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Resumo
O presente estudo objetiva a análise dos aspectos constitucionais que envolvem a decisão sobre a eutanásia, no âmbito
do ordenamento jurídico brasileiro, o qual possui como princípio norteador a dignidade da pessoa humana, corolário
do Estado Democrático de Direito. Para tanto, utilizamos como marco teórico conceitos do filósofo Ronald Dworkin,
que retratam as principais questões envolvidas nas decisões sobre a morte, relacionadas especialmente à noção de
sacralidade da vida humana, como também a estreita relação entre os direitos fundamentais à vida e à liberdade e o
princípio da dignidade da pessoa humana. Conforme consignado, a dignidade deve ser promovida no exercício dos
direitos fundamentais, para que os indivíduos não recebam tratamentos desumanos e degradantes. Nesse contexto,
cumpre investigar se, na fase final da vida, mais especificamente no caso do paciente terminal, a primazia da dignidade
humana é capaz de justificar a disponibilidade do direito à vida.
Abstract
The present study aims at analyzing the constitutional aspects that involve the decision on euthanasia within the Brazilian
legal system, which has as guiding principle the dignity of the human person, a corollary of the Democratic State of
Law. We use as theoretical framework concepts of the philosopher Ronald Dworkin, which portray the main issues
involved in decisions about death, related especially to the notion of the sacredness of human life, as well the close
relationship between the fundamental rights to life and liberty and the principle of the dignity of the human person.
The dignity must be promoted in the exercise of fundamental rights, so that individuals do not receive inhuman and
degrading treatment. In this context, it is necessary to investigate whether, in the final phase of life, more specifically in
the case of the terminal patient, the primacy of human dignity is capable of justifying the availability of the right to life.
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COMO VIVER E QUANDO MORRER: O DOMÍNIO DA VIDA NA VISÃO DE RONALD DWORKIN
Introdução
As medidas médicas de manutenção que esta ocorra de acordo com os
da vida do paciente terminal, interesses fundamentais de cada indivíduo,
proporcionadas pelos avanços técnico- com sua noção de dignidade, em respeito
científicos da medicina nas últimas ao valor intrínseco da vida humana,
décadas, trouxeram à tona as discussões dialogando, assim, sobre o direito de os
sobre a prática da eutanásia, indivíduos decidirem sobre como viver e
compreendida como o ato que abrevia a quando morrer.
vida do enfermo por razões benevolentes, Ademais, para a melhor
condenada com base na sacralidade da compreensão dos conceitos trazidos pelo
vida humana, e defendida pelos que filósofo, abordaremos também sobre a
primam pela autonomia e dignidade do proteção jurídica conferida pela
paciente. Constituição Federal de 1988 à vida, à
Na compreensão de Ronald Dworkin liberdade e à dignidade humana, contudo,
(2003), o poder crescente de tais destacamos que os aspectos penais não
tecnologias aumentou consideravelmente serão analisados no presente artigo, os
o interesse das pessoas em controlar o quais serão reservados para próximas
momento da própria morte, assim como o discussões.
surgimento do vírus da AIDS, que as levou Trata-se de um estudo pautado no
a almejar o extermínio de suas vidas, de método dialético e nos conceitos do filósofo
modo que passaram a dispor sobre os norte-americano Ronald Dworkin (2003),
tratamentos médicos que desejam se mais especificamente os de: valor
submeter ou não, e sobre o próprio ato da intrínseco da vida; autonomia e interesses
morte. fundamentais; e dignidade humana.
No presente artigo, pretende-se O estudo foi dividido por sessões,
analisar os aspectos constitucionais que representados pelo “valor intrínseco da
giram em torno da problemática da vida”; autonomia e interesses
eutanásia, relacionados aos direitos fundamentais: expressões da liberdade
fundamentais à vida e à liberdade e sua individual; dignidade da pessoa humana
relação com o princípio da dignidade da compreendido na formação de opinião
pessoa humana, a fim de perquirir se este baseado na interpretação de um teórico.
