Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
O desafio da teologia é fazer justiça a todos
os atributos de Deus revelados na Escritura.
1
– Herman Bavinck (1854-1921).
Considero tudo isso um privilégio de grande relevância que Deus nos oportuniza
em nossa vida cotidiana.
Tenho tido o privilégio de aprender muitas coisas com meus colegas, familiares,
irmãos, alunos, pessoas desconhecidas, leituras, analisando as minhas reações,
observando o comportamento de pessoas, de alguns animais e assim por diante.
Muito disso tem sido significativo para mim.4
acolá... Mas, aprendemos com o que pretendem nos ensinar e com o que ninguém
pensou em fazê-lo.5 Considero um desperdício não usufruir de úteis e vitais
ensinamentos que estão diante de nós e que, por vezes, por ingenuidade ou
arrogante desinteresse, não percebemos.
Há muitos que afirmam com a intimidade própria daqueles que creem no que
asseveram: “Deus é pai”, “Deus é fiel”, ou: “O Senhor é o meu pastor”.
A partir daí inferem uma série de expectativas quanto à suposta ação que Deus,
que como pai, deve fazer a nosso favor. As perguntas que, por exemplo, antecedem
à primeira declaração deveria ser: Deus é Pai de quem? Dos seus filhos, é claro.
Mas, quem são os filhos de Deus? Eu preencho o critério divino de filiação? (Jo
1.12; Gl 3.26). Tenho procurado pensar e viver como filho de Deus? (Rm 8.14). Esta
certeza tão real em mim tem sido confirmada pelo Espírito? (Rm 8.16). Há em meu
testemunho evidências concretas de minha filiação?8
Essas questões nos conduzem ao Salmo 23. Provavelmente ele seja o mais
conhecido salmo das Escrituras. Também é um dos mais amados, memorizados e
recitados. Certamente, juntamente com o a Oração do Pai Nosso, é uma das
passagens mais lembradas da Bíblia.
A figura do pastor
Essa figura quando empregada para governantes, indica, por analogia, a sua
responsabilidade de cuidado, proteção, paciência e honestidade para com o seu
“rebanho”.10 “O pastor devia cuidar incansavelmente dos animais indefesos. A
devoção ao dever era posta à prova ao montar-se guarda sobre o rebanho, noite
homem, portanto, teve por natureza seus órgãos de tal modo talhados para formar sons articulados,
que denominamos palavras. (...) Além de sons articulados, portanto, foi mais tarde necessário que o
homem pudesse ter a habilidade para usar esses sons como sinais de concepções internas, e fazê-
los significar as marcas das ideias internas de sua própria mente, pelas quais elas serão conhecidas
pelos outros, e os pensamentos das mentes dos homens serão mutuamente transmitidos” (John
Locke, Ensaios acerca do entendimento humano, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 19),
1974, III.1. §§ 1-2, p. 227. Veja o comentário feito por Leibniz: G.W. Leibniz, Novos ensaios, São
Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 19), 1974, III.1, p. 167-168).
7
Martinho Lutero, Conversas à mesa, Brasília, DF.: Monergismo, 2017, # 33, p. 28.
8
Desenvolvi esse assunto em meu livro, Hermisten M.P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001.
9
Willian White, Rã‘â: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário internacional de teologia do Antigo
Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1438.
10
Cf. Louis Jonker, Rhl: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e
Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, [p. 1132-1137], p. 1134-1135;
Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (Sl 23) - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 4
De fato, esta metáfora é bastante usada para juízes, sacerdotes, chefes do povo,
príncipes e reis no Antigo Testamento, por vezes indicando a sua infidelidade (2Sm
5.2; 7.7; 1Cr 11.2; 2Cr 18.16; Jr 2.8; 3.15; 10.21; 22.2; 23.1-4; 25.32-38; Ez 34.1-9;
Zc 10.3; 11.5,15-17; 13.7).
