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LAERTE RAMOS DE CARVALHO

AS REFORMAS
POMBALINAS DA
INSTRUÇÃO PÚBLICA

-
1978

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


SARAIVA S/A - LIVREIROS EDITOR~
UNICAMP ,,
R r () T r:f A r n
I ... .... . .
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP

Carvalho, Laerte Ramos de, 1922-1972.


'::325r As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo,
Saraiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1978.

1. Educação e Estado - Portugal 2. Educação - Por-


tugal - História 3. Pombal, Sebastião José de Carvalho e
Melo, Marquês de, 1699-1782 4. Reforma do ensino - Por-
tugal I. Título.
,
Indice
CDD-370 .9469
77-1534 -379.469
Prefácio 1
índices para catálogo sistemático:
Prólogo ........................................... 11
1. Portugal : Educação : História 370.9469 Capítulo I - lluminismo e Pombalismo .............. . 25
2. Portugal : Instrução pública : Reformas pombalinas Capítulo II - A Reforma dos Estudos Menores e a Defesa
379.469 do Regalismo ...................... ,.. . 59
3. Reformas pombalinas : Instrução pública : Portugal
379.469
Capítulo III - O Desenvolvimento da Reforma dos Estudos
Menores ..................... : . ..... . 99
Capítulo IV - As Diretrizes da Reforma Universitária de
Assessoria editorial: João Gualberto de Carvalho Meneses, da Faculdade de 1772 ............................... . 141
Educação da Universidade de São Paulo.
Capa e diagramação: Francisco Gualbernei A. de Andrade. Conclusão 189.
Produção gráfica: Arlindo André Batista Meira. Apêndice 193
Bibliografia 231
2700

IV A S.A. - Livreiros Editores


.,
1
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VII
-· Prefácio
No conjunto das manifestações espirituais do século XVIII
português, as reformas pombalinas da instrução pública ocupam
lugar de excepcional significação. Críticos e historiadores têm insis-
tido na contribuição dada por algumas das mais expressivas figuras
intelectuais do tempo às sucessivas e progressivas reformas pelas quais
o Marquês de Pombal, no seu consulado, tentou substituir os tra-
dicionais m'étodos pedagógicos por outros mais condizentes com os
ideais da época. Já Camilo falava, no Pe1jil do Marquês de Pom-
bal1, dos oráculos que guiaram Sebastião de Carvalho e Melo na es-
colha dos meios e dos fins de sua ação econômica, política, educacio-
nal e religiosa. Depois disto, outros estudos apareceram e a lista des-
tes arautos foi aumentando. Ao lado de D. Luiz da Cunha, Luiz
Antonio Verney, Antonio Ribeiro Sanches, cresceram outras figuras
que, direta ou indiretamente, influíram nos sucessos das reformas
pombalinas - Seabra da Silva, o Bispo Cenáculo Villas Boas, João
Pereira Ramos de Azeredo Coutinho, o Cardeal da Cunha, Sachetti
Barbosa, Antonio Pereira de Figueiredo, Tomaz Lemos de Azeredo
Coutinho e muitos outros mais. A simples reunião de homens que,
embora: diversos em suas preocupações intelectuais, se encontram ir-
1') manadas num único propósito político, por si só demonstra a com-
plexa fisionomia do período pombalino.
A historiografia portuguesa do século passado - e em certo
sentido isto se aplica aos autores contemporâneos que continuaram
esta tradição - tem procurado encontrar, nos fatos referentes à

1. Camilo Castelo Branco, Perfil do Marquês de Pombal, 2.a ed., Porto,


Lopes & Cia., 1900, Cap. "Oráculo do Marquês, de Pombal", págs. 89 a 108.

\ 1
época pombalina, o exemplo edificante para uns, ruinoso para outros, Esta questão parece-nos de interesse fundamental. As reformas
de uma política que a experiência histórica dos tempos recentes, nas da instrução pública encerram, mais do que um plano pedagógico,
suas contradições doutrinárias, parecia justificar. Para estes histo- uma filosofia política, em função da qual se definem, em seus traços
riadores, Pombal é ponto de partida e razão de ser de todos os mais característicos, a fisionomia do período histórico de que são
acontecimentos do reinado de D. José I. Afirma com muita razão expressiva manifestação. Pretenderam alguns historiadores ver na
Jorge Macedo: "Em numerosos trabalhos sobre o período a ativi- época de Pombal um esforço de renovação cultural e política, situado
dade de Sebastião José de Carvalho e Melo na história de Portugal historicamente entre um período de obscurantismo beato, que o an-
lembra-nos - com critério de crítica histórica - o primeiro motor tecedeu, e de reação policial, que se lhe seguiu. A administração
aristotélico: durante vinte e sete anos Pombal é causa de tudo o que pombalina seria, desta forma, um intervalo iluminado da história por-
sucedeu em Portugal - o bem ou mal conforme as simpatias" 2 • tuguesa, eqüidistante tanto da tradição beata imperante nos tempos
Ora, não nos parece que a história das reformas pombalinas possa de D. João V, como do progresso policiado que se iniciou com
compreender-se por intermédio de um critério tão estreito. Nelas D. Maria I e se manteve, cada vez mais feroz, até que a idéia liberal
colaboraram homens desiguais na mentalidade: ao lado de um até encontrou o terreno propício para a sua fecundação. Pombal expri-
então obscuro opositor da Universidade de Coimbra, o brasileiro miu, desta forma, a "reação contra o Portugal braganção, jesuíta
João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho, o Bispo Manuel Cenáculo e inglês ... ", na expressão de Oliveira Martins, reação que se per-
Villas Boas; ao lado do médico judeu, o estrangeiro Ribeiro Sanches, deu, logo depois, carente de uma vontade firme, na "anarquia espon-
os oratorianos da Real Casa de Nossa Senhora das Necessidades tânea" que se inicia com o reinado de D. Maria J3. Não é de
de Lisboa, ao lado de Seabra da Silva, com sua manhosa indiscrição, estranhar, portanto, que os historiadores tenham caracterizado o
o leal Bispo reformador da Universidade. As reformas pombalinas
foram, desta forma,· muito mais um denominador coinum de opiniões
Comp. Ed. Nacional, 1940. Aliás, no prefácio de Afrânio Peixoto a esta
do que a expressão de uma vontade única que se impusesse, de cima obra encontra-se o ponto de partida de uma compreensão das ações do Mar-
para baixo, intJ;ansigentemente, feita e acabada. Este fato, por si quês de Pombal, por intermédio das condições econômicas da colônia brasi-
só, testemunha o excepcional significado das reformas pombalinas da leira, e até mesmo, num sentido mais geral, dos fenômenos político-sociais
instrução pública. No conjunto das manifestações espirituais do despersonalizados como até então não se verificava na investigação histórica
do período em questão. Neste prefácio, escreveu Afrânio Peixoto: ... "Em
século XVIII português, os alvarás régios que instituíram as aulas França, Inglaterra, Rússia, Áustria, Toscana, Prússia, Nápoles, Espanha... é
de gramática grega, latina, hebraica e de retórica, o Compêndio o mesmo. Mas em Portugal, não deve ser. . . Como não querem ofender ao
Histórico, os Estatutos do Colégio dos Nobres e da Universidade de princípio monárquico, divino, hereditário do rei, o culpado de tudo é apenas
Coimbra, a regulamentação das aulas de comércio e das aulas do o ministro. . . O rei nem sequer tem a culpa do ministro que escolheu e
mantém. Daí Pombal bode-emissário. Como reação a esta reação, os libe-
Porto representam um esforço de integração de vontades e opiniões, rais, que endeusam o ministro e, daí, o divino Pombal dos outros, a quem
que traduz, na forma e nos fins de sua manifestação, um programa erguem um monumento, mais alto do que o que ele erguera ao rei. . . É
pedagógico sem o qual não seria possível a justa compreensão do assim que, uns e outros, vêm escrevendo a história, vêm há século e meio ...
sentido da cultura portuguesa no período que pretendemos analisar. Duas falsidades opostas ...
Somente em função da filosofia que animou estas reformas é que "Foi ao que chamei Pombal 'causa' (Revista do Brasil, Rio, agosto/1939,
n. 0 14, págs. 1-6): ninguém quer ver o tempo, nem os vizinhos, que, ignorân-
ganha melhor significado a posição dos rebeldes, velados ou ostensi- cia ou candura, esquecem ou suprimem. Não creio na má fé que, ao menos
vos, os desterrados, os incompreendidos e os "estrangeirados". na insinceridade, é inteligente. É que acreditamos: tudo o que se passa conos-
co é privativo. . . Ainda agora escrevemos história, omitindo o resto do mundo.
A do Brasil é daqui só, de 1500 a 1940, intramuros, até sem os portugueses ...
2. Jorge Macedo, A Situação Econômica no Tempo de Pombal, Alguns A de Portugal independe da Europa, e do tempo, que, entretanto, obriga a
Aspectos, Porto, Liv. Portugália, 1951, pág, 25. toda a gente. . . menos a nós ... " Cf. ob. cit., prefácio, págs. 3f 4.
O autor seguiu as sugestões da obra de Antonio de Souza Pedroso Carna- 3. Oliveira: Martins, História de Portugal, 11.a ed., 2 ts., Lisboa, Antonio
xide, O Brasil na Administração Pombalina (Economia e Política Extema). Maria Pereira Liv. Ed., 1927, 2. 0 vol. Ver Livs. VI e VII, págs. 85 a 234.

2 3
período pombalino como uma crise, política e cultural, na qual se- do trabalho do Sr. Caetano Beirão- D. Maria I - não é possível
culares instituições são abaladas em seus fundamentos pela ação de- mais encarar o período 1777-1792 como um simples episódio de
cisiva de um ministro despótico. reação antipombalina submetido aos caprichos temerosos do inten-
dente Pina Manique 6 •
Teófilo Braga, com o seu republicanismo positivista, foi pro-
vavelmente quem melhor compreendeu os sintomas desta crise. Não pretendemos entrar no mérito de uma questão que nos
Amparado na concepção histórica de Augusto Comte e tendo, por desviaria dos propósitos desta tese. O passado é para o historiador
isso mesmo, uma idéia sui generis do século XVIII, o historiador um espelho por intermédio do qual, consciente ou inconscientemen-
da Universidade de Coimbra viu, nas reformas pombalinas, uma te, ele vê a realidade contemporânea, projetada, num plano de obje-
reação ao obscurantismo e à decadência em que estavam os estu- tividade intencional (quando é o caso), no écran dos episódios pre-
dos sob a direção dos mestres da Companhia de Jesus, reação es- téritos. Não é possível, em historiografia, dissociar o historiador da
ta que não se perpetuou por força das próprias contradições ideo- concepção que ele próprio criou, pois seria a mesma coisa que re-
lógicas latentes do "pombalismo" e das vicissitudes políticas do tirar de uma interpretação essencialmente humana - mas não sub-
último quartel do século XVIII. Depois de Teófilo Braga, gene- jetiva, no sentido lógico e psicológico da expressão - o que de
ralizou-se o emprego da palavra crise 4, sem que os historiadores humano que, nela residindo, a dignifica. Sobre Pombal e o seu
que assim procederam tivessem examinado, preliminarmente, até que governo, e já nisto vai um abuso de expressão, os historiadores,
ponto o conceito do erudito positivista continuava a adequar-se aos desde os contemporâneos até agora, com algumas raríssimas exce-
novos fatos revelados pelo progresso da historiografia. De nossa ções, não fizeram outra coisa senão colocar-se, em termos antinô-
parte acreditamos ser totalmente insubsistente falar-se de crise no micos, diante de manifestações a favor e contra a discutida persona-
sentido peculiar de Teófilo Braga, sentido aliás perfeitamente com- lidade. Infelizmente a apreciação histórica, elaborada em função
preensível dentro da concepção histórica portuguesa pós-romântica. de dados não acessíveis ao maior número de investigadores, se trans-
Parece-nos, todavia, que o progresso das investigações históricas nes- formou numa batalha de erudição na qual as peças fundamentais da
política pombalina - a DedUção Cronológica, o Compêndio Histó-
tes ~ltimos anos se não corrige o erro do coeficiente pessoal que
rico e os alvarás régios - foram, a pouco e pouco, desmerecendo-se
Teófilo Braga, com o seu positivismo, introduziu na apreciação do
como documentos de parcialidades intencionais em nome de hipó-
século XVIII português, impõe, pelo menos, uma revisão das premis- teses que os dados históricos pósitivos não podem de maneira alguma
sas e dos dados gerais do problema. Muitas das reformas. do período
confirmar. Não podem confirmar porque o pombalismo é uma con-
pombalino tiveram os seus antecedentes históricos e culturais como cepção política e cultural da história portuguesa, que deve ser com-
está sobejamente demonstrado ú, no reinado de D. João V. E' depois preendida não apenas em função dos fatos "exteriores" dos quais
ela é o pensamento orientador básico, mas também, e sobretudo, na
4. A Crise Política e Pedag6gica do Século XVIII é o título que Te6filo intenção, no sentido crítico e finalístico, que animou os seus pro-
Braga dá, no t. III de sua Hist6ria da Univei·sidade de Coimbra à análise pósitos.
dos acontecimentos precursores das reformas pombalinas. Este ter~o - crise
- foi o mesmo de que se serviu Hernani Cidade, em 1929, no seu Ensaio
A história deve ser compreendida, no sentido diltheynista da
sobre a Crise Mental no Século XVIII, Coimbra, Imp. da Universidade. O expressão. Se através dos frios e objetivos dados históricos não
trabalho foi posteriormente incorporado às Lições de Cultura e Literatura Por-
tuguesas. Monumental de Damião Peres, vol. VI, Cap. IX, de autoria do Prof. .Ângelo
5. Depois dos trabalhos de Pinheiros Chagas Latino Coelho e Oliveira Ribeiro, págs. 179 a 193, e Hernani Cidade, Lições de Cultura e Literatura
Martins, para mencionar apenas alguns dentre os 'muitos que foram escritos Portuguesas, 2. 0 vol., Cap. 2. 0 , págs. 17 e segs. Ver também, completando
sobre os acontecimentos do reinado de D. João V, é possível hoje corrigir os esta análise geral, no domínio da investigação filosófica, A. A. Andrade, Ver-
exces~os de interpretação em que caíram os historiadores, principalmente os nâ e a Filosofia Portuguesa, especialmente Cap. X, págs. 207 a 229.
do seculo passado, por intermédio de uma visão que o conhecimento mais 6. Caetano Beirão, D. Maria I, 1777-1792, 4.a ed., Lisboa, Empresa
amplo dos documentos do tempo nos autorizam. Cf. nesse sentido a Hist6ria Nacional de Publicidade, 1944.

4 \ 5
descobrimos o "espírito" que animou estes eventos, a história - tudos Menores. Do Colégio dos Nobres e das reformas universitá-
a mais nobre e elevada concepção que até agora foi capaz de rea- rias de 1772, trata o mesmo Teófilo Braga, na obra citada, seja
lizar a inteligência humana - se reduziria a uma casuística erudi- de modo geral, seja pormenorizadamente, com documentação que,
ta, com todos os seus apetrechos crítico-filológicos e mais as mi- em grande parte, nos dispensa da análise dos episódios diretamen-
P.udências metodológicas, que nos daria da viva realidade passada te relacionados com o assunto que examinaremos no presente tra-
o esquema causal, desnervado e morto, das interpretações objeti- balho. Parece-nos que a documentação em que se apoiaram Teó-
vas. '"'No Marquês de Pombal a historiografia portuguesa encon- filo Braga e Antonio Ferrão, sobre os acontecimentos do período
trou o espelho fiel dos problemas de Portugal contemporâneo. As pombalino, é suficiente para permitir-nos uma interpretação de
paixões e os ódios, diante da figura de Sebastião de Carvalho e Me- caráter filosófico-cultural, única que, a nosso ver poderia corres-
lo, são de tal ordem que nem sempre permitem uma inteligência ponder aos interesses e fins deste trabalho. No que se refere à
"compreensiva" dos fatos que a ela se relacionam. Por isso, no reforma da Universidade de Coimbra, depois dos papéis vistos e
caso em apreço, a objetividade histórica mal disfarça intenções sec- analisados pelo paciente historiador positivista, teríamos a acres-
tárias nocivas ao progresso da historiografia. centar os documentos reunidos e publicados pelo Prof. M. Lo-
pes D'Almeida, diretor da Biblioteca da tradicional Universidade
Não pretendemos procurar na história do "consulado" pom- portuguesa 7. Nesta biblioteca tivemos a ventura de encontr~r o~
balino o exemplo de que carecemos e nem desfazer, por intermé- papéis referentes à administração dos estudos menores, portenor a
dio de uma erudição minudente, as razões que a investigação, a radical Reforma de 1759. Estes documentos, sem dúvida, serão
posteriori, buscou para demonstrar a falsidade ou as lacunas dos completados futuramente por outros que diretamente a eles se rela-
motivos alegados, como razão de Governo, por Pombal e seu gru- cionam, documentos todavia, dos quais não encontramos nenhum
po político. Nosso objetivo é compreender Pombal e seus homens vestígio de sua existência, quer seja nos livros publicados sobre o
na ação comum que empreenderam, com as razões que invocaram, assunto, quer seja nos arquivos portugueses que, num reduzido perío-
como justificação de seus planos e atos. Não nos parace que um do, freqüentamos. De qualquer forma, entretanto, os manuscritos
esforço desta natureza se tenhà realizado. No que se refere à época que tivemos a oportunidade de conhecer e as edições raras, algumas
de Pombal, as paixões são tantas que a própria objetividade histó- delas, consultadas graças à amabilidade do Reitor da Universidade
rica, que é um ideal de toda pesquisa legítima, se transformou num de Coimbra, do Prof. Joaquim de Carvalho, do Prof. Rodrigues
critério e instrumento de parcialidades políticas e confessionais de Lapa, do escritor Antonio Sérgio e do Prof. Lopes D'Almeida, nos
diversas ordens. Não pretendemos aqui dar um balanço geral de autorizam a dispensar o tratamento das questões meramente episó-
todos os acontecimentos referentes à ação do Marquês de Pombal. dicas por que se manifestaram historicamente as preocupações filo-
Importa-nos, somente, o exame dos problemas relativos às reformas sófico-culturais dos homens responsáveis pelo planejamento e exe-
educacionais e, na medida do possível, de acordo com o plano geral cução das reformas pedagógicas do período pombalino.
deste trabalho, indicar as conexões que estas reformas têm com os
problemas da cultura portuguesa no século XVIII. Este trabalho constitui, sobretudo, um esforço de interpretação.
A história da educação não pode ser um simples relato de aconte-
cimentos, desprovido de quaisquer cuidados metodológicos que visam
* a captar o nexo e a recíproca implicação dos fatos históricos de
* * um período determinado. A educação, nas formas históricas por
A história dos acontecimentos referentes às reformas pomba-
linas já foi feita em grande parte. Das modificações introduzidas 7. M. Lopes D'Almeida, Documentos da Reforma Pombalina, Coimbra,
nos estudos menores já se ocuparem Teófilo Braga, na História Universitatis Conimbrigensis Studia ac Regesta, 1937, 1.0 vol. (1771-1782). ~s
da Universidade de Coimbra, e Antonio Ferrão, em trabalho publi- provas do segundo volume desta obra, ainda não publicada, foram-nos gentil-
cado em 1915 sobre O Marquês de Pombal e (lS Reformas dos Es- mente cedidas pelo Prof. Lopes D'Aimeida,