último seria capaz de justificar a
abreviação da vida humana em condições O VALOR INTRÍNSECO DA VIDA
terminais e desprovidas de dignidade. Definir o significado de vida consiste em
Para o desenvolvimento do presente uma tarefa complicada, realizada pelas
trabalho, utilizaremos como marco teórico diversas áreas da filosofia. No presente
os conceitos do filósofo norte-americano artigo, contudo, não pretendemos
Ronald Dworkin (2003), em sua obra estabelecer um conceito para a palavra
“Domínio da Vida: aborto, eutanásia e vida, mas sim analisar o valor da vida
liberdades individuais”, mais humana para a sociedade, bem como o
especificamente os conceitos de valor seu reconhecimento como um direito
intrínseco da vida; autonomia e interesses fundamental.
fundamentais; e dignidade humana. A Na leitura de Sá e Moureira
análise destes conceitos nos proporciona (2012), a vida consiste em um valor
reflexões acerca da importância de se construído pelo ser humano. Uma vez
pensar no momento ideal da morte, para concebida como tal, a vida passou a ser
3
Segundo Gutierrez (2001), a terminalidade da vida se dá “quando se esgotam as possibilidades de resgate das condições
de saúde do paciente e a possibilidade de morte próxima parece inevitável e previsível”, desse modo, “o paciente se torna
irrecuperável e caminha para a morte, sem que se consiga reverter este caminhar”.
4
Por ser um ato que retira a vida humana, ainda que em fase terminal e desprovida de dignidade, a eutanásia é considerada
como homicídio privilegiado (art. 121, §1º, do CPB), com redução de pena, devido ao relevante valor moral envolvido na
prática do ato.
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evolutivo, diz respeito à produção de um ser assim, que a morte biológica frustraria a
completo e racional, um ser especial, natureza em todos os casos. Percebe-se,
produto da criação de Deus ou da evolução também, a preocupação com o bem-estar
da natureza. O investimento humano, por do paciente que se encontra na iminência
sua vez, é imediato quando a gravidez é da morte, mas tem sua vida presa à Terra
planejada, de modo que a decisão dos pais por meio de aparelhos que, talvez se não
de trazer ao mundo um filho também é fosse por eles, já teria chegado a falecer
criadora. Este último envolve, ainda, todo o naturalmente.
processo de aprendizado e transmissão De certo, quando falamos sobre a
cultural, que formam a personalidade e o vida do paciente terminal, ou sobre
caráter do indivíduo (DWORKIN, 2003). qualquer vida humana, não devemos
Tal entendimento de investimento pensá-la de forma isolada, no sentido de
natural constitui a base mais forte da apenas existir, mas também levando em
oposição conservadora, contra qualquer ato consideração um conjunto de fatores: se a
deliberado de abreviar a vida humana, uma pessoa considera a sua vida boa, se dispõe
vez que: de um mínimo de dignidade; se considera
sua vida digna, se deseja manter a sua vida,
[...] o investimento feito pela natureza em uma vida de acordo com sua noção de dignidade.
humana terá sido frustrado sempre que morrer
alguém que, tecnicamente, pudesse ser mantido
Nesse prisma, Sá e Moureira (2012)
vivo por mais tempo, então toda intervenção asseveram que:
humana – injetar uma droga lesiva em uma pessoa
que agoniza devido a um câncer doloroso, ou A evolução da Medicina e os constantes progressos
retirar o suporte vital de alguém que se encontra biotecnológicos deram vazão a várias discussões e o
em estado vegetativo permanente – equivale a uma certo é que há forte corrente que abandonou a ideia
fraude contra a natureza (DWORKIN, 2003, p. 302). de pensar a vida como o simples respirar, não
somente como garantia de sobrevida, ou como
Segundo esse ponto de vista, o valor garantia de batida de um coração ou uma doce
ilusão. A discussão que permeia a garantia do direito
intrínseco da vida seria violado justamente à vida versa, não raro, em relação à sua qualidade e
por ser a antecipação da morte um dignidade, como construção diária. (SÁ; MOUREIRA,
acontecimento contrário ao investimento 2012, p. 70).