Em passagem extremamente curiosa, Deus se refere ao rei pagão, Ciro, que iria
ser agente no cumprimento de sua vontade, como pastor: “Ele é meu pastor e
cumprirá tudo o que me apraz; que digo também de Jerusalém: Será edificada; e do
templo: Será fundado” (Is 44.28).
Ainda que talvez não tenhamos dado a devida atenção, no Antigo Testamento a
figura de Deus como pastor não é exclusividade do Salmo 23.
11
E. Beyreuther, Pastor: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, [p. 469-474], p. 470.
12
Cf. E. Beyreuther, Pastor: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, [p. 469-474], p. 469; J. Jeremias, poimh/n, etc.: In: G.
Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8. ed. Grand Rapids, Michigan: WM.
B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, v. 6, [p. 485-502], p. 486-487; G. Wallis, Ra’ah: In: G.J.
Botterweck, Helmer Ringgren, eds., Theological Dictionary of the Old Testament, Grand Rapids, MI.:
Eerdmans, © 2004, v. 13, [p. 544-553], p. 547-549.
13
“Pois já eu com homens mais valentes que vós me dei — e nunca esses me desconsideraram. De resto nunca
homens assim eu alguma vez verei: homens como Pirítoo e Driante, pastor do povo; Ceneu e Exádio e o
divino Polifemo” (Homero, Ilíada, São Paulo: Companhia das Letras (Penguin), 2013, I.260-264).
“Por seu lado se levantaram e obedeceram ao pastor do povo os reis detentores de cetro; e por seu lado se
apressava o povo” (II.85-86).
“Hermes soberano, que o deu a Pélope, condutor de cavalos; por sua vez de novo o deu Pélope a Atreu,
pastor do povo” (II.104-105).
“Assim falou Tersites, insultando Agamêmnon, pastor do povo” (II.243)
“Mas ele encontrava-se junto das naus recurvas, preparadas para o alto-mar, encolerizado contra
Agamêmnon, pastor do povo, filho de Atreu” (II. 771-773).
14
“O idoso pastor reconhece o pastoreio especial de Deus em sua vida” (Bruce K. Waltke, Comentando o
Antigo Testamento: Gênesis, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, (Gn 48.15) p. 747). Veja-se: Cornelis Van
Dam, O Presbítero, São Paulo: Cultura Cristã, 2019, p. 30.
Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (Sl 23) - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 5
pais Abraão e Isaque, o Deus que me sustentou (h['r') (ra’ah) (pastoreou) durante a
minha vida até este dia” (Gn 48.15/Gn 49.24).
O salmista Asafe o faz da mesma forma em sua súplica: “Dá ouvidos, ó pastor
(h['r') (ra’ah) de Israel, tu que conduzes a José como um rebanho; tu que estás
entronizado acima dos querubins, mostra o teu esplendor” (Sl 80.1).
O Senhor apascenta seu povo (Sl 28.9). Israel é o rebanho do Senhor. O Senhor
como Pastor vai à frente do seu rebanho guiando, protegendo e alimentando (Sl 23;
68.7).15
O profeta Isaías, bem antes do cativeiro de Judá, considera que Deus como
pastor e senhor apascenta o seu rebanho, cuidando carinhosamente dele. Escreve
então consolando o povo que seria tirado de sua terra: “Como pastor (h['r') (ra’ah),
apascentará (h['r') (ra’ah) o seu rebanho; entre os seus braços recolherá os
cordeirinhos e os levará no seio; as que amamentam ele guiará mansamente” (Is
40.11).
A figura do pastor assume um status messiânico, apontando para aquele que viria
como o Pastor, o “Davi Ideal”, da semente de Davi, que cuidaria definitivamente de
seu povo:16
21
Visto que, com o lado e com o ombro, dais empurrões e, com os chifres,
impelis as fracas até as espalhardes fora, 22 eu livrarei as minhas ovelhas,
para que já não sirvam de rapina, e julgarei entre ovelhas e ovelhas. 23
Suscitarei para elas um só pastor, e ele as apascentará; o meu servo Davi é
que as apascentará; ele lhes servirá de pastor. 24 Eu, o SENHOR, lhes
15
“Ao saíres, ó Deus, à frente do teu povo, ao avançares pelo deserto” (Sl 68.7). “Como pastor,
apascentará o seu rebanho; entre os seus braços recolherá os cordeirinhos e os levará no seio; as
que amamentam ele guiará mansamente” (Is 40.11).
