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Como a transformação do sistema monetário financeiro tem aprofundado os limites de

desenvolvimento das periferias em relação ao núcleo orgânico capitalista?

Resumo

Este trabalho propõe fazer uma revisão bibliográfica a respeito do desenvolvimento do


sistema monetário-financeiro internacional desde a revolução industrial até o estabelecimento
do regime do dólar de Wall Street, com o objetivo de estabelecer as bases para o
entendimento dos limites de desenvolvimento das periferias em relação ao núcleo orgânico
capitalista. Nesse sentido, pretende-se abordar as transformações do sistema financeiro
internacional ao percorrer o processo violento de acumulação primitiva da colonização,
exploração da mão de obra com maior intensidade desde a Revolução Industrial que adquire
outras características com as transformações da economia política internacional. Portanto, a
hipótese é de que o processo de acumulação do capitalismo suscita limites para o
desenvolvimento dos países periféricos, cujo impacto final é a mercantilização da vida, aqui
considerada o centro da noção de desenvolvimento.

Palavras-chave: Sistema Financeiro Internacional. Mercantilização. Desenvolvimento.


América Latina.

Introdução
As periferias do núcleo orgânico capitalista, são historicamente, marcadas por
limitações em relação ao seu desenvolvimento, aspecto que explica, de maneira estrutural, um
dos fatores da incapacidade dos sistemas de saúde, educação, previdência, segurança e
habitacionais de implantar políticas públicas de modo a gerar desenvolvimento e qualidade de
vida em níveis de excelência. Nesse sentido, este artigo pretende expor os limites de
desenvolvimento em quatro eixos para analisar a realidade da América Latina, são eles:
acumulação primitiva, o processo de industrialização, o poder monetário estrutural e o
processo de acumulação do capitalismo.

Limites de desenvolvimento: uma análise em quatro eixos.


