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A origem da singularidade do ser humano.

Análise das hipóteses


de educadores À luz da perspectiva de Vygotsky.
Tereza Cristina R. REGO

REGO, Tereza Cristina R.. A Origem Da Singularidade Do Ser Humano. Análise Das Hipóteses De
Educadores À Luz Da Perspectiva De Vygotsky.
Disponível em: http://www.educacaoonline.pro.br/ a_origem_da_singularidade.asp?f_id_artigo=297

É praticamente impossível negar as diferenças individuais entre os sujeitos


de uma determinada cultura, assim como a variabilidade dos indivíduos de
diferentes grupos culturais. A constatação da singularidade humana,
observável inclusive pelo senso comum, levanta o problema da origem
destas diferenças. Esta questão foi, ao longo do tempo, objeto de pesquisa
de diferentes áreas do conhecimento, especialmente da filosofia, psicologia,
antropologia e sociologia e ainda ocupa papel de destaque nas reflexões
contemporâneas. Para a educação, o problema se coloca de uma outra
forma: o que fazer com as diferenças encontradas? Supomos que a
resposta a esta indagação está intimamente associada à concepção
adotada para explicar a origem da constituição da singularidade humana.

Entendemos que a visão do educador acerca da origem das características


individuais interfere na sua atuação prática, ou, ao menos, influencia sua
maneira de compreender e explicar as relações entre o ensino e a
aprendizagem. Ou seja, as posições defendidas pelos educadores acerca
deste tema expressam, ainda que de forma implícita, uma visão de homem
e de mundo, e revelam, mais particularmente, determinadas concepções
sobre os processos de desenvolvimento e aprendizagem do ser humano e
do papel da educação.

Consideramos também que a compreensão do pensamento do professor, o


conhecimento mais profundo daquilo que ele já sabe, pode servir como um
interessante indicador daquilo que ele precisa saber, ou seja, das
informações que necessita para embasar seu trabalho junto às crianças,
para corrigir equívocos, para redimensionar e analisar com mais criticidade
sua prática e para buscar soluções alternativas para os problemas do
cotidiano pedagógico. Desta maneira, a compreensão das representações e
hipóteses teóricas do professor, assim como a explicitação dos princípios
subjacentes a essas visões, servem como ponto de partida para as ações
que visam a formação e o aperfeiçoamento do trabalho docente.

Tomar como ponto de partida o conhecimento que o educador já tem para


ajudá-lo na construção de novos conhecimentos, é também uma maneira
de sermos coerentes com as práticas progressistas que se pretende
implantar na sala de aula. Em outras palavras, se pretendemos que os
professores valorizem, respeitem e ampliem o conhecimento que as
crianças já possuem (ao ingressarem na escola ou no aprendizado de
quaisquer conteúdos), que formem indivíduos confiantes, críticos,
autônomos e reflexivos, que estabeleçam uma relação democrática com as
crianças, que entendam que o erro é uma hipótese de conhecimento e
portanto um caminho necessário para aprender etc., devemos fazer o
mesmo em relação ao processo de aprendizagem do professor. Com isto
queremos dizer que os que trabalham na área de formação de professores
não podem esperar mudanças na atuação do professor junto aos seus
alunos se não mudarem também a sua forma de atuar junto aos
professores.

Acreditamos ainda que este seja também um caminho profícuo na busca de


aproximação entre as pesquisas realizadas nas universidades e a prática
educativa, instâncias que, apesar da dependência mútua, são tão
divorciadas.

Baseando-nos nesse pressuposto procuramos investigar as idéias,


hipóteses, conjunto de crenças e representações que compõem a visão de
alguns educadores sobre as origens da constituição e da singularidade
humana ([i]) . A partir do exame das características das opiniões defendidas
por cada sujeito, com vistas a revelar os processos implícitos a seu
pensamento, buscamos identificar semelhanças entre os membros do grupo
estudado reunindo-os em categorias que expressam diferentes hipóteses
subjacentes. Realizamos também um levantamento de alguns indicadores
do perfil sócio-profissional dos sujeitos participantes da amostra, que foram
relacionados com as hipóteses predominantes entre esses profissionais.

Objetivando obter uma visão mais abrangente e crítica das informações


resultantes da pesquisa empírica e de suas implicações para a prática
docente, analisamos as diferentes teorias já elaboradas sobre a origem da
constituição humana: as abordagens inatista, ambientalista e interacionista.
Nesse estudo, procuramos explicitar os pressupostos filosóficos,
epistemológicos, psicológicos e as implicações educacionais que cada
paradigma encerra.