natural, ainda que o paciente explicite sua
vontade de morrer. Tal postura corrobora Em consonância com os autores
com muitas tradições religiosas, as quais supracitados, percebemos que a
pregam que a vida de um ser humano não preocupação que se tem, atualmente, é a
lhe pertence, mas a Deus. de que o direito à vida não seja visto de
Por outro lado, até mesmo as forma isolada, como um simples existir, mas
pessoas que acreditam na supremacia do sim no sentido de que esta vida seja digna,
investimento natural na vida podem não sobretudo depois desta evolução médica,
convergir com o pressuposto de que a que possibilitou equipamentos que mantêm
eutanásia frustraria a natureza: um ser humano vivo por longos períodos,
ainda que em meio a sofrimentos
Podem, plausivelmente, acreditar que prolongar a
constantes, independentemente de sua
vida de uma pessoa muito doente, ou que já perdeu
a consciência, em nada contribui para concretizar a vontade.
maravilha natural da vida humana e que os objetivos Com efeito, o direito à vida foi posto pelo
da natureza não são atendidos quando os artefatos legislador constituinte no rol dos direitos
de plástico, a sucção inspiratória e a química fundamentais, com previsão no art. 5º da
mantêm o coração batendo em um corpo inerte e
Carta Magna 6, que garante a todos os
sem mente, um coração que a própria natureza já
teria feito calar-se. (DWORKIN, 2003, p. 304). brasileiros e estrangeiros residentes no
Brasil a inviolabilidade deste direito. Para
Nesse momento, o citado filósofo traz Dirley da Cunha Júnior (2015), o direito à
uma concepção mais flexível, negando, vida é o:
....
6
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes [...]. (BRASIL, 2018)
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seus atos sejam permitidos pela lei, ou que das coisas, nas convicções pessoais ou no sentido
não sejam proibidos por esta. da própria identidade. (DWORKIN, 2003, p. 319-
321)
Tamanha é a importância da
efetivação da liberdade humana, que o Assim, na compreensão de Dworkin,
legislador constituinte a positivou como um a autonomia consiste na possibilidade de
dos direitos fundamentais, previsto no caput cada indivíduo autodeterminar-se, de
do art. 5º do Texto Maior, ao lado do direito conduzir sua vida e de tomar decisões de
à vida. Não obstante, assim como todos os acordo com sua própria percepção sobre as
direitos, a liberdade também sofre coisas, nas suas convicções pessoais.
limitação, como prevê o próprio art. 5º, Por sua vez, Sá e Moureira (2012, p. 142)
inciso II, da nossa Carta Magna: “ninguém caracterizam a autonomia como a “aptidão
será obrigado a fazer ou deixar de fazer para a manifestação da vontade, de forma
alguma coisa senão em virtude de lei” válida”. Mais uma vez, levanta-se a
(BRASIL, 2018). Nota-se, assim, que a necessidade de que o paciente expresse sua
liberdade encontra limites na própria vontade de forma consciente, e que esta
legislação pátria, que lhe impõe uma decisão seja válida, ou seja, que esteja em
atitude positiva de fazer o que as leis conformidade com as normas do direito
mandam, como também negativa, de não brasileiro.
agir da maneira que as leis proíbem. Assim, Desse modo, podemos notar a
para exercer sua liberdade, as pessoas preocupação geral de que o paciente tome
devem agir respeitando as leis previstas no uma decisão consciente, racional, capaz de
ordenamento jurídico. determinar a sua existência enquanto ser
A preocupação com a realização da humano, livre e autônomo. Para isso, Sá e
liberdade individual também se encontra Moureira (2012) definem que seria
presente na obra de Ronald Dworkin, mais necessário, na relação médico-paciente,
especificamente quando o filósofo aborda que o profissional informe sobre todas as
as decisões do paciente terminal em relação possibilidades e resultados possíveis dos
à vida e à morte, o que pode ser observado tratamentos e procedimentos médicos,
quando retrata sobre a autonomia e os assim como sua consequência. Assim, ciente
interesses fundamentais do enfermo. de todas as informações acerca do seu
Segundo Dworkin (2003), o princípio da quadro, o enfermo pode decidir
autonomia é invocado frequentemente por racionalmente sobre as questões relativas a
aquelas pessoas que acreditam que deveria viver e morrer.
