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M2 - APOSTILA DE ARTE – parte II COLÉGIO INTEGRADO Prof. Thiago Veronezzi.

Os diversos gêneros na música: erudito, popular e étnico 1.


O filósofo Sócrates costumava perguntar a diversos artistas e profissionais do mundo grego o que,
de fato, cada um deles fazia. Essa pergunta - genuinamente grega - pela essência de algo, pelo seu "que",
ainda ressoa em nossa cultura ocidental como uma inquietação legítima, mesmo tendo passado já mais de
dois mil anos. Muitas vezes, o diálogo socrático levava o especialista em uma determinada área a admitir
que, na verdade, não conseguia responder com clareza a essa questão fundamental sobre a própria
atividade que exercia com grande destaque.
Da mesma forma, se questionarmos músicos profissionais acerca da essência da música erudita e
da música popular, talvez acabemos sem uma resposta satisfatória. No nosso caso, a pergunta pelo "que"
é também o questionar a "diferença" entre duas identidades. O que é música erudita? O que é música
popular? Qual é a diferença entre música erudita e música popular?
Comecemos pela primeira, mas, inicialmente, tornemos mais popular a pergunta sobre a essência
da música erudita ou "clássica": qual é a da música erudita? Teremos de peregrinar pela estrada dos
preconceitos.
Muitos atribuem à música erudita o peso de uma tradição milenar, envelhecida pelo tempo e presa
ao passado. Puro desconhecimento: há muita produção contemporânea na música erudita, há muita
música erudita sendo feita hoje. O fato dessa música não ser suficientemente divulgada é uma questão
social e política que não faz parte da essência da música erudita.
Claro está, por outro lado, que há muita música dos mestres do passado interpretada no presente.
Isso, no entanto, não caracteriza em si a música erudita: toda proposta artística de qualidade tem uma
tendência a perpetuar-se de alguma forma. Não apenas uma sinfonia clássica, mas também certos
romances, coleções de poemas, quadros, esculturas, filmes, fotografias, peças de teatro e músicas
populares são contemplados e absorvidos através dos tempos. A arte, em geral, não é fast food, algo que
deva ser consumido, digerido e eliminado rapidamente.
Poderíamos atribuir também à música erudita o fato, justamente, dela não ser "popular". A
"popularização" da música erudita, no entanto, sempre existiu. Nem todos os seus "estilos" tornaram-se
populares, mas muitos deles foram e são muitíssimo populares. Música erudita esteve ligada durante
séculos ao culto religioso cristão; música erudita passou a ser também entretenimento, sobretudo a
partir do século XVIII (isso inclui muito da produção de um autor como Mozart, por exemplo); música
erudita tem, hoje, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, um público enorme, altos investimentos,
gravadoras e técnicos especializados, salas de espetáculo modernas, orquestras, corais e grupos de câmara
estáveis, regentes, solistas, professores e pesquisadores de alto nível. Muitos de seus artistas vivem com
dignidade de suas carreiras. Alguns ganham tanto quanto um astro de rock.
Também a música erudita sempre bebeu em fontes populares - aliás, de onde mais ela poderia tirar
recursos sonoros para trabalhar? A música sacra antiga nasceu do contato da música hebraica médio-
oriental com a civilização greco-romana. Mil anos depois, essa música foi plenamente renovada pela
influência da música árabe e turca, no Trovadorismo. Todos os grandes compositores
foram também flamengos, italianos, alemães, austríacos, franceses, ingleses, húngaros, russos, espanhóis,
balcânicos, escandinavos, americanos, japoneses, brasileiros, etc., e suas músicas refletem diretamente -
como no caso dos chamados "nacionalistas" - ou então indiretamente um processo de transformação sobre
sonoridades específicas.
Neste ponto, no entanto, parece que estamos nos desviando da pergunta sobre a essência da
música erudita. A música erudita não é "antiga" (embora tenha forjado uma tradição que remonta às
origens do Ocidente) e também não é "européia" (embora tenha se desenvolvido plenamente e durante
muito tempo na Europa).
Não é mais interessante tentar definir essa música a partir de características técnicas de sua
construção? Aqui parece residir um caminho mais promissor: já há muitos séculos, a música erudita

