”, pois quem viaja sabe que a cobrança faz aumentar o
número de passageiros que carregam bagagens de mão, com todos os trans-
tornos que isso acarreta ao embarque (falta espaço na aeronave e o despacho
acaba ocorrendo da mesma forma, mas mais demorado).
O que esse caso da gratuidade da bagagem expõe — e essa é uma ques-
tão a ser explorada nas pesquisas — é que, embora as agências reguladoras
possam ter a priori algum poder de agenda, o Poder Legislativo, o presidente
da República e o Poder Judiciário possuirão poder de veto3, de modo que é
irrealista pensar que a produção da regulação refletirá apenas as preferências
das agências reguladoras.
Para melhor compreender esse aspecto da dinâmica da regulação, em que
a produção de normas regulatórias é disputada em múltiplas arenas, cabe re-
cordar o início da discussão sobre a cobrança pelo despacho de bagagens em
voos comerciais aéreos.
A cobrança das bagagens despachadas foi instituída pela Resolução nº
400/2016 da Anac, cujo art. 14 previu a gratuidade apenas para as bagagens
de mão de até 10 kg. Logo após a edição dessa resolução, sete deputados fe-
derais, inconformados, apresentaram projetos de decreto legislativo (PDLs),
todos com teor semelhante, e que tinham um mesmo objetivo: sustar os efei-
tos da referida resolução da Anac. O principal argumento invocado foi o de
que esse ato normativo estaria tratando de norma de direito do consumidor,
cuja matéria estaria sujeita à reserva legal (competência legislativa exclusiva do
Congresso Nacional).
Tendo em vista que nenhum desses PDLs apresentados pelos congres-
sistas fora promulgado, o Poder Legislativo adotou uma nova estratégia, qual
seja, a da via legislativa, para expressamente proibir a cobrança, pelas compa-
nhias aéreas, de bagagens despachadas.
Inicialmente, o Congresso Nacional tinha inserido emenda à MP 863/2018
(MP das companhias aéreas), visando a alterar a redação do Código Brasilei-
ro de Aeronáutica para estabelecer para cada passageiro franquia mínima de
bagagem de 23 kg. Tal previsão, incorporada no art. 2º do PLV da referida MP,

3. TSEBELIS, George. Veto Players: How Political Institutions Work. Princeton: Princeton Univer-
sity Press, 2002.

412
O que a bagagem gratuita em voos revela sobre a dinâmica da regulação

acabou sendo vetada pelo presidente da República, sob a justificativa de que se


tratava de uma “emenda jabuti” (sem pertinência temática com objeto inicial
da MP), e inconstitucional nos termos da ADI nº 5.127 do STF. Além disso, o
presidente da República apresentou razões econômicas (aumento dos custos
dos serviços aéreos) para vetar o referido dispositivo.
Então, o episódio agora de 2022 pode ser considerado como uma espécie
de nova oportunidade vislumbrada pelo Congresso Nacional para novamente
tentar afastar a cobrança por bagagens despachadas. Da mesma forma, o novo
veto do art. 8º do PLV da MP 1.089/2021 (MP do Voo Simples) pelo presidente
é só mais um capítulo dessa “novela da regulação”, repleta de idas e vindas.
Com isso, já é possível constatar que o caso revela: é simplista pensar que
a produção da regulação refletirá apenas as preferências da agência reguladora
que detém a priori o poder de agenda regulatória ao editar determinado ato
normativo.
O Poder Legislativo pode adotar, por exemplo, pelo menos duas estra-
tégias principais para intervir diretamente no processo regulatório de uma
agência reguladora: (i) por meio da sustação de atos normativos das agências
reguladoras, pela via do decreto legislativo (DLL, para diferenciar do DL usa-
do como sigla de decreto-lei); (ii) por meio da que se pode chamar “avocação
legislativa” da escolha regulatória de uma agência, pela via do processo legis-
lativo ordinário4.
Pela primeira, trata-se da competência do Congresso Nacional para sustar
atos normativos que “exorbitem do poder regulamentar” (art. 49, inciso V, da
CF). Ilustrativamente, entre os anos de 1997 e 2019, o Congresso apresentou
158 PDLs visando a sustar atos de agências reguladoras, conforme apurado
por pesquisadores do projeto Regulação em Números e publicado aqui.5
Embora apenas um único DLL tenha sido aprovado até hoje, não se pode
concluir que esse é um instrumento inefetivo de controle político das agências

4. Além disso, o poder Legislativo também intervém indiretamente no processo regulatório


por meio de técnicas de controle tradicionais, previstas da CF, como a convocação ou
convite para prestar informações (art. 50, caput, e § 1º), o envio de pedidos escritos de in-
formações (art. 50, § 2º), a atuação das comissões (art. 58, § 2º), a instituição de comissões
parlamentares de inquérito (art. 58, § 3º), o controle ex ante por intermédio das sabatinas
(art. 52, inciso III, alínea e).
5. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-avanco-do-congresso-sobre-as-tarifas-
-de-energia-eletrica-17052022?amp

413
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

reguladoras. Os autores da referida pesquisa verificaram que, do total de 130


normas contestadas pelo Congresso Nacional, 17 (13,07%) foram revogadas
e 14 (10,76%) foram alteradas durante a tramitação dos PDLs. Ou seja, em
23,8% dos casos as agências reagiram à contestação parlamentar, seja revogan-
do a norma atacada, seja modificando o seu teor.
Souza e Meneguin, em estudo semelhante,6 porém mais abrangente —
que analisou os PDLs propostos pela Câmara dos Deputados entre 1995 e 2017
para sustar atos normativos do Poder Executivo em geral (e não apenas de
agências reguladoras) —, concluíram que a taxa de efetividade de um PDL é
de 12%, muito superior ao índice de sucesso de aprovação de um projeto de
lei na Câmara dos Deputados, que se situa na casa de 1,5%. Para esse cálculo,
os autores identificaram que 67 dos 521 PDLs protocolizados resultaram na
alteração de 47 atos normativos do Poder Executivo.
Tais estudos revelam que as agências incorporam as preferências do Poder
Legislativo no processo de produção de suas normas regulatórias, ainda que
em fase posterior à edição da primeira versão de seus atos normativos.
Já a “avocação” de competência legislativa ocorre quando o parlamento
decide legislar sobre assunto que fora delegado anteriormente à agência re-
guladora. O Congresso Nacional valeu-se dessa estratégia quando buscou dar
tratamento legal à questão da cobrança das bagagens despachadas nas MPs
acima mencionadas. Também fez o mesmo permitir a distribuição e comercia-
lização da pílula do câncer e de remédios anorexígenos, conforme já analisado
em coluna passada.7
Doutrina e jurisprudência têm se debruçado sobre a constitucionalidade
dessa “avocação legislativa da escolha regulatória” pelo Poder Legislativo. Parte
das discussões gravita em torno da existência de uma suposta “reserva de re-
gulação” reivindicada por alguns poucos autores com vistas a rejeitar a possi-
bilidade da referida avocação legislativa, tornando absoluto o poder normativo
das agências reguladoras.8

6. https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/regen/article/view/5152
7. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/inibidores-de-apetite-
-27102021?amp
8. Um bom panorama sobre essa discussão pode ser encontrado em: ROMERO, Felipe
Lima Araujo. Avocação legislativa da escolha regulatória: teoria e prática da interação entre
agências reguladoras e Poder Legislativo na construção da política regulatória. 2022. 179f.

414
O que a bagagem gratuita em voos revela sobre a dinâmica da regulação

Ocorre que a “reserva de regulação” é uma ideia em disputa até mesmo


no STF, que parecia inicialmente tendente a aceitar sua existência. Destaca-se,
nesse sentido, a posição do próprio ministro Fachin, inicialmente perdedora
na ADI nº 5.501, mas que se tornou divergência vendedora na ADI nº 5.779,
para rejeitar a existência da “reserva de regulação” e permitir a avocação legis-
lativa sob determinadas condições já comentadas aqui.9
Por mais que a aprovação de leis não seja associada de imediato como
um controle parlamentar sobre as agências, trata-se de uma indiscutível ferra-
menta à disposição para o exercício dessa fiscalização — ou, se se prefere, para
a atuação legislativa no jogo de disputa pela produção da regulação. Nessas
arenas simultâneas, além das agências reguladoras e do Legislativo, os demais
players são o presidente da República e o próprio Poder Judiciário, como pro-
vam as ADIs acima referidas.
Vai-se vendo, portanto, que o caso da gratuidade da bagagem é só mais um
entre os demais que vêm contando com uma atuação legislativa “competindo”
com a das agências. O que doravante precisa ser mapeado pela literatura é: 1)
em que situações tal atuação legislativa costuma ocorrer? 2) estaria o Congres-
so Nacional praticando uma “sabotagem regulatória”? 3) são necessariamente
mais legítimas as preferências dos corpos políticos eleitos, em vez das decisões
de técnicos indicados? Essas são só as primeiras perguntas.
A novela sobre a questão da gratuidade do despacho de bagagem é antiga.
O assunto recebeu atenções aqui,10 aqui11 e aqui.12 Considerando que, como
também já explicado em outra ocasião,13 o veto presidencial acarreta a devo-
lução da matéria para o Congresso Nacional, que poderá manter ou não o veto
(art. 66, § 4º, da CF), então, aguardem-se as cenas dos próximos capítulos.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio


de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.
9. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/inibidores-de-apetite-
-27102021?amp
10. https://www.jota.info/stf/supra/cobranca-por-bagagem-o-que-diz-o-direito-2403
2017?amp
11. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-nao-fatiamento-dos-servicos-aereos-
-como-concretizacao-do-interesse-publico-11062019?amp
12. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-teoria-dos-jogos-e-a-cobranca-de-ba-
gagens-no-transporte-aereo-13062022?amp
13. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/cabe-controle-de-constitucionalidade-
-do-veto-presidencial-16072020?amp

415
Nomografia constitucional
Técnicas de elaboração de uma Constituição
e notícias da Constituinte no Chile

Tradicionalmente, a noção de poder constituinte originário recebe a críti-


ca de carregar em si uma ideia autocontraditória, que se vale da ambiguidade
da palavra ‘poder’ – que no direito significa atribuição, competência, faculda-
de, mas no cotidiano também remete à ideia de força, potência, aptidão – para
justificar a derrubada de um sistema jurídico e a fundação de uma nova ordem
constitucional.
É por isso que Genaro Carrió, por exemplo, de modo sagaz vislumbra na
expressão poder constituinte originário um caso do que denominou de “trans-
gressão dos limites da linguagem normativa”, na medida em que a referência a
uma competência inicial e ilimitada do titular de um poder chamado originá-
rio seria algo que carece de sentido. É dizer, a existência de um poder jurídico
pressuporia uma norma prévia que o delimite, o que não existe no caso do
poder constituinte originário.
A ideia de uma competência sem regras capaz de justificar reformas re-
volucionárias de normas constitucionais permanece como aporia, sem que as
manifestações do poder constituinte originário tenham sido capazes de criar,
no âmbito da teoria, diretrizes para o seu exercício (por mais que haja um am-
plo consenso em torno da necessidade de que seja democrático). Tampouco
existe uma teoria geral completa sobre os golpes de Estado, embora alguns
títulos de obras anunciem tal pretensão.

417
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Quando já existe uma ordem constitucional vigente, de que forma se evo-


ca o poder constituinte originário? É possível que seja instituído pelo poder
constituinte derivado (como foi o caso da Emenda Constitucional – EC nº
26/85)? Seria necessário proceder, previamente, a uma consulta plebiscitária
(como ocorreu no Chile no último 25 de outubro de 2020)? As experiências
concretas apontam para diferentes respostas (no Brasil, por exemplo, não hou-
ve consulta popular prévia, nem posterior à redação do texto de 1988).
Disso resulta que o poder constituinte originário pode continuar sendo
“outorgado” (como no caso da Constituição provisória do Iraque1 de 2004),
exercido por intermédio de revoluções e, mesmo quando chamada uma as-
sembleia constituinte, há uma variedade de arranjos possíveis, já que pode ha-
ver ou não uma eleição voltada especificamente para a escolha dos constituin-
tes, os trabalhos podem ser exclusivos ou cumulados com a função legislativa
ordinária e o texto final pode ou não ser submetido a um referendo.
Se o fetiche em torno do poder constituinte originário sempre existiu,
hoje o interesse pelos processos de elaboração das Constituições se torna ain-
da maior e acompanhá-los agora também é mais fácil, como se pode ver pela
experiência contemporânea do Chile. Na página oficial da Convención Cons-
titucional,2 há 13 canais de transmissão simultânea dos trabalhos das comis-
sões, audiências e votações. Há também a conta @convencioncl no Twitter com
notícias e informações.
Nesse contexto mais tecnológico, é até difícil imaginar o cenário relatado
pelo então deputado constituinte Nelson Jobim com relação à Assembleia de
1987-1988: “Vocês hão de perguntar: mas como é que se descobriu o nome das
subcomissões? O que vou contar é literal. Surgido o problema, pegamos os três
volumes que reuniam as constituições ocidentais editadas pelo Senado, e recor-
tamos com tesoura os títulos, os nomes de títulos e capítulos de todas aquelas
constituições. E, durante uma noite inteira, colocando no chão, terminamos a
distribuição daquilo tudo. E aí, surgiu o seguinte: houve títulos, ou nome de títu-
los e capítulos que se reproduziam em todas as constituições. Chamamos, então,
de matéria absolutamente constitucional. Houve nomes de títulos e de capítulos,
que se repetiam na maioria das constituições. Chamamos de matéria relativa-
mente constitucional. E houve um número de títulos de capítulos que se repetiam

1. https://www.refworld.org/docid/45263d612.html
2. https://www.chileconvencion.cl

418
Nomografia constitucional

na minoria das constituições, menos de 50%. Chamamos de matéria relativa-


mente não constitucional. E, por último, capítulos e nomes de títulos de capítulos
que existiam em uma ou outra constituição. E aí nós chamamos de matérias
idiossincrassicamente (sic) constitucionais. Neste modelo é que foram elaboradas
as 25 (sic) subcomissões, que se centravam em grandes temas: as 8 comissões, que
eram os 08 títulos da Constituição de hoje.”3
Daí já vai-se vendo a importância das regras que disciplinam os trabalhos
constituintes, organizam a discussão e a votação. Inclusive, é precisamente esse
o primeiro desafio após a instalação de uma assembleia constituinte: a elabo-
ração de um regimento interno, estabelecendo quem discute o que, quando e
de que forma.
Nesses quase 2 dos 9 meses da Convenção do Chile, os 155 constituintes
se dedicaram a fixar tais procedimentos, que já contam com uma proposta
consolidada.4
Tal regimento interno apresenta alguns pontos sensíveis, como, em pri-
meiro lugar, o quórum. No art. 71, fixou-se a necessidade de votação favorável
de 2/3 para a aprovação do texto constitucional. De acordo com o art. 72, a
proposta que não alcançar tal quórum, mas tenha obtido a maioria dos votos,
será devolvida à comissão respectiva para elaboração de uma segunda propos-
ta.
Em segundo lugar, outro ponto crítico é a composição da Mesa Diretora,
que desempenha papel importante na condução dos trabalhos, sobretudo para
definir questões de ordem, viabilizar acordos e desbloquear discussões. Pelo
art. 23, a Mesa será composta por 9 integrantes, o que significa uma tentativa
de reduzir a desconfiança das decisões, que ficam menos concentradas em
poucos membros.
Em terceiro lugar, é no regimento que traz a estrutura da assembleia,
no caso, as comissões temáticas. A temática é nefrálgica, dado que a opção
por poucas comissões torna mais complexo o processo decisório interno
(pela quantidade de integrantes), ao passo que um número elevado de órgãos

3. JOBIM, Nelson de Azevedo. A Constituinte vista por dentro – vicissitudes, superação e


efetividade de uma história real. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Quinze anos de
Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 09-17, p. 11-12.
4. https://www.cconstituyente.cl/comisiones/verDoc.aspx?prmID=144&prmTipo=DOCU-
MENTO_COMISION

419
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

fracionários pode acabar pulverizando os grupos minoritários, que terão me-


nos possibilidades de influenciar em cada comissão.
Pelo art. 32, são 7 as comissões: 1) Comissão sobre Sistema Político, Go-
verno, Poder Legislativo e Sistema Eleitoral (com 21 membros); 2) Comissão
de Princípios Constitucionais, Democracia, Nacionalidade e Cidadania (com
19 membros); 3) Comissão sobre a Forma Jurídica do Estado, Equidade Ter-
ritorial e Organização Fiscal, Política e Administrativa (com 25 membros); 4)
Comissão de Direitos Fundamentais: Direitos Políticos e Civis (com 21 mem-
bros); 5) Comissão de Direitos Fundamentais: Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais; e Comissão de Direitos Coletivos e Direitos Culturais; e sobre
os Direitos Coletivos dos Povos Indígenas e Nações Pré-existentes ao Estado
(com 25 membros); 6) Comissão sobre Meio Ambiente, Direitos da Natureza,
Bens Comuns e Modelo Econômico (com 25 membros); 7) Comissão sobre
Sistemas de Justiça, Órgãos Autônomos de Controle e Reforma Constitucional
(com 19 membros).
Sem prejuízo, o art. 46 garantiu a possibilidade de criação de outras co-
missões especiais e o art. 47 estabeleceu, como não poderia deixar de ser, uma
comissão de sistematização.
Em quarto lugar, o nó górdio a cargo do regimento interno é a definição
dos procedimentos propriamente ditos, isto é, os ritos, as regras de iniciativa,
emenda, discussão, votação, prazos, etc., tudo de modo a assegurar normas
regimentais capazes de garantir o funcionamento da constituinte em conso-
nância com os objetivos para os quais foi criada.
Naturalmente, tais desenhos institucionais são apenas a moldura em que
os constituintes atuarão, sendo necessário que cada um deles e todos, pessoal-
mente, estejam imbuídos do espírito de cooperação e empenho para superar as
divergências políticas em prol da construção do futuro do país e da realização
das aspirações do povo (por mais problemática que seja essa ideia).
Do ponto de vista da técnica constitucional, parece desnecessário comen-
tar que a redação de uma constituição exige muito mais do que a elaboração
da legislação ordinária. Por isso, convém, recordar um conselho básico da no-
mografia constitucional, o que se passa a fazer na sequência.
Embora não exista uma definição exata sobre o tamanho do texto cons-
titucional, o conteúdo mínimo de uma constituição equivale à definição da
estrutura do Estado e declaração de direitos. Não devem ser inseridas no texto
constitucional matérias que podem ser ajustadas em leis ou normas inferiores,

420
Nomografia constitucional

pois, quanto mais longo for o texto constitucional, maior a projeção desses
mandamentos no plano infraconstitucional e a multiplicação de normas. O
excesso de normas enfraquece a Constituição.
Como insistia Jeremy Bentham, as palavras das leis (e acrescenta-se aqui,
com ainda mais razão, as palavras de uma constituição) devem ser pesadas
como diamantes, pois a vida, a liberdade, a propriedade, etc., dependem das
palavras escolhidas pelos legisladores.
Essa, talvez, seja a principal peculiaridade da técnica de elaboração de
textos constitucionais: uma boa constituição deve ter generalidade, mas, ao
mesmo tempo, deve trazer ambiguidades para tornar suas normas flexíveis
e duradouras. Por exemplo, garante-se a “a inviolabilidade do direito à vida”,
mas sem dizer quando a vida humana começa (se no parto, na nidação ou na
concepção).
Sobretudo diante da falta de consenso entre os constituintes, a utilização
de normas vagas ou de conteúdo mais principiológico, cuja regulamentação e/
ou concretização se deixa a cargo do legislador infraconstitucional, é a manei-
ra de resolver os impasses. Basta um pequeno ajuste na redação (acrescentar
um “na forma da lei”, por exemplo, ou os correlatos “lei regulará”, “lei definirá”,
“lei disporá”, “lei estabelecerá”, “nos termos da lei”, etc.) e a discussão fica para
depois.
Esse tipo de polêmica também pode ser evitado com a adoção do conse-
lho de Josaphat Marinho (que foi senador da República e professor de Direito
Constitucional na Universidade de Brasília): “Importante, também, é que não
se transforme a Constituição em repositório de todas as ideias ou teses em deba-
te, quer as propugnadas por minorias exaltadas, ou as defendidas por maioria
teimosa. Por desenrolar-se, sempre, em número maior de provisões, a Constitui-
ção não deve converter-se em compêndio de polêmica. Inovar não é pleitear e
regular aleatoriamente, mas disciplinar o socialmente útil”.5
Como se vê, a utopia pode surgir como empecilho à boa redação da Cons-
tituição. Convém evitá-la em processos constituintes.
A convocação do poder constituinte originário nos tempos atuais é criti-
cada, por vezes, por ter-se transformado em estratégia política populista que

5. MARINHO, Josaphat. Técnica constitucional e nova Constituição. Revista de Informação


Legislativa, v. 21, n. 81, pp. 141-152, 1984, p. 149.

421
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

permite o entusiasmo de multidões (com a promessa ilusória de mudanças


profundas no sistema político) e mantém a todos, especialmente os partidos
de oposição, ocupados com as complicações do processo em uma assembleia
constituinte.
Contra essa falsa ideia de um poder constituinte originário chamado de-
magogicamente para remediar crises institucionais (como se fosse capaz de
fazê-lo em um passe de mágica), a teoria do direito constitucional de hoje ofe-
rece um antídoto ainda fraco. Definitivamente, é preciso revisitar o capítulo
das técnicas e da nomografia constitucional para a contemporaneidade.
Fica a torcida para que o Chile não tenha caído em uma armadilha e que
também o Brasil fique à salvo dessa eventual maldição que pode ser a redação
de uma nova constituição.

422
Será o fim do Tribunal
Constitucional no Chile?
Constituintes propõem eliminar a Corte, o
controle preventivo e instituir mecanismo
de deferência ao Legislativo

Neste mês de janeiro de 2022, completam-se seis meses dos trabalhos da


Assembleia Constituinte em curso no Chile. Na coluna passada,1 recomen-
dou-se o acompanhamento das suas discussões, pois podem dizer bastante so-
bre os rumos do constitucionalismo latino-americano na contemporaneidade.
Dito e feito.
No último dia 30 de dezembro, um grupo de constituintes da conven-
ção constitucional chilena apresentou uma proposta para eliminar o Tribunal
Constitucional2 daquele país, de modo que o controle de constitucionalidade
passe a ser desempenhado pela Corte Suprema, mais especificamente por uma
turma formada por nove juízes escolhidos por sorteio.
De acordo com a proposta do grupo de constituintes chilenos, o problema
do Tribunal Constitucional estaria, entre outras razões, em que seus ministros

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/nomografia-constitucio-
nal-01092021?amp
2. https://images.jota.info/wp-content/uploads/2022/01/89-6-iniciativa-convencional-cons-
tituyente-del-cc-christian-viera-y-otros.pdf

423
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

são escolhidos por critérios políticos, mas sem o pedigree democrático. Re-
clama-se, ainda, que vem ocorrendo diversas deturpações no funcionamento
concreto do controle de constitucionalidade daquele país (em especial, o surgi-
mento de uma litigância estratégica e o manejo de expedientes protelatórios).
Antes de comentar a proposta, aqui cabe um breve parêntese para expli-
car como ocorre atualmente o controle de constitucionalidade no Chile. Nesse
país, tanto o controle preventivo, quanto o posterior das leis são confiados ao
Tribunal Constitucional, que passou por uma reforma em 2005, por intermé-
dio da Lei 20.050.
Desde então, o Tribunal Constitucional chileno é composto por 10 minis-
tros: 3 indicados pelo presidente da República, 4 indicados pelo Senado (dos
quais dois são de livre escolha e os outros dois por indicação da Câmara dos
Deputados), e 3 membros são designados pela Corte Suprema. Os ministros
são nomeados para um mandato de nove anos (até o limite de 75 anos de ida-
de), sem possibilidade de reeleição – exceto os escolhidos para o que seriam os
mandatos-tampão e tenham exercido o cargo por menos de cinco anos.
O controle preventivo (antes da promulgação das leis) foi instituído como
obrigatório nas seguintes situações: leis que interpretem um preceito da Cons-
tituição; leis orgânicas (com previsão constitucional); e normas de um trata-
do que versem sobre tais matérias. Nessa modalidade de controle obrigatório,
quando o processo legislativo é finalizado no Congresso, a Casa Legislativa
de origem envia ao Tribunal Constitucional o projeto respectivo, no prazo de
cinco dias do fim da tramitação legislativa.
Além do obrigatório, o controle preventivo de constitucionalidade facul-
tativo pode ser suscitado na tramitação de projetos de lei, de reforma consti-
tucional e de tratados submetidos à aprovação do Congresso (também ao final
dos trabalhos legislativos, o que é importante para a autonomia parlamentar).
Nesse caso, o requerimento deve vir do presidente da República, de qualquer
das Casas Legislativas ou de 1/4 dos seus membros (em exercício), desde que
formulado antes da promulgação da lei ou da remessa da comunicação que
informa a aprovação do tratado pelo Congresso, também dentro dos cinco
dias do despacho.
O Tribunal Constitucional deve resolver a questão no prazo de dez dias
contados do recebimento do requerimento, a menos que decida prorrogar por
outros dez dias por motivos graves e qualificados.

424
Será o fim do Tribunal Constitucional no Chile?

Ainda de acordo com o procedimento chileno, o acionamento do con-


trole preventivo não suspende a tramitação do projeto de lei, mas a sua parte
impugnada não poderá ser promulgada até o fim do prazo para a decisão do
Tribunal Constitucional, com exceção do projeto de lei orçamentária ou do
que declare guerra (propostos pelo presidente da República).
Se o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade das disposi-
ções impugnadas, estas não poderão ser convertidas em lei na proposta ques-
tionada. Aqui, sim, poder-se-ia falar em “última palavra”.
Por seu turno, o controle de constitucionalidade posterior é concreto e
está previsto como incidente no âmbito de discussões judiciais em curso pe-
rante os tribunais. Qualquer das partes ou o juiz da causa pode suscitar a in-
constitucionalidade e, admitida a questão perante o Tribunal Constitucional,
não cabe qualquer recurso dessa decisão. Além disso, o órgão que admite o
incidente pode suspender o processo de origem até a decisão sobre a incons-
titucionalidade.
O grande questionamento em torno do Tribunal Constitucional chileno –
e essa crítica certamente seria aplicável para Cortes constitucionais de outros
países – está na consideração de que vem funcionando, na prática, como uma
terceira Casa Legislativa.
No Chile, essa controvérsia se acentuou, de modo especial, após um jul-
gamento envolvendo o reconhecimento do exercício da chamada objeção de
consciência institucional (por parte de instituições privadas com convênios
com o poder público), a qual não poderia ser limitada, como pretendia um
projeto de lei que afastaria a possibilidade de objeção de consciência por mé-
dicos e nosocômios nos casos em que o aborto não é crime.
Com o julgamento do Tribunal Constitucional, o resultado foi precisa-
mente o contrário do que pretendia o Poder Legislativo, ou seja, manteve-se a
possibilidade da recusa de praticar-se o aborto por razões de foro íntimo.
Por seu turno, a Corte Suprema de Justiça chilena, para onde seria transfe-
rida a competência da jurisdição constitucional segundo a proposta, é formada
por 21 ministros, dos quais 16 são da carreira judicial e 5 são advogados (es-
tranhos à administração da Justiça). Como predominam juízes profissionais, a
crença é a de que essa corte tenderia a ser menos política.
A proposta para eliminar o Tribunal Constitucional está assinada pelos
constituintes Fernando Atria, Giovanna Roa, Amaya Alvez, Beatriz Sánchez,
Ignacio Achurra, Damaris Abarca, Jaime Bassa, Christian Viera, Constanza

425
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Schonhaut, Jeniffer Mella, Yarela Gómez, Mauricio Daza, Hugo Gutiérrez, Ma-
nuela Royo e Vanessa Hoppe.
Um dos constituintes que assinam a proposta, Fernando Atria, insiste que
ela não implica a abolição da jurisdição constitucional ou do controle de cons-
titucionalidade, mas sim uma modificação substantiva na forma como este é
exercido. Afirma que existem múltiplas razões para isso, principalmente o des-
prestígio do Tribunal Constitucional chileno, que se transformou, na prática,
em um legislador (na “terceira Câmara Legislativa”, como repete com frequên-
cia). O objetivo seria, portanto, o de atualizar o controle de constitucionalida-
de em termos democráticos.
O conteúdo da proposta do grupo de constituintes chilenos elimina o
controle preventivo acima explicado – que é considerado uma “anomalia” pelo
constituinte Fernando Atria – e transfere a competência do controle repressivo
para a Corte Suprema de Justiça. Na visão desse constituinte, que também é
um renomado professor de direito constitucional na Universidade do Chile,
o problema estaria na instituição do Tribunal Constitucional, isto é, no órgão
encarregado, não no controle de constitucionalidade em si.
A grande novidade da proposta reside na instituição de um tipo de con-
trole de constitucionalidade chamado “fraco”, ou seja, por intermédio do inci-
dente que acolhe a inconstitucionalidade de uma lei se remete ao Congresso
chileno para que, mediante um processo legislativo simplificado, sejam con-
templadas (ou não) as observações da Corte Suprema sobre a lei questionada.
Sem prejuízo, a modificação do dispositivo não impede o acolhimento de nova
questão de inconstitucionalidade.
Na explicação do constituinte Christian Viera, trata-se de instituir um
mecanismo de deferência ao Poder Legislativo, na medida em que os órgãos
tradicionalmente encarregados da revisão judicial não possuem legitimação
democrática. Com isso, na visão compartilhada por Fernando Atria, seriam
corrigidas as “patologias” do funcionamento do Tribunal Constitucional chi-
leno.
Todo o cuidado dos proponentes – e isso pode ser verificado neste vídeo3
– está em insistir que não se está eliminando o controle de constitucionalidade,

3. https://www.youtube.com/watch?v=bULp3Gju1_o

426
Será o fim do Tribunal Constitucional no Chile?

mas sim a ideia de que “Tribunal Constitucional e justiça constitucional sejam


sinônimos”.
É duvidoso que a proposta tenha votos suficientes para ser aprovada e,
além disso, tampouco há garantias de que esse ajuste no desenho institucional
vá solucionar o problema da “judicial review”. Não se trata de uma questão de
eliminar a substituição da vontade dos legisladores pela vontade dos juízes,
simplesmente, mas sim de como fazer com que a vontade de qualquer um
desses (legisladores ou juízes) não prevaleça em detrimento da vontade que
verdadeiramente importa, que é a do povo, consignada na Constituição.
Seja como for, o que se pode afirmar quanto a essa proposta é, em primei-
ro lugar, a ingenuidade da crença de que a alteração do órgão encarregado de
exercer o controle de constitucionalidade eliminaria a politização dessa ativi-
dade. A jurisdição constitucional tem (e sempre terá) matiz político, além de
jurídico, seja quem for o encarregado de exercê-la. Portanto, a cargo de quem
for, a politização do controle de constitucionalidade é inevitável.
Além disso, a proposta sequer pode ser considerada uma “desespeciali-
zação” do controle de constitucionalidade, pois, no lugar de um tribunal es-
pecializado o que haverá é simplesmente uma “turma” especializada em outra
corte. Ou seja, a medida resulta algo inócua. E mesmo que o objetivo fosse
desespecializar o tribunal, esta seria uma medida inédita, pois não há registros
de países que tenham seguido por caminho parecido. Na verdade, isso iria na
contramão da experiência internacional.
Nesse sentido, trata-se de um equívoco a premissa de que os problemas do
Tribunal Constitucional possam ser resolvidos a partir do seu mero redesenho
institucional ou da modificação do sistema de indicação de seus membros.
Além disso, seria necessário redesenhar as ações constitucionais, racionalizar
os procedimentos internos, o acesso ao tribunal, minimizar os mecanismos
que permitem a ação estratégica por parte dos atores, a manipulação do tempo
decisório, a interferência no debate estritamente político etc.
Mas nada disso conduziria à eliminação do tribunal como solução.
Em segundo lugar, anda mal a ideia de que o controle preventivo de cons-
titucionalidade seja uma “anomalia”. Em Portugal, por exemplo, tem-se um
exemplo de como o controle preventivo pode constituir uma peça relevante
(embora, claro, não isento de críticas). Um desenho em que tal controle ocor-
ra após o fim da tramitação da proposta no Poder Legislativo – tal como um
veto por razões de inconstitucionalidade, envolvendo o tribunal na elaboração

427
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

legislativa – pode ser algo bom para prevenir que se promulgue uma lei in-
constitucional. Portanto, abolir o controle preventivo parece um retrocesso.
Nada obstante, em terceiro lugar, parece positiva a ideia proposta de que
os juízes constitucionais tenham que adotar uma postura de alguma deferência
para com o Poder Legislativo, especialmente quando a inconstitucionalidade
não seja flagrante ou haja dúvidas, isto é, quando a Constituição não fechou as
portas para uma gama de decisões possíveis – a serem tomadas, preferencial-
mente, via procedimento democrático nos parlamentos. Daí a importância do
mecanismo de deferência que ressalta o espaço de conformação do legislador
e induz à autocontenção do tribunal (judicial self-restraint).
Ocorre que, nos moldes da proposta chilena, fixa-se apenas uma oportu-
nidade para o Legislativo se manifestar, sem que a chamada “última palavra”
corresponda aos legisladores, na medida em que sempre existirá a possibili-
dade de a norma inconstitucional cair na “malha fina” do controle repressi-
vo. Além disso, o Congresso sempre pode agir após uma decisão do Tribunal
Constitucional – alterando a lei ou a Constituição –, não sendo necessária uma
previsão expressa nesse sentido.
Com isso, a proposta chilena se diferencia do sistema existente em países
como Reino Unido, Canadá, Nova Zelândia e Suécia, quanto aos quais tam-
bém seria possível falar em um constitucionalismo “fraco” – expressão essa
absolutamente infeliz para refletir o significado do esquema em que aos juízes
corresponde a “penúltima” palavra. Assim, a deferência ao legislador que se
pretende instituir no Chile não chega sequer perto da cláusula não obstante
(notwithstanding clause).
A proposta ainda será debatida, podendo ser modificada ou mesmo nem
prosperar. De toda forma, todo esse percurso serve para que se perceba o
seguinte: permanece sem resposta a questão do desenho institucional apro-
priado ao funcionamento do constitucionalismo democrático na contempo-
raneidade. Ao que parece, não existe uma “fórmula perfeita”, e o importante é
garantir a supremacia constitucional (não a judicial ou a legislativa) da melhor
forma possível. Um sistema bom é um sistema que funcione bem na prática,
para o que parece imprescindível o respeito aos mecanismos da democracia
representativa.

