Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
010
Palavras-chave: Prescrição. Pretensão. Actio nata. Cessão de créditos. Cessão de posição contratual.
Contagem de prazo prescricional. Regime jurídico aplicável. Sucessão parcial.
Sumário: 1 Consulta – 2 Síntese dos fatos relevantes – 3 Actio nata. Pretensão e prescrição. A violação
do direito faz surgir a pretensão e seu respectivo prazo. No caso concreto a actio/pretensão nasce em
face do Bacen e também se extingue diante do próprio Bacen. Mudanças supervenientes nos aspectos
subjetivos não têm o condão de ressuscitar pretensão já prescrita, com novo prazo maior para seu
exercício – 4 Cessão de direitos. Conceito. Sentido e alcance. Cessão de posição contratual. Caráter
abstrato desse tipo de negócio jurídico. Ato de disposição por meio do qual se transferem, intactas,
as obrigações outrora contraídas, na forma original de sua constituição. Interação do instituto com a
prescrição. Regra do CC 196. Aplicação do entendimento do STJ, de que o regime incidente é sempre
o do sucedido, e nunca o do sucessor. Julgados emblemáticos – 5 Conclusão: resposta aos quesitos
1 Consulta
O Fundo Garantidor de Crédito (o “Consulente” ou “FGC”) honra-nos com
a presente consulta, na qual nos indaga sobre as questões jurídicas discutidas
no Recurso Especial nº 1.247.007-SP, com origem no Agravo de Instrumento
nº 2110100-32.2016.8.26.0000, interposto contra a decisão interlocutória
que, nos autos da ação de cobrança ajuizada por Larcky Sociedade de Crédito
Imobiliário S/A (“Larcky”), rejeitou a preliminar de mérito da ocorrência da prescri-
ção quinquenal para a cobrança de dívidas passivas da Fazenda Pública, prevista
no Decreto-Lei nº 20.910/32.
Para tanto, o Consulente encaminhou-nos cópias das principais peças dos
recursos em questão.
Nesse contexto, a consulta nos é apresentada com os seguintes quesitos,
que serão respondidos ao final deste parecer:
1. O recurso especial apresentado pelo FGC contra acórdão que não aplicou
a prescrição quinquenal, apesar de o Bacen ter sido o gestor da dívida na ocasião
do seu vencimento, reúne as condições constitucionais e legais para sua admis-
sibilidade e provimento?
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 199
1
BANCO Nacional da Habitação (BNH). Verbete. FGV CPDOC. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/
acervo/dicionarios/verbete-tematico/banco-nacional-da-habitacao-bnh. Acesso em: 1º abr. 2019.
2
Anexo à Resolução Bacen nº 1.861/1991. Verbis: “Art. 1º O Fundo de Garantia dos Depósitos e Letras
Imobiliárias (FGDLI) é um fundo de natureza contábil, criado pela Resolução n. 3, do Conselho de
Administração do Extinto Banco Nacional da Habitação (BHN), em 25.1.1967, que, por força do Decreto-Lei
n. 2291, de 21.11.1986, e da Resolução n. 1219, de 24.11.1986, foi transferido para o Banco Central
do Brasil, sendo seu tempo de duração indeterminado. [...] Art. 3º O Fundo de Garantia dos Depósitos e
Letras Imobiliárias (FGDLI), no cumprimento de suas finalidades de garantir os depósitos de poupança e
as letras imobiliárias, é credor dos valores garantidos junto à instituição em intervenção ou em liquidação
extrajudicial, de que trata a Lei n. 6024, de 13.3.1974, mediante sub-rogação de direitos”.
200 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
3
Lei nº 6.024/74. Verbis: “Art. 1º: As instituições financeiras privadas e as públicas não federais, assim
como as cooperativas de crédito, estão sujeitas, nos termos dessa Lei, à intervenção ou à liquidação
extrajudicial, em ambos os casos efetuada e decretada pelo Banco Central do Brasil [...]”.
4
DL nº 2.191/96. Verbis: “Art. 1º É extinto o Banco Nacional da Habitação– BNH, empresa pública de que
trata a Lei número 5762, de dezembro de 1971, por incorporação à Caixa Econômica Federal – CEF”.