ser permitido aos pacientes conscientes o No entanto, as pessoas que são
planejamento da sua própria morte, adversárias do ponto de vista suscitado
mediante assistência de médicos que também invocam a autonomia ao
estivessem dispostos a ajudá-los, se assim questionar se, com a possibilidade de
fosse de sua vontade. Desse modo, para as legalização da eutanásia, as pessoas que
pessoas que defendem esse ponto de vista, desejam permanecer vivas poderiam ser
é imprescindível para o direito que os mortas (DWORKIN, 2003). Trata-se de um
indivíduos tenham a possibilidade de argumento coerente, mas não absoluto,
decidir, por eles próprios, as questões uma vez que estamos analisando aqui a
fundamentais que permitam abreviar as possibilidade de o paciente decidir sobre
suas vidas, desde que seja uma atitude sua morte, de acordo com sua vontade.
madura e racional. De outro modo, levanta-se a seguinte
Para o citado filósofo, a autonomia: indagação: seria possível o respeito pela
[...] estimula e protege a capacidade geral das
pessoas de conduzir suas vidas de acordo com uma
autonomia da vontade do paciente quando
percepção individual de seu próprio caráter, uma ele não se encontra mais consciente?
percepção que é importante para elas. [...] Diz Segundo o pensamento de Dworkin
respeito à capacidade mais geral e difusa que (2003, p. 269), a situação suscitada seria
descrevi: a capacidade de agir com base em possível, vez que poderíamos “respeitar a
preferências genuínas, na percepção da natureza
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autonomia de alguém que se tornou vida, com o modo como se vive, mais
inconsciente apenas se nos perguntarmos especificamente com o viver bem. Nesse
qual teria sido a decisão de tal pessoa em prisma, para que possamos entender as
condições apropriadas, antes de tornar-se diferentes decisões que os pacientes tomam
incompetente”. Desse modo, para que a em relação a como viver e quando morrer,
autonomia do paciente que se encontra é imprescindível que teçamos alguns
inconsciente seja respeitada, devemos comentários acerca dos interesses
considerar a vontade dela no momento em fundamentais dos indivíduos, os quais
que estava consciente e competente. podem ser experienciais ou críticos.
Por outro lado, o filósofo pontua que, Na leitura de Dworkin (2003), os
caso o paciente não tenha delimitado sua interesses experienciais consistem nas
vontade por meio documental, seria atividades que fazemos as quais nos
possível reconstruí-la através de relatos dos proporcionam prazer imediato, ou seja, são
familiares, baseados na “percepção do que atitudes que tomamos porque gostamos da
seria mais coerente com a personalidade do experiência sentida, como, por exemplo,
doente” (DWORKIN, 2003, p. 270). Nesse jogar futebol, cozinhar ou comer bem.
sentido, para avaliar a personalidade do Assim, todas essas coisas que fazemos
paciente, deve-se analisar quais são os seus parecem ser boas porque as captamos
verdadeiros interesses.
como uma agradável experiência. De modo
Quando se questiona sobre como semelhante, existem também muitas
viver, como também sobre o momento experiências que são desagradáveis, a
adequado para se morrer, as pessoas exemplo das sensações de dor e náuseas.
divergem muito de opinião. Muitas pessoas Estas últimas são experiências das quais
desejam permanecer vivas pelo maior temos medo e buscamos evitar de todas as
tempo possível, pouco importando a formas possíveis.
qualidade desta vida ou em que condições Além desse, as pessoas possuem
se dê essa continuidade. Para estas, morrer também os interesses críticos, os quais
seria contrário aos seus interesses, não Dworkin (2003, p. 284) caracteriza como
importando quão terrível fosse sua situação. “interesses cuja satisfação torna suas vidas
Por outro lado, devemos entender também genuinamente melhores, interesses que, se
as pessoas que pensam de forma contrária, ignorados, constituiriam erros passíveis de
as que preferem morrer ao invés de ficarem piorar essas vidas” e, dessa maneira,
em estado de inconsciência permanente, o “representam juízos críticos, não apenas
qual não se pode mais reverter (DWORKIN, preferências relativas a experiências”,
2003). como, por exemplo, o interesse de ter
Assim, para que possamos sucesso profissional, de ter um bom
compreender o que a morte significa para relacionamento com os filhos ou de ter
cada pessoa, é imperioso que pensemos amigos íntimos.