Buscamos ainda um exame mais detalhado dos postulados elaborados por


Lev S. Vygotsky que propõem uma abordagem original e consistente sobre
as origens das características humanas a partir da análise das interações
dialéticas entre o indivíduo e sua cultura e, como consequência, inspiram
importantes reflexões acerca do papel da educação. Fizemos também uma
breve reflexão sobre o tratamento dado ao tema por alguns autores de
livros didáticos geralmente adotados nos cursos (de Magistério, Pedagogia
e Licenciatura) de formação de professores.

As hipóteses dos educadores

O principal instrumento adotado para a coleta dos dados empíricos foi uma
redação sobre a origem das diferenças individuais produzida pelos
indivíduos estudados. Os textos foram elaborados a partir da seguinte
questão, que objetivou suscitar reflexões sobre o tema: "Cada pessoa tem
características próprias e diferentes modo de ser e de pensar, capacidades,
valores, comportamentos etc. Qual seria a origem destas diferenças?"

Consideramos que a análise das concepções destes profissionais sobre


esse tema foi bastante fértil na medida em que possibilitou a identificação
de suas teorias e princípios explicativos, ainda que implícitos, sobre as
bases psicológicas do desenvolvimento e aprendizagem do ser humano e a
dimensão biológica e cultural envolvida na formação de cada pessoa. Como
consequência, ao explicitar seus paradigmas quanto a compreensão da
natureza humana, os educadores acabaram por revelar suas convicções
sobre possibilidade (ou não) de transformação e aprendizado do aluno.

Discutiremos a seguir algumas características recorrentes nas redações


que merecem ser comentadas, ainda que não diretamente relacionadas à
questão do conteúdo, objeto central dessa pesquisa.

Uma característica observada em várias redações é a que se refere à


presença de comentários e observações que expressam conflitos, dúvidas
ou questionamentos. Consideramos este aspecto particularmente curioso
na medida em que é revelador do esforço cognitivo e da dificuldade que a
reflexão sobre o tema provoca. Parece que se deparam com limites, que
sentem a falta de informações básicas, acesso a teorias e formulações já
elaboradas que possam dar elementos e subsídios para a resposta da
questão colocada. É também surpreendente o fato de alguns educadores
comentarem que nunca haviam pensado no assunto. É curioso na medida
em que, refletir sobre a origem das características individuais, é também
pensar sobre a natureza da relação que liga o indivíduo e seu meio, que por
sua vez está diretamente relacionada à questão do desenvolvimento e
aprendizagem do ser humano. Estas questões são subjacentes à prática do
professor, portanto, a análise deste tema é praticamente inerente a função
do educador, já que sua tarefa principal é a de promover o desenvolvimento
infantil e o processo de apropriação, por parte das crianças, dos
conhecimentos acumulados por sua cultura.

Um outro aspecto bastante presente nos textos analisados é o que se refere


a freqüente utilização de exemplos pessoais (os autores falam de si, de
suas famílias de origem, e principalmente das características de seus
filhos). Se isto de um lado é interessante, pois demonstra envolvimento,
sinceridade e autenticidade na colocação de suas hipóteses, de outro,
parece indicar que as referências da vida doméstica prevalecem sobre as
profissionais. Em contrapartida, é relativamente pequeno o número de
redações que tecem comentários sobre crianças de um modo geral ou mais
especificamente sobre os alunos. Na maior parte das vezes as observações
são bastante inconsistentes, marcadas pelos mitos e valores do senso
comum. Parecem se prender ao meramente opinativo, a explicações
dogmáticas e acríticas.

Em alguns textos seus autores fazem, uma certa apologia das diferenças,
se detendo na constatação da singularidade de cada ser humano ou no
julgamento do valor dessas diferenças. Estes trechos revelam uma
significativa superficialidade no tratamento do problema. Se restringem ao
aspecto meramente opinativo, às frases feitas, aos lugares-comuns, não
procuram fundamentar suas idéias e afirmações.

Passaremos a seguir, a análise das opiniões defendidas pelos educadores


pesquisados.

