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Disciplina Gestão e Subjetividade.

Reflexões a partir da leitura dos textos:

1- CAMPOS, Gastão W.S; FIGUEIREDO, Mariana Dorsa; CUNHA, Gustavo T. "PRÁXIS E


FORMAÇÃO PAIDEIA – APOIO E COGESTÃO EM SAÚDE" 1a Ed. São Paulo – Hucitec 2014 –
p 54-71

2 - ARMONY, Nahman "Insinuãncia" in "Borderline uma outra normalidade Ed Revinter 1988 (pg
18 a 26)"

Ao longo da leitura me senti incomodado pela constatação de que há certa


naturalização das relações de poder. A tal ponto que essa naturalização, com maior ou menor
incidência, sempre acaba legitimando e/ou fomentando um infinito de violências.
No Brasil contemporâneo, onde contabilizamos 371.678 óbitos por Covid-19 desde
março de 2020, 2.929 nas últimas 24 horas 1, é notório o potencial de extermínio desta
naturalização das relações abusivas de poder.
Contudo, há manifestações mais sutis deste fenômeno. Como naquele breve relato
do encontro entre Judite e o doutor Tadeu. Quiçá aquele encontro fosse apenas a memória
de um passado distante! Mas, definitivamente, não é do que se trata.
É interessante (e triste!) considerar que o texto de Nahman Armony data de 1988.
Ainda que consideremos ter havido outras reflexões anteriores abordando a mesma questão,
se partirmos da leitura proposta, são, no mínimo, mais de três décadas de discussão acerca
deste lugar de poder manifesto em sutilezas cotidianas como na consulta de Judite... ou dos
pretos sendo barrados nas portas giratórias dos bancos... ou das mulheres que se ocupam
em lavar a assadeira engordurada com os restos da ceia de natal enquanto os homens
comentam futebol no sofá da sala.
Sobre estas manifestações sutis de abuso de poder, Azevedo & Guerra (1989),
também há mais de três décadas, já nos alertavam acerca do fator alienante da naturalização
das violências, sobretudo, quando manifestas em “pequenas” experiências cotidianas. Nas
palavras das próprias autoras, “quem jamais lidou com o fenômeno não tem ideia de seu
significado estatístico e de seus efeitos devastadores” 2 (Azevedo & Guerra, 1989).

Alinhadas a uma perspectiva sistêmica para análise do fenômeno das violências, as


autoras também colocam a questão à luz de um prisma social.
“Para as classes dominantes esta desigualdade não resulta da estrutura, mas, das
diferenças naturais entre os homens, dividindo-se o mundo entre os ricos e pobres,
segundo suas capacidades. O pobre é considerado incapaz de ser rico, e necessário
à produção da riqueza. Assim, o social é visto como natural”. (Azevedo & Guerra, 1989,
p. 28).

O elemento comum nos problemas que os textos evocam são as relações de poder.
E, por implicação, seu efeito oportunamente alienante e que corrobora em favor da
perpetuação de relações abusivas.
Nahman Armony é incisivo neste ponto, sobretudo quando propõe serem
imprescindíveis análises permanentes acerca do objeto, do objetivo e dos meios de trabalho
em saúde. Sem estas análises, parece bastante razoável concluir que os ciclos de poder e,
por implicação, os abusos de poder seguirão mantendo férteis os solos onde brotam tragédias
nos mais diversos níveis, desde o doméstico até o macro-político.
Mas, penso que é possível ampliar esta reflexão proposta no campo da Saúde (tanto
na assistência quanto na gestão) a outros cenários.
As relações, independentemente de onde estejam sendo engendradas, se consolidam
ao longo do tempo a partir daquilo que faz sentido às pessoas envolvidas. Ou, do sentido que
estas mesmas pessoas possam estar atribuindo às suas vivências.
Se estiver correto, então, poderíamos considerar que quaisquer mudanças almejadas
somente se tornarão realidade quando, para além das mudanças em si, também os
processos e percursos iminentes até elas se tornem algo que faça sentido às pessoas
envolvidas.
E, nesta hipótese, caberiam quaisquer mudanças! Não apenas a Judite reconhecendo
em si mesma potencialidades de auto cuidado, mas, também ao doutor Tadeu, isto na medida
em que este se dispusesse a rever a própria práxis e, com sorte, abdicar do pequeno poder
que o saber médico lhe confere.
Especificamente, no campo da Saúde, seria bastante significativo tornar imanente o
interesse pela pessoa que apresenta uma queixa. Não apenas pela queixa em si (este recorte
ínfimo do sujeito)! Mas, pela pessoa que a apresenta.
Seria idealizar demais que as relações humanas pudessem estar pautadas por um
interesse genuíno e conectado ao tempo presente do encontro?
Seguindo no campo da Saúde, é evidente que o modelo “médico-centrado”,
cartesiano, positivista e pragmático vigora à revelia do gigantesco leque de alternativas contra
hegemônicas que se apresentam como linha de cuidado. Mas, por que isto ainda acontece?
O que torna a manutenção dos micro poderes algo tão presente e tão precioso ao longo de
toda a história?
Evocando as palavras de Onoko Campos (2012),
Pois bem, agora estamos piores. Em muitíssimos serviços de plantão, de urgências,
ou até nos consultórios externos, as pessoas estão sendo reduzidas a uma coleção de
sintomas sem sentido. Já não somos nem um fígado enfermo nem uma colite e, claro,
muito menos gente3. (Onoko Campos, 2012, p. 66).