sobre a vida: Relativamente ao final da vida,
A morte domina porque não é apenas o começo do Dworkin (2003, p. 286-298) entende ser
nada, mas o fim de tudo, e o modo como pensamos “trágico que alguém já próximo do fim
e falamos sobre a morte – a ênfase que colocamos passe sua vida em revista e a considere
no “morrer com dignidade” – mostra como é
importante que a vida termine apropriadamente, inútil, vazia de qualquer significado real e
que a morte seja um reflexo do modo como de qualquer realização da qual possa
desejamos ter vivido. (DWORKIN, 2003, p. 280) orgulhar-se”, isto porque as pessoas
costumam almejar que sua morte expresse
Dessa maneira, vemos como as “os valores que acreditam ser os mais
decisões sobre a morte estão intimamente importantes para suas vidas”. Desse modo,
conectadas com o que se pensa sobre a acredita-se que as pessoas não tomam
vida,
10 com o modo como se vive decisões
Hoje em dia, muitos países adotam o testamento vital. Nas palavras de Dadaltoimprescindíveis sobre vital
(2015, p. 97): “O testamento suasé um
vidas
documento de manifestação de vontades pelo qual uma pessoa capaz manifesta seus desejos sobre suspensão de
tratamentos, a ser utilizado quando o outorgante estiver em estado terminal, em EVP ou com uma doença crônica incurável,
impossibilitado de manifestar livre e conscientemente sua vontade.”
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humano. Por outro lado, quando uma coisa pacientes inconscientes, os quais, frise-se,
está acima de qualquer preço, e, desta feita, são dignos de igual respeito e atenção.
não é possível substituí-la por algo De outra maneira, Dworkin (2003)
equivalente, esta coisa possui dignidade, alude que todas as pessoas dotadas de
um valor íntimo, pois se constitui como um consciência possuem, além de interesses
fim em si mesmo. experienciais, interesses críticos
Assim, relacionando os conceitos relacionados ao caráter e ao valor de suas
kantianos de pessoa e dignidade, podemos vidas como um todo, ou seja, com o valor
perceber que a dignidade é uma qualidade intrínseco da vida. Desse modo, uma pessoa
intrínseca da pessoa humana, a qual se preocupa com seus interesses críticos por
merece ser protegida por toda a sociedade, considerar importante o tipo de vida que se
por meio das normas jurídicas. Por esta tem levado, uma importância em si mesma,
razão, Dworkin (2003, p. 334) introduz o e não apenas o prazer experiencial.
direito à dignidade como um imperativo, o Sob essa ótica, o citado filósofo norte-
qual “exige que a comunidade lance mão americano sugere que:
de recurso necessário para assegurá-lo”.
Nesse sentido, o autor segue [...] o direito de uma pessoa a ser tratada com
dignidade é o direito a que os outros reconheçam
questionando se as pessoas em estado seus verdadeiros interesses críticos: que reconheçam
terminal, tanto conscientes como que ela é o tipo de criatura cuja posição moral torna
inconscientes, possuem esse direito à intrínseca e objetivamente importante o modo como
dignidade, que lhes protege de sofrer atos sua vida transcorre. (DWORKIN, 2003, p. 337)
indignos. Para este feito, apresenta duas
teorias que explicam a razão de a Assim, tratar um indivíduo com
indignidade ser condenável, quais sejam: respeito, significa respeitar os interesses
uma baseada apenas nos interesses críticos dele, ou seja, a forma como ele
experienciais, e outra de acordo com os enxerga e valora a própria vida, assim como
interesses experienciais e críticos. o seu ideal de vida boa. A dignidade é
A primeira teoria pressupõe que “a posta, então, no sentido de respeito pelo
indignidade provoca em suas vítimas um valor inerente da vida humana.
sofrimento mental especialmente grave e Nessa perspectiva, Dworkin (2003, p.