Um primeiro aspecto que é central para entender os limites de desenvolvimento das periferias,
em especial da América Latina, é o processo de acumulação primitiva. A acumulação de
capital pressupõe a mais-valia, a mais-valia, a produção capitalista, que, por sua vez,
pressupõe a existência de grandes quantidades de capital e força de trabalho concentrada nas
mãos de produtores de mercadorias. A acumulação primitiva não decorre do modo de
produção de capitalista, ela é anterior e seu ponto de partida. O sistema capitalista pressupõe
também que exista uma dissociação entre trabalhadores e a propriedade dos meios de
produção, em que se realiza o trabalho. E o processo que cria essas condições, consiste
basicamente em retirar do trabalhador a propriedade dos seus meios de produção/trabalho,
convertendo os meios de subsistência em capital e os trabalhadores em assalariados, essa
dissociação é entendida por Marx como o processo de acumulação primitiva. É primitiva à
medida que se desenvolve historicamente antes do modo de produção capitalista (MARX,
2015).
Tanto nos centros como nas periferias, ocorreu um violento processo de expropriação
de terras e de trabalhadores dos seus meios de trabalho, é largamente explicitado na literatura
o fenômeno dos cercamentos e conversões de terras em áreas de pastagens estabelecido na
Inglaterra, em que as classes dominantes apoiadas pelas Igrejas subjugaram a população pobre
ao trabalho, ao êxodo e à marginalização (POLANYI, 2002). É deste modo que são
estabelecidas as bases para o processo da Revolução Industrial, já na América Latina,
sustentado pela colonização, as economias centrais, com atenção especial para a Inglaterra,
apropriaram-se de recursos minerais, matérias primas e insumos para a produção fabril.
Polanyi (2002) destaca este processo através da sua análise a respeito da mercantilização da
terra, do trabalho e do dinheiro, como mercadorias fictícias que são, implica na implantação
de uma economia de mercado em que é praticada a mercantilização do próprio tempo, de
formas abstratas, das relações sociais e da própria vida (à medida que se relaciona a ideia do
valor de uso de Marx, atribuindo a materialidade daquilo que produz a força de trabalho que é
o corpo humano).
Sendo mercadorias fictícias, se tratando de uma economia de mercado, que não é
natural à sociabilidade humana, como defendido por Polanyi (2002) ao explicitar que na
história da economia política os modos de produção sempre estiveram associados aos
princípios de reciprocidade e redistribuição, portanto, a violência e o controle sobre as
mercadorias fictícias se tornam cada vez mais profundas enquanto ocorre uma dinâmica de
flexibilização da mercantilização de mercadorias genuínas (bens de consumo e bens de
serviço produzidas pelo trabalho), processo que é nomeado como a “autorregulação
imperfeita”. A mercantilização da força de trabalho, sobretudo, levou ao assalariamento, à
expropriação da mais valia e a concentração tanto do controle da mercantilização, do lucro
que é obtido da mais valia, quanto dos meios de produção.
Um segundo fator extremamente relevante está relacionado à dinâmica de dependência
e ao processo de industrialização propriamente dito, dentre todas as transformações do
sistema monetário financeiro internacional, um problema que sempre acompanhou as
economias periféricas tem sido o problema da dívida pública. E talvez seja o principal motivo
pelo qual os países da região nunca tiveram condições de focar seus esforços na
industrialização, à medida que todos os gastos eram direcionados ao pagamento da dívida e
dos juros que ela gerou e gera até os dias de hoje (NAKATANI, 2006).
De acordo com Carcanholo (2004), existem três condicionantes histórico-estruturais
que explicitam a dependência da América Latina. A primeira está baseada pela baixa dos
preços dos produtos exportados pelas economias dependentes (produtos primários e com
baixo valor agregado) em relação ao preço dos produtos industriais ou com maior valor
agregado importados dos países centrais, no interior de um processo de perda nos termos de
troca que ocasiona a transferência de valor. A segunda se trata da remessa de excedentes que é
transacionada entre países dependentes e avançados, sob forma de juros, lucros, amortizações,
na medida em que os primeiros importarem capital dos últimos. Por fim, a terceira está
apoiada na instabilidade dos mercados financeiros internacionais, regularmente resultado em
altas taxas de juros para o empréstimo de crédito aos países dependentes periféricos, situação
que é responsável por expor as periferias a vulnerabilidade do ciclo de liquidez internacional.
Posto essas condicionantes, é possível distinguir três formas históricas de
dependência: a primeira fundada na dependência colonial, determinada pela exportação de
produtos primários e na qual o capital comercial e financeiro, associado aos estados