Um grupo de educadores (14,5% da amostra) atribui aos fatores internos ao


indivíduo a origem da constituição da singularidade humana. Levantam a
hipótese de que as características básicas de cada ser humano
(personalidade, hábitos, modos de agir, capacidade mental etc.) já estariam
definidas desde o nascimento (não sofrendo praticamente nenhuma
alteração ao longo da existência da pessoa) ou presentes potencialmente,
desenvolvendo-se com a maturação. As características individuais são
entendidas, assim, como imediatamente inatas (presentes desde o
nascimento) ou virtualmente inatas (pois se desenvolverão posteriormente).
Deste modo, admitem a presença de uma "essência humana" (entendida
como algo inerente à natureza humana ou nela colocado por uma entidade
superior a ela) a priori. O mundo externo (os objetos, o grupo cultural etc.)
tem a reduzida função de subsidiar o que está determinado previamente no
indivíduo.

É interessante observar que as redações deste grupo se distinguem quanto


à definição dos fatores que originam as capacidades inatas. Alguns afirmam
que as características individuais tem origens metafísicas, uma
dependência divina. Ou seja, se utilizam de preceitos religiosos (criação
divina, Deus, vidas passadas) do catolicismo ou do espiritismo para explicar
a presença de uma "essência humana" previamente determinada. Assim os
"dons", "aptidões", "caráter", "destino" e "sorte" de cada um já estariam
traçados por uma força superior. Outros atribuem exclusivamente à
hereditariedade, ao patrimônio genético as características humanas. É
como se o indivíduo fosse somente um ser biológico, não pertencesse a um
grupo social, não fizesse parte de um contexto cultural, fosse apenas um
organismo, resultado da "composição genética" herdada de seus pais ou de
outros parentes. Em outras redações, observamos que seus autores
explicam de forma genérica a origem inata das características humanas:
falam em "dons e talentos" inscritos na "natureza de cada indivíduo", e na
impossibilidade de transformação dos traços comportamentais e das
capacidades intelectuais.

De qualquer modo, os educadores que defendem esta opinião apontam


para uma espécie de limitação humana a priori, pois a natureza humana é
dada e imutável; no máximo conseguirá se atualizar ou amadurecer frente
as pressões do meio.

A abordagem inatista promove uma expectativa significativamente limitada


do papel da educação para o desenvolvimento do sujeito, na medida em
que considera o desempenho individual dependente de suas capacidades
inatas. O processo educativo fica assim na dependência de traços
comportamentais ou cognitivos inerentes ao aluno. Desse modo, essa
perspectiva acaba gerando um certo imobilismo e resignação provocada
pela convicção de que as diferenças não serão superáveis pela educação.
Podemos identificar o mesmo descrédito no papel da educação revelado
nos que defendem posições inatistas, entre aqueles que descartam a
hipótese de que as características individuais estão completamente
definidas no ato do nascimento, mas que admitem que estas se
desenvolverão "naturalmente", em etapas sucessivas, ao longo do tempo,
independente da aprendizagem. Neste caso, entende-se que o processo de
desenvolvimento psíquico da criança se realiza segundo leis próprias, é
portanto, um processo endógeno que independe de conhecimentos, da sua
experiência e de sua cultura. Como consequência, o ensino não influencia
nem interfere no processo de desenvolvimento das capacidades intelectuais
dos alunos, nem tão pouco no seu comportamento; pelo contrário, somente
pode se utilizar dos resultados alcançados pelo desenvolvimento
espontâneo. Assim o processo maturacional, marcadamente biológico,
alcançado pela criança é que definirá as possibilidades da ação educativa.

Em suma, ao explicar as diferenças individuais, e mais particularmente a


singularidade da constituição humana, através de posições
inatistas/aprioristas, elimina-se a influência e ignorar com a cultura e,
consequentemente, o desempenho das crianças na escola deixa de ser
responsabilidade do sistema educacional. Terá sucesso na escola a criança
que tiver algumas qualidades, aptidões, ou pré-requisitos básicos, que
implicarão na garantia de aprendizagem, tais como: inteligência, esforço,
atenção, interesse ou mesmo maturidade para aprender. Deste modo, a
responsabilidade está na criança (e no máximo em sua família) e não na
sua relação com o contexto social mais amplo, nem tão pouco na própria
dinâmica interna da escola.