428
A solução da nova Constituição
chilena para o ativismo judicial
Cidadãos chilenos votam novo texto constitucional
em referendo no próximo dia 4 de setembro

Em textos passados, a coluna já tratou da Constituinte chilena1 e des-


tacou os termos de uma de suas propostas mais polêmicas, voltada para eli-
minar o Tribunal Constitucional daquele país.2 Agora, é chegada a hora de
noticiar que, ao fim, a ideia não vingou, e a Corte Constitucional foi mantida
na proposta da nova Constituição do Chile,3 que será objeto de referendo dos
cidadãos no próximo dia 4 de setembro de 2022.
Então, vale a pena conferir como ficou a disciplina da matéria e, em espe-
cial, a “solução” proposta para o problema do ativismo judicial no Chile.
Eis o que estabelece o artigo 377 da proposta de Constituição chilena,
em tradução livre: “O Tribunal Constitucional é um órgão autônomo, técnico
e profissional, encarregado de exercer a justiça constitucional para garantir a

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/nomografia-constitucio-
nal-01092021?amp
2. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/tribunal-constitucional-
-chile-19012022
3. https://www.chileconvencion.cl/wp-content/uploads/2022/07/Texto-Definitivo-CPR-
-2022-Tapas.pdf

429
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

supremacia da Constituição, de acordo com os princípios da deferência ao legis-


lador, da presunção da constitucionalidade da lei e da busca de uma interpreta-
ção conforme à Constituição. As suas decisões se baseiam-se exclusivamente em
fundamentos jurídicos”.
Do texto, chama a atenção para a positivação de uma clara diretriz in-
terpretativa a ser adotada pela Corte Constitucional, qual seja, a deferência ao
legislador. Essa estratégia de dizer como os juízes devem interpretar as normas
não é nova, embora um tanto quanto ingênua, e já foi objeto de crítica em
coluna passada4 quando se comentava sobre a tentativa de proibir os juízes
de usar a equidade na fixação dos honorários advocatícios (art. 85, § 8º, CPC).
Mas será tão inútil assim tal previsão expressa?
Nunca é demais recordar que o princípio da presunção de constituciona-
lidade impõe a quem sustenta a inconstitucionalidade de uma lei a carga de
argumentar convincentemente que existe uma incompatibilidade entre o que
expressa o texto legislativo atacado e o que determina o texto constitucional.
Daí que qualquer dúvida acerca da interpretação correta a ser dada um texto
deve ser resolvida em favor da lei, isto é, in dubio pro legislatore.
Juízes e tribunais devem presumir que o legislador não quis aprovar uma
norma inconstitucional, tanto nos casos em que as dúvidas digam respeito ao
texto da lei, quanto naqueles em que a falta de clareza reside na própria Cons-
tituição. O in dubio pro legislatore se trata de uma ficção jurídica para tornar
manejável o Direito, uma presunção relativa em favor das leis e atos normati-
vos em geral.
Essa ideia já foi advogada desde 1893 por James Thayler em “The Origin
and Scope of the American Doctrine of Constitutional Law”:5 juízes não devem
declarar todas as leis que considere inconstitucionais, mas somente aquelas em
que a violação da Constituição seja tão manifesta, que não deixe espaço para a
dúvida razoável (p. 140). Ou seja, a violação precisa ser patente e clara.
O princípio da presunção de constitucionalidade se associa, então, ao
princípio da interpretação conforme à Constituição, este último servindo para
operacionalizar o primeiro, a partir da autolimitação da atuação do Poder

4. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/os-legisladores-os-jui-
zes-os-advogados-e-a-equidade-19082020
5. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/os-legisladores-os-jui-
zes-os-advogados-e-a-equidade-19082020

430
A solução da nova Constituição chilena para o ativismo judicial

Judiciário, que nada mais é do que, precisamente, a postura de deferência ao


legislador. A justificativa subjacente a tudo isso advém da legitimidade demo-
crática dos legisladores, representantes eleitos pelo povo para promover o in-
teresse público.
No Brasil, notadamente no STF, é curioso observar que o tema da deferên-
cia vem aparecendo cada vez mais na jurisprudência da Corte, muito embora
a expressão venha sendo empregada com diversos parâmetros e com grandes
disparidades entre os ministros. Na data em que este texto está sendo escrito
(em 28 de agosto de 2022), foram encontrados apenas 68 acórdãos em resposta
à chave de busca “deferência” na página do STF.
Entre os ministros, em 1º lugar está o ministro Luiz Fux, que usou a pa-
lavra “deferência” em 45 decisões de sua lavra, ao passo que o ministro Celso
de Mello (um dos mais longevos da Corte), só em uma decisão. Marco Aurélio
aparece em 2º lugar, com dez decisões; Barroso em 3º lugar, com seis; Gilmar
Mendes e Rosa Weber empatados em 4º lugar, cada um com três decisões; e
Cármen Lúcia, Edson Fachin e Alexandre de Moraes só usaram a palavra “de-
ferência” em duas decisões.
Esses números, mesmo superficiais, são sintomáticos do quanto a juris-
dição constitucional brasileira discute pouco e ainda precisa amadurecer na
construção de indicadores que justifiquem a deferência ao legislador. O atual
estado da arte da jurisprudência do STF sobre deferência ainda muito é inci-
piente, mas na sequência vão algumas pinceladas aleatórias do seu panorama
atual.
Por ocasião do julgamento da ADC nº 41, por exemplo, afirmou-se que
juízes e tribunais não devem declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo quando: 1) a inconstitucionalidade não for patente e inequívoca,
existindo tese jurídica razoável para preservação da norma (princípio do in
dubio pro legislatore); 2) seja possível decidir a questão por outro fundamen-
to, evitando-se a invalidação de ato de outro poder; 3) existir interpretação
alternativa possível, que permita afirmar a compatibilidade da norma com a
Constituição (princípio da interpretação conforme a Constituição).
A referida decisão ainda avança nos seguintes parâmetros para concreti-
zar a diretriz de deferência ao legislador: “(i) o grau de legitimidade democrá-
tica do ato normativo, que se refere à necessidade de conferir tanto mais peso à
presunção de constitucionalidade quanto maior o grau de consenso parlamentar
e extraparlamentar atingido durante a sua tramitação e votação; (ii) a proteção
de minorias estigmatizadas, que diz respeito à possibilidade de enfraquecer a

431
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

presunção em questão quando a norma limitar direitos de grupos minoritários,


ou de reforçá-la quando, ao contrário, houver benefícios em termos de proteção
desses grupos e de seus interesses, e (iii) a relevância material do direito funda-
mental em jogo, que recomenda um escrutínio mais rigoroso nos casos de nor-
mas que restrinjam direitos básicos, de alto valor axiológico, como a dignidade
humana, a igualdade e a liberdade de expressão” (p. 37).
Já na SL nº 1.425-AgR, adotou-se a deferência sob o argumento de que o
caso concreto envolvia controvérsia de “natureza técnico-científica” e existia
“decisão administrativa suficientemente fundamentada e sem aparente ilegali-
dade”. Por isso, nas palavras do ministro Luiz Fux, “cabe ao Poder Judiciário
atuar em princípio com deferência em relação às decisões técnicas formuladas
por órgãos governamentais que detém maior capacidade institucional para o
equacionamento da discussão” (p. 8).
De forma semelhante, na ADPF nº 825, também se fez menção à comple-
xidade da matéria para justificar a deferência.
Por seu turno, no MS nº 36.062-AgR, afirmou-se que a conjuntura fática
delineada não destoou dos parâmetros da razoabilidade e juridicidade, o que
justificaria a postura de deferência aos órgãos com competências técnicas (no
caso, o CNJ) para não converter o STF em instância recursal de decisões ad-
ministrativas.
Já na ADI nº 5.062 a deferência foi justificada por estar-se diante de deci-
são legislativa “motivada com clareza e consistência” (p. 64), notadamente pelo
fato de que o processo legislativo que originou a lei impugnada contou com
documentos e relatos de interessados e especialistas ouvidos em audiências
públicas conduzidas pelos legisladores.
Em comum, os casos revelam que a racionalidade “procedimental” da de-
cisão questionada seria um indicador importante para a construção da defe-
rência.
Inclusive, não por acaso veio à luz a discussão trazida em coluna passada,6
sobre o exame judicial da justificação legislativa e da qualidade “procedimen-
tal” como elementos que atestariam a racionalidade legislativa (e, potencial-
mente, a constitucionalidade das leis). Por mais que esse tipo de controle ainda

6. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/devem-os-juizes-exami-
nar-os-argumentos-do-legislativo-05012022

432
A solução da nova Constituição chilena para o ativismo judicial

não conte com parâmetros seguros e tenha seus problemas, como já apontado
aqui,7 tem potencial para funcionar como forma de deferência ao legislador.
Algumas vezes, só o exame dos materiais legislativos conduz à compreensão
das leis.
Retornando ao texto proposto para a nova Constituição chilena, por mais
que o dispositivo com os princípios da deferência ao legislador, da presun-
ção da constitucionalidade da lei e da busca de uma interpretação conforme
à Constituição vá ser interpretado pelos próprios juízes da Corte Constitucio-
nal e não necessariamente represente uma garantia contra decisões “criativas”,
contra legem ou mesmo contra constitutionem, trata-se de uma clara mensa-
gem que a assembleia constituinte chilena envia aos seus magistrados.
O ativismo judicial é tão indesejável no Chile quanto no Brasil. Lá, o re-
cado está sendo escrito no texto constitucional. Aqui, conforme assentado na
Questão de Ordem nº 11/2011 da Câmara dos Deputados,8 diante de uma
intromissão indevida sobre as prerrogativas dos legisladores, só resta ao Po-
der Legislativo o exercício do seu poder de legislar ou, conforme o caso, de
reformar a Constituição. Até agora, das vezes em que a resposta do Congresso
Nacional veio via emenda à CF, essa foi a posição mantida, ultrapassando-se
eventual jurisprudência do STF em contrário.
No Brasil, o problema é que o ativismo judicial já não mais pode ser con-
trarrestado pela constitucionalização de alguma norma, pois a expansão judi-
cial não vem se limitando à mera interpretação de umas poucas regras, e hoje
avança sobre princípios e valores basilares e estruturantes do ordenamento
jurídico.
Agora, resta saber quais serão os rumos do constitucionalismo chileno,
se é que o texto proposto pelo poder constituinte para a nova Constituição vai
ser referendado por lá no próximo dia 4 de setembro, e do constitucionalismo
brasileiro, se é que restarão poderes para neutralizar os eventuais excessos pro-
venientes de quaisquer dos demais Poderes constituídos da República.

7. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/controle-de-constitucio-
nalidade-qualidade-deliberacao-legislativa-14102020
8. https://www2.camara.leg.br/buscaQordem/

433
ELEITORAL
Ca p í tu lo 6
É constitucional a inelegibilidade
do parlamentar cassado
por quebra de decoro?
O caso Eduardo Cunha

Como foi amplamente noticiado, inclusive pelo JOTA,1 no último dia 21


de julho uma decisão monocrática do desembargador Carlos Augusto Pires
Brandão, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em sede de agra-
vo de instrumento, antecipou a pretensão recursal pleiteada para suspender os
efeitos da Resolução nº 18/2016, da Câmara dos Deputados2 — que tinha de-
clarado a perda do mandato parlamentar do então deputado federal Eduardo
Cunha por conduta incompatível com o decoro parlamentar, com fundamento
no art. 55, inciso II, da CF —, afastando a inelegibilidade e a proibição de ocu-
par cargos federais em face do ex-deputado.
A Ação Anulatória nº 1063205-68.2021.4.01.3400 foi proposta por Eduar-
do Cunha contra a União na Seção Judiciária do Distrito Federal, está tra-
mitando na 22ª Vara Federal, os autos são públicos e já contam com mais de
7.000 páginas (só a petição inicial tem 103 páginas). Os pedidos formulados

1. https://www.jota.info/justica/eduardo-cunha-recupera-direitos-politicos-e-podera-dispu-
tar-eleicao-em-outubro-22072022
2. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescad/2016/resolucaodacamaradosdeputados-
-18-12-setembro-2016-783595-publicacaooriginal-151055-pl.html

437
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

foram para: a) declarar a nulidade da sessão deliberativa extraordinária de


12/09/2016; e b) declarar a nulidade da mencionada Resolução nº 18/2016,
sua ineficácia jurídica, ou, subsidiariamente, sua inexistência.
É curioso observar que, a rigor, essa é uma ação que deveria ter sido pro-
posta perante o STF, com fundamento no art. 102, inciso I, alínea a, da CF,
valendo lembrar que as resoluções das Casas Legislativas são atos normativos
primários elencadas no art. 59, inciso VII, da CF, e o fato de terem efeitos con-
cretos não é óbice ao seu conhecimento pela jurisdição constitucional, aplican-
do-se por analogia o já decidido nas ADIs nº 4.048 e nº 4.049, e reiterado em
diversas ocasiões (por exemplo, ADI nº 5.449-MC-Ref).
Além disso, a hipótese se amolda ao previsto no art. 1º, § 1º, da Lei
8.437/1992, que veda a concessão de liminares quando impugnado ato de au-
toridade sujeita, na via de mandado de segurança, à competência originária de
tribunal. No caso, essa autoridade seria o presidente da Câmara, cujas com-
petências constitucionais quando atacadas via writ não são escrutináveis pela
jurisdição ordinária, mas apenas pelo STF.
É desnecessário afirmar, ainda, que o exercício da competência disciplinar
é ato privativo das Casas Legislativas, típica matéria interna corporis. A rigor,
pelo art. 2º da CF, não cabe qualquer reexame judicial quanto ao enquadra-
mento dos fatos à qualificação normativa dada (isto é, a tipicidade da conduta
parlamentar punida) ou quanto à proporcionalidade da pena político-disci-
plinar aplicada pelo Poder Legislativo, justamente porque tal juízo envolve
análise de mérito. Eventual escrutínio estaria restrito à verificação de que o
processo assegurou a ampla defesa (art. 55, § 2º, da CF).
Mas existem problemas ainda mais graves nesse caso Eduardo Cunha.
Antes de indicá-los, convém uma pequena volta.
Como sabido, a atual CF, art. 14, § 9º, delegou ao legislador complementar
a regulação das hipóteses de inelegibilidade, de modo praticamente integral. É
na LC 64/1990, que a matéria encontra sua atual disciplina. A inelegibilidade
dos parlamentares cassados nos termos do art. 55, II, da CF, figura logo do
art. 1º, inciso I, alínea b, da LC 64/1990, cuja redação dada pela LC 81/1994
fixou a duração da inelegibilidade: para as eleições que se realizarem durante
o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos
subsequentes ao término da legislatura.
A aplicação do dispositivo legal conduzia a que somente em 2027 o ex-de-
putado e ex-presidente da Câmara recobraria seus direitos políticos.

438
É constitucional a inelegibilidade do parlamentar cassado por quebra de decoro?

Vale registrar que a atual redação da lei foi declarada constitucional pelo
STF na ADI nº 4.089, na qual se afirmou a liberdade de conformação do legis-
lador na matéria. Daqui viria uma primeira reflexão: deveria a inelegibilidade
ser matéria sob reserva de Constituição?
Talvez, sim, e assim o foi até a Constituição de 1946, que regulava de for-
ma integral a questão das inelegibilidades. No entanto, com a EC 14/1965, art.
2º, abriu-se o permissivo para que lei especial estabelecesse novas inelegibili-
dades, desde que fundadas na necessidade de preservação do regime demo-
crático, da exação e probidade administrativas e da lisura e normalidade das
eleições contra o abuso do poder econômico e uso indevido da influência de
exercício de cargos ou funções públicas.
Com isso, surgiu a primeira lei de inelegibilidades (Lei 4.738/65) e esse
modelo inaugurado no governo militar foi mantido desde então, o que tam-
bém explica o advento, mais recentemente, da LC 135/2010 (a Lei da Ficha
Limpa), que promoveu diversas alterações na LC 64/1990.
Não que a atual disciplina seja ruim, a questão é que a ênfase na ideia de
um candidato “ficha limpa” (com ênfase na ausência de condenações judiciais)
acaba promovendo uma substituição da “responsabilidade política” por uma
“responsabilidade jurídico-criminal”. E é aí que mora o perigo.
Em coluna passada,3 já se discorreu sobre o papel e os limites da atuação
dos Conselhos de Ética e Decoro Parlamentar das Casas Legislativas, enfati-
zando que tais órgãos têm competência para, tão-somente, “propor” a apli-
cação de penalidades, sendo a decisão final a cargo do plenário da respectiva
Casa Legislativa. Como explicado, os Conselhos de Ética sequer têm assento
constitucional e não contam com poderes de investigação próprios das autori-
dades judiciais, diferentemente das CPIs (art. 58, § 3º, da CF).
O processo por quebra de decoro no âmbito do Conselho de Ética é con-
duzido nos termos da resolução de cada Casa e a cassação (ou não) é com-
petência do plenário, necessariamente, o qual é livre para acolher ou não a
posição do Conselho de Ética, seja ela qual for. Trata-se de uma decisão polí-
tica, em cujo processo o único requisito determinado pela CF é o de que seja
“assegurada ampla defesa” (art. 55, § 2º, da CF).

3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/conselhos-de-etica-deco-
ro-parlamentar-28102020

439
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

A decisão judicial do caso Eduardo Cunha, no entanto, subverte tal ra-


tio, atribui ao Conselho de Ética a competência disciplinar, e exige que seu
funcionamento se dê de forma análoga às demais comissões previstas no art.
58 da CF. Isso para que suas decisões de instrução tivessem que ser obrigato-
riamente colegiadas, e não nos termos do art. 14, § 4º, inciso VI, da Resolução
nº 25/2001, da Câmara dos Deputados (pelo qual, apresentada a defesa, é o
relator da matéria que procederá às diligências e à instrução probatória que
entender necessárias). Tal norma passou batida no debate.
Ao acolher tal argumentação, a decisão desconsiderou o efeito multipli-
cador que essa tese terá em relação a todos os outros processos por quebra de
decoro junto à Câmara, já que a atuação do relator de forma isolada advém do
próprio desenho normativo indicado acima. Se isso viola o devido processo
legal, então esse vício macularia todos os processos de cassação.
Na petição inicial da ação anulatória, o cerne da argumentação tinha sido
a violação do devido processo legal e o prejuízo à ampla defesa, na medida em
que, fora do cargo — por determinação do então ministro Teori Zavascki no
âmbito da AC nº 4.070 —, o autor teria sido privado das condições de articula-
ção política para a sua defesa. Além disso — segue o argumento —, o próprio
STF, no MS nº 25.579 (caso José Dirceu), garantiu que o parlamentar, enquan-
to investido no cargo de ministro de Estado, não poderia ser processado por
quebra de decoro, devendo-se aguardar seu retorno.
Quanto a esse ponto, é necessário reconhecer que Eduardo Cunha teria
razão, mas a questão foi rejeitada pelo STF no MS nº 34.327. Nada obstante,
o autor seguiu argumentando, ainda, que o Conselho de Ética e o plenário da
Câmara dos Deputados teriam “substituído” a jurisdição criminal. Isso porque
o julgamento teria ocorrido a partir de representação que teria se limitado a
transcrever, per relationem, os termos da denúncia oferecida pelo PGR ao STF
no INQ nº 3.983. Com isso, teria sido negada a independência das instâncias.
Ocorre que, precisamente pela independência de instâncias, é que a res-
ponsabilidade política não implica, não pressupõe e não exclui a responsabi-
lidade jurídica, seja penal, seja cível. As esferas jurídica e política caminham
separadas, e, a rigor, nem mesmo o art. 386 do CPP seria aplicável ao poder
disciplinar do Legislativo. Inclusive, nas situações de dupla tipicidade (ato in-
decoroso e crime), a circunstância de o ato estar sendo investigado criminal-
mente não inibe que se inicie o processo de responsabilização política.
É dizer, não há sentido em que o Poder Legislativo tenha que esperar por
uma decisão do Poder Judiciário para iniciar um processo de atribuição de

440
É constitucional a inelegibilidade do parlamentar cassado por quebra de decoro?

responsabilidade política. Entender o contrário é confundir a esfera político-


-disciplinar parlamentar com a persecução penal e privar a Casa Legislativa de
atuar justamente nas situações mais graves: quando as condutas também são
tipificadas como crimes. Assim, está mais que justificado por que tais instân-
cias devem trabalhar separadamente.
Como se vê, não há que se confundir a responsabilidade jurídica e a res-
ponsabilidade política. Até a linguagem de uma é diferente da outra. Do ponto
de vista político, em um processo por quebra de decoro parlamentar, argu-
mentações de defesa centradas em formalidades técnico-jurídicas (pedido de
perícia de documentos, inversão da ordem de oitiva das testemunhas etc.) só
aumentam as suspeitas em torno do acusado no caso.
Nesse tipo de processo político, desde uma ótica estratégica, tem muito
mais êxito uma defesa com foco na trajetória pessoal honrada do parlamentar
e na incitação de reflexões sobre o que é, afinal, “decoro parlamentar” – res-
significando o termo ou para tentar forçar um “erro” de conduta – do que
com base em quaisquer outros argumentos, sobretudo os de ordem formal ou
procedimental. Os critérios de honradez não coincidem com os de legalidade.
É por isso que não faz sentido que o agente político apeado do cargo se
valha de argumentos típicos do processo penal para anular a punição política e
esvaziar a operatividade dos mecanismos de responsabilização disciplinar dos
parlamentares. Data maxima venia, a decisão judicial que acolhe esse tipo de
argumentação mal compreende o papel do parlamento e da cassação por que-
bra de decoro. Foi exatamente o que ocorreu no caso Eduardo Cunha.
Seria possível continuar criticando a decisão judicial, por exemplo, por
ter usado na sua fundamentação jurisprudência que versa, não sobre a revisão
judicial do poder disciplinar das Casas Legislativas, mas sim sobre CPIs, o que
é totalmente descabido, como frisado acima. As normas de funcionamento do
Conselho de Ética são diferentes das aplicáveis às comissões.
Mas, por limitações de espaço, pontua-se só que o mais importante é o se-
guinte: sem dúvidas, é pelo voto que melhor se pode atribuir responsabilidade
política aos representantes do povo; no entanto, o voto não pode ser o único
mecanismo de responsabilização política. O sistema somente será saudável se
presente uma combinação de diversos controles das condutas dos agentes po-
líticos. Daí a constitucionalidade da inelegibilidade do parlamentar cassado
por quebra de decoro, por mais que a previsão venha só da lei e não da Cons-
tituição.

441
Como contar os prazos de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa?

Como contar os prazos de


inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa?
Decisão na ADI 7.197 poderá permitir
‘fichas sujas’ nas eleições 2022

Além do caso comentado na coluna passada,1 nos últimos dias tem sido
possível acompanhar pela imprensa diversas outras decisões judiciais suspen-
dendo os efeitos da inelegibilidade para permitir que candidatos cujos direitos
políticos tecnicamente ainda estariam suspensos participem das eleições 2022.
Foi o que aconteceu aqui,2 aqui3 e aqui.4
A essas discussões – que definitivamente fazem pensar que ser “ficha lim-
pa” é coisa do passado –, soma-se o debate trazido na ADI 7.197, que poderá
acabar permitindo de uma vez por todas que candidatos “ficha suja” parti-
cipem do pleito eleitoral. A ação foi ajuizada pelo partido Solidariedade e a
relatoria está com a ministra Cármen Lúcia. Eis a controvérsia.
De acordo com o artigo 11, § 10, da Lei 9.504/1997 (Lei das Eleições),
incluído pela Lei 12.034/2009, as condições de elegibilidade e as causas de

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/e-constitucional-a-inele-
gibilidade-do-parlamentar-cassado-por-quebra-de-decoro-03082022
2. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=491821&ori=1
3. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=491840&ori=1
4. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=492145&ori=1

443
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

inelegibilidade devem ser aferidas no momento da formalização do pedido de


registro da candidatura, ressalvadas as alterações, fáticas ou jurídicas, superve-
nientes ao registro que afastem a inelegibilidade. A data do registro está pre-
vista no mesmo artigo 11, caput: até as 19h do dia 15 de agosto do ano em que
se realizarem as eleições (redação dada pela Lei 13.165/2015).
Em interpretação ao referido dispositivo, o TSE editou o enunciado nº
70 de sua Súmula de Jurisprudência, pelo qual “o encerramento do prazo de
inelegibilidade antes do dia da eleição constitui fato superveniente que afasta
a inelegibilidade, nos termos do artigo 11, § 10, da Lei 9.504/1997”. Ou seja,
na prática, graças ao entendimento jurisprudencial, estendeu-se o prazo legal
para até o dia das eleições.
O próprio TSE, ao julgar o REspe nº 28341, entendeu que o exaurimento
da inelegibilidade após as eleições não se presta à incidência do já referido ar-
tigo 11, § 10, da Lei 9.504/1997. Naturalmente, o julgamento desagradou parte
da classe política.
Em 2019, houve uma tentativa de mudar a questão pela via legislativa,
por intermédio do PL 5029/2019,5 o qual, entre outras disposições, visava a
modificar a redação do artigo 11, § 10, e acrescentar um § 15 ao mesmo dis-
positivo da Lei 9.504/1997. Pela nova redação pretendida ao § 10, fixava-se a
data da posse como referência para o exame das condições de elegibilidade e
as causas de inelegibilidade. Já o novo § 15 pretendia fixar que os fatos super-
venientes que afastassem a inelegibilidade poderiam ser aferidos até o último
dia para a diplomação.
O referido PL chegou a ser aprovado pelo Congresso Nacional, converten-
do-se na Lei 13.877/2019, mas, entre os trechos vetados6 pelo presidente da
República (no total foram 45 dispositivos vetados), esteve precisamente a pre-
tendida modificação em comento. Os vetos presidenciais já foram objeto de
deliberação pelas duas Casas Legislativas,7 nos termos do artigo 66, § 4º, da
CF. Alguns chegaram a ser derrubados, mas não foi o caso do veto do aposto
na parte que pretendia alterar os §§ 10 e 15 do artigo 11 da Lei 9.504/1997, ou
seja, esse veto presidencial foi mantido pelo Congresso.

5. https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-11021-
2018
6. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Msg/VEP/VEP-462.htm
7. https://www.congressonacional.leg.br/materias/vetos/-/veto/detalhe/12605

444
Como contar os prazos de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa?

Nada obstante tal derrota legislativa, o Solidariedade ajuizou a ADI 7.197


pretendendo a interpretação conforme a CF do já referido artigo 11, § 10, da
Lei 9.504/1997, para que as condições de elegibilidade sejam aferidas, não na
data do registro da candidatura (como estabelece a lei), mas na data da diplo-
mação, ou, para usar as palavras do requerente, “a fim de que se reconheça o
exaurimento do prazo de inelegibilidade – ocorrido antes da data da diplomação
– como fato superveniente apto a garantir o exercício do direito de sufrágio pas-
sivo, principalmente nas hipóteses em que a contagem do prazo de inelegibilidade
vincula-se à data da eleição (alíneas d, h e j do inciso I, do artigo 1º, da LC nº
64/1990)” (p. 4). Ora, exatamente o que seria o § 15.
De acordo com a petição inicial,8 de não ser assim, o tempo de inelegi-
bilidade efetiva a que estaria sujeito o candidato dependeria do ano em que
verificada a condenação, o que supostamente provocaria uma desigual altera-
ção do efetivo tempo de restrição ao direito fundamental de ser votado. Assim,
segue o argumento, tal variação do prazo de inelegibilidade na prática e para
além do tempo de 8 anos estabelecido pela LC 64/1990 não se compatibiliza
com os princípios da isonomia e da igualdade de chances nas eleições, violan-
do os artigos 5º, caput, e inciso XXXVI, e 14, § 9º, da CF.
Parece desnecessário enfatizar que a questão versa sobre mera interpre-
tação infraconstitucional dada à lei; que não cabe ADI contra entendimento
jurisprudencial e que o partido tenta, por via oblíqua, deslocar para o STF a
discussão já pacificada pelo TSE e pelo Congresso Nacional, que expressamen-
te rejeitou a mudança do marco (para aferir as condições de elegibilidade e as
causas de inelegibilidade) para a data da diplomação, ao manter o veto ao § 15
que se pretendia incluir no artigo 11 da Lei 9.504/1997.
Em parte, é preciso que se diga que a discussão trazida pelo Solidariedade
somente existe, precisamente, data maxima venia, por conta do entendimento
sumulado do TSE que “dilatou” o prazo de aferimento da inelegibilidade para o
dia das eleições (Súmula nº 70), somado a outro equívoco praticado pela Corte
Eleitoral consistente na contagem dos termos inicial e final da inelegibilidade
(das alíneas d, j e h do inciso I do artigo 1º da LC 64/1990) a partir da lógica
do Código Civil, artigo 132, § 2º (“Os prazos de meses e anos expiram no dia
de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência”).

8. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=761723443&pr-
cID=6437422

445
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Tal entendimento está cristalizado em dois verbetes da Súmula de Juris-


prudência do TSE, quais sejam, os de nº 19 e nº 69, pelos quais os prazos de
inelegibilidade decorrentes das alíneas d, j e h do inciso I do artigo 1º da LC
64/1990 têm termo inicial no dia do primeiro turno da eleição e termo final no
dia de igual número no oitavo ano seguinte.
É bem verdade que, ao usar a expressão “eleições” como termo a quo do
prazo de inelegibilidade (que vai até as “eleições que se realizarem nos oito anos
seguintes”, também conforme a literalidade legal), a técnica legislativa empre-
gada na LC 64/1990 não é das melhores.
Ocorre que não é adequado usar uma norma infraconstitucional para a
contagem de um prazo com estatura constitucional. A partir do momento em
que a LC 64/1990 faz menção às “eleições” para estabelecer o tempo de dura-
ção das inelegibilidades, e tendo em vista que é a CF que fixa quando ocorrem
as eleições, esse dado necessariamente deve ter o efeito de determinar a conta-
gem do prazo a partir do “evento” eleições, seja em que data for, porque está-se
diante de uma norma constitucional.
Da mesma forma, por razões de coerência e simetria, o fim do prazo tam-
bém precisa considerar o “evento” eleições, de modo que termo ad quem seria
a véspera das eleições do último ano da inelegibilidade. Ou seja, se o “evento”
eleições ocorre em uma “data móvel”, não faz sentido usar a sistemática do Có-
digo Civil de contagem dos prazos de dias, meses e anos para medir a duração
das inelegibilidades. Passa-se a explicar o argumento.
O artigo 77, caput, da CF, determina o modo de fixação do calendário das
eleições de ambos os turnos para o Poder Executivo federal. Trata-se, ademais,
de regra de reprodução obrigatória para a eleição do Poder Executivo das de-
mais esferas federativas, conforme os artigos 28, caput, 29, inciso II, e 32, § 2º,
bem como, por determinação do artigo 1º da Lei 9.504/1997, é também a data
para as eleições dos membros do Poder Legislativo federal, estadual, distrital
e municipal.
Assim, é por determinação constitucional que o primeiro turno das elei-
ções ocorre no primeiro domingo de outubro (e o segundo turno no último
domingo de outubro) do ano das eleições. Perceba-se que não foi fixado um
determinado dia do mês de outubro, mas só a maneira de alcançá-lo em cada
ano de eleições, tanto que o primeiro turno poderá recair entre os dias 1º a 7
de outubro, a depender de quando seja esse primeiro domingo.

446
Como contar os prazos de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa?

É por isso que, como o evento eleições não ocorre em intervalos idênticos
de dias, meses e anos, não é possível aplicar a lógica da contagem de prazos
típica do calendário civil, prevista nos artigos 1º, 2º e 3º da Lei 810/1949. Dito
com outras palavras, se o evento está previsto para ocorrer em dias variáveis,
não há como estabelecer com segurança um intervalo fixo de tempo para a
contagem de prazos que medeiam eleições.
Prova disso está na própria CF, cujo artigo 77, caput, com redação dada
pela EC 16/1997, não se harmoniza com o próprio § 3º do mesmo artigo 77
(norma originária de 1988), porque enquanto a cabeça do artigo fixa que even-
tual segundo turno ocorrerá no último domingo do mês de outubro, o referido
parágrafo terceiro fixa que o segundo turno não poderia distar mais de 20 dias
do primeiro turno.
Imagine-se, por exemplo, que o dia 1º de outubro de determinado ano
caia exatamente em um domingo. Nesse dia, por determinação da CF, será o
primeiro turno. Ainda nessa hipótese, o último domingo desse mês de outubro
recairá no dia 29, de forma que o lapso de 20 dias previsto no § 3º jamais seria
cumprido, demonstrando que não é possível contar em número exato de dias
eventos que são previstos em datas móveis de determinado dia da semana e
mês.
Esse dado (a incompatibilidade que consta da própria CF) só reforça o
equívoco da contagem de prazos em dias, meses e anos na sistemática do Có-
digo Civil quando está-se diante de data móvel, como no caso do artigo 77,
caput, da CF, artigo 1º da Lei 9.504/1997, e, por conseguinte, aos dispositivos
da LC 64/1990. Não se pode usar uma regra de contagem de prazos infra-
constitucional, que pressupõe interregnos de tempos fixos (seja 20 dias, seja
8 anos), para contar um prazo constitucional que possui intervalos variáveis.
Interpreta-se o ordenamento à luz da CF, não o contrário.
A forma de solucionar a controvérsia trazida na ADI 7.197, então, é con-
siderar não a data das eleições em si (dia, mês e ano, conforme o calendário
civil), mas o “evento” eleições. Com isso, o término do prazo de 8 anos da data
de eleição se consumaria na véspera do dia das eleições do ano em que cessa a
inelegibilidade. Ora, se o termo inicial é móvel, o final não pode ser fixo.
A solução aqui apresentada, como se vê, tem a vantagem de evitar que
candidatos “ficha suja” participem do pleito, mantém incólume as normas do
ordenamento jurídico tal como aprovadas pelo Congresso Nacional – isto é,
não declara a inconstitucionalidade, nem precisa conferir interpretação con-
forme, a qualquer dispositivo legal – e mantém a coerência e simetria: se são

447
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

as eleições o evento determinante para a contagem dos prazos, deve ser esse a
referência para o termo a quo e também o ad quem, para respeitar a vontade
dos legisladores, notadamente na redação da LC 64/1990, que faz menção ex-
pressa às “eleições” como referência da contagem dos prazos.
Por fim consigne-se que a interpretação acima proposta é absolutamente
compatível com a menção à palavra “anos” constante do artigo 1º, inciso I,
alíneas d, h e j, da LC 64/1990, uma vez que não há alusão na norma a anos
completos ou incompletos, de maneira que o oitavo ano do prazo de inelegibi-
lidade sempre terminaria na véspera do dia do pleito a ser realizado, em total
harmonia com a Súmula nº 70 do TSE.

448
Cassação de candidatos não
envolvidos com candidaturas
laranjas de sua coligação
ADI ajuizada pelo SDD alega que entendimento do
TSE prejudica a igualdade de gênero na política

O partido Solidariedade (SDD) ajuizou, no último dia 20 de março, a ADI


n. 6338,1 pedindo que os efeitos do reconhecimento judicial de fraude nas
candidaturas femininas (mediante a inclusão de “candidaturas laranjas”) sejam
limitados àqueles responsáveis pelo abuso e aos partidos que tenham aquiesci-
do com tais candidaturas, não alcançando os supostos beneficiários que con-
correram de boa-fé.
Em síntese, argumenta que o entendimento do TSE2 gera efeitos sistêmi-
cos que enfraquecem, em lugar de promover, a ação afirmativa de fomento à
participação política feminina, afigurando-se medida desproporcional. Ale-
ga, ainda, que viola o devido processo legal a punição de candidatos eleitos
quando não existem evidências e provas de que efetivamente conheciam do

1. http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5879329
2. https://www.jota.info/justica/tse-cassa-coligacao-inteira-por-uso-de-candidaturas-laran-
ja-17092019

449
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

expediente fraudulento ou tenham contribuído, comissiva ou omissivamente,


para a consecução da prática abusiva.
A escassa presença de mulheres na política é um problema grave, reflexo
direto da pouca presença de mulheres em espaços de poder em geral, tanto
públicos quanto privados. Embora representem 52% da população brasileira e
52,5% do eleitorado, as mulheres ocupam menos de 15% das cadeiras de repre-
sentação política no país, o que coloca o Brasil na posição de 157º no ranking
da União Internacional de Parlamentos.3
Nesse contexto, o art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, que estabelece nor-
mas para eleições, na redação dada pela Lei nº 12.034, de 29 de setembro de
2009, fixou o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta
por cento) para candidaturas de cada sexo, o que claramente veio beneficiar as
candidaturas femininas, pois a política partidária brasileira apresenta predo-
minância masculina.4
O atual mínimo de 30% não é à toa. Está atrelado à chamada teoria da
massa crítica,5 na medida em que esse número de 30% seria o percentual
mínimo para que um determinado grupo minoritário possa influenciar o cur-
so da tomada de decisão, de maneira que, com que menos que isso, o grupo
minoritário não terá possibilidade fática de influir nos processos decisórios e
seria controlado por decisões da maioria, de acordo com a referida teoria.
No entanto, a despeito de sua importância, o tema da sub-representação
feminina não é o cerne da questão em debate na ADI n° 6338. O SDD apenas
usa o tema da igualdade de gênero na política para veicular uma pauta abso-
lutamente odiosa: a extração de efeitos positivos da prática de fraude eleitoral.
É um fato que a representatividade política no Brasil é desigual. Exis-
te uma antiga, clara e persistente predominância masculina na política. Os

3. Disponível em: https://br.boell.org/pt-br/mulheres-na-politica. Acesso em: 04 abr. 2020.


4. Vale registrar que a primeira inserção de cotas para mulheres no país tinha sido feita
pela Lei n. 9.100/95, cujo art. 11, § 3º, determinava que no mínimo 20% das vagas de cada
partido ou coligação deveriam ser preenchidas por candidaturas de mulheres. A então
novidade fazia parte do conjunto de medidas concretas que o país se comprometeu a
adotar – a partir da Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, ocorrida em Pequim
em 1995 – para formar uma massa crítica de mulheres dirigentes, executivas e adminis-
tradoras em postos estratégicos de tomada de decisão.
5. DAHLERUP, Drude. De una pequena a una gran minoria: una teoría de la “masa crítica”
aplicada al caso de las mujeres em la política escandinava. Debate feminista, n. 8, 1993, pp.
165-206.

450
Cassação de candidatos não envolvidos com candidaturas laranjas de sua coligação

candidatos homens também tendem a controlar os partidos políticos. Diante


da obrigatoriedade de preenchimento das chapas com 30% de mulheres, logo
surgiram formas de burlar as candidaturas femininas, especialmente a partir
das candidaturas laranjas.6
De acordo com pesquisa encomendada ao TSE pela então Ministra Lucia-
na Lóssio, de cada dez dos “sem-votos”, nove eram mulheres.7 O fenômeno
é explicado pela inclusão de candidaturas fictícias – como as de esposa, filha,
empregada doméstica, secretária, etc. do político interessado –, inclusive sem
que algumas delas sequer tivessem conhecimento da inclusão de seus nomes
nas chapas. Essas mulheres nem fazem campanha, nem recebem voto. No en-
tanto, figuram nos registros e contam como se o partido político tivesse cum-
prido as normas eleitorais.
Condescender com o fenômeno em comento – atribuindo efeitos jurídi-
cos positivos com a validação de candidatos eleitos às custas desse “esquema”
– equivale a negar os direitos das mulheres à representação política. A preten-
são do SDD de extrair consequências positivas da prática das “candidaturas-
-laranja” e outras fraudes eleitorais somente vai beneficiar os homens, não as
mulheres que foram irreversivelmente preteridas na participação política.
A única forma de combater a prática dos expedientes escusos para des-
cumprir as normas eleitorais é desencorajar tais condutas, atribuindo respon-
sabilidades à chapa inteira e consequências gravosas, para que o risco de in-
cidência desses resultados negativos não compense esse comportamento dos
partidos políticos.
É inútil a tentativa de segmentar parte dos candidatos do partido conde-
nado por “candidaturas-laranja”, sob o argumento de que não concorreram
para a prática de quaisquer atos delituosos no âmbito do partido político.
Tentar salvá-los da responsabilidade pelos expedientes escusos – sob
quaisquer argumentos, inclusive sob o pretexto de não macular ainda mais a
sub-representatividade feminina – equivale a conferir um proveito ao compor-
tamento ilegal e incentivar as práticas fraudulentas no seio das agremiações
partidárias. Não se cessa o ciclo vicioso dessa maneira.

6. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-possiveis-crimes-das-candidaturas-la-
ranjas-09032019
7. Disponível em: https://camilavazvaz.jusbrasil.com.br/artigos/437619026/candidatas-la-
ranja-a-falacia-da-inclusao-de-mulheres-na-politica-brasileira. Acesso em: 04 abr. 2020.

451
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Ora, a partir do momento em que se verifica que, sem as “candidaturas-


-laranja”, os partidos não teriam conseguido cumprir com as exigências legais
para participar do pleito, tem-se que o simulacro beneficiou o conjunto inteiro
e, portanto, além da inelegibilidade dos diretamente envolvidos, a sanção de
cassação prevista no art. 22, inciso XIV, da LC nº 64/90, precisa ser aplicada na
mesma extensão, ou seja, a todos.
Para que a representação da mulher na política seja efetiva, é obrigação
dos partidos políticos encontrar “candidatas de verdade”.
Se o STF vier a chancelar a pretensão do SDD, dá-se verdadeiro estímulo
para que ao menos parte dos candidatos continue compactuando, “fechando
os olhos” ou silenciando para com as irregularidades eventualmente pratica-
das no âmbito das agremiações partidárias. Se esses candidatos não são atingi-
dos pela responsabilização decorrente dos malfeitos coletivos, dificilmente se
envolverão no combate às fraudes dentro do partido.
A grande verdade é que não adianta tentar enaltecer a representação fe-
minina na política à custa de uma cultura partidária calcada na fraude, na
mentira, no simulacro e na irregularidade.
Definitivamente, só o entendimento do TSE8 confere máxima efetivida-
de às normas constitucionais seguintes:

a) o princípio da moralidade (art. 37, caput, da CF);


b) o valor da probidade administrativa (art. 37, § 4º, c/c art. 14, § 9º, da
CF);
c) os direitos fundamentais relacionados a eleições livres de fraudes,
como corolário do princípio da soberania popular e do regime de-
mocrático (art. 14, caput, c/c art. 1º, caput, da CF);
d) o preceito do funcionamento dos partidos políticos de acordo com a
lei (art. 17, inciso IV, da CF);
e) a competência constitucional para a fixação dos casos de inelegibili-
dade a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para
exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato (art.
14, § 9º, da CF);

8. https://www.jota.info/justica/tse-cassa-coligacao-inteira-por-uso-de-candidaturas-laran-
ja-17092019

452
Cassação de candidatos não envolvidos com candidaturas laranjas de sua coligação

f) a determinação constitucional no sentido de que o abuso do poder


econômico, corrupção ou fraude ensejam a impugnação dos manda-
tos eletivos (art. 14, § 10, da CF);
g) a competência constitucionalmente atribuída ao TSE (art. 119 c/c art.
121 da CF); e
h) a valorização da boa-fé como princípio geral do Direito.

O momento é de abrir os olhos para a questão que deve render preocu-


pação constitucional: uma eventual decisão do STF no sentido almejado pelo
SDD pode aumentar o risco moral (moral hazard) do comportamento político
e, pior, gerar uma indesejável “seleção adversa”, promovendo os membros de
partidos políticos propensos a condutas desonestas, em lugar de atrair os in-
teressados em executar as campanhas e mandatos conforme as regras do jogo.
Não serão alcançadas as desejadas melhoria da representatividade e reno-
vação da classe política com a aceitação, ainda que tácita, de que os partidos
políticos podem continuar se envolvendo na prática de fraudes.

453
É possível obrigar um
candidato presidencial a
participar de um debate?
O caso da Colômbia e o alcance para o Brasil

No último dia 14 de junho, o Tribunal Superior de Bogotá ordenou a rea-


lização de um debate entre os candidatos presidenciais na Colômbia, Gustavo
Petro e Rodolfo Hernández, dentro de 48 horas da notificação da providência.
O segundo turno das eleições na Colômbia ocorreu no último domingo (19),
sagrando Petro vencedor.
A decisão, na prática, determinou a “obrigação” dos candidatos de debate-
rem suas propostas na televisão. A fundamentação se assenta, basicamente, no
princípio democrático constante do preâmbulo da Constituição colombiana.
Mas será que disso poderia derivar uma obrigação de candidato a cargo execu-
tivo comparecer a debates?
Os requerentes tinham formulado o pedido com vistas à proteção dos di-
reitos fundamentais de acesso à informação verdadeira e imparcial, igualdade,
transparência, participação (direito a votar e ser votado) e dignidade huma-
na. Em resumo, queria-se que os candidatos comparecessem, organizassem e
planejassem um ou mais debates, em canal nacional de televisão ou de rádio,
antes do dia da votação.
A construção para “impor” a participação nos debates passou pela
consideração de que os candidatos representam os deveres democráticos e

455
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

participativos do partido, movimento político ou grupo significativo de cida-


dãos que avalizaram o registro da candidatura.
Nessa condição, mesmo que os candidatos ostentem uma mera expectati-
va de acesso à Presidência da República, exercerão cargos públicos de interesse
nacional, já que o segundo colocado nas eleições toma posse como senador da
República (artigo 112, inciso 4º, da Constituição colombiana).
Com isso, entendeu-se que, tendo o preâmbulo (que estabelece um “mar-
co democrático e participativo”) força vinculante, todas as normas jurídicas do
ordenamento lhe devem respeito. Até aí tudo bem. Ocorre que os dispositivos
citados na decisão estabelecem tão somente que os partidos e movimentos
políticos “manterão o acesso aos meios de comunicação” e que “terão direito a
realizar” debates nos termos nela especificados.
Daí não segue a interpretação lançada no sentido de que, dado esse ar-
cabouço normativo, a negativa de debater constituiria uma afronta ao direito
fundamental dos cidadãos – que também seriam destinatários das referidas
normas – de participar na conformação do poder político e que “os debates
presidenciais são propriamente considerados um direito do candidato para expor
suas ideias, mas ao mesmo tempo um dever frente ao conglomerado social” (p.
9).
Chama a atenção a seguinte passagem: “A grandiloquência que gera um
debate de ideias não se supre só com entrevistas, comunicados ou avisos nos
meios de comunicação ou redes sociais. A seriedade de uma campanha eleitoral
em um Estado democrático exige, por respeito a seus cidadãos, uma garantia ao
direito fundamental de participar, como futuro eleitor, na conformação do poder
político e, desta forma, poder assumir com seriedade uma posição para o dia das
eleições” (p. 10).
O entendimento gerou controvérsias na Colômbia, cujo ordenamento ju-
rídico não conta com qualquer norma jurídica que obrigue um candidato a
usar esse “formato” de divulgação de suas propostas e programa de governo.
No Brasil, eventual decisão nesse sentido seria igualmente polêmica.
Não se discute que os debates sejam necessários, pois é claro que do ponto
de vista democrático os embates públicos entre os candidatos são uma im-
portante ferramenta para conferir transparência às convicções, propostas e ao
temperamento do político, bem como para permitir a confrontação das posi-
ções e ideias que serão objeto de escrutínio pelos demais candidatos e cida-
dãos.

456
É possível obrigar um candidato presidencial a participar de um debate?

O que se questiona é o suposto caráter de dever jurídico, que obrigaria o


comparecimento aos debates, retirando dos candidatos a liberdade para es-
colher os meios que entendam mais adequados para estruturar suas campa-
nhas. Participar ou não é uma decisão de estratégia eleitoral, pois os debates
são apenas mais uma opção de meio de divulgação das propostas, ao lado de
outros igualmente idôneos como propagandas, comícios, entrevistas, redes so-
ciais etc. Inclusive é natural que o candidato muito à frente nas pesquisas de
intenção de voto entenda que tem mais a perder do que a ganhar participando
de um debate.
Com o advento e disseminação da televisão, os debates das campanhas
eleitorais sofreram uma grande mudança de perspectiva. A aparência física do
candidato (isto é, a imagem que transmite) passou a ser determinante. Diz-se
que esse foi precisamente o problema de Richard Nixon no primeiro debate
presidencial televisionado nos Estados Unidos, em 1960.
Conta-se que, para os que escutaram o debate pelo rádio, Nixon foi o claro
ganhador, ao passo que, para os que viram pela televisão, além de formar a opi-
nião contrária (ou seja, que o vitorioso foi John F. Kennedy), saíram com má
impressão de Nixon. Os telespectadores viram nele a imagem de uma pessoa
pálida, fraca e suarenta (transpirava muito), provavelmente pelo fato de que te-
ria comparecido ao debate quando ainda se recuperava de uma hospitalização,
segundo analistas da época.
Para o seu azar, 90% da população americana tinha televisão e a opinião
dos telespectadores pesou mais do que a dos ouvintes do rádio. Esse episódio
ilustra o peso que pode ter um debate na televisão.
É bem verdade que as regras que disciplinam os debates televisionados
costumam ser objeto de negociações entre as equipes dos candidatos. De
modo geral, tais acordos são quase uma “condição” para participação.
Inclusive, talvez seja por isso que, especialmente no Brasil, os debates cada
vez mais ficam parecidos com monólogos sequenciais, com tempos de fala
cronometrados e milimetricamente ensaiados para dar mais destaque ao pró-
prio candidato (e menos às incongruências e fraquezas dos seus rivais), sem
dialética, nem confronto. Já nem se fala mais em quem “ganhou” o debate.
Entretanto, uma coisa é a participação, outra a “edição”. Em passado re-
cente, um então candidato presidencial já alegou ter sido prejudicado com os
“cortes” de edição feitos pelo veículo de comunicação para noticiar o debate.

457
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Só esse já seria um motivo para rejeitar que a participação nos debates seja
uma obrigação dos candidatos presidenciais.
Mas há um argumento mais forte: não existe determinação constitucional
ou legal nesse sentido. Do princípio democrático (sem mais) não é possível ex-
trair tal norma de conduta para os candidatos presidenciais, por mais desejável
que possa ser escutá-los debater publicamente seus programas de governo.
A rigor, se um candidato se nega a debater, nada pode ser feito. Agora, é
possível que o candidato que assim se porta tenha mais a perder do que os elei-
tores que deixam de ver os rivais cara a cara. Tanto que, no caso comentado da
Colômbia, ao final, o debate ordenado judicialmente acabou não ocorrendo9
e, curiosamente, o perdedor das eleições foi aquele que se recusava a debater.

9. https://elpais.com/america-colombia/elecciones-presidenciales/2022-06-16/el-silencio-
-de-rodolfo-hernandez-deja-el-debate-con-petro-en-el-aire.html

458
7 Ca p í tu lo
CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE
Existe uma inconstitucionalidade
‘circunstancial’?
Pandemia é transitória, mas declaração de
inconstitucionalidade não tem volta

Em texto publicado no último dia 25 de abril, Alonso Freire, Carlos


Eduardo Frazão, Rodrigo Mudrovitsch e Victor Rufino1 proclamam a “in-
constitucionalidade circunstancial” como uma técnica de decisão no contexto
de superação do tradicional modelo binário entre constitucionalidade e in-
constitucionalidade, que permitira à Corte Constitucional “salvar uma legisla-
ção cuja inconstitucionalidade seja momentânea, e não permanente”.
Ilustram o fenômeno com três ações patrocinadas pelos próprios autores:
ADIs n. 6.359, 6.371 e 6.379, nas quais foram formulados pedidos para, respec-
tivamente, suspender os prazos de filiação partidária, conferir interpretação
conforme à Constituição para garantir o direito ao levantamento imediato dos
saldos da conta do FGTS, independentemente de ato regulador do Poder Exe-
cutivo, e a suspensão das expressões de dispositivo da MP n. 946, de 2020, que
estabelece as condições para os referidos saques.
Em outras palavras, pode-se dizer que a técnica sustentada se asseme-
lharia a uma declaração de “inconstitucionalidade progressiva com o sinal

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-fenomeno-da-inconstitucionalidade-
-circunstancial-25042020#_ftn8

461
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

trocado”. O que os autores chamam de “inconstitucionalidade circunstancial”,


na prática, é a pretensão de reconhecimento de uma inconstitucionalidade
momentânea, que decorreria mais das circunstâncias fáticas excepcionais do
que propriamente do conteúdo da norma.
Levada ao extremo, a tese permitira uma sucessão de lapsos de inconsti-
tucionalidade durante a vigência de uma norma considerada constitucional
fora do contexto de crise. Isso porque, em desaparecendo a excepcionalidade,
haveria um retorno à constitucionalidade da norma. Os ciclos temporários de
inconstitucionalidade ensejariam a seguinte situação: Lei “X” constitucional →
início excepcionalidade “Y” → Lei “X” inconstitucional → término excepciona-
lidade “Y” → Lei “X” constitucional.
Reputa-se duvidoso que o sistema de controle de constitucionalidade bra-
sileiro comporte essa via, nem sequer dentro do que vem sendo chamado de
“jurisprudência de crise”.2 3
No marco do art. 27 da Lei n. 9.868/99, o que o STF pode fazer é restringir
os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que ela só tenha
eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a
ser fixado. Não existe, no entanto, um tertium genus entre a constitucionalida-
de e a inconstitucionalidade de uma norma.
Mesmo técnicas decisórias ditas intermediárias respaldadas no referido
dispositivo – como a interpretação conforme, a declaração de nulidade sem
redução de texto, o apelo ao legislador, a declaração de lei ainda constitucional,
etc. – conferem à lei impugnada uma decisão categórica sobre a concordância
ou não da norma à luz da Constituição.
A técnica de declaração de constitucionalidade de norma em trânsito para
a inconstitucionalidade, por exemplo, considera uma norma CONSTITUCIO-
NAL até que o advento de determinados acontecimentos a torne inconstitucio-
nal.4 Com isso, a decisão declara que a norma impugnada está de acordo com

2. https://www.conjur.com.br/2020-abr-11/observatorio-constitucional-jurisprudencia-cri-
se-pensamento-possivel-caminhos-solucoes-constitucionais
3. Pode-se dizer que para o Ministro Gilmar Mendes uma “jurisprudência de crise” equiva-
leria ao reconhecimento de que contextos fáticos podem justificar determinados atos da
Administração Pública ou do Poder Executivo (inclusive, usando suas próprias palavras,
os “questionáveis do ponto de vista estrito da lei e da Constituição Federal”).
4. O STF já adotou essa técnica, por exemplo, por ocasião do HC n. 70.514 (mantendo as
prerrogativas da Defensoria Pública de intimação pessoal e prazo em dobro até que

462
Existe uma inconstitucionalidade ‘circunstancial’?

a Constituição, embora sinalize a possibilidade de no futuro ser tomada uma


decisão em sentido contrário, mediante o ajuizamento de uma nova ação e a
reavaliação do novo estado fático, quando então a norma impugnada poderá
vir a ser declarada inconstitucional (ou ainda não).
Por seu turno, a declaração de inconstitucionalidade também é definitiva,
expurgando a norma impugnada do ordenamento jurídico ipso jure e de uma
vez por todas. Nem mesmo o Congresso Nacional pode repristiná-la. Somente
a aprovação de uma nova lei teria condições trazer o conteúdo normativo de
volta ao ordenamento jurídico, e ainda assim com outro número de artigo e a
menção de que a redação foi trazida pela nova lei (art. 12, inciso III, alínea c,
da LC n. 95/98). Assim, embora a pandemia seja transitória, a declaração de
inconstitucionalidade das leis é um caminho sem volta.
Nesse sentido, pretender que o STF possa decidir o “inverso da inconsti-
tucionalidade progressiva” – isto é, que a corte possa declarar que uma norma
é INCONSTITUCIONAL até que cesse o estado de excepcionalidade – equi-
valeria a conceder à Corte um poder que nem mesmo o Congresso Nacional
tem.
E mais, subverter o sistema de controle de constitucionalidade, em que
normalmente o pedido formulado visa a obter uma declaração de inconstitu-
cionalidade definitiva, não passageira, e que confira segurança jurídica, não o
contrário.
A lógica do controle de constitucionalidade não comporta decisões de
mérito com vigência temporária. No máximo, a Lei n. 9.868/99 permite que a
medida cautelar que antecipe o mérito da ação – desde que presentes seus re-
quisitos de concessão (fumus boni iuris e periculum in mora). No entanto, isso
não autoriza a Corte a trazer em suas decisões uma cláusula de autorrevogação
no sentido de que, cessado o estado de coisas não permanente que justifica a
medida, a decisão de suspensão de lei automaticamente perca sua eficácia. A
imprevisibilidade acarretada por isso não teria precedentes.
Entende-se que o acionamento da jurisdição constitucional sob o argu-
mento de inconstitucionalidade momentânea não é o caminho para suspender
– por falta de razoabilidade – o cumprimento de determinadas normas durante

alcançasse o nível de organização do Ministério Público), e do RE n. 341.717 (conservando


a possibilidade de o Ministério Público propor a ação civil ex delicto de forma paralela à
Defensoria Pública, até que esta seja instituída e regularmente organizada).

463
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

uma pandemia. O processo abstrato do controle de constitucionalidade não se


presta a tutelar circunstâncias temporárias. Para isso já existe o caminho da
jurisdição ordinária, que pode decidir sobre os problemas circunstanciais de-
correntes da aplicação das normas a casos concretos.
Além disso, a ordenação de condutas humanas por prazo determinado,
diante de circunstâncias excepcionais, deve ser feita pela ponderação primei-
ra do legislador, a partir da edição de leis com vigência temporária, o que já
encontra previsão no ordenamento jurídico, conforme positivado no art. 2º,
in limine, da LINDB. A própria PEC do Orçamento de Guerra, por exemplo,
prevê sua automática revogação com o encerramento do estado de calamidade
pública (art. 12).
Cabe ao Congresso Nacional a decisão primeira de ponderar sobre as me-
didas legislativas necessárias, inclusive a suspensão de normas, no contexto de
pandemia,5 avaliando também a pertinência das medidas provisórias edita-
das pelo Presidente da República.
Naturalmente, depois disso, o STF pode controlar tais opções legislativas.
É o que já vem acontecendo. A prevalecer o entendimento dos autores, no en-
tanto, subtrai-se esse momento político, transferindo de imediato uma decisão
essencialmente legislativa para o Poder Judiciário.
Como se vê, os problemas relacionados à tese da inconstitucionalidade
circunstancial não são poucos e advêm não somente da sua falta de previ-
são no ordenamento jurídico brasileiro, como também a criação de um novo
instituto, a inconstitucionalidade temporária, sem qualquer parâmetro na ex-
periência constitucional brasileira ou comparada. No entanto, a tirar pelas úl-
timas decisões do STF, não será surpreendente se essa pretensa nova técnica
da declaração de inconstitucionalidade circunstancial de leis – que eram, são e
continuarão sendo constitucionais – emplacar.