colonialistas, pratica a dominação sobre as relações entre a Europa e as colônias. A segunda
seria a dependência financeiro-industrial, determinada pela dominação do grande capital
centralizado por núcleos hegemônicos, cuja expansão se deu por meio de investimentos na
produção de matérias-primas e produtos agrícolas utilizados para seu próprio consumo e
expansão industrial; sendo assim, a produção, por ser dedicada à exportação, era determinada
com base nas demandas dos centros hegemônicos. A terceira é explicitada pela dependência
tecnológico-financeira, à medida que a presença e expansão de corporações multinacionais
que investem na indústria voltada para o mercado interno dos países subdesenvolvidos tem
aumentado, a possibilidade de estabelecer novos investimentos também passa a estar atrelada
a existência de recursos financeiros em moeda estrangeira para a compra de maquinário que
não é produzido pelo setor interno, de modo que tal compra é restringida pelos recursos
provenientes do setor exportador e por consequência, pelas imposições dos monopólios e
patentes que centralizam esses investimentos (CARCANHOLO, 2004)
Um terceiro aspecto que define os rumos de desenvolvimento da região advém das
contribuições teóricas de Susan Strange (1987) a respeito do Poder Monetário Estrutural, que
está relacionado ao poder que as economias do núcleo orgânico capitalista dispõem de
controlar tanto o poder de financiamento, as políticas macroeconômicas, a geração de crédito
e o endividamento das periferias. Uma ilustração desse argumento é o histórico da Inglaterra
durante o século 19, por ser a pioneira da Revolução Industrial e a responsável por influenciar
na intensificação da exploração da mão de obra na América Latina, concentrar os meios de
produção, como também por estabelecer inserção forçada da América Latina na Divisão
Internacional do Trabalho, se apresentava na época como a economia com maior poder de
financiamento do mundo e por concentrar o fluxo de comércio mundial, todos os países que
mantinham relações comerciais tinham interesse em adotar um padrão monetário que era
compartilhado por seus vizinhos comerciais e financeiros e por isso foi estabelecido padrão
ouro-libra (EICHENGREEN, 2000). Apesar de não haver consenso sobre o início do padrão-
ouro, De Cecco considera o ano de 1850, por outro lado, Eichengreen (2000) assume a data de
1870 como início do padrão ouro e já Serrano (2002) interpreta pelo ano de 1815”.
A primeira implicação do estabelecimento do regime ouro-libra se baseia na condição
de privilégio para a Inglaterra que nenhum outro país do mundo possuía, o qual era o de
financiar seus déficits em balança de pagamentos através da emissão de moeda. Em segundo
lugar, a materialização do banco central e a criação de ativos financeiros (máquina moderna
de moeda e crédito) fez com que a Inglaterra se tornasse o principal credor das economias
mundiais e esse fato tem repercussões para a América Latina, posto que acompanhado do
financiamento também vinham imposições políticas, controle sobre a economia e a elevação
do endividamento público (EICHENGREEN, 2000).
Nesse sentido, a Inglaterra desponta como hegemonia econômica durante a I
Revolução Industrial e patrocina ou se aproveita das lutas por independência colonial para
estabelecer relações econômicas dominantes com as ex-colônias. No entanto, a
implementação de infraestrutura, financiamentos, exportação de primários e importação de
manufaturados coloca a América Latina em dívida com a Inglaterra e em déficit comercial.
Mesmo quando esse déficit comercial se torna superávit, a desvalorização dos produtos
primários não permite a quitação das dívidas. Surge assim o problema da dívida externa na
AL, a Divisão Internacional do Trabalho e as relações de dependência propriamente ditas
(MARINI, 2017). De acordo com Marx (1986), a dívida pública surge com o nascimento do
modo de produção capitalista como ferramenta da acumulação primitiva e como recurso para
a acumulação de capital.
O quarto fator está relacionado ao processo de acumulação do capitalismo e das
transformações que ocorrem no sistema monetário financeiro internacional desde a primeira
guerra mundial: a bancarrota que a Inglaterra segue com a guerra e os altos custos que
acompanham o conflito criam uma brecha no sistema internacional para que os Estados
Unidos assumam o vácuo deixado pelo império britânico enquanto tentavam se recuperar
(SERRANO, 2002). A criação do FED em 1917 ilustra o início da alteração dessas estruturas.
Os Estados Unidos financiar se estabelecem como financiador das economias centrais a partir
desse período e começam a acumular reservas de ouro, no entre guerras, as potências
europeias que se veem em uma situação econômica de acúmulo de dívidas em razão do
conflito internacional, passam a adotar medidas protecionistas para controlar a economia,