5
Resolução nº 1.219/86, do Conselho Monetário Nacional (CMN), I. Verbis: “O BANCO CENTRAL DO
BRASIL [...] RESOLVEU I – Determinar a transferência da gestão do Fundo de Assistência de Liquidez (FAL)
e do Fundo de Garantia de Depósitos e Letras Imobiliárias (FGDLI), dentro do prazo de 120 (cento e vinte)
dias, para o Banco Central”.
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 201
(ii):
Outrossim, o sucessor, FGC, é uma associação civil sem fins lucra-
tivos, com personalidade jurídica de direito privado, nos termos da
Resolução n. 4222/2013.
6
Lei nº 4.595/64. Verbis: “Art. 50. O Conselho Monetário Nacional, o Banco Central da República do
Brasil, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, o Banco do Brasil S.A., o Banco do Nordeste do
Brasil S.A. e o Banco de Crédito da Amazônia S.A. gozarão dos favores, isenções e privilégios, inclusive
fiscais, que são próprios da Fazenda Nacional, ressalvado quanto aos três últimos, o regime especial de
tributação do Imposto de Renda a que estão sujeitos, na forma da legislação em vigor”.
7
Decreto nº 20.910/32. Verbis: “Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem
assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua
natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem”.
8
DL nº 4.597/42. Verbis: “Art. 2º O Decreto n. 20910, de 6 de janeiro de 1932, que regula a prescrição
quinquenal, abrange as dívidas passivas das autarquias, ou entidades e órgãos paraestatais, criados por
lei e mantidos mediante impostos, taxas ou quaisquer contribuições, exigidas em virtude de lei federal,
estadual ou municipal, bem como a todo e qualquer direito e ação contra os mesmos”.
202 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
(iii):
Como conclusão, este Juízo entende que ambos os fundos possuem
natureza jurídica de direito privado, razão pela qual a prescrição será
analisada nestes termos.
(iv):
Desta feita, afasto totalmente a pretensão do réu, para que a pres-
crição seja analisada à luz do Decreto n. 20910/32 e do Decreto-Lei
n. 4597/42, visto que, tanto o FGDLI como o FGC não são autarquias
ou entidades paraestatais criadas por lei, tampouco são mantidos
mediante impostos de qualquer natureza. Não estão portanto, alcan-
çados pelos referidos decretos.
(v):
A alegação da prescrição será analisada sob a incidência do Código
Civil Brasileiro [...].
(vi):
Note-se que a pretensão inicial busca a cobrança de dívidas vencidas
em 1988, amparadas na inadimplência de termos de compromissos
firmados entre os antecessores da requerente e do requerido em
1984. Portanto, o prazo prescricional iniciou-se a partir do descumpri-
mento da obrigação, ou seja, em abril de 1988.
(vii):
À evidência, como bem esclareceu a própria autora, tratando-se de
ação de natureza privada, o prazo a ser computado seria o de 20
anos, previsto no CC/16. No entanto, com o advento do Novo Código
Civil, o prazo prescricional foi reduzido para 10 anos e, observada
a regra de transição do art. 2028, como ainda não havia decorrido
mais da metade do prazo, aplica-se o prazo decenal do novo Diploma
Legal, considerando-se como início da contagem do prazo a data da
sua entrada em vigor.
(viii):
Porém na hipótese dos autos, há que ser considerada a causa de
interrupção do prazo prescricional (CC/16, art. 202, VI) representada
pelo reconhecimento da dívida em 10.3.2000 [...]. Assim, o termo ini-
cial da contagem do prescricional recomeçou a contar em 11.1.2003
(data da entrada em vigor do Novo Código Civil de 2002) e seu termo
final seria em 11.1.2013.
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 203
(ix):
In casu, a ação foi ajuizada em 18.12.2012, portanto dentro do lapso
temporal a que autora tinha direito.
204 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
9
STJ nº 7. Verbis: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 205
10
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado – Parte geral. Atualização de
Otavio Luiz Rodrigues Junior, Tilman Quarch e Jefferson Carús Guedes. São Paulo: Revista dos Tribunais/
Thomson Reuters, 2012. t. VI. §665, n. 7, p. 239.
11
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 13. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais/Thomson Reuters, 2019. Coment. 4 CC 189. p. 555.
12
CÂMARA LEAL, Antônio Luis da. Da prescrição e da decadência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. n. 14,
p. 21-22.
206 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
13
CÂMARA LEAL, Antônio Luis da. Da prescrição e da decadência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. n. 15,
p. 22.