Um número significativo de educadores (20,9% do total) atribue


exclusivamente aos fatores externos a origem da constituição da
singularidade do ser humano. Valorizam a experiência, entendida como
estímulos recebidos do meio ambiente, capazes de provocar determinadas
reações e respostas no indivíduo. O ser humano aqui é concebido como o
produto da ação modeladora do meio ambiente.

Estas redações têm em comum o fato de apresentarem hipóteses


semelhantes principalmente no que se refere à compreensão de que as
características de cada indivíduo são adquiridas e à atitude passiva do
indivíduo diante das pressões do meio, mas variam quanto ao valor
atribuído aos elementos externos envolvidos nesta formação (criação
familiar, convivência com pessoas, sociedade, experiências de vida etc.).
Quase todas falam do meio num sentido genérico, poucas mencionam o
patrimônio cultural e os condicionantes históricos e políticos.

Uma das mais graves implicações da abordagem ambientalista para a


educação está relacionada a visão de homem que esta perspectiva encerra.
A pressuposição é de um indivíduo passivo frente as pressões do meio, que
tem seu comportamento moldado, manipulado, controlado e determinado
pelas definições do ambiente que vive. Portanto, sua capacidade de se
modificar ou interferir no contexto social e político, no sentido de transformá-
lo e inová-lo é residual, pois apenas reproduz as características de seu
ambiente.

Se na abordagem inatista os problemas relativos ao fracasso e evasão


escolar são de exclusiva responsabilidade do aluno, nessa perspectiva o
quadro se inverte. As causas das dificuldades do aluno são atribuídas ao
universo social, como a pobreza, a desnutrição, a composição familiar, ao
ambiente em que vive, à violência da sociedade atual, a influência da
televisão etc. Parece que em ambos os casos a escola se isenta de uma
avaliação interna e não se vê como promotora (ainda que não exclusiva) do
fracasso (ou sucesso) escolar.

Deste modo, o determinismo dos fatores ambientais no indivíduo endossa a


mesma sensação de impotência por parte dos educadores, como já
observamos na pedagogia que se embasa na abordagem inatista, porém
agora é justificada de outra maneira. Ou seja, é tamanha a força
modeladora do aspecto social, que a escola se torna impotente e sem
instrumentos para lidar com a criança, principalmente aquela proveniente
das camadas populares. Este paradigma pode servir também para
fundamentar práticas espontaneístas. Já que o ambiente é o principal
responsável pela formação humana, pode-se entender que a construção de
conhecimentos se dá exclusivamente através das relações que os alunos
estabelecem de forma "espontânea e livre" com o seu meio físico. É como
se o mero contado ou experiência com os objetos fosse definidor da
aprendizagem. É curioso observar que os postulados do ambientalismo
servem para legitimar e justificar ainda práticas diretivistas e autoritárias. Já
que o aluno é visto como alguém que se forma a partir das influências do
meio, cabe aos professores a "modelagem" do caráter e comportamento do
indivíduo assim como a transmissão de um grande volume de conteúdos e
conceitos.

Como se pode verificar, os postulados ambientalistas/empiristas acabam


gerando, no plano educativo, posições radicais e paradoxais: num extremo
justifica um grande ceticismo e desconfiança do papel da educação, no
outro, uma espécie de onipotência das instituições educativas, dentre elas a
escola.

A maior parte dos educadores (50% da amostra) explica a questão da


origem das características humanas à partir da combinação de fatores
internos e externos. No entanto, diferentemente de um autêntico paradigma
interacionista, pressupõem uma somatória ou justaposição entre fatores
inatos e adquiridos.

Segundo este grupo, o indivíduo nasce com algumas características


(valores, capacidades, inteligência, tipo de comportamento, caráter etc.)
mas que, somadas ou justapostas às influências do meio (aqui entendido
como: experiência de vida, origem cultural, social e familiar), podem se
modificar. Sendo assim, não questionam a hipótese inatista de que existe
uma "essência humana" a priori, nem tão pouco a ambientalista, pois
valorizam as pressões que o indivíduo recebe da sociedade. Para este
grupo de educadores, o indivíduo é resultado de uma dupla determinação:
de fatores inatos, portanto internos ao indivíduo, e das pressões do meio
ambiente, externos ao sujeito. Na constituição das especificidades de cada
ser humano o meio parece ser compreendido como tendo o papel de
reforçador, reformador ou modelador de comportamentos inatos. Apesar
dessas redações apresentarem pressupostos comuns, identificamos dois
modos diferentes de abordagem do problema. Um grupo é bastante
convicto e categórico ao afirmar que o indivíduo é fruto da soma de
aspectos internos e externos. O outro, apesar de admitir a combinação
entre estes dois fatores, apresenta contradições ao longo do
desenvolvimento da argumentação. É comum começarem o texto afirmando
uma questão e, em seguida, exemplificarem com outra totalmente
divergente. Ou seja, defendem uma idéia, mas no desenrolar da reflexo se
contradizem.