nesse ponto os Estados Unidos já prestavam um papel bem mais relevante como financiadores
nas reparações pós guerra (BLOCK, 1978).
No ano de 1944, é estabelecido o Sistema de Bretton Woods, os países tinham como
preocupações formais a correção da desordem monetária, os instrumentos ociosos e a riqueza
mal empregada, ademais, as medidas protecionistas que os países utilizaram durante o entre
guerras eram interpretadas como um percalço para o crescimento econômico. Sendo assim,
promoviam o livre comércio, a estabilização macroeconômica e as reformas estruturais. Para
garantir o livre comércio com as economias periféricas, buscavam corrigir os problemas de
financiamento externo das economias com problemas de queda no volume de exportação,
déficits orçamentários, instabilidade monetária, assim é criado o FMI (destinado formalmente
a lidar com desequilíbrios de curto prazo da balança comercial) e o BIRD e o GATT
(GARLIPP, 2001)
Acompanhado do sistema de Bretton Woods também se inicia o padrão dólar-ouro, ao
passo que os Estados Unidos já haviam se consolidado como hegemonia, assumindo o lugar
que a Inglaterra ocupava anteriormente. As reservas de ouro dos Estados Unidos nesse
momento já eram equivalentes a dois terços do ouro do mundo, enquanto as reservas da
Inglaterra haviam se dissipado para liquidação dos déficits em balança de pagamento
(SERRANO, 2002).
A contextualização da formação da hegemonia estadunidense se faz necessária para o
entendimento das alterações impostas durante a década de 1970: como se observa, os Estados
Unidos desde 1917 assume o lugar que a Inglaterra ocupava durante o século dezenove e
começa a centralizar o poder monetário/ financeiro, processo que estabelece as bases para se
tornar também a hegemonia mundial do século. No entanto, durante a década de 1960, a
guerra fria e os altos custos para combater a ameaça comunista são responsáveis por gerar um
questionamento da sua hegemonia no cenário internacional, à medida que o país começa a
entrar em crise, suas reservas de ouro reduzem e apresentam déficits em balança de
pagamentos bastante expressivos (SERRANO, 2002).
O movimento de contestação vai ganhando intensidade, começa a se discutir o
“privilégio exorbitante”, se dão algumas proposições de implantação dos Direitos Especiais
de Saque, os quais eram emitidos pelo FMI e teriam conversibilidade em uma cesta de
moedas e a resposta dos Estados Unidos vem primeiro com a declaração da inconversibilidade
do dólar em 1971 e com o choque dos juros em 1979, estabelecido por Paul Volcker,
presidente do FED na época (EICHENGREEN, 2000).
É nesse momento que o sistema monetário financeiro internacional e o processo de
acumulação capitalista como um todo se alteram e isso gera implicações econômicas,
financeiras, políticas e sociais para o resto do mundo. Strange (1987) defende que a referência
da desordem no sistema financeiro internacional inicia em 1973: é o ponto de partida em que
começam a tomar forma algumas mudanças: uma efetiva desvalorização do dólar, a
determinação de taxas de câmbio flexível, também foi o ano em que acontece a subida do
preço do petróleo, acompanhado da dependência dos sistemas bancários para encontrar
financiamento para suprir os custos com o petróleo (STRANGE, 1987).
O padrão dólar flexível foi estabelecido com o desmonte do sistema de Bretton Woods
e causou uma desestabilização na economia mundial capitalista, a inconversibilidade e
flexibilização de taxas de câmbio dos países centrais provocaram movimentos de especulação,
posto que o contexto internacional era de crescimento da demanda efetiva e a da liquidez
internacional, que vem do crescimento dos EUA como também do circuito offshore do
eurodólar (SERRANO, 2002). O neoliberalismo, projeto político-econômico, toma contornos
com o estabelecimento do dólar flexível, é compreendido aqui como um refinamento de um
projeto de realizar um plano teórico de reorganização do capitalismo internacional ou como
um projeto político de restabelecimento das condições da acumulação de capital e de
restauração do poder das elites econômicas (HARVEY, 2008).
É também guiado pelo aprofundamento da economia de mercado, a qual se manifesta
através da desregulação dos mercados, aumento da mobilidade do capital produtivo,
prevalência da concorrência, flexibilização das relações de trabalho e nas restrições dos
direitos econômicos e sociais. Acompanhado dessas manifestações, a tendência atual à
“mundialização” vem acompanhada de um movimento de polarização, que põe fim a uma
tendência secular da integração e da convergência (CHESNAIS, 1994). Uma polarização que
se expressa internamente a cada país, na medida em que os seus efeitos são indissociáveis dos
que resultam do fosso aberto entre as rendas mais elevadas e as rendas mais baixas, em razão
da grande elevação dos rendimentos do capital dinheiro. Uma polarização que é também
