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FILOSOFIA E CIÊNCIAS

HUMANAS
PROF. HENRIQUE ELFES
PROF. ME. GABRIEL DE VITTO
PROF. DR. ANDRÉ FERNANDES
REITORIA:
Dr. Roberto Cezar de Oliveira
PRÓ-REITORIA:
Prof a . Ma. Gisele Colombari Gomes
DIREÇÃO DE GESTÃO EAD:
Prof. Me. Ricardo Dantas Lopes
EQUIPE DE PRODUÇÃO DE MATERIAIS:
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Revisão textual
Produção audiovisual
Gestão

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

01
DISCIPLINA:
FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

FILOSOFIA E CIÊNCIAS “DO ESPÍRITO”


PROF. HENRIQUE ELFES
PROF. ME. GABRIEL DE VITTO
PROF. DR. ANDRÉ FERNANDES

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO.............................................................................................................................................................. 4
1. VERDADE, FILOSOFIA E CIÊNCIA......................................................................................................................... 5
1.1 QUAIS AS DIFERENÇAS ENTRE A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS? ...................................................................... 8
1.2 QUANTO AO MÉTODO..........................................................................................................................................11
1.3 CIÊNCIAS E CIÊNCIAS HUMANAS.....................................................................................................................12
1.4 A GÊNESE DAS CIÊNCIAS HUMANAS................................................................................................................13
1.4.1 A “CIÊNCIA DA ALMA”........................................................................................................................................13
1.4.2 AS CIÊNCIAS DA LINGUAGEM.........................................................................................................................16
1.4.3 O DIREITO E A POLÍTICA..................................................................................................................................16

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INTRODUÇÃO

Filosofia: observação e raciocínio. Quatro canais da verdade. Origens das ciências


experimentais. O método científico, seu valor e suas limitações. Matematização das ciências.
“Estatisticização” das ciências. Método científico e ciências do ser humano. Breve histórico das
ciências humanas.

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1. VERDADE, FILOSOFIA E CIÊNCIA


“A verdade é relativa”, dizem e pregam muitos dos nossos contemporâneos. Mais
recentemente, especialmente nos países anglo-saxônicos, a mania é dizer, diante de qualquer
afirmação que façamos: “Essa é a sua verdade. Minha verdade é...” Ou seja, a verdade seria relativa
segundo aquele que a proclama.
No entanto, para adaptar um comentário de Chesterton, quando essas pessoas vão
comprar um tablet na loja de eletrônicos, fazem um escândalo se o rapaz lhes traz um laptop. Mas,
se essa era a “verdade do vendedor”, para que tanta confusão? Ou, se encomendam macarrão
al dente com alho e óleo no restaurante, e o garçom lhes traz macarrão com molho de tomate e
escalopes, não ficam nada satisfeitos. Mas por quê, se essa era “a verdade do garçom”?
Além disso, a própria afirmação “a verdade é relativa” é uma contradição em termos. Para
analisá-la, precisamos verificar o que o nosso interlocutor realmente quer dizer. Em primeiro lugar,
está negando que existam “a verdade” e “as verdades” no sentido clássico, isto é, conhecimentos
cujo significado sempre e em todos os casos descrevem corretamente a realidade tal como ela
é, não apenas como parece ser. Ou seja, segundo ele, não existiriam verdades absolutas, que
correspondam à realidade; mais ainda, simplesmente não existiria a verdade propriamente dita.
Em segundo lugar, diz que, se não somos capazes de conhecer a verdade, então tudo o

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que afirmamos são apenas opiniões contingentes, i.e. relativas, correspondentes a como as coisas
aparecem às pessoas, dependendo da sua experiência prévia, da sua ideologia, da sua conveniência,
de estarem ou não com dor de barriga etc. Ora, não há dúvida de que realmente interpretamos
algumas realidades conforme preferimos, sem conseguir chegar àquilo que as coisas são; e de
que existem opiniões falsas ou prováveis até certo ponto, mentiras por conveniência, “chutes” e
besteiras. No entanto, parece bem difícil considerar, p. ex., afirmações como “o ser é e o não-ser
não é”, “dois mais dois equivale a quatro” ou “na Divina Comédia de Dante, Lúcifer aparece no
círculo mais baixo do inferno preso num mar de gelo”, como afirmações “verdadeiras” apenas
para aquele que as emite.
Qualquer afirmação é ou verdadeira ou falsa; não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo
tempo e sob o mesmo aspecto. Portanto, se a afirmação “a verdade é relativa” for verdadeira –
se, de fato, não existem afirmações que estão de acordo com a realidade, verdadeiras sempre e
em todos os casos –, então essa afirmação é falsa, porque teria de existir ao menos uma verdade
objetiva, real, fática, absoluta e incontestável: esta de que a verdade é relativa... E, se for falsa,
então é falsa mesmo, e existem muitas outras verdades...
E assim chegamos ao momento em que é preciso formular algumas definições: que é isso,
então, que chamamos de “verdade”? E como chegamos ao conhecimento dela?

Como conhecer a verdade?

Na formulação de Tomás de Aquino, “a verdade é a adequação entre o intelecto e a coisa”


conhecida, a realidade.

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“A verdade, conforme já foi dito, segundo o seu sentido primário está no intelecto. Como
toda coisa é verdadeira na medida em que tem a forma própria da sua natureza, é necessário
que o intelecto, ao conhecer, seja verdadeiro na medida em que tem semelhança com a coisa
conhecida, [semelhança] que é a sua forma enquanto cognoscente. Por isso a verdade se define
pela conformidade do intelecto com a coisa. Donde decorre que conhecer esta conformidade é
conhecer a verdade” 1.
Ou seja, ao contrário dos sentidos, da imaginação e da potência cogitativa, que somente
conhecem as aparências dos entes materiais (cor, forma geométrica, espaço, tempo, peso,
número, sons emitidos, rugosidade, temperatura etc.), o intelecto, e somente ele, conhece a forma
ou “estrutura lógica” desses entes, ou seja, o que eles são – a sua essência que, no momento em
que se faz presente no nosso intelecto, passa a ser denominada conceito. O conhecimento parte
das capacidades ou potências sensíveis, mas não fica nelas; progride para conhecer as essências
dos entes materiais, e a partir delas também para conhecer entes imateriais – como o próprio
intelecto, a verdade, o erro, o belo e o bom, e tantas coisas mais.
Mas os conceitos, por sua vez, não são em si mesmos nem verdadeiros nem falsos. Como
a experiência ensina, podemos enganar-nos ao abstrair a essência de um objeto, e confundir
por exemplo uma coruja pequena com um morcego, se não pudemos observá-los bem – porque
era noite, e só percebemos algo que passou voando perto da nossa cabeça. Ora, nem o conceito
de “morcego” nem o de “coruja” são verdadeiros ou falsos; ambos são o que são, e pronto. Só

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podemos usar as noções de verdade ou falsidade no momento em que fazemos um juízo, ou
seja, quando correlacionamos os conceitos com a realidade: “Isto que passou voando era um
morcego”. Este juízo será verdadeiro se o bichinho voador era de fato um morcego, falso se era
uma coruja; e a única maneira de dirimir com certeza essa questão seria que pudéssemos apanhar
o animal logo depois que passou voando, com uma rede, por exemplo, e examiná-lo com mais
detalhe para ver se era de fato uma coisa ou a outra.
São Tomás afirma isso mesmo ao dizer, logo depois do trecho que citamos e na mesma
questão: “Assim, propriamente falando, a verdade está no intelecto enquanto compõe e divide
[i.e., formula juízos], não nas potências sensíveis, nem no intelecto enquanto conhece aquilo que
é” 2. Assim, falando com mais precisão, a verdade está na relação entre os juízos que formulamos
sobre as coisas conhecidas e essas coisas mesmas. E com isso, podemos chegar por fim a uma
definição de verdade no que diz respeito às afirmações que fazemos, sejam elas de conhecimento
comum, de filosofia ou de ciência: “A verdade é uma propriedade dos juízos que fazemos quando
estes correspondem à realidade dos entes sobre os quais os formulamos”.
Muito bem. Dito isso, falta agora examinar brevemente como chegamos à verdade no
nosso conhecimento das coisas. O filósofo Josef Pieper condensa em quatro os meios ou caminhos
de conhecimento que nos permitem chegar à formulação de juízos verdadeiros e a conferir em
seguida se esses juízos eram efetivamente, ou não, verdadeiros:

1. A evidência dos sentidos. Os sentidos, já dissemos, são o ponto de partida do nosso


conhecimento, e a eles temos de retornar sempre que fazemos afirmações – juízos –
relacionados com entes materiais, p. ex., “esta rosa é branca”. Se os sentidos me dizem que
a cor da flor que tenho entre as mãos é o que chamamos de “branco”, então a afirmação é
verdadeira sem dúvida possível. A verdade do juízo decorre daquilo que os sentidos me
1 “Respondeo dicendum quod verum, sicut dictum est, secundum sui primam rationem est in intellectu. Cum
autem omnis res sit vera secundum quod habet propriam formam naturae suae, necesse est quod intellectus, inquan-
tum est cognoscens, sit verus inquantum habet similitudinem rei cognitae, quae est forma eius inquantum est cognos-
cens. Et propter hoc per conformitatem intellectus et rei veritas definitur. Unde conformitatem istam cognoscere, est
cognoscere veritatem” (S.Th., I, q. 16, a. 2, resp.).
2 “Et ideo, proprie loquendo, veritas est in intellectu componente et dividente, non autem in sensu, neque in
intellectu cognoscente quod quid est” (S.Th., I, q. 16, a. 2, resp.).

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revelam.
Sabemos que os sentidos podem nos enganar: miragens, alucinações, defeitos como
o daltonismo, distrações ou superficialidade na observação etc., são as falhas mais
comumente apontadas. No entanto, o erro dos sentidos é detectado pelos próprios
sentidos, na medida em que retornamos a eles, repetimos as observações ou pedimos
que mais pessoas confirmem o que pudemos observar. Portanto, mesmo que haja falhas,
fundamentalmente a evidência dos sentidos continua a ser sempre um método sólido de
conhecer a realidade.
No entanto, se a afirmação é mais ambiciosa, por exemplo “as rosas podem ser brancas,
amarelas, cor de rosa, arroxeadas ou vermelhas, mas nunca azuis”, só poderemos confirmar
se esse juízo é verdadeiro examinando o maior número de rosas ou ao menos fotos de
rosas que seja possível, e mesmo assim teremos de aceitá-lo apenas provisoriamente,
deixando em aberto a possibilidade de que em algum lugar possa existir uma rosa azul
que não pudemos examinar, porque seria impossível observar literalmente todas as que
existem no mundo: o custo e o tempo empregados seriam impraticáveis. Quanto mais
rosas observarmos, porém, maior será a probabilidade de que a afirmação seja verdadeira.
2. A evidência intrínseca. Esta só se aplica ao conhecimento dos primeiros princípios do

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conhecimento, como por exemplo “uma coisa não pode ser ela mesma e outra ao mesmo
tempo e sob o mesmo aspecto”. A verdade do juízo decorre da sua própria formulação, e
não reconhecer isto implicaria tornar impossível qualquer juízo verdadeiro.
3. O raciocínio, tanto dedutivo – a partir das causas, chegar aos efeitos – quanto
indutivo – a partir dos efeitos, remontar às causas. O raciocínio consiste em combinar
juízos verdadeiros já conhecidos para chegar a novos juízos, ainda não conhecidos. A
veracidade dos novos juízos dependerá do cuidado que se tome no processo, seguindo as
regras estabelecidas pela lógica, e da verdade dos juízos iniciais sobre os quais se baseia o
processo.
4. Por fim, a fé. A palavra, aqui, não se aplica apenas à fé religiosa, mas a todo o
conhecimento que recebemos e aceitamos como verdadeiro por confiança na pessoa que
o revela, ou seja, pela autoridade dessa pessoa.
Na prática, e em todos os âmbitos – tanto no conhecimento comum como no filosófico
e no científico –, a imensa maioria das coisas que conhecemos, conhecemo-las por fé. O
que aprendemos na família, desde a linguagem até a moralidade, dos conhecimentos de
uso cotidiano até muitos que pertencem a âmbitos profissionais especializados, o que é
admissível no âmbito privado e o que o é no social, tudo isso o sabemos por confiança
nos nossos pais e, em menor grau, irmãos. Os conhecimentos escolares, do infantil até a
universidade, conhecemo-lo pela autoridade dos professores. Uma infinidade de ideias
foram adquiridas de amigos, colegas ou conhecidos a quem dávamos confiança em alguns
assuntos, mas não em outros, etc. Ou seja, quase tudo o que sabemos, sabemo-lo por fé.
Naturalmente, esses conhecimentos passam depois por um longo e complexo processo
de comparação, verificação de uns através de outros e descarte ou correção de muitos deles, até
chegarmos ao que consideramos o nosso conhecimento atual. Ou seja, a fé não é indiscriminada,
mas exige motivos de credibilidade: se alguém tentasse nos vender o Pão de Açúcar, por exemplo,
não confiaríamos nele, porque temos uma vaga noção de que esse rochedo não é propriedade
privada, mas pública, além de que conversa de vendedor já naturalmente nos inspira desconfiança,
pois temos longa experiência de gente que tentou nos “empurrar” coisas de que não tínhamos a

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menor necessidade.
Em suma, para um conhecimento ser aceito por fé, há necessidade: 1. De que a pessoa
ou instituição que o revela demonstre autoridade no que conhece – sabe do que fala (claramente
sabe muito mais do que aquilo que nos revela nesse momento), tem integridade moral (nunca
nos enganou antes, dá sinais de estar interessado no nosso bem, tem boa reputação) e está
apoiado por uma posição social ou instituição que confirmam em certa medida a sua capacidade
de nos ensinar algo (igreja, escola, universidade, às vezes até governo...). 2. De que esse novo
conhecimento adquirido não contradiga ou de alguma forma seja conflitante com o que já
conhecemos como verdadeiro. 3. De que, pelo contrário, confirme ou cristalize uma série de
juízos anteriores que tínhamos, mas que estavam “soltos” ou pareciam desconexos com relação
ao restante do conhecimento que já tínhamos.
Naturalmente, esses quatro modos de chegar a conhecimentos verdadeiros não atuam
separadamente, mas em conjunto, e servem para que tanto os indivíduos quanto qualquer ramo
do conhecimento, escola filosófica ou ciência particular confirme e depure, ao longo do tempo, o
conjunto das ideias, teorias, modelos e modas que apresenta em determinado momento. Nenhum
de nós, e nenhuma filosofia ou ciência detém “toda a verdade”; antes, tudo o que sabemos é uma
acumulação heterogênea de verdades e falsidades, e é necessário um trabalho permanente de
correção do já conhecido, aquisição de novos conhecimentos, harmonização do que já se sabe e
descarte de falsidades para gradativamente nos aproximarmos, pessoal e coletivamente, de um

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conjunto de conhecimentos mais e mais verdadeiro.

1.1 Quais as diferenças entre a filosofia e as ciências?


1. Quanto ao objeto

Na sua origem – entre os filósofos gregos, portanto, e a partir deles na Antiguidade greco-
romana e até a Idade Média –, a palavra ciência significa apenas um “corpo de conhecimentos
verdadeiros e verificados”; neste sentido, a filosofia era considerada uma ciência entre as outras.
No entanto, tinha já um papel unificador e de hierarquização dos outros conhecimentos, como
podemos verificar por este fragmento de uma das obras perdidas de Aristóteles:

“Há [...] umas ciências que produzem cada um dos benefícios da vida e outras
que se servem das primeiras; há algumas subordinadas e outras diretivas; e
é nestas últimas que reside, como têm mais capacidade reitora, aquilo que
realmente é bom. Portanto, se somente a ciência que tem a retidão de juízo, que
usa a razão e que estuda a totalidade do bem, que é a filosofia, pode por natureza
servir-se de todas [as demais ciências] e dirigi-las, é preciso cultivar a filosofia
a qualquer custo, já que somente a filosofia contém em si o reto juízo e uma
sabedoria diretriz infalível” 3.

Se prescindirmos do tom propagandístico – Aristóteles queria, no Protréptico, incitar


todos ao cultivo da filosofia –, o trecho não perdeu validade. Até hoje, é a filosofia, ou ao
menos alguma das suas escolas, que dá às diversas ciências as suas definições básicas e as suas
orientações centrais, como veremos adiante. A expressão “sabedoria diretriz infalível” hoje pode
nos fazer sorrir, se lembrarmos as ciências ou correntes pretensamente científicas inspiradas no
liberalismo, no positivismo ou no marxismo; mas é preciso lembrar que a filosofia era entendida,
até o medievo, como um esforço unificado de procura da verdade e aprofundamento nela, com
uma certa unidade apoiada nos antigos (sobretudo Sócrates, Platão e Aristóteles) e alimentada
3 Aristóteles, Protréptico, fragmento 9, Ed. Gredos.

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pelas contribuições parciais das outras escolas e correntes, capaz de aprender até com os erros
destas. É o que exprime a expressão “filosofia perene”, aplicada até hoje ao pensamento do seu
maior unificador e harmonizador, Tomás de Aquino; e na verdade nada nos impede de continuar
esse esforço unificador apoiado na sabedoria filosófica, talvez nem sempre “infalível”, mas capaz
de se corrigir a si mesmo permanentemente.
Mas, antes de aprofundar nisso, examinemos rapidamente a distinção entre filosofia e
ciência no sentido moderno. Já havia ciências particulares na Antiguidade, como matemática e
geometria, astronomia e gramática, bem como artes, i.e., corpos de conhecimento voltados quase
que inteiramente a finalidades práticas. Muitas, talvez a maioria das coisas que hoje chamamos
“ciências” particulares – ou que merecem cursos universitários próprios, como medicina,
engenharia, direito, economia, política etc. – seriam antes artes nesse sentido clássico.
Fato é que, no sentido moderno, ciência designa um corpo de conhecimento ou conjunto
de conhecimentos acerca de uma parte que se pretende claramente delimitada do real: a medicina
estuda os meios para preservar e melhorar a saúde humana, a biologia estuda os organismos
vivos em geral, a anatomia estuda a estrutura dos organismos e as relações entre as suas diversas
partes, a fisiologia o funcionamento e os “mecanismos” de atuação dessas partes, a histologia os
tecidos que compõem essas partes, a citologia as células que compõem esses tecidos, a bioquímica
os processos químicos que correm dentro das células e tecidos do organismo, a neurociência o
sistema nervoso que controla o organismo, a psicologia a “mente” e o comportamento desses

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organismos, etc. etc. etc.
Essa simples enumeração, que poderia ainda ser continuada quase indefinidamente, já
nos permite fazer uma série de observações:

1. As ciências são delimitadas pelo seu objeto de estudo e conhecimento, ou seja, pela
“parte do real” que estudam; quanto mais uma ciência se desenvolve, mais necessidade
tem de criar “subciências” que estudam objetos cada vez mais restritos;
2. Virtualmente todas as ciências servem a uma ciência maior (ou várias) que é especulativa,
isto é, voltada apenas a aumentar o conhecimento humano sobre a realidade (a biologia
humana abrange anatomia, morfologia, fisiologia, histologia, citologia, bioquímica,
neurociência e psicologia humanas, além de várias outras), e ao mesmo tempo a uma
(ou mais de uma) ciência maior prática (no caso, a biologia humana e as suas subciências
servem à medicina). Podemos dizer, por isso, que há uma espécie de hierarquia das
ciências baseada na abrangência do objeto de cada uma delas.
No entanto, não se trata de uma hierarquia simples que poderia ser representada por uma
pirâmide única, antes é complexa e abrange diversas “pirâmides”. Para ficar no caso que
estamos examinando: as diversas ciências particulares abrangidas pela biologia também
servem à medicina: teríamos assim duas pirâmides que têm boa parte dos “andares
inferiores” em comum, mas distintas pela sua finalidade (especulativa x prática). Além
disso, em maior ou menor grau, todas elas têm de recorrer também às “pirâmides” das
ciências físicas (anatomia, morfologia e fisiologia, p.ex., têm de usar física mecânica;
neurologia precisa recorrer à física elétrica e eletrônica, etc.), das ciências químicas, das
ecológicas, evolutivas, etc. Todas as ciências particulares estão interconectadas entre si, e
as descobertas e formulações de cada uma delas têm de ser apreciadas ou valoradas à luz
do conjunto. Ou seja, sempre são, na melhor das hipóteses, pequenos “grãos” ou fragmentos
de verdade, cujo sentido geral depende do conjunto dos conhecimentos verdadeiros
acumulados por todas as demais ciências no seu conjunto.
Por isso é perfeitamente legítimo falar em “ciência” para se referir ao conjunto das

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ciências; e ao mesmo tempo, é necessário ter um extremo cuidado para falar de “verdades
científicas”, porque cada afirmação depende de um imenso conjunto de outras afirmações
e pressupostos próprios das diversas ciências particulares. E para que uma afirmação
determinada possa ser aceita como “verdade provada [verificada]”, seria preciso
que todas as outras afirmações em que ela se baseia ou das quais ela depende fossem
também “verdades comprovadas”. O que é raríssimo, já que os conhecimentos aceitos em
uma ciência particular são muito heterogêneos: uns são meras hipóteses, outros estão
comprovados – provisoriamente... –, outros são duvidosos, outros se aplicam em alguns
casos mas não em outros...
3. Na própria delimitação dos objetos das ciências particulares, há necessidade de uma
série de definições que as próprias ciências não são capazes de formular. Para ficar na
enumeração que fizemos acima: que significa saúde?, o que é um organismo e o que
significa vida?, que são estruturas, processos e “mecanismos”? E, pior ainda, que vem a ser
mente?
Em suma, as diversas ciências, e, portanto, “a ciência”, são incapazes até de conhecer e
definir com rigor os seus objetos de estudo. Para isso, ou precisam apoiar-se na filosofia,
ou têm de contentar-se com o conhecimento comum, com o sentido que “todo o mundo
atribui àquela palavra”, ou com o sentido de dicionário. Mas, para ver quão precário é

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este conhecimento comum, vejamos apenas os sentidos de “saúde” que encontramos no
Michaelis On-line:
saúde
sa·ú·de
sf.
1 Estado do organismo com funções fisiológicas regulares e com características
estruturais normais e estáveis, levando-se em consideração a forma de vida e a
fase do ciclo vital de cada ser ou indivíduo.
2 Bem-estar físico, psíquico e social.
3 Vigor físico, energia, força, robustez.
4 FIG. Qualidade ou estado de equilíbrio e sucesso financeiro de uma organização
ou de uma economia.
5 Brinde ou saudação que se faz bebendo à saúde e à felicidade de alguém.
Interj.
Voto que se faz a alguém que espirra.

Ou seja, quando dizemos: “a medicina estuda os meios para preservar e melhorar a


saúde humana”, qual desses sentidos estamos usando? Um dos três primeiros? Mas uma
pessoa saudável deixa de ser saudável porque está num ambiente em que não conhece
ninguém ou não confia em ninguém? Não; mas... “saúde” não abrangia o “bem-estar
social” (def. 2)? Alguém como Gandhi, que chegou a permanecer cento e vinte dias sem
tomar alimentos sólidos para obrigar os ingleses a dar liberdade à Índia, estaria doente
segundo a def. 1, porque certamente não apresentava, nesse período, “funções fisiológicas
regulares e com características estruturais normais e estáveis”. Em suma, o dicionário
não parece resolver a questão de “conhecer e definir com rigor” nem ao menos o objeto
de estudo da medicina, ciência tão importante para qualquer um de nós... Sobra, pois,
a seguinte conclusão: as ciências, até na simples definição dos seus objetos de estudos, e a
rigor em toda e qualquer afirmação que queiram fazer com um mínimo de clareza e rigor,
dependem profunda e inteiramente da filosofia.

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Em que diferem, então, filosofia e ciência?