14
“So lange kein Klagerecht vorhanden ist, kann dasselbe nicht versäumt, also auch nicht durch Versäumniβ
verloren werden. Es muβ daher ‘Actio nata’ seyn, wenn eine Verjährung anfangen soll” (SAVIGNY, Friedrich
Carl von. System des heutigen Römischen Rechts. Berlin: Veit und Comp., 1841. v. V. §239, p. 280-281).
15
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as
ações imprescritíveis. In: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (Org.). Doutrinas essen-
ciais – Responsabilidade civil (Teoria geral: dano e nexo de causalidade – Culpa – Risco – Abuso de direito
– Lesão – Cláusulas de exclusão). São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2010. v. I. n. 33,
item 8, p. 792.
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 207
A teoria da actio nata, tal como descrita acima, tem sido aplicada, com
uniformidade, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), merecendo destaque acór-
dão paradigmático de relatoria do Ministro Luiz Fux, hoje integrante do Supremo
Tribunal Federal:
16
STJ, 1ª T., EmbDclAgRgREsp nº 862.628-RS, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.9.2010, v.u., DJUE, 5 out. 2010.
208 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
Por essa razão, compreender a actio nata é crucial para entender como se
deve operar a incidência da prescrição no caso, uma vez que, na ocasião do
surgimento da pretensão da Larcky, o outro litigante que poderia figurar no polo
17
Lei nº 4.594/64. Verbis: “Art. 50. O Conselho Monetário Nacional, o Banco Central da República do
Brasil, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, o Banco do Brasil S.A., o Banco do Nordeste do
Brasil S.A. e o Banco de Crédito da Amazônia S.A. gozarão dos favores, isenções e privilégios, inclusive
fiscais, que são próprios da Fazenda Nacional, ressalvado quanto aos três, últimos, o regime especial de
tributação do Imposto de Renda a que estão sujeitos, na forma da legislação em vigor”.
18
Decreto nº 20.910/32. Verbis: “Art. 1º. As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem
assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua
natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem”.
19
DL nº 4.597/42. Verbis: “Art. 2º. O Decreto n. 20910, de 6 de janeiro de 1932, que regula a prescrição
quinquenal, abrange as dívidas passivas das autarquias, ou entidades e órgãos paraestatais, criados por
lei e mantidos mediante impostos, taxas ou quaisquer contribuições, exigidas em virtude de lei federal,
estadual ou municipal, bem como a todo e qualquer direito e ação contra os mesmos”.
20
STJ, Corte Especial, EmbDivREsp nº 602568-DF, Rel. Min. Francisco Falcão, j. 12.5.2011, v.u., DJUE, 10
jun. 2011.
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 209
210 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
21
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil – Parte geral. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
1º v. Da prescrição, p. 290.
22
SAVIGNY, Friedrich Carl von. System des heutigen Römischen Rechts. Berlin: Veit und Comp., 1841. v. 5.
§237, n. III, p. 272 [em especial, v. nota de rodapé (k)]; SAVIGNY, Friedrich Carl von. Traité de droit romain.
Tradução de Charles Guénoux. Paris: Firmin Didot Frères, 1846. t. V. §CCXXXVII, n. 3, p. 291 [em especial,
v. nota de rodapé (k)].
23
A esse respeito, conforme LEAL, Antonio Luis da Câmara. Da prescrição e da decadência – Teoria geral do
direito civil. São Paulo: Saraiva, 1939. Cap. II, n. 8/12, p. 21-29.
24
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar
as ações imprescritíveis. In: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (Org.). Doutrinas
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 211
essenciais – Responsabilidade civil (Teoria geral: dano e nexo de causalidade – Culpa – Risco – Abuso de
direito – Lesão – Cláusulas de exclusão). São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2010. v. I.
n. 33, item 4, p. 785.
25
Nas palavras de Giuseppe Chiovenda: “Questa categoria di diritti, di recente studiata dalla dottrina,
particolarmente processuale, si contrappone nottadamente alla prima, perchè nei diritti potestativi
manca completamente ciò che è caratteristico dei diritti ad una prestazione, cioè appunto l´obbligo d´una
persona di eseguire una prestazione. In molti casi la legge concede a taluno il potere di influire colla sua
manifestazione di volontà sulla condizione giuridica di un altro, senza il concorso della volontà di costui:
a) o facendo cessare un diritto o uno stato giuridico esistente; b) o producendo un nuovo diritto o stato
o effetto giuridico” (CHIOVENDA, Giuseppe. Istituzioni di diritto processuale civile. 2. ed. Napoli: Casa
Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1935. v. I. n. 4, p. 12).
