O TERCEIRO SETOR, AGENTE TRANSFORMADOR

ARTIGO
DA REALIDADE SOCIAL, E A PARTICIPAÇÃO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO NESTA ATUAÇÃO
KATIA MARIA ARAUJO DE OLIVEIRA

RESUMO Fagundes, que respondendo a consulta sobre a

A Constituição de 5 de outubro de 1988
assegurou ao Ministério Público o papel de
instituição incumbida da proteção das liberdades
públicas constitucionais, e da defesa dos direitos
sociais indisponíveis. Neste mesmo período, com a
chamada globalização, surgiu um Terceiro Setor na
sociedade pátria, promovendo ações de natureza
SULYDGD FRP ¿QV S~EOLFRV H FRP HVWH WUDEDOKR
objetiva-se conceituar este Terceiro Setor, bem
como demonstrar o papel do Ministério Público em
sua regulação.
Sendo inegável que os interesses das entidades
do Terceiro Setor, em especial das fundações, são
indisponíveis e que o Ministério Público está cons-
titucionalmente incumbido de zelar, promovendo as
medidas necessárias, na defesa de tais interesses,
bem como considerando que fundação, entidade
símbolo deste setor, é um patrimônio personaliza-
do, a serviço de uma comunidade, protegido com
especial atenção pelo Estado, e que desta função
protetora foi incumbido o Ministério Público. Bem
como acompanhando o professor Miguel Seabra
atuação do Ministério Público no Terceiro Setor,
assim discorre: “O papel do Ministério Público em
relação às fundações não é de mero observador
das irregularidades que nela ocorrem. Tanto em
face de artigos do Código Civil, como de artigos
do Código de Processo Civil, que aquele comple-
mentam, o que compete a esse órgão é velar em
GHIHVD GDV ¿QDOLGDGHV GDV IXQGDo}HV H GR VHX
patrimônio. A expressão que nesses textos se
XVD 9(/$5 3(/$6 )81'$d®(6 ± VLJQL¿FD D
entrega ao Ministério Público da guarda ativa das
IXQGDo}HVGHPRGRTXHSRVVD¿VFDOL]DUDVDGPL-
nistrações delas para que não desviem do reto ca-
PLQKRHSDUDDWHQGLPHQWRGDV¿QDOLGDGHVYLVDGDV
pelo instituidor”, vislumbra-se os fundamentos da
atuação ministerial na defesa do chamado inte-
resse público primário, presente nas atividades do
Terceiro Setor.
O Estado deve incentivar o desenvolvimento
dessas entidades, porém deve estar munido
GR DSDUDWR QHFHVViULR SDUD D ¿VFDOL]DomR GRV
serviços por elas prestados. Deve o Terceiro Setor

30 T&C Amazônia, Ano V, Número 10, Fevereiro de 2007

 O Terceiro Setor, agente transformador da realidade social, e a participação do Ministério Público nesta atuação
estar munido de instrumentos adequados que
sirvam não só para que as entidades prosperem,
como realizem suas atividades com transparência
H H¿FLrQFLD 1HVWH PRPHQWR VXUJH R 0LQLVWpULR
Público como instituição defensora dos interesses
VRFLDLVLQGLVSRQtYHLVTXHFRPDWXDomR¿VFDOL]DGRUD
acompanhará o crescimento das entidades,
velando pelo respeito as atividades públicas que
executam.
Palavras-chave: Terceiro Setor, Ministério
Público, fundações, associações, interesse so-
cial
INTRODUÇÃO
2 %UDVLO DWp R ¿QDO GD GpFDGD GH RLWHQWD
possuía uma economia estatizada, porém com o
surgimento do fenômeno globalizante foi o país
forçado a abrir as portas do mercado interno para
o mercado externo, o que implicou em uma maior
demanda por ações sociais.
Já com o movimento globalizante em ação,
começaram as privatizações de empresas estatais,
e a abertura da economia ao capital internacional,
obrigando uma modernização do Primeiro Setor
(público) e do Segundo Setor (privado).
3RUIRUoDGHVWHGXDOLVPRHGHVWDVPRGL¿FDo}HV
sociais, emergiu uma esfera pública não-estatal,
despontou um Terceiro Setor, onde se situam
organizações privadas, com objetivos públicos,
portanto, situadas em uma posição intermediária
que permite as entidades componentes deste setor
prestar serviços de interesse social sem a limitação
do Estado, e sem as ambições do Mercado,
apresentando características do Primeiro e do
Segundo Setor.