característico”, o qual lhes causa 339) faz alusão ao princípio kantiano
ressentimento e as leva, consequentemente, “segundo o qual as pessoas devem ser
“a sofrer mais com a indignidade do que tratadas como fins, nunca simplesmente
com qualquer outra forma de privação”, em como meios”, com o fito de reiterar que as
decorrência da qual tais pessoas começam pessoas nunca devem ser tratadas “de
a sentir desprezo e aversão por si mesmas maneira que se negue a evidente
(DWORKIN, 2003, p. 335). Trata-se de uma importância de suas vidas”, o que abrange
concepção baseada apenas nos interesses tanto as pessoas conscientes, como as que
experienciais, relacionados ao prazer chegaram à inconsciência. Neste último
imediato do indivíduo, que, por um ato de caso, respeitamos a dignidade da pessoa
indignidade, é privado de tal. inconsciente reconstruindo os seus
O filósofo (DWORKIN, 2003) aduz interesses críticos pensados quando ainda
que, para a teoria supracitada, o ato pelo em consciência.
qual o ser humano exige o respeito por si Acrescenta o filósofo que, mesmo o
mesmo pressupõe um senso de identidade indivíduo inconsciente, a exemplo daquele
própria ao longo do tempo, que comumente que sofre de acometido pela demência,
se perde para pessoas inconscientes, como “conserva seus interesses críticos porque o
os dementes. que lhe acontece afeta o valor ou o sucesso
Destarte, tal entendimento não de sua vida como um todo”, visto que “o
merece ser considerado, visto que não fato de continuar sendo uma pessoa e de o
abrange na sua concepção de dignidade os valor geral de sua vida continuar tendo
importância intrínseca são verdades que
Art. 1º, inciso III, da CRFB/88.
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[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida 1ª) dimensão fundamentadora - núcleo basilar e
em cada ser humano que o faz merecedor do informativo de todo o sistema jurídico-positivo; 2ª)
mesmo respeito e consideração por parte do Estado dimensão orientadora - estabelece metas ou
e da comunidade, implicando, neste sentido, um finalidades predeterminadas, que fazem ilegítima
complexo de direitos e deveres fundamentais que qualquer disposição normativa que persiga fins
asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles
ato de cunho degradante e desumano, como fins enunciados pelo sistema axiológico-
venham a lhe garantir as condições existenciais constitucional; e 3ª) dimensão crítica - serve de
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar critério para aferir a legitimidade das diversas
e promover sua participação ativa e co-responsável manifestações legislativas (LUNO, 1988, p. 288-289
nos destinos da própria existência e da vida em apud BULOS, 2014, p. 512, grifo do autor).
comunhão com os demais seres humanos. (SARLET,
2006, p. 60) Tais dimensões elencadas por Luno
apontam o princípio da dignidade humana
A dignidade na vida humana pressupõe, como fundamento de todo o ordenamento
pois, o sentido de vida boa, impondo-se ao jurídico brasileiro (primeira dimensão);
Estado e à sociedade o dever de assegurar como orientador de todas as normas, com o
e respeitar as condições mínimas para que estabelecimento de finalidades a serem
as pessoas tenham uma vida saudável e atendidas (segunda dimensão); de modo
livre de atos degradantes. Deste modo, que, estando qualquer norma contra esse
para que haja dignidade na vida biológica, valor supremo, será considerada ilegítima
é necessária a existência de direitos e (terceira dimensão). A grandeza e
deveres fundamentais que a protejam importância da dignidade justificam,
contra ações desumanas, dentre os quais portanto, o seu caráter de princípio, de
se destacam os direitos fundamentais à norma e de limite à interpretação de todas
vida e à liberdade, que conferem a cada as normas jurídicas.
indivíduo capaz a autonomia de participar Depreende-se do exposto que a
das decisões sobre o seu próprio destino. dignidade humana consiste no ponto de
Nesse prisma, ao se entender a partida de todo o ordenamento jurídico
dignidade da pessoa humana como o norte brasileiro, bem como funciona como
de todos os valores e normas jurídicas, esta parâmetro de interpretação e aplicação das
deve ser respeitada tanto pelo Estado, normas, a qual deve ser assegurada a todas
como pela sociedade em geral, os quais as pessoas, sem qualquer distinção. Trata-
devem lançar meios para concretizá-la. se de um direito imprescindível na vida de
Na compreensão de José Afonso da Silva cada ser humano, de ser livre da
(1998), a Constituição de 1988 reconheceu indignidade e de tratamentos desumanos e
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Conclusão
Com base em todo o exposto, convicções pessoais, desde que realizada de
percebe-se que a eutanásia vem forma válida, racional e consciente.