6 7
que se manifestou, antes de ser a conseqüência de uma condição real, Medicina, de Ribeiro Sanches, ao diretor do Arquivo da Universi-
foi, e será sempre, a concretização de um ideal que, consciente ou dade de Coimbra, Prof. Mário Brandão, aos diretores do Arquivo
inconscientemente, animou o programa, o método e os hábitos dos Nacional da Torre do Tombo, do Arquivo Histórico Ultramarino e
homens e das instituições escolares. Procurar fazer a história da da Biblioteca Nacional de Lisboa, que nos facilitaram a reprodução
educação sem buscar o sentido íntimo, a filosofia, que animou os fotográfica dos documentos, aos Profs. José Aderaldo Ca~telo, Anto-
propósitos dos reformadores, é tentar construir um castelo sobre mo- nio Cândido, Lívio Teixeira, Florestan Fernandes, Lounval Gomes
vediços alicerces. Este trabalho é uma tentativa de compreensão dos Machado, Lineu Schutzer, José Querino Ribeiro, Alfredo Ellis J:. e
ideais pedagógicos de uma nação irmã, os quais estiveram presentes ao bibliotecário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Aquiles
na própria estruturação do ensino superior brasileiro. Estes ideais Raspantini, pelos livros que nos cederam. ,!"inalm~nte, ao~ meus
não podemos ser compreendidos senão através das características ma- amigos Tristão Fonseca Filho, Eduardo Regos Sa de Mrran~a,
nifestações do iluminismo português e do absolutismo doutrinário Moysés Brejon, Américo Marques Bronze e Roque Spencer Maciel
que, na órbita do pensamento político, lhe serviu de fundamento. de Barros pelo interesse e trabalho que tiveram, tanto na prepara-
ção quanto na realização deste estudo, o agradecimento do A. Que
Analisaremos, com o pensamento voltado para as preocupa-
a experiência destes meses de trabalho em comum de um professor
ções pedagógicas do iluminismo português, nos diversos capítulos
com seus ex-discípulos possa reforçar e elevar, acima das contingên-
desta obra, sucessivamente as seguintes questões: Iluminismo e
cias humanas, a fraternal camaradagem que os uniu.
Pombalismo, A Reforma dos Estudos Menores e a Defesa do Re-
galismo. O Desenvolvimento da Reforma dos Estudos Menores e
As Diretrizes da Reforma Universitária de 1772. Se neste traba-
lho conseguirmos sugerir que a história dos fatos educacionais está
intimamente ligada às manifestações da vida social e aos elevados
fins da cultura, teremos, com as lacunas próprias de nosso entendi-
mento, justificado o programa de nossa vida intelectual como assis-
tente do Prof. Roldão Lopes de Barros, que tanto nos animou com
a sua confiança. Esta concepção se fundamenta nas preocupações
constantes e na e:x:periência de nossa vida intelectual. Possa este
trabalho contribuir para que os nossos propósitos sejam justificados:
isto será o prêmio e o estímulo de nossos esforços.
Sejam de agradecimento as últimas palavras. Ao Prof. Dr.
Eurípedes Simões de Paula, diretor da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, ao Dr. Júlio de Mesquita Filho, ao Prof. João
Cruz Costa, da Cadeira de Filosofia, da'Faculdade de Filosofia, Ciên-
cias e Letras, ao Prof. Joaquim de Carvalho, da Universidade de
Coimbra, pelo estímulo, conselhos e sugestões que deles recebeu o A.
Agradecimentos estes que estendemos ainda ao Dr. Paulo Duarte,
ao Prof. Rodrigues Lapa, aos escritores Antonio Sérgio e Adriano
Gusmão, ao Prof. Urbano Canuto Soares, ao Prof. Lopes D'Almei-
da, cujas atenções e gentilezas tanto contribuíram para a realização
deste trabalho, ao Reitor da Universidade de Coimbra, Dr. Maxi-
mino Co:rr~a que n.ol' pertnitiu a leitura do Método para Estudar a

8 9
Prólogo
A valia de uma obra de História pode ser atestada de diferentes
modos, entre os quais o grau de vigência de suas conclusões: será
esta, acaso, uma trivial aplicação da sentença evangélica - cada
árvore se conhece pelo próprio fruto.
Com isto se pretende dizer que o modo de um livro sobreviver,
de resistir à inexorável usura do tempo, depende dessa sua capaci-
dade de resposta ao questionário a que fica constantemente subme-
tido, resultante das revisões exigidas pelos novos avanços da meto-
dologia e teorias historiográficas. ·
Vem o comento a propósito da presente reedição de As Refor-
mas Pombalinas da Instrução Pública, de Laerte Ramos de Carva-
lho: transcorridos vinte e cinco anos sobre o momento em que o
livro apareceu, vale a pena refletir sobre o itinerário por ele per-
corrido.
Para além do registro em jeito comemorativo da efeméride, um
quarto de século permite já, pelo recuo suficiente no tempo, abarcar
uma perspectiva mais ampla, de modo a separar a obra do seu con-
texto histórico-cultural e verificar se resistiu.
Mas, se oremos possível, desde já, uma primeira avaliação do
significado de As Reformas Pombalinas, não dispomos ainda de con-
dições para assegurar a validade da posição do seu Autor. :É ainda
cedo, a nosso ver, para uma visão objetiva e abrangente do papel
que Laerte Ramos de Carvalho - o pedagogo singular, o pensador
fecundo, o filósofo sempre vigilante na inquieta demanda dos cami-
nhos do Saber, senão dos fundamentos da Realidade - efetivamente
'\ "· exerceu, no seu tempo. Certo é, porém, que se constituiu como
pessoa e exerceu um magistério eficaz. Isso podemos dizer.

11
Viemos ainda encontrar - quando, chegados em 1975 ao
Daí resulta a moderna tendência - ou pré-conceito seletivo -
Brasil, iniciamos a atividade docente na Universidade de São Paulo
em valorizar os períodos a partir do Império e da República. Linha
- a reverberação da presença viva desse grande professor, desapa-
de orientação, em si, pertinente - quando ela se não haja de esta-
recido três anos antes. Pressentimos sua forte personalidade, ao
belecer em detrimento ou menoscabo do estudo dum passado mais
prosseguirmos na esteira de projetos de pesquisa e de iniciativas es-
longínquo, ignorando-se as raízes que estão envolvidas na época a
colares que o mesmo animara, visível ainda na marca indelével por
que se convencionou chamar Brasil~Colônia. A vasta rede de rela-
ele deixada em muitos dos antigos discípulos, e até nos reflexos per-
ções de natureza econômica, social, política e cultural que entretanto
sistentes em nossos colegas, como se fosse, porventura, um eco do
se define entre o reino de Portugal e o país "já-nação" do Brasil,
seu convívio fecundo, por onde se adivinhava aquela profunda capa-
entre luso-europeus e luso-americanos, forma um tecido tipicamente
cidade de compreensão e de simpatia humanas, natural irradiação da
cerzido, com um traçado original de formas de vida, padrões de sen-
altitude moral e intelectual de que fora dotado.
sibilidade, interesses e motivações específicas, de alternativas pró-
Será indispensável proceder, um dia, ao balanço da obra de prias, para cuja compreensão as correntias explicações monolíticas,
Ramos de Carvalho à luz de uma história da Inteligência brasileira; do tipo rudimentar "reino-colônia", se tornam não só insuficientes,
temos bem presente a sua posição cimeira como teorizador da idéia como passam ao lado do essencial. Explicações essas a que certa
de Universidade, o papel de evidente relevância histórica que lhe historiografia - não toda, entenda-se. . . - numa posição contrária
coube no incremento funcional do Ensino Superior em São Paulo. à sua própria ontologia, deu franco acolhimento. Esqueceu a neces-
Mas por estrito respeito à memória daquele e pela consciência de sária cautela crítica exigida pelo prévio exame dos fundamentos ou
nossos limites, eximir-nos-emas a tal tarefa, mais indicada para quem supostos teóricos e pela análise da importância específica da expe-
tenha acompanhado, de modo assíduo e direto, no quadro da vida riência brasílica, já aqui definida. Mais uma vez se verifica a apli-
pública e intelectual do seu tempo, essa figura maior de scholar, em cação inconseqüente de esquemas padronizados e oriundos do exte-
suas numerosas atuações literárias e pedagógicas. rior, dispensando o esforço para a compreensão mais funda das
Voltando à apreciação da monografia em causa, ela se nos apre- diversidades conjunturais, verdadeiramente criadoras. Seria mesmo
senta hoje como uma das peças fundamentais para a compreensão elucidativo - para demonstrar o grau de dependência de algumas
mais profunda da história intelectual do povo brasileiro. Impõe-se, das construções sobre História do Brasil pretensamente independen-
seja a partir de agora submetida a nova leitura teórica, à luz dos tistas - estabelecer a genealogia dessas idéias, aproximando-as dos
princípios metodológicos reitores de uma História da Educação e de modelos que, de modo expresso ou implícito, lhes serviram afinal,
uma Filosofia da Cultura. mais do que de inspiração, de guia cegamente obedecido!
O Prof. Laerte Ramos de Carvalho em mais de um sentido foi A observação deste quadro permite salientar, na devida pers-
precursor, quando no estudo em apreço rasgou rumos pioneiros para !Pectiva histórico-cultural, o interesse redivivo para o nosso tempo, o
a pesquisa histórico-pedagógica, ao antever, com lúcido discernimen- singular valor paradigmático - como estímulo de novas pesquisas
to, a rede complexa das inter-relações estabelecidas no século XVIII - da obra de Ramos de Carvalho.
entre os povos de fala portuguesa das duas margens do Atlântico.
<f'
Foi essa sua poderosa capacidade compreensiva que permitiu
Na verdade, um leitor estrangeiro pode colher a impressão, a I ao Autor perscrutar melhor os eventos da Educação setecentista
avaliar por estudos que, ao sabor das opiniões fáceis e comuns, à brasileira.
História da Cultura brasileira se referem, que o Brasil permaneceu
Chegou assim à diferenciação do plano normativo e de aplica-
sepultado em espessas trevas de ignorância, inconsciente de suas po-
ção legal do regime comum ao Ultramar português, de outro nível
tencialidades como Nação, até época recente e já bem próxima da
de realidade, em que se situavam as relações efetivamente eXistentes,
nossa, quando despertavam os primeiros alvores do Liberalismo ro-
numa lúcida analítica do hic et nunc da conjuntura social, política
mântico, e brotavam, nos melhores espíritos, os incipientes anseios
e pedagógica do Brasil de então. Isso mesmo o levou a surpreender,
de brasilidade.
sem esforço, o fenômeno coletivo original, de onde já brotava, como
12
13
força espiritual pujante, a nascente nacionalidade. Daí, a nosso ver, 'espírito' que animou estes eventos, a história - a mais nobre e
a urgência da presente reedição e, em seqüência, a necessidade de elevada concepção que até agora foi capaz de realizar a inteligência
as idéias fulcrais, as teses desta obra, serem remeditadas, retomadas humana - se reduziria a uma casuística erudita, com todos os seus
em novas direções de ~rabalho. Chegaremos então à mais profunda apetrechos crítico-filológicos e mais as minudências metodológicas,
apreensão dum período histórico fundamental na gênese nacional, e que nos daria da viva realidade passada o esquema causal, desner-
sobre o qual pairam resistências, senão relutâncias, em lhe reconhecer vado e morto, das interpretações objetivas. No Marquês de Pombal
o papel privilegiado que teve na formação da Inteligência brasileira. a historiografia portuguesa encontrou o espelho fiel dos problemas de
Para além da direta contribuição que o presente estudo oferece Portugal contemporâneo. As paixões e os ódios, diante da figura de
à história pedagógica do terceiro quartel do século XVIII no Brasil Sebastião de Carvalho e Melo, são de tal ordem que nem sempre
- e, desde já se diga, foi decisivo esse esclarecimento, prestado em
i permitem uma inteligência 'compreensiva' dos fatos que a ela se re-
'l lacionam. Por isso, no caso em apreço, a objetividade histórica mal
primeira mão, substituindo equivocadas apreciações anteriores - ele
assume nova dimensão e ganha atualidade, quando apreciado o al- disfarça intenções sectárias nocivas ao progresso da historiografia".
cance geral das teses que introduz no tratamento da História da Lição esta que não obteve a devida audiência, ao menos na-
Cultura, a propósito do caso específico da problemática pombalina. queles autores portugueses que, tranqüilamente, a continuam repe-
tindo. A roupagem é outra, mais à moda e com renovada ornamen-
Só a reduzida circulação do n. 0 160 do "Boletim da Faculdade
tação do aparato erudito, mas não passando do comentário às mes-
de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo" que
mas "razões", as mesmas teses de O. Martins, de Teófilo e seus
em 1952 acolhera, em primeira edição, As Reformas Pombalinas,
pode porventura justificar a escassa projeção da obra na subseqüente seqüazes.
historiografia brasileira e portuguesa, e assim explicar a persistente Anteviu com meridiana clareza o Autor que, sendo o pomba-
repetição de lugares-comuns, por parte de autores que desconhece- lismo uma concepção política e cultural de algum modo inspirada na
ram, ou não utilizaram, as importantes reflexões metodológicas que ideologia iluminista, "as reformas da instrução pública encerram,
fundamentam o estudo do eminente mestre. mais do que um plano pedagógico, uma filosofia política, em função
da qual se define, em seus traços mais característicos, a fisionomia
Sirva de exemplo, no que toca aos antecedentes históricos do do período histórico de que são expressiva manifestação".
consulado pombalino, a fina visão crítica que permitiu ao Autor sur-
A tese enunciada coloca o problema gnoseológico e metódico,
preender a genealogia, as motivações ideológicas, as urgências polí-
da maior fecundidade à luz da História da Educação, das inter-rela-
ticas, que levaram à formação da tese decadentista portuguesa (que ções estabelecidas entre o factum educativo, a pedagogia (entendida
teve seus epígonos em Oliveira Martins, Teófilo Braga e A. Sérgio), esta como forma de concretização peculiar das culturas, anseios co-
explicativa da interpretação que converte o reinado J oanino em um letivos e mentalidades dos grupos humanos de certa época) e, fi-
período de obscurantismo beato e, por contraste, torna progressista nalmente, a filosofia ou ideologia políticas, o que permite abranger,
toda a atuação do "iluminado" Marquês de Pombal. em unitária e coerente explicação, tanto a teoria como a prática
Mantém assim plena atualidade a consideração expendida pelo pedagógica vigentes. Seria importante examinar, de futuro, as con-
Autor, no Prefácio, de que "o pombalismo é uma concepção política cepções de Teoria da História que fundamentam metodologicamente
e cultural da história portuguesa, que deve ser compreendida não os vários trabalhos de Laerte Ramos de Carvalho. Para além de
apenas em função dos fatos 'exteriores' dos quais ela é o pensamento estimular a uma análise comparativa com vários outros pensadores,
orientador básico, mas também, e sobretudo, na intenção, no sen- na forma específica de abordar a realidade educativa pretérita (p. ex.,
tido crítico e finalístico, que animou os seus propósitos". E con- com um Dilthey, um Lucien Febvre, um Kurt Lewin, um Malinowski
tinua, indicando o fundamento metodológico para essa revisão: "A ou um A. Clausse), tal estudo contribuiria para uma mais perfeita
história deve ser compreendida, no sentido diltheynista da expressão. compreensão do seu pensar filosófico, situando-o no quadro exato
.Se através dos frios e objetivos dados históricos não descobrimos o da história da Inteligência brasileira.