5. https://www.jota.info/justica/pl-de-toffoli-preve-adiamento-da-lgpd-e-suspensao-de-re-
gras-anticoncorrenciais-02042020

464
Cabe controle de constitucionalidade
quanto à qualidade da
deliberação legislativa?
Parâmetros da deliberação não claros e judicialização
não podem suprimir soberania parlamentar

O controle de constitucionalidade das leis no Brasil ocorre desde a pers-


pectiva formal (notadamente quanto ao procedimento e demais condições ob-
jetivas para a sua elaboração, como a competência, por exemplo) e material
(ou seja, quanto ao conteúdo das disposições legais aprovadas), tendo como
parâmetro de controle o próprio texto da Constituição.
Paralelamente a tais modalidades tradicionais, vê-se surgir na experiência
internacional um pretendido terceiro tipo de controle de constitucionalidade,
consistente no controle da qualidade da deliberação legislativa, pelo qual se-
ria aferido se o debate parlamentar foi substancial, isto é, se efetivamente foi
discutido o mérito da proposta legislativa. Esse tipo de controle ainda não foi
tentado no Brasil, mas não deve demorar a chegar aqui, o que justifica as con-
siderações ora lançadas.
Antes de tudo, registre-se que ainda são duvidosos os parâmetros estri-
tamente jurídicos que pudessem dar suporte a esse tipo de controle sobre a
qualidade da deliberação legislativa. A menção ao princípio do devido proces-
so legislativo – ou mesmo ao princípio democrático – não é o bastante para

465
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

conferir densidade ao sustentado “princípio da deliberação suficiente” extraí-


vel dos arts. 58, § 2º, inciso II, 60, § 2º, 64, 65, todos da CF.
Além disso, deve-se ter presente o risco de – por intermédio dessa preten-
sa nova modalidade de controle de constitucionalidade – ver-se lançado um
simples pretexto para a expansão do controle jurisdicional do processo legis-
lativo, restringindo indevidamente a liberdade legislativa quanto à prioridade
que dá (ou não) a certos temas, conforme seu juízo de conveniência e oportu-
nidade. Em outras palavras, tal controle jamais deve ser usado para interferir
na soberania parlamentar ou substituir as escolhas políticas dos legisladores.
Ver um exemplo concreto da aplicação desse tertium genus de contro-
le pode ajudar a compreendê-lo. Nesse sentido, em primeiro lugar, cite-se a
Sentencia 0006-2018-PI/TC - Caso cuestión de confianza y crisis total del gabi-
nete.6 Nessa decisão, o Tribunal Constitucional do Peru entendeu que foram
excessivamente limitados os espaços de discussão e debate legislativo, de modo
que tal déficit na deliberação parlamentar resultou em inconstitucionalidade,
por infração indireta (expressamente admitida no sistema peruano) aos arti-
gos 43, 94, 105, 122 e 132 a 134 da Constituição do Peru.7
Pelo artigo 94 citado, o Congreso de la República tem poderes para, entre
outros, aprovar seu próprio Regimento Interno,8 cujo artigo 78 estabelece
que as proposições somente podem ser debatidas após a elaboração (e publi-
cação) de parecer (dictamen) no âmbito das comissões, também exigindo-se
dois turnos de votação, sem prejuízo da possibilidade de tais procedimentos
serem superados pelo voto dos líderes (portavoces) que representem ao menos
3/5 dos membros do Congreso.
No caso concreto, a proposição não tinha passado pela Comissão de
Constituição e Regimento do Congreso de la República, pelo que não tinha sido
objeto de parecer analisando-a, tampouco tendo sido submetida ao segundo
turno de votações previsto na Constituição e no regimento interno, tudo por
força do acordo de líderes, em conformidade com o que previa o regimento
interno.

6. https://tc.gob.pe/jurisprudencia/2018/00006-2018-AI.pdf
7. https://peru.justia.com/federales/constitucion-politica-del-peru-de-1993/titulo-iv/capitu-
lo-i/
8. https://www.congreso.gob.pe/Docs/files/reglamento/reglamento-congreso-(2020-ma-
yo-15).pdf

466
Cabe controle de constitucionalidade quanto à qualidade da deliberação legislativa?

No entanto, o Tribunal Constitucional peruano considerou que não havia


base legal para dispensar a segunda votação (fundamento 27 da decisão) e en-
tendeu, ainda, que, em se tratando de reformas transcendentes “que incidem
sobre a essência da Constituição” (referindo-se ao mérito da proposição em
concreto), deve-se demandar mais deliberação (fundamento 25 da decisão).
De forma muito resumida, foi com base nessa argumentação que a Corte
peruana considerou violado o princípio da autorregulamentação do Congreso
(artigo 94 da Constituição peruana), bem como a previsão constitucional do
artigo 105, segundo o qual os projetos de lei somente podem deixar de passar
pelas comissões nos casos previstos no Regimento Interno do Congreso de la
República.
Embora a decisão tenha avançado em outros fundamentos de mérito –
isto é, o déficit na deliberação parlamentar não era o único problema encon-
trado na proposição legislativa –, o fato é que esse elemento foi considerado
no exame da constitucionalidade e, pela primeira vez naquele país, a decisão
do Tribunal Constitucional do Peru trouxe o que vem sendo entendido como
uma modalidade de inconstitucionalidade “procedimental” até agora (ainda)
não aceita na jurisprudência brasileira.
Na verdade, tese parecida foi expressamente afastada pelo STF diversas
vezes, como ocorreu na discussão travada na ADI n. 4.4259 quanto ao inters-
tício entre turnos de votação das Propostas de Emenda à Constituição – PECs
previsto no art. 60, § 2º, da CF, ante a falta de padrão constitucional de contro-
le. O interstício é o lapso temporal mínimo antes do qual não se pode promo-
ver o ato legislativo subsequente, diferenciando-se de um prazo, na medida em
que este último se refere ao lapso temporal em que o ato pode ser validamente
praticado.
Em se tratando de PECs, conforme o Regimento Interno do Senado Fe-
deral – RISF,10 art. 362, o interstício entre o primeiro e o segundo turno será
de, no mínimo, 5 dias úteis. Por seu turno, o Regimento Interno da Câmara
dos Deputados – RICD,11 art. 202, § 6º, estabeleceu o interstício de 5 sessões,

9. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5067184
10. https://www25.senado.leg.br/documents/12427/45868/RISF+2018+Volume+1.pdf/cd-
5769c8-46c5-4c8a-9af7-99be436b89c4
11. https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-cama-
ra-dos-deputados

467
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

considerando-se para esse fim apenas as sessões deliberativas (ordinárias ou


extraordinárias) efetivamente realizadas, segundo indica o art. 280 do RICD.
De acordo com o ministro Luiz Fux no referido julgado, a CF não fixou
um intervalo temporal mínimo, de modo que “inexiste parâmetro objetivo que
oriente o exame judicial do grau de solidez da vontade política de reformar a Lei
Maior”. Assim, ao menos até agora, vêm sendo consideradas constitucionais a
supressão dos interstícios regimentais e a aprovação de calendários especiais
– enfatizando que são operadas por acordo de líderes, que também conta com
previsão regimental – para acelerar a votação de PECs.
Trata-se de entendimento que decorre também da natureza atribuída aos
regimentos internos das Casas Legislativas, que são resoluções, espécies le-
gislativas de atos normativos primários, expressamente elencadas no art. 59,
inciso VII, da CF, ou seja, têm o mesmo status das leis.
Assim, por mais que os regimentos internos sejam normas viabilizadoras
do processo legislativo constitucional, a jurisprudência do STF é firme em:
1) não aceitar a tese da inconstitucionalidade indireta, por violação de nor-
ma infraconstitucional interposta (tendo-se posicionado pelo descabimento
de alegação de inconstitucionalidade mediata por atos normativos secundá-
rios (sobretudo, decretos regulamentares, como na ADI n. 31012 e na ADI n.
2.007);13 e 2) não admitir controle jurisdicional em face de norma regimental,
só conhecendo de violações com fundamento constitucional (MS n. 22.503),14
aí incluídas as que envolvem disposições regimentais que reproduzem nor-
mas constitucionais. Isso porque, para a Corte, a interpretação e aplicação dos
regimentos internos das Casas Legislativas é matéria interna corporis (MS n.
21.75415 e MS n. 24.104).16
Voltando para o caso da decisão peruana – que vem sendo festejada por
teóricos como avanço quanto ao controle procedimental da elaboração legisla-
tiva e que deveria ser usada como “modelo” –, é preciso registrar que, se bem
entendida, a decisão simplesmente considerou o acordo de líderes inconstitu-
cional, tendo em vista a matéria em concreto, ainda que com outras palavras.

12. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6671640
13. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=347381
14. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=85766
15. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=325619
16. https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307700780&ext=.pdf

468
Cabe controle de constitucionalidade quanto à qualidade da deliberação legislativa?

A rigor, não é que tenha clamado por “mais deliberação parlamentar”, mas,
sim, na prática, pela rigorosa obediência ao rito normal regimental, sem saltos,
proibindo a flexibilização dos procedimentos por acordo de líderes.
Entretanto, nos termos em que vem sendo concebido pela teoria, o pre-
tendido controle de constitucionalidade quanto à qualidade da deliberação le-
gislativa passaria por perquirir, por exemplo, sobre:
1) a confiabilidade das prognoses usadas como parâmetro para a atuação
legislativa (isto é, os dados empíricos considerados, análises de impacto, etc.),
exigindo-se que as decisões legislativas tenham amparo em tais dados concre-
tos; 2) a veracidade da motivação apresentada, que necessariamente deveria
analisar as alternativas decisórias (sendo certo que não basta a mera apresen-
tação de razões, sendo necessário que estas correspondam aos reais funda-
mentos da decisão legislativa, ou seja, não valeriam as “razões hipócritas”);
e 3) o caráter dialético da decisão legislativa, garantindo-se voz às posições
contrárias à medida, via processo deliberativo público, com duração razoável
e espaço para participação, não só das minorias parlamentares, como também
dos destinatários ou interessados nas normas. Nada disso foi objeto de análise
na decisão peruana.
Seja como for, ainda parece ser necessário aprofundar tal conceito de con-
trole procedimental da deliberação legislativa. Responder algumas perguntas
poderia ajudar nessa tarefa: O que seria, concretamente, uma deliberação sufi-
ciente? Exigiria uma obediência inflexível a todas as regras regimentais da ela-
boração legislativa (sem possibilidade de acordos de líderes para alterar proce-
dimentos e aprovação de calendários especiais)? Significaria uma deliberação
efetiva quanto a, necessariamente, cada artigo das proposições em discussão?
Qual seria o grau de profundidade considerado adequado? E o tempo? Seria
esse modelo ideal aplicável para todos projetos de leis (independentemente da
temática ou de seus impactos sobre valores constitucionais)? Se sim, sua ado-
ção seria factível, considerando as práticas parlamentares reais (e, sobretudo,
seus constrangimentos institucionais)? Se não, quais critérios que definiriam a
deliberação suficiente em cada caso?
As respostas a essas perguntas não são óbvias. Não existe somente uma
noção de democracia deliberativa, mas várias, que também estão em disputa
na arena legislativa. Há uma certa ingenuidade na pretensão de ver consagrada
apenas uma delas para sempre.
Além disso, imaginar o Poder Judiciário exigindo um maior grau de “deli-
beratividade” por parte do Poder Legislativo é quase tão estranho quanto este

469
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

último dizer como o primeiro deve fazer seu labor jurisdicional. Existe aqui
um claro problema quanto aos limites da revisão judicial: o controle quanto à
suficiência da deliberação ou a adequação dos debates parlamentares parece
ser um deles.
Isso, sem contar o risco de que seja aumentado ainda mais o custo deci-
sório dentro do Poder Legislativo. Em lugar de catalisar os debates legislati-
vos, se tal controle de constitucionalidade procedimental vier a impor padrões
de deliberação muito exigentes, a capacidade do Parlamento para responder
tempestivamente às demandas sociais poderia ficar seriamente prejudicada.
O efeito do controle pode ser o contrário do pretendido e, pior, nocivo.
Trata-se de manifesto equívoco a tentativa de tentar transplantar a lógica
do processo judicial (e seus prazos) para o processo legislativo. O tempo do
direito não é o tempo da política. Precisamente por essas peculiaridades, per-
manece importante a soberania do plenário expressamente consignada no art.
412, inciso III, do RISF. Com isso, os regimentos internos cumprem mais uma
função de autolimitação das Casas Legislativas, mas não impedem a tomada de
decisões colegiadas em outro sentido hic et nunc.
Nesses termos, sem prejuízo de que eventuais abusos sejam combatidos
(tal como ocorreu na ADI n. 5.127,17 cujo cerne versava sobre o descumpri-
mento do art. 4º, § 4º, da Resolução n, 1, de 2002, do Congresso Nacional),18 a
flexibilidade quanto à aplicação das regras regimentais por acordos parlamen-
tares atende à dinâmica da própria atividade política na elaboração legislativa,
e não há que ser taxada como “privatização do processo legislativo” em todos
os casos. Nem toda quebra regimental na tramitação macula a lei de inconsti-
tucionalidade, nem todo dissenso legislativo é judicializável.
Não se nega: de fato, que é necessário melhorar a qualidade da deliberação
legislativa, isso não se discute. Nada obstante, convém não esquecer que ine-
xiste necessária correspondência biunívoca entre a qualidade do procedimento
de elaboração legislativa – sobretudo quanto aos tempos de duração e à argu-
mentação legislativa – e o seu produto final: a lei. Por vezes, a despeito do ca-
ráter melhorável das discussões parlamentares, a lei aprovada é irrepreensível.

17. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10931367
18. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescon/2002/resolucao-1-8-maio-2002-497942-
normaatualizada-pl.html

470
Cabe controle de constitucionalidade quanto à qualidade da deliberação legislativa?

Mais debate legislativo, simplesmente, não é o que garantirá leis melhores. O


processo decisório legislativo é mais complexo.
Essa separação entre processo e produto no âmbito da elaboração legisla-
tiva se torna ainda mais evidente no atual contexto de pandemia, que implicou
na supressão de importantes etapas e diversos mecanismos que tradicional-
mente disciplinam o processo legislativo no Congresso Nacional, mas nem por
isso afetou substancialmente as leis aprovadas, ainda mais em se considerando
a conjuntura de crise, que exigia respostas rápidas.
Por mais que os procedimentos tendam a legitimar as decisões, no caso
do Poder Legislativo, só o desconhecimento quanto às práticas parlamentares
reais pode gerar a crença de que mais procedimentalização, simplesmente, será
capaz de mudar a cultura no Parlamento.
Como se vê, após todo esse percurso, ainda existem muitas dúvidas sobre
a utilidade e a viabilidade de um controle jurisdicional procedimental quanto
à qualidade da deliberação legislativa – seja qual for o significado de “delibe-
ração suficiente” –, sobretudo pela falta de um parâmetro seguro para o exer-
cício desse controle, pelo risco de engessamento do processo legislativo, bem
como pelo seu manejo como mero pretexto, por parte dos vencidos no debate
legislativo, para reverter, pela via judicial, decisões políticas tomadas no uso da
soberania parlamentar.

471
Como se prova a
inconstitucionalidade por vício
de decoro parlamentar?
Os problemas do julgamento das
ADIs n. 4.887, 4.888 e 4.889

Era bastante aguardado o julgamento das ADIs n. 4.887, 4.888 e 4.889,


ajuizadas em 2012, respectivamente, pela Associação dos Delegados de Polí-
cia do Brasil (Adepol), pela Confederação dos Servidores Públicos do Brasil
(CSPB) e pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), questionando a EC n.
41/2003, que promoveu uma Reforma da Previdência, por violação ao art. 55,
§ 1º, da CF, sob o argumento de que teria sido votada mediante a compra de
votos dos parlamentares liderados por réus condenados no julgamento da AP
n. 470 (Mensalão).
Finalizado pela modalidade virtual no último dia 10 de novembro de
2020, o julgamento unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) foi pela im-
procedência do pedido in concreto, embora tenha reconhecido em abstrato a
possibilidade de uma inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar.
Nos três acórdãos, figuram apenas as razões do voto da ministra relatora Cár-
men Lúcia (em cerca de 20 páginas – não que seja pouco, mas o fato é que
destoa do padrão prolixo de outros julgamentos da Corte), sem que os demais
ministros tenham agregado suas manifestações concorrentes.

473
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

A opacidade com que a discussão foi tocada no STF, no entanto, não


pode permitir que seu conteúdo passe desapercebido, tanto pelos problemas
da fundamentação e do próprio entendimento adotado, quanto pelas questões
deixadas em aberto. Daí a necessidade de alguns comentários sobre esse que
poderia ter sido um dos grandes julgamentos da Corte na pauta anticorrupção.
Definitivamente, 1) a demora no julgamento (o andamento processual1
registra que não houve movimentos entre 2016 e 2020, além de outros longos
lapsos temporais sem qualquer movimentação), 2) a escolha pela deliberação
no formato virtual e 3) o estilo minimalista da fundamentação adotada reve-
lam que essa era uma discussão incômoda. De fato, não é nada trivial trazer
para a Corte o escrutínio sobre os eventuais vícios da formação da vontade
legislativa.
Parecendo não ter vislumbrado espaço para uma jurisprudência ainda
mais defensiva, a estratégia da relatora foi a de considerar que somente foi
“comprovado” o vicio de decoro quanto a 7 parlamentares, de modo que o
número de “votos comprados” não seria o suficiente para comprometer o re-
sultado da votação. Em suas próprias palavras: “(…) ainda que retirados os
votos viciados, permanece respeitado o quórum de três quintos, necessários à sua
aprovação” (p. 11).
Com isso, a ministra considerou que não restou comprovado que a EC
n. 41/2003 foi aprovada “apenas” em razão do “esquema de compra de votos”
parlamentares (houve 358 votos favoráveis, 126 contrários e 9 abstenções).
Ocorre que a ministra simplesmente silenciou para o fato – expresso, em
especial, na petição inicial da ADI n. 4.8892 – de que entre os condenados na
AP n. 470 havia líderes que orientavam a votação de suas bancadas.
Como sabido, uma das bases institucionais do presidencialismo de coali-
zão3 é justamente a disciplina partidária, que garante o voto em bloco de to-
dos os membros da base parlamentar. Do ponto de vista político, a obediência
às orientações partidárias é o comportamento que costuma garantir os maio-
res “retornos eleitorais” aos parlamentares.

1. https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4345096
2. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3189858&prcI-
D=4345096&ad=s
3. https://www.scielo.br/j/ln/a/7P5HPND88kMJCYSmX3hgrZr/?format=pdf&lang=pt

474
Como se prova a inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar?

Além disso, para ser sólido, um sistema de partidos políticos precisa fun-
cionar justamente na base da disciplina parlamentar, ou seja, isso beneficia o
sistema político. De fato, não há forma de articulação política fora da coesão
dos grupos parlamentares (bancadas).
Do ponto de vista jurídico, trata-se de obrigação do parlamentar legal-
mente prevista no art. 24 da Lei n. 9.096/95, a Lei dos Partidos Políticos (LPP):
“Na Casa Legislativa, o integrante da bancada de partido deve subordinar sua
ação parlamentar aos princípios doutrinários e programáticos e às diretrizes es-
tabelecidas pelos órgãos de direção partidários, na forma do estatuto”.
Assim, a indisciplina partidária é passível de punição4 dentro das agre-
miações, conforme seus respectivos estatutos, que contam com expressa auto-
rização legal e constitucional para estabelecê-la (art. 15, inciso V, c/c art. 23,
da LPP, e art. 17, § 1º, da CF). Inclusive, a recalcitrância do parlamentar pode
conduzir até o seu desligamento do partido5 (art. 25 da LPP).
Tamanha a importância da disciplina para a dinâmica parlamentar, que
tudo caminha para que o TSE entenda (no processo n. 0600643-36.2019.
6.00.0000) que tal punição por indisciplina partidária não configura discrimi-
nação pessoal ou justa causa apta à desfiliação do parlamentar com a manu-
tenção do mandato eletivo, nos termos do art. 22-A da Lei n. 9.096/95. Ou seja,
o assento continua sendo do partido político.
Além disso, vale registrar que a disciplina de voto também existe nos de-
mais Parlamentos ao redor do mundo, não existindo notícias de algum que
não o adote. Em resumo, então, fortes razões pragmáticas fundamentam a
adoção do voto por disciplina partidária.
Embora haja críticas ao instituto, não há inconstitucionalidade, pois o
próprio art. 14, § 3º, inciso V, da CF, estabelece a filiação partidária como re-
quisito para condições de elegibilidade e é o pertencimento aos partidos que
rege a lógica da proporcionalidade. Assim, os parlamentares devem obediên-
cia às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos partidos políticos, o manda-
to eletivo é representativo-partidário.

4. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,entenda-o-que-significa-a-suspensao-de-
-tabata-e-outros-sete-deputados-do-pdt,70002925737
5. https://exame.com/brasil/psb-expulsa-deputado-e-suspende-outros-9-por-voto-a-favor-
-da-previdencia/

475
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Ou seja, esse “poder” do líder de orientar a votação não poderia ter sido
menosprezado (como foi) pelas decisões do STF nas ADIs n. 4.887, 4.888 e
4.889, pois é determinante na formação da vontade parlamentar. Mesmo em
se tratando de uma votação nominal – em que cada congressista vota indivi-
dualmente e de modo ostensivo, em razão do quórum qualificado –, dada a
realidade das práticas no Poder Legislativo, os representantes do povo são cada
vez menos livres para votar segundo suas próprias consciências ou mesmo de
acordo com as preferências populares que os elegeram sem a “intermediação”
dos partidos políticos, sobretudo a figura dos líderes a quem devem obediên-
cia.
Na AP n. 470, foram condenados: 1) Roberto Jefferson Monteiro Francis-
co PTB/RJ, 2) Valdemar Costa Neto PL/SP, 3) Pedro Henry Neto PP/MT, 4)
Romeu Ferreira de Queiroz PTB/MG, 5) Carlos Alberto Rodrigues Pinto PL/
RJ, 6) Pedro da Silva Corrêa de Oliveira Andrade Neto PP/PE, e 7) José Rodri-
gues Borba PMDB/PR.
Na qualidade de líderes, somente os três primeiros dos condenados (da
lista mencionada) garantiram 108 votos (como sabido, são necessários 308 vo-
tos, equivalente a 3/5 dos deputados). Caso tivessem sido anulados 108 dos
358 votos totais, a EC n. 41/2003 de fato não teria sido aprovada.
Porém, a ministra relatora preferiu não presumir que os parlamentares
liderados pelos parlamentares condenados na AP n. 470 também tiveram suas
vontades viciadas. Isso de forma tácita, já que a decisão sequer adentrou na
dinâmica da liderança parlamentar.
Aqui, então, fica a dúvida quanto a se: 1) foi a ministra relatora quem
não quis “checar” se os parlamentares liderados votaram exclusivamente por
orientação da bancada (ou se seus votos foram fruto genuína manifestação de
vontade); ou se 2) de fato não haveria como perquirir o “móvel interno” do
parlamentar que vota a favor ou contra uma proposição legislativa – mas, não
podendo registrar isso com todas as letras, a ministra relatora calou quanto a
esse ponto.
O presente questionamento não é uma picuinha e, nas duas hipóteses,
revela problemas decisórios do STF e desafios teóricos.
É sabido que, por vezes, a inconstitucionalidade das leis é uma “questão de
fato”, não passível de detecção pelo simples cotejo da norma atacada com a dis-
posição constitucional usada como parâmetro. Isso porque o vício nem sem-
pre se revela só a partir de uma subsunção ou de análise em abstrato, também

476
Como se prova a inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar?

podendo surgir da inadequação da lei à luz de circunstâncias de fato, cujas


informações nem sempre estão nos autos.
Justamente por isso, por exemplo, existem o art. 9º da Lei n. 9.868/99 e o
art. 6º da Lei n. 9.882/99, que permitem ao relator – mesmo em sede de contro-
le abstrato de constitucionalidade – solicitar informações adicionais, designar
a realização de perícia, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoi-
mentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.
Assim, se existem instrumentos legais que permitiriam o esclarecimento
dos fatos relevantes para o deslinde da causa (o vício de decoro parlamentar),
por que não se procedeu a tal apuração?
A objeção poderia parecer demasiado exigente a uma primeira vista, mas
toca no cerne da controvérsia que ficou sem resposta com o julgamento das
ADIs n. 4.887, 4.888 e 4.889: Como se prova o vício de decoro parlamentar?
Das decisões mencionadas, ainda que de forma implícita, extrai-se que
poderia ser considerada prova para esse fim uma condenação penal transi-
tada em julgado, nos moldes da AP n. 470, tendo por base a demonstração
de condutas de corrupção passiva, envolvendo pagamentos em troca de apoio
político ao governo dentro do Congresso Nacional, em época coincidente com
a aprovação das leis atacadas. Ok, anotado para a remota hipótese de que um
julgamento semelhante atestando a “compra de votos” volte a ocorrer. Mas e
fora disso?
Ao não ter se debruçado sobre as eventuais outras maneiras de provar o
suposto vício de decoro parlamentar – sobretudo em escala suficiente para a
declaração de inconstitucionalidade das leis viciadas –, o julgamento resul-
ta pouco útil, pois dificilmente será possível demonstrar tal “defeito ético” na
formação da vontade legislativa. Trata-se de prova diabólica, excessivamente
difícil (para não dizer impossível) de ser produzida.
E mais, eis aqui o que poderia ser outra grande atecnia do julgamento:
imaginando que haja meios de prova aptos nesse sentido, as decisões das ADIs
n. 4.887, 4.888 e 4.889 deixaram uma abertura para a avaliação judicial de
eventuais “vícios da vontade parlamentar”, alçando-os ao status de juridica-
mente relevantes e capazes de invalidar leis aprovadas por uma nova modali-
dade de inconstitucionalidade que não é formal, nem material.
Ocorre que isso implica desconsiderar que a aprovação de leis teria a na-
tureza de “fato jurídico” – mais especificamente de ato-fato jurídico, de acor-
do com a classificação de Pontes de Miranda –, em que o elemento volitivo

477
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

individual – isto é, a presença ou não de vontade para a prática do ato – é


considerada “irrelevante” para seu resultado, equivalente ao dado fático cons-
tatável no mundo (ainda que em termos meramente institucionais). Uma vez
promulgada, a lei ingressa no ordenamento jurídico.
Nesse sentido, a aprovação das leis é um fato produzido pelos legisladores,
um ato-fato que produz efeitos jurídicos com independência da vontade indi-
vidual de cada legislador que se absteve ou votou favorável ou contrariamente
por ocasião da deliberação no Parlamento.
Enquanto produto do processo legislativo, a lei é uma realidade que basta
em si mesma, sendo desnecessário perquirir qual foi a vontade individual de
cada legislador para aferir sua validade ou constitucionalidade.
Ainda pela classificação ponteana, o ato-fato jurídico passa do plano da
existência diretamente para o plano da eficácia, não transitando pelo plano
da validade, daí a impropriedade de perquirir vícios ou falhas na vontade do
sujeito que praticou o ato-fato para eivá-lo de nulidade ou de anulabilidade.
Dito com outras palavras, no final das contas, o que materializa a decisão
legislativa é o número de votos a favor registrado no painel de votações que
sejam suficientes ao quórum exigido. E nada mais. Não há sentido em exami-
nar a vontade pessoal dos congressistas para higidez do processo legislativo
subjacente, não cabendo falar em erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou
fraude contra credores em relação ao voto dos parlamentares. Seria complica-
do (para não dizer impossível) proceder de outra maneira.
Nesse sentido, inclusive, basta recordar o episódio ocorrido durante as
discussões por ocasião da Reforma da Previdência em 1998, quando um único
“voto errado” foi determinante para não aprovação da idade mínima6 como
requisito para a aposentadoria dos segurados no Regime Geral de Previdência
Social – RGPS. Na hora da votação, o então deputado Antonio Kandir aper-
tou o botão “abstenção”, em lugar de “sim”. Como isso, esse ponto da proposta
de emenda à Constituição teve apenas 307 votos na Câmara dos Deputados
(quando seriam necessários 308, como já comentado).
Esse é um claro exemplo de defeito na exteriorização da vontade – erro,
que implicou numa divergência entre a vontade consciente e sua manifesta-
ção – que, contudo, foi irrelevante para a aprovação da referida modificação

6. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc07059825.htm

478
Como se prova a inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar?

constitucional, que ao fim e ao cabo, mesmo com a justificativa do parlamen-


tar, não contou com os 308 votos necessários ao quórum de aprovação.
De prevalecer a lógica da sindicabilidade quanto à “real” vontade parla-
mentar, o caso seria, então, de anulação da votação, porque esta teria sido “sem
querer”, com vício. E, logo, contestações semelhantes surgiriam reclamando
que o voto parlamentar se deu em troca da liberação de uma emenda orça-
mentária pelo presidente da República e, portanto, não foi válido. Ou, em ló-
gica semelhante, que resultou de logrolling (o toma-lá-dá-cá típico dentro do
Poder Legislativo), de um conflito de interesses ou toda a gama de situações
em que se está diante da chamada soft corruption, que podem ser eticamente
questionáveis, mas não crimes propriamente.
Com isso, estaria aberta a brecha para cada vez mais contestações judiciais
dos resultados das votações legislativas. O lado “insatisfeito” com a decisão do
Poder Legislativo teria mais um argumento para buscar a jurisdição constitu-
cional: sustentar algum “vício oculto” na formação da vontade legislativa.
Seja por rigor técnico à luz da teoria do direito, seja por razões de seguran-
ça jurídica, pareceria necessário fechar por completo essa possibilidade.
Não se defende que fiquem impunes as denúncias de compra de votos,
emendas e até mesmo de atos normativos inteiros que continuam surgindo.7
Criminosos, legisladores ou não, devem sempre ser responsabilizados. O aler-
ta é tão somente para o perigo da tese da “contaminação” (do resultado pela
vontade) que subjaz à inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar,
tanto por sua inadequação à luz do rigor técnico jurídico (como explicado, a
aprovação de leis é ato-fato jurídico em que o elemento volitivo é irrelevante
para o resultado), quanto pela escassez de meios de prova capazes de demons-
trar o vício de decoro da vontade legislativa.
Diante de tudo isso, é possível ver que o julgamento das ADIs n. 4.887,
4.888 e 4.889 resultou ser meramente simbólico. Assim como a legislação sim-
bólica, o entendimento do STF tem tudo para ser desprovido de qualquer efi-
cácia mais concreta, tendo servido apenas para: a) confirmar os valores sociais
(reconhecimento em abstrato de que a corrupção afronta o devido processo le-
gislativo contrariando o princípio democrático e a moralidade administrativa);

7. https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2020/12/policia-federal-investiga-
-possivel-compra-de-medidas-provisorias-pela-amil-para-reducao-bilionaria-de-dividas.
html

479
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

b) transmitir uma aparência de ação (imagem de compromisso para com as


expectativas da sociedade); e c) adiar a verdadeira resolução do problema sub-
jacente (a corrupção no sistema político).

480
Devem os juízes examinar a
argumentação legislativa?
PL 2585/2021 obrigará juízes a enfrentar os
pareceres das CCJs da Câmara e do Senado

No último dia 7 de dezembro de 2021, a Comissão de Constituição e


Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados emitiu parecer pela constituciona-
lidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação do PL
2585/2021,1 de autoria da deputada federal Margarete Coelho (PP-PI), que
define, como fundamento essencial da decisão em controle de constituciona-
lidade, a apreciação dos argumentos desenvolvidos nos pareceres aprovados
pelas CCJs da Câmara e do Senado Federal.
O PL pretende acrescentar um inciso VII no § 1º do artigo 489 do Código
de Processo Civil (CPC), para determinar que não se considera fundamenta-
da qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que
deixar de considerar, na pronúncia de inconstitucionalidade de lei ou de ato
normativo, os argumentos desenvolvidos pelos órgãos colegiados menciona-
dos (CCJs da Câmara e do Senado). Na prática, coloca-se para os juízes o dever
de considerar os argumentos das Casas Legislativas.

