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Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical

out-dez, 1993

RELATO DE CASO

DOENÇA DE CHAGAS AGUDA EM MULHER DE 80 ANOS NO


MÉXICO. RELATO ANATOMOPATOLÓGICO
Felipe Lozano Kasten, Guilhermina Sanchez Cruz, Manuel Gonzales
Bartell, Aluízio Prata e Edison Reis
Mulher de 80 anos de idade, com doença de Chagas aguda diagnosticada à necrópsia,
adquirida, provavelmente, através de triatomíneos no município de Zacoelo de Torres, no
Estado de Jalisco, México. Assinala-se a raridade do encontro de casos de doença de Chagas
agudo, nafaixa etária da paciente. O exame anatomopatológico mostrou comprometimento do
coração, esôfago e intestino grosso. Encontrou-se lesões no sistema nervoso autônomo
intramural do esôfago e do intestino grosso, sendo estes achados de interesse, por ocorrer em
área geográfica onde os megas tem sido pouco relatados.

Palavras-chaves: Doença de Chagas. Doença de Chagas no México. Doença de Chagas


aguda. Tripanosomose cruzi. Sistema nervoso autônomo.

Apesar do conhecimento que se tem Medicina do Triângulo Mineiro, Uberaba MG Brasil.


Suporte financeiro: CNPq
sobre a doença de Chagas (DC) em alguns Endereço para correspondência: Prof. Edison Reis Lopes,
países da America Latina, em outros, pouco Curso de Pós-graduação em Patologia Humana/FMTM. Rua
se sabe sobre sua freqüência, formas Getúlio Guaritá 130, CEP 30025-440 Uberaba, MG, Brasil.
Recebido para publicação em 03/12/93.
anatomoclínicas e evolução.
residente no município de Zacoelo de
No México, a DC foi assinalada no
Torres, no Estado de Jalisco, México.
homem, pela primeira vez, em 1940 12 e, até
Procurou hospital em 10/05/89
1988 já haviam sido relatados 150 casos 8 22 .
queixando-se de "mal estar geral,
Há estudos sobre a freqüência e distribuição
indisposição e dor abdominal " , após
de triatomíneos infectados pelo T. cruzi 8 , e
ingestão, há 22 dias, de alimento
sobre a sorologia em doadores de sangue67
deteriorado. Vivia em área rural, onde há
15 16 que em algumas regiões atinge alta
triatomíneos. Dizia ser hipertensa.
freqüência. Entretanto, há poucos estudos a
No ato da internação apresentava-se
respeito da história natural da doença, do
desidratada, torporosa, com temperatura
comportamento de suas várias formas
axilar de 36 0 C, tensão arterial de
clínicas, de sua patogênese e das
130x90mm/Hg, abdome com dor difusa à
repercussões médico-sociais e econômicas
palpação, sem tumoração ou
que acarreta.
visceromegalias. Coração e pulmões sem
A realização de estudo
anormalidades. Hemoglobina: 12,6g%.
anatomopatológico, com ênfase aos achados
Leucócitos: 35.000 p/mm 3 , com 67% de
cardíacos e do tubo digestivo, em mulher
neutrófilos segmentados, 30% de
com doença de Chagas aguda (DCA)
linfócitos e 3 % de eosinófilos. Uréia:
justifica o relato que a seguir se apresenta.
135mg%. Creatinina: 2,3mg% Glicose:
64mg%. Soroaglutinação para brucelose
RELATO DO CASO
I : 160. Radiografia do tórax: elevação da
hemicúpula diafragmática direita.
Mulher branca, 80 anos, casada, do lar, Radiografia do abdome: conglomerado de
alças de delgado na fossa ilíaca direita.
Centro de Investigación en Enfermedades Tropicales de Ia Permaneceu internada sem melhoras.
Universidad de Guadalajara, Jalisco, México e Faculdade de No dia 15/05 /89 foi sugerida laparotomia
Relato Caso. Kasten FL, Cruz GS, Bartell MG, Prata A, Lopes ER. Doença de Chagas aguda em mulher de 80