Ao identificarmos estes dois modos de tratamento do problema, não


estamos obviamente preocupados com o "estilo do texto" e sim com as
hipóteses que podem estar por trás de um texto que não apresenta
coerência interna. Estas redações nos fazem supor tratar-se de um tema
pouco resolvido para este grupo de educadores. Desafiados a dissertar
sobre o assunto, parecem transitar, de modo inseguro, entre explicações
inatistas e associacionistas aparentemente sem perceber as incoerências e
contradições esboçadas.

A perspectiva sócio-interacionista de Vygotsky: a cultura torna-se parte da


natureza humana

Na concepção vygotskiana, coerente com os pressupostos do materialismo-


dialético, organismo e meio determinam-se mutuamente, portanto o
biológico e o social não estão dissociados, pois exercem influência
recíproca. Nesta perspectiva, a premissa é de que o homem constitui-se
como tal através de suas interações sociais.([ii]) O desenvolvimento da
estrutura humana é entendido assim, como um processo de apropriação do
sujeito da experiência histórica e cultural. Nesse processo, o indivíduo ao
mesmo tempo em que internaliza as formas culturais, as transforma e
intervém em seu meio. Desse ponto de vista, o homem é visto como alguém
que transforma e é transformado nas relações produzidas em uma
determinada cultura. É, portanto na relação dialética com o mundo que o
sujeito se constitui e se desenvolve. Deste modo, o ser humano não só é
um produto de seu contexto social, mas também um agente ativo na criação
deste contexto (Vygotsky, 1984 e 1987).

É necessário ressaltar que, nesta perspectiva, o que ocorre não é uma


somatória nem tão pouco uma justaposição entre os fatores inatos e os
adquiridos e sim uma interação dialética que se dá, desde o nascimento,
entre o ser humano e o meio social e cultural que se insere. Ou seja, as
características do funcionamento psicológico tipicamente humano são
construídas ao longo da vida do indivíduo através de um processo de
interação do homem e seu meio físico e social, que possibilita a apropriação
da cultura elaborada pelas gerações precedentes, ao longo de milênios.

Segundo Vygotsky, a estrutura fisiológica humana, aquilo que é inato, não é


suficiente para produzir o indivíduo humano, na ausência do ambiente
social. As características individuais (modo de agir, de pensar, de sentir,
valores, conhecimentos, visão de mundo etc.) dependem da interação do
ser humano com o meio físico e social e especialmente das trocas
estabelecidas com os seus semelhantes, sobretudo dos mais experientes
de seu grupo cultural.

Na perspectiva esboçada por Vygotsky o aprendizado é, portanto, um


aspecto imprescindível na formação e no desenvolvimento dos traços
típicos do ser humano, já que as conquistas individuais (informações,
valores, habilidades, atitudes, posturas), resultam de um processo
compartilhado, com pessoas e outros elementos de sua cultura. Desse
modo, o desenvolvimento de cada ser humano dependerá das inúmeras
influências culturais, das aprendizagens e das experiências educativas,
inclusive as realizadas na escola.

Vygotsky, por sugerir um novo paradima sobre a gênese humana,


possibilita um modo diferente de olhar a escola, o conhecimento, a criança,
o professor e até a sociedade. Várias reflexões sobre a prática escolar
poderiam ser feitas a partir das inspirações trazidas por suas idéias. Os
limites deste texto não nos permite explorar as inúmeras implicações de
suas teses à educação. Talvez uma das maiores contribuições de seu
pensamento esteja no fato dele suscitar questionamentos em torno de
temas nevrálgicos e ainda mal resolvidos no sistema educacional vigente
em nossa realidade (conforme analisam Wertsch, 1985; Oliveira, 1992;
Smolka & Góes, 1993 e Rego, 1995).