internacional, por abrir um fosso brutal entre países situados no coração do núcleo orgânico
capitalista e os países periféricos (ARRIGHI, 1995).
A centralização e concentração do capital industrial aprofunda o fosso entre os países,
processo que foi impulsionado pelas exigências da concorrência e pela mobilização de fusões
e aquisições no sentido de reestruturar suas capacidades produtivas, cujo desenvolvimento era
favorecido por políticas liberalizantes, de desregulamentação e de privatização. Por esse
motivo que os oligopólios mundiais são uma característica marcante dos mercados globais
(CHESNAIS, 1995).
“No decorrer dos anos 80, aproximadamente 80% dos
investimentos diretos estrangeiros ocorreram entre países
capitalistas avançados, sendo que mais ou menos três quartos
das operações tinham por objeto a aquisição e a fusão de
empresas já existentes, ou seja, tratava-se de uma mudança de
propriedade do capital e não de uma criação de novos meios de
produção"(CHESNAIS, 1995)
De acordo com Garlipp (2001), o apagamento de normas e das fronteiras,
financeirização da riqueza, aprofundada pelos novos instrumentos financeiros e pela
desregulação de mercados em busca da expansão da riqueza abstrata, de uma tentativa do
capitalismo se desvencilhar do trabalho como valor de troca são imperativos dessa “economia
desregrada”. Sob as insígnias da ordem neoliberal, passam a ser defendidas a separação e a
elevação da esfera privada sobre a pública, sob o argumento de que através do
desenvolvimento da economia de livre mercado a humanidade poderia se reconciliar com a
natureza. Dessa maneira, a eficiência (privada) se torna um imperativo que deve ser cumprido
a todo custo, nos termos de uma lógica em que o indivíduo autocentrado é indiferente ao bem
comum.
Aqui se faz necessário estabelecer a diferença entre Neoliberalismo, termo definido
como conjunto de teorias e práticas econômicas e políticas que sustentam que o bem estar
humano pode ser alcançado através da maximização das liberdades empresariais dentro de um
contexto institucional em que há a proteção dos direitos de propriedade, liberdade individual e
dos mercados de livre comércio, se sustenta como um projeto geopolítico que administra o
movimento do modo de produção capitalista, o qual compreende a dimensão utópica: modelo
teórico que reorganiza e justifica o movimento do capital internacional; a dimensão política:
reestabelece as condições necessárias para a acumulação do capital como uma estratégia para
restaurar o poder de classe das elites econômicas depois da guerra fria; os processos que
acarretaram na financeirização de todos as esferas da vida, da redução do papel do Estado a
um mero instrumento que garante o direito à propriedade privada enquanto perde o papel de
assegurar direitos sociais básicos (DÍAZ, 2020).
Já o neoliberalismo é definido como projeto econômico e político que promove
determinadas formas de relações sociais, identidades e subjetividades nos sujeitos
contemporâneos, como também influencia a forma como os sujeitos se valorizam e enxergam
o mundo, sua forma de racionalizar. Somado a isso, o neoliberalismo conta com uma
poderosa matriz de mudanças e variabilidade sociolinguística a qual possui uma raiz da
economia, das finanças e do marketing que se apropriaram dos campos da educação a ponto
de colonizá-los (DÍAZ, 2020).
Posto estas especificidades que acompanham o regime do dólar de Wall Street,
voltamos às condicionantes do processo de desenvolvimento das economias periféricas, como
fator crucial está a mercantilização da mão de obra e a sua super exploração. Para melhor
entendimento sobre o aprofundamento da mercantilização do trabalho, é necessário
retornarmos ao conceito de mercadoria, o qual possui dois valores: valor de uso e valor de
troca que são a substância do valor e a grandeza do valor. O valor de uso vem da utilidade de
um objeto, mas a utilidade de qualquer coisa não vem do nada, sendo o próprio corpo da
mercadoria o seu valor. E o valor de uso apenas se efetiva quando é consumido. O valor de
troca é entendido como a relação na qual valores de uso de um tipo são trocados por valores
de uso de outro tipo (uma relação que se altera no espaço tempo). A propriedade do valor de
uso dos corpos das mercadorias está no trabalho (MARX, 2015).
Pelo valor de uso e valor de troca chega-se ao entendimento que dinheiro é a
abstração de tempo de trabalho, com a alteração da dinâmica das economias capitalistas, a
lógica “M-D-M” é substituída pela “D-M-D”, 1ou seja, busca pelo lucro, porque a moeda
assume o papel ( além de reserva de valor, meio de pagamento e unidade de conta) o de
portadora de juros. E a financeirização aprofunda essa dinâmica (destaque para alavancagem)
à medida que o fosso fica cada vez maior (SICSÚ, 2012).
Na distribuição simples de mercadorias, M-D-M, tem-se a transformação da
mercadoria em dinheiro e a retransformação do dinheiro em mercadoria: vender para comprar.