anos México. Relato anatomopatológico. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical out-dez, 1993.
exploradora, vindo a paciente a falecer no Causa mortis: Insuficiência
início da anestesia por parada cardíaca. cardíaca por miocardite chagásica
O diagnóstico anatomopatológico aguda e insuficiência respiratória por
necroscópico foi o seguinte: in farto pulmonar e broncopneumonia.
Miocardite chagásica aguda em órgão Em 1993, revimos o caso e
com arteriosclerose coronariana e analisamos, de modo mais detalhado,
moderada hipertrofia do ventrículo cortes dos ventrículos do coração, esôfago
esquerdo (peso do coração:360g com e intestino grosso, corados pela
espessura média do miocárdio ventricular hematoxilina-eosina, tricrômico de
esquerdo I ,4cm e do direito 0,3cm). Masson e Giemsa. Em secções de coração
Nefrosclerose arteriolar e esôfago utilizouse, ainda, o método
(arteríolosclerose renal , rins da imunocitoquímico pela peroxidase
hipertensão essencial) em órgãos antiperoxidase (PAP), segundo técnica de
hipotróficos Barbosa3 com emprego de anticorpo
231 monoclonal contra T. cruzi.
No coração havia epicardite e
d endocardite parietal exsudativas focais
e com predomínio de mononucleares e
n
miocardite aguda. Esta se apresentava em
o focos (Figura 1), de tamanhos variados,
ora isolados, ora confluentes,
disseminados, constituídos especialmente
por mononucleares (macrófagos e
linfócitos) com menor número de
plasmócitos, células blásticas e raros
(peso de cada rim: 80g). granulócitos neutrófilos. Lesões
Hiperemia passiva crônica do fígado degenerativas necróticas de miocélulas
em órgão com intensa esteatose. associavam-se ao fenômeno exsudativo.
Congestão esplênica de origem cardíaca. Por vezes, detectavam-se mononucleares
Hiperemia passiva dos rins e do encéfalo.
Edema dos membros inferiores. 232
Broncopneumonia, de tipo bacteriano, 26.'231-235 ,
em grandes focos disseminados.
Trombose recente do ramo infenor da
artéria pulmonar direita com infarto
vermelho recente do lobo inferior direito.
aderentes ao sarcolema elou aparentemente
Pleurite crônica produtiva bilateral.
na intimidade de miocélulas. Com relativa
Aorta com arteriosclerose grave e
freqüência encontravam-se formas
aneurisma sacciforme de sua porção
amastigotas, íntegras ou rotas, do T. cruzi,
abdominal, localizado 3cm abaixo da
em ninhos no interior de miócitos (Figura
emergência das renais, medindo cerca de
2), macrófagos elou livres no interstício.
3 ,5cm de extensão e com trombo
Havia ainda congestão, especialmente dos
ocupando 50% do lume do vaso.
capilares e pequenos vasos, intensa
Arteriosclerose pronunciada de vasos
deposição de lipofuscina no interior das
de grande e médio calibres.
miocélulas e arteriosclerose coronariana.
Pancreatite enzimática.
Hiperplasia ganglionar folicular e difusa.
Leiomiomatose uterina. Cervicite crônica.
Úlceras gástricas agudas, medindo de
0,3 a 0,5cm de diâmetro.
Relato Caso. Kasten FL, Cruz GS, Bartell MG, Prata A, Lopes ER. Doença de Chagas aguda em mulher de 80
anos México. Relato anatomopatológico. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical out-dez, 1993.
Figura 1 - Corte de ventrículo esquerdo com tènômenos degenerativos e intensa
mostrando o processo inflamatório pigmentação lipofuscínica dos neurônios.
agudo do epicdrdio (E) e miocárdio
Os dados acima refletem um caso de
(M). Neste último folheto notar a
miocardite em focos múltiplos. HE DCA com cardite , miosite focal, e
40x. ganglionite e periganglionite,