Antes de mais nada, o objeto da filosofia é a totalidade do real, ou seja, a filosofia examina
tudo o que há para ser conhecido, e procura chegar à essência – a forma ou estrutura lógica – de
todas as coisas examinadas. Para isso, naturalmente, desenvolveu ao longo da história diversos
ramos: a metafísica, que examina o que é o ser das coisas, ou seja, em que consiste a sua realidade;
a filosofia da natureza examina o que são os entes que compõem este mundo, mais especialmente os
entes materiais; a teodiceia examina o que é Deus; a antropologia, o que é o ser humano; a ética,
o que é o agir humano, etc. Naturalmente há uma série de outros ramos menores: a gnoseologia
ou filosofia do conhecimento humano, a filosofia da ciência, do direito, da política, da sociedade
etc. Mas todos estes ramos partem do núcleo comum que é metafísico-antropológico-ético, e têm
em comum o esforço por chegar a definições que retratem bem as essências das coisas conhecidas,
aquilo que as coisas são.
As ciências, em contrapartida, são sempre conhecimentos particulares, isto é, o seu
objeto é uma determinada parte do real ou um determinado aspecto da realidade. Não procuram
as essências dos entes, mas antes descrever como são e como se comportam esses entes. Podemos
dizer, portanto, que por sua natureza se ocupam do aspecto mais “fenomênico” ou “externo” das
coisas, isto é, das suas características acidentais, do modo como se manifestam a nós. Isso não
significa de forma alguma dizer que não tenham importância, ou sejam menos importantes que a
filosofia; significa apenas que representam por sua natureza uma abordagem parcial da realidade,

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extremamente útil quando este é o resultado buscado, mas que nunca deve ser confundida com
um conhecimento verdadeiro e completo do real.

1.2 Quanto ao método


Filosofia
Para que a filosofia alcance seu objetivo de compreensão da totalidade do real, ela precisa,
como exercício da razão humana, de um método, isto é, um caminho próprio para empreender
sua tarefa. Como atividade racional mais elevada, a filosofia se centra na capacidade de uma
“reflexão universal”, por assim dizer. Partindo dos dados fornecidos pela fé - oriunda da tradição
cultural ou da religião - os reavalia, critica e fundamenta racionalmente. Concomitantemente,
coteja seus resultados com aquilo que é apreendido pelos sentidos, que são nossa ponte com a
realidade exterior. Da união entre a capacidade racional de entendimento e a apreensão sensível
se dão os conceitos sobre os quais o intelecto emitirá atos judicativos, os quais, quando agrupados
por um nexo interno de sentido, darão origem aos raciocínios. Tais raciocínios seguem certo
fluxo dinâmico, corrigindo-se constantemente graças à reflexão e às novas evidências intelectuais
e sensíveis. Por fim, estas evidências se intensificam explicitando os primeiros princípios do
entendimento, por um lado, e das coisas entendidas, por outro. Por exemplo, o princípio de
não-contradição, que é a base de todas as operações da inteligência, corresponde à evidência
metafísica do ato de ser.
Ciências modernas
As ciências modernas iniciam seu trabalho com uma atenção total ao que é apreendido
pelos sentidos, tal como é apreendido. Parte-se, então, da evidência sensível mais do que da
evidência intelectual. Num segundo momento, o cientista busca refinar sua experiência sensível
a partir do uso de instrumentos, da observação constante e controlada, do uso de tabelas etc.
Isto tudo pressupõe que a ciência disponha de um forte componente matemático (geométrico,
aritmético, estatístico etc.), que possibilita a organização, interpretação e generalização de um
grande número de dados brutos. Depois, para que as toneladas de informações sejam ordenadas
elas precisam ser submetidas ao raciocínio, o qual formulará uma hipótese, que, caso seja
confirmada por uma primeira bateria de experimentações, dará lugar a uma teoria. Por fim, tal

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teoria passa por uma experimentação contínua para que seja confirmada ou refutada. Esta é a
ciência típica do séc. XIX, modelo para filosofias como o positivismo e o positivismo lógico.
No entanto, com a revolução na física (com as teorias relativista e quântica) e na biologia
(com o evolucionismo e a fundação da genética), o antigo paradigma científico entrou em
colapso. Na física contemporânea, por exemplo, cada vez mais a matematização se torna pura e
teorias são postuladas sucedendo-se umas às outras com base na pura evidência matemática. Tal
panorama levou o filósofo da ciência Karl Popper a formular aquilo que chamou de “princípio da
falseabilidade”, no qual se afirma que qualquer teoria científica só pode ser realmente científica
se for passível de ser desprovada, isto é, refutada. Sendo assim, as ciências não buscariam as
verdades do mundo natural, mas apenas modelos explicativos para o fenômeno X ou Y.

1.3 Ciências e ciências humanas


Um passo importantíssimo para este estado de coisas foi a obsessão dos pensadores
modernos por alcançar uma plena certeza em todos os seus raciocínios - algo que, por sinal, foi
comum a empiristas e racionalistas. Como dizia Descartes, as ideias devem ser claras e distintas.
Aqui, estamos falando de um assentimento interior a certas proposições, ou seja, de estados da
alma e atitudes do espírito em relação a certa formulação racional.
Para explicar isto, teremos de recorrer a outra classificação feita por Josef Pieper, os graus

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em que a nossa vontade adere a um determinado conhecimento. Também podemos descrever isso
como quatro estados da pessoa – não apenas do seu intelecto – diante de qualquer afirmação:

1. Ignorância, isto é, o desconhecimento puro e simples de que existe uma determinada


verdade ou um conjunto de verdades a serem conhecidas. Esse desconhecimento pode
ser involuntário – a pessoa nunca foi informada de que valia a pena aprender a distinguir
as principais espécies de peixe para evitar um envenenamento por comer baiacu, por
exemplo, ou de como funciona o DNA, ou ainda de que existe um ramo da matemática
que é o cálculo integral, muito útil se se pretende trabalhar com engenharia, etc. Ou pode
ser uma ignorância voluntária, expressa em geral desta forma: “Não quero saber disso,
não me interessa de maneira nenhuma”.
2. O estado de dúvida se caracteriza pela incapacidade de se tomar uma decisão frente
ao que estamos vendo ou cogitando. Geralmente, a dúvida está relacionada à percepção
de que não temos todas as informações necessárias para emitir certo juízo, mas mesmo
assim estamos interessados naquele objeto que não conseguimos explicar.
3. A opinião, por sua vez, já pressupõe que tenhamos informações e reflexão suficientes
para julgar certo objeto, inclinando-nos a certa resposta, apesar de ainda não termos total
segurança de que nossa julgamento esteja correto. Do ponto de vista da vontade, a opinião
vem acompanhada de um movimento de abertura a outras visões que possam revisar,
complementar ou refutar a nossa, quer dizer, ela exige um exercício livre do raciocínio.
4. A certeza, por fim, é o grau máximo de assentimento a certa proposição. Este momento
pressupõe uma consideração minuciosa de todas as evidências disponíveis ou evidência
inegável do fato em questão, a partir da qual tomamos algo por verdadeiro e ponto final.
Por exemplo, a certeza da mulher que sabe que fulano é pai do seu filho.

Contudo, há uma diferença crucial entre a certeza e o conhecimento da verdade, pois


podemos ter plena certeza de algo falso ou mesmo mentiroso. Na medida em que a certeza é

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apenas o estado duma pessoa, ela diz mais sobre a atitude de alguém frente a um objeto do que
a respeito do objeto em si mesmo. Os defensores de regimes totalitários, por exemplo, tinham
plena certeza acerca da legitimidade de seu regime.
Por conta dessa diferenciação percebemos mais claramente o que separa a ciência clássica
da ciência moderna. Enquanto a primeira forma um corpo de conhecimentos orgânicos que
se ordenam à verdade dos primeiros princípios, a segunda busca modelos capazes de fornecer
a interpretação de certos fenômenos a fim de gerar uma certeza essencialmente provisória.
Ademais, vale ressaltar que o assentimento presente na certeza não é puramente racional, como
um leitor de Descartes pode pensar, mas que se sustenta por meio de emoções, valores e decisões.
Não há algo como um cientista puramente racional.
Deste modo, conforme as disciplinas científicas se fecham nas certezas de modo cada vez
mais obstinado e dogmático, surgem interpretações ideológicas dos fenômenos. Talvez um dos
melhores exemplos disso se encontre nas certezas científicas da biologia e da psicologia social do
séc. XIX, que tinham plena convicção de que o conceito de raça - assim como uma hierarquização
social e cultural dele derivada - era o que melhor interpretava uma série de fenômenos. Este
paradigma só entrou em colapso após a Segunda Guerra Mundial, também por fatores extra-
científicos.

1.4 A gênese das ciências humanas

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 1


De uma forma ou outra, quase todas as ciências humanas nasceram da filosofia ou em
função dela. Antes da multiplicação muitas vezes indiscriminada de disciplinas que ocorreu
ao longo do séc. XX e da proclamação de independência das ciências feita no séc. XIX, as
humanidades (que encontram sua raiz na humanitas renascentista) eram, essencialmente, parte
da filosofia (como a psicologia), meios de oferecer suporte ao trabalho filosófico (como a filologia)
ou organizar a vida social (como o direito).
Falaremos, em linhas gerais, sobre a evolução de algumas dessas ciências (práticas ou
especulativas) que serão tratadas ao longo do curso, com a intenção de oferecer um panorama
geral de seu processo constitutivo. Ao longo da história, mostram-se centrais: 1) a psicologia (que
veremos com mais detalhe no próximo capítulo); 2) a filologia, a história (o desenvolvimento da
ciência histórica será tratado na unidade III), e 3) o direito (unidade IV).
As ciências sociais, que hoje se apresentam como as ciências humanas por antonomásia,
só surgem enquanto tais com as sociedades industriais oitocentistas. Por este motivo, pode-se
dizer, extrínseco, não exercem uma influência considerável dentro do conjunto global das relações
entre a filosofia e as humanidades. No entanto, desde sua formalização também a sociologia, a
economia, a ciência política e a antropologia cultural têm marcado profundamente a história
espiritual dos povos – no Ocidente e no Oriente – a ponto de moldarem parcialmente a reflexão
filosófica. Tendo isso em mente, mencionar-se-á, de passagem, a pré-história dessas ciências para
que seus últimos desenvolvimentos não obscureçam a natureza de suas origens.

1.4.1 A “ciência da alma”

Sem dúvida, a mais filosófica dessas ciências é a psicologia, ou “ciência da alma”. Tocada
pelo panpsiquismo dos pré-socráticos, foi explorada com mais sistematicidade por Platão ao longo
de sua obra, ocupando um posto central no diálogo Fédon. Platão é o primeiro filósofo a defender
inequivocamente a existência de uma alma racional e espiritual com base em argumentos racionais,
ainda que fortemente alegóricos. Segundo expõe em Alcibíades I, esta alma é ontologicamente
superior ao corpo que possui e guarda com ele uma relação de domínio. O corpo seria, então, a
tumba da alma, uma pena para os maus espíritos sujeitos ao ciclo metempsicótico.

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Aristóteles, por sua vez, é o primeiro a olhar para o problema da alma desde um ponto
de vista global e científico, e, ao mesmo tempo, metafísico. No De anima, obra fundacional da
psicologia, Aristóteles investiga a alma a partir dos seres animados, isto é, dotados de vida.
Percebendo distintas formas de vida, distingue entre três tipos de alma, a saber, nutritiva
(capacidade de nutrir-se e reproduzir-se), sensitiva (capacidade sensível, afetiva e motora) e
racional (capacidade de inteligir e querer), de modo que os níveis superiores suprassumem as
funções dos inferiores.
Durante o período tardo-antigo e o início do medievo, tanto entre cristãos quanto
entre pagãos, a psicologia platônica foi praticamente exclusiva. As únicas exceções notáveis do
domínio platônico em favor de um aristotelismo estrito foram Alexandre de Afrodísias e João
Filipono, filósofos peripatéticos de grande importância. No meio intelectual do neoplatonismo
tardio, predominantemente pagão, entre o séc. V e o VIII, houve a tentativa de conciliação entre o
modelo platônico e o aristotélico, o que resultou em diversos comentários de inspiração platônica
ao De Anima de Aristóteles, dentre os quais sobressaem os escritos por Temístio e Simplício. Do
lado cristão ocidental, a psicologia platônica foi dominante por meio de sua forma agostiniana,
que, prescindindo do reencarnacionismo platônico, deu à estrutura imaterial e racional da alma
um caráter trinitário baseado na ideia cristã do ser humano como Imago Dei. Na Idade Média,
contudo, o cenário muda convulsivamente.
Os séculos XII e XIII viram a entrada da obra especulativa de Aristóteles no mundo

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 1


latino, mediada por Alfarábi, Avicena e Averróis. A recepção deste conteúdo se deu, basicamente,
através de três posições distintas: 1) albertista/tomista; 2) agostiniana arabizada; 3) averroísta.
Depois de algum tempo, o agostinismo deu lugar ao escotismo; e ao averroísmo se somou o
nominalismo. Aqui, em termos simples, pode-se dizer que há a definição dos termos básicos da
discussão psicológica até Kant.
Os dominicanos – tomistas, principalmente – entendiam a alma como forma do
corpo, isto é, a única e verdadeira forma substâncial do composto humano, na qual, como em
Aristóteles, há a união das funções vegetativas, sensitivas e espirituais; o agostinismo medieval,
muito influenciado pela doutrina de Avicena e Avicebron, defenderá a pluralidade de formas
substanciais (doutrina ausente no pensamento do Agostinho histórico) o que impacta diretamente
sua concepção da alma humana; o averroísmo seguirá a interpretação mais naturalista possível
de Aristóteles, defendendo a mortalidade intrínseca da alma e a unidade do intelecto agente; o
escotismo focará sua psicologia no desenvolvimento do binômio amor-vontade, o que iniciará
a tendência voluntarista de parte da psicologia moderna; o nominalismo, por fim, simplificará
a compreensão da estrutura da alma e colocará seu assento na parte sensível e animal – este
processo se inicia com os franciscanos espirituais, ainda no séc. XIII, como, por exemplo, Pedro
Olivi, que afirma: “o ser humano é uma besta dotada de intelecto”, isto é, uma contradição entre
a pura sensibilidade irracional, corpórea, e um espírito racional.
O conflito entre estas escolas se estende durante todo o Renascimento e o início do
Barroco, encontrando importantes desenvolvimentos nas obras de Marsílio Ficino, Cardeal
Caetano, Nicolau de Cusa e Francisco Suárez. Haverá, também, o ressurgimento da psicologia
hermética ou esotérica com Giordano Bruno, que influenciará parte do idealismo alemão. No
entanto, a obra desse período que influenciará mais diretamente o desenvolvimento da psicologia
moderna será o Curso dos jesuítas Conimbricenses, publicado ao longo da última década do séc.
XVI. É a partir dele que Descartes, ainda no Colégio de La Flèche, aprenderá os rudimentos da
filosofia escolástica que darão base para a sua própria. Destaca-se, neste ponto, a ideia de um
sentido agente, sensibilidade criativa em relação aos sentidos que atribui a primazia dos sentidos
internos à imaginação. Este é um passo importante rumo ao dualismo cartesiano, pois oferece
uma ferramenta conceitual capaz de permitir certo conhecimento sensível apesar do caos da
sensação. Tem-se, aqui, o fim da continuidade formal estabelecida por Santo Tomás entre razão

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superior e razão inferior, isto é, entre intelecto agente e cogitativa. Na verdade, todos os sentidos
internos serão de um modo ou outro diluídos num conceito genérico de imaginação. Ainda que
não o seja de modo definitivo e determinista, esta simplificação coloca o problema da psicologia
nos termos que levarão à discussão subsequente.
No que diz respeito à psicologia, tanto Locke quanto Descartes – assim como Descartes,
Locke também foi profundamente influenciado pela escolástica tardia4 – compartilham
diversas premissas fundamentais: a supracitada diluição dos sentidos internos à imaginação,
o uso polivalente de “ideia” para significar conceitos, imagens e sensações, a afirmação da
substancialidade da alma etc. O que realmente distinguia a ambos era o modo como concebiam a
relação entre alma e corpo. As diferenças entre a psicologia racionalista e a empirista se acentuam
com o passar dos séculos. A tradição empirista radicalizará seu apelo exclusivista em relação
aos sentidos caindo num nominalismo estrito – como o de Hume ou Mill –, e o racionalismo
buscará deduzir a realidade e imortalidade da alma, independente do corpo, a partir de princípios
supostamente evidentes.
Já no séc. XVIII, Christian Wolff buscará resolver o problema da distinção entre o âmbito
racional e o sensível através da oportuna diferenciação entre psicologia racional e psicologia
experimental, que representa um avanço dentro do contexto moderno. Porém, a distinção
wolffiana não durará muito tempo. Kant será um grande crítico da psicologia, argumentando que
a psicologia racional não tem razão de ser fora da razão pura, o que, por sua vez, demonstraria

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 1


seu caráter não científico (Crítica da Razão Pura); ao passo que a psicologia experimental seria
impossível sem a aplicação de um método estrito e quantitativo, isto é, aos moldes da física
(Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft) – o que, para ele, era impossível. Assim,
restaria apenas a psicologia transcendental e seu conhecimento do homem fenomênico. Como
resposta ao desafio kantiano, tem-se, num primeiro momento, a tentativa de fundar a psicologia
racional (espírito subjetivo) no Espírito Absoluto, como faz Hegel; ou, como fazem Fries, Herbart
e Beneke, buscar uma fundamentação concorde com a “metafísica das ciências naturais”. A
primeira opção não resistiu aos avanços técnicos e científicos da Era Industrial, de modo que a
discussão foi, por algum tempo, dominada pelo segundo grupo.
O consenso entre os especialistas no período indica que a formalização da psicologia
científico-experimental se dá com a obra Elemente der Psychophysik, publicada por Gustav
Fechner em 1860. Ademais, também são importantes cofundadores da psicologia científica
Wilhelm Wundt, autor de Grundzüge der physiologischen Psychologie (1874), e William James, com
The Principles of Psychology (1890). Em contrapartida, havia um forte movimento de oposição
à redução naturalista da psicologia. Pensadores centrais como Hermann Lotze (Mikrokosmus,
publicado entre 1856–64), Franz Brentano (Psychologie vom empirischen Standpunkte, de
1874), Carl Stumpf (Erkenntnislehre, publicado em dois tomos entre 1939-1940), Kurt Koffka
(Principles of Gestalt Psychology, de 1935) e muitos outros, defendiam a legítima possibilidade de
uma psicologia aberta à metafísica e à idealidade, sem abrir mão do rigor da pesquisa científica.
Destaca-se, também, o aporte feito pela tradição fenomenológica, que, por meio de seu método
voltado à investigação da essência dos atos e afecções humanas, redescobriu a riqueza própria
do mundo interior de cada pessoa. Veja-se, por exemplo, a obra Beiträge zur philosophischen
Begründung der Psychologie und der Geisteswissenschaften, publicada por Edith Stein em 1922.
Esta obra ganha bastante relevância quando se tem em mente que Stein retira a psicologia das
mãos da ciência natural sem devolvê-la totalmente à filosofia, colocando-a entre as “ciências do
espírito” e a antropologia filosófica. Neste ponto, sua tentativa foi parcialmente precedida por
Windelband e Dilthey. Contudo, ambos careciam duma viva apreensão da riqueza intencional da
vida interior humana.

4 Cendejas Bueno, J. L.; Gómez Díez, F. J.; Prieto López, L. J. Actualidad y proyección de la tradición esco-
lástica: filosofía, justicia y economía. Na. Sem. His. Filos. 39 (1), 2022: 181-191.

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Após os anos mais conflituosos do estabelecimento da psicologia como ciência, ela se


divide em dois ramos, a saber, a psicoterapêutica e a psicologia científica ou empírica. De certo
modo, as psicoterapêuticas de Freud, Adler, Jung, Frankl, Binswanger e Skinner são psicologias
racionais aplicadas, ainda que por vezes se servindo de instrumentos científicos. Cada uma
delas traz uma visão completa da estrutura da psiquê humana, assim como de sua posição no
conjunto das coisas existentes. Fundamentalmente, a psicoterapia só começa a desenvolver-se
como técnica terapêutica estrita – uma arte no sentido aristotélico, como a medicina – a partir
dos últimos desenvolvimentos da Terapia Cognitivo-Comportamental.

1.4.2 As ciências da linguagem

Formalmente, como será exposto mais tarde, a filologia começa no Renascimento Italiano,
por conta da redescoberta das línguas clássicas orientais proporcionada pelo estreitamento dos
laços com vários eruditos bizantinos. Contudo, pode-se identificar que o início da filologia se
mescla com a exegese das Escrituras judaico-cristãs e dos poemas homéricos. O primeiro grande
esforço neste sentido foi, muito provavelmente, a redação da Septuaginta pelos sábios judeus de
Alexandria.
Mas, antes, já havia ali certa tradição filológica pagã iniciada por Aristófanes de Bizâncio
e Aristarco da Samotrácia, este último, autor da primeira edição crítica da Ilíada de Homero.

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 1


Depois, já nos primeiros séculos da Era Cristã, Alexandria continuará sendo um polo importante
de trabalhos exegéticos e filológicos. Talvez o melhor exemplo desse empenho durante o período
sejam os comentários de Orígenes, assim como sua edição crítica da Bíblia Hebraica, a Hexapla.
Poucos séculos depois, um trabalho de semelhante – ou maior – envergadura será realizado
por Jerônimo, que realizará uma edição crítica da Vetus Latina a partir do cotejamento com os
originais, posteriormente chamada de Vulgata.
Paralelamente a isso, algo semelhante acontecia em menor escala no mundo da lírica latina.
A figura do gramático era central para a educação clássica; sua principal função era ensinar os
fundamentos da linguagem – poética, retórica ou argumentativa – e interpretar os grandes expoentes
do idioma. Nesta época, assim como será no Renascimento, a filologia estava essencialmente
vinculada à hermenêutica, ou seja, com a arte da interpretação dos clássicos. Gramáticos como
Sérvio e Macróbio serão modelos para a posteridade, intérpretes, respectivamente, de Virgílio e
Cícero. Durante a Idade Média, algo dessa tradição clássica se conserva nas Etimologias, de Isidoro
de Sevilha. No entanto, a perda de centralidade da interpretação literal das Sagradas Escrituras,
em favor de interpretações focadas quase exclusivamente nas dimensões moral e espiritual, faz
com que a filologia perca muito de sua força.
A tradição filológica retorna com a redescoberta dos clássicos na Renascença e se torna
praticamente indispensável para qualquer homem culto dos séculos XV a XIX. Este período
verá a ascensão de diversas escolas e correlação entre a filologia e diversos temas centrais para a
filosofia, como a discussão entre os Irmãos Grimm e Schelling sobre a origem da linguagem e a
relação entre texto e contexto sócio-linguístico, proposto como necessário à interpretação pela
hermenêutica filosófica.

1.4.3 O direito e a política

O direito, tal como o conhecemos, nasce independente da filosofia, sob o desenvolvimento


da lei positiva e consuetudinária entre os romanos. No entanto, logo será objeto de reflexão
filosófica. O estoicismo de Cícero, filósofo e jurista, dará uma das primeiras abordagens explícitas
às doutrinas do direito natural e da lei natural:

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“A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável,


eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora
com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos
bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem
derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento
pelo povo nem pelo senado; não há que procurar para ela outro comentador
nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, – uma antes e outra
depois, mas uma, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os
tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é Deus, seu inventor,
sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem renegar-
se a si mesmo, sem despojar-se do seu caráter humano e sem atrair sobre si a
mais cruel expiação, embora tenha conseguido evitar todos os outros suplícios”.
(CÍCERO, 2018)

Como se vê, Cícero defende uma lei universalmente válida inscrita na natureza humana e
que obriga moralmente cada homem a agir conforme ela. Este ensinamento também será adotado
pelos cristãos, a partir da versão defendida pelo Apóstolo Paulo: “Os pagãos, que não têm a Lei,
fazendo naturalmente as coisas que são da Lei, embora não tenham a lei, a si mesmos servem de
lei; eles mostram que o objeto da lei está gravado nos seus corações, dando-lhes testemunho a sua
consciência, bem como os seus raciocínios, com os quais se acusam ou se escusam mutuamente”
(Rm 2,14-15).

