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“QUARTO DE DESPEJO - DIÁRIO DE UMA FAVELADA” DE CAROLINA

MARIA DE JESUS SOB A PERSPECTIVA DOS CONCEITOS DE “PEDAGOGIA DO


OPRIMIDO” DE PAULO FREIRE.

Guilherme Vitor Kosak – RA: 103112

No livro “Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada” de Carolina Maria de Jesus nos
deparamos com uma autobiografia publicada em 1960. No livro, Carolina de Jesus relata sua
vivência como mãe, moradora da favela e catadora de papel. O teor do livro, que traz à luz a
vivência de uma mulher negra em situação de favela, com renda muito baixa e com 3 filhos pra
cuidar, entretanto com um certo nível de educação, elevado dado cenário onde vivia, pode ser
uma construção perfeita para fazer um paralelo com as teorias de Paulo Freyre, mais
especificamente as que se situam em seu livro “Pedagogia do Oprimido”.

Para início da sobreposição dessas obras tomemos um panorama geral de ambas para
depois analisarmos e parearmos os seus pormenores e então refletirmos sobre a forma como a
teoria de Paulo Freire ganha verossimilhança através do compilado de 5 anos de relatos reais
contidos em “Quarto de despejo - Diário de uma Favelada”.

"Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada " é um relato da vida de Carolina Maria
de Jesus, uma mulher negra, catadora de lixo e mãe solteira que viveu em seu relato na favela
do Canindé, em São Paulo, durante a década de 1950. O livro descreve as condições sub-
humanas em que Carolina e seus filhos viveram, lutando uma luta diária e repetitiva contra a
fome e a miséria. A narrativa em forma de diário revela através de acontecimentos com a
narradora e família as realidades cruas da desigualdade social, preconceito de raça e gênero, e
a luta pela sobrevivência em uma sociedade que como narra a autora, marginaliza
ostensivamente as camadas mais pobres à ponto de exercer preconceito e violência contra elas
e até de jogá-las em quartos de despejo (local onde é colocado o que não se quer mais ver, no
caso as favelas). O texto através de seu testemunho e reflexões perante as discrepâncias sociais
mostra a importância de dar voz ao povo que sofre essas injustiças narradas; terreno perfeito
para pensarmos sobre a “Pedagogia do Oprimido”.

Em “Pedagogia do Oprimido” Freire, educador, teórico e patrono da educação brasileira


nos traz como objetivo principal a libertação das pessoas oprimidas por meio da educação. Para
tanto sua teoria traz uma série de conceitos que norteiam esse objetivo, assim, serão estes então
trazidos (sublinhados para facilitar a sumarização) e apresentados logo nesse primeiro momento
aqueles que mais se destacam e mais cabem frente o presente exercício para que depois
possamos relacioná-los com maior ênfase e à luz da Narrativa de “Quarto do Despejo - Diário
de uma Favelada”

Antes de fazermos o panorama sobre o livro de Freire vale salientar que este é um livro
teórico que propõe mudanças sociais através da relação entre professor/aluno, ou nas palavras
de Freire, Educador/Educando-Educando Educador (o autor usa esses termos por tratar em sua
teoria a realidade do aluno como um norte para a sua educação, assim ele ensina sobre seu
mundo para o professor para que o professor possa passar os conteúdos sobre tal escopo), e
“Quarto do despejo - Diário de uma Favelada” não se passa dentro de uma sala de aula, mas
sim traz uma mulher tentando usar sua educação, embora informal, para criar ela mesma um
mundo novo em sua volta, talvez possamos categorizar tal feito como um exercício de auto
educação; mas, apontemos para o fato de que essa análise buscará então focar mais nos pontos
onde as palavras de Freire se fazem mais concretamente presentes à cerca das relações entre
opressor e oprimido e um tanto menos, ou talvez de maneira mais ousada, quanto à questões
pedagógicas. Essas últimas serão reservadas para as questões de Esperança, Diálogo e Educação
libertadora, que são conceitos que trazem respectivamente a esperança de uma realidade
melhor, o diálogo como meio para entender-se e entender ao outro e a educação libertadora
como ferramenta para proporcionar que o indivíduo se estabeleça de forma menos oprimida no
mundo, perante um futuro melhor e educação para ela e seus filhos.