ocasionando calorosos debates entre as Evidenciou-se, assim, que o paciente
pessoas que defendem a indisponibilidade consciente pode manifestar sua vontade
e sacralidade do direito à vida, e as que diretamente, e que a vontade do que se
apoiam a liberdade do paciente de escolher encontra inconsciente pode ser respeitada
uma morte com dignidade. Nesse contexto, se ele houver disposto em um documento,
proporcionamos ao leitor a reconstrução ou através da reconstrução da sua vontade,
dos argumentos utilizados por ambos os com base nos relatos de pessoas mais
grupos, posicionando-nos de acordo com a próximas.
dignidade da pessoa humana, princípio Aliado a autonomia, encontram-se os
fundamental e norteador do nosso Estado interesses fundamentais, que podem ser
Democrático de Direito. experienciais (causam prazer imediato) ou
Observamos, inicialmente, a críticos (baseados nos ideais perseguidos
necessidade de que as pessoas pensem no por cada pessoa), estando estes
momento da morte, a fim de que esta relacionados ao ideal de integridade da
ocorra de forma apropriada e digna, vida, permitindo ao indivíduo uma noção de
tomando como base os ensinamentos do vida boa de maneira integral, durante todo
filósofo Ronald Dworkin acerca da o decorrer desta vida. Tais interesses
sacralidade da vida humana, das liberdades influenciam, assim, nas decisões do
individuais e do direito à dignidade, os quais paciente terminal, que deseja que o fim da
nos acompanharam durante todo o sua vida reflita o modo como gostaria de ter
decorrer do estudo. vivido, uma vida boa e digna.
Nesse sentido, vimos que à vida foi Dessa maneira, a dignidade da
atribuído um valor intrínseco, o qual pessoa humana é posta como o fundamento
do Estado Democrático de Direito, um valor
pressupõe que a vida é sagrada devido ao
que exerce influência sobre todos os direitos
investimento realizado pela natureza e pela
previstos pelo ordenamento jurídico
humanidade na sua produção, brasileiro, funcionando como parâmetro de
considerando-se, assim, um desperdício interpretação das normas. Nessa esteira, a
qualquer ato que a viole, mesmo que em dignidade é entendida como uma forma de
sua forma mais incipiente. Por outro lado, se evitar a indignidade, impondo ao Estado
vimos também que a vida possui um valor e à sociedade o dever de assegurar as
pessoal, o qual é atribuído pelo indivíduo a condições mínimas para que as pessoas
sua própria vida, com base nos seus tenham uma vida saudável, livre de atos
interesses fundamentais e no seu ideal de desumanos e degradantes, com a previsão
dignidade. de direitos fundamentais. Reconhecemos,
Nesse passo, verificamos que o portanto, o ser humano como um fim em si
direito fundamental à liberdade confere o mesmo, inclusive na fase terminal da vida,
devendo a sua dignidade ser respeitada e
poder a cada pessoa para autodeterminar-
assegurada desde o início até o fim da vida
se e buscar sua felicidade pessoal,
humana.
encontrando limites, contudo, na própria lei Nesse viés, podemos vislumbrar que,
e no respeito aos outros. Como primeira enquanto direito fundamental, a vida é
forma de manifestação da liberdade, tem- posta como um bem inviolável e
se a autonomia, ou seja, a possibilidade de indisponível, mas alguns fatos evidenciam
cada indivíduo conduzir a própria vida e que não se trata de um bem absoluto, posto
tomar decisões de acordo com suas que o próprio Estado permite a sua
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Referências
BRASIL, Código Penal. Disponível em < SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decr Pessoa Humana e Direitos Fundamentais
eto-lei/Del2848compilado.htm > Acesso na Constituição Federal de 1988. 4. ed.
em 24.05.2019. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
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