Até quando, então, podemos supor que ainda será válido fingir que este modelo
funciona?
Indiscutivelmente, há que se reconhecer avanços já conquistados a partir de
experiências concretas tanto da clínica ampliada quanto de cogestão de práticas em saúde.
Inclusive, na esteira destes avanços, reconheço haver um valoroso elemento
pedagógico nas interlocuções orientadas pela lógica da Saúde Coletiva. Ou, como chamaria
Vygotsky (2018), uma função comunicativa 4 cuja tendência nos inclinaria (desde crianças) a
descobrir e atribuir significados àquilo que experimentamos ao longo da vida e tornando cada
vez mais perceptível, na medida em que amadurecemos, os processos envolvidos nesta
construção de significados.
Poderíamos aqui nos perguntar: quais significados têm sido atribuídos às questões de
saúde? Sobretudo e principalmente, tendo em vista os impactos coletivos que se desdobram
destes significados.
Cabe aqui, mais uma reflexão proposta por Vygotsky (2018). Segundo o autor:
Do ponto de vista dialético, os conceitos não são conceitos propriamente ditos na
forma como se encontram no nosso discurso cotidiano. São antes noções gerais sobre
as coisas. Entretanto, não resta nenhuma dúvida de que representam um estágio
transitório entre os complexos e pseudoconceitos e os verdadeiros conceitos no
sentido dialético desta palavra. (Vygotsky, 2018, p. 218).

Alinhavando estas discussões ao contexto pandêmico em que vivemos, me ocorre


que o tensionamento dicotômico intensificado pela necropolítica em marcha nos afastou de
uma linguagem capaz de conectar as pessoas a partir de uma necessidade basal que todas
e todos nós temos em comum. Me refiro aqui à necessidade de permanecermos vivos!
Os significados que orientam a narrativa de quem ocupa as instâncias de poder tem
sido, deliberadamente, desagregadores. Visam, intencionalmente, minar a compreensão de
que somos um todo e que nossas ações afetam até mesmo pessoas que sequer são parte
de nosso convívio diário. Uma narrativa com tamanha força destrutiva que nos tornamos uma
ameaça ao planeta!
Ao ler que “vários países começaram a implantar medidas de saúde pública
vinculadas ao saneamento e higiene, promovendo verdadeiras revoluções urbanas em prol
da prevenção das pandemias” (Campos, Figueiredo e Cunha, 2014), avanços sanitários do
século XVIII, o sentimento que me acomete é de extrema indignação atravessada por um
bom tanto de desespero por reconhecer que retrocedemos ao ponto de um genocídio que
cavalga na apatia, inclusive, das instâncias de Controle Social.
E ainda, ao considerarmos que avanços produzidos pela bacteriologia e a
parasitologia remontam ao século XIX, quanto retrocedemos tendo em vista que o significado
dado à maior pandemia de nossa história contemporânea é o de uma reles “gripezinha”?
Ao destacar que suas reflexões descreviam uma “estória”, configurando, portanto
(àquela época), uma narrativa fictícia, talvez Nahman sequer suspeitasse que havia algo de
profético na caracterização dos problemas que elencou em 1988.
Um dos desdobramentos mais nefastos desta lógica das relações que se alicerçam
na manutenção do poder (seja este em escala micro ou macrossistêmica 5) é, sem dúvidas, a
banalização da morte. E é, exatamente, isto o que temos vivido: a banalização da morte.
Numa cultura em que o doutor Tadeu entende ser legítimo que seu trabalho prescinda
um olhar nos olhos de Judite antes dizer-lhe o que deve ou não fazer; em que a narrativa de
que a Economia “deve ser salva” a todo custo; em que homens se sentem no direito de
responsabilizar as mulheres pelas violências que elas sofrem; em que lugar de preto é fora
das universidades; enfim... numa cultura em que sustentar a assimetria de poder nas relações
perpetua-se como pedra fundamental e estruturante da sociedade, quais esperanças é
possível vislumbrar?
Numa alternativa de resposta a este questionamento, podemos evocar a convocação
que nos faz Rosa Luxemburgo 6 (2015) ao propor que “sem o desmoronamento do
capitalismo, é impossível a expropriação da classe capitalista”. Nietzsche7 (2011), por sua
vez, ao descrever a criança como uma das três metamorfoses do espírito (aquelas que
atribuem valor ao poder apenas quando este é poder do sujeito sobre si mesmo), nos convida
ao “esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda a girar por si mesma, um primeiro
movimento, um sagrado dizer-sim”.
Assumindo o risco de parecer piegas... que possamos, então, encontrar esperanças
no engajamento junto às lutas de nosso tempo. E lutemos para que, em algum tempo, lutar
não seja mais preciso.

Gustavo de Lima Bernardes Sales


Outono, 2021.

Bibliografia:
1. Fonte: https://susanalitico.saude.gov.br/extensions/Covid-19_html/Covid-19_html.html,
consulta em 18 de abril de 2021;
2. AZEVEDO, M. A. & GUERRA, V. N. A., Crianças Vitimizadas: A Síndrome do Pequeno
Poder, São Paulo, 1989, p. 14;
3. ONOKO CAMPOS, R., Psicanálise & Saúde Coletiva: Interfaces, São Paulo, 2012;
4. VYGOTSKY, L. S., A construção do pensamento e da linguagem, São Paulo, 2018, p.103;
5. BRONFENBRENNER, U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres
humanos mais humanos, Porto Alegre, 2011, p. 176-177);
6. LUXEMBURGO, R., Reforma ou Revolução?, São Paulo, 2015, p. 113;
7. NIETZSCHE, F., Assim falou Zaratustra, São Paulo, 2011, p. 28-29.

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