14 15
Talvez por se tornar mais fácil, para um autor de outra nacio- damentais, com vista ao aludido exerc1C1o de leitura) o caso para-
nalidade, o libertar-se da carga emocional que, até aos dias de hoje, digmático do historiador contemporâneo português Jorge Borges de
envolve portugueses na polêmica, tornada autêntica vexata quaestio, Macedo, cujas últimas investigações - ainda insuficientemente co-
em torno do Marquês de Pombal (figura que continua dominando nhecidas no Brasil - Ramos de Carvalho, há 25 anos - como é
o estudo do reinado de D. José I) foi Ramos de Carvalho, a nosso óbvio - não podia ter aproveitado. Na verdade, no que toca ao
ver, um dos raros que, com total serenidade valorativa, com pene- período setecentista em Portugal e suas imbricações no quadro bra-
tração, equilibrado senso crítico e acribologia, discerniu, na complexa sileiro, foram inovadoras e decisivas as conclusões do historiador
teia dos acontecimentos históricos, o fato de relevância decisiva, por Borges de Macedo, não apenas na demolição de lugares-comuns
contraste do meramente acidental, por maior aparato que este tivesse apressadamente erigidos em mitos, como ainda na descoberta lúcida
tido nos enredos da intriga do tempo. de novas vias de acesso à compreensão histórica. Para a salutar des-
Assim entendeu, certeiramente, que os termos da alternativa je- truição do elemento mitológico que sutilmente se insinuou nas mo-
suitismo-anti-jesuitismo constituem um dos graves impedimentos nografias sobre a época pombalina, nenhuma outra crítica terá con-
para a justa compreensão de um dos momentos mais lúcidos da his- tribuído tanto como a feita por Borges de Macedo a um tópico da
tória lusitana. Isso o levou a perscrutar, superando falsas antinomias, historiografia do século XVIII: "'Estrangeirados', um conceito a
o caminho que conduziria ao espírito moderno - neste caso reto- rever" (Braga, 1974).
mando uma das caracterizações do pombalismo preferidas pela es- Embora com total independência da obra do Prof. Laerte Ra-
cola positivista de Teófilo (que convertia o Marquês em corifeu do mos de Carvalho (que acaso o historiador português não terá co-
Progresso) mas imprimindo-lhe direção diferente. Moderno, mais nhecido) ambos partiram de um ponto comum na crítica, a des-
do que um termo, .diz-nos o Autor, é uma condição de pensamento, montagem, pP-ça por peça, da tese "decadentista", identificando as
uma atitude diante dos valores e processos de cultura. Mas pode, facetas de que ela se revestiu, por motivações mais ou menos atua-
também, ser uma aspiração, ou seja, um ideal de transformação da listas.
ideologia em formas concretas, de acordo com objetivos claramente Examinando a evolução das teses da decadência portuguesa e,
predefinidos, conforme a doutrina política imperante. Há dois mo- dessoutra a ela interligada, dos "estrangeirados", Borges de Macedo
dos de pensar "moderno", assim pressupunha o professor paulista. foi levado a enquadrá-las no panorama da "história-condenação" (que
Como será compreensível, nem todas as interpretações expressas já Lucien Febvre havia exautorado) e conseqüentemente a apontar
n'As Reformas Pombalinas merecem hoje pacífica aceitação; e se novos caminhos para a pesquisa histórica: "Importa aplicar ao es-
vivo fosse o Autor, ele próprio preferiria decerto, por parte de seus tudo dos séculos XVII e XVIII outra problemática e outras técnicas
leitores, em lugar da congratulatória adesão ao que sem maior difi- de trabalho que correspondam melhor à evolução e exigências da
culdade se admitiu, o exigente e diuturno esforço da discussão que história científica ( ... ) . O que interessa é colocar os homens no
seu meio social próprio e imediato, descrevê-los no seu campo de
sujeita a exaustivo comentário crítico o seu próprio texto.
ação, não abstrato, mas concretamente definido nos seus estímulos,
Como seria natural, já depois de publicada a obra, surgiram necessidades, exigências e possibilidades. ( ... ) Interessa, por con-
importantes revisões - de natureza metodológica e documental - seqüência, definir as vias, os padrões, ou os enquadramentos, que
na mesma área historiográfica que, se não retiram àquela o seu in- orientaram e determinaram as condições da sociedade portuguesa,
discutível interesse ou oportunidade, sugerem entretanto outro ensaio nos índices reais da sua existência concreta" 1 • Numa aplicação des-
de leitura, feito à nova luz. tas diretrizes ao campo da cultura setecentista portuguesa (que o
Nesse sentido - mesmo correndo o risco de omitir válidas e Autor articula, em vários passos, à realidade brasileira) prossegue:
recentes contribuições, cuja enumeração sairia fora do propósito deste 1. Vias de Expressão da Cultura e da Sociedade Portuguesas nos Séculos
:prólogo tem especial pertinência salientar (pelo que representa de XVII e XVIII, Academia Internacional da Cultura Portuguesa, Lisboa, 1966,
estimulante confrontação de conceitos e de categorias teóricas fun- págs. 122 e 123.

16 17
"Mal equipados na linguagem, mas seguros das posições toma- para a pesquisa e, sobretudo, modificou os termos do questionário
das, os debates culturais (e não só literários) ocupam o seu lugar endereçado à vida cultural e pedagógica do tempo, numa reformu-
na vida da cultura portuguesa do século XVIII. Não é, como na lação de importância fundamental.
Inglaterra, à volta do problema do conhecimento que se definem as São ainda de considerar, nesta perspectiva de revisão historio-
posições diversas no campo das preocupações filosóficas. São os gráfica, os estudos de síntese que o autor lusitano dedicou a "Des-
problemas da educação, são os debates sobre os fenômenos naturais potismo Esclarecido", "D. João V" e "D. José I" 8 e, sobretudo, a
que constituem a forma que revestem esses interesses. ( ... ) Luís "Marquês de Pombal" 4, entre outros mais.
Antonio Verney não surge subitamente no deserto cultural joanino.
Tem uma sólida base de atmosfera crítica, que lhe foi preparada por Neste conjunto bibliográfico podemos reconhecer de modo vir-
este debate sobre os cataclismos naturais, pela crítica ao ensino ver- tual, não só a convergência e desenvolvimento dos temas tratados
balista, pela análise dos fundamentos do Estado, expressa na divul- em As Reformas Pombalinas, como até uma desejável e estimulante
gação de Locke, na tradução do espanhol Feijoo, na curiosidade confrontação crítica, quanto ao suporte teórico deste último estudo.
pelas luzes". ( ... ) "Praticamente, as novas instituições [as do rei- Sirva de exemplo a analítica que permitiu discernir, dentro dum pe-
nado de D. José I] permitiram que o país pudesse enfrentar os gran- ríodo comumente considerado de modo unitário - o "Pombalismo"
des problemas econômicos, políticos e culturais do final do século, - várias fases distintas, intenções políticas diferentes, equipes de
sem que se desse desagregação sensível. ( ... ) A cultura portuguesa colaboradores diversificadas; ou, ainda, o inter-relacionamento, tal
utiliza da cultura européia os resultados que realmente lhe interessam como historicamente se verificou, de "Iluminismo" e "Despotismo
e procura entendê-los, desenvolvê-los e aplicá-los aos problemas na- Esclarecido", cujas conseqüências práticas se refletiram no Brasil.
cionais. Vista desta maneira, na exposição que decorre dos próprios Ambos os historiadores, porém, viram a importância simultânea
interesses da época, a cultura portuguesa adquire unidade e sen- da especificidade e globalidade dos fenômenos humanos e entende-
tido" 2 • ram que a análise histórica não o podia esquecer.
A Ramos de Carvalho não interessaria talvez levar tão longe Havendo nós tomado o encargo - na mesma Escola onde
essa análise, nos termos em que Borges de Macedo a levou. Os nosso ilustre antecessor exercera fecundo magistério - de ministrar
pontos de partida dos dois historiadores eram em parte diferentes: o ensino da História da Educação brasileira do século XVIII, em
para o brasileiro, legitimava-se o interesse na exploração desse mes- cursos de pós-graduação, sabemos, hoje, por experiência vivida, que
mo tema apenas como explicitação correlativa do conceito de Ilus- a obra daquele continua suscitando o mais veemente interesse: nos-
tração e da Pedagogia das "Luzes" (alicerce fundamental de As Re- sos alunos se propõem retomar para suas dissertações a mesma área
formas Pombalinas), uma vez que o fenômeno dos "estrangeirados", de estudo, embora, naturalmente, a partir de acervo documental mais
em si mesmo, não chegou a ter direta incidência com igual relevo no amplo, e em novas direções de pesquisa. Mas parece-nos, sem dú-
Brasil setecentista; para o português, o debate justificava-se em cheio, vida, gratificante, para a memória do Mestre, e até promissor para
dado o intento específico da revisão proposta. o alicerce duma tradição escolar, que assim se estejam preparando
Ao estabelecer, em moldes renovadores, para os reinados de D. ''!
várias teses, ao nível do mestrado e do doutorado.
João V e D. José I, os quadros, estratos e grupos sociais, a definição Como quer que seja, entre a bibliografia conhecida, o estudo
das linhas de forças políticas e ideológicas, a dinâmica dos fatores do Prof. Ramos de Carvalho constitui, indiscutivelmente, no mo-
em presença na economia interna de Portugal e do Brasil, em suas
inter-relações e em sua integração no espaço geo-político internacio-
nal, Borges de Macedo veio alterar o anterior equipamento metodo- 3. Dicionário da História .de Portugal, vol. I, págs. 804-806 e vol. li,
lógico de serventia, obrigou a uma seleção diferente dos materiais págs. 623-626, 630-632, respectivamente.
4. Idem, ibidem, vol. lii, pág. 416; Os Grandes Portugueses, dir. por
Hernani Cidade, Lisboa, Ed. Arcádia, s/d, vol. li, págs. 141-152; A Situação
2. Idem, ibidem, págs. 129, 131 e 132. Econômica no Tempo de Pombal (alguns aspectos), Porto; Ed. Portugália, 1951.

18 19
dos das realizações jesuíticas de ensino e defensores ou detratores
mento em que foi dado à estampa, o mais significativo avanço não da política pombalina recaem igualmente no momento da expulsão
só para o conhecimento das reformas da Instrução pombalina na como ponto de referência inicial, decisivo e até único de um amplo
América de fala portuguesa, como, numa visão mais ampla, para a e complexo período histórico de ensino. A tomada de posição
própria história da Educação brasileira no século XVIII, como ali- polêmica tem caracterizado a História da Educação pombalina e
cerce de um espírito nacional. pós-pombalina como caracterizou a própria historiografia referente
Como é óbvio, o eminente professor da Universidade de São àquele período. A atitude de revisão - no sentido de isenção e
Paulo não podia - nem tampouco pretendeu - esgotar o tema; e objetividade - proposta por Jorge de Macedo 5 , teria, ao que parece,
se, como atrás já anotamos, a revisão de alguns dados teóricos tor- amplo cabimento para a compreensão históricà da política pomba-
nou possível e desejável fossem introduzidas, em novo ensaio de lei- lina do ensino. Com justeza aponta um historiador e historiógrafo
tura, uma conceituação histórica e metodologia diferentes - também, brasileiro da atualidade que a História da Educação no Brasil ainda
no que toca às fontes, progressos sensíveis se registraram, na am- não foi escrita. Os estudos sobre a evolução geral do ensino em
pliação da base documental disponível nos últimos 25 anos. seus vários graus carecem de pesquisa, desconhecem fontes e repe-
Deixando de lado a apreciável bibliografia brasileira entretanto tem-se na compilação dos fatos sumariados" 6 •
publicada, em geral mais empenhada na análise· do Regalismo e dos Pelas palavras de Myriam Fragoso (releve-nos o leitor a ex-
aspectos político-econômicos da administração pombalina do que nos tensão do passo transcrito) se documenta como, no apontado con-
aspectos pedagógicos da época, surgiram todavia alguns trabalhos dicionalismo da investigação histórica, em que apreciáveis lacunas
importantes em que estes últimos foram especificamente tratados. são inegáveis, As Reformas Pombalinas continuam desempenhando
Cingindo-se o presente prólogo à genérica intenção de comentar um papel precursor, pois mantêm, como obra estimulante de outras
As Reformas Pombalinas em contexto atual (e o intento identifica-se pesquisas sérias, todo o seu valor de atualidade.
aqui plenamente com a significação do étimo latino de commentare No aspecto documental, todavia, a mais relevante contribuição
- cum-mentare: pensar-com o Autor ... ) , tem sentido aludir ao contemporânea, a que decididamente veio alargar o âmbito anterior
que esta obra - já hoje clássica, na literatura pedagógica de ex- da pesquisa, é devida a Antonio Alberto Banha de Andrade, espe-
pressão portuguesa - representa como comprovação do estimulante cialista português da história cultural do século XVIII, cujos tra-
incentivos que vem exercendo em novas pesquisas realizadas na mes- balhos sobre o grande pedagogo Luiz Antonio Verney são hoje fun-
ma área. damentais.
Na dissertação mimeografada de doutoramento O Ensino Régio Retomando expressamente o tema do professor da Universidade
na Capitania de São Paulo (1759-1801), apresentada em 1972 à de São Paulo, Banha de Andrade, em dois importantes estudos,
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo por Myriam avançou dados que permitiram não só conhecer melhor, em refe-
Xavier Fragoso, a "Nota Prévia" abre com estas elucidativas pala- rência às escolas m.enores, o âmbito das medidas pedagógicas pom-
o
vras: "A elaboração de uma tese sobre ensino régio na Capitania balinas no Brasil, como ainda desvendar, através de preciosa do-
de São Paulo foi sugerida pelo trabalho pioneiro do falecido Prof. cumentação inédita, o interesse do período (até aí pouco menos que
Dr. Laerte Ramos de Carvalho [refere-se a As Reformas Pombali- desconhecido) entre 1759 e 1771.
nas]. A indiscutível vocação pedagógica do mestre motivou a con- Na verdade, a reforma pombalina do ensino elementar e secun-
fiança e o estímulo dedicados a uma aluna do Curso de Pedagogia, dário compreendia duas fases distintas, que não têm sido devida-
ainda não licenciada".
O episódio da expulsão dos jesuítas de Portugal e de seus 5. "Portugal e a economia pombalina, Temas e hipóteses", in Revista de
domínios, com a conseqüente abolição do ensino jesuítico, é a História, São Paulo, USP, vol. IX, ano V, pág. 81.
6. José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, São Paulo,
pedra de toque para a maioria dos historiadores, educadores e co- 1969, Ed. Nacional, pág. 196.
mentaristas das reformas pombalinas de ensino. . Apologistas exalta-
21
20
mente salientadas em sua efetiva diferenciação: a primeira, que vai A intenção colaborante do Autor, pretendendo completar a pes-
da expulsão dos Jesuítas (17 59) até à remodelação orgânica da quisa de Ramos de Carvalho, está expressa nas palavras com que
Universidade de Coimbra e transferência dos Estudos Menores para encerra esse livro: "Talvez um dia seja possível topar· nova do-
a Real Mesa Censória (1771-1772), e uma segunda fase, que de- cumentação e ajuizar melhor os benefícios e os fracassos da Re-
forma. No entanto, por agora, creio ter conseguido ultrapassar um
carre entre este último termo e o final do reinado de D. José I.
pouco a dificuldade que o Prof. Laerte de Carvalho vincava em 1952:
Ramos de Carvalho atendeu, no seu estudo, predominantemente 'É muito difícil precisar até que ponto e em que escala se fez sentir
ao segundo período, sobre o qual dispunha de apreciáveis recursos a Reforma de 1759 no Brasil'".
documentais. Na rota dos arquivos portugueses surpreendeu com
aquela rara intuição de que fora dotado, preciosos filões doc~men­ O estudo de Andrade, completando o de Laerte Ramos de Car-
tais, e só a curteza de .prazos lhe impediu uma mais funda explo- valho, numa zona praticamente omissa, dá-nos um excelente exem-
ração. O convívio intelectual com alguns dos maiores especialistas plo de solidariedade entre investigadores, e dos avanços científicos
d~ssa área - como o eminente historiador das instituições pedagó- resultantes da continuidade metódica na pesquisa - mas, do mesmo
modo, ilustra a evidente fecundidade da obra do professor brasileiro,
giCas e das relações luso-brasileiras, Prof. Manuel Lopes de Almeida
- facilitou ao jovem brasileiro o acesso a importantes fundos bi- em cuja temática aquela se inspirou. .
bliográficos, incentivo que ele havia de no seu livro reconhecidamente Para terminar esta necessariamente breve apresentação, um voto:
lembrar. Não teve porém acesso às fontes que permitiram a An- o de que a nova fase da vida que para As Reformas Ponvbalinas se
drade distinguir, no processo pedagógico "pombalino", dois períodos inaugura com a presente reedição, lhe proporcione o fim do imere-
bem marcados, com mentores, executantes e intenções diversas e cido ostracismo cultural, do quase-esquecimento, a saída da penum-
que no Brasil se projetam de modo inconfundível. ' brosa letargia que a relegara para a raridade "brasiliana", obra para
Em 1977, inserido no n. 0 112 da Revista de História da USP, especialistas, senão curiosidade de bibliófilo. Nada de mais injusto.
Banha de Andrade publica "A .Reforma Pombalina dos Estudos Me- Ela tem jus, por vocação específica - como obra clássica da
nores em Portugal e no Brasil (Linhas gerais de um livro que im- cultura moderna que é, e, simultaneamente, de plena atualidade -
porta escrever)", artigo em que já anuncia a importância da atuação a destino diferente. E pode apontar idêntico caminho para o estudo
pedagógica no Brasil desse ignorado personagem, Principal da Igreja das estruturas sociais e - por que não? - até políticas.
Patriarcal de Lisboa, D. Tomás de Almeida - que foi o verdadeiro
executor, nesses primeiros 12 anos, das Reformas de Pombal sobre Como chave de compreensão para o muito que da vida contem-
a Instrução. porânea brasileira alcança sua mais funda significação nas raízes de
uma afirmação cultural do país, quando mergulha na personalidade
Não tardou o Autor com o livro que "importava escrever", em histórica da coletividade, a obra destina-se não só ao intelectual e
prosseguimento daquele seu artigo anterior: A Reforma Pombalina estudioso da história da Inteligência brasileira, mas a mais vasto
dos Estudos Secundários no Brasil (Rumo da primeira fase- 1759
público, abrangendo todo o homem culto e, em especial, a Juven-
a 1771 - segundo a correspondência do Diretor-Geral e seus cola-
tude - que a partir do conhecimento mais consciente do seu pas-
boradores), São Paulo, 1977. sado encontrará energias espirituais e motivações para prosseguir em
Não interessa agora proceder à apreciação da monografia de renovados rumos a construção, que lhe cabe, do Futuro.
Banha de Andrade, no que representa de pesquisa inovadora sobre
as estruturas do ensino régio no Brasil, na fase inicial das reformas Francisco da Gama Caeiro
educativas; obrigaria aqui a injustificado desvio. Salientamos apenas Professor da Faculdade de Educação da
nela o mérito do inteligente aproveitamento de extensos e inexplo- Universidade de São Paulo
rados núcleos de documentação, do mais evidente interesse para a Catedrático da Universidade de Lisboa
história da Inteligência brasileira. (Portugal)