O Terceiro Setor caracteriza-se por ser um
setor nem público nem privado, traduzindo-se em
expressão que no ensino de Simone Coelho na
obra “Terceiro Setor um estudo comparado entre
Brasil e Estados Unidos”, pode ser conceituado
“ como termo que expressa uma alternativa para
as desvantagens tanto do Mercado, associadas
á maximização do lucro, quanto do governo, com
T&C Amazônia, Ano V, Número 10, Fevereiro de 2007
VXDEXURFUDFLDLQRSHUDQWH&RPELQDDÀH[LELOLGDGH
H D H¿FLrQFLD GR 0HUFDGR FRP D HTXLGDGH H D
previsibilidade da burocracia pública”(COELHO,
2000).
Salomon e Anheir apresentam a melhor
GH¿QLomRSDUDR7HUFHLUR6HWRUFRQFHLWXDQGRHVWDV
entidades como aquelas que possuem as seguintes
características:
1)Estruturadas - possuem certo nível de for-
malização de regras e procedimentos, ou algum
grau de organização permanente.
2)Privadas - estas organizações não têm
nenhuma relação institucional com governos,
embora possam dele receber recursos.
3)Não distribuidoras de lucro - nenhum lucro
gerado pode ser distribuído entre seus proprie-
tários ou dirigentes. Portanto, o que distingue
essas organizações não é o fato de não pos-
VXtUHP³¿QVOXFUDWLYRV´HVLPRGHVWLQRTXHp
dado a estes, quando existem, pois devem ser
dirigidos à realização da missão da instituição.
4)Autônoma - possuem os meios para con-
trolar a própria gestão, não sendo controladas
por entidades externas.
 9ROXQWiULDVHQYROYHPXPJUDXVLJQL¿FD-
tivo de participação voluntária (SALAMON E
ANHEIER, 1997).
(P WHUPRV GH GLUHLWR EUDVLOHLUR FRQ¿JXUDPVH
como organizações do Terceiro Setor as entida-
GHV GH LQWHUHVVH VRFLDO VHP ¿QV OXFUDWLYRV FRPR
as associações e as fundações de direito privado,
enumeradas no Artigo 44 do atual Código Civil
Brasileiro, todas com autonomia própria, cujo obje-
tivo é o atendimento a necessidades sociais.
Observa-se a importância do Terceiro Setor ao
reconhecê-lo como o setor composto por entidades
que promovem o desenvolvimento social, a solida-
riedade humana e o crescimento das comunidades
31
 O Terceiro Setor, agente transformador da realidade social, e a participação do Ministério Público nesta atuação
que servem. Escreve Sabo Paes que “observando
a trajetória do Terceiro Setor entre nós, podemos
LGHQWL¿FDU QLWLGDPHQWH D H[LVWrQFLD GH XPD IDFH
bem tradicional, marcada pelo assistencialismo à
moda antiga e epitomada pelo paternalismo e a
condescendência da esmola; e uma face mais mo-
derna, dinâmica, onde os direitos sociais passaram
a ser reconhecidos como inerentes ao conceito de
cidadania em uma sociedade que se pretende civi-
lizada” (SABO PAES, 2003).
(VSHFL¿FDPHQWH IXQGDo}HV VmR HQWLGDGHV GH
GLUHLWR SULYDGR VHP ¿QV OXFUDWLYRV FULDGDV FRP
EDVHQRVDUWLJRVDGR&yGLJR&LYLOGH¿QLGDV
por Maria Helena Diniz, como sendo “universalida-
de de bens personalizados pela ordem jurídica, em
FRQVLGHUDomR D XP ¿P HVWLSXODGR SHOR IXQGDGRU
sendo esse objetivo imutável e seus órgãos ser-
vientes, pois todas as resoluções estão delimitadas
pelo instituidor. É, pois, um acervo de bens livres,
que recebe da lei a capacidade jurídica para reali-
]DU DV ¿QDOLGDGHV SUHWHQGLGDV SHORV LQVWLWXLGRUHV
em atenção aos seus estatutos” (DINIZ, 1996).
Entidades que, conforme expressa determinação
legal constante do artigo 66 do Código Civil são
veladas pelo Ministério Público.
Desde os primórdios da civilização ocidental, as
fundações já apresentavam as características atu-
DLVRXVHMDSDWULP{QLRH¿QDOLGDGHVRFLDO(QVLQD
Iglesias que na época “como os particulares não
podiam constituir fundações com os próprios bens
– o direito clássico vedava tal possibilidade – havia
a solução de doá-los ou legá-los a uma pessoa
jurídica, com a estipulação de ônus, denominado
á época, de modus. Passava-se o patrimônio para
pessoa jurídica já existente, através de doação ou
legado, arcando o donatário ou legatário com o
ônus que lhe era atribuído pelo doador” (IGLESIAS,
1965).