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 1


Este trecho foi interpretado pelos cristãos como um apelo claro à lei natural, inscrita por
Deus no coração dos homens5. Tal entendimento foi dominante durante toda a Idade Média,
sendo o direito uma interface privilegiada para a discussão da dimensão social da filosofia e
da teologia morais. Têm-se, por exemplo, no Tratado da Lei de S. Tomás de Aquino, a seguinte
definição de caráter metafísico: “a lei natural é a participação da criatura racional na lei eterna”
(Iª-IIae q. 91 a. 2 co.). Ao mesmo tempo, é interessante notar que Tomás cita várias vezes ao longo
de sua obra o Digesto, compilação da legislação romana feita pelo Imperador Justiniano, no séc.
VI.
Neste momento, até meados do séc. XVI, era comum que os filósofos usassem da tradição
legislativa romana para fundamentar e discutir posições éticas e metaéticas. Talvez o melhor
exemplo da sobrevivência dessa atitude seja a Escola de Salamanca, com Francisco de Vitória,
Domingos de Soto, Domingos Bañez e Francisco Suárez. Algo dessa mesma tradição também
impactou diretamente no desenvolvimento inicial do pensamento jurídico moderno, moldando
a estrutura do pensamento político e legal de Hugo Grócio, John Locke e mesmo Thomas Hobbes.
Na Modernidade tardia, por assim dizer, o direito continuou sendo objeto de reflexão constante
dos filósofos, mas, agora, não interessava tanto a tradição quanto a lei positiva. Na filosofia alemã
clássica, nomes como Kant e Hegel dedicaram muitos esforços ao tema, assim como Marx e os
hegelianos de direita. Durante o séc. XX houve uma profusão de escolas de pensamento jurídico,
de fenomenólogos a neopositivistas.
Outro ponto importante a ser destacado é a relação entre filosofia, direito e política. Até
o séc. XIV estas três disciplinas sempre andaram juntas dentro dos sistemas teóricos, mas, com
o acirramento das disputas entre a Igreja e o Estado e a polêmica sobre as relações com o poder
temporal promovida pelos franciscanos espirituais, houve um progressivo afastamento. Foi o
secularismo da Escola peripatética paduana, sob a égide da doutrina de Marsílio de Pádua, que
marcou a passagem definitiva para a política moderna consumando os processos que estavam
em andamento. Pouco depois, Maquiavel proclamará a completa independência da política em
relação à moral, abrindo espaço para o surgimento da ciência política. Hoje, ambiente do niilismo
moral e jurídico, a ciência política serve aos propósitos governamentais, ao passo que o direito
se vê em posição de formar e aplicar a lei positiva à revelia de uma visão objetiva e natural da
moralidade, constituindo-se como uma tarefa estritamente técnica.
5 Cf., por exemplo, a Carta 83 de Ambrósio de Milão.

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PIEPER, Josef. In Defense of Philosophy. San Francisco: Ignatious Press, 1992.

Truth As Transcendental: Ontological Foundations | Dr. Edward Feser:


https://www.youtube.com/watch?v=calku1OzOnE

Science Needs Interpretation (Aquinas 101):


https://youtu.be/GQXOgp6fYdk

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 1


Scientific Evidence Against Reductionism (Aquinas 101):
https://www.youtube.com/watch?v=tNJbhQVVz8I

¿Puede la filosofía ser una ciencia natural? Enrique Moros:


https://youtu.be/P3YYI26aT5A

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

02
DISCIPLINA:
FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PSICOLOGIA
PROF. HENRIQUE ELFES
PROF. ME. GABRIEL DE VITTO
PROF. DR. ANDRÉ FERNANDES

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................. 20
1. PSICOLOGIA RACIONAL E PSICOLOGIA EXPERIMENTAL.................................................................................21
1.1 QUE É PSICOLOGIA?.............................................................................................................................................21
1.2 A PSICOLOGIA ARISTOTÉLICA............................................................................................................................21
1.3 A PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA.................................................................................................................. 22
1.4 A PSICOLOGIA “IDEOLÓGICA”............................................................................................................................ 22
2. KARL JASPERS E A PSICOLOGIA EXISTENCIAL................................................................................................ 23
3. UMA GRANDE QUESTÃO VINCULADA................................................................................................................ 24

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INTRODUÇÃO

Comparação entre psicologia racional aristotélico-tomista e a psicologia experimental:


Christian Wolff, Brentano. Psicologia e estrutura do cérebro. A fase ideológica: Freud, Adler e Jung.
Inícios: Gustav Fechner, Wilhelm Wundt et al. A teoria da Gestaltpsychologie. A revolução da
psicologia fenomenológico-existencial: Jaspers e as correntes derivadas.

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 2

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1. Psicologia racional e psicologia experimental


1.1 Que é psicologia?
A psicologia é uma ciência que se dedica a estudar a vida interior dos seres vivos em
suas estruturas básicas e seus modos fundamentais de externalização. Devido a abrangência de
seu objeto próprio, a psicologia se configura a partir de duas subciências fundamentais (racional
e empírica) e uma arte (psicoterapia ou psicologia aplicada). A mãe de todas as disciplinas
psicológicas é a psicologia racional, que encontra sua primeira formulação sistemática em
Aristóteles, como já visto na unidade I. Agora, num primeiro momento, nos deteremos no
modelo aristotélico.

1.2 A psicologia aristotélica


O De Anima (DA) é um marco indispensável dentro do corpus aristotelicum, pois marca a
transição Física, isto é, da Filosofia da natureza, para a Metafísica. Esta passagem está presente na
própria estrutura do livro, que parte da análise da estrutura fundamental do orgânico em si (Livro
I / os viventes em geral), com suas faculdades nutritivas e reprodutivas, passando pelo sensível em

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 2


si (Livro II / os animais em geral), capazes de afetos e movimento local, culminando na reflexão
sobre o noético em si (Livro III / os espíritos em geral), sobretudo dotados de potência intelectiva.
Cada um destes momentos do DA é complementado por outras obras do autor: o Livro I resume
as investigações das obras botânicas1 e o Livro II condensa o trabalho das obras zoológicas2; por
sua vez, o caso do Livro III é o mais interessante, pois, nele, ao tratar da psicologia das almas
imateriais, estão contidas discussões presentes na metafísica, na ética e na lógica3. Encontrar e
expressar a correta correlação entre esses três âmbitos foi um dos maiores desafios dos intérpretes
do DA desde a Antiguidade. Alguns, como Alexandre de Afrodísias, faziam prevalecer os livros
I e II sobre o III; enquanto outros, como Temístio, propugnavam o critério inverso. Por conta da
abordagem naturalista ao DA, muitos dos primeiros cristãos preferiram a psicologia platônica –
claramente voltada à defesa da imortalidade da alma, mas, também, muito pessimista em relação
ao corpo – à aristotélica.
No entanto, é necessário compreender qual é o lugar próprio da biologia metafísica de
Aristóteles, que, por sua vez, fornece toda a fundamentação para a sua concepção ética, lógica
e gnosiológica. Durante certo tempo, inclusive, a doutrina aristotélica foi entendida em termos
psicologistas – isto é, como uma redução de toda a filosofia à psicologia –, mas é preciso entender
a circularidade própria do aristotelismo. A especulação de Aristóteles sempre parte da experiência
sensível e material, do dado mais evidente dos sentidos, analisa-o, para depois voltar-se sobre
o dado inteligível e imaterial mais evidente, ou seja, o ato intelectivo. A partir da intelecção
propriamente dita desvelasse o domínio das realidades imateriais, a saber, a metafísica. Agora,
o intelecto mantém certa tensão intencional em relação ao sensível concreto, levando-o de volta
aos dados da experiência sensível. Dentro deste movimento circular do conhecimento humano,
a psicologia ocupa o ponto médio da ascensão à metafísica e do descenso à física.
Portanto, o ethos da psicologia aristotélica é determinado pela ênfase que se dá ao polo
superior ou inferior. Caso o intérprete valorize mais a metafísica – como foi o caso de S. Tomás
de Aquino –, a continuidade hermenêutica do DA se mostrará ascensional; por outro lado, se
1 De plantis.
2 Principalmente: Parva naturalia; Historia animalium; De partibus animalium; De motu animalium; De
generatione animalium.
3 Pelo menos Metafisica L. IX, Ética a Nicômaco e Analíticos Posteriores.

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o intérprete colocar o coração da obra aristotélica na física, o modelo se mostrará fortemente


naturalista e descensional.
Pode-se dizer, ainda, que a psicologia racional de Aristóteles já continha em si um aspecto
prático sob a forma de uma psicologia moral, ou seja, uma psicologia dos atos da vontade. No
entanto, a psicologia moral aristotélica não se identifica com psicoterapia moderna. Em primeiro
lugar, há uma grande diferença de fins, pois o fim da moral é a excelência humana, ao passo
que o fim da psicoterapia é a “saúde mental” – por mais equívoco que seja este termo. Depois, a
ciência moral possui um dúplice fundamento, na medida em que não depende apenas dos atos
morais ou atos da vontade livre, mas, em igual medida, dos bens que excitam tais atos. Contudo,
a psicoterapia não se volta à natureza dos bens, mas aos atos, analisando-os segundo a tipologia
comportamental da “saúde” e da “doença”.

1.3 A psicologia fenomenológica


Mais diretamente próxima da psicoterapia, porém ainda dentro do âmbito da psicologia
racional, está a fenomenologia4. Enquanto a psicologia aristotélica (e tomista) olha para a alma
desde um ponto de vista eminentemente objetivo, ontológico e estático, ou seja, como um objeto
entre outros objetos, a psicologia fenomenológica a vê a partir do aspecto subjetivo, noético
e dinâmico, isto é, se concentra no eu, que é causa formal (a causa material corresponde aos

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 2


“conteúdos” oriundos da percepção) da vida psíquica. Em decorrência do método aristotélico
emerge uma psicologia das faculdades ou potências da alma humana, ao passo que o método
fenomenológico se centra nos atos intencionais que animam e povoam a vida psíquica.
Sendo assim, o fenomenólogo – diferentemente do “tomista clássico”, por exemplo –
privilegiará a investigação da atividade anímica em si mesma, na medida em que se relaciona
com todo tipo de objetos possíveis. Os textos de Husserl são muito ilustrativos neste sentido.
Ele busca, geralmente, a essência própria de atos intencionais muito particulares, como o ato de
imaginar ou o ato de julgar. Para tanto, interessa mais descobrir reflexivamente a estrutura do ato
mesmo do que pensar a respeito do objeto que causa o ato ou seu conteúdo.
Aqui, o problema é identificar a origem desses atos e sua finalidade última e mais objetiva,
isto é, resta ao fenomenólogo lidar com o problema metafísico da natureza da alma, assim como
explicar seus modos de relação com o mundo possível em geral. Quer dizer, no fim das contas
entramos num movimento circular a partir do qual a visão tomista e a fenomenológica podem se
harmonizar perfeitamente: ao olhar para dentro o faço como fenomenólogo; contudo, olho para
fora como tomista.

1.4 A psicologia “ideológica”


Sigmund Freud é uma figura seminal na história da psicologia, notoriamente conhecido
pelo conceito de libido, que ele postulou como uma força de energia sexual subjacente à motivação
e ao comportamento humanos. Freud parece obcecado com a ideia de que o ato sexual é a fonte
principal, quase exclusiva, de motivação humana. Além disso, é possível argumentar que a
abordagem freudiana sofre de um naturalismo excessivo. Ao restringir todos os comportamentos
e desejos humanos a instintos, Freud parece desconsiderar qualquer aspecto não-físico da nossa
experiência. Deve-se, assim, dizer o óbvio: esta visão materialista da natureza humana falha ao
não levar em consideração as dimensões espirituais, axiológicas e morais da vida, que não podem
ser facilmente reduzidas a fenômenos puramente biológicos.
Já Alfred Adler, um nome também influente na psicologia, apresentou a vontade de poder
4 Edmund Husserl, fundador da fenomenologia, trata claramente da relação intrínseca que há entre feno-
menologia e psicologia racional. Cf. Phänomenologie und Psychologie, § 14 (HUA XXV).

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

como a principal força motivadora do comportamento humano. Segundo Adler, as pessoas estão
em constante busca de superioridade e sucesso, e é esse desejo de superar nossas limitações
percebidas que molda nossas decisões e ações. Em sua ênfase na “vontade de poder” como a
principal força motriz da ação humana, tanto Adler quanto Nietzsche parecem ignorar outros
aspectos cruciais. Particularmente, eles negligenciam nossa busca insaciável pela transcendência
e seu sentido, que está muito além da mera satisfação imanente. Ambas as teorias carecem de
uma apreciação adequada do telos, o objetivo final ou propósito da vida humana, que estaria
restrito ao âmbito puramente individual.
Carl Gustav Jung, contemporâneo de Freud e Adler, divergiu em sua abordagem, optando
por uma teoria psicológica centrada no que poderíamos denominar “panteísmo simbólico”.
Esta perspectiva postula que a psique humana é fundamentada em arquétipos universais e no
inconsciente coletivo. O panteísmo simbólico de Jung, ao enfatizar a interligação entre o humano
e o cosmos, corre o risco de confundir a linha que separa o Criador e a criação, uma distinção
crucial na filosofia clássica em geral. Por fim, Jung negligenciou a importância fundamental da
razão e do livre-arbítrio humanos.

2. KARL JASPERS E A PSICOLOGIA EXISTENCIAL

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 2


Dentro do marco fenomenológico, voltado especificamente para a psiquiatria e a
psicopatologia, destaca-se a figura de Karl Jaspers. Jaspers foi um médico e filósofo alemão, aluno
de Husserl e interlocutor muito próximo de Martin Heidegger e Hannah Arendt. Entre suas
obras mais proeminentes se encontram a Psicopatologia geral e a Psicologia das visões de mundo,
ambas publicadas ainda na juventude. Depois, com o amadurecimento da sua reflexão, Jaspers
consideraria a interrelação da consciência com o Transcendente, bem como a dependência
existencial que caracteriza a mente humana.
Para ele, a filosofia não é primariamente um conhecimento, uma ciência, verdade
científica, mas antes um esclarecimento da existência da pessoa, que se ocupa do ser como um
todo. É “verdade existencial”. Aparece onde os homens “acordam”, tomam consciência da própria
impotência e fraqueza, e querem superá-las.
Jaspers interessa-se sobretudo pelos impulsos que levam a pensar, agir e viver. Importam-
lhe as “situações-limite”, como a morte, o sofrimento, a culpa, bem como a impermanência
(historicidade) e a experiência dos seres humanos. Diante delas, para ele, fracassa o pensamento
racional. No entanto, é nelas e graças a elas que o ser humano supera o ceticismo e o niilismo, na
medida em que toma consciência de si como uma existência capaz de transcendência, de superação.
O ser humano seria marcado por quatro formas de ser ou âmbitos de vida, que
correspondem a degraus ou dimensões de realização:

1. a existência biológica, uma vontade de existir vital, brutal e desconsiderada, manifesta


em desejos de poder, fama e prazer, mas também o âmbito de experiência em que a
fenomenologia e o positivismo encontram os seus limites;
2. a consciência, âmbito do pensamento objetivo, que delimita o reino da lógica ou da
razão;
3. o espírito, que permite participar de ideias de totalidade que conferem sentido,
revelando as conexões entre as coisas conhecidas e experimentadas que se encontram
espalhadas no nosso interior;

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

4. a existência, percepção do que podemos ser. É um plano que não pode ser empiricamente
compreendido. Nele somos o que verdadeiramente somos e nos apercebemos das
possibilidades do autenticamente humano. A partir daqui é possível abrir-se para a
transcendência, para o outro ou para Deus.
Nesse caminho, o ser humano encontra as situações-limite. Na morte, na luta, no
sofrimento e na culpa, percebe a incapacidade de evitar o fracasso. É somente pela aceitação
dessas situações que atingimos a “autêntica existência”. Por um lado, as situações-limite abrem-
nos para a compreensão do outro, para a amizade, o amor e o perdão – i.e., para a transcendência.
Por outro, em última análise, exigem também, para que haja sentido, a abertura para Deus. Essa
abertura final exige os seguintes passos:

1. Deus é.
2. É possível viver contando com a condução de Deus.
3. Para isso, é preciso exigir absoluta e incondicionalmente uma superação da existência
biológica.
4. O ser humano é incompleto e incompletável.

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 2


5. A realidade do mundo tem uma existência sempre evanescente entre o nada e Deus.

3. Uma grande questão vinculada


Aqui, surge-nos uma questão central da modernidade, sobre a qual nos deteremos: a
definição do amor. Todas as épocas reconheceram vários tipos de amor: vênus (a atração sexual),
eros (a paixão amorosa), filia (o amor de amizade) etc. A sabedoria tradicional reconhece que o
amor entre homem e mulher:

1. É primariamente venéreo no homem, erótico na mulher.


2. Vênus precisa permanecer inicialmente insatisfeito para ser posto a serviço de eros.
3. Eros, por sua vez, dá origem a um amor racional, volitivo e voluntário, que preenche os
dois indivíduos, os leva a uma total entrega mútua e se concretiza nos compromissos de
exclusividade (“só você”) e fidelidade (“para sempre”).
4. A finalidade desse amor é gerar, proteger e educar os filhos e fundir o casal em um
“quadrúpede”, como diz Chesterton.
5. Esse contexto de um amor racional de compromisso permite que vênus encontre a sua
mais perfeita realização (em termos de intensidade, duração e segurança do prazer), que
eros adquira um certo grau de perpetuidade muito maior, e esses dois amores se remansem
em afeição ou carinho e em amizade, amores menos intensos do que qualquer um dos
dois originais, mas muitíssimo mais duráveis e fortes.
A modernidade destruiu passo a passo essa concepção do amor:

1. Primeiro, suprimiu-se o amor racional de entrega e compromisso pelo divórcio, como


concessão à fraqueza humana. Historicamente, isso se deu com Henrique VIII, que
resultou no divórcio aceito pelas igrejas protestantes e depois pela legislação civil. Ou
seja, gradualmente se cedeu ao pessimismo de pensar que exclusividade e fidelidade

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seriam impossíveis.
2. Com isso, se criou uma visão completamente cínica do amor, própria do iluminismo, que
poderíamos exprimir com as palavras de Voltaire: “O amor é uma questão de epiderme”.
3. Como reação contra esse cinismo, o romantismo identifica o amor com eros, o que
resulta numa sentimentalização do amor que busca intensidade na paixão de preferência
à perenidade e exclusividade. O amor passa a ser um sentimento intenso, mas temporário.
4. Com a psicologia ideológica freudiana, o amor passa a ser reduzido à libido venérea, a
vênus, e essa, por sua vez, é erigida em motor ou “energia” que move e permeia toda a
personalidade humana e todas as estruturas sociais.
5. A psicanálise freudiana domina todo o panorama cultural e literário da primeira metade
do século XX. Começa a ceder o lugar para a psicologia fenomenológico-existencial após
a segunda guerra, mas ainda gera um ramo lateral na forma dos Relatórios Kinsey, dois
enormes livros de psicologia social (Comportamento sexual do macho humano, de 1948,
e Comportamento sexual da fêmea humana, de 1953) escritos pelo zoólogo Alfred Kinsey
e alguns colaboradores. Ambos apresentam um panorama completamente freudiano do
comportamento sexual humano (altíssimos índices de divórcio, infidelidade matrimonial,
homossexualismo etc.), e advogam indiretamente pelo chamado “sexo livre” (totalmente

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 2


isento de qualquer tipo de regulação social ou cultural), que dominará o panorama
intelectual da segunda metade do século XX. Mais tarde, porém, comprovou-se que
as estatísticas apresentadas por Kinsey et al. foram em parte viciadas (elaboradas, por
exemplo, com base no público das penitenciárias americanas...) e em parte forjadas;
estudos posteriores têm mostrado um modelo de vivência social da sexualidade muito
mais próximo do tradicional, apesar de toda a propaganda contrária.
6. Outro fator relevante foi a liberação dos anticoncepcionais químicos (a “pílula” etc.),
que, por sua vez, tornou possível o sonho do “amor livre” que dominaria o movimento
hippie e toda a contracultura ocidental, defendida e inspirada por Herbert Marcuse, o “pai
da Nova Esquerda”, pensador da Escola de Frankfurt radicado nos EUA, e defensor do
marxismo cultural (para atingir a perfeita igualdade e liberdade sociais, não se trataria de
destruir as estruturas sociais, conquistar o Estado e socializar a produção, mas de destruir
as ideias, costumes, pressupostos religiosos e morais etc. que impeçam a instalação da
liberdade e da igualdade).
7. O feminismo, por sua vez, assumiu os argumentos kinseyanos para advogar por uma
liberação sexual feminina, segundo o modelo do “macho” kinseyano.
8. Os relatórios Kinsey sugeriam também a ideia de que não haveria “sexos” distintos
no ser humano – masculino e feminino –, mas apenas “orientações sexuais”. A partir
disso, alguns – notadamente o psiquiatra neozelandês John Money, o sociólogo Talcott
Parsons e o psicólogo social Geert Hofstede, desenvolveram a ideia de que a sexualidade
seria determinada não pelo “sexo biológico”, mas a partir de “papeis sociais” ou “gêneros”.
Money tentou provar essas ideias aproveitando o caso de uma criança do sexo masculino
de sete meses, David Reimer, que tinha perdido parte do pênis numa operação desastrada
de fimose. Sugeriu-se que o pequeno fosse educado como menina e mais tarde se
submetesse a uma operação de mudança de sexo; o fato de ele ter um irmão gêmeo,
Brian, era ideal para testar as suas teorias de que a “identidade sexual” seria apenas uma
construção social. David passou a receber os tratamentos com hormônios para mudança
de sexo e tinha consultas semanais com Money, cujos relatórios sobre o caso relatavam

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apenas resultados extremamente positivos. No entanto, David detestava as sessões com


o psiquiatra, entre os 9 e os 11 anos compreendeu que não era uma menina, e aos quinze
passou a viver como um rapaz. Tanto ele como o irmão, que também participava das
sessões de “reeducação sexual” com Money, desenvolveram graves problemas psicológicos:
Brian morreu aos 36 anos de overdose, e David desenvolveu uma depressão severa e por
fim suicidou-se aos 38. Antes, tinha vindo a público sobre tudo o que lhe tinham feito, e
o caso todo foi publicado pelo jornalista John Colapinto 5.

PORTA, Mario. Psicologia e Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2020.

PORTA, Mario. Edmund Husserl: Psicologismo, psicologia e a fenomenologia. São


Paulo: Edições Loyola, 2013.