1. https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2291546

481
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

De acordo com a justificação apresentada, a proposição “busca valorizar


o trabalho do Poder Legislativo na confecção das leis”. Menciona-se que “há
um relevante material produzido no Parlamento sobre a gestação das leis, dis-
cussões profundas e norteadoras do escopo orientador das opções legiferantes
adotadas e que jaz adormecido – esquecido e ignorado – pelos operadores do
direito (juízes, promotores, procuradores, professores e estudiosos), de modo
a configurar-se um descaso para com esta fonte do direito”.
Ainda na justificação do PL, lê-se: “É preciso dar voz ao poder que elabora
as leis. É preciso ouvir os argumentos dos legisladores, compreender as suas
razões, o que tiveram em consideração ao conceber determinado dispositivo”.
No parecer apresentado pelo deputado federal Enrico Misasi (PV-SP), re-
lator do PL, adiciona-se que a proposição é necessária diante do contexto em
que, de acordo com os números ali apresentados (que talvez mereçam uma
revisão), 71% das leis são declaradas inconstitucionais pelo STF. Afirma-se que
a proposição é adequada em face do aumento da importância do Poder Judi-
ciário, daí a necessidade de ampliar o escopo da fundamentação das decisões
judiciais, já que esta (a fundamentação) constitui pressuposto de legitimidade
das decisões judiciais.
Na construção do parecer – que retoma o argumento de Alexander Bic-
kel em “The Least Dangerous Branch” –, dada a natureza contramajoritária
da jurisdição constitucional, impõe-se um ônus argumentativo mais intenso
à magistratura quando da invalidação da vontade popular representada pelo
parlamento.
Além disso, o parecer endossa a referida proposição legislativa como uma
“resposta congressual ponderada e prudente às situações em que se manifesta
o ativismo do juiz constitucional” (p. 6) e que “permite estabelecer uma me-
lhor sinergia entre o legislador e o intérprete-aplicador do direito, em benefí-
cio do princípio democrático” (p. 8).
O parecer termina com um alerta no sentido de que, caso o PL seja apro-
vado, caberá ao Congresso Nacional assegurar que estejam acessíveis ao pú-
blico os registros dos debates e manifestações quando da apreciação das pro-
posições legislativas. A rigor, isso deveria acontecer independentemente da
aprovação da proposta.
Subjaz ao PL 2585/2021 um importante debate acadêmico sobre se os juí-
zes deveriam ou não consultar os chamados “materiais preparatórios” (isto é,
as exposições de motivos, justificações, pareceres dos órgãos legislativos, atas

482
Devem os juízes examinar a argumentação legislativa?

taquigráficas com os debates parlamentares, audiências públicas, entre outros


documentos produzidos durante o processo de elaboração que representem o
“histórico legislativo”) para interpretar as leis.
Nos Estados Unidos, o debate sobre o tema remonta a 1892, com o jul-
gamento do caso Church of the Holy Trinity v. United States, 143 U.S. 457, em
que a Suprema Corte dos Estados Unidos conferiu grande peso ao histórico
legislativo para fixar uma interpretação “não textual” da lei então em questão.
Esse caso é um exemplo de como a intenção legislativa pode ser determinante
para fixar uma interpretação jurídica.
Em breve síntese, discutia-se se uma lei aprovada em 1880 que proibia a
“importação e migração de estrangeiros sob contrato ou acordo para realizar
trabalho nos Estados Unidos” seria aplicável a um contrato entre um estran-
geiro (residente fora dos EUA) e uma sociedade religiosa para servir como
reitor ou ministro (episcopal). No caso, a Suprema Corte entendeu que a in-
tenção legislativa era a de proibir a importação de “trabalhadores manuais” e
não pretendia alcançar os “trabalhadores intelectuais” (brain toilers).
A partir de então, uma farta bibliografia foi produzida sobre a temática,
com diversas correntes. Dentro do espaço desta coluna, seria impossível reunir
todas.
Grosso modo, no entanto, pode-se esquematizar que, de um lado, estão os
textualistas – para quem a única fonte do direito seria o próprio texto legal –,
que entendem que a consulta ao “histórico legislativo”, além de produzir inter-
pretações ruins, seria inconstitucional e permitiria a distorção e manipulação
dos documentos legislativos. Além disso, defendem que a “intenção legisla-
tiva” seria um conceito vazio, que o Poder Legislativo não pode controlar a
interpretação dos textos, entre outros argumentos.
De outro lado, para os intencionalistas, a Constituição, ao não obrigar,
nem proibir expressamente, permitiria o recurso aos materiais preparatórios.
Isso, contudo, como explicado em outra oportunidade, não significa que o ar-
gumento da intenção do legislador tenha primazia em todas as ocasiões,2 mas
apenas que a intenção legislativa não pode ser considerada algo simplesmente
“irrelevante” em todos os casos.

2. https://www.academia.edu/65489076/O_ARGUMENTO_DA_INTENÇÃO_DO_LEGISLA-
DOR_ANOTAÇÕES_TEÓRICAS_SOBRE_USO_E_SIGNIFICADO

483
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

O debate sobre as teorias normativas da interpretação judicial é infindá-


vel. Nesse em específico, possivelmente, há algumas falácias de lado a lado:
assim como o textualismo não é capaz de resolver adequadamente toda a gama
de problemas jurídicos que possam surgir em concreto, considerar a intenção
legislativa tampouco significa passar por cima dos textos legais. Há uma clara
falsa oposição entre um e outro.
Seria possível apontar também a falácia do espantalho: os intencionalis-
tas não reivindicam que os materiais preparatórios (ou o histórico legislativo)
tenham a mesma autoridade dos textos normativos. Ao menos não é essa a
pintura que corresponde à maioria dos defensores do valor do processo legis-
lativo.
Além disso, um textualismo estrito (ou muito rigoroso) que ignore a in-
tenção legislativa é incoerente tanto na teoria como na prática. Na verdade,
buscar o propósito das leis pode ser um dos métodos mais objetivos para defi-
nir o significado dos textos. Daí que o ponto que parece central a esta colunista
está na conexão que existe entre a teoria da legislação e a teoria da interpreta-
ção.
A partir do momento em que se leva a sério o processo decisório legisla-
tivo – isto é, quando se reputa valiosa a adoção de métodos, técnicas e proce-
dimentos que aperfeiçoem a tomada da decisão para a criação de normas –, a
consequência natural dessa assunção será a consideração (ainda que de forma
não determinante) do trabalho legislativo no momento da aplicação.
A occasio legis, assim entendida como as circunstâncias em que a lei foi
gerada, é um dos componentes da interpretação, que parte do texto, mas não
pode menosprezar o respectivo contexto. Daí o claro equívoco em relegar os
materiais preparatórios à irrelevância.
A operação de examiná-los pode não ser necessária em todos os casos,
mas em alguns (e a grande questão é definir quais), indubitavelmente, a com-
preensão do problema social que se pretendia resolver, dos objetivos que se al-
mejavam alcançar e das alternativas em jogo quando da deliberação legislativa,
será decisiva para a interpretação.
Nesse sentido, a proposta do PL 2585/2021 é salutar, na medida em que
os argumentos que guiaram os legisladores na elaboração das normas de fato
devem ter algum peso no momento da aplicação das leis. Sem dúvidas, quan-
to maior for a argumentação legislativa entorno de determinada opção feita,
maior a racionalidade legislativa.

484
Devem os juízes examinar a argumentação legislativa?

Leis racionais são leis que contam com boas razões. Nessa situação, está
mais que justificada a deferência ao legislador, sobretudo dentro dos espaços
de livre conformação legislativa da matéria (isto é, quando a Constituição não
pré-determina qual deve ser a atuação do legislador).
Mas, como não poderia deixar de ser, é claro que o legislador pode falhar.
E para verificar se de fato há um erro, uma decisão arbitrária ou equivocada,
também deve ser examinada a argumentação legislativa. É preciso obter infor-
mações antes de presumir um despotismo legislativo.
É por isso que, em alguma medida, o PL é falho ao restringir a obrigação
de exame das razões legislativas às discussões sobre a inconstitucionalidade
das leis. Ora, a essa altura, já é possível perceber que a correta compreensão
da intenção legislativa, da racionalidade da lei, pode ser importante mesmo
fora de um debate sobre sua constitucionalidade. A mera atribuição de sentido
pode se beneficiar da compreensão das finalidades dos textos legais, a partir da
utilização das ferramentas analíticas da teoria da legislação.
Além disso, de certa forma, o PL também limitou muito o material prepa-
ratório cuja consulta obriga: só os pareceres das CCJs da Câmara dos Deputa-
dos e do Senado Federal. Como sabido, o processo de elaboração das leis tem
inequívoca natureza dinâmica, e diversos argumentos vão sendo abandonados
ou modificados ao longo da tramitação, até mesmo em função do emenda-
mento parlamentar e dos acordos para aprovação que vão surgindo.
Ou seja, a análise do parecer das CCJs representa só um retrato daquele
momento, não o filme completo. De forma isolada, pode não ser suficiente
para justificar a escolha. Só com o parecer das CCJs não se antecipa, neces-
sariamente, o desfecho da decisão legislativa. Isso sem contar a enorme fre-
quência com que tais colegiados têm seus pronunciamentos substituídos por
pareceres em plenário, o que esvaziaria a novidade legislativa.
Enfim, os materiais preparatórios são mais amplos do que só os pareceres
das CCJs e toda a sua riqueza pode não estar devidamente sintetizada somente
no pronunciamento desses colegiados.
Uma consequência importante da eventual aprovação do PL 2585/2021
será o cabimento de embargos de declaração, nos termos do artigo 1.022, pa-
rágrafo único, do CPC, na medida em que se considera omissa a decisão que
incorra em qualquer das condutas descritas no referido artigo 489, § 1º, em
cujo dispositivo se pretende inserir o inciso VII.

485
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Ocorre que são grandes as chances de que os destinatários da desejável


novidade legislativa prontamente adotem uma “interpretação defensiva”, à se-
melhança do que foi feito no Enunciado nº 9 da Escola Nacional de Formação
e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), de acordo com o qual “é ônus
da parte, para os fins do disposto no artigo 489, § 1º, V e VI, do CPC/2015,
identificar os fundamentos determinantes ou demonstrar a existência de dis-
tinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, sempre que
invocar jurisprudência, precedente ou enunciado de súmula”.
Na prática, o referido verbete “desobriga” os juízes de conhecer e aplicar
os precedentes “de ofício”, atribuindo à parte que invoca a aplicação de um
precedente, enunciado de súmula ou jurisprudência a obrigação de identifi-
car os fundamentos determinantes, de realizar o distinguishing ou overruling,
conforme o caso.
Ou seja, há grandes chances de que o eventual novo inciso VII do artigo
489, § 1º, do CPC, tenha o mesmo destino interpretativo dos incisos V e VI,
deixando para a parte que reclama da força da intenção legislativa o ônus de
“demonstrá-la” com base nos materiais preparatórios.
No entanto, como explicado aqui,3 nem sempre a utilização do argumen-
to da intenção do legislador depende da corroboração empírica, por mais que
esse elemento proporcione maior força a esse argumento interpretativo. Além
disso, essa possível “interpretação defensiva” à la Enunciado nº 9 da ENFAM
poderá proporcionar, precisamente, a distorção do histórico legislativo critica-
da pelos textualistas.
O ideal mesmo seria que a consideração das razões legislativas não de-
pendesse de uma disposição legal que imponha esse exame como obrigação
dos juízes em todos os casos. A rigor, toda argumentação judicial deve ser uma
mera continuação da argumentação legislativa. No mundo ideal em que os
legisladores motivem as leis, o recurso às razões legislativas pode ser útil para
iluminar sua melhor aplicação.

3. https://www.academia.edu/65489076/O_ARGUMENTO_DA_INTENÇÃO_DO_LEGISLA-
DOR_ANOTAÇÕES_TEÓRICAS_SOBRE_USO_E_SIGNIFICADO

486
Sobrevive a competência senatorial
do art. 52, X, da Constituição?
O advento do Código de Processo Civil de
2015 e a falácia do argumento da mutação1

Nos termos do art. 52, inciso X, da Constituição, compete privativamente


ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada
inconstitucional por decisão definitiva do STF. A referida competência consti-
tucional foi disciplinada internamente nos arts. 386 e seguintes do Regimento
Interno do Senado Federal (RISF).
Em síntese, restou estabelecido que, recebida a comunicação de que foi
proferida decisão definitiva pelo STF declarando a inconstitucionalidade total
ou parcial de lei, esta deve ser lida em plenário e, na sequência, encaminhada
à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), para a formulação de
projeto de resolução suspendendo a execução da lei, no todo ou em parte.
Tradicionalmente, a suspensão senatorial foi entendida como ato políti-
co-jurídico que empresta eficácia erga omnes às decisões do STF no controle
concreto. O dispositivo constitucional concretiza o papel do Senado Fede-
ral no controle de constitucionalidade difuso no sentido de evitar os efeitos

1. Artigo escrito em coautoria com MATEUS FERNANDES VILELA LIMA (Advogado do Senado
Federal, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de
São Paulo).

487
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

perversos decorrentes do limite inter partes das decisões desse controle, impe-
dindo, a uma só vez, a multiplicidade de processos e o risco de disparidade de
decisões sobre a mesma matéria.
É por isso que, embora haja discricionariedade política quanto ao juízo de
conveniência e oportunidade sobre suspender ou não a lei declarada incons-
titucional, não cabe ao Senado Federal entrar no mérito da decisão judicial
proferida pelo STF, desfazendo-a, interpretando-a, discordando dela ou res-
tringindo o seu alcance.
Além disso, não cabe retratação, invalidação ou revogação da resolução
que suspendeu lei declarada inconstitucional, de modo que a edição da reso-
lução exaure definitivamente a competência senatorial em tela em relação à
norma, retirando a sua vigência.
Não há notícias de mecanismos semelhantes no direito comparado. O
mais próximo é o art. 281, item 3, da Constituição portuguesa de 1976, ain-
da em vigor, pelo qual o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma,
desde que tenha sido por ele assim considerada em três casos concretos.
Criação brasileira, tal competência senatorial foi introduzia pela primeira
vez na Constituição de 1934 (art. 91, inciso IV: “Compete ao Senado Federal
suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação
ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder
Judiciário”).
Sob a égide da Constituição de 1946, a atribuição foi delineada no art. 64,
pelo qual “incumbe ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em
parte, de lei ou decreto declarados inconstitucionais por decisão definitiva do
Supremo Tribunal Federal”. A mesma redação foi repetida na Constituição de
1967, art. 45, inciso IV, e na EC nº 1/69, no art. 42, inciso VII.
Em decisões editadas ainda antes da Constituição de 1988 (por exemplo,
o MS nº 16.519), o STF já reconheceu a função dessa participação senatorial
como ato político cujo propósito é o de ampliar os efeitos da decisão judicial.
Portanto, a suspensão não traduz função jurisdicional, mas tem a finalidade
de complementá-la e, embora tenha limites, não chega a converter o Senado
Federal em “mero cartório de registro” das decisões de inconstitucionalidade
do STF.
Quanto a esse ponto, inclusive, deve-se registrar que não prosperou o po-
sicionamento no sentido de que a competência senatorial se resumiria a “dar

488
Sobrevive a competência senatorial do art. 52, X, da Constituição?

publicidade” às decisões do STF. Por ocasião do julgamento da Reclamação nº


4.335, quando se discutiu longamente sobre a competência do art. 52, inciso X,
da CF, o ministro Gilmar Mendes, seguido pelo ministro Eros Grau, chegou a
defender que a suspensão senatorial teria passado por uma mutação constitu-
cional, estaria ultrapassada e deveria ser reinterpretada.
No entanto, o fato é que tal fundamentação não se sagrou vencedora, pois
não foi acolhida pelos ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa, Ricar-
do Lewandowski e Marco Aurélio, os quatro que votaram para que a reclama-
ção sequer fosse conhecida. E, mesmo entre os demais que votaram pela pro-
cedência do pedido (Teori Zavascki, Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de
Mello), fizeram-no com base em fundamentação diversa da mutação, a qual,
portanto, não fez parte do resultado final do julgamento, e sequer consta de
sua ementa, resultando digressão a título de mero obiter dictum.
A mesma conclusão vale para os debates travados por ocasião do julga-
mento das ADIs nº 3.406 e nº 3.470, as quais tinham por objeto normas sobre
o amianto, não a competência do art. 52, inciso X, da CF, a despeito de no-
vamente ter sido sustentada em obiter dictum a necessidade de uma releitura
desse dispositivo constitucional.
Na verdade, tal discussão só surgiu porque, durante o julgamento das
ADIs nº 3.406 e nº 3.470 – ou seja, atenção, no âmbito do controle concentra-
do, em ações que tinham por objeto a Lei nº 3.579/2001 do estado do Rio de
Janeiro –, declarou-se, incidentalmente, a inconstitucionalidade do art. 2º da
Lei federal nº 9.055/1995, que não era objeto dessas ADIs, com efeito vincu-
lante e erga omnes, como questão prejudicial. Ou seja, a expansão dos efeitos
dessa declaração incidental se deu no controle concentrado e abstrato.
Então, repita-se, pela importância desse ponto: a mutação constitucional
do art. 52, inciso X, da CF, não foi formalmente votada nas ADIs nº 3.406 e nº
3.470, e sequer tinha sido levantada como questão de ordem. A tese da muta-
ção, mais uma vez, deixou de fazer parte do resultado final desse julgamento,
não consta da sua ementa, sendo só um obiter dictum.
Especificamente dessa última vez em que o tema foi debatido, o adven-
to do Código de Processo Civil (CPC) de 2015 ganhou papel importante na
discussão. Em primeiro lugar, pelo art. 535, § 5º, do CPC, que estabeleceu a
inexigibilidade de obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado
em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo STF, ou fundado
em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo STF como
incompatível com a CF, em controle de constitucionalidade concentrado ou

489
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

difuso. Esse dispositivo teria concedido um efeito expansivo às decisões do


controle difuso, isso é fato.
Em segundo lugar, pelo art. 927 do CPC, que determinou a vinculação
dos juízes e tribunais à lista de pronunciamentos do STF especificados, os cha-
mados “precedentes qualificados”. Tais dispositivos teriam cumprido a função
de “abstrativizar” o controle difuso. Não se nega essa questão.
Ocorre que uma leitura atenta do rol dessas decisões vinculantes do art.
927 do CPC revela o dispositivo como insuficiente para conferir eficácia erga
omnes às decisões do controle difuso e mesmo o efeito vinculante dado só
alcança o Poder Judiciário, mas não a administração pública direta e indireta,
nas esferas federal, estadual e municipal.
Ou seja, a menos que tenham sido parte no respectivo processo judicial,
as decisões no controle difuso de constitucionalidade não alcançam o Poder
Executivo e as funções executivas atípicas dos outros poderes.
Como sabido, só o controle concentrado e as súmulas vinculantes gozam
dessa extensão, nos termos do art. 102, § 2º, e art. 103-A, caput, da CF. É dizer,
não se deve confundir a eficácia contra todos das decisões do STF com a força
expansiva que o CPC deu às decisões da Corte no controle difuso.
Assim, os interessados na aplicação dos entendimentos emanados no âm-
bito do controle difuso terão que continuar ajuizando ações, pois o processo
judicial é condição para a aplicação do art. 927 do CPC. Só esse dado já justi-
fica a manutenção do interesse da competência do Senado Federal para sus-
pender as leis nessa situação, por razões de economia processual, evitando que
novas ações judiciais sejam ajuizadas.
De fato, bem entendido o referido art. 927 do CPC, o dispositivo legal
apenas determina a obrigatoriedade da decisão do STF para os demais pro-
cessos judiciais, isto é, a vinculação dos demais magistrados das instâncias in-
feriores à conclusão quanto à inconstitucionalidade do ato normativo, mas,
a rigor, não se retira a norma do ordenamento jurídico, que ainda continua
vigente com a respectiva presunção de constitucionalidade que lhe é inerente
no âmbito administrativo e extrajudicial.
Então, por mais essa razão, justifica-se o interesse em abstrato na suspen-
são da lei, nos moldes do art. 52, inciso X, da CF, isto é, para que se retire a
vigência da lei do ordenamento jurídico. Inclusive por paralelismo com o efei-
to repristinatório próprio da declaração de inconstitucionalidade no contro-
le abstrato, entende-se que a resolução senatorial no controle difuso também

490
Sobrevive a competência senatorial do art. 52, X, da Constituição?

teria eficácia retroativa, operando com efeitos ex tunc, por ser mais que uma
simples revogação da lei (ressalte-se, entretanto, que este ponto não é pacífico
na doutrina, havendo quem defenda a produção de efeitos ex nunc).
Vale registrar, ainda, que continua existindo a obrigação de o STF enviar
as decisões definitivas do controle difuso para o Senado Federal, nos termos do
art. 178 do Regimento Interno do STF (RISTF). Inclusive, observa-se que há
comunicações não só de “leis”, mas também outros atos normativos, pelo que
a suspensão senatorial tem sido alargada para alcançá-los, como nos exemplos
das Resoluções SF nº 4/2012, 4/2010, 6/2008, 5/2007, entre outras.
Explicada a permanência da utilidade da suspensão a que se refere o art.
52, inciso X, da CF, cabe observar que essa competência senatorial para sus-
pender leis declaradas inconstitucionais, no todo ou em parte, por decisão de-
finitiva do STF tem caráter nacional (e não meramente federal), alcançando a
possibilidade de suspensão de leis estaduais, municipais ou distritais.
Inclusive, deve-se registrar que há resoluções aprovadas pelo plenário do
Senado Federal no exercício dessa competência tendo por objeto, precisamen-
te, leis não federais (por exemplo, Resoluções SF nº 16/2017, 2/2012, 3/2012,
43/2010, 37/2009, 7/2008, 26/2008, 2/2007, etc.). Além disso, o próprio STF já
reconheceu que a competência senatorial pode ter por objeto leis não federais,
como ocorreu na medida cautelar da ADI nº 3.929.
Nesse julgado, a decisão suspendeu parcialmente a Resolução SF nº
7/2007 do Senado Federal, especificamente nos trechos em que fazia referên-
cia a determinados artigos das Leis paulistas nº 7.003/1990 e nº 7.646/1991,
os quais não guardavam relação com a Lei nº 6.556/1989. As três leis referidas
foram editadas de forma sucessiva e declaradas inconstitucionais no âmbito
do controle difuso, mas as duas leis mais recentes continham dispositivos não
expressamente declarados inconstitucionais (os arts. 6º e 7º).
O erro do Senado Federal plasmado na Resolução SF nº 7/2007 partiu
da comunicação equivocada do próprio STF, que encaminhou ofício descon-
siderando o julgado em sede de embargos de declaração, com efeitos modi-
ficativos, que excluíra alguns artigos da declaração de inconstitucionalidade,
conforme a explicação que figura à página 10 do voto da ministra Ellen Gracie
(equivalente à página 66 do processo).
Embora o ponto não tenha sido expressamente debatido por ocasião do
julgamento, ainda assim, pode-se dizer que restou reconhecida, nem que seja
implicitamente, a possibilidade de suspensão senatorial de leis não federais, já

491
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

que Resolução SF nº 7/2007 – contestada na referida ADI nº 3.929 – tinha por


objeto leis do estado de São Paulo, o que evidencia a constitucionalidade da
interpretação legislativa dada ao alcance do art. 52, inciso X, da CF, de forma a
abranger, também, leis estaduais, municipais ou distritais.
É isso o que importa evidenciar: a chancela jurisprudencial a essa possibi-
lidade, sem prejuízo da discricionariedade senatorial quanto à conveniência e
oportunidade diante do caso concreto.
Como indicado acima, só as circunstâncias do caso concreto ensejarão os
elementos para o exercício dessa competência em cada hipótese, dado que o
Senado Federal não está obrigado a suspender a lei em todos os casos, tendo
discricionariedade nessa decisão. Dado que a suspensão prevista no art. 52,
inciso X, da CF, é ato político-jurídico, de seu eventual não exercício não se
pode extrair que o Senado Federal esteja compactuando com inconstitucio-
nalidades. O não exercício de uma competência constitucional (ou seu uso
parcimonioso, como é o caso) não lhe retira o caráter privativo, indelegável,
incaducável, inalterável, irrenunciável e facultativo.
Trata-se, simplesmente, de um juízo em favor da manutenção dos efeitos
inter partes da decisão do STF, o que não pode ser confundido com uma rejei-
ção do entendimento da Corte, pois, também como assinalado, o ato senatorial
não entra no mérito da conclusão judicial. A decisão senatorial limita-se à
oportunidade e conveniência de estender os efeitos do pronunciamento judi-
cial para torná-lo erga omnes ou conservá-lo no âmbito particular dos casos
concretos.
Todo esse percurso revela a falácia da falsa dicotomia presente no argu-
mento em prol da mutação constitucional da suspensão senatorial, ante seu
suposto esvaziamento com o advento do CPC de 2015. Na verdade, as no-
vidades legislativas em favor da expansão dos efeitos do controle difuso não
excluem, nem retiram o valor ou o alcance do art. 52, inciso X, da CF, que,
então, sobrevive.

492
8 Ca p í tu lo
TEORIA DO DIREITO
Os legisladores, os juízes, os
advogados e a equidade
ADC 71 definirá se honorários advocatícios
podem ser fixados por equidade
além do art. 85, § 8º, do CPC

É possível impedir os juízes de se valerem da equidade em suas decisões?


Em resumo, seria essa a controvérsia lançada na ADC n. 71, ajuizada pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB,1 em que
pleiteia a declaração de presunção absoluta de constitucionalidade do art. 85,
§§ 3º, 5º e 8º, do CPC, com o especial propósito de afastar interpretações ju-
diciais ampliativas do art. 85, § 8º, que autorizariam o arbitramento equitativo
dos honorários de sucumbência fora das hipóteses estritamente previstas no
texto legal.
Na petição inicial,2 o CFOAB sustenta que, ao deixar de observar os co-
mandos objetivos da legislação processual, os tribunais estariam afrontando
os seguintes preceitos: 1) o princípio da legalidade (art. 5º, caput, inciso II, da
CF); 2) o princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF); 3) o princípio

1. https://www.jota.info/carreira/oab-quer-que-stf-pacifique-controversia-sobre-calculo-
-de-verbas-advocaticias-30042020
2. https://images.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/doc-01-adc-art-85-cpc-honorarios-
-sucumbencia-fazenda-publica.pdf?x73076

495
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

da segurança jurídica (art. 5º, inciso XXXVI, da CF); e 4) o direito à justa


remuneração dos advogados, ínsito ao desempenho de atividade essencial à
administração da justiça (art. 133 da CF). Traz, ainda, exemplos de decisões
divergentes sobre o assunto no âmbito STJ e dos TRFs.
Por expressa determinação do art. 14, inciso III, da Lei n. 9.868/99, o ca-
bimento da ADC depende da comprovação da existência de controvérsia ju-
dicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória. A
divergência jurisprudencial apta à caracterização dessa legitimação in concreto
da ADC consiste em um estado de incerteza capaz de afetar a presunção de
constitucionalidade da disposição objeto da ação declaratória, sendo necessá-
rio que os argumentos envolvidos na controvérsia interpretativa dos tribunais
sejam de ordem constitucional.
Aqui, então, já se tem o primeiro problema com a ação, na medida em
que o dissenso narrado pelo CFOAB não atende a tal requisito legal, por duas
razões: 1) porque as decisões judiciais não se valem de argumentos sobre a
(in)constitucionalidade dos dispositivos do art. 85, §§ 3º, 5º e 8º, do CPC; e
2) porque a divergência infraconstitucional ainda pode e deve ser sanada pela
interposição de embargos de divergência (arts. 1.043 e seguintes do CPC), sem
prejuízo do cabimento, se for o caso, do incidente de resolução de demandas
repetitivas, conforme os arts. 976 e seguintes do CPC, para a uniformização da
jurisprudência do tribunal. Ou seja, não é dado utilizar a ADC como sucedâ-
neo recursal ou incidente de uniformização de legislação infraconstitucional.
Além disso, o segundo problema da ADC está no fato de que a divergên-
cia trazida pelo CFOAB aponta tão somente para uma interpretação ainda em
formação, ou seja, ainda não se consolidou o entendimento do STJ quanto ao
correto sentido que se deve atribuir à lei, não sendo possível afirmar de pronto
se tal entendimento será ou não contrário à CF.
As discussões em torno do melhor sentido a ser atribuído à lei ainda estão
se desenvolvendo e a divergência entre órgãos judiciais na fase de formação
dos entendimentos é natural e esperada no sistema de precedentes em cons-
trução. Por isso, trata-se de manifesto equívoco apressar a análise do STF via
ADC, quando não há disfuncionalidade por parte do STJ que justifique a inau-
guração do controle concentrado, menos ainda via ADC, a ação que justamen-
te vem impedir o fluxo regular do controle difuso.
Nesse contexto, uma prematura intervenção por parte do STF implicaria
verdadeira usurpação da competência constitucional atribuída ao STJ no art.
105, inciso III, da Constituição, ou, no mínimo, confusão entre as atribuições

496
Os legisladores, os juízes, os advogados e a equidade

das Cortes Superiores, na medida em que as duas Cortes estariam desempe-


nhando a mesma função, ao mesmo tempo.
A legitimidade dos precedentes reside justamente na consideração das di-
versas soluções interpretativas que vão surgindo como parte da discussão dos
casos que espelham os problemas concretos da aplicação das normas. Por essa
lógica, em lugar de uma interferência precoce do STF, é mais adequado deixar
que o resultado interpretativo dos casos aflore naturalmente, como fruto das
discussões. Inclusive, essa simples providência – a não interferência antecipa-
da do STF – pode ser o suficiente para dispensar a atuação do STF mais adian-
te, pois a definição da interpretação no âmbito do próprio STJ pode tornar
desnecessária a intervenção do STF para solucionar a controvérsia.
O terceiro problema (e certamente o mais grave de todos) remonta à per-
gunta inicialmente formulada: não é possível manejar uma ADC para retirar
dos juízes e tribunais a liberdade para a formação de seu convencimento dian-
te do caso concreto, impedindo-lhes de que se valham das melhores técnicas
decisórias e interpretativas (inclusive a restritiva, sistemática, extensiva ou por
analogia) para julgar as ações de sua competência, sobretudo quando tam-
bém estiverem em jogo outros bens, princípios e valores jurídicos importantes,
como a boa-fé e a vedação do enriquecimento sem causa.
Na essência, a ADC n. 71 poderá decidir sobre a natureza taxativa ou não
do rol de situações do art. 85, § 8º, do CPC, que autorizam a fixação dos ho-
norários sucumbenciais por equidade. Pelo referido dispositivo, tal apreciação
equitativa pode ocorrer nas causas em que: 1) o proveito econômico for inesti-
mável; 2) o proveito econômico for irrisório; e 3) quando o valor da causa for
muito baixo.
Nessas situações, o legislador autorizou ao juiz a fixação do valor dos ho-
norários advocatícios por apreciação equitativa, observando o disposto nos
incisos do art. 85, § 2º, do mesmo CPC, ou seja: o grau de zelo do profissional;
o lugar de prestação do serviço; a natureza e a importância da causa; o trabalho
realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço.
Como dito, a divergência de interpretações narrada pelo CFOAB reside
no alcance da referida norma, isto é, em saber se essas são ou não as únicas
situações em que os honorários advocatícios podem ser arbitrados por equi-
dade. Isso porque algumas decisões judiciais vêm aplicando o parâmetro da
equidade também diante de valores exorbitantes, o que não teria amparo no
texto legal.