26
Os direitos potestativos fazem parte e estão de tal maneira interligados às relações de direito, especialmente
no que respeita a demandas, que não podem ser transmitidos independentemente. Nas palavras do autor:
“Von den Gestaltungrechten sind die meisten als untrennbare Bestandteile mit einem Rechtsverhältnis oder
Recht, insbesondere einer Forderung, verbunden und können daher nicht selbständig übertragen werden”
(VON TUHR, Andreas. Der Allgemeine Teil des Deutschen Bürgerlichen Rechts. Berlin: Duncker & Humbolt,
1957. v. 1. t. 1. §12, n. IV, p. 225).
212 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
27
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar
as ações imprescritíveis. In: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (Org.). Doutrinas
essenciais – Responsabilidade civil (Teoria geral: dano e nexo de causalidade – Culpa – Risco – Abuso de
direito – Lesão – Cláusulas de exclusão). São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2010. v. I.
n. 33, item 9. p. 795-796.
28
SABATINI, Giuseppe. Decadenza (Diritto Processuale). In: AZARA, Antonio; EULA, Ernesto. Novissimo Digesto
Italiano. Torino: Unione Tipografico Editrice Torinese, 1957. v. V. n. 5, p. 242.
29
MAGAZZÙ, Andrea. Decadenza (Diritto Civile). In: AZARA, Antonio; EULA, Ernesto. Novissimo Digesto
Italiano. Torino: Unione Tipografico Editrice Torinese, 1957. v. V.in Antonio Azara e Ernesto Eula. Novissimo
Digesto Italiano, v. V, Torino: Unione Tipografico Editrice Torinese, 1957, n. 3. , p. 233.
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 213
das relações, servindo, pois, à paz social, à harmonia social, à ordem pública,
inclusive denominando-a, alguns autores, de patronas de gênero humano (patrona
generis humani), dada a relevância a elas atribuídas. Esses são, modernamente,
os corretos fundamentos que justificam os institutos jurídicos da prescrição e da
decadência.
Nesse contexto, a ampla maioria da doutrina vem rechaçando e/ou se afas-
tando do argumento da “punição”, enxergando, na prescrição, a proteção do de-
vedor que não pode ficar eternamente vinculado ao credor, e, na decadência,
também a proteção, mas agora dos terceiros cujas esferas poderão ser atingidas
pelo exercício de direitos potestativos. Enxerga a moderna doutrina, especialmen-
te, um interesse social (paz social, segurança jurídica) a justificar-lhes a existência
(fundamento social).
Sem os institutos jurídicos da prescrição e da decadência, o devedor ficaria
eternamente vinculado, jungido ao credor, e os terceiros ficariam para sempre
sujeitos ao exercício de determinado direito potestativo – o que, por si só, já
justifica e impõe a existência da prescrição e da decadência como medidas de
justiça, pois o direito não tolera estado de sujeição eterna (um odioso vínculo
obrigacional perpétuo) –, bem como, em sua falta, inúmeras relações sociais não
se estabilizariam, gerando grave insegurança e instabilidade social (isso sem se
falar nas dificuldades que as lides perpétuas gerariam para o devedor ou terceiro,
como a dificuldade de produzir provas extintivas do direito do credor ou do titular
do direito potestativo, que já se perderam ao longo do tempo [comprovantes de
pagamento, testemunhas etc.]).30 Essas são as razões pelas quais a moderna
doutrina tem encontrado no interesse social o principal e verdadeiro fundamento
da prescrição e da decadência.