Conclusões

Este trabalho de pesquisa não teve o caráter e a intenção de chegar a


resultados conclusivos e definitivos, e sim a análises aproximativas da visão
dos professores sobre a constituição da singularidade humana.
Entendemos que a compreensão dos pressupostos dos educadores é
importante já que eles influenciam o seu modo de ensinar, se relacionar
com as crianças, entender as razões do sucesso ou fracasso na escola.

Como vimos, a pesquisa demonstrou que o grupo estudado apresentou


basicamente três diferentes concepções sobre o tema. Uma parcela
considerou que a origem da constituição e singularidade humana esta em
fatores inatos (definidos por razões biológicas ou divinas, prontos ao nascer
ou dados como potencialidade), internos portanto ao indivíduo. Um outro
segmento afirmou que a origem das características individuais esta
exclusivamente na influência do ambiente, portanto, se deve a fatores
externos ao indivíduo. A maior parte dos sujeitos levanta a hipótese que o
comportamento humano é resultante da somatória de aspectos inatos e
adquiridos.

A análise dos postulados vygotskianos demonstra, no entanto, que esta


visão defendida pela maioria dos educadores, aparentemente interacionista,
é bem diferente de um autêntico paradigma interacionista que compreende
o homem como um sujeito histórico-social, que se constitui na sua interação
com o meio, que transforma e é transformado nas relações sociais
produzidas em uma determinada cultura.

Vemos assim que nos três casos, seja privilegiando o indivíduo como
organismo biológico ou entidade abstrata, as imposições do ambiente sobre
um organismo passivo, ou ainda, apenas somando um determinismo
apriorístico às influências ambientais, o ser humano não é compreendido na
sua totalidade e a realidade é vista de forma estática e imutável. As três
visões expressam a idéia de um determinismo prévio (por razões inatas
e/ou adquiridas), que acarreta uma espécie de perplexidade e imobilismo do
sistema educacional. A escola se vê assim, desvalorizada e isenta de
cumprir o seu papel de possibilitadora e desafiadora (ainda que não
exclusiva) do processo de constituição do sujeito, do ponto de vista do seu
comportamento de um modo geral e da construção de conhecimentos.

As argumentações utilizadas pelo grupo de educadores pesquisados


parecem indicar que lhes falta informações e um conhecimento mais
aprofundado sobre a questão das relações entre o aprendizado e o
desenvolvimento do ser humano. Demonstram um discurso fortemente
marcado pelos mitos, dogmas e valores do senso comum. Parecem não
conseguir romper e superar os limites da intuição: não só não recorrem as
formulações teóricas já sistematizadas como nos dão a impressão que as
desconhecem.

No entanto, um olhar mais aprofundado sobre estes dados parece indicar


que o ideário destes educadores não apenas espelha as crenças do senso
comum como talvez possa ser o reflexo de alguns componentes presentes
em sua formação profissional. Ou seja, supomos que as hipóteses do grupo
estudado, que trazem implícitas uma cosmovisão, se fundamentam e se
originam também de informações provenientes de várias áreas das ciências
humanas, que durante muito tempo se mostraram impregnadas desta
antinomia indivíduo x sociedade.

Várias correntes de pensamento elaboradas ao longo do tempo,


particularmente na Filosofia e Psicologia, forneceram diferentes orientações
à educação. Esses estudos, na maior parte das vezes, trataram de forma
dicotomizada e polarizada as complexas relações entre o homem e o meio,
entre o herdado e o adquirido, o universal e o particular, a mente e o corpo,
o biológico e o cultural, a consciência e o físico, o espírito e a matéria, o
orgânico e o social, o sujeito e o objeto etc.

As teorias disponíveis neste campo revelam diferentes concepções e


modos de explicar as dimensões biológicas e culturais e a forma pela qual o
sujeito se constitui, aprende e se desenvolve. Cada uma delas é marcada
pelas características do momento e do contexto-histórico em que foi
formulada e pelos diversos paradigmas e pressupostos filosóficos e
epistemológicos que as inspiraram. Definem, deste modo, diferentes modos
de conceber o homem, seus processos ontogenéticos e filogenéticos, e
mais particularmente, as possibilidades da ação educativa.