497
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Para isso, o argumento que vem sendo utilizado pelos juízes é o de que a
aplicação dos percentuais e faixas de valores do art. 85, § 3º, do CPC, mesmo
com o escalonamento previsto no § 5º, acarretaria distorções na fixação da
verba honorária, tendo em vista o trabalho do advogado, que poderia ser clas-
sificado como sumário, simples ou descomplicado. Por exemplo, esse seria o
caso subjacente ao REsp n. 1.771.147:3 uma execução fiscal milionária extin-
ta mediante mera petição de exceção de pré-executividade não resistida pela
Fazenda Pública, que prontamente cancelou a inscrição do crédito em dívida
ativa.
Adicionalmente, os juízes citam o art. 1º do CPC, pelo qual o processo
civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as nor-
mas fundamentais estabelecidos na CF, para justificar que a justiça no caso
concreto é princípio que deve reger sempre a jurisdição.
Algumas decisões citam, ainda, a necessidade de estender, às situações em
que a condenação foi exorbitante, o mesmo tratamento dado à verba ínfima,
com base nos princípios da boa-fé e da vedação do enriquecimento sem causa.
Para o CFOAB, tal prática dos juízes implica negar incidência ao art. 85,
§§ 3º e 5º, do CPC, o que, por seu turno, caracterizaria afronta ao enunciado
da Súmula Vinculante n. 10 – pelo qual viola a cláusula de reserva de plenário
(art. 97 da CF) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não de-
clare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder
Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.
No entanto, o arbitramento de honorários por equidade para além do rol
do art. 85, § 8º, do CPC, não equivale a negar vigência ao art. 85, § 3º, nem a
declará-lo inconstitucional, mas simplesmente revela a adoção de técnicas de
interpretação sistemática, por analogia ou de modo extensivo a outras situa-
ções. Em consequência, tampouco há violação ao enunciado vinculante. Por
isso, não merece prosperar a pretensão do CFOAB em que o rol do art. 85, §
8º, seja considerado taxativo (numerus clausus).
Pelo texto do art. 85, § 8º, do CPC, o legislador não proibiu a utilização
de quaisquer dos tipos de interpretação da norma nele constante. E não cabe
ao intérprete inserir vedações onde não o fez o próprio legislador (ubi lex non

3. https://processo.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201802586142
&dt_publicacao=25/09/2019

498
Os legisladores, os juízes, os advogados e a equidade

distinguit nec nos distinguere debemus). Assim, não caberia a restrição inter-
pretativa pretendida pelo CFOAB.
Se a intenção do legislador fosse outra (isto é, no sentido de impedir tais
modalidades de interpretação por parte dos juízes), teria registrado isso de
forma expressa no texto legal, valendo-se da técnica legislativa devida. Por
exemplo, registre-se que isso ocorreu no art. 111 do CTN, que veda a interpre-
tação extensiva ou por analogia, bem como nos arts. 114, 819, 843 do CC, que
trazem diretrizes interpretativas semelhantes.
Há comandos legais que determinam, ainda, em que sentido a norma
deve ser interpretada: de modo mais favorável ao acusado (art. 112 do CTN),
ao aderente (art. 423 do CC), ao consumidor (art. 47 do CDC), à liberdade
econômica, boa-fé e respeito aos contratos, investimentos e propriedade (art.
1º, § 2º, da Lei de Liberdade Econômica), aos usos do lugar (art. 113, § 1º, do
CC), etc.
No dispositivo do art. 85, § 8º, do CPC, entretanto, não está contida qual-
quer diretriz interpretativa – não está escrito, por exemplo, que deve-se adotar
a interpretação mais favorável ao advogado, ou a que resulte na fixação de ho-
norários advocatícios mais elevados –, de forma que o legislador conferiu aos
juízes o poder-dever de se valerem das técnicas mais adequadas diante do caso
concreto. Ademais, trata-se de liberdade inerente ao sistema brasileiro de livre
convencimento motivado do juiz (art. 371 do CPC).
Em outras palavras, o referido art. 85, § 8º, do CPC trouxe expressa auto-
rização legal para a utilização da equidade pelos juízes, de forma que se permi-
tiu aos órgãos jurisdicionais a flexibilidade na aplicação das leis.
E mesmo que o legislador não o tivesse feito, o fato é que a equidade está
sempre presente e não depende só de autorização expressa (ou mesmo implí-
cita) do legislador, já que a equidade também cumpre papel por ocasião da
interpretação das leis, como elemento de ponderação a respeito da aplicação
da norma às situações fáticas.
Nessa função, a equidade poderá servir tanto para justificar a derrotabili-
dade das normas (defeasibility) – fazendo prevalecer a finalidade da lei sobre o
que está escrito em seu texto, para algum caso concreto –, quanto para promo-
ver a adaptação das normas a novas realidades não imaginadas pelo legislador,
ocasião em que o intérprete poderá valer-se do método histórico-evolutivo
para atualizar as valorações constantes da norma às circunstâncias.

499
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Como bem observa o min. Gurgel de Faria no REsp n. 1.795.760:4 “Não é


possível exigir do legislador que a tarifação dos honorários advocatícios por ele
criada atenda com razoabilidade todas as situações possíveis, sendo certo que a
sua aplicação em alguns feitos pode gerar distorções”.
Nesse sentido, corretamente compreendida, vê-se que a equidade serve
não para “corrigir a lei”, mas como parâmetro para uma interpretação justa das
disposições normativas, em conformidade os propósitos da lei, e não unica-
mente com base na literalidade de suas palavras.
Consequentemente, não se afigura possível, nem seria desejável afastar a
utilização da equidade como critério de interpretação das leis e de integração
do direito, tal como estabelecido no art. 5º da LINDB.
A essa altura, já é possível ver que a pretensão do CFAOB – no sentido
de que impedir a aplicação analógica do art. 85, § 8º, do CPC – engessaria
o direito e tenderia a torná-lo menos justo, pois impossibilitaria os juízes de
interpretar razoavelmente as leis, bem como de conferir soluções em atenção
às particularidades fáticas dos casos concretos, seguindo as diretrizes funda-
mentais trazidas pelo CPC a respeito da fixação de honorários.
Em resumo, as situações do art. 85, § 8º, do CPC, são meramente exempli-
ficativas (numerus apertus), devendo-se declarar a constitucionalidade do art.
85, §§ 3º, 5º e 8º, do CPC, independentemente de interpretação conforme à
Constituição, sem acolher a condição pleiteada pelo CFOAB no sentido de que
restem impedidas (de modo geral e abstrato) as interpretações que afastem (ou
apliquem) as normas citadas fora das hipóteses nelas previstas, admitindo-se a
possibilidade de que os juízes possam arbitrar os honorários por equidade em
outras situações, em atenção às particularidades dos casos.
Tudo isso, por um simples fato: os legisladores, os juízes e os advogados
não têm como fugir da equidade.

4. https://processo.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201900317858&
dt_publicacao=03/12/2019

500
Uma apologia do Direito
e outros ensaios
Novo livro traz mais matrioshkas na
filosofia do direito de Manuel Atienza

Na metáfora muito feliz – que aqui se toma emprestada de Francisco


Laporta –, pode-se referir à teoria de Manuel Atienza como uma matrioshka
(conjunto de bonecas russas de madeira que podem ser colocadas uma dentro
da outra, em perfeito encaixe e obra de arte), realçando que, na verdade, vá-
rias teorias foram sendo incorporadas na proposta desse catedrático espanhol,
cujas ideias têm transcendência no Brasil.
De fato, uma das principais características do empreendimento teórico
que vem sendo construído por Manuel Atienza é justamente o sincretismo, na
medida em que sua teoria simbolizaria uma espécie de liga metálica formada
pelos aportes de diversos autores que lhe antecederam ou mesmo contempo-
râneos (como Viehweg, Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy, Dworkin,
Peczenik, Aarnio, Summers, Siches, Nino, Carrió, Alchourrón, Bulygin, entre
outros).
Longe de qualquer acepção negativa que alguma espécie de sincretismo
pudesse ensejar,1 um dos grandes méritos (e a própria originalidade) de Ma-

1. https://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/2005-Interpretacao_e_sincretis-
mo.pdf

501
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

nuel Atienza está justamente em organizar metodologicamente todos os ele-


mentos desse amálgama (acolhendo tudo de valioso das construções teóricas
anteriores, integrando em uma construção mais satisfatória do que o positivis-
mo jurídico) e em atribuir uma finalidade, um propósito, ao Direito. Atienza
consegue dotar de sentido as tarefas jurídicas.
O autor vem fazendo isso em pequenos (e grandes) passos desde 1991,
com a publicação de As Razões do Direito, quando já apresentou o primeiro
esboço de seu projeto de uma teoria da argumentação jurídica, apontando as
críticas e déficits do que chamou teoria standard da argumentação jurídica
(denominação por ele mesmo criada para se referir às obras de MacCormick
e Alexy).
Já naquele momento – deve-se destacar – é possível detectar a preocupa-
ção de Manuel Atienza para com a necessidade de que a teoria cumpra uma
“função prática”, é dizer, seja capaz de oferecer uma orientação útil às tarefas
de produzir, interpretar e aplicar o Direito, inclusive a de melhorar o ensino
jurídico (para que os alunos aprendam a pensar ou raciocinar como um jurista,
com senso crítico, sem se limitar ao conhecimento do direito positivo).
Ao longo dos anos, vieram O Sentido do Direito (de 2001), O Direito como
Argumentação (de 2006) até culminar no colossal Curso de argumentação jurí-
dica (de 2013), cujo original em espanhol ainda traz os “materiais” (fragmen-
tos transcritos dos autores fundamentais escolhidos pelo próprio Atienza, que
costuma enfatizar constituir o “básico” necessário para ser um bom jurista).
Mais recentemente, ainda vieram Filosofía del Derecho y transformación
social (de 2017), Comentarios e incitaciones (de 2019) – que mereceriam cada
um resenhas a eles exclusivamente dedicadas –, sem contar seus incontáveis
escritos espalhados em jornais, revistas e obras coletivas.
Em seu livro mais novo livro, Una apología del derecho y otros ensayos (de
2020), Manuel Atienza brinda os leitores com uma compilação de dez ensaios
sobre temas variados (o papel do ensino jurídico nas universidades, ativismo
judicial, direitos humanos, direito e literatura, filosofia do direito, ponderação,
entre outros), pelo que logo na apresentação o autor cuida de explicar que o
livro carece de pretensões sistemáticas e que pode ser lido seguindo a ordem
que o leitor bem entender.
A despeito disso, existe um claro fio condutor em todos os capítulos: o
propósito do autor de apresentar o Direito como uma “empresa essencialmente
problemática e aberta que requer doses consideráveis de imaginação, notáveis

502
Uma apologia do Direito e outros ensaios

recursos teóricos, treinamento e integridade moral, e que é crucial para com-


preender o mundo social e contribuir para sua transformação” (p. 15).
Logo no primeiro ensaio (Una apología del derecho, que dá título ao livro),
Manuel Atienza constrói uma espécie de distopia: um diálogo que se passa no
ano de 2048, durante uma reunião em uma universidade espanhola, em que
se discute a necessidade do ensino do Direito para todos os estudantes univer-
sitários.
Quem conhece mais de perto o Professor Manuel Atienza sabe que a cres-
cente “burrocratização” (com dois ‘r’ para enfatizar o incremento da “burrice”)
da universidade espanhola (e a brasileira vai no mesmo caminho) é um dos
assuntos que lhe tiram do sério.
Assim, em meio às críticas sobre as tendências irracionais e mercantili-
zantes da universidade que aparecem no diálogo imaginário, e usando méto-
dos literários para expor suas ideias jurídicas, Manuel Atienza faz sua apologia
quanto à necessidade do Direito, em um exemplo genial de peça com riqueza
literária e jurídica ao mesmo tempo – à semelhança do que fez Rudolf von
Ihering em O paraíso dos conceitos jurídicos, que certamente é uma das suas
fontes de inspiração.
Ao tempo em que resgata historicamente a pretensão idílica de construir
uma ordem social que não necessite recorrer ao Direito, passando inclusive
pelo pós-humanismo e trans-humanismo, o autor espanhol vai cuidando de
descartar que as sociedades possam viver sem o Direito, mostrando a neces-
sidade do “sistema de fins” que é o Direito, cujo alcance requer o emprego de
certos meios, sendo um deles as normas coercitivas (coativas), as quais, mes-
mo não fazendo parte da essência do Direito, são uma necessidade prática do
sistema jurídico.
Atienza explica, então, que os fins do Direito “foram mudando ao longo da
história, mas, no marco do Estado constitucional, são identificados com os gran-
des valores do Iluminismo: igualdade, liberdade e dignidade” (p. 27). Reconhece
que “nossos direitos não nos fornecem esses bens mais do que em uma extensão
limitada e, às vezes (ou para alguns), quase em nenhuma extensão”, pelo que
afirma que “o Direito simplesmente não é a justiça”.
Atienza vai, então, conduzindo o leitor ao seu argumento de que “esses
valores [igualdade, liberdade e dignidade] não teriam chance de se concretizar
(nem mesmo de forma tão insuficiente) sem a existência do Direito”.

503
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Disso resulta sua defesa da unidade dos três componentes fundamentais


da razão prática: o Direito, a moral e a política. Em suas palavras: “Em última
análise, o que fundamenta o Direito não pode ser mais do que a moralidade, e
sem poder político (estatal ou não) o Direito não poderia existir; mas, ao mesmo
tempo, o Direito é também o que torna possível a moralidade (para que possamos
atuar como seres autônomos em um mundo tão complexo como o nosso), e uma
função essencial do Direito é regular, estabelecer limites e civilizar o poder.” (p.
27). Já o peso que devem ter as razões morais em um sistema jurídico é uma
discussão à parte, não tratada nessa ocasião.
Mas Atienza não para por aí e cuida de avançar para explicar que tipo de
conhecimento é o Direito (não é uma ciência), quais habilidades deveriam ser
ensinadas na universidade para a preparação dos juristas e, o mais importante,
discorre sobre a transmissão do que chama cultura jurídica e do senso comum
jurídico, sobre os quais não se dará mais detalhes para aguçar a curiosidade
do leitor.
No brilhante ensaio ¿Tiene un futuro la filosofía del Derecho? (Con oca-
sión del homenaje a Jorge Malem), Atienza se inspira no trabalho de Enrique
Gimbernat Ordeig – publicado em 1970, Tem algum futuro a dogmática pe-
nal? – para refletir sobre se as mudanças que ocorreram nos últimos tempos
no Direito representam uma ameaça à sobrevivência da filosofia do Direito e,
no caso de a resposta ser negativa, qual tipo de filosofia do Direito tem algum
futuro, no sentido de que preenche os requisitos para resolver ou, pelo menos,
dizer algo que seja relevante em relação aos problemas jusfilosóficos.
Novamente aqui, Atienza trabalha em sutil Black Mirror com a hipótese
do não-Direito, pois não descarta que o controle do comportamento de todos
ou de alguns dos homo sapiens (ou de seus sucessores) vá deixar de ser jurídico
em algum momento.
Mas, no futuro imediato, rejeita que o Direito vá desaparecer (pelo contrá-
rio, sua percepção é de que o grau de juridicidade da sociedade está aumentan-
do muito), de modo que, mesmo com mudanças, continuariam existindo os
tradicionais problemas jusfilosóficos (o conceito de Direito; o conhecimento
– o método – jurídico; e a justiça). Ou seja, o futuro da filosofia do Direito
pareceria estar assegurado de alguma maneira. Só que não.
Atienza é enfático em afirmar que existe um tipo de filosofia do Direito
que, na sua opinião, tem sentido cultivar: para nenhuma surpresa, a de inspira-
ção pós-positivista (atenção: não confundir com o neoconstitucionalista), que
assuma a tese fundamental – encontrada em autores como Dworkin, Alexy,

504
Uma apologia do Direito e outros ensaios

Nino ou MacCormick – de que o Direito não é simplesmente um sistema de


normas, mas sim, além disso, e acima de tudo, uma atividade, uma prática
social com que se trata de alcançar certos fins e valores.
Como sabido, essa concepção do Direito é uma das marcas do pensamen-
to de Manuel Atienza e costuma receber críticas de diversas ordens. Em par-
te, algumas delas talvez se devam ao caráter ainda incompleto da teoria e o
próprio Atienza tem o cuidado de registrar esse aspecto: “É uma ideia que fui
desenvolvendo extensivamente em trabalhos recentes e a única coisa que me in-
teressa sublinhar aqui é que não se trata de uma concepção do Direito que possa
ser considerada, nem de longe, terminada” (p. 170).
Com elegância e brevidade, o autor acrescenta que o futuro da filosofia do
Direito “dependerá fundamentalmente da capacidade demonstrada pelos jusfi-
lósofos das novas gerações para construir – em grande medida, para continuar
com – uma disciplina acadêmica que consiga se inserir efetivamente na cultura
jurídica e sem que essa eficiência signifique renunciar sua – indispensável – fun-
ção crítica” (p. 170).
Atienza entende que os programas de filosofia do Direito das faculdades
devem ser configurados para juristas e não para aqueles interessados no de-
senvolvimento técnico da matéria: os próprios filósofos do Direito (valendo-se
aqui da famosa distinção de Bobbio entre a filosofia do Direito dos filósofos
versus filosofia do Direito dos juristas). Sua vocação docente não fica oculta e
em nenhum momento o autor perde seu foco nos alunos.
Dedica-se, então, a discorrer sobre o conteúdo que deveria ter um progra-
ma de filosofia do Direito, com os temas que, em sua opinião, seriam indispen-
sáveis (ou altamente positivos) para a formação de um estudante de Direito,
para a elaboração da dogmática jurídica e para o desempenho de qualquer
profissão jurídica.
O leitor deverá recorrer ao livro para saber quais são, aqui adianta-se ape-
nas um deles: o processo legislativo (da produção normativa em geral), um dos
temas mais caros a esta Defensor Legis.
Em Juristas y zorizos, Atienza retoma a famosa diferença demarcada por
Isaiah Berlin entre o intelectual (escritor, pensador ou ser humano em geral)
do tipo “raposa” e o do tipo “porco-espinho” (e que também já tinha sido ex-
plorada por Dworkin em Justice for hedgehogs).
O próprio título do ensaio já adianta o argumento: zorro é raposa em es-
panhol, e erizo, porco-espinho, de modo que a contração das duas palavras em

505
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

zorizo equivaleria a metade raposa e metade porco-espinho (em uma combi-


nação cuja tradução para o português “raporco” é mais problemática e não tem
o mesmo charme do espanhol).
Basicamente, Atienza defende que as profissões jurídicas requerem as
habilidades tanto das raposas (“astúcia para encontrar uma solução adequada
para cada problema, cada situação”), quanto dos porcos-espinhos (“ser capaz
de articular essa solução com razões que tornem – como acontece com os espi-
nhos do porco-espinho – invulnerável”).
Com isso, Atienza quer dizer que o Direito “requer uma combinação de
casuísmo e espírito sistemático; capacidade de ver a mesma questão, o mesmo
problema, de ângulos e perspectivas muito diferentes, mas sem nunca perder de
vista as ideias gerais, a unidade, do Direito; encontrar, como eu disse, soluções
adequadas para problemas práticos, mas sabendo bem que essas soluções têm
que se enquadrar em um corpo teórico coerente.” (p. 63).
Para ele, o método jurídico tem um caráter dialético, consistindo em par-
tir do exame adequado da realidade (do problema que se pretende resolver),
para então saltar a alguma teoria que se tenha sobre o Direito e depois regres-
sar à realidade, ao problema.
Esse tipo de preocupação metodológica – por mais que venha com um
grau de abstração suficientemente elevado para que ninguém (ou quase nin-
guém) discorde – também é uma das marcas do pensamento de Manuel Atien-
za.
Outra preocupação é com os aspectos práticos e contextuais, que também
está presente no ensaio Siete tesis sobre el activismo judicial, no qual, após tra-
zer sua própria definição do que é ativismo (diferenciando do desejável perfil
de um “juiz ativo”), Atienza afirma que a qualificação de uma decisão como
sendo “ativista” pressupõe a consideração das circunstâncias teóricas e o meio
social em que está inserida a atividade judicial.
No exemplo que dá, uma decisão “aceitável” em um país como a Colôm-
bia não necessariamente o seria na Alemanha, assim como se a decisão foi
proferida por um juiz ordinário ou se membro da cúpula do Poder Judiciário
também é importante.
Na opinião de Atienza, no entanto, considerando o contexto espanhol,
não é o ativismo a pior patologia jurídica, mas sim o formalismo, também
por ele definido no ensaio, entre outras características (que para alguns se-
riam só uma caricatura), como “a concepção que vê o Direito como única ou

506
Uma apologia do Direito e outros ensaios

preferencialmente um conjunto de regras e que rejeita a possibilidade de acudir


às razões subjacentes para interpretação das normas” (p. 94).
Para Atienza, o formalismo constitui uma deformação (um defeito) do
Direito, pois ignora os fins e valores que dão sentido à prática jurídica (ao para
que se interpreta).
Diz Atienza: “Na minha opinião, num país como a Espanha (mas me parece
que esse juízo pode ser estendido a todos – ou quase todos – os países do mundo
latino), o principal defeito – quase congênito – de nossa cultura judicial (e, em
geral, jurídica) continua sendo o formalismo. Do que o Judiciário padece (em
geral) não é, creio eu, de uma tendência a prescindir da letra da lei e recorrer aos
princípios da filosofia moral e política quando se trata de resolver os casos que
lhe são apresentados, mas de entender o Direito de uma forma excessivamente
estreita, literal e formalista.” (p. 96).
O trecho é provocador, certamente suscita discórdia no Brasil e pode pa-
recer chocante, mas não é nenhuma novidade em suas ideias. Na verdade, a
opção de afastar-se do normativismo positivista2 (direito como sistema de
normas) é uma decisão consciente do autor e marca a sua visão do Direito há
muito.
Para Atienza, a realidade jurídica não é um resultado cristalizado por uma
elaboração interpretativa ou conceitual, mas um fenômeno social em perpétuo
movimento. Daí sua insistência em compreender o Direito como uma prática
social.
Para ele, o positivista “puro” incorre no erro de conceber o Direito como
uma foto ou uma tela em pause como se esse momento representasse todo o
filme ou fosse uma realidade autônoma. Para fugir desse equívoco, Atienza
prefere retratar o Direito como uma realidade em formação, analisável em ter-
mos de fases ou etapas de um processo.
Como a análise das partes é insuficiente, é necessário encadeá-las na ideia
do todo em movimento (o filme em sua totalidade). Por isso, em sua ontologia
jurídica, isto é, em sua maneira de entender o Direito, este é melhor retratado
como uma empresa orientada a alcançar finalidades e propósitos.
A parte importante dessa mensagem de Manuel Atienza – e que tam-
bém aparece, de alguma maneira, nos ensaios ‘Los jueces crean Derecho’, los

2. https://www.scielo.org.mx/pdf/is/n27/n27a1.pdf

507
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

principios jurídicos y la ponderación e Diez ideas sobre los derechos humanos


– é a de que todos (inclusive os acadêmicos) estão irremediavelmente imersos
nessa prática social do Direito, quer queiram ou não, e, portanto, não há como
descrever o Direito sem valorações. Não é possível olhar o Direito a distância,
sem princípios e valores.
A pretendida “pureza” jurídica do observador externo é impraticável, pois
é impossível estar “de fora”: todos estão participando do jogo do Direito. Ex-
plique-se aqui em uma metáfora bastante ilustrativa, com a qual certamente
Atienza concordaria: se o Direito fosse um jogo de futebol, até os comenta-
ristas (ou os torcedores assistindo a partida desde a arquibancada) estariam
jogando.
Com isso, Atienza rejeita as pressuposições epistêmicas de que o Direito
não comportaria discussões valorativas, adotando uma posição clara na inaca-
bável discussão da teoria do direito quanto à separação entre Direito e moral.
Quem já teve oportunidade de conviver com ele mais de perto sabe que
o professor Atienza costuma repetir que é como se os estudiosos com preten-
sões meramente conceituais, analíticas ou descritivas tivessem feito um “voto
de castidade”, porque já “a partir daqui não entram” (nas discussões morais),
sempre usando de um tom sutilmente sem vergonha e gerando risadas em
todos os presentes.
No ensaio Por qué no conocí antes a Vaz Ferreira, tem-se mais um exemplo
das matrioshkas que compõem a teoria de Manuel Atienza: a teoria da lógica
informal ou a teoria dos paralogismos (falácias não intencionais) desse jurista
uruguaio, cujo domínio é uma ferramenta poderosa para resolver problemas
da (que ele chama) parte especial da argumentação jurídica.
Mais outros dois ensaios do livro também têm a forma de homenagem a
autores: “Peripecios”. Sobre la filosofía del Derecho de Rafael Sánchez Ferlosio
e Dos juristas, no qual presta homenagem a Piero Calamandrei e a Perfecto
Andrés Ibáñez, magistrado do Tribunal Supremo espanhol.
Mas, diferentemente do que poderia parecer, os homenageados não são
tratados de forma meramente laudatória ou monotemática. Atienza não se
furta de apresentar suas discrepâncias e fazer conexões com outros autores,
dando mostras e mais mostras de que é sumamente culto e tem profundo do-
mínio da literatura jurídica (acumulada em mais de 40 anos de magistério),
tudo cuidadosamente referenciado.

508
Uma apologia do Direito e outros ensaios

O último ensaio do livro, El Derecho, el Quijote y la compasión, é uma joia


à parte, embora talvez exija do leitor um mínimo conhecimento do enredo
da obra de Cervantes para sua melhor compreensão. Atienza apresenta o pa-
norama dos estudos em Direito e Literatura e usa as lentes desse campo para
examinar as conexões da obra cervantina com o Direito, com destaque para
uma delas: a lição moral extraível da leitura da obra quanto à necessidade da
compaixão.
Retoma, então, a definição de Aristóteles de compaixão e discorre sobre as
suas modalidades, para logo revisitar as passagens em que essa virtude esteve
presente, inclusive com o embasamento dos especialistas na interpretação de
Dom Quixote.
Como a coluna já se alongou muito hoje, e é preciso deixar que o leitor
também descubra por si só as matrioshkas do pensamento de Manuel Atien-
za – sendo certo que o cultivo das virtudes como a compaixão e de interesses
literários extrajurídicos são algumas delas –, fica aqui uma veemente recomen-
dação de leitura.
Seja porque Manuel Atienza é um escritor extraordinário, cujas elegância,
clareza e brevidade tornam a experiência gratificante; seja porque seu mais
novo Una apología del derecho y otros ensayos é um livro provocador e repleto
de reflexões instigantes, que merece um exame minucioso por todos os inte-
ressados em teoria do direito, que queiram enxergar o Direito em melhores lu-
zes e se preparar para desempenhar com excelência seus papeis como juristas.

509
‘Sobre a Dignidade Humana’,
de Manuel Atienza
Dignidade, igualdade e autonomia como unidade
com sentido na concepção pós-positivista do Direito

Se esta colunista tem algumas poucas ideias organizadas, isso se deve em


grande medida às lições aprendidas na Escola de Alicante e com seu maestro
maior, o professor Manuel Atienza, um dos mais importantes filósofos do Di-
reito espanhóis vivos (se não o mais), e que acaba de se tornar professor emé-
rito da Universidade de Alicante.
Na resenha passada que se fez ao então livro mais recente dele (e que pode
ser conferida aqui)1, explicou-se que uma das principais características do
pensamento do autor espanhol é a concepção por ele chamada de pós-positi-
vista do Direito (que ele prefere grafar com D maiúsculo).
Mesmo em se tratando de uma construção ainda inacabada, entre seus
elementos está a crítica ao normativismo positivista – que é uma concepção,
para usar suas próprias palavras, “inadequada”, além de “demasiado pobre e
demasiado pouco ambiciosa” para servir aos juristas. Para o professor Atienza,
o Direito não pode ser considerado unicamente um conjunto de normas. Na

1. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/uma-apologia-do-direi-
to-e-outros-ensaios-06012021?amp=1

511
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

sua opinião, o Direito é fundamentalmente uma atividade, uma prática social


dirigida ao logro de certos fins e valores.
Entre as suas ideias, está a de que a teoria e a prática do Direito devem jo-
gar um papel importante na transformação social. Daí vem outro mantra fre-
quente em seus escritos: a crítica à tese da separação entre o Direito e a moral,
característica da corrente positivista tão combatida por ele. Esse assunto per-
meou os seus livros anteriores “Filosofía del Derecho y transformación social”,
“Comentarios e incitaciones” e “Una apología del Derecho y otros ensaios”. Na
sua visão, não se deve confundir o Direito com a moral, mas sim considerar
que existem “continuidades” entre um e outro.
É também esse o pano de fundo em que se situa seu livro recém-publica-
do “Sobre la Dignidad Humana”.2 Como o próprio título já indica, a obra se
propõe a analisar o conceito de dignidade humana, por ele considerado um
dos mais básicos, se não o mais básico de todos, do Direito. Ao longo dos sete
capítulos do livro, o autor discorre sobre as distintas maneiras de entender a
dignidade humana, com base em diversos autores, para logo depois apresentar
sua própria noção de como esse conceito deve ser entendido.
Infelizmente, no espaço de que se dispõe para esta pequena recensão, não
será possível dar conta da riqueza de ideias do trabalho e é possível que se
incorram em simplificações ou algum excesso de interpretação dos trechos
ressaltados a seguir. No entanto, nada que o conhecimento da obra do autor
não seja capaz de corrigir.
De modo resumido, e já com alerta de spoiler, para Manuel Atienza, em
seu novo livro, a dignidade humana deve ser entendida como um “conceito-
-ponte” (ou meramente instrumental, de ligação, de que fala Alf Ross em “Tû-
-tû” para referir-se a determinadas entidades que possuem certas propriedades
e, portanto, devem ser tratadas de uma forma determinada) e como um “va-
lor”, que não se contrapõe à autonomia, nem à igualdade. É esse o argumento
central do capítulo primeiro, “Sobre el concepto de dignidad humana”.
Aí assenta que o conceito tem forte carga moral, apresentando-o em um
sentido “negativo” (na linha de Javier Muguerza), isto é, como um limite para o
que seria moralmente admissível, e que serve de fundamento último de todos
os direitos. Trata-se da ideia de dignidade encontrada no imperativo categórico

2. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/uma-apologia-do-direi-
to-e-outros-ensaios-06012021?amp=1

512
‘Sobre a Dignidade Humana’, de Manuel Atienza

de Kant, em suas três formulações: o imperativo da universalidade, que ordena


a atuar de modo que a ação possa ser convertida em lei universal; o imperativo
dos fins, que impõe a agir de modo que se trate a humanidade e a si mesmo
sempre como fim e nunca como meio; e o imperativo da autonomia, que assi-
nala que a vontade só está submetida às leis de que ela mesma pode ser autora.
Em vários momentos do livro, o autor vai repetir que essa é a ideia acer-
tada da dignidade — qual seja, a da segunda formulação do imperativo cate-
górico kantiano (o dever de tratar aos demais e a nós mesmos como fins em si
mesmos e não meramente como instrumentos) — quase como querendo que
ao leitor não escape esse ponto de nenhuma maneira. Além disso, quem co-
nhece o professor Atienza sabe que, na sua visão, repetir-se seria a chave para
não se contradizer.
Ainda nesse primeiro capítulo, Atienza insiste que a dignidade não pode
ser analisada só em termos descritivos, mas também em termos normativos,
isto é, para justificar os direitos. Nessa noção normativa, a dignidade pode-
ria assumir um caráter gradual (cita como exemplo os direitos dos animais,
tema que retoma no capítulo sétimo) e teria duas dimensões: a primeira, como
fundamento último dos direitos (limite moral, razão absoluta); e a segunda,
traduzida em direitos fundamentais concretos (por exemplo: os direitos da
personalidade e as garantias processuais).
A partir do capítulo segundo, “Derecho sobre el proprio cuerpo, persona
y dignidade humana”, Manuel Atienza articula tal conceito e a forma como foi
aplicado em diversos casos polêmicos envolvendo temas de bioética (os temas
de deontologia médica interessam de forma especial ao autor, que foi membro
da Comisión Nacional de Reproducción Humana Asistida na Espanha).
Entre os casos, estão: os wannabee, que desejam ser mutilados para “sen-
tirem-se completos” (I wanna be); a doação de órgãos humanos; os “bebês-
-medicamentos”, isto é, a utilização de técnicas de reprodução assistida para
selecionar um embrião geneticamente compatível com seu irmão já nascido e
doente, para salvar sua vida (o “irmão-salvador”); e a maternidade sub-rogada
ou por substituição (mais conhecida como “barriga de aluguel”).
O capítulo terceiro, “Sobre la dignidad em la Constitución española de
1978”, analisa, de modo especial, o artigo 10.1 da Constituição espanhola, pelo
qual: “A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre
desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são
fundamentos da ordem política e da paz social”.