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The Powers Of The Soul | Fr. James Brent, O.P:
https://www.youtube.com/watch?v=T6mqyCMvtPw

Personalism, Psychology, and Counseling:


https://youtu.be/wOMEKdVP2pI

5 John Colapinto, As Nature Made Him: The Boy Who Was Raised as a Girl (2000).

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

03
DISCIPLINA:
FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

FILOSOFIA, HISTÓRIA E SOCIOLOGIA


PROF. HENRIQUE ELFES
PROF. ME. GABRIEL DE VITTO
PROF. DR. ANDRÉ FERNANDES

SUMÁRIO DA UNIDADE

1. CONTAR O PASSADO............................................................................................................................................. 29
1. 1 HUMANISMO....................................................................................................................................................... 30
1.2 REFORMADORES CATÓLICOS.............................................................................................................................31
1.3 ILUMINISMO........................................................................................................................................................ 32
1.4 ROMANTISMO..................................................................................................................................................... 34
1.5 IDEALISMO ALEMÃO ......................................................................................................................................... 34
1.6 POSITIVISMO....................................................................................................................................................... 36
1.7 HISTORICISMO.................................................................................................................................................... 36
1.8 MARXISMO...........................................................................................................................................................37
1.9 OUTROS FILÓSOFOS DA HISTÓRIA ...................................................................................................................37
2. FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS......................................................................................................................... 38

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2.1 SOCIOLOGIA POSITIVISTA.................................................................................................................................. 39


2.2 SOCIOLOGIA WEBERIANA................................................................................................................................. 39
2.3 SOCIOLOGIA MARXISTA.................................................................................................................................... 40
2.4 UM PROJETO DE ÉTICA SOCIAL.........................................................................................................................41
2.5 SOCIOLOGIA FENOMENOLÓGICA..................................................................................................................... 42
2.6 SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA...................................................................................................................... 42
2.7 ANTROPOLOGIA CULTURAL............................................................................................................................... 42
2.8 CIÊNCIAS DA RELIGIÃO E RELIGIÃO COMPARADA........................................................................................ 43
2.8.1 “UNITARISTAS”................................................................................................................................................. 43
2.8.2 “AUTONOMISTAS”........................................................................................................................................... 45

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1. CONTAR O PASSADO
Desde as primeiras abordagens sistemáticas à filosofia, com Platão e Aristóteles, os
filósofos perceberam a importância de se fazer, pelo menos, um apanhado crítico das opiniões
anteriores enunciadas sobre o tema estudado. Veja-se, por exemplo, o Timeu platônico e a
Metafísica aristotélica. Este movimento do espírito reflexivo, que sente a necessidade racional
de considerar o que veio antes, transcende a atividade filosófica e se mostra presente em todas
as esferas da reflexão humana. No Egito Antigo, ainda nos tempos dos faraós, havia o costume
de erigir estelas comemorativas para se narrar e recordar os grandes eventos, como a vitória
em uma guerra, a construção de um templo, um matrimônio real etc. – o mesmo fenômeno
pode ser visto em outras civilizações do Oriente Próximo. Na Grécia, encontram-se as grandes
Histórias de Heródoto e Tucídides. Em Roma, seguindo o modelo da historiografia grega, tem-se
historiadores como Tácito, Plínio o Velho, Plínio o Jovem e Suetônio. Ao norte, entre os povos
celtas e germânicos, abundam as sagas histórico-míticas que cantam a origem dos povos, das
casas reais etc. De certo modo, pode-se dizer que todas essas manifestações da reflexividade
histórica, ainda que distantes do método historiográfico moderno, apontam para o caráter
essencialmente temporal e finito do ser humano, que busca por uma apreensão da totalidade.
Em última instância, as pessoas humanas sempre pensam as coisas eternas e perenes com seu

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


tempo e a partir de seu tempo, de modo que a investigação e memória do passado são motivadas
pela necessidade de esclarecer algum aspecto existencial do presente ou do futuro. Mesmo a
metafísica mais bem-acabada, por ser feita por pessoas humanas enraizadas em um determinado
tempo histórico, sempre precisa ser rememorada e reelaborada pelas gerações que se seguem
sucessivamente.
No entanto, como já aludido, esta historiografia antiga estava distante do que hoje
entendemos por História. Naquela altura, a História voltava-se para o mítico tanto quanto para
o factual. O ponto de virada pode ser encontrado no advento do cristianismo, no qual, segundo
Ratzinger, “a revelação estava ligada à História”1. A verdade do cristianismo, diferentemente do
que ocorre em outras religiões, depende que os fatos narrados em seus livros sagrados realmente
tenham acontecido. Neste sentido, a tradição cristã, a começar pelo Novo Testamento, busca ater-
se às fontes testemunhais dos eventos narrados, realizando uma crítica constante de possíveis
acréscimos ou interpolações espúrias. A título de exemplo, pode-se citar exclusão dos evangelhos
apócrifos do cânon neotestamentário. Estes, apesar de piedosos, não refletiam a verdade histórica
daquilo que, para os cristãos, efetivamente aconteceu. Ademais, é notável a importância que a
história tem para os cristãos dos primeiros séculos. Além da preocupação por mapear as fontes
do texto bíblico2, com o objetivo de alcançar maior rigor em relação ao conteúdo originário, são
importantes as histórias eclesiásticas, como aquela escrita por Eusébio de Cesareia, no século IV,
que pretendia narrar, a partir das fontes disponíveis, o desenvolvimento da comunidade cristã do
período apostólico à época do autor.
A obra de Eusébio começa uma tradição que leva à proliferação de histórias eclesiásticas
relativas às Igrejas locais (veja-se, por exemplo, A História dos Francos3, escrita por Gregório
de Tours com a intenção de narrar a conversão da França), inúmeros martirológios, e, a partir
dos séculos VIII e IX, proto-histórias nacionais (como os Anais do Reino dos Francos4), crônicas
1 RATZINGER, Joseph. O Sal da Terra. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 51.
2 Em relação a esse ponto, destaca-se e ilustra muito bem o empenho de Orígenes, teólogo cristão do III
século, por contrastar os diversos manuscritos circulantes nos mais variados idiomas a fim de formular uma edição
crítica da Bíblia Hebraica (Hexapla). Alguns séculos depois, em meados de 400 d.C., S. Jerônimo empreende a
mesma tarefa.
3 DE TOURS, Grégoire. Historie des Francs. Paris : Belles Lettres, 2019.
4 ANÔNIMO, Annales du Royaume des Francs. Paris : Belles Lettres, 2022.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

etc. Contudo, como se pode imaginar, este movimento de expansão do interesse pelo passado
nem sempre foi acompanhado de um empenho de esclarecimento das fontes. Em relação a isto,
pontua-se que, ao longo da Idade Média, tornou-se comum que as narrativas históricas incluíssem
elementos fantásticos, lendários, com o objetivo de edificar os leitores. Aqui, surgem obras como
a Legenda Áurea5 e a Chanson de Roland6. No entanto, ao privilegiar o aspecto moral das eventos,
muitas vezes em detrimento da acurácia factual, a historiografia medieval perdeu muito do senso
crítico tão vivo entre os primeiros historiadores do cristianismo. Como mostra Christopher
Celenza7, este processo só começa a ser revertido no século XV, com o Renascimento Italiano.
Destacava-se, neste período, o movimento filológico de retorno às línguas antigas,
agora possibilitado pela massiva imigração de bizantinos à península itálica devido à queda de
Constantinopla, em 1453. A filologia foi, em certo sentido, a primeira impulsionadora das ciências
humanas modernas. Baseada no estudo comparativo das fontes e na busca por manuscritos
originais, os filólogos permitiram o surgimento de critérios fixos para a pesquisa de documentos
e obras antigas. Ao contrário da maioria das ciências textuais anteriores, a filologia prescindia
da especulação para se ater à clarificação e verificação de textos. E, apesar de soar a alguns como
mero pedantismo, o giro filológico do Renascimento realmente mostrou-se fundamental para o
estabelecimento da historiografia moderna, em particular, e das humanidades, no geral. Neste
momento, a revolução da cultura não partia mais do ambiente universitário, como ocorreu no
século XIII, mas se originava da força de livres-pensadores dedicados ao cultivo das letras e das

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


artes liberais, os chamados humanistas.

1. 1 Humanismo
Lorenzo Valla8 foi um dos humanistas mais importantes de seu tempo. Assim como vários
deles, foi sacerdote católico, gramático, filólogo, filósofo e historiador. Valla ficou conhecido
por suas análises da Donatio Constantini, um antigo documento que supostamente atestaria a
concessão da autoridade do Império Romano do Ocidente ao Papa, a partir das quais constatou
que era falsa. Valla também foi um dos primeiros a rever a Vulgata (Bíblia de São Jerônimo)
usando o conhecimento das línguas antigas. Foi, sobretudo, um potente promotor do uso clássico
da língua latina e da leitura crítica da literatura cristã. Deste modo, Valla foi o proto-fundador
do modo moderno de se pensar a história9, isto é, como uma constante revisão crítica de fatos
passados transmitidos através de textos, assim como o ancestral direto de personagens centrais
como Erasmo de Roterdã10, Espinoza11 e a tradição iluminista12. Ainda, agregando a este aspecto,
a crítica de Valla será adorada, endossada e reforçada durante o século XVI pela Reforma
Protestante.
5 DE VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
6 ANÔNIMO, La Chanson de Roland. Paris: Belles Lettres, 2020.
7 CELENZA, Christopher S. The Italian Renaissance and the Origins of the Modern Humanities: An Intel-
lectual History, 1400–1800. Cambridge: Cambridge University Press, 2021.
8 Nauta, Lodi, “Lorenzo Valla”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2021 Edition), Edward N.
Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/fall2021/entries/lorenzo-valla/>.
9 “Valla foi o primeiro a criar aquela forma de crítica aos dogmas que foi praticada no séc. XVII por Bayle
e até no séc. XVIII por Lessing. Ainda que deixe a decisão para uma outra instância, Valla postula que a investiga-
ção seja conduzida exclusivamente a partir do ponto de vista e com os meios da razão. A razão é o “melhor autor”;
aquele que não pode ser suplantado por nenhum outro testemunho”. CASSIRER, Ernst. Indivíduo e Cosmos na
Filosofia do Renascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.131.
10 Rummel, Erika and Eric MacPhail, “Desiderius Erasmus”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Win-
ter 2021 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2021/entries/erasmus/>.
11 ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
12 CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Editora Unicamp, 1992, págs. 267 – 313.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

A bem da verdade, Erasmo se encontrava entre o clima revisionista inaugurado por


Valla, a quem considerava um mestre, e a espiritualidade católica norte-européia, sumamente
representada pela obra De Imitatione Christi, que buscava uma renovação da fé por meio da
aproximação aos Padres da Igreja, do estudo das Sagradas Escrituras e da busca pela simplicidade.
Esta aparente contradição se resolve quando se entende que Erasmo foi um filho de seu tempo.
Para ele, buscar a pureza da fé implicava abandonar as disputas escolásticas focando as energias da
alma no cultivo religioso e sapiencial do espírito. Graças a esta inclinação, move-se decididamente
contra as escolas universitárias do século XV e XVI, tendo deixado para a posteridade um breve
manifesto que marcou muito bem o ethos humanista de sua época:

“Eles são fortalecidos com um exército de definições escolásticas, conclusões,


corolários e proposições explícitas e implícitas…. Eles discutem sobre conceitos,
relações, instantes, formalidades, quididades e ecceidades, que um homem
não poderia perceber a menos que, como Linceu, ele pudesse ver através da
escuridão mais negra coisas que não existem. Tu te livrarias mais rápido de um
labirinto do que das obscuridades tortuosas de realistas, nominalistas, tomistas,
albertistas, ockhamistas e escotistas... Tal é a erudição e a complexidade que
todos eles exibem que imagino que os próprios apóstolos precisariam da ajuda
de outro Espírito Santo se fossem obrigados a discutir esses tópicos com nossa
nova geração de teólogos13”.

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


Em contraposição ao que considerava “obscuridades tortuosas” provenientes dos
raciocínios escolásticos, Erasmo trabalhou assiduamente na elaboração de uma nova edição
crítica das Sagradas Escrituras, a partir dos recém encontrados manuscritos bizantinos, na
qual aplicou exaustivamente o método filológico desenvolvido pelos renascentistas italianos.
Concomitantemente, dedicou-se à edição das obras de vários dos Padres da Igreja14, juntamente
com o humanista espanhol Luís Vives. Ao encarar a renovação espiritual de sua cultura em
termos predominante editoriais, baseados na investigação e análise crítica das fontes textuais,
Erasmo sinaliza uma mudança de época e de mentalidade. Agora, a História não é apenas o meio
existencial no qual se enraízam as ideias dos homens, nem mesmo, simplesmente, o curso da
História Sagrada, mas algo feito e mantido pelos homens com os melhores recursos disponíveis.
Há, então, o deslocamento para uma visão antropocêntrica da História e da cultura.

1.2 Reformadores Católicos


Do outro lado, entre os Reformadores Católicos, também começa um trabalho de
reelaboração das pesquisas históricas segundo as exigências dos novos tempos15. Destaca-se,
aqui, o Cardeal César Barônio, do qual diz Daniel-Rops:

“Os seus Anais Eclesiásticos, em que tratou do desenrolar do passado cristão,


empenhando-se em fixar com exatidão a data de todos os fatos essenciais,
estabelecendo os acontecimentos com base em documentos incontestáveis,
constituíram uma obra monumental que demorou cerca de trinta anos a ser
escrita e à qual a História deve gratidão. Profundamente honesto, este antepassado
da crítica histórica pensava que se presta “mais serviço à Igreja sepultando no

13 Rummel, Erika and Eric MacPhail, “Desiderius Erasmus”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Win-
ter 2021 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2021/entries/erasmus/>.
14 Cf. FONTÁN, Antonio. Príncipes y humanistas: Nebrija, Erasmo, Maquiavelo, Moro, Vives. Edição Kind-
le: Marcial Pons, 2008.
15 Com a Reforma Protestante, surgiram, na Europa Reformada e Luterana, dezenas de libelos e panfletos
tão fantasiosos quanto – se não mais – as crônicas medievais, versando todo tipo de fábula e sátira a respeito da
História da Igreja, da Antiguidade ao séc. XVI.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

silêncio fatos supostamente gloriosos para ela, mas não comprovados, do que
sustentando fatos inexatos ou falsos”; as suas pesquisas nos arquivos pontifícios
mostraram-se muito adiantadas em relação aos métodos da época”16.

No entanto, depois da convulsão expansiva dos séculos XV e XVI, o avanço das investigações
historiográficas arrefece. Neste período intermediário, porém, ainda há uma elaboração constante
do método histórico-crítico. Baruch de Espinosa, conhecido pelo seu panteísmo à la more
geometrico, contribui com a leitura naturalista e dessacralizada das Sagradas Escrituras, que será
importante para a crítica histórica do séc. XIX; Malebranche, pai do ocasionalismo, também se
dedicou à crítica textual; os mauristas, monges beneditinos, dedicaram-se à edição crítica de
documentos e autores eclesiásticos; os bolandistas, em sua maioria sacerdotes jesuítas, usaram os
aparatos disponíveis até então para devolver às lendas hagiográficas o sabor dos fatos. Percebe-se,
ao longo do desenvolvimento dos processos modernos de investigação histórica, um constante
refinamento hermenêutico proporcionado pela crítica textual que, geralmente, vem acompanhado
de um maior acesso às fontes originais. Em certo sentido, ao interpretar filosoficamente este
processo, chega-se à conclusão de que a racionalidade histórica ganha modos hermenêuticos de
operação. Deste modo, torna-se uma constante assimilação e crítica da tradição.

1.3 Iluminismo

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


Chegado o século XVIII, período do Iluminismo17, os caminhos da historiografia secular
já andavam separados da historiografia sacra. Nesta época, destacam-se Giambattista Vico,
Edward Gibbon, Voltaire e Herder. Entre os três, tem-se três modos distintos de se encarar o
problema da história e das ciências humanas – aqui, pela primeira vez, tematizado enquanto tal.
Vico foi filósofo, historiador e jurista italiano. Amante das letras clássicas, ficou conhecido entre
seus contemporâneos pela polêmica levantada por ele a respeito da historicidade de Homero.
Para Vico, assim como para a maioria dos historiadores contemporâneos, era inverossímil que
a mesma pessoa houvesse escrito a Ilíada e a Odisséia. Mais, na verdade: Vico pensava que,
muito provavelmente, Homero não passava de uma personagem mítica. Em sua argumentação,
Vico mirava, sobretudo, a falta de evidências textuais e arqueológicas para atestar a autoria
dos poemas. Contudo, sua maior contribuição se deu no campo da filosofia da história e das
ciências humanas. Na sua obra magna, Ciência Nova, defendia, contra o dogma cartesiano, a
necessidade histórica e evolutiva das verdades alcançáveis pela razão humana18. A obra de
16 ROPS, Daniel-. A Igreja da Renascença e da Reforma. II. A reforma católica. São Paulo: Quadrante, 1999,
p. 374.
17 Cf. MEINECKE, Friedrich. El historicismo y su génesis. México: Fondo de cultura, 1943.
18 “O paradigma do conhecimento verdadeiro, de acordo com a escola cartesiana, consistia em partir de
verdades tão claras e tão distintas que só poderiam ser contraditas sob pena de cair em absurdos; e em prosseguir
daí, por meio de regras dedutivas rigorosas, para conclusões cuja verdade era garantida pelas regras inquebráveis
de dedução e transformação pelas quais, como na matemática, elas eram derivadas de suas premissas inatacáveis e
eternamente verdadeiras. Era óbvio para Vico, como de fato havia sido para o próprio Descartes, que esse modelo
era inaplicável ao campo do que hoje chamamos de estudos humanísticos. Onde podemos encontrar na história,
ou na erudição clássica, ou na literatura, definições estritas, provas rigorosas, conceitos exaustivamente analisados
em seus constituintes atômicos finais, teoremas demonstrados, premissas luminosas e evidentes que conduzem
com lógica inexorável a conclusões inalteráveis? A aplicação desse esquema dedutivo a priori a qualquer narrativa
ou análise crítica de uma obra de arte, ou de uma obra ou monumento histórico ou jurídico, ou de um relato do
desenvolvimento moral ou intelectual de um indivíduo ou de uma sociedade, não produzirá resultados. Descartes
tinha visto isso com muita clareza e, consequentemente, afirmou sem rodeios que, embora a história, assim como
as viagens, pudesse fazer pouco mal como uma fonte casual de entretenimento, ela não era claramente um ramo
do conhecimento no qual o que havia sido estabelecido uma vez não precisava ser provado novamente, ou seja, no
qual o progresso científico, universalmente reconhecido como tal por pensadores racionais, era possível. “Ações
memoráveis [...] elevam a mente”, declarou ele, e podem até “ajudar a formar o julgamento”, mas, fora isso, são de

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Vico, apesar de muitas vezes esquecida, é fundamental para a reflexão da filosofia das ciências
humanas, pois, ao contrário dos modos dualistas de se pensar o homem total, por assim dizer,
que ainda estão em voga, Vico o pensa desde um ponto de vista unitário e dinâmico, atribuindo
igual valor às diversas dimensões e formas de expressão humanas, assim como às mais diversas
formas de organização social. Ao mesmo tempo, na contramão das tendências do séc. XVIII,
Vico atribuía profunda importância à dimensão espiritual do ser humano e divisava, através da
noção clássica de “providência”, uma conexão entre a história secular e a sacra. Por estes motivos,
inclusive, o historiador das ideias Isaiah Berlim classifica o italiano como um crítico da visão de
mundo iluminista. Em contrapartida, do outro lado dos Alpes, o desenvolvimento da tradição
historiográfica iniciada por Valla continuava a todo vapor. Como já aludido, pode-se atribuir o
protagonismo dessa abordagem ao inglês Gibbon e ao francês Voltaire19. O caso de Herder, como
se verá, deve ser considerado à parte.
Voltaire, mais conhecido por suas obras satíricas e polêmicas, também deu contribuições
importantes ao desenvolvimento da discussão historiográfica com a publicação de Essai sur les
moeurs et l’esprit des nations, que teve sua edição definitiva publicada em 1778. Nas palavras de
Meinecke (1943, p.73):
“Voltaire interpretou esses desejos no sentido de que o que ele queria era ler a
História como filosofia; conhecendo, não todos os eventos, mas as verdades úteis
que fluem deles; obter uma noção geral dos povos que habitaram e devastaram a
terra, conhecer o espírito, a moral e os costumes das principais nações; tudo isso

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


sustentado pelos fatos que, sem remédio, deviam ser conhecidos. Era preciso
conhecer as grandes ações dos caudilhos que haviam tornado seu povo melhor
e mais feliz. Não era preciso conhecer os detalhes das mil lutas movidas pela
ganância ou pelo desejo de poder, que hoje nada mais nos dizem. Voltaire quis,
portanto, ler a História como um filósofo, oferecer uma “filosofia da História” —
frase que Voltaire carimbou e lançou ao mundo pela primeira vez em 1756 na
introdução ao Essai, escrita posteriormente”.

Ou seja, Voltaire inaugura formalmente o que chamamos de filosofia da história, que, sob
certo aspecto, pode ser entendida como uma história especulativa do mundo humano. Ainda que
o Essai careça de valor científico, ele marca a virada definitiva, na Modernidade, para a tendência
antropocêntrica sinalizada durante o Renascimento tardio. Seguindo uma abordagem mais

pouco valor. Por que estudar o amálgama caótico de histórias infantis sobre o passado, e menos ainda as paixões
e os crimes de nosso início sombrio, quando a razão pode fornecer respostas verdadeiras e definitivas para os
problemas que intrigaram nossos ancestrais irracionais? O conhecimento válido deve ser obtido somente pelos
métodos das ciências, que Descartes e seus seguidores contrastaram com a miscelânea não científica de percepção
dos sentidos, rumores, mitos, fábulas, contos de viajantes, romances, poesia e especulações ociosas que, na visão
deles, passavam por história e sabedoria mundana, mas não forneciam material passível de tratamento científico,
ou seja, matemático. Assim, a história e os estudos humanísticos em geral foram relegados por Descartes à provín-
cia de informações diversas, com as quais um homem sério poderia passar uma ou duas horas, mas que eram um
objeto indigno de uma vida inteira de estudo e meditação. Vico não estava preparado para aceitar isso. Sua piedade
católica, por si só, era suficiente para afastá-lo de uma abordagem tão positivista, além de sua paixão pela história
jurídica e pelo aprendizado clássico como tal. No entanto, os argumentos que ele usa contra Descartes não são
teológicos, retóricos ou subjetivos. Ele se convenceu de que a noção de verdades atemporais, perfeitas e incorrigí-
veis, revestidas de símbolos universalmente inteligíveis que qualquer pessoa, a qualquer momento e em qualquer
circunstância, poderia ter a sorte de perceber em um lampejo instantâneo de iluminação, era (com a única exceção
das verdades da revelação divina) uma quimera. Contra esse dogma do racionalismo, ele sustentou que a validade
de todo conhecimento verdadeiro, mesmo o da matemática ou da lógica, só pode ser demonstrada por meio da
compreensão de como ele surge, ou seja, de seu desenvolvimento genético ou histórico”. BERLIN, Berlin. Three
Critics of the Enlightenment: Vico, Hamann, Herder. Princeton: Princeton University Press, 2013, págs. 59-60.
19 Como feito por Meinecke, pode-se atribuir importância similar a Hume, por suas História da Inglaterra e
História da Religião, e a Montesquieu, pela sua sequência de estudos históricos e sociais iniciados com Considéra-
tions sur la grandeur et la décadence des romains. No entanto, por razões extrínsecas de brevidade, nos ateremos
apenas a Gibbon e Voltaire.

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científica, que serviu de modelo durante algum tempo, Gibbon fez sua fama como historiador
com a publicação de A História do Declínio e Queda do Império Romano, em 1776. A seu respeito,
diz Meinecke (1943, p.202):

“Em sua opinião, prevalece a dualidade de critérios com que os “esclarecidos”


anteriores a 1789 julgavam o destino político dos povos, naquela época
apaixonados pela liberdade e pelos pequenos Estados, mas concordavam com
as vantagens de um despotismo esclarecido para os grandes reinos. E como
ao mesmo tempo o acontecimento histórico foi concebido em seus detalhes
com critérios pessoais e moralizantes, os déspotas benfeitores do passado
sempre mereceram uma nota especial de elogio, mostra-se o pensamento do
Iluminismo. Julgava-se, de preferência, segundo normas absolutas, mas também
se conheciam experiências práticas. A norma absoluta recomendava a liberdade,
a experiência prática um absolutismo beneficente, em que a virtude do príncipe
também podia colher os louvores da norma absoluta”.

Dado o entrelaçamento, na cosmovisão iluminista, entre um mecanicismo dogmático,


uma teleologia progressista e o pensamento liberal, sua historiografia padece de um enviesamento
fundamental causado pela absolutização de princípios extrínsecos ao devenir histórico. Este será
o problema afrontado pelo romantismo.

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


1.4 Romantismo
Johann Gottfried von Herder desde a juventude pretendia escrever uma “história da
alma humana em geral”, que cruzasse todas as épocas e povos. Herder pretendia, de certo modo,
realizar uma história em primeira pessoa, isto é, a partir da reconstrução subjetiva dos momentos
históricos do passado. Seria preciso, lhe parecia, fundar a História na investigação sistemática
do mundo interior humano. Como método da ciência histórica, Herder propunha a empatia –
Einfühlung, palavra criada por ele – ou seja, a penetração na subjetividade alheia segundo suas
próprias dinâmicas. Sua principal obra foi Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit,
que recebeu sua edição definitiva em 1791. Para a filosofia da história, a grande contribuição de
Herder, assim como do romantismo em geral, foi a luta contra a ideia de que uma causalidade
mecânica regia a História. Segundo a visão romântica, a história era expressão da vida dos povos
e não expressava mais do que a riqueza dos sujeitos que os constituíam em cada momento. Dado
este estado de coisas, entende-se que a próxima grande abordagem ao problema da História será
dada por Hegel, responsável por promover uma síntese entre o subjetivismo romântico e a ânsia
iluminista por leis universais.

1.5 Idealismo Alemão


Hegel, ao contrário do que pode parecer ao leitor desatento, está muito distante do
determinismo mecanicista. Fundamentalmente, Hegel concebia o mundo como sendo um grande
organismo vivo animado pelo Espírito Absoluto. Para ele, todas as realidades operam segundo as
leis do Absoluto e os seres humanos podem conhecê-las graças à união formal entre o Absoluto e
as consciências individuais. Esta união só seria possível na medida em que a consciência humana
pode ser encarada como o ápice do desenvolvimento universal do Espírito, que encontra na
racionalidade sua autoconsciência. Sendo assim, o próprio exercício da racionalidade humana
condizeria, em potência, com o esforço de alcançar “os pensamentos de Deus antes da Criação”,
pois, mais do que uma participação da inteligência criada na Inteligência Incriada, Hegel
propunha que a inteligência criada era uma continuação real da própria inteligência infinita.