Para apresentar a teoria do oprimido comecemos pelo conceito de Oprimido; Freire


escreve que opressão é um sistema complexo que envolve relações de poder, ideologia, e
manipulação de estruturas sociais. Isso coloca o oprimido nessa posição através de conceitos
como o conceito de Manter o status Quo que diz respeito aos poderosos e opressores se
manterem em sua posição superior através dos Mecanismos de dominação: que se estruturam
por meio de controle cultural, educacional e cultural. Alienação: os oprimidos são alienados de
sua própria identidade, cultura e capacidade de ação. São ensinados a se verem como inferiores
e impotentes, o que perpetua a opressão. Falsa consciência: Freire argumenta que os oprimidos
muitas vezes internalizam as ideologias dos opressores, acreditando que sua situação de
opressão é natural ou justificada. Divisões entre os oprimidos: Os opressores muitas vezes
exploram as divisões internas entre os oprimidos, como diferenças étnicas, culturais ou
econômicas, para manter o controle e impedir que os oprimidos se unam em busca de mudança.

Sabendo como é trazida a relação entre oprimido e opressor, sigamos para a questão da
educação. Freire diz que o ser humano tem um impulso natural por Ser mais, que é a vontade
de se estabelecer de maneira mais efetiva ao participar da criação do seu mundo e não apenas
ser um observador do mundo cruel como costuma ser, porém as relações de opressão tendem a
tornar isso inviável. Para Ser mais as pessoas devem saber que são Seres inconclusos no sentido
de que podem ser mais, sendo isso algo bom, no sentido de que a realidade pode melhorar e não
sempre ser assim. Adiante, para como já citado, a libertação das pessoas oprimidas por meio da
educação ocorrer deve ocorrer também A comunhão para libertação, união dos oprimidos para
sair dessa opressão. Freire também traz que Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta
sozinho e que após a consolidação e a aplicação de todos esses conceitos eles devem sair da
teoria e ir para a prática, fase da práxis.

Interessante antes de adentrarmos à etapa de pareamento das obras que o processo de


educação da narradora, ou como levantado anteriormente autoeducação, mesmo de maneira,
digamos, instintiva a proporcionou uma fuga grandiosa dos processos de opressão, visto que a
publicação do livro a levou a uma realidade completamente mais favorável, proporcionou
acesso à educação aos seus filhos, a levou a conhecer outros países e muito mais. Como dito,
de maneira instintiva, o uso dos conceitos de Paulo Freire foram parte de seu ser mais; pensemos
no poder que essa teoria tem se aplicada de forma consciente.

Trazida à tona a teoria Freiriana, partamos então para a comparação das teorias com a
realidade contida em “O Quarto de despejo - Diário de uma Favelada”. Quanto à apresentação
dos conceitos, estes aparecerão fora da ordem apresentada acima, uma vez que assim se
encaixarão melhor de acordo com a estruturação do livro e das ideias que seguirão.

Comecemos com o conceito de Dialogismo, ou Diálogo trazido por Freire que no


contexto narrado em “Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada” nos é trazido em forma de
seu oposto. Frequentemente a narradora nos traz questões políticas dizendo que os políticos não
se importam com as necessidades do povo, não querem educar as crianças, eis o fazer
Antidialógico do Opressor. Há também momentos em que a autora relata opressão feita pelos
mais ricos nos locais onde ela catava papel, entra aqui também o conceito de Manter o status
Quo que Freire remete por vezes aos abastados.

Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-
se na política para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto
prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele
vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-
cerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade. (QUARTO de despejo:
Diário de uma Favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 1992. P. 33.)