22 23
\
Iluminismo e
Pombalismo
I - Tradição e modernidade. Antijesuitismo do{tfailprio. Vemey e a
luta contra a tradição. O Modemismo vemeyano.( li/- A modemidade
e os jesuítas. União cristã e sociedade civil. Os {esúítas e o ensino por-
tuguês. Os jesuítas como educadores da burguesia. O ensino de Aris-
t6teles nas escolas da Companhia de Jesus. Os Oitavos Estatutos da
_f.l.IJjy.J3J:.~i.flqçk__çle_Qpi.W1l.l:a.JL!J.. resistência_ às inovaçõ~Lcf2_z_ltj_fu~:{(z~, ·· ·III -
O antijesuitismo da pedagogia pombalina. O Compêndio Histórico. O
sentido econômico-político da luta contra os jesuítas. A renovação das
escolas portuguesas. Per,f'éífii'yzobre e comerciante perfeito. Os rumos
da pedagogia pombalina.V IV 1 Iluminismo e pombalismo. Os jesuítas
e o pensamento regalista\ie/Pombal. Pombal Libertino? Ordem civil e
jesuitismo. A escola a serviço dos interesses do despotismo. A reação
a Arist6teles e ao método escolástico. O novo rumo: o empirismo. A
l6gica e os estudos universitários. o ectéíimio ..-:A/6gic~..-êal1íõ--õrganon.
da ética do .l:O.'!l~_à_I~~Tf!: - - · ·------------------.. ··---------· -----------

I As reformas pombalinas da instrução pública constituem ex-


pressão altamente significativa do iluminismo português. Nelas se
encontra consubstanciado um programa pedagógico que, se por um
lado, representa o reflexo das idéias que agitavam a mentalidade
·I européia, por outro, traduz, nas condições da vida peninsular, moti-

I vos, preocupações e problemas tipicamente lusitanos. No complexo


quadro das manifestações espirituais do período pombalino, as refor-

25
mas do ensino são como que o denominador comum de uma aspira- não revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso como o fran-
ção generalizada. Um de seus objetivos, a remodelação dos métodos cês; mas essencialmente progressista, reformista, nacionalista e hu-
educacionais vigentes, pela introdução da filosofia moderna e das manista. Era o iluminismo italiano: um iluminismo essencialmente
ciências da natureza em Portugal, era a preocupação constante df cristão e católico" 1 • Todavia, forçoso é reconhecer, o iluminis'-
algumas das mais expressivas figuras intelectuais da época. Nestas mo, em que pesem as peculiaridade que historicamente assumiu nos
condições, a indagação do significado e da orientação destes esfor- diversos países, foi sempre um programa pedagógico, uma atitude
ços no sentido de renovar a mentalidade imperante se impõe como crítica de revisão de problemas do qual não se podem dissociar, no
tarefa preliminar para quem pretenda compreender a fisionomia es- fundo, as intenções de uma reforma, tanto das instituições, quanto
piritual do pombalismo. dos. hábitos de pensamento. Seus propósitos mais significativos se
Ora, se o nosso problema é uma questão de ordem pedagógica, resumem no lema por que Kant, num breve escrito 2 , procurou vis-
e por isso mesmo cultural, e se devemos partir antes de tudo das lumbrar, através de uma variada gama de matizes doutrinários, o
manifestações contemporâneas, o primeiro fato que chama a nossa sentido íntimo de uma aspiração geral - sapere aude.
atenção é a consciência que tiveram os próprios letrados do século Em Portugal, o eco destes ideais europeus se manifestou, con-
XVIII da oposição entre o pensamento "tradicional" e o pensamen- creta e historicamente, como um programa político de governo.
to "moderno". Os histmiadores registram e encarecem, de alguns · Um dos traços mais significativos do iluminismo português é a sua
anos a esta parte, as raras opiniões filosóficas de alguns letrados expressão de modernidade consciente e de não menos consciente
q~e, contr~ a rotina dos métodos de pensamento vigentes, se insur- repúdio às formas e hábitos de pensamento até então imperantes.
giram, abrmdo aos olhos portugueses as novas perspectivas do pen- É mister esclarecer, todavia, que tanto esta modernidade quanto
samento moderno. Se compreendermos não apenas o valor destas este repúdio revestiram-se de um formalismo pedagógico bastante
críticas - o que elas encerram de verdadeiro ou de falso - mas característico. O hábito das disputas, tão fortemente enraizado na
a intenção que as animou, resulta claramente que um dos traços escola e na mentalidade portuguesas, pelo trabalho de vários séculos
inconfundíveis da cultura lusitana do século XVIII é a sua mani- de tradição escolástica, não permitiu que o programa de renovação
festação literária, expressa como um programa de modernismo filo- cultural se processasse, livre de quaisquer fatores restritivos, no deba-
sófico contra a tradição. Reconheçamos, todavia, que esta renova- te amplo dos reais interesses ideológicos da modernidade. Os filó-
ção pedagógica, inspirada nos ideais e problemas da filosofia sofos recentiores se preocuparam, desta forma, muito mais com a
moderna, não é uma manifestação exclusiva do período pombalino; transformação dos programas do pensamento moderno, em novas
ela ~e inicia no reinado de D. João V e prolonga-se, sem solução de questões a serem tratadas nos, apertados limites das oposições aca-
contmuidade, e através de vicissitudes diversas, no governo de D. dêmicas, do que com a perfeita elucidação dos principais temas do
Maria I. Da Academia Real de História, fundada em 1720, à Re- pensamento posterior à reforma cartesiana. Certamente os prejuízos
forma da Universidade, em 1772, e desta à Academia Real de decorrentes das tradições pedagógicas não foram os únicos a deter-
. Ciências, criada em 1779, se efetuou um esforço de renovação de minar e a influir na maneira de ser do iluminismo português. A
métodos e de atitudes de pensamento e de integração de novos história de uma cultura não se processa independentemente dos fato-
ideais, esforço este que não disfarça os propósitos "iluministas" res econômicos, sociais e políticos que, de certa forma, a condicio-
que animaram estas iniciativas e reformas.
Certamente não poderemos falar de um "ilurinismo" português 1. Cabral de Moncada, Um "Iluminista" Português do Século XVIII;
no mesmo sentido pelo qual nos expressamos ao caracterizar as Luiz Antonio Verney, São Paulo, Liv. Acadêmica, 1941, pág. 12. Este ensaio
manifestações do pensamento inglês, francês e alemão. O ilumi- foi reproduzido em Estudos de Hist6ria do Direito, do mesmo autor, vol. UI,
incluídos na Acta Universitatis Conimbrigensis. O passo se encontra à pág. 8.
nismo português - afirmou o Prof. Cabral de Moncada - foi
"essencialmente Reformismo e Pedagogismo. O seu espírito era,

26
I.
I
:d
2. Que es la llustraci6n? Trad. espanhola de E. Imaz, no volume Filo-
sofía de la Historía, Colegio dei Mexico, 1947, pág. 25 .

27
pies questão entre ordens religiosas 4 ; mas tal era a mag11itude do
nam. As reformas pombalinas da instrução constituem, neste sen- assunto que a própria coroa real, posteriormente, em nome dos inte-
tido, expressivo exemplo. Ao lado das medidas de diferentes ordens, resses seculares, -reivindicou para si a execução de tarefas educa-
adotadas pelo ministro de D. José I, estas reformas traduzem, den- cionais até então quase exclusivas dos poderes espirituais. No que
tro do plano de recuperação nacional, a política que as condições se refere ao ensino das humanidades, a reforma pombalina foi uma
econômicas e sociais do país pareciam reclamar. tentativa de secularização. das instituições, no sentido sociológico do
Cumpre-nos, portanto, indagar do sentido e objetivo por que termo, secularização esta a meio caminho da laicização, tão de gosto
se concretizaram as aspirações dos letrados que, direta ou indireta- dos teóricos educacionais do século XIX e, também, de nosso tempo.
mente, influíram nas reformas pombalinas da instrução. O primeiro
Ainda hoje, os alvarás e provisões pombalinos são examinados
problema que chama nossa atenção, porque o encontramos sempre
como se não houvesse um outro caminho entre a alternativa que
presente em quase todas as vicissitudes dos vinte e sete anos de
então se propôs: jesuitismo e antijesuitismo. Nesta alternativa, os
administração pombalina, é a questão dos jesuítas. Tanto a Dedu-
jesuítas representam para os historiadores tudo o que há de anti-
ção Cronológica quanto o Compêndio Histórico constituem do-
moderno e Pombal, com seus homens, a autêntica antecipação das
cumentos intencionalmente escritos para atribuir aos jesuítas a causa
aspirações modernas. Ora, forçoso é reconhecer que os termos desta
de todos os males do país. Não nos compete examinar o acerto
alternativa constituem um dos mais graves impedimentos para a
ou desacerto dessa compreensão histórica, apoiada, de resto, no
justa compreensão de um dos momentos. mais lúcidos da história
século passado, pelos historiadores liberais, republicanos e socialis-
lusitana. Se um caminho existe entre os escolhos de uma investi-
tas. Importa-nos, sobretudo, registrar que o antijesuitismo daque-
les escritos, como de outros tantos documentos de igual inspiração, gação tão cheia de percalços, onde as paixões e, algumas vezes, os
representa a expressão de uma atitude generalizada nos países euro- ódios obnubilam a clara visão dos fatos, este caminho será aquele
peus. Na esfera dos problemas da educação e, no sentido mais em que o historiador, diante de tão variadas e contraditórias ma-
amplo, da cultura, atribuiu-se àos jesuítas a responsabilidade pelo nifestações da cultura portuguesa, procurará apenas definir o sentido
. atraso em que se encontravam as letras portuguesas no século XVIII. do m:odernismo filosófico consubstanciado nas obras dos letrados da
Os jesuítas seriam, desta forma, os principais fatores da resistência época em questão. Moderno, no caso, não é apenas um termo: é
à introdução das idéias novas e da "boa" filosofia em Portugal. uma condição dialética de pensamento ___, uma atitude diante dos
valores e processos da cultura - e, ao mesmo tempo, a aspiração
As dezesseis cartas que, no anonimato, Luiz Antonio Verney - o ideal, essencialmente pedagógico da transformação da ideolo-
escreveu sobre o estado da instrução pública lusitana são, a este
gia nos seus hábitos tradicionais, transformação esta orientada para
respeito, muito expressivas. Não é sem exagero que, como um filó-
objetivos claramente predeterminados, de acordo com as exigências
sofo recentior, Verney criticava os métodos jesuíticos: "O que sei
da doutrina política imperante.
porém - dizia ele na Oitava Carta - é que nestes países não se
sabe de que cor seja isto a que chamam boa filosofia. Este vocá- A introdução da filosofia moderna em Portugal se efetuou, den-
bulo, ou por ele entendamos ciência, ou com rigor gramático, amor Vf, tro das condições soçiais da época, por intermédio de um programa
da ciência é vocábulo bem grego nestes países" 8 • O disfarçado i do qual não estiveram ausentes o espírito e os interesses do despo-
plural tinha, entretanto, um endereço certo: E as réplicas e tré- tismo esclarecido. Numa carta ao Pe. Joaquim de Foyos, declarou
plicas não tardaram, veementes e, algumas vezes, desabusadas. Verney que tivera "ao princípio particular ordem da Corte de ilu-
Aparentemente, os debates se processaram como se fossem uma sim-

4. Cf. João Lúcio de Azevedo, O Marquês de Pombal e a sua Época,


3. Verdadeiro Método de Estudar, Valença, na oficina de Antonio Baile, 2.n ed. com emendas, Rio de Janeiro-Porto, Anuário do Brasil-Seara Nova-
1747, t. I, págs. 227/8. Cf. na edição organizada pelo Prof. Antonio Salgado Renascença Portuguesa, 1922, Cap. X, III, pág. 338.
J'r., Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1950, vol. IH, pág. 3. ·
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minar a nossa Nação em tudo o que pudesse ... " 5 • :É muito pro- pmsmo, visivelmente inspirado em Locke 8, mal disfarça as sutis
vável que o Verdadeiro Método de Estudar, um dos mais preciosos distinções da dialética tradicional. Numa época em que o conhe-
documentos para o estudo da cultura lusitana no século XVIII, te- cimento fez da análise o instrumento adequado da compreensão da
nha sido redigido dentro destes propósitos iluministas. Nas idéias natureza e do homem em todas as suas manifestações, nela não viu
desenvolvidas por Verney neste livro o que mais interessa é a natu- o autor do De Re Logica mais do que um simples processo didáti-
reza crítica e assistemática de sua doutrina. A feição pedagógica, co de estudos: "As leis do método analítico são estas: entender
intencional na obra, decorre da própria posição "moderna" assumi- os vocábulos; determinar as questões, separar as partes delas; fugir
da pelo Autor. :É bastante significativo que, na Oitava Carta do de todo o gênero de equívocos; fugir das obscuridades; estabelecer
Verdadeiro Método de Estudar, Verney, depois de traçar o quadro termos comuns e claros; entender os testemunhos e autoridades em
dos estudos filosóficos em Portugal no qual se patenteiam a resis- .
)
I que se funda. Além disso, saber os requisitos que s~o necessários
tência e até mesmo o desconhecimento da filosofia moderna, lembre para entrar em uma questão, v. g., para a história, as antigüidades,
que o melhor modo de afastar estes erros e "desenganar esta gente cronologia, geografia etc.; para a física a notícia das melhores ex-
e mostrar-lhe· os seus prejuízos é pôr-lhe diante dos olhos uma breve periências etc. Ler o contexto, e ver as mais coisas que apontam
história da matéria que tratam: e persuado-me - continua o Barba- os outros, para não errar no critério. Ter presentes os cânones
dinho - que este é ·o mais necessário prolegômeno em todas as que comumente se assinam, para distinguir as obras supostas das
ciências" 6 • A história filosófica não foi, entretanto, além de uma verdadeiras" 0 • No plano de uma lógica moderna bem pouco sig-
limitada propedêutica, com fins pedagógicos claramente determina- nifica este modo característico de conceituar o problema da análise.
dos. Através da história das seitas filosóficas, procura Verney, no
relativismo das posições doutrinárias diversas e, algumas vezes, até
contraditórias, o caminho da "boa" filosofia. 11
Há em Verney, entretanto, um modernismo mais de forma do
que de conteúdo. Os autores modernos são apenas, no Verdadeiro Todavia, completa ou não esta concepção é bem característica,
Método de Estudar, simples instrumentos de que o Autor lança mão pois nela se antecipam os fins de uma doutrina que os novos Esta-
para melhor justificar o pensamento nuclear de seus intentos refor- tutos da Universidade de- Coimbra, em 1772, consagrariam. Verney
mistas. O Prof. Joaquim de Carvalho, num excelente estudo, trans- não foi o único "moderno", pois os letrados portugueses não fica-
crevendo um passo característico da Décima Carta da referida obra, ram inteiramente indiferentes à renovação espiritual que então se
chamou a atenção dos estudiosos para o verbalismo do saber cien- processava. Nos seminários e colégios oratorianos, jesuítas, fran-
tífico de Verney e da sua "inapreensão do alcance da concepção ciscanos, teatinos, para falar apenas dos que mais se destacaram
mecanicista da Natureza". Em Verney - afirma o eminente pro- já se demonstrou em trabalho recente 10 - a filosofia mo-
fessor - a "razão de militante estava mais bem instruída do que
devia remover-se do que devia fundar-se" 7 • Em lógica, seu em-
8. Sobre a influência de Locke na doutrina lógica de Verney, ver as
notas do Prof. Antonio Salgado Jr., que acompanham e esclarecem os passos
da Oitava Carta que se referem ao problema; cf. especialmente t. III, notas
5. Esta carta foi publicada no Conimbricense, por Inocêncio, no n. 0 das págs. 54 a 72. Uma análise mais completa, entretanto, das idéias de Ver-
2.229, de 5 de dezembro de 1868, e reproduzida em Estudos de História do ney se encontra no trabalho de D. Mariana Amélia Machado Santos, Vemey
Direito, cit., págs. 424/8.
contra Genovesi, Apontamentos para o Estudo do "De Re Logica", Coimbra,
6. Verney, ob. cit., Oitava Carta, ed. de 1747, t. I, pág. 232, e ed. A. 1939.
Salgado Jr., t. Ill, pág. 19. 9. Verney, ob. cit., Oitava Carta, ed. de 1747, t. I, pág. 262; ed. A. Sal-
7. Introdução do Ensaio Filosófico sobre o Entendimento Humano (Re- gado Jr., t. Ill, pág. 106. ·
sumo dos Livs. I e li, recusado pela Real Mesa Censória é agora dado ao prelo 10. Ver Antonio Alberto de Andrade, Vernei e a Filosofia Portuguesa.
com introdução e apêndice), Coleção lnedita ac Rediviva, Biblioteca da Uni- No 2.° Centenário do aparecimento do Verdadeiro Método de Estudar, Braga,
versidade, 1950, pág. 37. Liv. Cruz, 1946.