Alguns estudiosos, seguindo as premissas da filosofia racionalista, idealista


e apriorista (elaboradas por Renê Descartes, Malebranche, Espinoza,
Leibniz, Wolff e Kant) desenvolveram uma teoria baseada na crença de que
as características e capacidades básicas de cada ser humano
(personalidade, valores, comportamento, formas de pensar etc) eram
inatas. Ou seja, já estariam praticamente prontas no momento do
nascimento ou potencialmente definidas e na dependência do
amadurecimento para se manifestar. Na Psicologia, a concepção inatista
originou uma série de pesquisas e formulações teóricas, tais como a teoria
nativista de percepção, a escola gestaltista, as teses eugenistas e
psicométricas.
Podemos constatar as influências das tradições racionalistas e idealistas
nos trabalhos desenvolvidos por Johannes Muller, Ewald Hering, Jacob von
Uexkull, H. R. Maturana, Mc Dougall, Francis Galton, J. Mckeen Cattell, A.
Binet, Burt, Jensen e H. J. Eysenck. A noção de idéias inatas e a polemica
em torno do inatismo tem ressurgido na época atual principalmente pela
teoria psicolinguística de Chomsky. Em contrapartida, a concepção
ambientalista, inspirada na epistemologia empirista e positivista (cujos
expoentes foram: Francis Bacon, Tomás Hobbes, John Locke e Augusto
Comte), privilegia a ação da cultura e o meio como fatores exclusivos da
formação da conduta humana. Foi significativa a influência destes
postulados para a Psicologia. Uma série de pesquisas e estudos foram
elaboradas a partir destes pressupostos (como as desenvolvidas por
Helmholtz, Edward Lee Thorndike, Ivan Petrovitch Pavlov, Sechenov, M. D.
Bekhterev, John B. Watson, Burrhus Frederik Skinner e os trabalhos
contemporâneas de Kamim). O behaviorismo, paradigma predominante na
Psicologia durante a primeira metade deste século, insere-se justamente
nesta tradição epistemológica.

Estas teses, tão fortemente presentes na história do pensamento ocidental,


poderiam ser postuladas como fundamentos das opiniões inatistas e
ambientalistas expressas por alguns segmentos do grupo estudado. Isto é,
ao refletir sobre a questão da origem das características individuais o
sujeito, ainda que superando as concepções do senso comum e tendo
acesso a uma reflexão informada por abordagens teóricas, pode ter
recorrido a explicações correspondentes aos dois pólos das clássicas
dicotomias presentes na ciência e na Filosofia. Entretanto, a própria
incidência, no grupo estudado, de hipóteses que associam fatores
determinados a priori e fatores resultantes das influências do meio, parece
indicar a insuficiência das explicações que excluem um, ou outro, desses
aspectos.

A maior parte dos sujeitos parece haver procurado superar essa


insuficiência construindo uma versão capaz de contemplar aspectos
internos e externos ao indivíduo. Como essa versão não é imediatamente
dedutível das postulações clássicas da Filosofia e da Psicologia, cabe
perguntar de onde os educadores teriam retirado elementos para sua
construção.

Talvez, parte da resposta a esta questão possa ser encontrada nas


relações, entre a forma de pensar do educador e sua experiência prática.
Constatamos que a natureza da função exercida parece alterar sua maneira
de conceber a origem das diferenças individuais e, consequentemente, o
papel da educação. Supomos que esta característica possa estar associada
às observações, constatações e questões suscitadas na prática de cada um
([iii]). Evidentemente essa questão precisaria ser melhor analisada à luz do
exame das muitas facetas que podem compor a forma de ser, atuar e
pensar do educador. A título de indicação de possíveis caminhos para esta
análise, julgamos relevante mencionar uma constatação que nos causou
bastante surpresa e inquietação.

Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, tivemos a oportunidade de


entrar em contato com alguns livros de psicologia (traduções de manuais
americanos) adotados em cursos de formação de professores (magistério,
pedagogia etc.). Procuramos analisar, ainda que brevemente, o tratamento
dado à questão da origem da constituição da singularidade humana.([iv])
Foi interessante observar que ao refletirem sobre esse tema, a maior parte
dos autores desses textos acabaram por revelar indefinições, ambiguidades
e contradições semelhantes às expressas pelo grupo de educadores
pesquisado. Em alguns trechos, os autores chegam a postular a interação
entre a dimensão biológica e cultural na gênese do desenvolvimento
humano, ou seja, parecem compartilhar dos pressupostos interacionistas.

Todavia, em várias outras passagens, acabam se contradizendo, parecendo


admitir uma espécie de somatória ou justaposição de fatores biológicos e
ambientais, bastante diferente, portanto, de um verdadeiro paradigma
interacionista.