Dada essa realidade onde a autora vive temos presentes todos os mecanismos de
opressão trazidos acima, temos a Divisão entre os oprimidos quando ela retrata que ao invés de
se unirem há na verdade implicâncias banais entre os moradores da favela e até com ela mesmo
por questões de gênero e raciais. Adiante ela justifica que isso acontece graças ao povo não se
unir por achar que não se pode melhorar, ou seja graças a Falsa consciência. Alienação também
se faz presente uma vez que os moradores criticam seu hábito de leitura.

Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles não têm ninguém no mundo a
não ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar.
Aqui, todas implicam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens.
(...) Quando fico nervosa, não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu
escrevo. Sento no quintal e escrevo. (QUARTO de despejo: Diário de uma Favelada.
10. ed. São Paulo: Ática, 1992. P. 19.)

Tendo visitado o contexto de opressão e suas imposições na vida dos oprimidos sigamos
para as ações da autora e suas implicações.

O conceito de Ser mais permeia toda a obra na busca de Carolina por educação,
expressão por meio da escrita e sua determinação em mudar sua realidade demonstram o desejo
intrínseco de "ser mais" que Paulo Freire discute em sua obra. Embora Carolina não tenha tido
acesso à educação formal, ela buscou conhecimento e expressão de maneira autodidata,
demonstrando a força do desejo humano de transcender as limitações impostas pela opressão e
pela pobreza. Ainda em contexto parecido surge o termo seres inconclusos dentro da
consciência da autora da precariedade do meio em que se vive em contraste com saber que
aquilo não precisa ser definitivo.

O meu filho, com 11 anos já quer mulher. Expliquei-lhe que ele precisa tirar o diploma
de grupo. E estudar depois, que o curso primário é muito pouco. (QUARTO de
despejo: Diário de uma Favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 1992. P. 78.)

No trecho acima podemos também analisar os conceitos de Esperança e de Educação


Libertadora, afinal a autora após o sucesso da publicação de seu livro teve suas esperanças
concretizadas.

Adiante, aproximando-se do fim do presente exercício, faz-se interessante juntar alguns


conceitos no mesmo contexto, o de Comunhão para a Libertação, o de Ninguém liberta
ninguém, ninguém se liberta sozinho e o de Práxis. Para o último tomemos todo o contexto do
livro e a atitude da autora; também para Práxis e um tanto mais para os dois primeiros conceitos,
extrapolemos um pouco o conteúdo do livro “Quarto de despejo” e pensemos no que o levou à
publicação, em qual atitude tirou a autora da situação qual queria sair. O repórter Audálio
Dantas reconheceu a qualidade a significatividade da história, ou seja, aplicou o Dialogismo na
sua decisão de trazer à luz o livro de Carolina de Jesus. A publicação do livro em 1960 atraiu
atenção considerável da mídia e do público e Audálio Dantas desempenhou um papel
fundamental na divulgação da história e na promoção da autora, tendo sua vida impulsionada e
permitindo que a dela também fosse.
Por fim, nota-se claro, perante relatos de uma oprimida que observou e escreveu sobre
sua condição de oprimida, sobre a condição de opressão dos que a circundavam e também sobre
o opressor, que Paulo Freire compilou um método que no mínimo conversa com a realidade,
que no mínimo explica relações de poder e de opressão, que no mínimo tem potencial que traz
à luz, através da educação, pessoas que não só querem, mas necessitam.

REFERÊNCIAS

QUARTO de despejo: Diário de uma Favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 1992.

PAULO FREIRE. Pedagogia do oprimido. Rio De Janerio ; São Paulo: Paz E Terra, 2019.

ANTÔNIO CÂNDIDO. Textos de intervenção. [s.l.] Editora 34, 2002.

MARIA HELENA MARTINS. Outras leituras. [s.l.] Senac, 2000.

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