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Aplicando esta lógica ao mundo humano, em seus aspectos sociais, culturais e históricos,
Hegel verá que ele é a máxima expressão do Espírito em constante progressão20. Neste momento,
Hegel estabelece uma distinção entre dois modos de manifestação do Espírito. A saber, o subjetivo
(relacionado à estrutura do espírito humano) e o objetivo (relacionado à vida civil, social, cultural
e histórica). Em sua grande Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, publicada 1830,
considera - depois de se livrar da acusação de apriorismo e defender que sua visão apenas leva em
conta a Providência do Espírito - a História e a historiografia nos seguintes termos:

“Ora, na existência de um povo, o fim substancial consiste em ser Estado


e manter-se como tal. Um povo sem formação estatal (uma nação como tal)
realmente não tem história, assim como existiam povos sem história antes
de se organizarem em estado, e assim como ainda hoje existem outros povos
que são nações selvagens. O que acontece e ocorre dentro de um povo tem
seu significado essencial em relação ao Estado. As meras particularidades dos
indivíduos estão muito longe desse objeto que pertence à história. É verdade
que o Espírito universal de uma época está impresso no caráter de indivíduos
excelentes de um determinado período, e que mesmo suas particularidades
constituem o meio mais remoto e obscuro em que esse Espírito se reflete, embora
com cores mais fracas; é verdade que muitas vezes até as singularidades de um
pequeno acontecimento, de uma palavra, não expressam uma particularidade
subjetiva, mas, de forma concisa e graficamente intuitiva, uma época, um povo,

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


uma civilização: identificar e selecionar fatos desse tipo é tarefa apenas de um
historiador de gênio. Por outro lado, porém, a massa de outras singularidades é
uma massa supérflua e, para acumulá-la fielmente, os objetos dignos da história
são negligenciados e obscurecidos: a característica essencial do Espírito e de seu
tempo, de fato, é sempre contida nos grandes acontecimentos”. (2021, p.873)

A partir do trecho acima, pode-se chegar a algumas conclusões a respeito da visão de


Hegel. Em primeiro lugar, a historiografia deve se fixar a na história dos Estados, pois apenas eles
possuiriam a universalidade necessária para configurar uma História em sentido estrito, sendo
o conjunto dos Estados uma manifestação ainda mais perfeita do Espírito universal. Depois,
percebe-se que o papel do historiador seria apenas explicitar com objetividade este movimento,
atendo-se ao essencial e mais totalizante. Ademais, qualquer apelo à individualidade deve ser
pesado com muita cautela, a fim de não permitir que o singular se sobreponha ao universal. Por
fim, ainda sobre Hegel, convém destacar que ele via a Filosofia como ápice da História, sendo o
estudo da História da Filosofia a própria aproximação à Verdade:

“O Espírito é aquilo que não só paira sobre a história como sobre as águas, mas
que também tece a sua própria trama na história e constitui o seu único motor.
Pois bem, no caminho do Espírito o elemento determinante é a Liberdade,
ou seja, o desenvolvimento determinado pelo seu Conceito, e a meta última é
apenas esse Conceito, isto é, a Verdade, porque o Espírito é consciência, ou seja:
a racionalidade na história. Ora, se tudo isso pode ser ao menos em parte objeto
de uma fé plausível, por outro lado, é um conhecimento filosófico”. (2021, p.875)

20 “Este movimento é o caminho da liberação da Substância espiritual, é o ato pelo qual a meta última
absoluta do mundo ocorre no próprio mundo. O Espírito, que inicialmente é apenas sendo-em-si, traz-se à cons-
ciência e à autoconsciência, e então chega à revelação e à realidade de sua própria Essência sendo-em-si-e-para-si:
então ele também se torna em seus próprios olhos exteriormente Espírito universal, ele se torna Espírito do mundo.
Como esse desenvolvimento ocorre no tempo e na existência e, portanto, ocorre como história, seus momentos e
estágios individuais são os espíritos nacionais. Cada um desses espíritos, como singular e natural em uma determi-
nação qualitativa, está destinado a ocupar apenas uma única etapa e realizar apenas uma única tarefa do ato total”.
HEGEL, G. W. F. Enciclopedia delle scienze filosofiche in compendio. Testo tedesco a fronte. Milão: Bompiani,
2021, p.869.

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Como reação à filosofia da história hegeliana, surgem, ao longo do século XIX, três escolas
que serão determinantes para as subsequentes discussões a respeito da filosofia da história e do
método histórico, a saber: o positivismo, o historicismo e o marxismo. Em paralelo a isto, em
Berlim, história tornou-se, pela primeira vez, uma faculdade independente, separada tanto da
teologia quanto do direito. O primeiro professor de história foi Barthold Georg Niebuhr (1776-
1831), que deu seu primeiro curso no semestre de inverno de 1810. Sob todos os aspectos as aulas
de Niebuhr, sobre história romana, foram um sucesso. Em 1825, Leopold von Ranke (1795-1886),
cujo estudo sobre o início da era moderna tinha o trabalho de Niebuhr sobre história romana
como paradigma, juntou-se a Niebuhr. Juntos, Niebuhr e Ranke formaram a assim chamada
“escola crítica de história”, cujo ideal era aplicar padrões de exatidão crítica à pesquisa histórica.
Os frutos de seus trabalhos foram a Römische Geschichte, de Niebuhr, publicada em 1811-12, e
a Geschichte der germanischen und romanischen Völker, publicada pela primeira vez em 1824.
Os prefácios de Niebuhr à primeira e à segunda edições, bem como o apêndice de Ranke a seu
livro, lançaram as bases para o pensamento e os ideais por trás dos novos métodos críticos. O
historiador deveria, sempre que possível, consultar as fontes originais, e todas as fontes teriam de
ser avaliadas em sua autenticidade e acurácia. Nenhuma fonte deveria ser aceita simplesmente
porque ela havia sido preservada e respeitada pela tradição. (BEISER, 2017, p.149) A partir de
então, Hegel e Ranke iniciam uma batalha campal sobre o sentido da História e os métodos
adequados ao seu estudo. Segundo Beiser (2017, p.151), a vitória de Ranke foi certa, de modo que

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


seria justo afirmar que nem mesmo Marx ou Kierkegaard tiveram mais influência no colapso do
apriorismo histórico hegeliano que a crítica de Ranke feita em 1831.

1.6 Positivismo
A filosofia positivista, iniciada na França por Auguste Comte e seu Cours de Philosophie
Positive (publicado na Alemanha em 1840), pretendia reduzir todo o saber humano às experiências
quantificáveis, isto é, ao método das ciências exatas. Para eles, como defendeu o historiador
positivista inglês Henry Buckle, a História era regida por leis causais análogas às leis físicas, o
que permitiria uma historiografia totalmente nomotética, ou seja, totalmente expressa em leis
universalmente válidas e mensuráveis. Esta visão rígida e cientificista foi de encontro à tendência
historicista que se formava sob a liderança de Gustav Droysen, que, na esteira do romantismo
alemão, pretendia ressaltar a espontaneidade de cada momento histórico, chegando ao ponto
de adotar certo relativismo epistemológico. Como se pode imaginar, a crítica relativizante de
Droysen não surtiu muito efeito sobre os positivistas.

1.7 Historicismo
Foi preciso que Wilhelm Dilthey, em sua grande Introdução às Ciências do Espírito,
publicada em 1883, resolvesse a questão estabelecendo a diferença fundamental entre as
ciências do espírito e as ciências naturais. Segundo Dilthey, as ciências do espírito dedicam-se a
compreender fenômenos em sua individualidade e singularidade, enquanto as ciências naturais
pretendem explicá-los em sua generalidade. Com esta distinção conceitual, Dilthey dá um
passo fundamental no sentido de refinar a intuição de Herder sobre o conhecimento empático
das ciências do espírito, explicitando o modo hermenêutico com o qual essa compreensão se
dá. Epistemologicamente, Dilthey fundamentará o processo compreensivo das ciências do
espírito na psicologia descritiva21, entendida como investigação experimental e especulativa da
afetividade, da racionalidade e da volição do homem. Dilthey marcou uma virada fundamental

21 DILTHEY, Wilhelm. Ideias acerca de uma Psicologia Descritiva e Analítica.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

no modo como se concebe a filosofia da história e da historiografia, apesar de ser ele mesmo um
historiador medíocre. Entre seus sucessores intelectuais mais prestigiosos encontram-se Ortega y
Gasset, Martin Heidegger e Hans Georg Gadamer. Aliás, sua presença ainda é sentida em muitos
campos da discussão contemporânea. Para citar apenas um exemplo, deve-se atribuir a ele a
popularização do conceito de cosmovisão (Weltanschauung).

1.8 Marxismo
Por fim, antes que a sequência dos acontecimentos entre de vez no séc. XX, deve-se
discutir o aporte marxista ao problema da História. Marx, como discípulo desgarrado de Hegel,
substitui a ideia do Espírito absoluto como propulsor da História Universal pela luta de classes.
Conforme expõe Kolakowski, na descrição feita em O Capital:

“(...) Marx se referiu à conexão causal entre o avanço da tecnologia e o


expansionismo ilimitado do capital. Ao mesmo tempo, argumentou que esta
tendência só podia surgir e se tornar universal sob certas condições tecnológicas,
e não indistintamente em qualquer período da história. O funcionamento e a
tendência expansionista do capitalismo eram um caso especial de um sistema de
relações mais geral que havia governado a vida social em todas as suas formas,
passadas e presentes. A descrição de Marx para tal sistema recebe o nome de

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


materialismo histórico ou a interpretação materialista da história. Foi exposto
com clareza pela primeira vez em A ideologia alemã, mas a formulação mais
bem conhecida está no seu prefácio à Uma contribuição à crítica da política
econômica (1859); a doutrina também é afirmada em versões distintas nos
escritos populares de Engels”. (2022, p. 299)

Munidos da doutrina do materialismo histórico-dialético, os marxistas desenvolverão uma


historiografia essencialmente atéia e secular, na qual as energias do historiador se concentrarão
na explicitação das estruturas de opressão próprias do período estudado, bem como focarão nas
determinações econômicas e sociais ao analisar o contexto dos eventos abordados. Durante o
período da URSS, particularmente, também havia certo senso escatológico e finalista orientado
pela dogmática marxista-leninista22. No mundo ocidental, fora do campo de ação da ortodoxia
soviética, os marxistas se dividiram entre trotskistas, gramscianos, frankfurtianos etc. cada qual
com suas particularidades na interpretação do materialismo histórico, no entanto, como solo
comum, havia a tendência à leitura progressista e revolucionária dos processos históricos23.

1.9 Outros filósofos da História


Dado o dogmatismo dos marxistas, suas ideias tiveram grande repercussão na
historiografia mundial, mas nunca foram unanimidade entre os historiadores. O séc. XX viu o
nascimento de uma amplíssima variedade de escolas historiográficas voltadas à investigação de
muitos períodos, com diferentes abordagens metodológicas e filosóficas. Ainda no começo do
século, houve o surgimento de algumas obras que marcaram época e que traziam consigo traços
fundamentais das discussões precedentes. Tem-se, por exemplo, historiadores com afinidades

22 Cf. BOCHENSKI, I. M. El materialismo dialectico. Madrid: Rialp, 1966. Como caso paradigmático, ainda
que voltado à discussão das ciências naturais, veja-se o lysenkoismo.
23 KOLAKOWSKI, Leszek. Principais correntes do marxismo: O colapso. Campinas: Vide Editorial, 2022.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

hegelianas24, como Oswald Spengler25 e Arnold J. Toynbee26. Entre os sucessores do historicismo


destacam-se Marc Bloch e o movimento da história das mentalidades, Ortega y Gasset e Reinhart
Koselleck. Do lado marxista, sobressai o nome de Eric Hobsbawm. Alguns avanços notáveis são
encontrados na obra de Aby Warburg e sua escola de inspiração neokantiana, principalmente o
fecundo conceito de pathosformel. Também, entre os autores neokantianos ou a eles coligados,
são dignos de nota Ernst Cassirer e Erich Voegelin.
Mas, não foi apenas o mundo dos historiadores seculares que progrediu durante o séc.
XX. No mundo cristão houve um impressionante aprofundamento do trabalho historiográfico
e da reflexão filosófica sobre a natureza da História, em grande parte impulsionados pelo
movimento de retorno sistemático às fontes patrísticas (Ressourcement), no mundo francófono;
entre os anglo-católicos, a origem desse ímpeto remonta ao Movimento de Oxford. Nesta linha,
destacam-se Jean Danielou, Henri-I. Marrou, Christopher Dawson, a monumental Histoire de
l’Église depuis les origines jusqu’à nos jours editada por Augustin Fliche e Victor Martin, assim como
a volumosa produção historiográfica de Daniel-Rops, Étienne Gilson, Marie-Dominique Chenu
etc. Transcendendo o campo dos historiadores – ainda que alguns deles, como Dawson e Marrou,
fossem altamente especulativos – temos uma enorme de lista filósofos da história; citando apenas
alguns, referimo-nos a Joseph Ratzinger, Hans Urs von Balthasar, Jacques Maritain, Cornelio
Fabro, Romano Guardini, Rémi Brague e Leonardo Polo.
Atualmente, com a influência do estruturalismo e do pós-estruturalismo, há uma

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


tendência crescente ao relativismo epistemológico e moral dentro das ciências humanas,
tanto na história quanto na sociologia. Como efeito deste processo, nota-se o surgimento de
historiografias relacionadas aos movimentos decoloniais, identitários ou afirmativos. Do ponto
de vista historiográfico, bem como filosófico, encontram sua fundação e melhor expressão nas
obras História da Loucura e História da Sexualidade, ambas de Michel Foucault.

2. FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


A História e a Sociologia compartilham muitos aspectos comuns. Como se verá, seus
problemas tangenciam os problemas da história a ponto de muitos dos seus teóricos também
terem se dedicado à historiografia ou à reflexão sobre o método da ciência histórica. A sociologia
clássica engloba em seu escopo todo tipo de fenômeno social. Portanto, nela se inserem a
economia, a antropologia cultural, a psicologia social etc. Dentro do marco da história das ideias,
considera-se que a sociologia nasce com o projeto positivista de Comte27. Para ele, a sociologia
24 Aqui, estas afinidades podem ser expressas no anseio comum por encontrar um a priori histórico capaz
de descrever uniformemente os processos da história universal.
25 SPENGLER, Oswald. A decadência do Ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
26 TOYNBEE, Arnold J. A Study of History. Nova Iorque: Oxford University Press, 1946.
27 “A enciclopédia filosófica moderna surgiu dos inventários de conhecimento que foram conhecidos
ao longo da Idade Média. Sua obra fundamental vem do chanceler Bacon: a partir dele, a enciclopédia buscou
conscientemente o princípio das relações internas das ciências. Hobbes foi o primeiro a descobri-la na ordem
natural das ciências determinada por aquela circunstância que faz de uma a suposição da outra. Em conexão com a
Enciclopédia Francesa, D’Alembert e Turgot desenvolveram esse conceito de filosofia como uma ciência universal.
E com base nisso, finalmente, Comte expôs a filosofia positiva como o sistema de relações internas das ciências
de acordo com sua dependência sistemática e histórica, junto com seu termo na sociologia. Deste ponto de vista,
uma análise metódica das ciências particulares foi realizada. Investigou-se a estrutura de cada um deles, estabelece-
ram-se os pressupostos neles contidos e com esses pressupostos alcançou-se o princípio das relações entre eles; foi
possível mostrar como nessa marcha de uma ciência para outra surgem novos métodos; Finalmente, a sociologia
foi reivindicada como um trabalho peculiar da filosofia e foi determinada metodicamente. Com isso, cumpriu-se
a tendência implícita na ramificação das ciências positivas, a de estabelecer a ligação por si mesmas, sem carregar
qualquer fundamento epistemológico geral, portanto, como filosofia positiva”. DILTHEY, Wilhelm. Teoría de la

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

tem um status dúplice:

“Não é apenas uma ciência entre as outras, como se houvesse a ciência da sociedade
assim como existe a ciência dos seres vivos. Em vez disso, a sociologia é a ciência
que vem depois de todas as outras; e como ciência final, deve assumir a tarefa
de coordenar o desenvolvimento de todo o conhecimento. Com a sociologia,
a positividade se apodera do último domínio que até então lhe escapava e
lhe fora considerado para sempre inacessível. Muitas pessoas pensaram que
os fenômenos sociais são tão complexos que não pode haver ciência deles. A
ideia de Geisteswissenschaft de Dilthey, por exemplo, é explicitamente dirigida
contra o positivismo e mantém a diferença entre filosofia natural e filosofia
moral. Pelo contrário, de acordo com Comte, esta distinção, introduzida pelos
gregos, é abolida pela existência da sociologia, e a unidade que foi perdida com
o nascimento da metafísica restaurada (1830 (58), v. 2, 713-715). A fundação
da ciência social constitui, portanto, uma virada na história da humanidade.
Até então, o espírito positivo era caracterizado pelo método objetivo, que vai
do mundo ao homem; mas como esta meta já foi alcançada, torna-se possível
inverter essa direção e ir do homem ao mundo, para adotar, em outras palavras,
o método subjetivo, que até então estava associado ao antropomorfismo da
teologia. Para legitimar esse método, basta substituir a teologia pela sociologia
— o que equivale a substituir o absoluto pelo relativo”. (BOURDEAU, 2022)

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


2.1 Sociologia Positivista
No ambiente intelectual próximo a Comte, na França, pode-se dizer que seu projeto
de uma sociologia positivista fora levado a cabo por Émile Durkheim, que publica As regras
do método sociológico em 1895. Nesta obra, Durkheim define que o objeto da sociologia é o
“fato social”, isto é, aquilo “que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo
tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais”. Estes fatos
devem ser confrontados, na pesquisa sociológica, com outros fatos, de modo que a sociologia
seria uma ciência essencialmente comparativa e hipotético-dedutiva. Por fim, ainda em As regras,
Durkheim estabelece que a sociologia deverá focar seus esforços na análise de instituições,
entendidas como “crenças e modos de comportamento instituídos pela coletividade”. A concepção
durkheimiana impactará o desenvolvimento do pensamento sociológico pela marca deixada por
sua fundamentação da cientificidade a partir da interpretação de dados factuais potencialmente
estatistizáveis. Aqui, a sociologia separa-se da filosofia moral e torna-se uma disciplina autônoma
de investigação da conduta humana.

2.2 Sociologia Weberiana


Max Weber, um dos fundadores da disciplina, assevera que a sociologia tem por objeto o
indivíduo em suas interações. Segundo ele, a sociologia:

“considera o indivíduo e seu ato como a unidade básica, como seu “átomo”
— se nos permitirem pelo menos uma vez a comparação discutível. Nessa
abordagem, o indivíduo é também o limite superior e o único portador de
conduta significativa... Em geral, para a Sociologia, conceitos como “Estado”,
“associação”, “feudalismo” e outros semelhantes designam certas categorias de
interação humana. Daí ser tarefa da Sociologia reduzir esses conceitos à ação
“compreensível”, isto é, sem exceção, aos atos dos indivíduos participantes”.
(1982, p. 74)

concepción del mundo. México: Fondo de cultura, 2015, p.174.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

A sociologia weberiana realiza uma síntese dos ideais científicos do positivismo e do


historicismo de Dilthey. Para Weber, de fato, o método individualizador das ciências naturais é
um modelo para as ciências humanas, mas, ao mesmo tempo, esta individuação deve se centrar
sobre a consideração do sujeito enquanto portador e agente de relações sociais. Neste sentido,
Weber prescinde do apelo generalizador que os conceitos de povo e nação possuíam na tradição
alemã de então, em favor da investigação localizada de associações humanas – mais próximo de
uma visão de sociedade contratualista. Do ponto de vista filosófico, Weber foi profundamente
marcado pelo neokantismo predominante na universidade alemã do seu tempo e, assim como
ele, encarava a filosofia como o meio de explicitação da lógica própria das ciências.

2.3 Sociologia Marxista


Ainda dentro do marco da sociologia clássica, pode-se dizer que o terceiro fundador da
disciplina foi Karl Marx. De modo geral, a sociologia marxista está essencialmente destinada à
investigação das relações entre economia e sociedade a partir dos conceitos-chave fornecidos
pela teoria do materialismo histórico-dialético28. Ao contrário de Durkheim e Weber, os
marxistas não viam oposição alguma entre uma sociologia rigorosamente científica e voltada
à crítica dos costumes. Pelo contrário, a sociologia deveria ser um instrumento de análise das
sociedades com o fim de promover sua transformação. Quanto ao método, enquanto a sociologia

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


positiva analisará o fato social, e a sociologia interpretativa de Weber olhará para os indivíduos, a
sociologia marxista se concentrará nos processos de mudança e conflito. Segundo Marx (1977)29:
“Na produção social de sua existência, os homens inevitavelmente entram em
relações definidas, que são independentes de sua vontade, ou seja, relações de
produção adequadas a um determinado estágio no desenvolvimento de suas
forças materiais de produção. A totalidade dessas relações de produção constitui
a estrutura econômica da sociedade, o fundamento real, sobre o qual surge
uma superestrutura legal e política e à qual correspondem formas definidas de
consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo
geral da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens
28 “Engels e Marx são considerados os fundadores de uma tradição teórica em sociologia chamada mate-
rialismo histórico. Essa perspectiva toma o poder econômico como a dimensão primordial da estratificação social
e sustenta que a história de todas as sociedades até então existentes é a história das lutas de classes. As principais
classes nas sociedades que Engels e Marx estudaram mais intensamente eram a burguesia e o proletariado. Mais
particularmente, o materialismo histórico clássico postulou várias tendências supostamente características de
qualquer sociedade com propriedade privada dos meios de produção, como máquinas e fábricas (bens de capital)
e mercados livres para capital, trabalho e bens de consumo. De acordo com a “lei geral da acumulação capitalis-
ta”, quanto mais tempo prevalecer o modo de produção capitalista, mais capital terá acumulado, levando tanto a
maiores lucros para os proprietários do capital (a burguesia) como a uma piora das condições de vida do povo que
vive do seu trabalho (o proletariado). Embora reconhecendo nas primeiras fases do modo de produção capitalista
a presença de pequenos e grandes proprietários, bem como de trabalhadores qualificados e não qualificados, a
persistência do modo de produção capitalista levaria ao desaparecimento das classes médias. Pequenos proprietá-
rios se tornariam menos comuns, pois perdem na competição acirrada dos grandes proprietários. Trabalhadores
qualificados no uso de suas ferramentas manuais também se tornariam menos comuns à medida que os proprie-
tários os substituíssem por trabalhadores não qualificados mais baratos operando máquinas. Além disso, como a
persistência do modo de produção capitalista é acompanhada por recessões econômicas cada vez mais profundas,
os salários tendem a cair enquanto o percentual de trabalhadores desempregados aumenta”. ULTEE, Wout. Verbete
“bourgeoisie and proletariat” in RITZER, George (ed.). The Blackwell Encyclopedia of Sociology. Oxford: Blackwell
Publishing, 2009, p. 350. Este tema também tratado fora da tradição marxista, como, por exemplo, em WEBER,
Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. SCHELER, Max. Drei Auf-
sätze zum Problem des kapitalistischen Geistes in Gesammelte Werke, vol. 3. Bonn: Bouvier-Verlag, 2007.
29 MARX, Karl. A Contribution to the Critique of Political Economy. Moscou: Progress Publishers, 1977,
Preface. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1859/critique-pol-economy/preface.htm.
Acessado em 30/05/2023.

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que determina sua existência, mas sua existência social que determina sua
consciência”.

Aliás, este será o motivo da atenção dada pelos marxistas, desde sua origem, à cultura.
O meio cultural, como se pode constatar facilmente através do estudo das humanidades,
é o campo no qual as mudanças são mais essenciais. Por fim, a partir da sociologia marxista
também nascerão os diversos métodos críticos que culminarão, entre os marxistas heterodoxos,
no Institut für Sozialforschung, berço da chamada Escola de Frankfurt. Atualmente, a tradição
sociológica fundada no materialismo histórico encontra expressão, além da Escola de Frankfurt,
nas sociologias feminista, decolonial, queer etc. Em relação ao frankfurtianos, cabe ressaltar dois
pontos: 1) não havia um consenso entre os pensadores da Escola, havendo alguns culturalmente
conservadores como Adorno, assim como culturalmente muito progressistas, como Marcuse;
2) dentro do âmbito social, a principal influência da Escola de Frankfurt se deu na promoção
ou fundamentação epistemológica da Revolução Sexual dos anos 1960, principalmente a partir
de Eros e Civilização: Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud, obra de Marcuse
publicada em 1955, na qual propunha uma fusão entre marxismo e psicanálise. Pode-se dizer,
inclusive, que esta fusão foi a causa da maior influência do pensamento social marxista para a
cultura ocidental, haja vista que a influência soviética se restringiu ao lado oriental da Cortina
de Ferro.