Figura 2 - Corte de miocárdio do ventrículo Figura 3 Muscular e plexo mientérico do intestino


esquerdo. Intensa reaçao grosso. Notarfocos de miosite (sela
inflamatória. Edema . A seta indica curva) e ganglionite com neurônio
ninho de formas amastigotas do T. (seta rela) aparenlemenle íntegro. HE
cruzi, o qual é mostrado em detalhe, lmx.
corado pela peroxidase
antiperoxidase em baixo, à direita.
HE 2COx.
d
e

n
o

Nas camadas musculares do esôfago e


do Intestino grosso (Figuras 3 a 6) havia
focos in tlamatórios similares àqueles descri Figura 4 - Detalhe da figura 3. HE
26:231-235,
tos no coração, porém em número muito
menor e com fenômenos degeneratlvo-
necróticos das miocélulas, mais discretos do
que os vistos nas fibras cardíacas.
Amastigotas do T. cruzi livres no interstício com alterações neuronais, nos plexos
ou, mais freqüentemente, na inti)nidade de intramurais do esôfago e do intestino
fibras musculares lisas elou estriadas grosso. Havia ainda freqüente parasi tismo
esqueléticas (nos cortes do terço superior do no coração, esôfago e intestino; nos
esôtàgo) foram facilmente detectáveis. Os demais órgãos não houve pesqui sa
plexos intramurais mostraram focos de sistematizada do T. cruzi.
infiltrados de mononucleares e plasmócitos,
Relato Caso. Kasten FL, Cruz GS, Bartell MG, Prata A, Lopes ER. Doença de Chagas aguda em mulher de 80
anos México. Relato anatomopatológico. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical out-dez, 1993.
DISCUSSÃO o