16
“Ora, quem pode ser esse Davi senão Cristo? Qual Davi é príncipe eternamente, senão aquele que é o filho
de Davi e o Senhor de Davi? Consequentemente, ele é chamado de a Raiz e a Geração de Davi. Ele é sua
Raiz como Deus, sua Geração como homem que dele descende. É evidente que, por Davi, se pretende indicar
Cristo” (Matthew Meade, Sermons, 104-105. In: Carl L. Beckwith, Comentário Bíblico da Reforma –
Ezequiel e Daniel, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 225). “’Davi’ não pode ser uma referência a
Zorobabel, pois Zorobabel não foi rei. Mesmo que tivesse sido rei, o fato é que ele não foi príncipe deles para
sempre, como é dito deste ‘Davi’. ‘Davi’, aqui, é uma referência a Cristo, como ocorre com frequência na
sagrada Escritura (Ez 34.23; Os 3.5; Is 37.35; 2Rs 19.34; Jr 30.9” (William Greenhill, Exposition, 750. In:
Carl L. Beckwith, Comentário Bíblico da Reforma – Ezequiel e Daniel, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p.
224). Bauer sustenta a mesma posição quanto ao fato do texto se referir messianicamente a Jesus Cristo. (J.B.
Bauer, Pastor: In: Johannes B. Bauer, Dicionário de Teologia Bíblica, 4. ed. São Paulo: Loyola, 1988, v. 2,
[p. 821-823], p. 821).
Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (Sl 23) - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 6
serei por Deus, e o meu servo Davi será príncipe no meio delas; eu, o
SENHOR, o disse. (Ez 34.21-24).
22
Farei deles uma só nação na terra, nos montes de Israel, e um só rei será
rei de todos eles. Nunca mais serão duas nações; nunca mais para o futuro
se dividirão em dois reinos. 23 Nunca mais se contaminarão com os seus
ídolos, nem com as suas abominações, nem com qualquer das suas
transgressões; livrá-los-ei de todas as suas apostasias em que pecaram e
os purificarei. Assim, eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus. 24 O
meu servo Davi reinará sobre eles; todos eles terão um só pastor, andarão
nos meus juízos, guardarão os meus estatutos e os observarão. 25
Habitarão na terra que dei a meu servo Jacó, na qual vossos pais
habitaram; habitarão nela, eles e seus filhos e os filhos de seus filhos, para
sempre; e Davi, meu servo, será seu príncipe eternamente. (Ez 37.22-25).
A igreja, desde bem cedo, reconheceu a Jesus como o seu Supremo e Bom
Pastor que conduz as suas ovelhas em segurança (Hb 13.20; 1Pe 2.25; 5.4),
inclusive, vocacionando e preparando seus pastores auxiliares para que cuidem do
seu rebanho: A “Igreja de Deus” (At 20.28).18
17
“Desperta, ó espada, contra o meu pastor e contra o homem que é o meu companheiro, diz o
SENHOR dos Exércitos; fere o pastor, e as ovelhas ficarão dispersas; mas volverei a mão para os
pequeninos” (Zc 13.7).
18
A igreja não foi instituída por causa de nossa vocação e trabalho, a fim de atender uma demanda,
como um bairro que cria uma praça com brinquedos a fim de atender a carência de lazer em uma
região populosa e com poucos recursos. Antes, nós fomos chamados para servir a Deus por meio da
igreja. De outro modo, nós existimos para o bem da igreja. O povo que nos foi confiado pertence a
Deus que é o Senhor da Igreja (1Pe 5.3). Não há como servir positivamente à igreja sem nos
tornarmos servos da sua Palavra. Essa fidelidade prazerosa proporciona frutos magníficos para a
igreja porque Deus é misericordioso nos chamando, equipando e abençoando o nosso, por vezes,
rude e frágil trabalho.