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 3


2.4 Um projeto de ética social
No entanto, a sociologia buscou outras abordagens que pudessem dar conta dos
fenômenos sociais sem recorrer ao materialismo ou tacitamente equiparar as realidades humanas
faktum das ciências. Um exemplo notável de sociologia aberta à integralidade da pessoa humana
e a sua dimensão transcendente pode ser encontrado na obra Die Soziale Frage, de Johannes
Messner, cuja primeira edição surgiu em 1933. Messner busca reconduzir a sociologia ao âmbito
que lhe parece próprio, isto é, à comunidade e, como célula básica da vida comunitária, a família.
Segundo ele, pode-se dizer que todas as dimensões da vida social, cultural, econômica, política
e espiritual dependem da integridade das famílias entendidas como relação entre pessoas. Neste
sentido, vê a sociologia como instrumento da ética social, que tem por missão salvaguardar as
comunidades familiares. A partir deste ponto, Messner opera uma espécie crítica tácita ao ideal
de cientificidade sociológica iniciado por Durkheim. Ao invés de se distanciar definitivamente
da filosofia moral, como quiseram os teóricos após a pressão positivista, sua proposta é que a
sociologia se torne um meio de aproximação às realidades sociais concretas, para, então, munir
a ética dos dados necessários aos juízos morais e decisões. Messner, inclusive, chega a usar este
método em suas análises econômicas. Usando os critérios da teoria clássica da Lei Natural,
explora sociologicamente os sistemas socialistas e capitalistas. Então, chega à conclusão de que
nenhum dos dois oferece uma adequação perfeita às necessidades da economia comunitária, bem
como para o florescimento das famílias. Como remédio para a esta situação, Messner prescreve a
aplicação do princípio de subsidiariedade, ou seja, a necessidade de que as questões mais urgentes
de uma comunidade sejam resolvidas na instância mais próxima. Deste modo, a busca pelo bem
comum se daria, em primeiro lugar, no âmbito mais local e pessoal. Concomitantemente, outros
teóricos alemães tentaram cruzar as rígidas fronteiras impostas por Durkheim à sociologia. Entre
eles, figuram com destaque os fenomenólogos.

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2.5 Sociologia Fenomenológica


A sociologia fenomenológica conta com dois nomes centrais, a saber, Max Scheler e
Alfred Schütz – o primeiro se centrará na investigação da essência das formas sociais e dos tipos
humanos que as encarnam, ao passo que o segundo se deterá na análise das intencionalidades
que correspondem aos atos sociais (o ato vivido e praticado por sujeitos encarnados), em
conformidade com a fenomenologia transcendental de Husserl. Como Escola propugnadora de
uma metodologia não-materialista para a análise da vida social e suas estruturas, a sociologia
fenomenológica será extremamente bem-sucedida. No caso de Scheler, sua contribuição se
destaca pela criação da sociologia do conhecimento, isto é, o estudo das razões do surgimento de
certas ideias em determinados contextos. Compete à sociologia do conhecimento, por exemplo,
determinar as motivações que levaram a sociedade grega à filosofia. Para esta investigação, na
visão de Scheler, seria necessária a reconstrução dos valores que conduziram os gregos a optar
pela filosofia, propiciando uma atitude filosófica em detrimento de uma atitude mítica. Por sua
vez, com Schütz, a sociologia fenomenológica instigará o problema da formação e manutenção
das sociedades a partir da noção de intersubjetividade. Movido pelo conceito husserliano
de mundo da vida, Schütz buscará entender como o sentido das ações sociais se constitui na
consciência do eu pessoal. Deste modo, dissente radicalmente da impessoalidade do positivismo,
do neokantismo e do marxismo, colocando a questão social – para lançar da expressão de Messner

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– dentro de um marco essencialmente antropológico.

2.6 Sociologia Contemporânea


De modo geral, as ciências sociais contemporâneas se dividem em outras disciplinas
parcialmente relacionadas à sociologia e, via de regra, ainda sem um estatuto epistemológico bem
definido. Entre elas, destacam-se, principalmente, a antropologia cultural, a etnologia e a ciência
da religião. Cada uma destas disciplinas tem por ponto de partida um certo recorte da vida social
humana, sendo usadas, sobretudo, no planejamento governamental do Estado de Bem-estar –
nos Estados Totalitários, também. Analisar-se-á, brevemente, cada uma delas.

2.7 Antropologia Cultural


A antropologia cultural consiste no recolhimento, catalogação e análise das formas
culturais presentes na tradição de determinado povo. Apesar de ser possível rastrear certos
testemunhos dessa índole nos relatos de viajantes antigos, esse procedimento só ganha uma
prática sistemática a partir do séc. XVI, com as grandes navegações e os missionários católicos.
Há, aqui, as importantes obras de Bernardino de Sahagún e Matteo Ricci. O primeiro escreveu
uma minuciosa história dos costumes e mitos dos povos mexicanos pré-colombianos, assim
como desenvolveu uma gramática da língua náuatle que se tornou a referência para os indígenas
– algo semelhante aconteceu no Brasil, em menor escala, com o trabalho de José de Anchieta.
Praticamente ao mesmo tempo, na China, Ricci desenvolveu um trabalho intenso investigando
os princípios da filosofia confuciana, assim como trabalhou uma série de costumes e crenças
do povo chinês. Com a finalidade de promover a inculturação dos povos e crenças locais ao
catolicismo, estes missionários empenharam-se durante séculos na preservação da diversidade
do patrimônio cultural humano, de modo que muitas das informações que se possui ainda hoje
sobre esses povos tem neles seu único testemunho direto.
Depois, já no século XIX, houve uma nova onda de estudos sobre as culturas locais, bem
como de seus fundamentos e gênese. Desta vez, tais trabalhos eram movidos e facilitados pelo

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imperialismo britânico, que estendia sua influência sobre todo o orbe. São dessa época as famosas
viagens de exploração e as sociedades de exploradores. Destacam-se, nesse período, as viagens
de Darwin, dos irmãos Von Humboldt e Edward Burnett Tylor. Cada um deles exerceu um papel
central no modo como a cultura foi entendida, apesar de suas diferenças. Darwin, como é sabido,
“descobre” a teoria da evolução das espécies, que causará uma revolução no ambiente intelectual
europeu; suas ideias darão origem, no plano da análise social, ao darwinismo social – juntamente
com Herbert Spencer, Thomas Malthus e Francis Galton. Os irmãos Von Humboldt, por sua vez,
serão responsáveis pela última disseminação do mecanicismo Iluminista, o qual dará sustento à
ideia de que há uma progressão causal no desenvolvimento das culturas. E, por fim, Tylor será
o responsável pela concepção do evolucionismo cultural por meio da obra Primitive Culture,
publicada em 1871. Em contraposição ao movimento evolucionista, surge o funcionalismo
cultural, virtualmente iniciado pela obra Aqui, concretamente, é comum que haja uma certo
cruzamento entre antropologia cultural e etnologia. Muitos desses pesquisadores não se limitaram
a descrever as tradições investigadas, mas propuseram teorias abrangentes sobre o processo de
formação das culturas em geral. A este respeito, já no séc. XX, são importantes os trabalhos de
Claude Lévi-Strauss.
Lévi-Strauss pode ser considerado o fundador do estruturalismo, uma teoria da cultura
que pretende explicar relações sociais em termos de estruturas relacionais abstratas, isto é,
lógico-simbólicas, calcada na análise da linguagem. Para Strauss não importavam muito os

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conteúdos dos fenômenos culturais, mas os modos supostamente intrínsecos pelos quais se
organizavam. Sua epistemologia, por assim dizer, era fundamentalmente kantiana, entendendo
que as estruturas culturais são categoriais, isto é, modos intrínsecos e a priori de expressão. A
obra fundacional do projeto estruturalista foi Les structures élémentaires de la parenté, de 1949, na
qual Strauss analisa a constituição dos vínculos familiares em grupos indígenas e aborígenes à luz
da comum proibição ao incesto. Para ele, os elementos constitutivos do mundo humano são dois:
a proibição do incesto e a preparação dos alimentos. Em certo sentido, a obra de Strauss supera
suas investigações iniciais e concretas ao propor um método universal de análise dos diversos
fenômenos sociais. Este método será omnipresente na França e no Brasil até que Michel Foulcalt
comece o movimento pós-estruturalista, que prescindirá de qualquer noção de universalidade,
mesmo aquelas que sejam totalmente imanentes, como a estruturalista.

2.8 Ciências da Religião e Religião Comparada


Last but not least, devemos comentar a respeito da ciência da religião e da religião
comparada. Neste tópico, podemos delimitar dois grupos distintos: 1) unitaristas; 2) autonomistas.

2.8.1 “Unitaristas”

Dentro da metodologia unitarista podemos distinguir entre os autores com uma inclinação
materialista e os que propõem algum tipo de sabedoria originária, como os perenialistas. Ademais,
dentro da conceopção materialista há, também, a tendência ao relativismo religioso. De modo
geral, com o processo secularista propugnado pelo Iluminismo, a religião passou a ser vista como
sendo uma mera manifestação cultural – muitas vezes, deve-se dizer, de culturas mais atrasadas
e retrógradas.
Os materialistas, como já aludido anteriormente, se originam da tradição iluminista.
Neste sentido, são protagonistas, sobretudo, os iluminismos francês e inglês. Contudo, ao longo
do séc. XIX, após as guerras napoleônicas, tal tendência se espalhou para outros países, como
a Alemanha. Num primeiro momento, a crítica da religião e sua subsequente relativização se
centrou nas Sagradas Escrituras. Iniciado por Espinosa, o costume dominante entre as classes

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letradas européias era conceber as narrativas bíblicas como sendo uma colcha de retalhos,
na qual todo o conteúdo se reduzia ao mito e à fantasia – aliás, foi justamente neste período
que “mito” e “fantasia” ganharam a carga semântica que ainda possuem, isto é, algo falso ou
desprovido de fundamentação racional. Do ponto de vista sistemático, pode-se localizar o inicio
da ciência secular da religião na tentativa de explicar a vivência religiosa dos povos sem recorrer
ao problema da existência ou verdade de Deus, como faz Hume em The Natural History of
Religion (1757). Tal tendência se formalizou de forma mais plena na obra de Max Müller, alemão
naturalizado britânico, filólogo, orientalista e historiador da religião. Fundamentalmente, Müller,
em suas Giford Lectures, defende a tese de uma origem comum e sócio-linguística para a religião
natural. Não haveria, portanto, qualquer margem para uma ação verdadeiramente sobrenatural
ou metafísica, apenas a transmissão de uma tradição originária preservada na estrutura dos
mitos e da linguagem. Em sua opinião, a origem da religião ocidental poderia ser localizada na
raiz comum dos povos indo-arianos; na tradição do hinduísmo vedântico, mais completamente.
Parte dessa tradição interpretativa, também, pode-se identificar o trabalho de James George
Frazer (The Golden Bough, de 1890) e de Andrew Lang (Myth, Ritual and Religion, de 1887).
Por outro lado, entre o final do séc. XIX e início do XX, surge, entre alguns intelectuais
europeus influenciados pelo sufismo, isto é, pelo misticismo islâmico, uma compreensão que de
certo modo se move dentro do mesmo marco daquela de Müller, pois também busca explicar
a história das religiões a partir de um princípio ou origem comum a todas elas. Neste caso –

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por meio de pensadores como René Guenon, Frithjof Schuon, Jean Borella, Wolfgang Smith et
alii – a ideia básica é que há uma unidade transcendente das religiões, isto é, um fundamento
comum a todas elas, com diversas aproximações a aspectos do mesmo ser divino e inabarcável.
Esta suposta unidade seria mais nitidamente percebida nas religiões mais antigas, “tradicionais”,
principalmente nas vertentes esotéricas das mesmas. Assim, por exemplo, o cristianismo
autêntico não seria a fé ensinada pelo Papa e seus bispos, mas o cristianismo mistérico da mística
renana (como os perenialistas a interpretam, deve-se dizer) ou da maçonaria. Ainda mantendo
o paralelo com a ciência da religião, a linguagem também é um importante instrumento para os
perenialistas. Contudo, neste caso, a atenção da pesquisa recai sobre a linguagem simbólica mais
do que sobre a filologia. Guenon desenvolve em Symboles de la Science sacrée e Le Symbolisme
de la Croix a teoria metafísica do símbolo, na qual o fundamento se encontra num simbolismo
natural cujo significado perpassa e estrutura todas as formas tradicionais de religião. O defeito
basilar do perenialismo se expressa tanto metafísica quanto epistemologicamente. Do ponto de
vista metafísico, cai-se no relativismo religioso e na ideia de uma divindade universal, que pode
ser encontrada nos símbolos da natureza justamente porque está, de fato, misturada a eles em
ato. Agora, olhando para o conhecimento do símbolo natural, não há como garantir apriorística
e especulativamente que os símbolos de todas as religiões têm uma base comum. Não é possível
deduzir, por exemplo, o cristianismo do budismo ou vice-versa. Ainda dentro desse marco,
mesmo que não compartilhando todas as teses dos perenialistas, tem-se a concepção arquetípica
e psicológica de Jung, Campbell e Peterson. Em sua origem, a doutrina junguiana da religião visa
o Absoluto como parte constituinte da consciência humana, de modo que seu funcionamento
fosse totalmente referenciado pelas ideias inatas provenientes desse Absoluto. Sendo assim,
os símbolos religiosos, os sonhos, os mitos etc. seriam expressões dessa estruturação típica e
transcendente da consciência. Seus discípulos aplicaram esses princípios à análise da cultura,
com obras como O Herói de Mil Faces. Aqui, para todos os efeitos, vale a mesma crítica feita ao
perenialismo.

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2.8.2 “Autonomistas”

Por fim, temos a concepção autonomista, que busca entender a gênese e a natureza próprias
de cada religião em relação à totalidade do fenômeno religioso. Aqui, por exemplo, se encontram
os trabalhos de religião comparada realizados pelos missionários católicos já mencionados. Há,
na doutrina católica, uma postura em princípio aberta em relação às outras religiões, pois, ainda
que marcando claramente as diferenças, os missionários católicos são estimulados a inculturar o
cristianismo na cultura e nos costumes dos diversos povos. Foi neste espírito que Matteo Ricci
compôs seu catecismo chinês, chamado de O verdadeiro significado de “Senhor do Céu”, publicado
em Pequim no ano de 1603, no qual propunha uma análise comparativa entre o catolicismo e o
confucionismo praticado na China. Já na Modernidade, tal tradição continua viva tanto dentro
do catolicismo como fora dele. Entre os católicos, chama a atenção o trabalho de Henri de Lubac,
teólogo e fundador da primeira cátedra francesa de história da religião, sobre o budismo. Fora
deste âmbito, tem-se o volumoso trabalho da “escola romena”, especialmente o desempenhado
por Mircea Eliade em inúmeros livros dedicados ao tema geral da evolução das religiões e a
temas particulares, como a investigação sobre o Mito do Eterno Retorno ou a natureza do espaço
sagrado. Também, mais próximo à sociologia da religião, pode-se mencionar a obra de Rodney
Stark, que se dedicou especialmente à evolução sócio-histórica do cristianismo, mas que também
buscou uma compreensão global do fenômeno religioso por meio da religião comparada.

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Ainda, convém mencionar novamente o nome de Rémi Brague, agora como historiador das
ideias religiosas. São extremamente profícuos os estudos de Brague nos quais contrasta os três
monoteísmos (judaísmo, cristianismo e islamismo), bem como avalia a situação da religião na
sociedade moderna. A verdadeira vantagem dessas abordagens é a rejeição que trazem consigo
de qualquer tipo de relativismo, seja moral, epistemológico ou metafísico. Não é necessário
prescindir das diferenças realmente existentes entre as religiões para que seja possível um estudo
rigoroso de sua gênese ou das possibilidades práticas, especulativas e existenciais das quais estão
prenhes.

BEISER, Frederick. Depois de Hegel. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2017.

BRAGUE, Remi. ¿A dónde va la historia?: Dilemas y esperanzas. Madrid: Ediciones


Encuentro, 2017.

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE WILHELM DILTHEY, Jonas Madureira:


https://www.youtube.com/watch?v=sVIfLTiHr_M

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04
DISCIPLINA:
FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DIREITO E ECONOMIA
PROF. HENRIQUE ELFES
PROF. ME. GABRIEL DE VITTO
PROF. DR. ANDRÉ FERNANDES

SUMÁRIO DA UNIDADE

1. DIREITO: JUSTIÇA.................................................................................................................................................. 47
1.1 DIREITO: LEI.......................................................................................................................................................... 52
2. ECONOMIA: DADO ECONÔMICO, SEUS SENTIDOS E CREMATÍSTICA........................................................... 56

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1. DIREITO: JUSTIÇA
A justiça e a lei são os bens do direito. Comecemos pela justiça, por sua maior abrangência
em termos de bem jurídico. Dentre os vários problemas que as sociedades enfrentam, boa parte
deles prende-se com a questão da justiça: direitos humanos, direitos sociais, intervenções militares
da ONU, criminalidade, desobediência civil, cotas raciais, aborto, eutanásia, feminismo, direitos
das minorias, proteção ao meio ambiente, educação e saúde entre outros temas candentes.
O bem do Direito ou bem jurídico tem uma íntima ligação com a justiça. Está relacionado
a um saber ser justo, pois, muito embora não deva realizar sozinho a obra da justiça, o titular
deste bem deve ser pessoalmente justo, no sentido de amante da justiça. Do contrário, dará
ouvido à injustiça e terá se corrompido. Tomás de Aquino (1976:74) dizia que “a corrupção da
justiça tem duas causas: a falsa prudência do sábio e a violência do poderoso1”.
A missão dos titulares dos bens está em discernir e assinalar o “seu” de cada um.
Considerar essa peculiar e típica relação do Direito com a antropologia filosófica é importante
para perceber que, ao lado da virtude justiça, o homem deve fomentar a virtude da prudência,
porque seu agir social está, antes, em discernir e assinalar, atitudes próprias da órbita prudencial,
para depois dar ao seu titular.
No seio da arena social, os profissionais do direito gozam de um destaque especial na

FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | UNIDADE 4


tarefa de distribuição da justiça. É próprio do profissional do direito uma arte ou ciência prática.
Todo o sistema filosófico dos bens jurídicos deve ser visto também da perspectiva do profissional
do direito, porém nunca é demais insistir nisso ao entrar na análise da justiça, porque, atualmente,
é muito comum transpor para a filosofia jurídica a ideia de justiça que a filosofia política e a
retórica costumam utilizar.
É uma ideia que tem sua importância no campo teórico e prático próprios – o da práxis
política –, mas, na órbita estrita dos profissionais do direito, acaba por provocar uma noção de
justiça magnificada, sendo, por isso, necessário um certo trabalho de desmistificação. Os fins
de um ideal de justiça política podem orientar, como princípio interpretativo, alguns aspectos
da função do profissional do direito, mas não condicionar a justiça desse profissional, pois sua
função é mais modesta, muito mais prática e tangível: a justiça do caso concreto.
O ofício do profissional do direito atende a uma necessidade social bem específica, qual
seja, a de criação de uma ordem justa, isto é, uma ordem em que cada homem e cada instituição
tenha o “seu”, aquilo que lhe pertence e cabe, nem demais e nem de menos. Dado que a vida social é
dinâmica e o “seu” de cada um pode estar em situação de interferência por uma ação ou omissão
alheia, gera-se um dinamismo orientado para estabelecer ou restabelecer a situação devida, que
podemos descrever com uma fórmula de comprovada expressividade: suum cuique tribuere2, dar
a cada um o seu.
Se se classifica de necessidade social o estabelecimento da situação devida – cada um ter
o seu – é porque essa situação constitui uma ordem, uma harmonia, uma proporção social em
que cada coisa está na correta relação com seu titular, ou seja, uma ordem social justa. Qualquer
ruptura ou alteração dessa correta relação produz uma anomalia ou uma desordem social, ou
1 Expositio in Librum Sancti Job, cap. VIII, lect.1.
2 Segundo Reale (1993:632), “ao proceder-se à análise daqueles que no Digesto são apresentados como preceitos
fundamentais do Direito: – ‘Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere’ (D., I, 1, 10)
(...) consonante opinião dominante, esses três princípios refletiriam três grandes correntes filosóficas da Grécia. ‘Não prejudi-
car a outrem’ traduziria a orientação epicurista de uma ordem social na qual cada homem só fosse obrigado a não prejudicar
a outrem. O Direito teria por finalidade traçar os limites de ação dos indivíduos, de forma negativa, não impondo o dever de
fazer algo, mas a obrigação de não causar dano. O segundo princípio: ‘viver honestamente’, seria de inspiração estoica, segundo
o ideal de alcançar a felicidade com fiel subordinação à natureza, aos ditames da razão. O último dos preceitos já representaria
a lição aristotélica da justiça distributiva, como proporção de homem para homem segundo seus méritos. (...) Em conclusão,
pensamos que os chamados praecepta iuris não nos auxiliam a esclarecer a distinção possivelmente existente no mundo romano
entre Moral e Direito, mostrando antes a alta compreensão moral que os jurisconsultos tiveram da vida jurídica”.

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seja, uma ordem social injusta.


Essa harmonia é uma exigência de nossa condição antropológica, por sua qualidade de
ser que tem coisas verdadeiramente suas, e, ao mesmo tempo, da família e da sociedade, pois, uma
vez preservada aquela harmonia, conserva-se o grupamento familiar e social e, se corrompida,
provoca sua destruição. A ordem social justa não é um simples fato. Pertence à categoria do
dever-ser: deve ser dado a cada um o seu.
O Digesto expressa “o dar a cada um o seu” sob a fórmula de praeceptum iuris (do latim,
norma primordial do direito), verdadeira norma fundamental da ordem dos bens jurídicos,
porque, de fato, o imperativo do dever é a expressão da obrigatoriedade do direito, de modo
que essa harmonia é um dever-ser em razão do debitum (do latim, o devido) inerente ao direito,
(AQUINO, 2019:540) “cujo instrumento é a lei3”.
Assim, (ARISTÓTELES, 2006:5) a justiça “é a ordem da comunidade política”4. Uma
harmonia dos homens que se relacionam de um modo tal que alcançam sua própria perfeição
possível e, como resultado, a perfeição possível do conjunto da cidade. Se não há justiça, as relações
interpessoais desaparecem e passa a prevalecer o arbítrio do mais forte ou do mais poderoso. Se
há justiça e o direito baseia-se no discernimento do justo, supera-se a barbárie. A primeira forma
de cultura de uma comunidade, ao lado da religião, é o direito.
A justiça, além de bonum alteris (do latim, bem social ou bem do outro), reclama o
indivíduo em seu centro anímico, isto é, a preponderância de sua dimensão espiritual (o ser), que

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desencadeia e dinamiza o ato de justiça, fundado num dever-ser que, por sua vez, sempre implica
num fato correspondente, o cumprimento desse dever-ser. Para isso, orienta-se a própria ideia
de dever, isto é, o que se deve, faz-se. A transição legítima entre o ser e o dever-ser na dinâmica
antropológica já foi estudada na disciplina de ética.
Esse lugar de relevo atribuído à justiça no concerto social também é conferido ao homem
individualmente considerado, no âmbito da ordenação de si próprio em termos virtuosos, pois,
sendo justo como indivíduo, tende a ser justo como cidadão. Naquele universo interior de
ordenação de si próprio, orbitam as virtudes, como a da justiça, virtude cardeal, que não estão no
nível do dever-ser, mas no de seu cumprimento. O homem não é virtuoso porque tem deveres e
sim porque os cumpre, proporcionando-lhe o bem individual (do latim, bonum hominis).
As virtudes são hábitos das potências humanas que propendem para o cumprimento
do dever. Elas próprias não são juízos deontológicos – juízos de dever –, mas disposições do
indivíduo para agir de acordo com os juízos deontológicos. Por conseguinte, as virtudes não
pertencem ao dever-ser (do alemão, sollen), mas ao ser (do alemão, sein), embora tensionadas a
um dever-ser. Assim, visto que deve ser dado a cada um o seu e que isso constitui um bem social
(bonum alteris) e um bem individual (bonum hominis), a correta disposição do homem para
cumprir com o dever-ser jurídico é uma virtude: a virtude da justiça.
É a virtude cujo ato – a ação justa – consiste em dar a cada um o seu. Em outras palavras,
como virtude, isto é, como hábito operativo, a justiça pertence ao mundo do ser. Contudo,
relaciona-se com um dever-ser bem específico, o de dar a cada um o seu, a partir do qual uma
comunidade é capaz de construir uma ordem social justa.
Analisada a justiça como virtude em termos gerais, passamos à sua definição. Embora
tenham sido dadas várias definições da justiça, há uma comum e praticamente universal. É a
mais simples, a mais antiga e a mais divulgada: a justiça consiste em dar a cada um o seu. A

3 Existem dois tipos de leis humanas: a escrita e a não escrita. Esta corresponde àquela que o homem tem dentro de si
como premissa de sua ação. É chamada de lei moral e está expressa em diversos textos religiosos e laicos (como o Decálogo e
a Declaração Universal dos Direitos do Homem) e, principalmente, no coração e na consciência do homem, como ressaltaram
expoentes tão diversos como São Paulo e Rousseau. Refere-se aos critérios mais elementares de ação e de justiça, como não
matar, não roubar, falar a verdade, respeitar a dignidade da pessoa humana, respeitar os pactos e, principalmente, fazer o bem e
evitar o mal (Suma Teológica, I-II, q 94, a 2).
4 Política, L. I, 1253 a 37.