Trata-se de paciente de 80 anos que se


infectou no Estado de Jalisco no México.
Ainda que, em zonas endêmicas, a maioria
dos chagásicos adquira a infecção nos
primeiros anos de vida4 5 18 podem o fazer Contra a hipótese de se tratar de
também na velhice. Este parece ser o forma crônica com exacerbações agudas
16
primeiro relato de DCA aos 80 anos de , há os seguintes fatos: l) ausência de
idade. miocardite fibrosante, substrato da
forma cardíaca crônica, embora este
dado não afaste a forma indeterminada;
2) falta de comprovação de estado de
imunodepressão, necessário para
reativação da tripanosomose, havendo
ao contrário hiperplasia ganglionar
folicular e difusa; 3) inexistênCia de
meningoencefalite, que geralmente
acompanha a cardite reativada na AIDS
20
; 4) presença de T. cruzi nos órgãos
onde foi feita pesquisa sistematizada do
parasita. O fato de não se ter pensado em
DCA em paciente com edemas,
taquicardia e linfocitose absoluta,
Figura 5 - Camada muscular e plexo mienlérico mesmo na ausência de febre e de sinais
do terço superior do esófago. Notar de porta de entrada do T. cruzi, pode
foco de miosite (M) e neurônios sejustificar pelas outras condições
(cabeças de seta), alguns alterados, mórbidas apresentadas, e por ter
em gânglio de Auerbach (G). HE ocorrido em área onde não são
200x.
freqüentes os relatos da doença.
Chamamos a atenção para o
encontro, no presente caso, de lesões nos
plexos nervosos intramurais e nas
musculares, do esôfago e do intestino
grosso. Com o decorrer da idade há
redução de número de neurônios; este
processo entretanto não se associa à
inflamação. O encontro, neste caso, de
lesões no plexo mientérico, e mais os
achados de Lopes e cols ll , em três
esôfagos de chagásicos crônicos, naturais
e residentes na Costa RÍCd, podem sugenr
a freqíéncla de Lesões quali tativas do
sistema nervoso autônomo intramural
Figura 6 - Gânglio de Auerbach em corte de (SNAIM) em países situados ao norte do
esôfago. Ganglionite intensa com equador. Trás, ainda, à tona, não só a
neurônio (cabeça de seta)
aparentemente íntegro. HE 4Wx.
questão da patogênese dos megas, como
também a das diferenças regionais em sua
d
ocorrência. O papel das lesões do
e
SNAIM e das musculares na patogênese
dos megas digestivos tem sido discutido e
n
realçado por autores brasileiros I 9 10 13
1921. Questionam, entretanto, alguns
Relato Caso. Kasten FL, Cruz GS, Bartell MG, Prata A, Lopes ER. Doença de Chagas aguda em mulher de 80
anos México. Relato anatomopatológico. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical out-dez, 1993.
delesl 2 10 21 o papel e a real importância 2. Andrade ZA, Andrade SG. Patologia. In:
das lesões do SN AIM nos megas, tendo BrenerZ, Andrade Z (eds) Trypanosoma
em vista, entre outras razões, que esôfagos cruzi e doença de Chagas. Guanabara
de chagásicos com considerável ou Koogan, Rio de Janeiro p. 199249, 1979.
mesmo completa destruição neuronal, 3. Barbosa AJA. Método imunocitoquímico
12
podem ter calibre normal . As diferenças para a identificação de amastigotas do
Trypanosoma cruzi em cortes histológicos
regionais observadas nos megas têm, nos de rotina. Revista do Instituto de Medicina
últimos anos, sido interpretadas como, Tropical de São Paulo 27:293-297, 1985.
provavelmente, decorrentes da existência 4. Dias JCP, Cançado JR, Chiari CA. Doença
de diferentes cepas do T. cruzi 1419 . De de Chagas: In: Neves J (ed) Diagnóstico e
qualquer modo, estas questões estão a tratamento das doenças infectuosas e
requerer novos estudos. parasitárias. 2 a edição, Guanabara Koogan,
Rio de Janeiro p.694•724, 1993.
5. Ferreira H. Fase aguda da doença de
Chagas. O Hospital 61:207-311, 1962.
6. Goldsmith RS, Zárate W, Zárate LG,
Kagan 1, Jacobson LB, Morales G.
Estudios clinicos y epidemiologicos de Ia
234
enfermedad de Chagas en Oaxaca, México,
26.231-235, y un estudio complementario de

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Srta. Alessandra Scoda


e Sra. Márcia Helena Alves de Carvalho
pelo auxílio no trabalho datilográfico.

SUMMARY

A case of acute Chagas ' disease, diagnosed


by necropsy, in a 80-year-old woman, is
reported. It is assumed that infection was
acquired through triatomine bite in Zacoelo de
Torres, Jalisco State, Mexico. There were
lesions due to american trypanosomiasis in the
heart, esophagus and bowel. Autonomic
nervous lesions were detected in lhe esophagus
and bowel. It is emphasìzed the importance of
these findings in an area wherefew cases
ofmegas were reported

Key-words: Chagas ' disease. Chagas '


disease in México. American trypanosomiasis.
Autonomic nervous system.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Adad SJ , Andrade DCS, Lopes ER,


Chapadeiro E. Contribuição ao estudo da
anatomia patológica do megaesôfago
chagásico. Revista do Instituto de Medicina
Tropicalde São Paulo 33:44S-4SO, 1991.
Relato Caso. Kasten FL, Cruz GS, Bartell MG, Prata A, Lopes ER. Doença de Chagas aguda em mulher de 80
anos México. Relato anatomopatológico. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical out-dez, 1993.
de
231-235 ,

similar
cause
Chagas '

gical tests
mparative

gia 31:35-

ica no
ileira de

la VM ,

ra
re. Salud

a de
ecciosas e
n, Rio de

sophagus
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São Paulo

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fTropical

In: Raia
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235

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