Finalmente em outras ocasiões, esses mesmos autores parecem acreditar


que os genes não são determinantes apenas dos traços físicos hereditários
(como por ex., cor dos olhos e cabelo, estatura etc.) pois chegam a afirmar
que as características individuais (traços da personalidade, desempenho
intelectual etc.) devem-se - exclusivamente ou parcialmente - às
determinações genéticas/hereditárias, isto é, à fatores endógenos.

À luz de todos os elementos analisados podemos afirmar que a pesquisa


realizada aponta para a necessidade de uma revisão e aprimoramento da
qualidade da formação prévia ou continuada que é oferecida ao educador.
Essa tarefa deve levar em consideração as concepções dos educadores,
necessariamente imersos em uma rede de informações teóricas e do senso
comum. Nesse sentido é curioso observar que os educadores estudados
expressam de modos diferentes, ainda que de forma intuitiva, a crise dos
paradigmas, ainda tão presente nas ciências humanas.

BIBLIOGRAFIA:

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1993.

WERTSCH, James V. Vygotsky y la formación social de la mente.


Barcelona: Paidós, 1985.

VAN DER VEER, R. & VALSINER, J. Vygotsky: uma síntese. São Paulo:
Unimarco & Loyola, 1996

VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. 1. ed, São Paulo: Martins


Fontes, 1984.

VYGOTSKY, Lev S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes,


1984.
VYGOTSKY, L. S. & LURIA, A. R. Estudos sobre a história do
comportamento: símios, homem primitivo e criança. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1996

ENDEREÇO PARA CONTATO: TERESA CRISTINA R. REGO

RUA FRANCISCO ISOLDI N. 33. SUMAREZINHO


SÃO PAULO SP. CEP: 05440-041. FONE: 864 8865

[i] - A pesquisa foi realizada com 172 professores e outros educadores


(coordenadores, diretores, professores de magistério, estudantes etc) da
rede pública que atuam na área da pré-escola e séries iniciais do 1o. grau,
que resultou na dissertaçÆo de Mestrado "A origem da singularidade do ser
humano. Análise das hipóteses de educadores à luz da perspectiva de
Vygotsky.", defendida na Faculdade de Educação da USP, sob a orientação
da Profa. Dra. Marta Kohl de Oliveira (Rego, 1994)

[ii]- Podemos encontrar inúmeros pontos de convergência entre a


abordagem sócio-interacionista vygotskiana e as teses expressas pelo
psicólogo francês Henri Wallon, que também se inspirou nos pressupostos
da filosofia marxista. Piaget, embora compartilhe dos postulados
interacionistas, parece enfatizar os fatores endógenos no processo de
desenvolvimento da pessoa. Figueiredo (1991, p. 114) destaca outros
estudiosos que enfatizaram as interações recíprocas entre ambiente e
organismo e entre a história do indivíduo e a espécie: no final do século XIX
autores como Baldwin, Loyd Morgan e Poulton e no século XX Waddington
e Freud.

[iii]- Nos referimos a significativa predominância de professores de 1o. grau


que defendem a somatória de fatores inatos e adquiridos. Esta tendência
pode estar associada às inegáveis evidências das influências do contexto
sócio-cultural nos processo de cada aluno como também aos problemas
crônicos do sistema educacional vivênciado nas séries iniciais: enormes
índices de evasão e repetência. É como se o professor tendesse a "dividir"
sua culpa e responsabilidade pelo fracasso (ou sucesso) escolar entre os
fatores externos (família de origem do aluno, condições sócio-econômicas
etc) e os internos (jeito de ser, capacidades cognitivas etc.), inerentes ao
aluno.

[iv] - A análise feita foi bastante incipiente e exploratória, não pretende,


portanto, ser conclusiva nem generalizável. Os livros (KRECH &
CRUTCHFIELD, 1973; MÜLLER 1977; MUSSEN, 1988) examinados foram
indicados por alguns professores que atuam no Magistério, em cursos de
Pedagogia e Licenciatura.

Para citar este artigo copie as linhas abaixo:


TEREZA CRISTINA R. REGO. A ORIGEM DA SINGULARIDADE DO
SER HUMANO. ANÁLISE DAS HIPÓTESES DE EDUCADORES À LUZ
DA PERSPECTIVA DE VYGOTSKY

Cadernos CEDES (35), 65-77.

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