$SDUWLUGH5RPDHFRPRSDVVDUGRVVpFXORV
o instituto espalhou-se por todo o continente eu-
ropeu, especialmente na Alemanha, Inglaterra e
Suécia. Da Europa, o instituto foi “exportado” para
R FRQWLQHQWH DPHULFDQR ¿[DQGRVH QRWDGDPHQWH
nos EUA e Canadá. Ensina Luiz Fernando Coelho
que “a proliferação das fundações americanas é
32
decorrência direta do extraordinário progresso eco-
nômico da nação americana, e, mais que isso, do
fenômeno da concentração de riquezas incalculá-
veis em mãos dos particulares que se defrontaram
com a responsabilidade de fazer a comunidade a
que pertenciam participar dos frutos dessa rique-
za; assim, uma extensa e valiosa rede de univer-
sidades, bibliotecas, museus, teatros, orquestras
sinfônicas, hospitais, orfanatos, etc, expandiu-se
por toda a América do Norte e mesmo fora do país.
Paralelamente ao espírito público de alguns verda-
deiros mecenas da época moderna, encontraram
as grandes empresas industriais, na instituição
fundacional, um meio de diminuição de lucros tri-
butáveis, carreando com isso somas incalculáveis
de dinheiro e bens que, ao invés de serem pagos
diretamente ao Estado, sob forma de tributos, con-
¿JXUDYDP HVSpFLH GH SDJDPHQWR LQGLUHWR Mi TXH
ocorria em favor da comunidade, no amparo à pes-
TXLVDHDRHQVLQRQR¿QDQFLDPHQWRGDVDWLYLGDGHV
culturais e manutenção dos necessitados, tudo
isso incentivado por uma legislação inteligente e
realmente voltada para o bem comum” (COELHO,
1978).
Apesar de longa presença no mundo jurídico
alienígena, no Brasil só se ouviu falar de fundações
no início do século passado, e o instituto só se con-
solidou no ordenamento jurídico brasileiro com o
advento do Código Civil de 1916.
Da mesma forma, a expressão Terceiro Setor
só começou a despontar na sociedade brasileira,
na década de oitenta, acompanhando as transfor-
mações mundiais.
O MINISTÉRIO PÚBLICO E A REGULAÇÃO
DO TERCEIRO SETOR
Como o crescimento do Terceiro Setor implica
em “desmonte” de um padrão de intervenção social
HVWDWDOLQWHQomRHVWDFRQ¿JXUDGDQD&RQVWLWXLomR
de 1988, e tendo esta mesma Constituição concei-
tuado o Ministério Público como instituição que de-
fenderá a ordem jurídica do regime, bem como os
interesses sociais e individuais indisponíveis, deve
a instituição, ao exercer suas atribuições constitu-
T&C Amazônia, Ano V, Número 10, Fevereiro de 2007
 O Terceiro Setor, agente transformador da realidade social, e a participação do Ministério Público nesta atuação
cionais, defendendo a sociedade, despontar como
importante mentor da regulação do Terceiro Setor,
HPHVSHFLDOSHODUHQ~QFLD¿VFDOGR(VWDGREUDVLOHL-
ro em benefício destas entidades.
(PVHXSDSHOGHRULHQWDUH¿VFDOL]DUHVWHVHWRU
o Ministério Público, no ensino de Isan Oliveira de
5H]HQGHVXUJH³FRPRRXWURDXWRUQHVWHSURFHVVR
GHIRUWDOHFLPHQWRFRPRWUDEDOKRGHXQL¿FDomRHR
tratamento por parte das promotorias para com as
organizações do Terceiro Setor, de velar sem pa-
WUXOKDUGHLQVWUXLUHGHSRLV¿VFDOL]DU´ 5(=(1'(
2000).
Quando o Terceiro Setor, através das entida-
des que o compõem, chegar a mobilizar 5% do
Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, média inter-
nacional, muitos de nossos problemas básicos de
desenvolvimento social estarão resolvidos, e esta
cifra só será atingida quando as organizações não-
governamentais possuírem condições adequadas
de atuação sustentada, momento em que o papel
RULHQWDGRUH¿VFDOL]DGRUGR0LQLVWpULR3~EOLFRVHUi
imprescindível.
A atuação do Ministério Público torna-se ainda
PDLVH¿FD]TXDQGRDVHQWLGDGHVGR7HUFHLUR6HWRU
organizam-se como fundação pois a instituição é
sempre competente para pleitear declarações de
LQH[LVWrQFLD QXOLGDGH DQXODELOLGDGH RX LQH¿FiFLD
de atos de administradores, alteração de estatuto,
bem como de extinção destas entidades. Como en-
sina Antônio Cláudio de Costa Machado na obra “A
intervenção do Ministério Público no Processo Civil
Brasileiro” “...só se viabiliza um controle administra-
WLYRHIHWLYRVHDOHLHQWUHJDUDRyUJmR¿VFDOL]DGRU
concomitantemente, os remédios processuais ade-
quados à realização judicial de suas pretensões...