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derna era de certo modo, em maior ou menor alcance, conhecida dência nacionais. Os interesses civis e cristãos, na opinião de Pom-
e examinada. Não será de estranhar, portanto, que, em 1766, Frei bal e de seus homens, coerentes com aquela ciência certa que, no
Fortunato de Brescia, em sua classificação das "seitas filosóficas", espírito do despotismo esclarecido, era a prerrogativa infalível a que
colocasse, ao lado dos escolásticos, os novadores e os ecléticos que, a si invocava a coroa, reclamavam o advento de uma ordem em
na opinião do Prof. Joaquim de Carvalho, "foram os pioneiros do que o poder secular fosse o principal fiador da unidade civil na
pensamento moderno em Portugal" 11 • harmonia da família cristã. Os jesuítas procuraram confundir as
O "modernismo" português, embora em última análise seja regras da sua Constituição com os interesses seculares do Papado.
simples conseqüência do iluminismo europeu, apresenta, entretanto, Daí a generalização de uma disputa que acabou por fazer do jesui-
raízes nacionais que o caracterizam. O que nos interessa, antes de tismo o símbolo do obscurantismo retrógrado, antimoderno, oposto,
tudo, é a indagação do sentido da modernidade portuguesa: até que recalcitrante e ostensivamente, a todas as formas de modernização
ponto, de que natureza e quais os objetivos da renovação cultural da cultura. Não é questão aqui indagar do acerto ou desacerto
que, através de vicissitudes várias, se inicia com as providências desta manifestação. Interessa-nos, apenas, pelo seu aspecto expres-
desconexas de D. João V, que mais pretendia ilustrar a sua Corte sivo de intenções, doutrinariamente justificadas, da política de uma
do que os povos, até a unificação destes esforços num plano con- época.
jugado de reformas pedagógicas, orientado no sentido de um pro- O antijesuitismo pombalino, no setor da educação, estribou-se
grama político de secularização, ao mesmo tempo nacional e cristão, numa série de fatos ainda não suficientemente contestados. Ale-
das instituições escolares? Quando, em 1759, se instituíram as aulas gou-se, por exemplo, que com a entrega do Colégio das Artes da
régias de gramática latina, grega, hebraica e de retórica, no mesmo Universidade de Coimbra à Companhia de Jesus e, posteriormente,
alvará em que suprimia o ensino dos jesuítas, invocou-se, como razão com as provisões segundo as quais nenhum estudante seria admi-
de Estado, a necessidade de se "conservarem a união cristã e a tido nos cursos de Leis e Cânones da Universidade de Coimbra
sociedade civil". Se é verdade que não cabia ao governo português sem os prévios exames no referido Colégio, o ensino português se
indicar quais os melhores meios para a conservação da unidade cris- transformou, praticamente, num monopólio da Companhia de Jesus,
tã, não é menos certo que esta simples invocação, de resto cons- Numa de suas notas explicativas na História da Companhia de
tantemente lembrada nos diplomas régios, se apoiou nas opiniões de Jesus na Assistênckt de Portugal, contestou o historiador Jesuíta
algumas das mais expressivas figuras da vida religiosa da época. O Francisco Rodrigues a existência de semelhante fato pois, nas ex-
tão celebrado ódio do · Marquês de Pombal à Companhia de Jesus pressões textuais do laborioso historiador, não havia monopólio "de
não decorreu dos prejuízos opiniáticos de uma posição sistemática nenhuma espécie, nem ambição de singularidade e exclusivismo do
previamente traçada. Fatores vários e complexos, de ordem social, ensino, mas sim dedicação generosa e benefício inestimável da
política e ideológica, influíram decisivamente na evolução de uma cultura" 12 • O certo porém é que, apenas transcorridos alguns anos
questão que ainda hoje apaixona e obnubila a visão dos espíritos depois da introdução da Companhia em Portugal, os colégios jesuítas
mais esclarecidos. Na brevidade desta forma de ideal político na- possuíam numerosos professores cujos cursos eram freqüentados por
cional - a conservação da união cristã e da sociedade civil - apreciável número de alunos 13 • Não foram certamente apenas os
se condensa toda uma filosofia com objetivos claramente definidos, inegáveis méritos pedagógicos dos inacianos que lhes asseguraram
responsável, aliás, de certa forma, tanto pelas virtudes quanto pelos
vícios do despotismo imperante. Não se definira ainda, como mais
tarde se fará, na Dedução Cronológica, numa concepção peculiar da 12. Francisco Rodrigues, S. J., História da Companhia de Jesus na Assis-
tência de Portugal, Porto, Liv. Apostolado da Imprensa, em publicação, de
história portuguesa que tamanhos créditos teve na historiografia pos- 1931 a 1950, 7 vols. aparecidos, t. 2. 0 , vol. II, pág. 17, nota.
terior, o jesuitismo como a causa primacial dos males e da deca-
13. Ver nesse sentido, no Cap. I, ''Nos colégios: ensino, educação", t. li,
vol. II, da ob. cit. de Francisco Rodrigues, o desenvolvimento das escolas je.
11. Joaquim de Carvalho, ob. cit., pág. 6. suíticas em Portugal, às págs. 11 a 46.

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tão privilegiada situação. Sucessivas vantagens foram concedidas aos tanciais haveres de sua fazenda. A Universidade resistiu até que,
colégios mantidos pela Companhia de Jesus de tal forma que, nas passados catorze anos, não pôde livrar-se do compromisso de entre-
reais condições em que se encontrava a cultura portuguesa, as esco- gar ao colégio, anualmente, 3.000 cruzados. Saía desta forma a
las jesuíticas exerceram, até o governo pombalino, um autêntico mo- :r Universidade "vencida e humilhada" 18 • Semelhantes regalias obti-
nop01io da instrução secundária 14 • veram os padres da Companhia de Jesus na questão dos graus aca-
dêmicos. Sem submeter-se à administração da Universidade, des-
A história da disputa havida entre o Colégio das Artes e a
sangrando-lhe os recursos financeiros, admitindo ao grau de mestre
Universidade de Coimbra, depois que a direção daquele estabeleci-
os professores do Colégio "sem fazerem auto algum dos que man-
mento· passou às mãos dos jesuítas, demonstra muito bem até que
dam os estatutos" 10 , e sobretudo, amparando-se em provisões nas
ponto os interesses seculares, encarnados nas decisões e na obstinada
quais se determinava que nenhum estudante fosse admitido nos estu-
resistência dos professores da Universidade, foram a pouco e pouco
dos de Leis e Cânones da Universidade sem prévio exame no Colé-
cedendo até a aprovação dos Estatutos de 1565, elaborados, como
gio das Artes 2 (}, os jesuítas reuniram em suas mãos privilégios de
se julgou provável 15 , pelos próprios inacianos. Já foram minu-
tamanho alcance que não é de estranhar crescesse o seu ensino
ciosamente analisados, num livro abundantemente documentado, os
quantitativamente, e com enorme rapidez o número de seus colégios
insistentes apelos feitos a D. João III, no sentido de entregar à
e dos estudantes que neles iam buscar não só o aproveitamento nas
Companhia de Jesus o Colégio que o próprio rei organizara com
letras, mas também nos costumes.
o concurso de humanistas nacionais e estrangeiros 16 • A decisão
do rei, depois de muita resistência, se deveu sobretudo aos insis- Não há motivos para censurar os jesuítas por terem alcançado
tentes rogos de seus válidos. Em Carta de 6 de dezembro de 1557, uma posição que lhes garantiu incontestável predomínio na vida po-
confessou o jesuíta. Luiz Gonçalves da Câmara, o mesmo que o lítica portuguesa. A Companhia de Jesus surgiu com propósitos
Geral Lainez recomendava como mestre de D. Sebastião: "No haver que devem ser compreendidos, antes de tudo, em função dos reais
el (Rei) sido author desta mutation, sino que se la hizieron hazer" 17 . interesses históricos que animaram os seus primitivos objetivos. A
Não se detiveram aí, entretanto, os padres jesuítas. história, quando muito, justifica os homens e não as "éticas" - a
O Colégio mantinha-se com recursos provenientes da fazenda ideologia - dos grupos organizados ou não, de que fazem parte.
real. Depois da morte de D. João III, D. Catarina determinou A "ética" jesuítica teve uma finalidade imediata, de valor histórico
semelhante à finalidade das demais ordens religiosas no momento
que fossem separados da Universidade e entregues ao colégio subs-
em que surgiram. Não se pode discutir o seu sublime fim - Ad
majorem gloriam Dei - porque, na órbita dos interesses espiri-
14. Antonio José Teixeira reuniu a documentação dos fatos referentes à tuais, todas as religiões, como se dizia naqueles tempos, perseguiam
história dos jesuítas em Portugal. Um grande número desses documentos se iguais objetivos; mas pode-se discutir os seus processos, os meios
relaciona com a Universidade e o Colégio das Artes. Cf. Antonio José Tei- de que lançou mão, porque, enquanto historicamente realizados,
xeira, Documentos para a História dos Jesuítas em Portugal, Coimbra, Imp.
da Universidade, 1899. Neste livro se reproduzem documentos sobre assuntos
estes processos não puderam escapar ao jogo fortuito dos interesses
os mais diversos referentes à administração, manutenção, privilégios e regalias que, na ordem temporal, condicionam as ações humanas. Desde
que foram concedidos aos jesuítas desde a entrega do Colégio das Artes à o momento em que os inacianos pretenderam confundir os ideais
Companhia de Jesus. sublimes da Fé com os interesses seculares do Império, a sua messiâ-
15. Mário Brandão e M. Lopes D'Almeida, A Universidade de Coimbra,
Esboço da sua História, memória histórica publicada por ordem do Senado
Universitário, no IV centenário do estabelecimento definitivo da Universidade 18. Mário Brandão e M. Lopes D'Almeida, ob. cit., Parte I, pág. 220.
em Coimbra, 1937, Parte I, págs. 225 e segs. 19. Antonio José Teixeira, ·Ob. cit., Parte III, Doc. XXXVII, pág. 217.
16. Mário Brandão, O Colégio das Artes, 2 vols., Coimbra, 1924, 1933, 20. Idem, ibidem, Parte V, Doc. VIII, págs. 400 a 402. Alvará de 3
ver especialmente o vol. li. de agosto de 1561, confirmado por D. Felipe I, a 20 de janeiro de 1591, e
17. Apud Francisco Rodrigues, ob. cit., t. I, vol. li, pág. 347, nota 1. por D. Felipe III, a 16 de maio de 1634.

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nica ortodoxia foi impotente para resistir, de um lado, às novas
exigências impostas pela transformação das condições de vida na O desenvolvimento posterior dos estudos e da especulação nas
sociedade burguesa e, de outro, na esfera espiritual, à inquieta escolas da Companhia de Jesus já estava, de certa forma, determi-
heterodoxia da alma moderna. Houve um momento em que o equi- nado nestas sucintas disposições. de suas Constituições: "In Theolo-
líbrio foi possível. gia legetur vetus et Novum Testamentum et doctrina scholastica divi
Com sua ética heterônoma, que realçava o valor da ordem e Thomae. . . In logica et philosophia naturali et mor ali, et ·meta-
da obediência, os jesuítas também foram, até certo ponto, os edu- physica, doctrina Aristotelis sequenda est" 24 • Com certa liberdade
cadores da burguesia 21 • "Foi necessário que houvesse diversas na interpretação dos textos e incorporando as conquistas do huma-
classes - afirmava Bordaloue - e, antes de tudo, foi inevitável nismo, de acordo aliás, com a imposição das circunstâncias histó-
que houvesse pobres, a fim de que existissem na sociedade humana ricas, criaram os jesuítas nas suas escolas, do velho e do novo mun-
obediência e ordem" 22 • Com aquele realismo característico, que do, uma constante de pensamento, uma nova tradição filosófica a
tão bem garantiu o êxito de seus empreendimentos, reconheceram que já se deu o nome de tomismo moderado 25 • Orientação esta
os padres da Companhia de Jesus o novo sentido da vida que o que encontrou nos problemas políticos e jurídicos o assunto em que
progresso da burguesia propiciava. E não tiveram dúvidas de ir eles exerceram com maior originalidade 26 • Preferiram Aristóteles
ao encontro destas aspirações, securalizando, pela dignificação do a Platão, porque a doutrina do estagirita, na sua opinião, atendia
trabalho, os ideais do cristianismo: "Quero dizer que cumprir fiel- melhor às exigências de uma concepção católica do mundo e do
mente os seus deveres - pregava ainda Bordaloue - trabalhar homem. Não era, entretanto, apenas o Aristóteles da tradição esco-
com zelo e ser diligente dentro do próprio estado, conforme a von- lástica, mas o Aristóteles do humanismo, renovado pelos comen-
tade e os desejos de Deus, significa orar" 23 • A despeito destes tadores que não desprezavam sequer a lição de alexandristas e aver-
esforços não se puderam conter nos quadros da Igreja militante as roístas 27 • Estribando-se, desta forma, na autoridade dos textos
forças históricas que preparavam o advento de uma nova ordem aristotélicos, que eram examinados em função dos interesses da re-
social. Acima dos credos e das confissões, elaborou-se, no século ligião católica, este ensino, sem renovar-se em sua estrutura e pro-
XVIII, uma nova concepção da vida moral que, com a idéia do cessos, logo descambou para o aparato das disputas verbais. Os
direito natural, despojado de seus pressupostos teológicos, e com a esforços isolados, entre os quais o do jesuíta Cristovam Borri, não
doutrina de uma religião natural, numa introspecção altamente sig- foram suficientemente eficazes para modificar a força dos hábitos
nificativa, descobriu na consciência o dever como o tribunal, deso- pedagógicos então vigentes. Aliás, a formalística do regime univer-
brigado de sanções externas, de uma ética ecumênica e sem fron- sitário, com os seus atos e oposições, favorecia muito mais as exi-
teiras espirituais. No fundo, esta ética filosófica pressupunha, a
partir da consciência moral e do dever, como imperativo categórico, 24. Constitutiones Societatis Jesu, P. IV, Cap. XIV. Na tradução espa-
uma ordenação autônoma das vontades, bem diferente da ordem nhola da Biblioteca de Autores Cristianos, organizada pelos especialistas do
preconizada pelos inacianos, na qual a obediência e a humilde doci- Instituto Histórico da Companhia de Jesus- Obras Completas de Santo lnacio
lidade constituíam, na visão dos iluministas, formas de alienação de Loyola - Madrid, 1952, o passo se encontra à pág. 474.
da pessoa que a clara geometria de um sistema ético-político, arden- 25. Ver Carlo Giacon, S. J. La Seconda Scolastica, 3 vols., Milão, Fra-
temente almejado, não podia justificar. telli Bocca, 1944, 1947 e 1950, t. ll, Cap. I, especialmente 2 e 3, págs. 17 a 30.
26. É a opinião do historiador da segunda escolástica; cf. os prefácios
21. Sobre os Jesuítas como educadores da burguesia, ver Bernhard Groe- dos dois primeiros volumes e, especialmente, do terceiro da citada obra.
thuysen, La Formación de la Consciencia Burguesa en Francia durante el Siglo 27. "Alia Seconda Scolastica - escreve Carlo Giacon S. J. - incombe-
XIII, trad. espanhola de José Gaos, México, Fondo de Cultura Económica, va il problema di conciliare il valore reate dei pensiero aristotelico con te
1943, 2.a Parte, III; Los Teologos como Educadores de la Burguesia, especial- impellenti esigenze della nuova .cultura umanistica", ob. cit., t. li, pág. 35.
mente págs. 280 e 290, e as notas às págs. 575 a 578. Sobre as relações dos jesuítas com o humanismo da Renascença em Portugal,
22. Apud Groethuysen, ob. cit., pág. 285. ver A. Alberto de Andrade, ob. cit., Cap. III, págs. 70. a 104 e, ainda do
23. Idem, pág. 284. mesmo Autor, "A Renascença dos 'Conimbricensis' ", in Brotéria, 1943, vol.
xxxvn,. págs. 480 a 501.
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gências de um saber verbal - propno de canonistas, teólogos e nova introdução" ... 29 • E, mais tarde, o reitor do Colégio das
legistas - do que as necessidades de um conhecimento amparado Artes, em edital de 7 de Maio de 1746, determinou que "nos exa-
na experiência e nas matemáticas. Bastante expressivo, neste sen- mes, ou Lições, Conclusões públicas, ou particulares se não ensine
tido, era o descrédito em que se achavam os estudos médicos até a defensão ou opiniões novas pouco recebidas, ou inúteis para o estu-
iutrodução das reformas pombalinas. Nestas condições, a Universi- do das Ciências maiores como são as de Renato Descartes, Gassen-
dade portuguesa que, com as primeiras iniciativas de D. João III, do Newton, e outros, e nomeadamente qualquer Ciência, que defen-
parecia destinada a palmilhar mais amplos e abertos caminhos, subi- da os átomos de Epicuro, ou negue as realidades dos acidentes
tamente enveredou por nova direção e se transformou no reduto, Eucarísticos, ou outras quaisquer conclusões opostas ao sistema de
fortemente garantido, dos ideais da Contra-Reforma. Aristóteles, o qual nestas escolas se deve seguir, como repetidas
vezes se recomenda nos estatutos deste Colégio das Artes" Bfr.
Depois de sucessivas reformas, aceitou a Universidade os Oita-
vos Estatutos que, confirmados em 1612, foram novamente confir-
mados em 1653, por D. João IV. As novas "modificações introdu- m
zidas nos estatutos - observa o Prof. Lopes D'Almeida - corres-
pondiam às pressões e à defesa que a Companhia de Jesus e a Uni- Nas publicações antijesuíticas da administração do Marquês
versidade procuravam fazer valer junto do monarca, uma dos seus de Pombal, transparece claramente a preocupação de atribuir aos
objetivos pedagógicos, a outra de seus direitos e interesses prejudi- inacianos a principal responsabilidade pela decadência em que se
cados. Ambas, quando lhes parecia ter junto do rei ou dos executo- encontravam os estudos em Portugal. O Compêndio Histórico do
res da sua autoridade agente ou pessoas de sua confiança, tenta- Estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos deno-
vam impor os seus pontos de vista e daí as alterações quase nunca minados jesuítas e dos estragos feitos nas ciências, nos professores, e
atingiram a orgânica do ensino que se imobilizou na generalidade diretores que a regiam pelas maquinações e publicações de novos es-
em fórmulas em desuso" 28 • Estes estatutos vigoraram até às refor- tatutos por ele fabricados, aparecido em 1772, constitui, em suas
mas de 1772. Não foi possível fazer vingar qualquer programa de linhas essenciais, apesar das parcialidades notórias, um programa de
renovação cultural porque a disputa entre os inacianos e a Univer- alta significação pedagógico-cultural, pois nele se encontra, ainda
sidade não foi além de um mero conflito de interesses materiais e hoje, o melhor documento que, do ponto de vista crítico, se fez em
nunca, em qualquer ocasião, se patenteou uma possível divergência Portugal sobre a situação em que se encontrava a Universidade de
de propósitos e objetivos no setor da cultura e da educação. Houve, Coimbra até a promulgação dos ~statutos pombalinos. A erudição
sem dúvida, tanto entre os jesuítas quanto na própria Universidade, histórica posterior retificou muitos dos erros contidos nesta publi-
esforços isolados no sentido de introduzir em Portugal os novos cação, mas estas emendas de maneira alguma alteram a própria
problemas que o progresso das ciências experimentais e da especula- substância do programa educacional traçado pela Junta de Provi-
ção filosófica tanto encareciam. Estes esforços, todavia, foram impo- dência Literária. :É preciso lembrar que o Compêndio foi redigido
num momento em que a questão dos jesuítas, transformada num
tentes para modificar a rotina imperante. Lembremos, a propósito,
a provisão de 23 de setembro de 1712, na qual D. João V, tendo
notícia de que "no colégio da Companhia dessa cidade (Coimbra)
J.
y
problema político dos governos de Espanha, França e Portugal ainda
não se resolvera. Devido ao prestígio que gozava a Companhia
se quer introduzir nas cadeiras de filosofia outra forma de Lição de Jesus, junto à Cúria Romana, os delegados dos governos que
da que até agora se observava, e mandam os estatutos", ordena se empenhavam na luta contra os jesuítas não tinham vencido até
o reitor do Colégio das Artes "que havendo nesta matéria alguma
alteração a façais evitar, ficando de vosso Zelo não consintais esta 29. Provisão publicada por Joaquim de Carvalho in Ensaio Filosófico
sobre o Entendimento Humano, Apêndice A, pág. 169.
30. Edital reproduzido por Joaquim de Carvalho, in ob. cit., Apêndict:
28. Mário :Brandão e M. Lopes D'Almeida, ob. cit., Parte IT, pág. 17. A, 2, págs. 170 a 172; cf. loc. cit., pág. 171.