A lei do valor é posta de acordo com três regras: 1) o valor de uso é a própria finalidade do
movimento; 2) existe equivalência na troca; e 3) a apropriação se desenvolve através do
trabalho (MÜLLER, PAULANI, 2012). “O ciclo D-M-D, por sua vez, ao contrário, parte do
extremo do dinheiro e volta finalmente ao mesmo extremo. Seu motivo indutor, sua finalidade
determinante é, portanto, o próprio valor de troca” (MARX, 1983, p. 127).
“Com o capital portador de juros tem-se que qualquer soma de dinheiro, enquanto
capital in potentia, é capaz de conferir a seu proprietário um rendimento, rendimento este
que deriva simplesmente da propriedade. O juro, desse modo, se destaca como um atributo
inerente ao capital enquanto simples soma de valor, valor que se valoriza a si mesmo, no
qual a produção, mediação necessária, em última instância, do processo de valorização,
como destaca Marx (1894, p. 469), desaparece.”
Brevemente exposta esta base teórica sobre o valor do trabalho e a impossibilidade da
desvinculação da produção de riqueza gerada apenas pelo capital dinheiro, como é a tentativa
que se apresenta com a financeirização a partir da década de 1970, é possível compreender
que a mercantilização da força do trabalho não só gera em última medida a mercantilização da
própria vida (posto que é o corpo humano que gera a força de trabalho que é tornada
mercadoria), como também a tentativa de desvinculação do trabalho em última instância é
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A lógica M-D-M se trata da formação da economia, em que a mercadoria é transformada em dinheiro para
gerar poder de compra e assim adquirir outras mercadorias que os indivíduos necessitam e não produzem. A
alteração dessa dinâmica para o fluxo D-M-D explicita o fenômeno em que a lógica da economia se baseia no
dinheiro como o ponto inicial e final, tanto por ser um componente que é portador de juros e, portanto, gera
valor, como também pela substituição da esfera produtiva pela financeira.
Utilizar a definição de Rossi “Na medida em que se consolida a capacidade do dinheiro de se converter
em capital e, portanto, aprofundam-se as próprias relações capitalistas, o dinheiro torna-se uma
mercadoria, a mercadoria-capital, e dá forma àquilo que Marx (1894) denomina capital portador de
juros: dinheiro que, pela capacidade de funcionar como capital – e, por conseguinte, no contexto de
sua análise, explorar a força de trabalho –, confere ao seu proprietário um rendimento, o juro, que, em
última instância, corresponde a uma fração da mais-valia. Ao contrário das demais mercadorias, a
mercadoria-capital é socialmente considerada capaz de conferir ao seu detentor uma remuneração,
sob a forma de juro, independentemente das formas intermediárias que o valor originalmente lançado
assuma antes de retornar ao seu proprietário como valor acrescido. Nesse sentido é que seu
movimento pôde ser sintetizado por Marx (1894, p. 461) na fórmula D-D’, isto é, dinheiro (D) que,
cedido como capital, gera mais dinheiro (D’ = D + ∆D).”
sustentada pela própria superexploração deste, pela descarga dos custos nas periferias gerados
pelas crises de sobreacumulação de capital, pela precarização das condições de vida quando
os movimentos de capital em busca de lucro extraordinário recorrem a “mercados” como o de
recursos hídricos, sistemas de pensões, educacionais e de saúde (FURNO, 2022).
Por fim, as alterações estruturais no sistema monetário financeiro internacional
instauradas desde a década de 1970 ainda imprimem mais quatro fatores que influenciam no
desenvolvimento das periferias: a violência para implementação dos regimes políticos
(tomemos ditadura chilena de Pinochet como exemplo), concentração de renda que gera
desigualdade social, o desmonte do papel do Estado como garantidor de direitos básicos e a
promoção da lógica individualista que impossibilita a unificação de classes e os
contramovimentos (MONEDERO, 2012).

Considerações Finais

A mercantilização da vida se dá pelo fato de que a transformação do trabalho em


mercadoria significa, em última instância, que o corpo do trabalhador, o qual gera a força de
trabalho, ter se tornado a própria mercadoria, assim como diversas outras formas de
mercadorias fictícias (os recursos hídricos, a educação, a cultura, os territórios) (POLANYI,
2002). Cada vez mais, o capital vai em busca de “mercados” concorrenciais, que por sinal, são
em sua maioria aqueles de mercadorias fictícias para auferir maiores taxas de lucro (FURNO,
2022). A contradição mais expressiva é que mesmo a mercantilização e a superexploração do
trabalho e da vida sendo o fio condutor que sustenta os processos de acumulação do capital, o
capitalismo em seu movimento de autonomização, ainda busca isolar o componente humano
(D-D’) da equação orientado pela lógica do lucro (MÜLLER, PAULANI, 2012).

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