QRSRGHU¿PGHYHODUSHODVIXQGDo}HVHQFRQWUDVH
implícito, logicamente, o poder-meio de promover
todas as medidas judiciais cabíveis a bem da admi-
nistração e dos escopos fundacionais...o velar pelas
fundações é sinônimo de atribuição administrativa,
de legitimação ativa ad causam e de legitimação
interventiva...” (MACHADO, 2000).
T&C Amazônia, Ano V, Número 10, Fevereiro de 2007
BENEFÍCIOS FISCAIS DO TERCEIRO
SETOR E A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO.
No Estado Brasileiro, o desenvolvimento das
DWLYLGDGHV GR 7HUFHLUR 6HWRU p EHQH¿FLDGR SHOD
concessão de imunidades e isenções tributárias.
No caso da inserção das imunidades tributárias no
direito pátrio, em especial no texto constitucional
“denotam verdadeiramente a expressão máxima
dos movimentos constitucionais [...] pois represen-
tam a resposta normativa à idéia de interferência
do Estado no sentido de garantia dos anseios da
comunidade e da aplicação direta da justiça so-
cial...” (SOUZA, 2004).
Neste caso, o Direito Tributário é utilizado como
instrumento de política social, buscando a diminui-
ção das diferenças econômicas ocorrentes entre
pessoas, grupos e regiões.
5HFRQKHFHQGR R (VWDGR %UDVLOHLUR TXH DV HQ-
tidades do Terceiro Setor desenvolvem atividades
que seriam de sua responsabilidade, por se tratar
de prover direitos sociais, e que o provimento des-
tas necessidades pela iniciativa privada não deso-
nera o Poder Público de suas responsabilidades,
os constituintes incluiram imunidades e isenções
WULEXWiULDV EHQH¿FLDQGR HVWDV HQWLGDGHV QR WH[WR
constitucional.
O Ministério Público, em seu papel de protetor
dos direitos sociais indisponíveis, procura exercer
DWLYLGDGH¿VFDOL]DGRUDGHPRGRHIHWLYRHH¿FLHQWH
HP DomR FRQWtQXD H FRQVWDQWH D ¿P GH YHUL¿FDU
se realizam os órgãos dirigentes das entidades
proveitosa administração, de modo a alcançar, da
forma mais completa, a vontade do instituidor. Em
GHFLVmRSUHVHQWHQR6XSUHPR7ULEXQDO)HGHUDO 5(
63  SXEOLFDGD QD 57 Y  S  H VV
observa-se:
Cabe ao Ministério Público o exercício de
medida de vigilância, em que se constatará se
a fundação está sendo gerida segundo a lei e
os estatutos, como outrossim, de tutela, em que
VH YHUL¿FDUi VH D IXQGDomR HVWi VHQGR JHULGD
em moldes convenientes e oportunos para al-
cançar-se os seus altos objetivos..
33
 O Terceiro Setor, agente transformador da realidade social, e a participação do Ministério Público nesta atuação
CONCLUSÃO
$SyVHVWHHVWXGRpSRVVtYHODD¿UPDomRGHTXH
o desenvolvimento do Terceiro Setor no Brasil ocor-
rerá, certamente, com a intervenção do Ministério
Público, pois será através da atuação dos membros
da instituição que as organizações que constituem
este setor irão adquirir credibilidade indispensável
a sua ação em prol da sociedade brasileira.
$WUDYpV GRV PHFDQLVPRV DGHTXDGRV GH ¿VFD-
lização e controle, mecanismos que contam com
com a participação ativa do Ministério Público, a
contribuição das entidades do Terceiro Setor na
criação de um Estado Social, que substituirá o
Estado Liberal, que substituiu o Estado Medieval
será concretizada.
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,%(7 6mR 3DXOR 5HVHQKD 7ULEXWiULD
1975.
Katia Maria Araujo de Oliveira é Promotora
de Justiça, titular da Promotoria de Justiça de
Fundações e Massas Falidas. Graduada pela
8QLYHUVLGDGH &kQGLGR 0HQGHV 5-  (VSHFLDOLVWD
em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade
&kQGLGR 0HQGHV 5-  (VSHFLDOLVWD HP 'LUHLWR
Penal e Processual Penal pela Universidade
Federal do Amazonas (AM). Membro do Conselho
Fiscal da Associação Brasileira de Procuradores e
Promotores de Justiça de Fundações e Entidades
de Interesse Social. (katiaoliveira@mp.am.gov.br).
T&C Amazônia, Ano V, Número 10, Fevereiro de 2007