513
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Aqui, o autor cuida de retomar sua própria classificação das normas ju-
rídicas (elaborada em coautoria com Juan Ruiz Manero em “Las piezas del
Derecho”, de 1996, e em “Ilícitos atípicos”, de 2006) para situar onde se encaixa
o referido enunciado normativo, já que nem estabelece uma sanção, nem seria
enquadrável no que Hans Kelsen entende como norma jurídica genuína (coa-
tiva). Essa é uma das partes mais interessantes do livro, em que fica ressaltada
sua leitura moral do Direito, e como esse elemento (a moral) é um componen-
te essencial de qualquer sistema jurídico.
Nesse sentido, afirma categoricamente: “As normas (todas as normas)
pressupõem juízos de valor, ou seja, sempre haverá algum objetivo, algum valor,
que se trata de satisfazer com elas (por isso se estabelecem certos deveres); e os
juízos de valor, quando levados a sério, dão lugar a pautas de conduta: ou seja,
se X é valioso, então deve ser (ao menos em princípio) o motivo para estabelecê-lo
ou para que dele nos aproximemos” (p. 71).
Por isso, explica Manuel Atienza, são os valores que fundamentam as nor-
mas, e não o contrário, de modo que o elemento valorativo tem prioridade
sobre o diretivo, diferentemente do sustentado por Kelsen.
A inversão dessa ordem poderia parecer um pequeno detalhe, mas, bem
entendida, é o que justifica processos importantes de interpretação (como a
derrotabilidade, em que se afasta a aplicação da formulação textual de uma re-
gra com vistas a respeitar sua razão subjacente) e da própria criação do Direito,
isto é, elaboração normativa (não à toa em sua teoria da legislação o autor
estabelece um nível de racionalidade axiológica, preocupado, precisamente,
com os limites éticos a serem atendidos; não só os valores constitucionais, mas
também os de ordem moral, que justificam a aprovação da medida legislativa).
Sua forma de entender a dignidade (como razão absoluta, valor último
dos ordenamentos jurídicos) tem consequências importantes, por exemplo, a
não sujeição dela à ponderação, embora isso não signifique que não sejam
aceitáveis limites à liberdade ou à igualdade, conceitos “conjugados” à digni-
dade. Além disso, essa compreensão da dignidade seria o “indício” da insufi-
ciência do positivismo para dar conta dos Direitos no Estado Constitucional.
Isso porque “identificar uma norma como jurídica ou interpretá-la neces-
sariamente envolve argumentações que, em parte, têm caráter moral” (p. 81).
Aqui, o autor repete que isso não significa uma perspectiva jusnaturalista (por
mais que os seus críticos discordem), mas simplesmente uma tentativa de ar-
ticular a dimensão autoritativa do Direito (como conjunto de normas válidas)

514
‘Sobre a Dignidade Humana’, de Manuel Atienza

com a dimensão de caráter axiológico (o Direito enquanto prática social diri-


gida à realização de certos fins e valores, entre eles a dignidade).
No seu estilo muito peculiar, Manuel Atienza vai explicando as ideias de
outros autores, intercalando-as com suas próprias considerações. Diversos
textos seus estão dedicados a examinar até que ponto as reflexões alheias são
ou não coincidentes com a sua própria. Assim, passa pela visão da dignida-
de humana segundo a Igreja Católica, Jesús Mosterín, Steven Pinker, Ernes-
to Garzón Valdés, Luigi Ferrajoli, Robert Alexy, Ernst Bloch etc. No capítulo
quarto, “La vía negativa a la dignidad. Un comentario”, dialoga em específico
com as ideias de Rodolfo Vázquez.
No capítulo quinto, “El fundamento de los derechos humanos: ¿Dignidad
o autonomía?”, retoma o conceito de pluralismo axiológico de Isaiah Berlin e
os desenvolvimentos de Ronald Dworkin, notadamente sua teoria da unidade
de valor, pela qual o Direito é um ramo da moralidade política, que, por seu
turno, é um ramo da moralidade pessoal geral, que, por sua vez, é um ramo
ainda mais geral da teoria do que é viver bem.
Faz essa reconstrução para, logo, cuidar de conciliar ou compatibilizar
tudo isso em um processo de síntese (no sentido dialético-hegeliano), chegan-
do a outra parte que compõe o cerne de suas ideias: o objetivismo moral, isto
é, a ideia de que nem todos os valores valem o mesmo (em oposição ao relati-
vismo moral). Segundo essa perspectiva de Atienza, existiriam critérios obje-
tivos (independentemente de quais sejam os fins últimos de uma determinada
cultura ou indivíduo) aos quais caberia recorrer para resolver um conflito de
valores.
Atienza defende um objetivismo moral “mínimo” que não implica um
realismo moral, ou seja, não postula a existência de “fatos morais” ou entida-
des semelhantes a objetos ou a propriedades do mundo físico. A propósito, um
bom debate com ele sobre essa questão específica pode ser encontrado no nº
27 (2020) da revista Teoría & Derecho.3
No capítulo sexto, “La dignidad según Jeremy Waldron”, Manuel Atienza
não se intimida em afirmar a “irrelevância teórica” das considerações desse
autor neozelandês sobre a dignidade, apresentada por ele (Waldron) como
um conceito-status (e não como um conceito-valor) e não completamente

3. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/uma-apologia-do-direi-
to-e-outros-ensaios-06012021?amp=1

515
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

secularizado, isto é, com fundamentos religiosos (a ideia de dignidade dos ho-


mens enquanto seres criados à imagem de Deus).
Na opinião de Atienza, a visão oferecida por Waldron lembra a de um
“conto de fadas”, está baseada em uma filosofia “muito idealizada” e evidencia
que a filosofia do Direito nos últimos tempos vem sendo construída bastante
de costas às ciências sociais ou à realidade histórica e social atuais.
A despeito do “escasso interesse teórico” da posição de Waldron sobre a
dignidade tal como afirmado pelo autor espanhol, Atienza cuida de apresentar
uma explicação para suas ideias (as de Waldron) e de propor, em seu lugar,
uma concepção mais “crítica”, em termos materialistas, conectadas com deter-
minados momentos de desenvolvimento histórico.
É que, segundo Atienza, Waldron tem posições influenciadas pelo cristia-
nismo, pelo positivismo normativo e inclusivo (ou seja, disposto a aceitar uma
leitura moral dos direitos (da Constituição), mas sempre e quando a moral se
entenda exclusivamente como moral social, não como moral crítica ou justi-
ficada), e toma por base uma concepção procedimental da democracia, com
decisões tomadas preferencialmente em assembleias, parlamentos, legislativos
que funcionem adequadamente, entendendo que tribunais constitucionais po-
dem infligir sérios danos à legitimidade do sistema político.
Por último, o capítulo sétimo, “Las dimensiones de la dignidad humana”,
retoma as principais considerações dos anteriores para afirmar que o núcleo
normativo da dignidade humana pode ser encontrado no “direito e na obriga-
ção que tem cada indivíduo, cada agente moral, de desenvolver-se a si mesmo
como pessoa (um desenvolvimento que admite uma pluralidade de formas, de
maneiras de viver, embora nem toda forma de vida seja aceitável) e, ao mesmo
tempo, na obrigação, em relação aos demais, com cada um dos indivíduos huma-
nos, de contribuir ao seu livre (e igual) desenvolvimento” (p. 127).
O próprio Atienza reconhece que essa é uma concepção ampla e suma-
mente exigente em relação à prática jurídica, política e moral. Nas suas pala-
vras, “ao que obriga a dignidade não é só a não discriminar as pessoas (a não tra-
tar a um indivíduo de maneira distinta que a outro) por razões que são alheias à
sua vontade (lugar de nascimento, raça, sexo, etc.), e a respeitar a liberdade dos
indivíduos, no sentido de garantir-lhes um âmbito — o maior possível — de não
interferência por parte dos demais” (p. 127).
Daí que, diferentemente do uso dado por diversos autores — que a to-
mam em um sentido meramente retórico, ideológico, confuso ou vazio de

516
‘Sobre a Dignidade Humana’, de Manuel Atienza

significado —, a dignidade humana é uma ideia “revolucionária”, porque


aponta para uma transformação radical da realidade. Para Atienza, a dignida-
de humana nesses termos só pode ser realizada em uma sociedade organizada
segundo os princípios do socialismo e da democracia.
O livro termina com um fecho emblemático: “a função do Direito (e da
política) não pode ser a de dar plena satisfação às exigências da dignidade hu-
mana e da moral, mas, sim, mais modestamente, a de fazer possível — criar as
condições para — uma existência digna das pessoas e, em consequência, para a
vida moral” (p. 164).
Dado que o tema da dignidade humana já foi objeto de estudos de au-
tores brasileiros renomados, trata-se agora de aguardar para ver se as ideias
de Manuel Atienza vão ser corretamente assimiladas ou reverberar no Brasil,
que sem dúvidas ganharia se bebesse mais nas fontes espanholas do que na de
outros sistemas de países ainda mais diferentes, como são Estados Unidos e
Alemanha.

517
Posfácio
A Doutrina da Subestimação
e os Precedentes Predatórios

1. UMA DOUTRINA SUBESTIMADORA: DA COMPARAÇÃO INDEVIDA


ENTRE PODERES DA REPÚBLICA

Uma análise atenta da literatura jurídica de Direito Constitucional Brasi-


leiro produzida nas últimas décadas demonstra uma tendência subestimadora
muito específica e preocupante, que se exterioriza por meio de comparações.
Vejamo-las.

1.1 Comparando capacidades: da subestimação capacitista

Nos anos 90 do último século, o à época Procurador da República Gilmar


Ferreira Mendes evocou a doutrina alemã de Klaus Jürgen Philippi segundo a
qual, no que concerne às prognoses e fatos legislativos, Tribunais Constitucio-
nais estariam mais bem posicionados que o próprio Parlamento para valorar
os pressupostos que embasaram a legislação e estimar as consequências ad-
vindas das escolhas estabelecidas em lei. Esta seria uma “[…] capacidade que
se mostra muito superior à do próprio Legislativo”1, explicou Gilmar Mendes

1. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: hermenêutica constitucional


e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial. Revista dos Tribunais,
Fascículo Cível, Volume 766, pp. 11-28, 1999, pp. 24-25.

519
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

ao descrever – e, na minha percepção, endossar, – o entendimento do juris-


ta da Alemanha. E concluiu o hoje Ministro, asseverando que, na opinião de
Philippi, “[…] a Corte Constitucional utiliza-se de métodos de análise que se
revelam superiores àqueles eventualmente utilizados pelo Parlamento, permi-
tindo que as decisões judiciais sejam racionalmente mais fundamentadas que
as do legislador”2.
Consoante essa estreita compreensão acadêmica, juízes de Cortes Cons-
titucionais conseguiriam enxergar muito além daquilo que os legisladores são
capazes de vislumbrar. Ainda com base neste ponto de vista doutrinário, ma-
gistrados justificam com mais racionalidade as escolhas efetuadas, vale dizer,
a deliberação parlamentar estaria aquém da fundamentação judicial. Simples-
mente, por alguma razão desconhecida, um pequeno número de julgadores
perceberia aquilo que veio a ser ignorado por centenas de congressistas e o
correlato corpo técnico de servidores do Parlamento.
Não é preciso muito senso crítico para identificar que, substancialmente,
essa primeira comparação estabelecida entre Parlamento e Corte Constitu-
cional traz consigo uma subestimação capacitista do Poder Legislativo. Nesta
compreensão, os pontos cegos dos congressistas podem ser vistos pelos juízes,
mas a recíproca nem sempre será assimilada.

1.2. Comparando virtudes: da subestimação ética

Uma segunda comparação entre Tribunais Constitucionais e Parlamentos


veio a ser feita mais de quinze anos depois, no século XXI. Nela, ao contrário
da anterior, o critério comparativo já não era a capacidade institucional. Di-
ferentemente, o contraste passou a ser efetuado quanto às virtudes do Poder
Legislativo e a sua legitimidade. Analisando-se os escritos de Luís Roberto
Barroso, com a clareza que lhe é peculiar, percebe-se uma opinião cética e até
pessimista em relação aos Parlamentos3:

2. idem.
3. BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da
maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, 2015.
p. 38-39. O discurso de desqualificação também é realizado em outro trabalho de sua
autoria: BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os
Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. 7ª edição. São Paulo: Saraiva,
2018. p. 472.

520
Posfácio

Há muitas décadas, em todo o mundo democrático, é recorrente o discurso


acerca da crise dos parlamentos [...] Disfuncionalidade, corrupção, captura por
interesses privados são temas globalmente associados à atividade política. [...]
A consequência inevitável é a dificuldade de o sistema representativo expressar,
efetivamente, a vontade majoritária da população. [...] No Brasil, [...] a atividade
política desprendeu-se da sociedade civil, que passou a vê-la com indiferença,
desconfiança ou desprezo. [...] em muitas situações, juízes e tribunais se torna-
ram mais representativos dos anseios e demandas sociais do que as instâncias
políticas tradicionais. É estranho, mas vivemos uma quadra em que a sociedade
se identifica mais com seus juízes do que com seus parlamentares.
Não é tarefa simples afirmar ou infirmar a hipótese pela qual “a sociedade
se identifica mais com seus juízes do que com seus parlamentares”. O Professor
Luís Roberto Barroso não falou apenas por si mesmo. Quando arrisca o palpite
sobre com quem o corpo social mais se identificaria, Barroso se expressa em
nome da sociedade. Mesmo sem um mandato, atua como mandatário social
para sustentar a ideia de que os verdadeiros mandatários careceriam de re-
presentatividade. Em suma, a chamada “crise dos parlamentos” traduz uma
subestimação ética.
Em grande medida, opiniões semelhantes a esta costumam se formar
como uma resposta – consciente ou não – a um profundo desencanto com
a Política. O problema é ignorar que não há solução viável sem a Política, ou
seja, não se pode prescindir dela. Abdicar desta via é o primeiro passo em di-
reção ao surgimento de outsiders, o que a história demonstrou ser perigoso. No
Brasil, essa advertência já foi feita por Fernando Henrique Cardoso4.

1.3. Comparando poderes: da subestimação de autoridade

No dia 17 de julho de 2022, o ex-Ministro do STF Carlos Ayres Britto co-


meteu aquilo que a Psicanálise poderia chamar de ato falho. O jurista afirmou

4. Nas palavras atemporais do ex-Presidente da República, “[d]izer que jamais se viu crise
política tão grande como a atual é lugar-comum. Mas é verdade pelo menos desde a
Constituição de 1988. […] Não há Terra Prometida a nos esperar no final do túnel da crise
atual. Nem será um Moisés providencial a nos guiar na travessia. Esta terá de ser feita
pela política […]. “Há quem acredite que a política é suja por natureza. Preferem desabo-
ná-la em nome da razão técnica ou, pior ainda, do niilismo ou da imposição dura e bruta
do poder” (CARDOSO, Fernando Henrique. Crise e Reinvenção da Política no Brasil. 1ª ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2018. pp. 19-22).

521
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

que “[…] na Constituição de 1988, não há um Supremo Congresso Nacional,


menos ainda um Supremo Presidente da República, porém um Supremo Tri-
bunal Federal”5. O predicado “Supremo”, que traduz supremacia perante os de-
mais juízes e tribunais, foi recontextualizado de maneira inusitada. Nesse novo
contexto, o seu emprego sugeriu uma supremacia diante dos demais Poderes
da República. Somente um deles seria Supremo, sustentou o Professor Ayres
Britto, e arrematou: “fora dessa ordem que a própria Nação ditou, o que se tem
é constituicídio”.
Mais uma vez, a comparação estabelecida enaltece um dos Poderes em
detrimento dos demais – inclusive, para o que nos interessa neste posfácio, o
Poder Legislativo. Afinal, “não há um Supremo Congresso Nacional”. O atri-
buto da supremacia seria da mais Alta Corte. Este magistério seria um tipo
ideal do modelo que veio a ser conhecido como da supremacia judicial, ainda
majoritário no Brasil.
Ao longos dos últimos anos, o Ministro Dias Toffoli tem sustentado em
eventos acadêmicos e até mesmo em decisões judiciais que ao STF caberia um
“poder moderador”. Nas suas palavras, “[…] nós já temos um semipresidencia-
lismo com um controle de poder moderador, que hoje é exercido pelo Supre-
mo Tribunal Federal”6. Ponto de vista semelhante foi expressamente adotado
em voto proferido na ADI 5526, que envolvia a imunidade de parlamentares,
ou seja, um assunto sensível à própria relação estabelecida entre os Poderes
da República. Naquela ocasião, Toffoli consignou: “[n]o exercício do seu pa-
pel moderador, incumbe ao Supremo Tribunal Federal distensionar as fricções
que possam ocorrer entre os demais Poderes constituídos”. No caso julgado
pelo Tribunal, uma semente perigosa veio a ser plantada. Em um voto docu-
mentado e publicizado, um Ministro do STF defendeu que este Tribunal teria
a competência para moderar os demais poderes – nisso incluído o Legislativo.
É interessante notar que, de uns tempos para cá, muito se tem falado em
uma abertura da interpretação constitucional. Tornou-se lugar comum fazer
uso da simpática ideia de “sociedade aberta dos intérpretes” apresentada por

5. O teor da declaração foi dado ao conhecimento público no Twitter.


6. A declaração foi proferida durante uma palestra proferida no 9º Fórum Jurídico de Lis-
boa (Portugal), no dia 16/11/2021. Para piorar esse cenário, as Forças Armadas agora se
aventuram na reivindicação de moderar os Poderes da República, conforme se verifica
em nota expedida em 11/11/2022 e subscrita pelos Comandantes da Marinha, Exército e
Aeronáutica.

522
Posfácio

Peter Häberle. Segundo ele, em obra vertida para o vernáculo por Gilmar
Mendes, “[t]odo aquele que vive no contexto regulado por uma norma [...] é,
indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma”7. Se assim o
é, a interpretação do Congresso Nacional sobre normas constitucionais que re-
gulam a sua atividade legiferante e interna corporis assumiria uma importância
singular. Contudo, uma análise mais atenta sugere que tomar de empréstimo o
construto de Häberle pode ser apenas uma estratégia retórica ou de demago-
gia jurídica. Por exemplo, o Ministro Celso de Mello publicou trabalhos aca-
dêmicos mais recentes onde continuou a enfatizar “o monopólio da última
palavra”, pelo STF, em matéria de interpretação constitucional8, marco teórico
que reduz o prestígio dos demais atores constitucionais. Naturalmente, Celso
de Mello também adotava essa concepção nos votos proferidos no Supremo
Tribunal (AI 733.387/DF, DJe 01/02/2013).
A esta altura das digressões, as coisas já estão bastante claras. Apenas para
que fiquem ainda mais nítidas, é possível se servir da chamada Filosofia da
Linguagem Comum – tão influente na Escola de Oxford e muito utilizada por
juristas como H.L.A Hart. A análise da linguagem pode trazer à tona verdades
constrangedoras.
Suponhamos que um noivo proponha à sua pretensa esposa um relacio-
namento “harmônico”, assegurando que ela, tanto quanto ele, será “indepen-
dente”. Porém, havendo conflitos, a última palavra será dada por ele (monopó-
lio da última palavra). Existindo desacordos familiares, a ele caberá moderar
o agir da sua própria companheira, para prevenir maiores desavenças oriun-
das de um comportamento imoderado (papel moderador). Mais do que isso,
quando necessário estimar as consequências de decisões importantes do casal,
a ele caberia reavaliar aquilo que ela anteviu (revisão judicial da prognose le-
gislativa). Qualquer pessoa adulta e ocidental, em sã consciência, perceberia

7. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da


Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constitui-
ção. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 15.
8. MELLO FILHO, José Celso de. O papel constitucional do Supremo Tribunal Federal na
consoli­dação das liberdades fundamentais. In: TOFFOLI, José Antônio (org.). 30 Anos
da Constituição Brasileira: Democracia, Direitos Fundamentais e Instituições. Rio de
Janeiro: Forense, 2018, p. 480.

523
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

que há nesse modelo um desnivelamento profundo e inconciliável com a ideia


genuína de harmonia e independência9.

2. PRECEDENTES PREDATÓRIOS

Até aqui, nota-se um traço em comum nos escritos e opiniões acadêmicas


de Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Carlos Ayres Britto, Dias Toffoli e
Celso de Mello. Todos estabeleceram raciocínios comparativos e, nessas com-
parações, claro, o Poder Judiciário se sagrou vitorioso – porque, de alguma
maneira, mais capacitado, mais racional, mais virtuoso, mais representativo,
único dotado de supremacia, único dotado de autoridade para moderar os
demais Poderes da República e detentor do monopólio da última palavra.
É exatamente em contextos e ambiências dessa natureza, de “supremacia
judicial” – e desprestígio do Poder Legislativo, eu diria –, que nascem prece-
dentes predatórios às imunidades parlamentares, às prerrogativas dos congres-
sistas, à autonomia interna corporis do Parlamento e à própria separação dos
Poderes.
Todos esses aqui chamados precedentes predatórios foram devidamente
esquadrinhados por Roberta Simões Nascimento ao longo dos presentes Es-
tudos de Direito Constitucional Parlamentar, razão pela qual seria contrapro-
ducente revisitá-los e nem seria possível fazê-lo com a maturidade da autora.
Apenas para que se tenha uma visão linear do que aconteceu nos últimos anos,
passo a elencá-los cronologicamente.
Em 25/11/2015, o STF determinou a prisão do senador Delcídio do Ama-
ral com uma argumentação jurídico-constitucional pouco convincente. Nas
Ações Cautelares 4036 e 4039 Ref-MC, o Tribunal não explicitou a expres-
são “mandado de prisão preventiva”, mas a percepção da doutrina mais aten-
ta constatou esse aspecto e não hesitou em mencionar que, de fato, ocorrera
uma prisão preventiva10. Anos depois, fenômeno semelhante se repetiria com
a controversa inafiançabilidade dos crimes praticados por Deputado Daniel
Silveira.

9. A menos que algumas medidas e pressupostos, que não cabem ser aprofundados neste
posfácio, viessem a ser adotados.
10. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume Único. 8ª ed. Salvador:
Juspodivm, 2020, p. 981.

524
Posfácio

Na AC 4070, relatada pelo Eminente Ministro Teori Albino Zavascki e jul-


gada em 05/05/2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal afastou Eduardo
Cunha da Presidência da Câmara dos Deputados e do próprio cargo de parla-
mentar. Na ocasião, a Corte entendeu aplicável a medida cautelar processual
penal de suspensão do exercício da função pública quando presente o justo
receio da sua utilização para a prática de infrações penais (art. 319, VI, CPP).
Apesar de afastado do exercício do mandato, é importante dizer, a medida não
foi escrutinada pela Câmara dos Deputados.
Na ADPF 402 MC, o Ministro Marco Aurélio afastou monocraticamente
Renan Calheiros da Presidência do Senado Federal, mediante cautelar deferida
em 05/12/2016. Quando o texto constitucional disse “O Presidente ficará sus-
penso de suas funções”, se recebida a denúncia no Supremo Tribunal Federal,
leu-se que “O Presidente da República, do Senado Federal e da Câmara dos
Deputados ficarão suspensos de suas funções”, ou seja, estendeu-se a norma
do artigo 86, § 1º, para alcançar o Poder Legislativo11.
Na ADI 5526, julgada em 11/10/2017, o STF reafirmou o seu poder de
determinar medidas cautelares diversas da prisão em desfavor dos congressis-
tas, tanto em substituição da prisão em flagrante delito por crime inafiançável,
quanto de maneira autônoma. Acrescentou-se, de maneira cordial, que toda
medida cautelar processual penal tendente a impedir o exercício do mandato,
mesmo que indiretamente, seria submetida ao crivo da Casa respectiva. Em
outras palavras, juízes poderiam determinar que, ilustrativamente, parlamen-
tares se recolhessem ao domicílio no período noturno (art. 319, V, CPP), como
havia acontecido com Aécio Neves (AC 4327), mas tal seria escrutinado pela
Casa legislativa correlata.
A Procuradoria-Geral da República, neste momento da História Cons-
titucional, já não hesitava em vindicar ao STF a mais atroz medida cautelar
do Processo Penal: a prisão preventiva dos congressistas. A iniciativa ousada,
típica de um ativismo ministerial12, chamou a atenção de Gilmar Mendes. Este

11. O Plenário do STF, posteriormente, não ratificou a liminar na sua integralidade. Prevale-
ceu o correto entendimento pelo qual os substitutos eventuais da Presidência da Repú-
blica não poderão desempenhar essa função substitutiva diante do recebimento de uma
ação penal, mas não seria devido estender essa impossibilidade de modo a também
afastá-los das chefias das Casas legislativas (ADPF 402 MC-REF/DF, rel. Min. Marco Auré-
lio, j. em 7/12/2016).
12. O tema do ativismo ministerial, um tanto quanto incomum e ofuscado pelo ativismo ju-
dicial, foi abordado em palestra ministrada na Escola Superior do Ministério Público do

525
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

é um Ministro valoroso na composição da mais Alta Corte, porquanto concita


seus pares a reflexões importantes sobre a integridade do Estado de Direito e
da separação dos poderes. Segundo ele, “[…] a observação dos fatos permite
afirmar que, no Supremo Tribunal Federal e na Procuradoria-Geral da Re-
pública, está em curso um movimento branco para colocar à prova os limites
das imunidades parlamentares.” (ADI 5526). No que concerne à imunidade
formal, registrou: “o limite da imunidade formal vem sendo testado por medi-
das cautelares pessoais que suspendem ou afetam o exercício do mandato par-
lamentar.” (ADI 5526). Ao final, reconheceu de maneira autocrítica o estado
de coisas na construção pretoriana do Supremo: “Pode-se afirmar que, nesse
último par de anos, o Tribunal testou a imunidade parlamentar mais do que
em toda a sua história.” (ADI 5526).
Decisões desse tipo atingiram outras prerrogativas previstas na Constitui-
ção de 1988.
Conforme bem detalhado ao longo destes Estudos subscritos pela Pro-
fessora Roberta Simões Nascimento, na AP 470, conhecida como Mensalão,
o STF entendeu que a perda do mandato de parlamentares era um efeito au-
tomático da condenação definitiva (AP 470). Na prática, onde a Constituição
diz “será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado”, interpretou-se
“será decidida pelo STF”. O entendimento divorciado do texto chegou a ser
reafirmado para o Deputado Natan Donadon (AP 396 QO).
Pouco tempo depois, é digno reconhecer, o Plenário do STF corretamente
decidiu que a perda do cargo do Senador Ivo Cassol haveria de ser decidida
por quem de direito, isto é, a Casa Legislativa (AP 565). Este foi um intervalo
de lucidez interpretativa e de apego ao texto constitucional que deveria ter
permanecido, mas que não foi longevo. Bem ou mal, o precedente acabou be-
neficiando o Deputado Natan Donadon: a Câmara decidiu sobre a perda do
seu mandato em escrutínio secreto e o desfecho foi a manutenção no cargo.
Disso resultou a figura do cidadão brasileiro que pernoitava no presídio, mas
que legislava no horário comercial13.
Finalmente, após esses incidentes, o STF retrocede para mais uma vez as-
sumir um posicionamento que destoa do texto constitucional. Se a condena-
ção criminal impuser um regime inicial fechado superior a 120 dias, a Corte

Paraná, na data de 09/11/2020. Disponível em: https://youtu.be/k-VQ0RvW9FU


13. A convulsão social originou a EC nº 76/2013.

526
Posfácio

entendeu que a perda do cargo passa a ser uma decorrência automática da


condenação (AP 694/MT).
O que talvez possa ser considerado como o mais amargo dos precedentes
sobreveio com a AP 937 QO, quando o foro por prerrogativa de função dos
parlamentares foi praticamente amputado. A tese fixada, em termos práticos,
estabeleceu que o Juiz Natural constitucionalmente assegurado – o STF – só
se conservaria como garantia fundamental quando se tratasse de julgamento
de delitos contemporâneos ao mandato e desde que houvesse nexo funcional.
Por exemplo, crimes de violência doméstica cometidos por congressistas, até
então julgados pelo Supremo, agora seriam julgados por juízes de 1º grau de
jurisdição.
O que aconteceria se essa constelação de precedentes predatórios fosse con-
jugada?
Bem, a resposta é simples. Em apreço à coesão interna, a depender das
peculiaridades do caso concreto, juízes de primeiro grau de jurisdição julga-
riam congressistas em processos criminais, inclusive com poderes para afastá-
-los cautelarmente dos mandatos, determinar recolhimento noturno, expedir
mandados de busca e apreensão que devassam os gabinetes do recinto legis-
lativo e até mesmo decretar a perda automática do cargo de parlamentar. Em
cada comarca deste país continental, um único magistrado estaria investido de
poderes derrogatórios da vontade popular em um nível nunca antes testemu-
nhado.
Paulatinamente, em nome de “temperamentos”, cada imunidade sofreu
“flexibilizações”, “mitigações”, “relativizações”, em uma progressiva atividade
predatória que estava a arrancar todas as flores do jardim das prerrogativas.
Segundo os intérpretes, onde se lê “salvo em flagrante delito de crime inafian-
çável”, o mais correto seria ler “salvo em flagrante delito de crime inafiançável
ou condenação criminal definitiva” (STF, Plenário, AP 396 QO/RO, AP 396
ED-ED/RO). E assim por diante.
Ao longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal também debilitou as imu-
nidades materiais, por meio de distinções não comportadas pela linguagem
constitucional. De início, a Corte passou a entender que ofensas irrogadas
nos átrios do Congresso estariam absolutamente amparadas pela imunidade,
ao passo que aquelas proferidas fora do recinto legislativo exigiriam uma de-
monstração de nexo com a função parlamentar (INQ 390, 1710, 1958 e 2295).
Com o tempo, no entanto, até mesmo essa distinção não suportada pela lin-
guagem do texto veio a ser desconsiderada pelos Ministros. Distanciando-se

527
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

ainda mais da Constituição, o Tribunal entendeu de receber uma denúncia


lastreada em palavras proferidas no Plenário e ratificadas em entrevista conce-
dida no próprio gabinete parlamentar (INQ 3832 e PET 5243)14.