39
38
aquela data as últimas resistências de Ganganelli e alcançado, desta inocência dos crédulos com virtudes externas, e fingidas" 34 • Neste
torma, o objetivo comum: a extinção da ordem. Compreende-se, mesmo domínio ainda, o esquecimento em que foram lançados os
portanto, que a reforma da Universidade se transformasse em mais estudos das histórias do direito romano e pátrio, do direito canônico,
um documento da política antijesuítica que há dezesseis anos se da história geral e da doutrina do método 35 • Na medicina, a obsti-
i.ornara uma das principais preocupações da administração pomba- nada adesão à física aristotélica, com o sacrifício da verdadeira
Una. No Compêndio Histórico, todos os elementos úteis à justifi- física, da química filosófica, da botânica e da anatomia e a confusão
cação doutrinária do pombalismo foram aproveitados: desde a en- do estudo teórico com o prático 36 • Tais foram, na opinião dos
trega do Colégio das Artes à Companhia de Jesus, com os episó- relatores da Junta de Providência Literária, os principais estragos
dios que se lhe seguiram, até à análise minuciosa dos acontecimen- causados pelos jesuítas nos estudos das ciências universitárias.
tos políticos em que os inacianos tiveram uma parcela, mínima que Quer nos parecer que este antijesuitismo foi muito mais a con-
fosse, de responsabilidade. Todos os fatos referentes à ação dos seqüência das lutas políticas do Gabinete com a Cúria Romana do
jesuítas foram invocados para demonstrar, num quadro de tintas que a verdadeira causa do programa pedagógico formulado pela
sombrias, que, até mesmo no setor do ensino, a decadência da na-
ção era sobretudo obra dos padres da Companhia de Jesus. O r Junta de Providência Literária. Tamanha foi a força das vicissi-
tudes políticas, e tão acirrados andavam os ânimos, que um progra-
Compêndio Histórico constitui, desta forma, a conseqüência natu- ma, para cuja justificação bastava apenas a incontestável grandeza
ral da doutrina da Dedução Cronológica e Analítica, de 1765, como de seus fins, se transformou, impelido pelas circunstâncias históri-
esta representa também o corolário generalizado e minucioso da cas, num documento com deliberados propósitos de fazer dos jesuítas
Relação abreviada da República que os religiosos jesuítas das pro- a universal causa de todos os males portugueses. De há muito já se
víncias de Portugal e Espanha estabeleceram nos domínios ultrama- sentiam, na vida do país, os inconvenientes que traziam para a eco-
rinos das duas monarquias e das guerras que neles tem movido e nomia e o trabalho nacionais o acúmulo de bens imóveis e as de-
sustentado contra os exércitos espanhóis e portugueses, de 1756. mais regalias e privilégio que, diante das leis civis, gozavam as ordens
No Compêndio Histórico, ao mesmo tempo que se recapitu- religiosas. O assunto já fora ventilado nas Cortes de 1562 e, agora,
lam os fatos indicados na Dedução Cronológica, particularizam-se D. Luiz da Cunha, no Testamento Político, insistia novamente no
"os outros estragos, que os mesmos regulares fizeram em cada uma problema. Sebastião de Carvalho e Melo, como bom discípulo de
das quatro Ciências maiores" 31 - teologia, leis e cânones, medi- D. Luiz da Cunha, que aproveitara a sua estadia em Londres para
cina e matemática. Na teologia, o predomínio da filosofia aristo- estudar, com meticuloso interesse, os problemas e as conseqüências
télica, que relegou ao esquecimento a teologia primitiva, com o sa- econômicas dos tratados comerciais luso-britânicos 37, não devia
crifício dos estudos da Escritura, da Tradição dos Concílios, dos ignorar este delicado aspecto da questão. Sua luta contra os jesuítas,
Santos Padres e da História Sagrada 82 ; na jurisprudência canônica se, anos mais tarde, se inspirará em alguns dos motivos e razões da
e civil, a adoção de uma metafísica "errônea e sumamente preju- ideologia dos iluministas de outros países, no início foi causada
dicial" 83 e o ensino. da Moral Cristã por intermédio da ética de
Aristóteles, Filósofo Ateísta, "que nenhuma crença teve em Deus,
e na Vida Eterna; que em vez de ditar princípios para a probidade
l
r
principalmente pelo conflito entre os interesses do Estado e os da
Companhia de Jesus.

interior do ânimo, e para a justiça natural, foi o Autor de um sis- 34. Idem, ibidem.
tema estofado de máximas dirigidas a formarem um Áulico das 35. Idem, págs. XIV e XV.
Cortes de Felipe e Alexandre, e um Hipócrita armado contra a 36. Idem, pág. XVI.
37. Ver, especialmente, J. Lúcio de Azevedo, ob. cit., Cap. I, A Embai-
xada de Londres, págs. 9 a 43. Vê o Autor na Relação dos Gravames do
31. Compêndio Histórico, pág. XII. Comércio e Vassalos de Portugal na Inglaterra, redigida por Sebastião de Car-
32. Idem, págs. XII e Xlll. valho e Melo, durante a sua permanência em Londres, "a origem de vários
33. Idem, pág. XIV. dos seus atos posteriores quando governou"; cf. ob. cit., pág. 29.

40 41
De qualquer forma, entretanto, no assunto que nos interessa, mesmos objetivos foi, logo depois, criada a aula de náutica na cidade
a renovação pedagógica da cultura portuguesa se efetuou por inter- do Porto, por iniciativa da Junta Administrativa da Companhia
médio de um programa que se enriqueceu progressivamente, em Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Estas providências
conteúdo doutrinário, por força das vicissitudes políticas, internas eram, na órbita do ensino, a conseqüência natúral das iniciativas
e externas, com que se defrontou o governo de D. José I. Já no econômicas do Gabinete de D. José I. A política monopolista, se-
reinado de D. João V, esta renovação se iniciara, com a casa que guida nos anos anteriores, e da qual resultara, sucessivamente, a
a vontade régia erigira em Lisboa, no subúrbio de Nossa Senhora criação das grandes companhias - do Comércio da Ásia, em 1753,
das Necessidades, a fim de que nela ensinassem os padres da Con- do Pará e Maranhão, em 1755, da Pesca da Baleia, e dos Vinhos
gregação de São Felipe Nery, o latim, o grego, a retórica, todas as do Alto Douro, em 1756, e finalmente de Pernambuco e Paraíba
humanidades enfim, por um método diferente do que o usado pelos em 1759 - andava a exigir pessoal habilitado na escrituração das'
jesuítas em suas escolas. Deste ensino surgiram os Exercícios de contas como condição relevante do progresso das novas empresas
Língua Latina e Portuguesa acerca de diversas causas, de 1711, comerciais. A criação da Junta e das Aulas de Comércio parece
e o Novo Método de Gramática Latina, para uso das escolas da ter correspondido a esta necessidade. Em suas Observações Secre-
Congregação do Oratório na Real Casa de Nossa Senhora das Ne- tíssimas, de 1775, dirigidas ao Rei, por ocasião da inauguração da
cessidades, publicada em 1752, acompanhada de um .prólogo críti- estátua eqüestre, afirmava o ministro, na sua linguagem caracterís-
co em que se indicavam mais de cem erros da gramática do Pe. Ma- tica, "haver a aula de comércio f~ito de tal sorte vulgar a aritmética,
nuel Alvares. Não tardou a contestação, e metodistas e alvaristas, que para o lugar de um guarda-hvros, que antes se mandava buscar
oratorianos e jesuítas, se engalfinharam numa polêmica que, embora a Veneza e a Gênova, por um conto de réis, e três mil cruzados de
estritamente gramatical, mal disfarçava os objetivos desiguais de emolumentos, sucedendo agora vagar, se apresentam logo vinte, e
duas pedagoiias, de dois humanismos, se nos permitem a expressão, mais opositores habilíssimos em todas as arrumações de livros mer-
em conflito. Com a expansão dos jesuítas, em 1759, fez-se necessário cantis e em todas as mais difíceis reduções de pesos e medidas, de
preencher a lacuna aberta com a extinção das escolas por eles man- sólidos e líquidos, de todos os· câmbios, e de todas as moedas que
tidas. O Alvará Régio que criou as aulas de latim, grego e retórica correm nas praças da Europa" 80 • É significativo que Pombal, antes
recomendava expressamente o novo método. O governo incorporou de pensar na formação dos teólogos, canonistas, advogados e médicos
desta forma, fazendo-o seu, o método preconizado pela Congregação - problema que não foi estranho aos propósitos do gabinete de
do Oratório. O "alvarismo", daí por diante, passou a ser tenazmente D. José I - cuidasse, preliminarmente, de amparar o trabalho eco-
perseguido. nômico por intermédio da criação de uma escola destinada a formar
a "elite" indispensável ao progresso financeiro das empresas e dos
Todavia, antes da reforma dos estudos de latim e humanida- grupos que a política monopolista do novo governo planejara e orga-
des, com propósitos menos ambiciosos, procurou o gabinete de nizara, ao pretender incentivar o acúmulo de riqueza individuais de
D. José I resolver pela educação alguns de seus problemas mais tal forma que as novas condições econômicas melhor pudessem satis-
urgentes. As primeiras iniciativas do gabinete, no setor da instrução, fazer aos reclamos dos interesses estatais. Neste sentido as aulas
estão intimamente ligadas a esforços" de recuperação econômica de comércio e de náutica estavam perfeitamente ajustadas aos pro-
empreendida pelo governo. Ao criar-se a Junta do Comércio, pre-
viu-se, no Cap_. XVI, de seus estatutos, o estabelecimento de uma
aula presidida por "um ou dois mestres dos mais peritos, que se co- Científicos, Literários e Artísticos de Portugal nos Sucessivos Reinados da
Monarquia, Lisboa, Tip. da Academia Real das Ciências, 1871, t. I, pág. 273.
nheceram, determinando-lhes ordenados competentes, e as obriga-
39. Observações Secretíssimas do Marquês de Pombal sobre a Colocação
ções, que são próprias de tão importante emprego" 88 • Com os da Estátua Eqiiestre de S. M, El-Rei D. José, Biblioteca Nacional de Lisboa,
Coleção Pombalina, cod. 695, reproduzidas em Cartas e outras Obras Seletas
do Marq~ês de Pombal, 5.a ed.,, 2 vols., Lisboa, Tip. de Costa Sanches, 1861,
38. Estatutos da Aula do Comércio, confirmados pelo Alvará de 16 de
vol. I, pags. 12 a 24; cf. loc. c1t., págs. 13
dezembro de 1752, apud José Silvestre Ribeiro, História dos Estabelecimentos