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compreensão da norma fundamental da ordem jurídica e a correspondente compreensão de que


a disposição para dar a cada um “o seu” constitui um aspecto da ordem básica do indivíduo em
relação ao outro são tão antigas quanto a própria humanidade.
De fato, o praeceptum iuris de referência é uma aplicação imediata dos primeiros princípios
da razão prática, de conhecimento universal e, logo, igualmente universal é o conhecimento dos
efeitos éticos da correspondente disposição para cumprir aquela norma fundamental. Antecedida
por themis, a palavra grega que primeiro designou a justiça foi dike, que inicialmente significou
tanto a ação judicial ou o processo como a sentença do juiz, para, depois, passar a denominar o
direito e a justiça. Enquanto o direito e a justiça constituíam a medula da ordem social, dike foi
usada pelos primeiros filósofos gregos – transpondo para o mundo em geral as categorias sociais
– para designar a ordem cósmica (Heráclito e Anaximandro), a ordem dos seres (Parmênides), a
ordem social da polis (Aristóteles) e mesmo a ordem pessoal (a bondade moral).
Com isso, dike ou justiça adquiriu um sentido objetivo, a ordem ou a harmonia. A virtude
da justiça foi denominada a partir de um derivado de dikaios – justo – a saber, a expressão
dikaiosyne (a virtude do justo), no sentido da vontade particular – o juiz que profere a sentença
conforme o direito, o comerciante que cobra o preço justo, o cidadão que zela pelos costumes da
polis e assim por diante – e, no sentido geral e onicompreensivo que, comum a outras línguas,
não perdeu até hoje: a justiça como a soma das virtudes do homem, de modo que o homem justo
equivale ao homem pleno de virtudes.

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Compreende-se como foi possível realizar a passagem do homem justo – no sentido
particular de dar a cada um o seu – ao homem virtuoso, porque ser justo sempre equivaleu a
cumprir as leis e a virtude é o cumprimento das leis morais.
À luz das contribuições dos pensadores que o antecederam, Aristóteles analisa o legado
recebido e culmina com uma linha de investigação teórica excepcional, a ponto de sua especulação
sobre o conceito do justo vir a estabelecer as bases para toda a filosofia dos bens do direito,
definindo, de modo perene, a nosso ver, as noções de justiça e de direito, em virtude de uma
série de aspectos, nuances e distinções nas quais essas noções foram fundamentadas e jamais
superadas.
A especulação de Aristóteles que interessa ao conceito de justiça (HERVADA, 2008:71-
73) pode ser dividida em cinco partes:

a. Para Aristóteles, a justiça é uma virtude e, como tal, trata-se de uma disposição ou
hábito de praticar o justo;
b. Para Aristóteles, existem duas classes de justiça: a justiça total e a justiça parcial. A
justiça total é a virtude de cumprir as leis, chamada, séculos mais tarde, de justiça legal.
Dado que as leis comandam todas as virtudes (mais ou menos perfeitamente, conforme
as leis sejam boas ou ruins), a justiça total equivaleria à soma das virtudes, enquanto se
refere ao outro, isto é, não ao bem próprio, mas ao bem alheio, de sorte que, analisada
absolutamente, é virtude e, vista sob o ângulo do outro, é justiça. No seio da justiça total,
emerge, pois, um atributo caro à noção de justiça, a saber, a alteridade, intersubjetividade
ou bilateralidade;
c. A justiça parcial (ou justiça particular) não corresponde à virtude total, mas a uma
parcela desta. Consiste na justa distribuição dos bens e no correto regulamento dos tipos
contratuais (como os contratos do direito privado e os acordos entre os particulares) e
dos delitos (tipos penais). Essa justiça é justiça em sentido próprio e estrito, a justiça dos
juízes, e corresponde uma das quatro virtudes cardeais;

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d. Aristóteles distingue com clareza a justiça (dikaiosyne) de o justo (tò dikaion), sem
confundi-los. Nesse sentido, a justiça (dikaiosyne) é a virtude ou o hábito, enquanto o
justo (tò dikaion) é aquilo que se realiza ou pratica pelo homem em função da virtude, ou
seja, o objeto da justiça ou o justo concreto. O justo (tò dikaion) é o que os jurisconsultos
romanos chamarão mais tarde de ius – o direito – ao descrever a justiça. O justo não tem,
então, um sentido vago ou lacônico, intercambiável com a justiça, mas um sentido preciso,
isto é, o próprio de cada um, ou seja, o “seu”. É aquela coisa que a justiça dá ou atribui a
um sujeito (ou a um conjunto de sujeitos), aquilo que lhe deve ser proporcionado.
e. Aristóteles (2008:81), na obra Retórica, define a justiça, em sentido estrito, como sendo
“a virtude pela qual todos possuem o que lhes pertence de acordo com a lei; seu oposto é
a injustiça, por meio da qual as pessoas possuem o que pertence a outros, contrariamente
à lei5”. Essa definição, embora imperfeita (porque a conceitua pelo seu efeito e não pelo
seu ato), é extremamente expressiva. O “que lhes pertence” é o equivalente ao “seu” – o de
si mesmo – e, por isso, o efeito da justiça é entendido como ter cada um o seu.

Ao relacionar essa definição com as primeiras linhas6 do livro V de Ética a Nicômaco, nas
quais ele denomina de justiça a realização do justo – tò dikaion –, o que corresponde ao Direito,
a definição aristotélica vem a ser um cristalino precedente da definição romana, o de ter cada um

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seu direito, pois (AQUINO, 2019:542) “o próprio conforme à lei é o justo e o justo é o direito de
cada um7”.
Para Aristóteles, o justo particular (a justiça em sentido estrito) pode ser distributivo ou
corretivo, conforme se refira às distribuições ou às formas de acordo respectivamente. No que
toca ao primeiro, descreve-o como proporcional ou igual ao mérito – axia8 – entendido como o
título que se exige em justiça, um direito a algo, o qual é devido à pessoa segundo sua relação com
o regime da polis, ou seja, sua condição de cidadão.
Alguns séculos depois, com Cícero, aparece a expressão “dar a cada um o seu”, a qual se
incorporou definitivamente à noção comum da justiça. A melhor definição de justiça – porque
dotada de simplicidade e de precisão – é a do jurisconsulto Ulpiano, registrada no Digesto9: Iustitia
est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi: a justiça é a constante e perpétua
vontade de dar a cada um o seu direito. Com Ulpiano, além da fórmula da justiça ganhar maior
acuidade conceitual, ela adquire uma perfeita dimensão jurídica, pois ressalta que o “seu” de cada
um é o seu direito. Isso estava contido em “o próprio” e “o justo” de Aristóteles, bem como na axia,
que é algo devido em justiça, mas, com Ulpiano, torna-se explícito.
A fórmula ulpiana manifesta, sem precedentes, um ponto essencial da ideia da justiça, a
saber, a primazia do direito sobre a justiça ou, em outras palavras, que a justiça está em função do
direito e não o contrário, ou seja, que a justiça pressupõe o direito. Se a justiça consiste em dar a
cada um o seu direito, para que ocorra a ação justa, é preciso que exista esse direito, em relação ao
qual se é justo.
Por isso, alguns séculos depois, Isidoro de Sevilha (2008:61) escreverá que “declara-se
justo, porque respeita os direitos e vive de acordo com a lei”. A ideia de que a justa ação está em
dar a cada um “o seu” foi absorvida e prestigiada pela literatura teológica posterior, como se pode
depreender na Patrística, com Agostinho (2011:308), Ambrósio (2002:36) e Isidoro de Sevilha
(2008:120).
5 Retórica, L. I, 9, 1366 b.
6 Ética a Nicômaco, L. V, 1129 a3 – 1130 a13.
7 Suma Teológica, II-II, q 58, a 1.
8 Ética a Nicômaco, L. V, 1130 b – 1131 a. Axia pode significar valor, mérito, dignidade ou condição social.
9 D. 1, 1, 10.

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Contudo, ocorreu um fenômeno que chegou até Tomás de Aquino. Embora tais padres da
Igreja falem de justiça particular, definida no contexto das virtudes cardeais, neles se enfraquece a
nota de juridicidade – relações entre os homens – para se reforçar as relações de amor com Deus
e inclusive consigo mesmo, algo muito útil para fins de trato da filiação divina, mas de pouca
serventia para a análise da justiça como bem do Direito.
A justiça, na ótica patrística e na Alta Idade Média, adquire um sentido lato que lembra
a justiça geral, retirando sua nota juridicizante e provocando sua moralização. Em suma, deixa
de ser a justiça suposta para o mundo da sociedade e resta vincada à dimensão religiosa. A volta
à justiça, como bem do Direito ou afeta ao labor dos profissionais do direito, é obra de Tomás de
Aquino. Esse resgate representa um retorno aos jurisconsultos romanos, cuja definição abre seu
tratado da justiça, e a Aristóteles, o qual segue fielmente ao longo do citado tratado.
Para Tomás de Aquino, a justiça é uma virtude essencialmente ad alterum, isto é, refere-
se sempre ao outro, visto que a justiça encerra igualdade e nada é igual a si mesmo, mas a outro.
Portanto, (AQUINO, 2019:546) “a ordem interior do homem – a justiça segundo Platão – só
pode ser chamada justiça por metáfora10”. Tomás de Aquino distingue entre justiça geral e justiça
particular. A primeira orienta-se para o bem comum, bem da Política, e, como orientação ao
bem comum, naturalmente pertence à lei, bem do Direito que estudaremos logo adiante,
denominando-a de justiça legal.
Essa justiça, que conduz ao bem comum os atos das demais virtudes, é conforme sua

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essência, uma virtude especial e (AQUINO, 2019:547) “apenas por sua virtualidade pode ser
chamada de justiça geral11”. Não se identifica, então, em essência, com toda virtude da justiça.
Além da justiça geral, existe a justiça particular, a qual orienta o homem sobre as coisas que
se referem à outra pessoa singular e cuja matéria são as ações e coisas exteriores, enquanto
(AQUINO, 2019:548) “por elas um homem se coordena com outro12”. Se a justiça geral mede
as relações da pessoa com a comunidade – e, por isso, orienta para o sentido de bem comum –,
(AQUINO, 2019:549) “a justiça particular regula as relações com a pessoa singular, quer se trate
de relações entre a comunidade e o indivíduo (justiça distributiva), quer se trate de relações entre
pessoas singulares (justiça comutativa)13”.
Tomás de Aquino endossa, desta maneira, a definição romana de justiça, ao resgatar seu
viés juridicizante. Com efeito, a justiça, na definição tomista, é considerada em função do direito.
É a virtude de cumprir e realizar o direito, o qual se torna o objeto da justiça, como aquilo para
cuja satisfação se orienta a ação justa. Além disso, é uma definição estritamente jurídica e muito
mais consentânea à dimensão da justiça, como bem do Direito, aqui tratada.
Com Tomás de Aquino, encerra-se o ciclo evolutivo da definição de justiça como bem
do Direito. Todas as teorizações posteriores não inovarão substancialmente no conceito ou irão
resgatar aquela noção de justiça magnificada, incompatível com a condição de bem jurídico, e
que tem seu campo de estudo desvelado pela Filosofia Política.
A perenidade e a beleza da definição ulpiana de justiça – dar a cada um o seu – não
procedem de nenhuma teorização desta ou daquela corrente filosófica – ela pode ser observada
em Aristóteles, nos estoicos e nos escolásticos – nem é o que poderia se chamar de uma noção
erudita ou sofisticada. É uma definição empírica, bem ao gosto da civilização romana, com o
mínimo de palavras possível, tomadas a partir de um dado concreto, a saber, o de que as coisas
estão distribuídas e é preciso dar a cada um o seu. Cumprir esse dever é uma virtude, a virtude de
dar a cada um o seu e isso se torna um bem do direito.
A definição ulpiana de justiça é a descrição de um fato, isto é, a existência de um hábito
10 Suma Teológica, II-II, q 58, a 2.
11 Suma Teológica, II-II, q 58, a 5.
12 Suma Teológica, II-II, q 58, a 7 – 8.
13 Suma Teológica, II-II, q.61.

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do homem – disposição constante e firme – relacionado a um dever ou preceito – dar a cada um


o seu – que concerne a um fato social relativo à repartição de bens e encargos. Ademais, o fato de
cada um ter o “seu” constitui um bem, uma parte da ordem social e, por isso, esse hábito é bom
e merece ser alçado ao status de bem jurídico que fomenta e contribui imensamente para o bem
comum. Nada mais distante do que uma teoria a descrição ulpiana de justiça.
A justiça de dar a cada um o seu é uma realidade, que não desapareceria nem mesmo
numa sociedade totalmente coletivizada – tudo de todos e nada de ninguém – na qual, por
não haver repartição de coisas, nem sequer de funções, não existiria o “seu” de cada um, até
o momento da repartição da alimentação, da vestimenta e do trabalho. Nesses casos, existiria
necessariamente alguma repartição, mesmo em tais sociedades, porque a repartição, por menor
que seja a dimensão das coisas de uma sociedade, é algo conatural ao homem e, por isso, deve ser
feita por uma causa e medida de justiça, tarefa que compete às leis.

1.1 DIREITO: LEI


Se a repartição antecede à justiça como bem jurídico, é porque as coisas foram divididas
e distribuídas, por critérios políticos, aos respectivos titulares e, para isso, o Direito conta com
um instrumento muito útil e eficaz: a lei, sua causa e medida. Falaremos dela como o outro bem
jurídico de destaque no estudo filosófico do Direito.

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O sentido próprio e primário do Direito não é a lei, mas o justo concreto, que compete ao
profissional do direito identificar e declarar no caso que lhe é submetido. Se assim não fosse, a
arte do Direito seria resumida à arte de fazer leis e, como corolário, haveria o risco de se enlear
metodologicamente filosofia do direito com filosofia política e ciência do direito com ciência
política e de se conduzir à uma noção pedagógica de que o trabalho do profissional do direito
estaria na mera e estrita aplicação da lei.
É conhecida a definição de lei dada por Tomás de Aquino (2019:567), a saber, “a lei é a
ordenação da razão tensionada ao bem comum de uma comunidade, dada por quem cuida da
sociedade, o príncipe ou o governante, e devidamente promulgada14”. Como uma ordem, a lei é
um ato da razão, pois (AQUINO, 2019:569) “a razão é a responsável por ordenar os meios para
o fim15”. No caso da lei, os meios são as ações de quem faz parte da sociedade e, o fim, o bem
comum desta. Mediante a lei, o governante ordena as ações dos cidadãos para o aprimoramento
de uma comunidade.
A lei é, portanto, uma regra de conduta, isto é, uma regra ou medida prática que define, de
forma pública e geral, um comportamento do cidadão tensionado para a realização e preservação
do bem comum da polis. A lei é pública num duplo sentido, porque, para ser uma lei, deve ser
promulgada, ou seja, deve ser conhecida por aqueles a quem afeta, e faz parte da esfera pública,
daquilo que os cidadãos partilham como povo ou nação. A lei é geral também em duplo sentido,
pois é dada para o grupo ou para uma parte do grupo de cidadãos, não para um único cidadão
e, em decorrência disso, a lei dita a conduta tida como positiva em geral, ou seja, a ação que deve
ser realizada em condições e circunstâncias ordinárias, que são as únicas que o legislador pode
prever e levar em consideração. A lei é ditada (AQUINO, 2019:569) “conforme o que sucede
ordinariamente16”.
O bem comum é o fim ou a razão da lei, ou seja, é a razão da existência da lei. Se uma lei
é contrária ao bem comum, ela não é válida como lei e não constitui, por si só, uma obrigação
moral. É uma lei iníqua ou uma corrupção de lei, por atentar contra o bem comum e o cidadão
não só pode como deve desobedecê-la civilmente ou se tornar um objetor de consciência se
14 Suma Teológica, I - II, q 90, a 4 c.
15 Suma Teológica, I-II, q 90, a 1 c.
16 Suma Teológica, I-II, q. 96, a 6.

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tal lei lhe impor uma obrigação. Da mesma forma, se em qualquer circunstância específica o
cumprimento de uma lei que, em geral, fosse prejudicial ao bem comum – grau anterior à lei
iníqua – não seria obrigatório obedecê-la de acordo com sua letra ou conteúdo expresso, mas
apenas de acordo com o espírito ou intenção que se possa assumir.
A lei é um ato da razão, mas também procede da vontade do legislador. A lei é também
um ato da vontade porque, com respeito a qualquer lei concreta, sua existência como tal, além de
seu conteúdo preciso, depende de um ato volitivo do legislador. Por mais racional que seja, a lei
não é um padrão de conduta que se deduz necessária e inequivocamente do bem comum. O fato
de a lei ser racional não significa que seja uma questão de racionalidade pura – uma conclusão
puramente lógica e apodítica – o fato de que a lei é o que é.
A lei também procede da vontade do legislador, porque é essa vontade que escolhe um
assunto ou um aspecto da vida em comum e resolve normatizá-lo, a fim de que haja um padrão
de conduta obrigatório para todos em prol do bem geral da comunidade. Dito de outra forma, é
uma determinação de querer esse bem que prescritivamente determina o caminho de se almejar
o bem da comunidade por parte dos cidadãos sujeitos à lei.
Certamente, é uma determinação racional, ou seja, motivada por razões, mas, quanto aos
meios, é objeto da prudência e não da ciência, ainda que existam ciências – a filosofia política,
a sociologia ou a história das instituições políticas – que estudem o fenômeno da política e da
sociedade. Em outras palavras, a razão da lei é fundada na razão prática e não na razão teórica e

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a razão prática, normalmente, não opera por meio de deduções e nem fornece certezas absolutas
ou irrefutáveis.
A lei tem a dupla função de moldar e mover. Quanto ao moldar, a lei dá forma ao viver
e ao agir em comum. Ela define a atividade comum, estabelece precisamente em que consiste a
ação coletiva, trabalha os parâmetros de uma atuação concreta e estável às ações compartilhadas,
tornamos realmente essas ações possíveis. Portanto, a lei não é uma simples restrição imposta à
nossa liberdade de ação, como se essa liberdade fosse previamente constituída de forma plena e
ilimitada e só precisasse ser contida para não colidir com a liberdade de outrem na esfera social.
A lei dá realidade à nossa liberdade, porque a realidade desta é a sua realidade prática e
social, que consiste na possibilidade efetiva de participar, de estar presente nas ações comuns,
que são realmente possíveis quando definidas pela lei. A realidade de nossa liberdade de ação é
a realidade das ações às quais nossa liberdade nos dá acesso. As leis que regulam uma atividade
– seja a economia, o trânsito e até mesmo as regras da FIFA – não limitam a nossa liberdade de
exercer tal atividade, mas antes dão realidade e conteúdo a essa liberdade, definindo em que
consiste a prática dessa atividade.
Cumprimos as leis para que a ação que realizamos, graças à nossa liberdade, seja
efetivamente a ação que essas leis informam. A lei não se opõe à liberdade, nem a restringe,
visto que cumprir as leis que definem uma atividade é realmente querer exercer essa atividade.
Contudo, a lei não apenas molda a ação humana em comum na sociedade, mas também move-nos
a agir dessa forma. A razão pela qual a lei pode nos obrigar a agir de determinada maneira é que
cumprir a lei é a condição de nosso próprio bem, de nosso melhor bem, que, por ser um bem
comum, é também o melhor bem dos outros membros da nossa sociedade.
Se assim não fosse, a lei não constituiria uma obrigação, mas uma coação, uma forma de
violência institucionalizada, pois é violência mover um ser para um fim que não lhe é próprio. A
lei prescreve a forma de agir que corresponde à ordem correta e à disposição do cidadão quanto
ao bem comum, ou seja, a forma própria e as características desse agir. Na lei, há a primazia de
conduzir os cidadãos à virtude, movê-los para a aquisição do caráter17 que convém a uma vida
17 Aristóteles e Tomás de Aquino apontam que, para alcançar a virtude, ensino e persuasão não são suficientes. É
necessária uma correta disposição prévia no sujeito que se educa, pois, sem essa disposição, que é fruto de uma boa educação, o
ensino e a persuasão não podem ser eficazes e quem os recebe não tirará bom proveito deles. Essa predisposição para a virtude
geralmente não ocorre na maioria dos homens. Por outro lado, a virtude é alcançada por meio da repetição de atos. Os modos

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comunitária excelente e para a vida plenamente humana, boa e feliz18. Por isso, a lei é necessária
não só para nos moldar, mas também para nos mover à ação.
A lei move os homens extrinsecamente – superando a falta de predisposição da maioria
deles – para a prática de boas ações, para que, pela experiência inicial e repetição dessas ações,
os homens se habituem a praticá-las, tornem-se familiarizados com elas e, assim, progridam
para a aquisição da virtude. Ao mover o homem a agir bem, a lei proporciona ao mesmo homem
uma experiência moral que ele não obteria a partir de suas próprias predisposições e que pode,
esperançosamente, despertar nele o apreço por essa forma de agir e pela consciência de sua
viabilidade na práxis. Desse modo, o homem torna-se apto para avançar na virtude por meio do
ensino e da exortação.
Ao recorrer a sanções premiais (recompensas) e a sanções penais (punições), a lei
incentiva o homem a agir bem, com motivos externos alheios ao seu ato, mas que são os motivos
que valem para uma vontade insuficientemente disposta, ou seja, incapaz de ser movida pelo bem
que este ato constitui. Mas esta espécie de motivação corresponde à uma intenção provisória. Seu
significado é mover o homem à ação correta, por motivações externas e impróprias, para que ele
se acostume a agir assim, desenvolva o hábito correspondente e passe a realizar essa ação com
plena voluntariedade, isto é, movido pelo bem intrínseco a ela.
Portanto, a lei normatiza algo que, por ela, torne-se, mais cedo ou mais tarde, num
costume, concitando os cidadãos a se envolver nessa forma de agir, passem a ter afeição por ela

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e, ao cabo, acabem por ser constituir numa forma usual e característica de se comportar. Por esse
motivo, a lei não deve ser alterada com frequência, caso contrário, nunca se tornará costumeira.
Só será prudente modificar a lei quando a melhoria dela obtida compensar a violação do costume
que esta modificação implica. Só se deleita o conhecido que, por ser conhecido, só pode ser um
bem do passado e não um bem puramente futuro.
Por meio da ameaça de punição ou da promessa de prêmio, a lei proporciona aos cidadãos
uma motivação imperfeita, externa ao bem que a lei prescreve, que é, porém, aquele que se aplica
aos cidadãos imperfeitamente dispostos para com a virtude e o bem comum. Esta motivação é
eficaz, porque apela a um bem conhecido e que pode ser estimado, por estes cidadãos, para os quais,
o bem da ação prevista na lei representa apenas um bem futuro, do qual não há conhecimento,
mas completa ignorância, entendido o conhecimento não pela mera compreensão conceitual ou
mental de seu conteúdo, mas pela compreensão viva e prática de sua qualidade de bem.
Movendo os cidadãos, assim, para fazer o bem, a lei busca que esses cidadãos, apesar
de suas disposições, tenham a experiência de boas ações, conheçam o bem que elas implicam e
que, com a intensificação desse saber que o costume acarreta, prossigam para executá-los pelo
motivo certo, isto é, pelo bem de tais ações. A obrigatoriedade da lei tem a função de neutralizar
a compulsividade de nossas paixões e tendências desordenadas. A lei move-nos externamente
para que, quanto às nossas ações para o bem comum, não estejamos à mercê do que nos move
internamente, o que muitas vezes não oferece garantias suficientes em favor do bem comum.
No fundo, a lei nos protege de nossa própria fraqueza moral, libera-nos de nossas
inclinações atuais e de nossos desejos momentâneos, buscando, ao mesmo tempo, elevar o nível
das motivações que sejam eficazes para nosso agir, tornando-as objeto de nossa obediência e
subtraindo-as, portanto, do domínio de nossa provável imprudência.
Desta forma, em nível de motivação de nosso agir, a mesma lei está chamada a ser
superada. Sua intervenção tende, por si só, a gerar as condições que fazem possível mitigar seu
de ser surgem de ações semelhantes. Para adquirir a virtude, temos que começar por realizar repetidamente atos de virtude an-
tes de possuí-la, isto é, antes de estarmos plenamente qualificados para esses tipos de atos: antes de saber fazer, querer e apreciar
genuinamente tais atos. Só é justo quem pratica atos de justiça. Só é veraz quem sempre fala a verdade. Como afirma Aristóteles,
em sua conhecida citação, o que precisamos aprender para fazer, aprendemos fazendo (Ética a Nicômaco, 1103 a 30). A virtude
é uma habilidade adquirida e, em toda habilidade ou competência adquirida, o saber-fazer é alcançado fazendo o que é o objeto
desse conhecimento. No conhecimento prático, a práxis precede e gera o conhecimento da mesma práxis.
18 Ética a Nicômaco, 1102 a 7 – 10, 1103 b 1 – 5. Suma Teológica, I-II, q 92, a 1.