3. DA REAÇÃO POLÍTICA NO CONGRESSO NACIONAL: A ANÁLISE HIS-


TÓRICA DOS DISCURSOS PARLAMENTARES

À medida que os precedentes predatórios se consolidavam, congressistas


passaram a vocalizar uma reação política por meio dos chamados discursos
parlamentares. Sem a pretensão de endossar o teor discursivo desses pronun-
ciamentos, alguns deles substancialmente incisivos, é importante conhecê-los
pelo valor historiográfico de que se revestem. Examinemo-los15.
Em 2001, após uma decisão liminarmente concedida pelo Supremo Tri-
bunal Federal que interferiu em ato da Mesa da Câmara dos Deputados, o De-
putado Federal José Lourenço (PMDB - BA) foi à tribuna para expressar seu
descontentamento: “O STF que tome conta dos seus problemas. Dos problemas
internos desta Casa cuida V. Exa. Sr. Presidente, os Ministros do STF precisam
repensar suas posições, porque o Congresso não é filial do Supremo, muito menos
subalterno de suas decisões” 16.
Em 2005, a mesma razão levou o Deputado Edinho Bez (PMDB-SC) a
fazer uso da palavra: “É gravíssima a maneira como o STF vem interferindo
no Poder Legislativo. [...] Não é possível continuar assim. A crise política pode,
certamente, culminar numa profunda crise institucional. [...] A interferência
exacerbada do STF no Legislativo acaba [...] nos levando a crer que aquela má-
xima Corte está servindo de órgão revisor dos nossos atos aqui no Congresso.
[…] devemos propor emenda constitucional que altere a forma de indicação dos
Ministros do STF”17.
Em 2012, o Deputado Francisco Eurico da Silva (PSB-PE) sentiu-se avil-
tado pelo julgamento sobre a infidelidade partidária, exprimindo: “Da forma

14. FONTELES, Samuel Sales. Direitos Fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 151.
15. Os dados colacionados foram extraídos de FONTELES, Samuel Sales. Tribunais Consti-
tucionais como Cristais. Migalhas: Coluna Olhar Constitucional, 02/07/2020. Disponível
em: https://www.migalhas.com.br/coluna/olhar-constitucional/330082/tribunais-consti-
tucionais-como-cristais
16. Sessão 250.3.51.O, 28/11/2001.
17. Sessão 315.3.52.O, 29/11/2005.

528
Posfácio

que o STF julgou, demonstrou que o Parlamento é um quintal, um terreno baldio


da Praça dos Três Poderes, pois não permitiu que o Congresso decidisse a favor
ou contra a matéria. Enfim, isso está acontecendo com todos os temas polêmicos”
18
. O parlamentar se ressentia pela crescente judicialização da Política, fenô-
meno que teve início no começo do século XXI.
Em 2013, o mesmo dilema fez com que o Deputado Danilo Forte (PM-
DB-CE) se manifestasse nos átrios da Câmara: “Ano passado, expressei nesta
tribuna minha preocupação com a hipertrofia do Executivo, [...] Agora, [...] nos-
sas preocupações se voltam para o outro lado da Praça dos Três Poderes: o Poder
Judiciário, representado por sua máxima instância, que é o STF. [...] Esta é uma
preocupação que nos inquieta há algum tempo [...] Recorrentemente o STF vem
fustigando esta Casa [...] Em março fomos surpreendidos com mais um grave
açoite vindo da tirania suprema”.
Em 2016, o Senador Renan Calheiros recusou-se a cumprir a decisão do
STF que o afastava liminarmente da Presidência do Senado (ADPF 402), inau-
gurando um ato de desobediência institucional. O parlamentar deixou de re-
cepcionar o Oficial de Justiça do Tribunal, em um gesto que pode ser conside-
rado como um divisor de águas na escalada de tensão entre Poder Legislativo
e Poder Judiciário.
No ano de 2017, após descrever uma pretensa apostasia constitucional
no que concerne à decisão de afastamento do parlamentar Aécio Neves, o De-
putado Alberto Fraga (DEM-DF) concitou os parlamentares a uma reação:
“o Senado se acovardou. Vai permitir que o STF continue inventando normas
jurídicas [...] Aqueles que são encarregados de zelar pela Constituição brasileira
estão fazendo exatamente o contrário. O STF não existe para mudar a Consti-
tuição. O STF existe para ser o guardião da Constituição. [...] Esta Casa possui
muitos Parlamentares que têm conhecimento jurídico e sabem perfeitamente que
isso não é possível, não pode perdurar, mas não têm coragem de enfrentar outro
Poder, que a todo o instante se sobrepõe a nós e nos ataca [...]. Por isso, [...] ex-
presso a minha mágoa, porque esta Casa não se impõe”19.
Em 2018, o Deputado Bonifácio de Andrada (PSDB-MG) revelou que
alguns parlamentares pretendiam o impeachment de ministros do STF: “qual-
quer aluno no primeiro ano de faculdade de Direito - sabe muito bem [...]

18. Sessão 175.2.54.O, 25/6/2012.


19. Sessão 288.3.55.O, 04/10/2017.

529
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

estamos assistindo [...] a um espetáculo de ilegalidade, de inconstitucionalidade,


de desrespeito à Carta Magna por parte do STF. Mas esses episódios são antigos.
[...] Nós não podemos, Sr. Presidente, ficar nesse marasmo! [...] Deputado Flá-
vio Marcílio, que foi Presidente desta Casa. [...] saiu [...] indignado[...]. Foi ao
Supremo pessoalmente[...] e falou que a Câmara tomaria providências graves
contra o Supremo Tribunal, inclusive poderia, se quisesse, realizar aqui o proces-
so de impeachment, porque os Ministros do Supremo [...] estão sujeitos [...] ao
impeachment [...]”.
Abstraindo-se o acerto ou desacerto jurídico dessas manifestações, sobre-
tudo as mais hiperbólicas, o fato é que já faz alguns anos que um estado de
alerta se acendeu na percepção dos congressistas sobre a jurisprudência do Su-
premo Tribunal Federal. Aliás, bem analisadas as coisas, é possível dizer que,
historicamente, o constitucionalista e parlamentar João Mangabeira já fazia
discursos incendiários em relação ao Poder Judiciário20.
Mas brasileiros vivem em um estado de amnésia. Somos um povo sem
memória, que desconhece o seu passado e a sua própria história. Muitas de-
clarações recentes não passam de reformulações ou discretas variações do teor
desses discursos parlamentares, mas acabam escandalizando como se fossem
inéditas. O recém-eleito Senador Hamilton Mourão, por exemplo, anunciou
a pretensão de ampliar o número de cadeiras no Supremo Tribunal Federal,
causando espécie na comunidade jurídica pela sinalização de court packing.
O que ninguém percebeu é que, substancialmente, o que foi dito em muito se
assemelha com a proposta suscitada pelo Deputado Edinho Bez (PMDB-SC),
no ano de 2005, transcrita linhas acima.
Envelhecer é perceber que há muito pouco de novo sob o sol. Disso ex-
traímos uma lição: pode ser importante levar a sério aquilo que ouvimos, no
momento em que as palavras são proferidas e independentemente de quem as

20. Nesse sentido: discurso proferido na sessão de 03 de julho de 1947, publicado no DCD
de 04 de julho de 1947, página 3248, a saber: "O Poder Judiciário não emana do povo di-
retamente. O poder que emana do povo e é a alma de todas as decisões populares, que
joga com os destinos da pátria e da nacionalidade quando vota a guerra, é este. É este
o poder supremo, do ponto de vista político, em nosso regime. Se este poder supremo,
repito, não é delegado em nenhum país da terra ao Poder Judiciário, nem se lhe confere
a atribuição de fazer as leis que dizem respeito à segurança da sociedade e da família;
se nunca houve país no mundo que conferisse essas atribuições viceralmente, suprema-
mente políticas ao Poder Judiciário, é evidente que, dentro do sistema representativo, é
poder independente e harmônico, mas inferior, em seu alcance político. Ao Legislativo,
que somos nós.”.

530
Posfácio

profere. Ideias estranhas não surgem de maneira tão repentina. Outra opção
é aceitar que congressistas podem defender o que lhes pareça ser o aprimora-
mento das instituições, respeitadas as cláusulas pétreas. Nos Estados Unidos, a
defesa do court packing é vista de maneira natural. Autores progressistas publi-
cam livros sustentando que a esquerda norte-americana deve, sim, aumentar a
composição da Suprema Corte – hoje majoritariamente conservadora, após as
indicações de Donald Trump –, se e quando tiver oportunidade política para
fazê-lo. Na visão do Professor Stephen M. Feldman, não se trata de um golpe:
longe disto, esta seria uma chance que não deve ser desperdiçada21.
Seja como for, o fato é que os parlamentares fizeram uso da voz e da vez
para vocalizar a insatisfação em relação aos precedentes predatórios. Por outro
lado, no que concerne à doutrina subestimadora do Parlamento – fundada na
tríplice subestimação capacitista, subestimação ética e subestimação de autori-
dade –, acadêmicos brasileiros permaneceram em um sono letárgico.
É do que se ocupa o tópico a seguir.

4. A ASSIMILAÇÃO SERVIL DA DOUTRINA DA SUPREMACIA JUDICIAL


PELOS ACADÊMICOS BRASILEIROS: A CONCEPÇÃO JURISCÊNTRICA

Em meio a esse estado de coisas, caracterizado pelo desprestígio de legis-


ladores e pelo enaltecimento de juízes, a literatura jurídica permaneceu enfeiti-
çada pelos tribunais. Quase que à unanimidade, professores brasileiros incur-
sionavam em pesquisas sobre jurisdição constitucional, evitando o estudo de
temas como Legística.
As imagens que ornamentavam as capas dos manuais de Direito Cons-
titucional, tradicionalmente ostentando o Congresso Nacional22, aos poucos
foram sendo substituídas por ilustrações que remetiam a um outro Poder. De
repente, quase todos os livros do mercado estampavam o prédio do Supremo
Tribunal Federal. De maneira bem-humorada, podemos ilustrar que, como

21. FELDMAN, Sthephen M. Pack the Court! A Defense of Supreme Court Expansion. Phila-
delphia: Temple University Press, 2021, p. 5.
22. Um exemplo é o consagrado Curso de Direito Constitucional de André Ramos Tavares.

531
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

produto histórico da sua época, o podcast jurídico mais influente do Brasil se


chama Onze Supremos – não Oitenta e Um Senadores23.
Trabalhos acadêmicos analisam amplamente diálogos interjurisdicionais,
quando cortes promovem um intercâmbio de referências mútuas, mas, de um
modo geral, não contemplam o estudo dos diálogos interparlamentares. Os ar-
ranjos institucionais e o desenho de experiências parlamentares na República
da Coreia, Romênia e Hungria, a título ilustrativo, são dignos de pesquisas e
permanecem desconhecidos entre nós.
Parlamentos são vistos com desconfiança pela “razão técnica”, mesmo
quando desenvolvem um trabalho de excelência. Escrever um trabalho aca-
dêmico sobre Direito Constitucional Parlamentar, portanto, em um mercado
editorial tomado por concepções juriscêntricas, é algo que destoa do usual.
Como foi dito, ao contrário dos congressistas, a doutrina brasileira per-
maneceu adormecida por um sono letárgico. Agora, esse sono parece ter sido
interrompido pelos Estudos da Professora Roberta Simões Nascimento.

4.1 Do valor didático-científico do Direito Constitucional Parlamen-


tar: nunca foi tão importante publicar esta obra

Há alguns anos, o Departamento de Direito Público de uma conceitua-


da Universidade brasileira teve a iniciativa incomum de ofertar a disciplina
de Direito Parlamentar. Ao examinar a bibliografia básica e complementar do
Programa de Ensino, simplesmente não havia obras sobre o objeto de estudo
propriamente dito. O Programa de Pós-Graduação inventariou títulos genéri-
cos de Direito Constitucional e Interpretação Constitucional, com abordagens
que circundavam o – mas não incursionavam no – âmago da disciplina ofer-
tada. O conteúdo programático a ser ministrado, por sua vez, também não
descia às minúcias regimentais. O roteiro das aulas se comprometia a estudar
apenas as diretrizes constitucionais, ou seja, as linhas gerais de um curso con-
vencional sobre Poder Legislativo, à semelhança de um capítulo desgarrado de

23. O nome, registre-se, é uma provável crítica à banalização dos provimentos jurisdicionais
monocráticos de Ministros que atuam como ilhas incomunicáveis. David Sobreira, funda-
dor do podcast, não é entusiasta da doutrina da supremacia judicial – pelo contrário. De
toda sorte, a rubrica de batismo revela a predominância do interesse no Direito Constitu-
cional Brasileiro para estudar – e criticar – o Supremo Tribunal Federal, ofuscando muitas
vezes um objeto de estudo promissor como é o Poder Legislativo.

532
Posfácio

um Manual de Direito Constitucional. A intimidade estrutural e a fisiologia de


funcionamento das Casas não eram contempladas.
Aproximar-se do Direito Parlamentar dessa maneira pode ser tão acurado
quanto procurar um endereço com um GPS que fornece uma visão panorâmi-
ca da cidade, mas não indica os bairros e as ruas. A visão holística do sistema
jurídico tem a sua importância, mas familiarizar-se com os seus detalhes pode
ser imprescindível.
Em boa verdade, professores familiarizados com as normas regimentais
do Parlamento Brasileiro são raros, embora eles e elas existam. Pela mesma
razão, vive-se uma escassez de literatura sobre esse específico ramo do saber.
Há trabalhos bibliográficos, é de se reconhecer, mas não são numerosos e parte
significativa permanece desconhecida.
Pois bem.
Apesar do deserto epistemológico descrito linhas acima, floresceram estes
preciosos Estudos de Direito Constitucional Parlamentar. Trata-se do livro mais
atualizado sobre os acontecimentos juridicamente intrigantes que envolveram
o Poder Legislativo Brasileiro nos últimos dois anos. Daí porque tem ele uma
importância informativa e também documental: no presente, é crucial estar
informado sobre o seu teor; no futuro, será importante revisitar o que veio a
ser registrado sobre esse período. Há, pois, para muito além do valor jurídico,
um valor historiográfico.
Nunca foi tão importante publicar esta obra.

5. SOBRE QUEM É ROBERTA SIMÕES NASCIMENTO E A SUA IMPOR-


TÂNCIA PARA APRIMORAR O ESTADO DA ARTE: A PESSOA CERTA, NA
HORA CERTA

De maneira quase solitária, mas absolutamente bem-sucedida, a Professo-


ra Roberta Simões Nascimento tem desenvolvido um trabalho acadêmico sé-
rio para que a legislação brasileira seja vista “as a dignified mode of governance
and a respectable source of law – “como um modo digno de governança e uma
fonte respeitável do Direito”24.

24. WALDRON, Jeremy. The Dignity of Legislation. Cambridge: Cambridge University Press,
1999. p. 2.

533
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Suas pesquisas consistentes e a habilidade com a qual se exprime em tex-


tos escritos lhe rendeu um espaço privilegiado como colunista do JOTA, onde
tem publicado inúmeros estudos que hoje são acompanhados e referenciados
pelos tribunais do país. Não seria exagero dizer que Roberta Simões é o nome
mais lembrado, atualmente, quando se trata de dirimir dúvidas sobre o Direito
Constitucional aplicado ao Congresso Nacional. A propósito, eu mesmo já fui
consulente.
Sua expertise seleta, fruto da experiência empírica na Advocacia do Sena-
do Federal – enriquecida pelos estudos acadêmicos na Espanha e beneficiada
pela atividade docente na UnB –, permitiu que conquistasse uma merecida
posição de destaque. Aqui, cabe fazer um registro. Roberta foi discipulada,
orientada e supervisionada na Universidade de Alicante por Manuel Atienza,
talvez o jurista mais renomado mundialmente quando se trata de Teoria da
Argumentação Jurídica.
A verdade é que sempre é muito importante ouvir o que Roberta tem a
dizer.
A experiência prática permite enxergar coisas nem sempre tão evidentes
àqueles que se aventuram em opinar sobre assuntos legislativos e a Professora
da UnB se demonstra fluente no compartimento regimental, um nível de deta-
lhamento pouco frequentado por muitos constitucionalistas.
Roberta foi a pessoa certa, na hora certa.

6. DA DESCONSTRUÇÃO DA DOUTRINA SUBESTIMADORA E DO QUES-


TIONAMENTO DOS PRECEDENTES PREDATÓRIOS PELOS ESTUDOS DE
ROBERTA SIMÕES NASCIMENTO

Ao longo desta obra, Roberta Simões se levantou contra o status quo des-
crito neste posfácio, que insiste em sonegar ao Poder Legislativo a dignidade
que lhe é constitucionalmente inerente. Cada Estudo traz consigo uma provo-
cação sagaz que abala as estruturas já carcomidas desses pressupostos teóricos.
Em outras palavras, a doutrina subestimadora – capacitista, ética ou de autori-
dade – é desconstruída pela Professora da UnB.
Já no artigo “Cabe controle de constitucionalidade quanto à qualidade da
deliberação legislativa?”, Roberta se opõe ao controle de constitucionalidade
fundado no exame da prognose legislativa pelo STF. Com esse Estudo, a consti-
tucionalista de Pernambuco desafia exatamente os escritos de Gilmar Mendes

534
Posfácio

da subestimação capacitista, tais como anunciados nas primeiras linhas deste


posfácio.
Esse trabalho de desconstrução teórica se percebe inclusive nos detalhes.
É também nos obiter dicta deixados como pistas pela Professora que se acham
os grandes tesouros destes Estudos de Direito Constitucional Parlamentar. No
ensaio “Pode o STF determinar a criação da CPI da Pandemia?”, por exemplo,
ela se propôs a analisar o poder de agenda das Casas Legislativas e o direito das
minorias que estava a ser debatido no MS n.º 37.760. No curso da argumenta-
ção construída, despretensiosamente, a autora abriu parênteses para fornecer
ao leitor breves informações sobre um tema absolutamente negligenciado nas
obras brasileiras: a chamada Doutrina Temer, desenvolvida para estabelecer a
interpretação constitucional – frise-se, do próprio Parlamento – a ser conferida
ao artigo 62, § 6º, da Constituição. Essa simples abordagem já faz estremecer
a doutrina subestimadora do “monopólio da última palavra”, tal como susten-
tada academicamente pelo Ministro Celso de Mello e analisada no item 1.3
(subestimação de autoridade).
E assim foi durante toda a obra. Porém, os presentes Estudos não se con-
tentam em promover uma revisão de literatura na doutrina. A obra também
se volta ao questionamento dos chamados precedentes predatórios descritos na
primeira parte da presente posfação, que são criticados com rigor técnico e
persuasão. Pela desenvoltura com a qual teceu suas críticas, isso merece ser
ilustrado.
No ensaio “Prisão de parlamentares e cautelar de afastamento do manda-
to”, a Professora da UnB percorreu um instigante caminho argumentativo e
efetivamente demonstrou as camadas mais profundas de problemas concretos
que derivam da PET 9218 – em que o Ministro Luís Roberto Barroso determi-
nou o afastamento do Senador Chico Rodrigues por noventa dias. As objeções
levantadas, todas de ordem prática, não poderiam mesmo ser respondidas a
contento.
Primeiro, criticou a atuação monocrática de Ministros que aplicam aos
parlamentares a cautelar processual penal de afastamento do cargo. E aqui a
Constitucionalista de Pernambuco apresentou uma verdade incômoda:
[…] cautelares de suspensão do mandato de parlamentares elei-
tos jamais deveriam ser decretadas sem o imediato referendo do
colegiado. Isso, até mesmo por razões de reciprocidade: um se-
nador da República sozinho não poderia, por exemplo, decretar

535
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

o afastamento de um ministro do STF em um processo de im-


peachment em curso no Senado Federal.

A autora estava coberta de razão ao estabelecer essa analogia, o que re-


mete ao exemplo de Filosofia da Linguagem Comum apresentado no início
deste posfácio. Um relacionamento de harmonia que envolve pessoas iguais e
mutuamente independentes não permite desnivelamentos. A propósito, a crí-
tica da Professora foi ao encontro da literatura acadêmica mais recente sobre o
abuso de provimentos monocráticos no Supremo25.
Outro aspecto fundamental foi a incursão nas normas regimentais do Se-
nado para demonstrar que, em casos dessa natureza, não há convocação do
suplente. Logo, tem-se um desequilíbrio federativo quando da alteração do nú-
mero de senadores por decisões judiciais.
Ao desenvolver seu raciocínio neste ensaio, a Professora Simões demons-
trou com muita lucidez a inconsistência da “engenhosa construção” de Teori
Zavascki, que promoveu um “salto hermenêutico” quando determinou a pri-
são de Delcídio do Amaral na AC 4039. Para ela, não é possível prender pre-
ventivamente membros do Congresso Nacional. Ao dizê-lo, a autora comprou
um embate acadêmico com processualistas penais da estatura de Douglas Fis-
cher, mas nem por isso deixou de se sair exitosa.
Mais uma vez, não convém discordar de Roberta. Segundo ela, “o minis-
tro Teori Zavascki ‘converteu’ os crimes […] em inafiançáveis”. De fato, foi
precisamente isto que ocorreu. O STF confundiu o significado de inafiançabi-
lidade quando prendeu Delcídio. Como já afirmei em outra ocasião26:
“Incansável” é quem nunca se cansa. “Indefensável” é aquilo que
jamais se defende. “Inescusável”, qualidade do que não admite
escusa. O sufixo elucida perfeitamente. “Inafiançável”, da mesma
forma, designa somente os delitos que nunca admitem fiança -
não os inúmeros outros crimes que, apesar de afiançáveis, à vista
das peculiaridades do caso concreto (reincidência, contumácia,

25. A esse respeito, confira-se: GODOY, Miguel Gualano de. O Supremo contra o processo
constitucional: decisões monocráticas, transação da constitucionalidade e o silêncio do
Plenário. Rev. Direito e Práx. 12 (2), Apr-Jun 2021.
26. FONTELES, Samuel Sales. O Jardim das Prerrogativas II. Migalhas: Coluna Olhar Consti-
tucional, 15/03/2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/olhar-consti-
tucional/341768/o-jardim-das-prerrogativas-ii

536
Posfácio

gravidade em concreto, risco à instrução processual etc.), não


permitirão que uma fiança seja concedida.

O STF tem ignorado o sentido das palavras, em um ato de apostasia cons-


titucional. Na Ação Cautelar 4039, a Corte entendeu que, se a prisão preven-
tiva deveria ser aplicada, não cabe fiança. Por conseguinte – e aqui temos um
salto argumentativo –, “o crime é inafiançável”. Na Lógica, isso equivaleria a
dizer que: “no caso prático de ontem, você não foi vencido. Então, você é in-
vencível”. A proposição é absurda. Da premissa, não segue a conclusão. Nem
sempre quem vence é invencível. E nem toda fiança impossibilitada se traduz
em crime inafiançável.
Ainda nos presentes Estudos, a Professora da UnB ergueu a sua prestigiada
voz acadêmica contra os efeitos colaterais advindos do entendimento firmado
pelo STF na AP 937 QO, que, na essência, arrancou o foro por prerrogativa de
função dos parlamentares – sem uma emenda à Constituição. Ciente de que a
melhor produção acadêmica não se limita a criticar, devendo também oferecer
alternativas propositivas que aprimorem o sistema jurídico, Roberta registrou
sugestões juridicamente consistentes no artigo “Sobre as medidas de busca e
apreensão no Congresso Nacional”:
[…] o ideal seria estabelecer que somente o STF pode decidir
pela realização de busca e apreensão na sede do Poder Legis-
lativo Federal, sendo manifestamente incabível tal decisão
por parte de outros tribunais ou juízes de primeira instân-
cia, ainda que com base na questão de ordem na AP no 937.
[…] o second best seria determinar que o cumprimento de quais-
quer diligências na sede do Parlamento dependeria de prévia au-
torização do STF […]
Disso viria a competência do STF em conferir sempre um exe-
quatur às buscas e apreensões dirigidas aos parlamentares em
seu recinto profissional […].

Ministros do STF e seu corpo de assessores devem permanecer atentos aos


“fios desencapados” que foram esquecidos quando da fixação da tese, como
Roberta às vezes costuma se referir e apontar nos seus trabalhos. Trata-se de
uma profissional teoricamente densa, mas que revela espírito prático.
Em “Perda do mandato é efeito automático e irreversível da condenação pe-
nal?”, a Professora efetuou uma abordagem que me é muito cara. Sabedora de
que uma interpretação constitucional há de prestigiar primeiramente o texto,

537
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

não a sua história27, Roberta principiou suas digressões com o texto consti-
tucional considerado em si mesmo. E o leu muito bem. Somente a partir de
então, estabeleceu um profícuo diálogo com as fontes originais, resgatando a
História Constitucional Brasileira para densificar o significado de cláusulas
constitucionais cuja interpretação é objeto de disputa. Ao fazê-lo, questionou
precedentes predatórios que insistem em subtrair das Casas legislativas a de-
cisão sobre a perda do mandato de parlamentares condenados criminalmente,
utilizando com elegância o argumento a fortiori.
Após muitas sementes plantadas nestes Estudos, convém examinar os fru-
tos.

7. DA RECEPTIVIDADE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO CON-


GRESSO NACIONAL QUANTO ÀS TESES DEFENDIDAS NESTA OBRA

A qualidade de um escrito acadêmico não se mede pelo (des)acolhimento


por parte dos Tribunais e Parlamentos, mas é perceptível que a opinião de Ro-
berta Simões tem sido bem aceita pelos Poderes da República. Alguns exem-
plos bem o ilustram.
Após defender o costume constitucional da devolução de medidas provi-
sórias, uma tese ambiciosa, a prática foi acolhida pela Ministra Rosa Weber
(ADI 6991). A propósito, “O costume constitucional da devolução in limine de
medidas provisórias” foi um trabalho singular porque dialogou com a Teoria
do Direito e o Positivismo Jurídico.
A discussão suscitada sobre o poder de agenda para a deflagração do im-
peachment veio a ser acolhida pela Ministra Carmen Lúcia (MS 38.034). Uma
vez publicado o Estudo “Sobre as medidas de busca e apreensão”, os incidentes
diminuíram vertiginosamente. No melhor do meu conhecimento, os episódios
preocupantes de buscas relatados no trabalho deixaram de ocorrer. Depois do
artigo “ Prisão de parlamentares e cautelar de afastamento do mandato” (PET
9218), a denúncia não veio a ser oferecida.

27. Para uma crítica à crescente inversão na prática jurídica norte-americana, onde, durante
um dado período, muitos advogados deram mais ênfase aos documentos da história
legislativa que ao próprio texto legal a ser interpretado: SCALIA, Antonin. A Matter of In-
terpretation: Federal Courts and the Law. New Jersey: Princeton University Press, 1997,
p. 31.

538
Posfácio

Como foi dito, mais do que jurídico, há nesta obra um potencial historio-
gráfico.
A tese de vanguarda sobre a reeleição dos presidentes das Casas, tal como
sustentada em “Podem ser reeleitos os presidentes da Câmara e do Senado?”, por
muito pouco não se sagrou vitoriosa. O placar no Tribunal foi de 6x5. A propó-
sito, na época, eu e Clèmerson Merlin Clève publicamos um trabalho em sen-
tido divergente ao exposto pela Professora, mas admitimos o quão persuasiva
ela foi nas razões declinadas sobre as possíveis mudanças sistêmicas operadas
pela emenda da reeleição28.
Na discussão sobre a autonomia do Banco Central (BACEN), suscitada
em “Tramitação conjunta, iniciativa legislativa ‘por empréstimo’ e autonomia do
BC”, as ideias de Roberta foram aceitas na ADI 6696.
Um assunto quase onipresente nas análises de Roberta diz respeito ao im-
portante Tema 1.120 da Repercussão Geral do STF, estudado, por exemplo, no
artigo “O direito parlamentar e o tema 1.120 da repercussão geral do STF”, mas
mencionado em muitos outros. O argumento central da autora, pela impossi-
bilidade de controle de regimentalidade, tem sido aceito.
No que concerne à possibilidade do uso do Sistema de Deliberação Re-
moto (SDR) para a deliberação de Propostas de emenda à Constituição (PEC),
que a autora abordou, por exemplo, em “É possível emendar a Constituição via
deliberação remota durante a calamidade pública?” e em “Para onde foi o bica-
meralismo no Congresso Nacional?”, o STF chancelou essa prática.
Por fim, na intrigante discussão sobre as emendas de relator (RP9), após a
crítica de Roberta Simões apresentada em “Limites são mero detalhe quando o
STF decide substituir o Congresso Nacional”, a Ministra Rosa Weber promoveu
o desbloqueio parcial das execuções orçamentárias (ADPFs 850, 851 e 854).
Da mesma forma, após o texto seminal apresentado em “A ‘incapacidade mo-
ral’ do presidente da República”, a Ministra Cármen Lúcia negou seguimento
ao MS 38034, reconhecendo que o recebimento de denúncias de impeachment
por parte do Presidente da Câmara dos Depuados não representa um “ato vin-
culado”, precisamente como afirmava Roberta em seu texto.

28. FONTELES, Samuel Sales. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Mesas do Legislativo e Reeleição.
Migalhas: Olhar Constitucional, 07/12/2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.
br/coluna/olhar-constitucional/337426/mesas-do-legislativo-e-reeleicao

539
Estudos de Direito Constitucional Parlamentar

Algumas correntes sustentadas, no entanto, não vieram a prevalecer. Este


foi o caso do argumento pela constitucionalidade da convocação de governa-
dores (ADPF 848), embora me pareça que Roberta estava correta a esse res-
peito.
Em grande medida, as teses expostas nestes Estudos foram muito bem
aceitas pela República e, ao que tudo indica, as mais vanguardistas continuarão
a ser objeto de reflexão atenta pelas gerações vindouras. A Professora da UnB
já deu alguns sinais de que, intelectualmente, é pessoa à frente do seu tempo.

8. CONCLUSÃO
Em um mercado editorial dominado por autores masculinos, que somen-
te debatem entre si mesmos, à semelhança de uma confraria ou irmandade,
Roberta Simões furou a bolha para se fazer ouvir e tem apresentado objeções
às vezes irrefutáveis. Pela sua perspectiva singular, a autora vem oferecendo
pontos de vista que não podem ser percebidos pelos pontos cegos de outros
estudiosos.
Certa feita, o antropólogo pernambucano Gilberto Freyre afirmou “[…]
reconhecer o fato de que em Pernambuco […] a terra se apresentou excepcio-
nalmente favorável […] para a estabilidade […] patriarcal”29. Se isto algum
dia foi verdade no passado, não o é no presente. Ou Roberta Simões estaria a
desmentir Gilberto Freyre. Aliás, a julgar pelo que vejo, eu não ficaria surpreso
se, no futuro, Pernambuco já não fosse mais lembrado como a terra que nos
legou Joaquim Nabuco. Ou Aníbal Bruno. Quem sabe não estejamos próximos
de dizer que Pernambuco nos legou Roberta Simões Nascimento.
Um bom presságio.
Sunnyvale (CA), 13 de Novembro de 2022.

Samuel Sales Fonteles


Doutorando em Direito pela UFPR
Visiting Scholar na Stanford Law School (USA, 2022-2023)
Mestre em Direito pelo IDP (Brasília)
Promotor de Justiça no MPGO

29. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 48ª ed. São Paulo: Global, 2003, p. 43.

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