42 43
pósitos econonncos de um gabinete que, na opm1ao do historiador mava com grande persptcacm o discípulo de Boerhaave: "Parece
Ângelo Ribeiro, representou em Portugal "o fautor desta burguesia que Portugal está hoje quase obrigado não só a fundar uma Escola
de negócios - a classe média que virá prevalecer nas sociedades Militar, mas de preferi-la a todos os estabelecimentos literários, que
do século XIX" 40• sustenta com tão excessivos gastos. O que se ensina e tem ensinado
A Aula de Comércio foi, desta forma, o meio de que lançou até agora neles é para chegar a ser Sacerdote e Jurisconsulto; e
mão o governo, dentro dos próprios quadros da burguesia portu- como já vimos. . . não tem a Nobreza ensino algum para servir a
guesa, para formar o perfeito negociante que a conjuntura econô- sua pátria, em tempos de paz nem da guerra" 43 • Sem dúvida a pres-
mica reclamava. Em suas Recordações, testemunha Ratton o apreço teza com que se Tesolveu o problema está relacionada com os sucessos
em que tinham a Aula de Comércio o Rei D. José I e o próprio militares da guerra luso-espanhola de 1762. O Colégio de Nobres,
Marquês de Pombal 41 • No preâmbulo da Carta de Lei de 30 de . ;(.•' a aula de náutica na cidade do Porto, a aula de artilharia de São
agosto de 1770, transcorridos mais de dez anos da fundação do Julião da Barra, criada pelo Alvará de 2 de abril de 1762, e o
curso, transparecem claramente os propósitos que animavam o Ga- plano de estudos dos regimentos de artilharia 44 são expressões di-
binete ao instituí-lo. Tamanha fora a desordem - diz-se no refe- versas de um programa pedagógico destinado à ampla recuperação
rido preâmbulo - que se assistiu "de muitos anos a esta parte e organização de um exército que havia chegado, até então, aos
o absurdo de se atrever qualquer indivíduo ignorante a denomi- graus extremos da miséria moral e física 45 •
nar-se a si Homem de Negócio, não só sem ter aprendido os prin- À nobreza não bastava, nas condições específicas dos novos
cípios da probidade, da boa fé, e do cálculo mercantil, mas mui- tempos, a formação humanística que, sem modificações essenciais,
tas vezes até sem saber ler nem escrever; irrogando assim igno- prevalecia no ensino português desde a criação do Colégio das Artes.
mínia e prejuízo a tão proveitosa, necessália e nobre profissão" 42. Ribeiro Sanches compreendeu perfeitamente o significado deste fato.
Na política protecionista dos monopólios por que a Coroa procurava Nas sugestões que apresentou para a criação do Colégio dos Nobres
mobilizar, fora dos quadros aristocráticos, as energias nascentes não se esqueceu de recomendar, como matéria de ensino, qualquer
de uma classe, havia necessidade de preparar convenientemente os ciência que, na vida cultural de seu tempo, julgasse indispensável
homens indispensáveis à sábia execução das novas tarefas mercantis. à formação do perfeito nobre, arquétipo pedagógico que a política
No mesmo sentido, embora destinada a atender necessidades pombalina erigiu como correlato e complemento do perfeito nego-
de um setor administrativo mais elevado, se encontra a nova orde- ciante: tipos ideais, aliás, que, embora aparentemente diversos, se
nação dos estudos por que o Gabinete de D. José I, com o Colé- integravam harmonicamente nos propósitos do absolutismo iluminista
gio dos Nobres, procurou aparelhar a nobreza, pondo-a em condi- do gabinete de D. José I. No Colégio dos Nobres, além das disci-
ções de enfrentar, com êxito, os problemas peculiares da política do plinas constantes dos cursos de Humanidades (latim, grego, retórica e
século. O "estrangeirado" Antonio Ribeiro Sanches que, embora filosofia) estudavam-se as línguas estrangeiras (francesa, italiana é
há longo tempo ausente do país, conhecia muito bem, em suas
raízes, os males que afligiam a educação portuguesa, soube lembrar 43. Cartas sobre a Educação da Mocidade, ed. revista e prefaciada por
e encarecer a oportunidade da criação de um colégio para a instru- Maximiano Lemos, Coimbra, Imp. da Universidade, 1922, pág. 184.
44. As aulas de náutica, de artilharia, assim como o plano de estudos dos
ção da nobreza, semelhante aos que já existiam em outras nações regimentos de artilharia são de 1762. Para maiores informações ver José
da Europa. Nas suas Cartas para a Educação da Mocidade, afir- Silvestre Ribeiro, ob. cit., t. I, págs. 246 a 306.
45. Sobre o estado em que se encontrava o exército português, por
40. Ângelo Ribeiro, "A renovação pombalina", in Hist6ria de Portugal, ocasião do conflito de 1762, ver Latino Coelho, Hist6ria Política e Militar de
dirigida por Damião Peres e Eleutério Cerdeira, Barcelos, Portucalense Ed., Portugal desde os Fins do Século XVIII até 1814, 2.a ed., Lisboa, 3 vols., Imp.
1934, 8 ts., vol. VI, Cap. X, pág. 200. Nacional, t. Cap. I, págs. 1 il 86; cf., ainda, do mesmo autor, O Marquês
de Pombal, na obra comemorativa do centenário da sua morte publicada pelo
41. Recordações, de Jacome Ratton, Londres, 1813, pág. XXX.
Club de Regatas Guanabarense do Rio de Janeiro, Lisboa, Imp. Nacional,
42. Apud José Silvestre Ribeiro, ob. cit., t. I, pág. 279. 1885, Cap. XII, especialmente págs. 275 e segs.

44 45
inglesa), ao mesmo tempo que os elementos das matemáticas, da de feitio absolutista, na qual, ainda hoje, alguns autores, e não sem
astronomia, e da física: da álgebra, e da sua aplicação à geometria, razão, pretendem encontrar o germe do liberalismo lusitano. A maior
da análise infinitesimal, e cálculo integral, da ótica, dióptrica, catóp- força dos jesuítas residia nas escolas que possuíam nas mais lon·
trica, dos princípios de náutica, da arquitetura militar e êivil; do gínquas cidades do reino e do ultramar. A expulsão da Companhia,
desenho e, finalmente, da física 40 • Constituía desta forma este com .os males dela decorrentes, deixou uma lacuna que necessitava
currículo um esforço no sentido da renovação das bases, ao mesmo de uma pronta e hábi~ correção. Com a criação das aulas régias
tempo teóricas e práticas, indispensáveis ao bom cumprimento dos de l;:ltim, grego e retórica, iniciou-se, na administração pombalina,
serviços que por dever a nobreza deveria exercitar. uma reforma que, enriquecida e gradativamente ampliada, alcançou,
em 1772, com os Estatutos da Universidade, sua mais alta e signi-
Delineiam-se desta maneira, em seus traços característicos, os ficativa expressão, ao transformar-se num programa pedagógico que
rumos da política pombalina na instrução pública que, anos depois, se definiu como uma doutrina contra o sistema adotado nas escolas
encontrarão na reforma da Universidade, de 1772, a sua manifes- jesuíticas.
tação mais expressiva. A criação das aulas régias, dos cursos mili-
tares, da aula de comércio e de náutica foram como que os ensaios
preparatórios de uma. renovação radical das estruturas, dos proces- IV
sos e - até mesmo - da própria ideologia filosófica, em que se
apoiava o ensino universitário português. Tanto no programa pro- Escrevia D. Luiz da Cunha no seu Testamento Político, com
posto pela Junta de Providência Literária como no zelo com que oportuno e real senso das condições em que se encontrava Portu-
o Marquês reformador acompanhou, com medidas prontas e efi- gal: "Se V. A. quiser dar uma volta aos seus reinos . . . achará
cazes, a remodelação dos estudos nas quatro faculdades, refletem-se que a terceira parte de Portugal está possuída pela Igreja que não
as intenções, acentuadamente iluministas, que nortearam os homens contribui para a despesa e segurança do Estado, quero dizer pelos ·
de Pombal no esforço comum de fazer da Universidade uma escola cabidos das dioceses, pelas colegiadas, pelos priorados, pelas aba-
.que permitisse ao poder público formar o sacerdote, o jurisconsulto, dias, pelas capelas, pelos conventos de frades e freiras" 47 • Um
o médico e o letrado de acordo com o espírito do regalismo dou- reino com tão extensos domínios deveria poupar e aproveitar melhor
trinário que a força das vicissitudes históricas transformara na ra- os seus recursos humanos e evitar que as suas riquezas se dissipassem
zão política, mais caracteristicamente universal, de um governo. com a ininterrupta transferência dos bens civis para o patrimônio
No intervalo transcorrido entre 1759 - ano da expulsão dos da Igreja. ' Nesse patrimônio avultavam, em todas as partes do
jesuítas e da criação das aulas régias de latim, grego, hebraico e reino e seus domínios, os empreendimentos jesuíticos. Não é de
retórica - e 1772, quando se realizou a reforma da Universidade estranhar, portanto, que tenham sido os inacianos os que mais resis-
de Coimbra, a luta do gabinete de D. José I com os inacianos se tiram à política econômica que o gabinete pusera em ação já no
desdobrara numa série de acontecimentos que acabaram por lan- início do primeiro decênio de sua administração. E assim proce-
çar o governo contra a Cúria Romana na qual ainda a Companhia dendo, agiram os jesuítas, no entender de Pombal e seus homens,
de Jesus era ouvida e acatada. Mobilizaram-se, para vencer a tenaz como fatores de desagregação da união cristã e da sociedade civil,
resistência, todos os recursos, de um e outro lado, a fim de que da qual o Governo de D. José I se julgara o fiador.
cada parte melhor pudesse defender seus interesses, direitos e pri- Foi em nome desta união cristã e da sociedade civil, da qual
vilégios. No calor desta disputa consolidou-se a doutrina política, foram excluídos os jesuítas, que se constituiu a doutrina jurídico-
política que prevaleceu nos atos da administração pombalina. A
46. Sobre a organização do Colégio dos Nobres ver José Silvestre Ribei-
ro, ob. cit., t. I, págs. 282 a 295, e Teófilo Braga Hist6ria da Universidade de
47. Luiz da Cunha, Testamento Político. Prefácio e notas de Manuel
Coimbra nas suas Relações com a Instrução Pública Portuguesa, Tip. da Aca-
demia Real das Ciências, 1902, t. III, Cap. III, págs. 348 a 354. Mendes, Lisboa, Seara Nova, 1943, págs. 39/40.

46 47
força com que o Gabinete se atirou na contenda com o Papado e absolutismo se tornara a preocupação dos teóricos mais avançados
a perseverança demonstrada na defesa das régias prerrogativas, ao do tempo. A religião, na mentalidade que então predominava, era
responder, pronta e categoricamente, aos contragolpes que, prote- o esteio da ordem civil, o tribunal que, ao resguardar a pureza\ da
gidos pela Cúria Romana, lhe desferiam os jesuítas, foi talvez o mo- fé, resguardava, ao mesmo tempo, os interesses mais legítimos do
:ivo preponderante, lembrado ·por aquelas "vozes genéricas, vagas poder secular. O homem natural pertence tanto à religião quanto
e improváveis por natureza" 48 as quais fizeram do Min. Sebastião aos seus parentes e pátria: somente na união cristã, que não lisonjeia
de Carvalho e Melo um libertino, "discípulo de Voltaire e do Barão os interesses desnaturalizantes da Igreja, sem pátria e sem fronteiras,
de Holbach, inimigo da Igreja e da crença católica, porque o era pode a sociedade civil viver e prosperar. Não se pretendia propria-
da Companhia de Loyola" 40 • A resposta por que o Marquês, já mente a consagração, tão do gosto do radicalismo cismontano, do
no ostracismo, respondeu à "calúnia" com que pretendiam infamá-lo, aforismo - non respublica, est in ecclesia, sed ecclesia in respublica
traduz o rumo que norteou os homens do governo nos complexos - mas uma tentativa de conduzir, numa harmonia de interesses,
e árduos problemas da relação entre o poder secular e o religioso: conjuntamente, a República e a Igreja pelo caminho do progresso,
"Sendo pois Portugal - dizia em sua 'Apologia sobre a calúnia material e espiritual, da nação lusitana.
da irreligião' - o país da Europa, onde a religião se conservou
sempre mais pura e ilibada; sendo por isso o país onde tem resplan- Dentro desta ordem de preocupações impôs-se resolver o pro-
decido a religião, e o culto divino; sendo eu nele nascido e criado blema do ensino, não mais como tarefa das ordens religiosas, mas
por pais, e avós muito religiosos, não há razão alguma para se pre- como atribuição própria, sem ser exclusiva, do poder real. Pelo
sumir contra mim, e se imputar que me desnaturalizei da própria menos assim o entendia Ribeiro. Sanches: "Somente S. Majestade
pátria e da educação e costumes, que recebi e herdei dos meus Fidelíssima foi o primeiro entre seus Augustos Predecessores, que
progenitores para me precipitar no absurdo de ser irreligioso" ó(}. tomou a si aquele JUS da Majestade de ordenar que os seus súdi-
Na lógica política do gabinete, o jesuitismo, nos seus fins, há- tos aprendam de tal modo que o ensino público possa utilizar os
bitos e práticas, tornou-se quase um sinônimo de desnaturalização: seus dilatados domínios" ü2 • Pretendia, desta forma, Ribeiro Sanches
"Não há jesuítas portugueses e jesuítas espanhóis - proclamava a ver no Alvará que criou as aulas régias de latim, grego e retórica
Dedução Cronológica - porque são na realidade os mesmos je- a expressão de uma escola estruturada em função dos interesses da
suítas, que não conhecem outro soberano que não seja o seu geral. Sociedade Civil. Evidentemente, não se tratava de uma simples
outra nação que não seja a sua própria sociedade; porque pela transferência de mando, mas dos próprios fins e objetivos do ensino,
profissão que a ela os une, ficam logo desnaturalizados da pátria, de tal modo que uma nova pedagogia, solidamente fundamentada
dos pais e dos parentes" 51 • Na defesa dos interesses da sociedade nas razões da filosofia moderna, tomasse o lugar da pedagogia es-
civil, a política pombalina procurou furtar-se aos termos do dilema colástica de que se tornaram expressão altamente significativa, em
Sacerdócio-Império porque, pela força das condições históricas, ten- Portugal, as escolas dos jesuítas. Esta nova orientação filosófica
tou construir, de acordo com o apoio dei próprio clero português, não se caracteriza apenas pelo repúdio a Aristóteles e ao método
excetuados os jesuítas, a república que dentro do espírito do escolástico que, na opinião lúcida do erudito Bispo de Beja só serve
48. "Apologia sobre a Calúnia de irreligião", Coleção Pombalina, B.N .L.,
para "adelgaçar o espírito, delir sua atividade em vapores, trabalhar
cod. 668, reproduzida nas Cartas e outras Obras Selectas .. . , t. II, págs. 200 a a razão em conceito sem objeto que importe e valha; trabalhar a
205; cf. ob. cit., pág. 205. · razão em agudezas que só a si mesmas significam, tudo isto é como
49. J. Lúcio de Azevedo, ob. cit., pág. 365. aguçar o faminto cansadamente a faca, sem jamais tocar no alimen-
50. "Apologia sobre a Calúnia de irreligião", in Cartas e outras Obras
Selectas .. . , t. II, pág. 201.
51. Dedução Cronológica e Analítica, Parte I, Divisão nona, § 338, 52. Antonio N. Ribeiro Sanches, Cartas para a Educação da Mocidade,
pág. 191. págs. 2/3.

48 49
to" 53 mas ainda pelo deliberado esforço de fazer da experiência os espíritos amantes da amena tranqüilidade acadêmica. Não pro-
a fonte, o caminho e a verdade do conhecimento. priamente contra os empiristas, no sentido que lhes empresta a e~cla­
Desde que se tornaram conhecidas dos países europeus, prin- recida visão dos teóricos do século XVIII, mas contra gassendtstas,
cipalmente da França, as obras dos ingleses J ohn Locke e Isaac • cartesianos, atomistas e corpulatores, o que é bastante significativo
Newton, o pensamento filosófico - desenganado mais das fanta- como ilustração da situação em que se achava a investigação uni-
sias do que do verdadeiro espírito do cartesianismo e ignorando, versitária - se manifestou o sobrinho do reitor Carneiro de Fi-
de um lado, as críticas e contestações que ao empirismo locldano gueiroa, Tomaz Manuel Pamplona Rangel na Refutatio philosophica,
tinha oposto Leibniz, nos Novos Ensaios sobre o Entendimento sive conferentia philosophia conferens inter novum et innovatum
Humano, e, de outro, as conseqüências céticas a que este mesmo Philosophiam, et celeberrimam Peripateticam Resolutiones varias, de
empirismo conduzira um espírito viril como o de David Hume - 1748.
inclinou-se, sem relutâncias .outras que não fossem as da tradição Fora do círculo acadêmico, e agora dirigida aos filósofos ex-
retrógrada, para o amplo e aberto caminho da experiência como perimentais da Congregação de São Felipe Nery, não foi menor
único guia seguro, capaz de livrá-la dos fantasmas da razão e de a resistência aos inovadores. No Mercúrio Filosófico dirigido aos
seus artificiosos recursos. Foi este empirismo, bem ou mal com- filósofos de Portugal com a notícia dos artigos que na Dieta Impe-
preendido, que os corifeus da inteligência portuguesa transformaram rial da Filosofia na Sessão V se consultarão, e mandavam propor
numa arma de combate à tradição escolástico-peripatética. Luiz à física experimental da Real Casa das Necessidades a fim de es-
Antonio Verney, Antonio Ribeiro Sanches, J acob ele Castro Sar- tabelecer uma perfeita paz entre a filosofia moderna e antiga, Phi-
mento, Manuel do Cenáculo Villas Boas, entre alguns outros mais, liarco Pherepono ilustra muito bem o sentido desta resistência, pro-
traduziram, cada um à sua maneira, as preocupações da época. curando meter no ridículo os experimentos e demonstrações que, com
Castro Sarmento, depois de tentar conseguir sem êxito o apoio aparelhos físicos, realizavam os oratorianos da Casa das Necessi-
régio para a publicação, em língua portuguesa, das obras de Bacon, dades em Lisboa.
divulgava, em 1737, a sua Teórica. Verdadeira das Marés conforme
à Filosofia do Incomparável Cavalheiro Isaac Newton. Nas reformas pombalinas da instrução pública, prevaleceu o
ponto de vista dos ecléticos e inovadores, quer seja no setor dos
Antes, porém, em 1725, Luiz Baden, natural da Inglaterra, estudos menores, nos quais novos autores e métodos foram adotados
instituiu um curso, com aparato técnico-filosófico, ou seja, instru- com o pensamento numa renovação literária, quer seja ainda nos
mentos vários - telescópios, balanças, mirras de diferentes ordens, estudos maiores - a teologia, o direito, a medicina e a filosofia -
barômetros, termômetros, lanterna mágica, bombas, ventosas etc., que perseveravam manter-se ainda, em pleno século das luzes, den-
destinado a explicar "com uma postila ampla e metódica todos os tro da rígida construção escolástica. As reformas foram, desta for-
fundamentos e experiências dos Filósofos Modernos, e especialmente ma, um esforço no sentido de colocar as escolas portuguesas em con-
dos famosos Roberto Boyle e Isaac Newton, .os mais ilustres natu- dições de acompanhar com êxito o .progresso do século. E por este
ralistas deste último século" M. A iniciativa não constituiu um exem- motivo cumpre indagar até· que ponto a reestruturação dos estudos
plo isolado, pois as "novas" idéias já andavam no ar, incomodando universitários traduziu a forma de pensar característica do ilumi-
nismo europeu.
53 . Frei Manuel do Cenáculo Villas Boas, Cuidados Literários, pág. 92, Evidentemente, o iluminismo não se define apenas pelo modo
apud Hernani Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, 2 vols.,
sui generis por que tratou o problema especulativo; na. sua atitude
Coimbra, Coimbra Ed., 1948, 2. 0 vol., pág. 126.
genérica, ele representou, antes de tudo, um pensamento orientado
54. Notícia da Academia ou Curso de Filosofia Experimentdl novamen-
te lnstz'tuída nesta Corte para Instrução, e Utilidade dos Curiosos, e Amantes para os problemas práticos éticos, políticos, econômicos, jurídicos,
das Artes, e Ciências, na oficina de Pedro Ferreira, 1725, publicada por Joa- de tal maneira que a visão do mundo construída pela filosofia do
quim de Carvalho, ob. cit., Apêndice B, págs. 175 a 179; cf. loc. cit., pág. 175. século anterior, por intermédio do método experimental e das ma-