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Com excertos de texto de Sidney Molina, retirado do espaço <www.cmozart.com.br/Artigo6.php>
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constituiu um artesanato baseado na escrita. A escrita musical é, de fato, uma característica marcante da
música erudita. A música erudita depende de uma elaboração artesanal no papel e de uma transformação
desse artesanato escrito em som interpretado.
Por esse fato, muitas vezes, os músicos populares acusam a música erudita de ter perdido o
vínculo com a improvisação, de ter se cristalizado numa "escrita morta". Esse é, no entanto, mais um
preconceito, pois a música erudita de qualidade encontra vida através e apesar do texto escrito. Essa
"vida" apesar e através da escrita manifesta-se tanto no domínio composicional quanto no da
interpretação.
Não podemos desconsiderar que o compositor que escreve também improvisa: ele esboça, altera,
ouve, toca, canta e reflete. Ele improvisa em câmara lenta, compasso a compasso. Ao contrário do
improviso do músico popular, que busca o resultado diretamente na gravação ou na execução ao vivo,
esse improviso erudito toma forma no pentagrama. Não há só estrutura, há também improviso na escrita
musical.
Por outro lado, o intérprete - apesar de seguir detalhadamente a partitura - também improvisa. Este
aparente paradoxo ocorre porque nem tudo pode ou deve ser escrito: o som não pode ser escrito, o timbre
não pode entrar no papel. Também o equilíbrio entre vozes melódicas e acompanhamento harmônico
pode ser concebido de inúmeras formas. Há muitos parâmetros móveis em uma interpretação coerente:
quão forte é um fortíssimo? Qual a taxa de desaceleração de um rallentando? Quanto um instrumento ou
linha deve aparecer ou se esconder em cada ponto do tempo durante uma execução ao vivo ou gravação?
A música erudita de qualidade faz uma fascinante "mixagem" em tempo real, conduzida pelo
solista, partilhada por um grupo ou trabalhada por um regente. Quem toca ou canta sabe que, apesar da
partitura, não há duas apresentações iguais de uma peça.
Minando os preconceitos populares acabamos nos aproximando um pouco mais da essência da
música erudita. Nesse processo, porém, abandonamos a música popular em si e perdemos a chance de
compreender algo sobre a diferença entre as duas. Ainda temos como resgatar o que foi perdido?
Agora, tratemos de música popular sem preconceitos eruditos. Muitos aceitam como música
popular apenas a chamada música étnica. Isso, no entanto, esvazia o mundo da música popular de suas
próprias técnicas de composição e interpretação. Música popular não é folclore, não é música dos índios
brasileiros ou das tribos africanas. Da mesma forma que a música erudita, a música popular baseia-se em
diversos ambientes sonoros para constituir uma reflexão musical própria. Ao contrário da música étnica -
que não se configura em "obras" - a música popular é autoral e tem estilos específicos, que se manifestam
em gravações e apresentações ao vivo. Se a música erudita não é "européia" em sua essência, a música
popular também não é essencialmente "americana", nem "latina", nem "brasileira", nem "africana", nem
"inglesa", apesar da força de importantes movimentos nascidos e desenvolvidos nesses lugares.
Outra crítica que músicos eruditos podem fazer à música popular é a preconceituosa equiparação
entre "música popular" e "música de consumo". Em primeiro lugar, como vimos no artigo anterior, a
música erudita também é consumida. Há, inclusive, muitos produtos artísticos de baixa qualidade no
"mercado erudito". Em segundo lugar, cabe uma distinção entre a canção popular e a música instrumental
popular: a música instrumental popular derivada do jazz não se identifica com a música de consumo há
pelo menos cinco décadas, desde o bebop. O caso da canção popular, por seu turno, deve ser estudado
com cuidado: até o início dos anos 80, no Brasil, a composição de canções não esteve atrelada apenas ao
mundo do consumo imediato, mas foi um espaço privilegiado de manifestação artística. O existente não é
a medida do possível. Pode haver experimentalismo na canção: dizer que as relações estabelecidas entre
letra, melodia, harmonia e ritmo por autores como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Tom Jobim ou João
Bosco não sejam o produto de um grau sofisticado de elaboração, de um consistente artesanato, é, no
mínimo, uma irresponsabilidade. Analogamente, o mundo do pop e do rock também tem deixado pérolas
de significado artístico em meio ao mar do descartável. Basta saber procurá-las. Não sabemos se é por
ignorância ou má fé que muitos músicos eruditos afirmam que a música popular se resume apenas ao que
é veiculado por Gugu, Xuxa e Faustão.