Essa explicação acerca do fundamento do prazo prescricional ilustra a rele-
vância transcendental da questão ora posta. O Superior Tribunal de Justiça (STJ),
ao assegurar a incidência do prazo de cinco anos na espécie, além de restaurar
30
Nesse sentido, vide PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado – Parte geral,
t. VI (Exceções. Direitos mutilados. Exercício dos direitos, pretensões, ações e exceções. Prescrição).,
Atualização. de Otávio Luiz Rodrigues Junior, Tilman Quarch e Jefferson Carús Guedes. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2012, . t. VI. §662, n. 2,. p. 219: “Serve à segurança e à paz
públicas, para limite temporal à eficácia das pretensões e das ações. A perda ou destruição das provas
exporia os que desde muito se sentem seguros, em paz, e confiantes no mundo jurídico, a verem levan-
tarem-se – contra o seu direito, ou contra o que têm por seu direito – pretensões ou ações ignoradas
ou tidas como ilevantáveis”; e RODRIGUES, Silvio. Direito civil – Parte geral. 30. ed. São Paulo: Saraiva,
2000. v. 1. n. 155, p. 321: “Sem a prescrição, o devedor deveria guardar todos os recibos de quaisquer
importâncias pagas, caso contrário, a qualquer tempo, ser-lhe-ia exigido novo pagamento, que ele só
ilidiria mediante a exibição da quitação. Sem a prescrição, a pessoa deveria se manter em estado de
intranqüila atenção, receando sempre um litígio baseado em relações de há muito transcorridas, de prova
custosa e difícil, porque não só a documentação de sua constituição poderia se haver extraviado, como a
própria memória da maneira como se estabeleceu estaria perdida”.
214 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 215
31
STJ, Corte Especial, EmbDivREsp nº 602568-DF, Rel. Min. Francisco Falcão, j. 12.5.2011, v.u., DJUE, 10
jun. 2011.
216 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
[...] ainda que a causa não exista, seja ilícita, ou não se realize. Se
houve cessão, sem causa, e o cessionário se enriqueceu injustifi-
cadamente, pode o cedente pedir a repetição: o crédito volta, mas,
enquanto não passa em julgado a sentença, o crédito pertence ao
cessionário.34
32
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 13. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais/Thomson Reuters, 2019. Coment. 2 CC 286. p. 696.
33
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 13. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais/Thomson Reuters, 2019. Coment. 2 CC 286. p. 696; e PONTES DE MIRANDA, Francisco
Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualização de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery.
São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2012. v. XXII. §2822, p. 349.
34
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualização de Nelson Nery Junior
e Rosa Maria de Andrade Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2012. v. XXII. §2822,
p. 349.
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 217
35
BRUGI, Biagio. Istituzioni di diritto civile italiano (con speciale riguardo a tutto il diritto privato). 4. ed. Milano:
Società Editrice Libraria, 1923. §66, p. 660.
36
BRUGI, Biagio. Istituzioni di diritto civile italiano (con speciale riguardo a tutto il diritto privato). 4. ed.
Milano: Società Editrice Libraria, 1923. §66,BRUGI, Biagio. Istituzioni di diritto civile italiano (con speciale
riguardo a tutto il diritto privato), 4. ed. Milano: Società Editrice Libraria, 1923, §66. p. 658. No original: “La
successione, essendo, comme dicono i romanisti, la trasformazione puramente soggettiva di un diritto (§17),
consiste nel subentrare di un soggetto ad un altro, restando identico il rapporto di obbligazione”.
37
VON TUHR, Andreas. Allgemeiner Teil des Schweizerischen Obligationenrechts, Zweiter Halbband. Tübingen:
J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1925. §92, p. 711-712.
38
VON TUHR, Andreas. Allgemeiner Teil des Schweizerischen Obligationenrechts, Zweiter Halbband. Tübingen:
J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1925. §92, p. 711-712.
218 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
39
VARELA, João de Matos Antunes. Obrigações em geral. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2010. v. II. p. 386.
40
VARELA, João de Matos Antunes. Obrigações em geral. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2010. v. II. p. 386.
41
VARELA, João de Matos Antunes. Obrigações em geral. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2010. v. II. p. 386.
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 219
42
Construídos a partir de ampla jurisprudência oriunda do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, vide:
TJMG, 7ª Câmara Cível, Ap nº 7440923-28.2017.8.13.0024, Rel. Des. Wilson Benevides, j. 20.2.2018,
v.u., DJe, 36 fev. 2018; TJMG, 8ª Câmara Cível, Ap nº 0411671-89.2013.8.13.0024, Rel. Des. Ângela de
Lourdes Rodrigues, j. 19.4.2018, v.u., DJe, 30 abr. 2018.
220 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
43
STJ, 3ª T., REsp nº 1.153.702-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 10.4.2012, DJUE, 10 maio 2012.
44
STJ, 3ª T., REsp nº 1.628.201-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 4.10.2016, DJUE, 10 out. 2016.
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 221
222 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 24, p. 199-223, abr./jun. 2020 223