19
Cornelis Van Dam, O Presbítero, São Paulo: Cultura Cristã, 2019, p. 27. Por sua vez, continua Van Dam:
“Os portadores de ofício, como os estabelecidos sobre o rebanho, devem imitar esse amor pastoral. Na
verdade, eles precisam fazer ainda melhor. Eles precisam adotar o padrão do amor de Deus, seu interesse pelo
rebanho como o interesse de Deus para com seu povo. Afinal, o Senhor Deus é o Pastor das ovelhas, e o
padrão de trabalho dos portadores de ofício. E ele quem dá aos diferentes ofícios de seus pastores auxiliares
seu conteúdo e significado. Eles devem representar e refletir os desejos, os critérios e os interesses de Deus.
É a agenda do Senhor que eles devem promover” (Cornelis Van Dam, O Presbítero, São Paulo: Cultura
Cristã, 2019, p. 29).
Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (Sl 23) - Rev. Hermisten – 02/11/2023 – 7
O Senhor do salmista
Quando comecei a pensar sobre o salmo 23, o li e reli diversas vezes por
semanas em minhas devocionais. Ative-me ao texto sem o auxílio, do que seria no
futuro tão oportuno, os comentários bíblicos. Terminei por ser dominado pela ideia
primeira do Senhor do salmista. Quem é o Senhor do salmista? Essa pergunta foi se
formando e dominando a minha mente e aquecendo o meu coração.
A impressão que tenho é que, por vezes, na exposição desse salmo o falar no
Senhor é apenas um detalhe que introduz a ovelha. É uma espécie de cerimônia
religiosa moderna de casamento, onde, com frequência, o culto a Deus é apenas um
pretexto para a entrada da especialmente bela noiva naquele dia, com suas vestes
nupciais.
Fé com conhecimento
Creio ser um lugar comum afirmar que não adianta ter uma fé bonita e vigorosa
em alguém que nada pode fazer, ou, que devido às muitas ocupações não pode nos
escutar ou, não está interessado em nossos problemas. Portanto, conhecer o Deus
com quem nos relacionamos é de vital importância.
No salmo 9,20 Davi retrata algo que fazia parte amplamente de sua experiência.
E, ainda mais. Aqui está embutida a compreensão de que o Senhor está acessível a
todos os que lhe buscam sinceramente: “9O SENHOR é também alto refúgio para o
oprimido, refúgio nas horas de tribulação. 10Em ti, pois, confiam os que conhecem
([d;y") (yada’) o teu nome, porque tu, SENHOR, não desamparas os que te buscam
(vr;D') (darash)21” (Sl 9.9-10).
20
Para um estudo mais detalhado desse salmo, veja-se: Hermisten M.P. Costa, O Homem no teatro de
Deus: providência, tempo, história e circunstância, Eusébio, CE.: Peregrino, 2019, p. 421-433.
21
A ideia básica do termo (vrD) (darash) é buscar com diligência: “Moisés diligentemente buscou
(vrd) (darash) o bode da oferta pelo pecado” (Lv 10.16). Além do sentido de “buscar” (Lv 10.16; Sl
22.26; 24.6 [duas vezes]; Sl 53.3), pode ser traduzida por: Requerer (Dt 23.22; Sl 9.12); cuidar (Dt
11.12); investigar (Sl 10.4); se importar (Sl 10.13); esquadrinhar (Sl 10.15); procurar (Sl 77.2);
considerar (Sl 111.2); empenhar-se (Sl 119.45); interessar-se (Sl 142.4). (Vejam-se mais detalhes em:
Leonard J. Coppes, Dãrash: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do
Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 328-329).