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A essência da música popular não se confunde com algumas de suas manifestações exteriores.
Será que não podemos, também aqui, tentar definir a música popular a partir de características técnicas de
sua construção?
Curiosamente, quando tomamos o projeto da música popular instrumental de origem jazzística,
encontramos alguns aspectos complementares aos da música erudita. Assim como a escrita artesanal
marca a música erudita, a improvisação do intérprete é a característica mais marcante do jazz. Jazz, para
nós, aqui, não é um "estilo", mas uma tradição de desenvolvimento da linguagem popular instrumental.
Jazz não é um "fenômeno americano", mas uma maneira de pensar e realizar música. Jazz pode
incorporar a improvisação polifônica de New Orleans, a melodia acompanhada doswing, a especulação
harmônica do bebop, o impressionismo cool, o atonalismo free e as fusions pós-modernas. Jazz pode usar
ritmos latinos, brasileiros, orientais, africanos e europeus. Jazz pode usar o pop e o rock.
Jazz é, portanto, aqui, um processo que funda uma tradição de desenvolvimento da relação entre
tema e improviso. Essa relação é essencial para a música popular que se constitui como um caminho
autônomo para o músico de hoje.
Assim como variações eruditas escritas sobre um tema popular, os chorus de improvisação sobre
um standard podem buscar relações profundas com o tema, podem revelá-lo sob aspectos inesperados.
Ainda há, no entanto, um preconceito a ser desmontado: muitas vezes, o músico erudito não
consegue perceber as relações estruturais do improviso com o tema. O improviso é muitas vezes
entendido como uma espécie de virtuosismo vazio e inconsequente. Não é isso, no entanto, que ouvimos
nos bons improvisadores: independentemente do estilo, a boa improvisação traz relações, traz idéias. Há
uma estrutura na improvisação da música popular que complementa o improviso na escrita da música
erudita.
Muitas comparações podem advir dessa visão mais abrangente e processual de jazz e música
erudita: eu e o músico Sérgio Molina desenvolvemos, há alguns anos - apenas para citar um exemplo
entre vários possíveis -, um curso de história da música onde os períodos da música erudita eram
comparados passo a passo com os estilos do jazz. Esse curso transformou-se, posteriormente, numa série
de programas transmitidos pela Rádio Cultura FM ("A Escrita e o Swing: um concerto em jam session").
Outra conclusão que podemos extrair de nossa busca pela identidade da música popular e da
música erudita e pela diferença entre ambas é que os preconceitos são mútuos, tanto do popular ao erudito
quanto do erudito ao popular. Nesse caso - a exemplo dos diálogos socráticos - admitir não saber o que é
música erudita ou música popular é o primeiro passo para o amadurecimento da reflexão.
De qualquer modo, independentemente da especialidade de cada músico - nem todos nós seremos
Guldas, Jarretts, Coreas, Marsalis ou Gismontis - não podemos nos dar ao luxo de desprezar experiências
sonoras propostas por 50% das músicas de qualidade para sustentar preconceitos estúpidos: temos de
aprender a ouvir música erudita e música popular.
Com relacão à música étnica, é a música de raiz, feita pelo povo, normalmente com caráter de
ritual. Esse tipo de música mantém-se há séculos da mesma forma, refletindo as crenças e a vida dos
povos. Fazendo parte desse gênero, citamos a indígena, a de tribos africanas, a dos aborígenes
australianos, entre outras.
Esse gênero está praticamente em extinção, pois essas civilizações estão, pouco a pouco, sendo
dizimadas, e sua cultura, inclusive a musical, está sendo sufocada pela cultura dos povos que as dominam
e está sendo esquecida.
Muitas dessas músicas parecem-nos muito estranhas e engraçadas, justamente porque não estamos
acostumados a ouvi-las. Além disso, atualmente muitos teóricos e estudiosos consideram a música étnica
de certa forma inferior e mais simples do que a música erudita ou dos centros urbanos. Essas idéias são
muito questionáveis, pois a música étnica possui uma grande riqueza rítmica, que muitos músicos de
orquestra não conseguiriam acompanhar, além de características complexas de composição e execução.
Procuremos ouvir músicas de povos indígenas, africanos, asiáticos, que ainda vivem de forma mais
primitiva, e perceberemos a quantidade de técnicas vocais que esses povos executam, a quantidade de
timbres diferentes que criam por meio de instrumentos musicais feitos apenas com elementos da natureza,

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a organização de inúmeras pessoas tocando juntas, enfim, a complexidade desse gênero que reflete uma
forma de viver, que mostra uma relação direta com a natureza.

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