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caráter compulsório e tais condições não são outra coisa que a virtude de seus cidadãos. A mesma
lei dirige-se ao fato de que o motivo adicional por ela apresentado é provisório e acaba sendo
substituído por outro mais perfeito e adequado: a própria bondade da ação por ele ditada.
É a virtude que torna o cidadão capaz de captar, como simplesmente bom, aquilo que é
legal, obrigatório ou imposto pela lei, e de o realizar por puro amor ao bem comum, vendo no
conteúdo da lei um meio, uma concreção legítima da realização deste bem. Em última análise,
queremos dizer que, cabe à lei, ser transcendida por ela mesma. Para adquirir virtude, temos que
começar fazendo atos de virtude, sem contar, é claro, com a virtude correspondente para fazê-lo.
Aprendemos a fazer algo, fazendo, como nos recorda Aristóteles.
Podemos realizar atos de virtude sem ainda ser virtuosos. Podemos fazer algo que
devemos aprender a fazer, sem ainda saber fazer, se tivermos um guia externo, como uma espécie
de padrão instituído e objetivado, ao qual nossas ações possam se conformar. Em qualquer
atividade – técnica, artística ou moral – a primeira prática dela, aquela que realizamos para
adquirir a excelência ou a virtude correspondente, é uma prática segundo um padrão objetivo e
institucional e que ainda não foi internalizado por nosso ser.
A lei, como padrão de agir, é o cânone ou medida externa, objetiva e institucional que
nossos atos devem reproduzir para serem atos de virtude antes de sermos virtuosos. Por isso, com
a lei, conseguimos que nossos atos sejam o tipo de ato cuja repetição seja apta a gerar a respectiva
virtude em cada um de nós. A virtude é o padrão interno e subjetivo de nossos atos – o caráter

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ou modo de ser de um indivíduo – que confere aos mesmos atos de virtude um nível de perfeição
superior ao expresso pela lei que dita esses mesmos atos, isto é, um nível de excelência superior
ao alcançado por nossos atos de virtude, quando consistem em cumprir e reproduzir estrita e
estoicamente o que a lei diz.
Cabe a esse padrão interno e subjetivo – a virtude ou a excelência – substituir aquele padrão
externo e objetivo – a lei ou a norma. A virtude dá origem a um modo de agir que transcende
a mera forma ou capa de virtude, a qual se encontra na lei como estímulo provisório. Ela nos
inicia – moldando-nos e movendo-nos – em ações compartilhadas e constitutivas de nosso viver
em comum para que, catapultados por essa prática inicial, alcancemos as virtudes nestas ações e
transcendamos – por apetecer, na práxis, o bem por ela proporcionado – as motivações que a lei
representa para nosso agir social.
Por isso, quanto menor é o grau de virtude de um povo, mais severas, numerosas, prolixas
e escrupulosas precisam ser as leis, a fim de que se mantenha a vida em comum. Foi por isso que
o adágio dura lex sed lex surgiu em Roma quando seu povo, já pouco virtuoso nos costumes na
segunda metade da fase imperial, estava em pleno processo de decadência civilizacional. Esse
efeito – provisório, em tese – da lei sobre as motivações, as tendências e os hábitos dos cidadãos,
consiste em seu atributo moral. A lei tem um caráter moral, porque induz nos cidadãos a formação
de um tipo de caráter, um modo de ser na práxis social, ou seja, um modo de saber, querer e agir.
A qualidade moral de uma lei reside na classe de pessoas que ela gera ou ajuda a gerar, por meio
da execução das ações que comanda ou da omissão das ações que ela proíbe.
Portanto, não faz sentido reivindicar um uso puramente técnico ou amoral da lei, isto é,
obter uma certa conduta dos homens por meio da lei, sem que se almeje, com isso, influenciar e
promover uma mudança em seu modo de ser no concerto comunitário. A lei não atua de forma
técnica, como se dá na dimensão da poiese, porque os homens sobre os quais atua não são matéria
que, sob os efeitos da lei, permaneçam estáveis e inalterados em sua integridade. Fingir que a lei
atue de forma técnica é fingir que ela permaneça definitivamente como uma razão puramente
externa da ação humana, transformando-os em seres autômatos, adestrados como se fossem
cachorros de raça, e não os aperfeiçoando como homens.
Toda lei promove o valor incorporado às ações que prescreve e desqualifica o que está
expresso nas ações que proíbe. A espécie de sociedade que exista ou de indivíduos que são seus

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cidadãos será um reflexo, em grande medida, das leis nela em vigor. Uma lei é moralmente positiva
quando seu cumprimento aprimora ou facilita nos cidadãos um desenvolvimento virtuoso de
si. Ao contrário, uma lei é moralmente negativa quando o acostumar dos cidadãos ao que a lei
dita piora-os como cidadãos, indispõe-os e os incapacita para o bem comum. Esta espécie de
lei é tanto mais prejudicial para a sociedade quanto mais cidadãos a cumprem e quanto mais o
conteúdo desta lei se torna habitual entre eles.
Por suposto, a lei deve somente e tão somente regular os atos dos cidadãos que afetam
mais clara e diretamente o bem comum e que a maioria dos cidadãos está em condições de
cumprir ou de se omitir. A lei não pode marcar, para a vida política, um nível de excelência que
supõe, como condição, um grau de virtude, disposição e capacidade moral dos cidadãos que, na
verdade, só se verifica nuns poucos.
Fazer isso seria contraproducente e, ao se tentar criar uma espécie de paraíso terrestre,
transformaria a vida num inferno social, pois a vida política se tornaria impossível ou insuportável
para a maioria dos cidadãos. A lei deve veicular o mínimo ético necessário e prudente para se
exigir publicamente dos cidadãos.

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Reflita: as leis, hoje, são vistas sob a perspectiva de busca de aprimoramento
virtuoso do cidadão naquele mínimo ético citado? Ou o legislador não só não dá
valor a isso, como já ignora essa dimensão completamente? Justifique.

2. ECONOMIA: DADO ECONÔMICO, SEUS SENTIDOS E CREMATÍSTICA


O dado econômico responde à uma condição e uma demanda antropológica. É uma
das reações do homem como espírito encarnado, assunto tratado pela antropologia filosófica,
diante da limitação imposta por sua corporificação na matéria. Em si mesma e principalmente, a
realidade econômica é uma atitude espiritual do homem, ser livre e responsável, comprometido
pelo condicionamento físico de um corpo que deve ser sustentado e protegido e de uma alma que
só encontra expressão por meio desse condicionamento corporal.
A materialidade impõe limitações ao homem. Em primeiro lugar, ele precisa de bens
para sua subsistência, bem como para seu desenvolvimento normal e, em segundo lugar, ele não
pode fazer tudo, porque seu tempo e capacidade são limitados e, por isso, ele deve escolher e agir
para satisfazer suas necessidades, de acordo com certas prioridades. Poderíamos falar, então,
de uma condição econômica básica do homem, no plano antropológico. Na verdade, o homem
é um “animal econômico”, como diz Aristóteles, no sentido de um “ser que precisa de casa19” e
a economia (oikonomia = oikos, do grego, casa + nomein, do grego, administrar) é a ciência do
sistema produtivo da “casa” em que vivemos, isto é, de uma cidade, de um estado e de um país.
Podemos distinguir três estratos do dado econômico:

a. Insuficiência ontológica do homem;


b. Agir otimizante do homem;
c. Condição social do homem.

Até aqui, desenvolvemos o primeiro estrato, ou seja, do homem como um animal econômico,
enquanto ser indigente ou necessitado. No segundo estrato, as necessidades dão origem a um agir
19 Ética a Eudemo, VII, 10.

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que se baseia em determinadas capacidades. O ser humano pode conhecer e disponibilizar os


meios para ter os recursos de que necessita para satisfazer as suas necessidades. Como ele deve
fazê-lo da maneira mais razoável possível, de acordo com sua disponibilidade e de acordo com
sua definição de prioridades, o homem tem uma razão adaptada a esta peculiar modalidade de
escolha, isto é, a racionalidade humana goza de uma dimensão econômica.
A partir do estudo da razão, o homem elege e pode atuar economicamente, procurando
utilizar seus recursos da melhor maneira possível. Isso pressupõe ser o homem livre, dentro das
margens impostas por suas limitações, ou seja, o homem é um animal econômico, enquanto pode
escolher e agir na otimização dos meios. No terceiro estrato, é preciso dizer que a condição social
do homem tem estreita relação com suas limitações materiais. Os atos que dão origem ao uso de
bens úteis são, na maioria das vezes, interações de indivíduos ou de instituições compostas por
indivíduos.
Por um lado, pode-se pensar que a necessária divisão do trabalho imposta pelas limitações
humanas dá origem às relações sociais. Por outro lado, pode-se inferir que, ao contrário, a
condição social do homem vem em seu auxílio como solução para essas limitações. O homem
tem uma natureza tal que suas ações ocorrem em seu marco social, mas não pode haver atos
de troca sem um mínimo de confiança na comunidade. A troca torna-se muito difícil, senão
impossível, num clima de desconfiança generalizada.
Apesar de ser possível tentar isolar o indivíduo e analisar seus atos econômicos individuais,

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na realidade, só existem indivíduos que fazem economia em determinadas circunstâncias sociais
e jurídicas. A partir daqui, veremos como o dado econômico assume seu verdadeiro significado
no contexto da sociedade.
Sob qualquer ângulo, essas relações econômicas cristalizam-se em instituições e
atividades econômicas, nas quais o social e o econômico estão intrinsecamente entrelaçados,
como o dinheiro, o mercado, a empresa, o preço e o trabalho e a produção, todos componentes
da dimensão econômica do homem.
Essas instituições e atividades não estão isoladas, mas inseridas num todo coletivo mais
amplo, a sociedade e, por envolverem uma práxis econômica, estão jungidas a um agir dotado de
eticidade, cujo desenho, assim como o funcionamento, devem refletir o melhor do ser humano e
serem tensionadas em prol do bem comum. Deve-se acrescentar que a essência social do homem
implica efeitos sociais de atos econômicos individuais. Ou seja, o econômico é como o homem,
essencialmente social. Até agora, o temos o dado econômico como um traço antropológico: o homem
tem necessidades e age socialmente para satisfazê-las.
Podemos, então, falar de uma natureza humana econômica e de uma racionalidade
humana econômica. No entanto, notamos que estamos num nível de generalidade que dá lugar
somente a uma “noção imprópria” do dado econômico. Quando falamos do dado econômico,
queremos dizer algo ainda mais concreto. A economia não é a ciência das atitudes espirituais
do homem em geral e tampouco é a ciência genérica dos fins do comportamento livre e nem a
ciência da realidade social em que esse comportamento livre é exercido.
No entanto, embora não seja a principal, essa noção imprópria é importante, porque
remete à raiz do dado econômico, dada por uma limitação humana radicada na materialidade,
ligada, consequentemente, à temporalidade e por uma capacidade de superá-la no âmbito social.
A partir dessa “noção imprópria”, chegamos à “noção própria” do dado econômico, dotada de
dois sentidos. O primeiro, mais amplo, refere-se à necessidade humana. Nessa linha, podemos
afirmar que o dado econômico é constituído pelo material econômico, isto é, o conjunto de decisões
e ações voltadas para a satisfação das demandas humanas, materiais ou espirituais, mediadas
materialmente.
O segundo, mais estrito, representa a maneira peculiar de realizar esses atos econômicos,
isto é, o “razoável”, o “melhor possível” ou o “ótimo”, como os economistas o chamam. Então,

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o dado econômico consiste na aplicação do princípio econômico da maximização na mediação


material das necessidades humanas.
Desta maneira, podemos falar de economia em:

a. Sentido impróprio: caráter econômico antropológico;


b. Sentido próprio amplo: material econômico;
c. Sentido próprio estrito: princípio econômico da maximização, diretivo das decisões
e ações econômicas.

No sentido próprio amplo, falamos de demandas humanas, expressão que, hoje, vai além
de necessidades humanas e, por isso, abrange não só as necessidades elementares – ligadas à
subsistência – como aquelas que se originam de necessidades supérfluas – desligadas desta
subsistência. Aqui, entra em cena o conceito de utilidade, consistente na aptidão de um bem para
satisfazer uma demanda humana. Esse sentido próprio amplo é um tipo de ação humana, dotada
de certa racionalidade, livre e que visa a dispor bens e serviços que atendam a algo que o homem
demande.
Para Aristóteles, a economia é o uso do necessário para a vida boa ou a vida virtuosa e para
ele ainda há um elemento essencial que conecta a realidade econômica do nível antropológico
com o nível social, a saber, o fim da vida boa, uma vida de virtudes na polis. Para ele, a economia

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deve ser boa e política, pois o homem não é bom em estado de solidão, já que só pode florescer
pessoalmente no seio de uma comunidade. Segundo nosso filósofo, a excelência da economia é
de natureza ética – por se tratar de uma práxis – e o interesse econômico deve ser combinado
com uma atuação social e transcendente.
Esta concepção do dado econômico intenta integrar a economia no conjunto da vida
do espírito, sem perder sua especificidade, mas evitando que se constitua autonomamente e a
todo o custo, pois isso irrompe no materialismo e na falsificação radical da realidade humana.
Sabemos que a economia real, uma atividade efetiva e concreta, é sempre a economia de uma
comunidade humana, de um modo de vida comum ou ethos, e está ordenada à manutenção e ao
aperfeiçoamento dessa comunidade, isto é, para seu bem comum. Por meio dessa visão do dado
econômico, dá-se um giro normativo, não apenas descritivo, ao sentido próprio amplo do termo.
O homem deve realizar atos econômicos que devem ser integrados na totalidade de suas ações,
de natureza moral e social.
A atividade de distribuição envolve uma decisão e muitos economistas falam da economia
como a ciência da escolha. Para eles, o econômico seria justamente uma escolha humana ou
um comportamento que supõe uma escolha. Mas economia não é bem isso, porquanto o
humano não se esgota no econômico e, se assim fosse, isso reduziria o homem a ser um agente
maximizador consistente na satisfação de suas preferências, qualquer que seja o conteúdo e a
ordem de preferências desse mesmo agente.
Esta é uma visão da racionalidade prática profundamente oposta às teses defendidas por
Aristóteles e Tomás de Aquino e às premissas das pessoas comuns cuja autoconsciência ainda
não foi colonizada pela ordem social capitalista ocidental. Ademais, no sentido próprio amplo, o
dado econômico é consciente, livre, responsável e social, voltado para a produção de riquezas. A
liberdade como característica do dado econômico é outra característica que torna o econômico
uma atividade tipicamente humana.
A liberdade ingressa no dado econômico em vários níveis. Por um lado, é uma escolha
ou ato livre e, por outra, geralmente, é necessária para a troca. Todavia, o exercício econômico
do homem é livre no sentido de indeterminação das necessidades ou dos fins. Se as necessidades
fossem determinadas, a economia se “resolveria” em técnica. Por isso, é equivocado deixar os fins
fora da economia, como ciência, como se fossem simplesmente dados. Parte da economia transita

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pela escolha dos fins: o livre, muitas vezes, não está na necessidade – de comer, por exemplo –,
mas na especificação desta – cardápio de cozinha mineira, italiana ou francesa.
A liberdade inserida no econômico e o fato de que boa parte do econômico acontece
no futuro dá origem a outra característica do econômico, a saber, a incerteza. Não poderia ser
diferente, pois a economia lida com eventos futuros e livres, sempre suscetíveis de implemento ou
não. O dado econômico também é social, porque se cuida daquele campo ou zona da vida social
para a troca de bens e serviços e a própria forma da economia reside na atividade de troca ou de
intercâmbio. O econômico é o que é apto à troca e a justiça é a virtude que o regula. Finalmente,
as decisões e ações econômicas não são violentas, porque são decisões e ações de alocação de
recursos para determinados objetivos.
No sentido próprio estrito, o dado econômico é um modo concreto de satisfazer as
demandas humanas, isto é, quando é feito do melhor modo possível, a fim de se conseguir o
melhor rendimento factível. Dito de outra maneira, esse modo é atendido quando a relação entre
os insumos, os meios ou os recursos e os resultados ou objetivos é a máxima ou a ótima. O agir
econômico que não estiver em conformidade com essas condições normativas de otimização será
qualificado como ruim do ponto de vista econômico, porque é preciso obter o melhor resultado
possível dos recursos. Em suma, trata-se de otimizar a relação custo-benefício.
No cotejo entre os sentidos próprios (amplo e estrito), emerge uma diferença patente e
invencível. O motivo ou racionalidade que orienta a ação no caso do sentido estrito é apenas o

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“econômico”, a saber, o princípio da maximização. Ao invés disso, o sentido amplo inclui esse
motivo e outros, pois nem sempre tomamos nossas decisões quanto ao uso dos recursos buscando
aproveitá-los ao máximo, mas também por outras motivações, como gosto, capricho ou hábito.
Por que surge o sentido estrito? Porque muitos economistas consideram, como chave
para definição de econômico, a escassez. Seriam econômicas as ações humanas motivadas ou
confrontadas com o problema da escassez dos meios necessários para atingir os fins seriam
econômicas. Deliberações e atos econômicos seriam a administração de recursos limitados e
úteis. A realidade da escassez implicaria a do custo de oportunidade, ou seja, se uso algo para um
propósito, não posso usá-lo para outro simultaneamente.
Parece uma visão negativa da realidade econômica, mas ela tem seu lado positivo,
porquanto a necessidade econômica reduz os elementos a serem levados em consideração, isto é,
facilita o trabalho da razão, porque, senão, a complexidade excessiva, causada pela multiplicidade
de alternativas, deixa-nos perplexos. A realidade da limitação é uma característica antropológica
óbvia e também está ligada à materialidade humana. A questão da escassez tem sido objeto de
reflexão de muitos pensadores e foi levantado, de forma singular, por Malthus.
A teodiceia de Malthus, entendida como uma explicação da escassez, considera a
necessidade e a escassez como instrumentos para a formação da mente. Independentemente dos
exageros da teoria maltusiana, há uma dimensão econômica necessária na perfeição humana.
A visão aristotélica da economia pressupõe um indivíduo com desejos limitados. Se os desejos
fossem ilimitados, a escassez existiria em qualquer caso. Nessa suposição de ilimitação, o sentido
próprio amplo do econômico não faria sentido, porque sempre seria necessário maximizar.
Não haveria lugar para uma provisão pacífica do que é ou pode ser produzido sem uma
obsessão pelo desempenho ótimo, já que este último seria sempre necessário, pois os desejos
nunca seriam satisfeitos e estaríamos sempre tentando cobri-los o máximo ou da melhor maneira
possível. Essa distorção ocorre quando o homem se deixa governar pelos desejos, que podem ser
ilimitados, em vez de cobrir necessidades, que são sempre limitadas. Na verdade, hoje, parte disso
acontece, mas com um viés mais patológico (consumismo).
Aristóteles concebe “o oikonomiké” que usa os bens necessários para a boa vida e a arte
crematística pela qual esses bens são produzidos ou adquiridos. A crematística, a arte de produzir
riqueza, faz parte da economia, desde que busquem os meios segundo os limites impostos pelo fim

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da polis. A política e a ética aristotélicas estabelecem o critério de distinção entre uma crematística
econômica – subordinada à ética e à política –, e outra não-econômica.
Aristóteles descreve suas características na obra Política (1256 a – 1258 a). Em primeiro
lugar, a crematística econômica é natural e a crematística não-econômica não é. Em segundo
lugar, a crematística econômica é necessária e a crematística não-econômica é desnecessária e
esta característica provém de uma terceira, a mais importante: a crematística econômica busca
seu fim de modo limitado e a crematística não-econômica o faz de maneira ilimitada, porque,
nesse caso, (ARISTÓTELES, 2006:13) “parece não haver limite para a riqueza e a propriedade.
Essa crematística comercial parece ter o dinheiro como objeto, pois o dinheiro é o elemento e o
fim da troca e a riqueza resultante desta crematística é ilimitada. (...) A economia doméstica tem
um limite, pois sua missão não é a de desde aquisição ilimitada de dinheiro, mas a de ter à mão
os recursos armazenáveis necessários à vida. Ambos utilizam a propriedade, mas não da mesma
maneira, porque uma persegue um fim externo e a outra tão somente seu próprio aumento20”.
Toda arte busca seu fim de maneira ilimitada, mas os meios são necessariamente limitados
a esse fim. Sendo o fim da crematística não-econômica a busca das riquezas e posses materiais, se
não estiver satisfeita, ela as buscará de forma ilimitada. Aristóteles (2006:14) afirma que “o limite
da riqueza é o necessário para viver bem. Uma certa medida de riqueza é necessária para viver
moderadamente bem e alcançar a felicidade21”. Para Aristóteles (2006:111), “com efeito, os bens
externos têm um limite, como qualquer instrumento, e todas as coisas são de tal natureza que seu

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excesso necessariamente prejudica22”.
A crematística não-econômica ignora a virtude e busca apenas o viver. Qual é a causa? O
apetite concupiscível ilimitado que leva a buscar os meios também sem limites. O desejo de prazeres,
que parece depender dos bens que se possui, provoca o desejo de se dedicar inteiramente aos negócios.
As faculdades humanas são utilizadas de forma antinatural, buscando, como fim em todas elas,
produzir dinheiro e mais dinheiro ou riqueza e mais riqueza.
Por essa razão, segundo Aristóteles, a crematística não-econômica segue o princípio geral
de alcançar o monopólio sempre que possível. Ela busca apenas o lucro mais alto e não se satisfaz
com o fornecimento e a produção adequados e suficientes. É desnecessário dizer que, hoje, a
crematística não-econômica reina soberana no mundo dos negócios.
A crematística não-econômica foi considerada por pensadores tão variados como Weber
e Marx. Ambos interpretam o fenômeno capitalista neste sentido. Weber o faz como diagnóstico,
em que a racionalização moderna implica o domínio dos fins pelos meios, e Marx o faz como
denúncia, onde a alienação traz consigo o domínio dos homens pelo fetiche da mercadoria.
Por mais que busquemos atender as necessidades limitadas, na verdade, todos os tipos
imagináveis de necessidades não estão disponíveis para todos a qualquer momento. Em vez disso,
a condição humana limitada implica a necessidade habitual de maximizar a ação econômica. Os
bens são suficientes, mas não se distribuem de forma que a tarefa de alocação seja dispensável.
Portanto, não basta que haja troca, mas deve-se tentar que ela seja maximizada. A
limitação leva à troca e sua otimização à fixação de um preço adequado. Trata-se de usar os
recursos com sabedoria, fazendo com que tenham o máximo de desempenho possível o que,
aliás, nessas condições, é um imperativo moral na órbita econômica.

20 Política, 1257 b.
21 Política, 1258 a
22 Política, 1324 a.

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Reflita: à luz da reinante crematística não-econômica nos mercados do mundo


ocidental, poderíamos dizer que, nestes ambientes, já não mais respiramos uma
economia de mercado, porque já enveredamos para uma “sociedade de mercado”?
Justifique.

Hausman, Daniel M., “Philosophy of Economics”, The Stanford


Encyclopedia of Philosophy (Winter 2021 Edition), Edward N.
Zalta (ed.):
https://plato.stanford.edu/entries/economics/

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Martins Fontes, 2009.

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Conference Intro | Petar Popović - The Concept of Ius in Aquinas: Analysis of Texts
and Sources:
h t t p s : / / w w w . y o u t u b e . c o m /
watch?v=rYoGrcHxI64&list=PLQHZG24dTS1NhBAy3Tc2_1DTVjwU3Ijm7

What Is Law? A Thomistic Perspective | Fr Gregory Pine, O.P:


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