50 51
temáticas, se transformou no ponto de partida de uma ampla análise do século XVIII, o modus explicandi da teoria matemático-astro-
destinada a ordenar, e integrar os homens, de acordo com princípios nômica de Newton, no seu significado íntimo, uma direção dife-
claros e incomovíveis, num cosmos político em que a verdade, a rente orientou os espíritos mais esclarecidos. A realidade, nos seus
justiça e a beleza representasse, à semelhança do sistema newtonia- múltiplos aspectos e na singularidade de suas manifestações, deixou
!10, o equilíbrio das forças humanas em conflito na sociedade civil. de ser o termo derradeiro de uma explicação sistemática, para se
transformar nos dados iniciais de uma perquirição destinada a en-
Na Reforma de 1772, o ensino nas diversas faculdades se es- contrar, indutivamente, o princípio explicativo último desses mesmos
truturava de modo a assegurar, além da unidade do trabalho rea- fatos. Nada mais estranho ao real espírito do iluminismo do que
lizado nos diferentes cursos, o indispensável entrosamento com o a idéia de uma ciência empírica, sem destino imanente, no seu pró-
filosófico, que lhes servia de base. A privilegiada posição deste prio modo de elaboração, sem a idéia de um princípio, de uma
curso no concerto das disciplinas universitárias pode parecer, à pri- razão, intimamente compreendido como fim da investigação expe-
meira vista, simples concessão à estrutura universitária tradicional. rimental. Foi esta perfeita adequação entre a razão e experiência
Se, entretanto, examinarmos com maiores cuidados as razões que o que Leibniz procurou encontrar nas implicações metafísicas do seu
Compêndio Histórico indica e os Statuta Connimbricensis Academia sistema, que a filosofia do século XVIII descobriu na teoria newto-
consagram, não poderemos deixar de reconhecer que o curso filosó- niana. E foi este acontecimento intelectual decisivo que marcou
fico, abrangendo o estudo das ciências físicas e naturais, se trans- uma das diferenças mais significativas entre o pensar do século
formou num dos mais importantes fundamentos da nova estrutura XVII e o do século XVIII. O iluminismo procurou resolver - diz
universitária. Os Estatutos exigem, como condição indispensável Cassirer - "a questão do método da filosofia, não já remontando ao
de ingresso às Faculdades o estudo da lógica, entre outras discipli- Discurso do Método de Descartes, senão, mais adequadamente, às
nas como a ética, a 1 física experimental, a metafísica, a pneumato- regulae philosophandi de Newton. E a solução obtida conduz ime-
logia, a teologia natural etc., de acordo com as necessidades de cada diatamente a consideração para uma direção completamente nova.
curso em particular. Porque o caminho de Newton não é a pura dedução, mas a análise.
Parece-nos oportuno examinar, portanto, o significado e a na- Não começa colocando determinados princípios, determinados con-
tureza da concepção que os elaboradores dos novos estatutos tive- ceitos gerais para abrir caminho, gradualmente, deles partindo, por
ram da lógica, pois este será, sem dúvida, o caminho que nos con- intermédio de deduções abstratas, até o conhecimento do particular,
duzirá a uma adequada compreensão do iluminismo português. do fático; seu pensamento se move na direção oposta. Os fenôme-
nos são o dado, e os princípios o inquirido" 55.
Com o desenvolvimento das ciências e da nova concepção do
mundo construída pelo trabalho das grandes figuras dos séculos Até que ponto e com que força se manifestou na Reforma de
XVI e XVII, se fez patente a extraordinária fecundidade e o pro- 1772 do ensino universitário esta nova orientação especulativa?
fundo alcm'lce do método de investigação que, quer se assentando Sem pretender antecipar razões que se farão patentes em outro
em princípios evidentes, ou quer apoiando-se em observações pre- capítulo deste trabalho, diremos agora apenas que o método preco-
cisas diretas sobre os fatos naturais, despojou a visão da realidade nizado pela Junta de Providência Literária em-respondeu não ex-
dos entes e dos artifícios que a razão escolástica, impegnada de clusivamente aos fins precípuos da investigação experimental, tal
realismo aristotélico, transpusera do plano dos sentidos pm·a o pla- como era "compreendida" pelos teóricos do iluminismo, mas princi-
no das hipóteses verbais. Livre, afastados que foram os prejuízos palmente às exigências práticas, aos problemas políticos do pom-
advindos desta transposição, a nova atitude caracterizou-se pela bus- balismo. O pombalismo não foi obra exclusiva de Sebastião de
ca dos princípios simples e irredutíveis, a partir dos quais lhe seria
possível atingir através de uma ordem demonstrativa, sistematica- 55. Ernst Cassirer, Filosofia de la Ilustración, trad. espanhola de Euge-
mente, a explicação dos fatos confinados na estreita contingência nio Imaz, México, Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, ed. 1950,
do hic et nunc. Todavia, quando se conheceu, e isto já no início págs. 21 e 22.

52 53
Carvalho e Melo: foi um estilo peculiaríssimo de uma política, engenhos no jogo verbal de teses e contradições do q~e a dirigi~los
doutrinariamente justificada, que foi amadurecendo, gradualmente, no caminho seguro da verdade. Ora, as faculdades ma10res devenam
por força dos fatos e das condições ideológicas do iluminismo euro- formar os teólogos e exegetas da ordem pombalina, exímios co-
peu. O iluminismo português não é uma fórmula que se impôs, nhecedores da crítica, da hermenêutica, da história sagrada e pro-
:eita e acabada, como um modelo em função do qual se estrutura- fana, da retórica, a fim de que, assim aparelhados, melhor pudes-
ram os problemas da política militante de Pombal e de seus ho- sem apreciar os fatos, as leis e as doutrinas e desembaraçar-se dos
mens. Este iluminismo, enquanto pombalismo, constituiu, na sua artificiosos recursos da dialética estéril e vazia.
forma e sentido, expressão de uma autoconsciência histórica da rea- No curso teológico, estabeleceu-se como instrução prévia do
lidade portuguesa, a que não faltaram sequer a perspicaz compreen- futuro teólogo o estudo da lógica: "Os estudantes, que quiserem
são da situação presente e a característica filosofia da história pela matricular-se em teologia, deverão ir preparados para ela com boa
qual o gabinete de D. José I procurou justificar a doutrina do seu instrução da língua latina, da retórica, das disciplinas filosóficas,
absolutismo. Da Relação dos gravames que ao comércio e vassalos e muito principalmente da lógica; na qual se terão instruído com
de Portugal se têm inferido pela Inglaterra, redigida por Sebastião toda a perfeição sobre as regras gerais, e indispensáveis da crítica~
de Carvalho e Melo, antes do reinado de D. José I, aos escritos e da hermenêutica, que depois lhes hão de servir de bases, e fund~­
antijesuíticos, entre os quais a Dedução Cronológica e o Compên- mentos para a instrução da crítica, e hermenêutica sagradas, as quazs
dio Histórico, é toda uma concepção peculiar da história portugue- são dois dos melhores subsídios da teologia" õ 7 • E são estes mes-
sa que se amplia e aprofunda, até alcançar a feição de um vasto e mos subsídios que, ao tratar do Curso de Leis e Cânones, o Com-
radical programa pedagógico. pêndio Histórico tanto encarece. A lógica, nela compreendendo-se
Que foram .os problemas práticos de ordem política que mais as doutrinas do método, da hermenêutica e da crítica, não pode ser
acentuadamente se fizeram sentir na doutrina pedagógica do pom- ignorada pelo jurista, "porque sendo a juri~prudência essencia~m.ente
balismo, verifica-se pela função atribuída ao ensino da lógica nos um hábito de interpretar e de aplicar as le1s aos fatos; e cons1stmdo
próprios Estatutos da Universidade de Coimbra. Estamos aqui mui- todos os ofícios do jurista na interpretação, e aplicação das leis,
to distantes daquela concepção característica do conhecimento de- claramente se mostra que ou ele haja de exercitar o primeiro, ou
senvolvida pelas figuras mais expressivas do iluminismo europeu, o segundo destes ofícios, sempre lhe é indispensável o auxílio da
a que já nos referimos. A lógica renovada que os Estatutos pre- lógica" 58 •
conizam não é - em verdade - a arte de disputa, tão bem ajus- Contrasta com estas expressas determinações que tão signifi-
tada aos processos escolásticos de ensino: deveria ser uma lógica cativamente patenteiam a força dos interesses teológico-jurídicos
que, "emendada pelas luzes de Nicole, Malebranche, Mariotte, Tho- que presidiram a instituição da nova lógica no curso propedêutico
masio, Lok, Le Clerc, e Wolfio, satisfizesse completamente ao seu
da Universidade, o quase silêncio com que na ordenação dos de-
fim; trazendo tudo o melhor, que sobre ela tem escrito Antigos, e
Modernos; e que fosse verdadeiramente ·Eclética" IHI, Este fim a mais cursos - o médico e o matemático - se houveram os ela-
que a nova lógica deveria satisfazer corresponde ao ideal de forma- boradores dos Estatutos. No curso filosófico, entretanto, ao tratar
ção do teólogo e do jurista indispensáveis à política pombalina. do ensino da lógica, recomenda-se excluir "a grande multidão de
preceitos inúteis, e de questões extravagantes introduzidas pelos
A lógica como arte de disputa, que nos séculos anteriores e Escolásticos e conservadas em grande parte pelos Modernos, que
até a Reforma prevalecera no ensino menor e nas Universidades, se empenharam em fazer longa, difícil e embaraçada a Arte de
adequava-se perfeitamente ao regime das oposições e ostentações
acadêmicas; era uma disciplina destinada muito mais a excitar os
57 Estatutos da Uni~ersidade de Coimbra, Liv. I, Do curso 1'eológico,
Tít. I, Cap. III, § 1, Lisboa, na Régia Oficina Tipográfica, 1773, t. I~ pág. 7.
56. Compêndio Histórico, pág. 163. 58. Compêndio Histórico, Parte II, Cap. II, § 38, pág. 159.

54 55
dis~o~rer, que deve ser breve, fácil e expedita" 5o, de maneira que aplicar felizmente à prática: Costumando o entendimento ao tino
a l?gtca toda possa explic~r-se por ~'uma r~gra muito simples: que particular da conjectura algumas vezes mais admirável, do que a
assnn como comparar dois, ou mmtos objetos, distantes uns dos mesma demonstração,· pela sagacidade, e delicadeza, que supõe; e
outros, s~ ~sa dos. objetos ~intermédios; do mesmo modo se compa- pelo maior número de combinações fugitivas, e complicadas que
ra:n as Id~I~~' CUJa relaçao manifestamente se não vê por meio envolve" 04 •
de outras Ideias, que entre elas se podem achar para servirem de
cadeia do raciocínio" no. E são por estas e outras razões que não podia faltar à lógica
pombalina a doutrina do critério. A lógica não é um instrumento,
Com este espírito deverá o professor indicar inicialmente as meramente formal, capaz só por força de suas regras e princípios,
regras a que deve obedecer o raciocínio "perfeito" a demonstra- de justificar o acerto ou o desacerto das proposições, antes de tudo,
ção, e só depois passará a mostrar as normas do 'raciocínio "im- ela é organon de uma ética destinada a conduzir os alunos "a exa-
perfeito", da arte conjecturai, tendo o cuidado de evitar prelimi- minar, analisar, e combinar as matérias; e a proceder com exatidão,
narmente que os alunos se entreguem às "idéias pedantescas de e boa fé nos seus raciocínios" 05 • Nela não encontrarão abrigo as
algun~ escritores, que têm profanado o nome de demonstração em questões metafísicas sobre a natureza e origem das idéias e outras
questoes, onde o mesmo ~orne de conjectura seria temerário" 01, pois "superfluidades" e "embaraços" que só podem prejudicar a com-
n~~hum valor ~emonstratzvo tem a proposição só pela "forma aces- preensão da "boa" lógica. "O cuidado todo do professor - deter-
sona, e o extenor geométrico de definições, teoremas, corolários etc., minam os Estatutos - se reduzirá a inspirar nos seus ouvintes o
quando se aplica a princípios vagos, faltos da exatidão escrupulosa critério, em que consiste a alma da filosofia; não os cansando com
das verdades matemáticas" n2. disputas sobre a primeira proposição verdadeira, que alcança o en-
Entre a arte de demonstrar e a arte conjecturai isto é entre tendimento, a qual poderá não ser a mesma em todos os homens;
o racio.cínio apol~ti~o d~s ,matemáticas e os problemáticos ou,' quan- mas fazendo-os adquirir com o exercício o hábito de distinguir o
do mmto, assertoncos JUIZos encontradiços nas ciências empíricas verdadeiro do falso; e o argumento do sofisma" 66•
(no sentido v~rnáculo da expressão), jurídicas e teológicas os Es- A arte conjecturai, algumas vezes mais admirável do que a
tatutos mal disfarçam a sua predileção pela segunda destas artes. mesma demonstração nos seus pressupostos e nos seus fins, consti-
R~~or:_hecem os. ~statutos se:e~ as regras do raciocínio "imperfei- tuiu o oportuno substitutivo com que os membros da Junta de
to tao essencims e necessanas, pela sua utilidade sem dúvida Providência Literária procuraram opor à dialética da arte de dispu-
qu~nto as do raciocí~io "perfeito", pois "a arte conjecturai, qu~ ta dos escolásticos, as regras de um organon a serviço dos interesses
ens1?a a pesar e avahar as probabilidades, é a que tem mais ne- ideológicos do pombalismo.
cessidade de regras; e que tem uso mais amplo nas ciências con-
forme o estudo em que se acham" os. E de maneira muito ' _ Esta lógica, já o dissemos, foi, com a "filosofia" que lhe ser-
· d · expres viu de fundamento, o instrumento de uma ética, com todas as suas
~1va e.te;·mmam os Estatutos que o professor aos seus discípulos implicações políticas, teológicas e jurídicas de que o pombalismo,
adve1i1ra, que todas as regras que se podem imaginar nesta matéria isto é, o iluminismo português, lançou mão a fim de disciplinar e
(na arte conjecturai) são insuficientes, e de nenhuma utilidade se orientar, na árdua, complexa e delicada conjuntura histórica em
por um exercício freqüente se não adquirir 0 hábito precioso d~ as que se debatia o Reino, a mentalidade dos futuros líderes da Nação
lusitana. O progresso das ciências naturais que impelira o espírito
59· . E~t~tutos, da Universidade de Coimbra, Liv. III, Terceira Parte, Do dos homens mais esclarecidos do iluminismo europeu, àquela nova
Curso F1losof1co, Tit. III, Cap. I, § 3, ed. cit., t. III, págs. 342.
60. Idem, § 4, pág. 343.
61. Idem, § 5, pág. 343. 64. Idem, § 7, pág. 344.
62. Idem, ibidem. 65. Idem, § 11, pág. 346.
63. Idem, § 6, pág. 344. 66. Idem, ibidem.

56 57
orientação a que se referiu Cassirer, não repercutiu, em toda a sua
força e sentido, na concepção do plano elaborado pela Junta de
Providência Literária. A lógica dos Estatutos da Universidade de
Coimbra tinha como objetivo fornecer as regras para a hermenêu-
tica dos assuntos teológicos, jurídicos e históricos que diretamente
interessavam às razões políticas do pombalismo.

Capítulo 11

A Reforma dos Estudos


Menores e a Defesa _do
I •

Regalismo
I - Verney e o plano de reforma do latim. A polêmica verneyana.
A crítica à Arte do Pe. Alvares. A simplificação do estudo do latim.
A nova concepção da gramática. li - Os oratorianos e o /!OVO método
de gramática. A congregação de São Felipe Nery e o progresso do3
estudos em Portugal. A polêmica em torno do novo método de gramáti-
ca. A recuperação do ideal humanista. III - A reforma dos estudos
de latim em 1759. As novas aulas e os Jesuítas. O Alvará de 28 de
junho de 1759. As instruções sobre o ensino de latim. IV - Os estudos
de grego e de ret6rica. As diretrizes do ensino do grego. A ret6rica
de Verney e as instruções de 1759. V - A justificação política da Re-
forma. As Cartas sobre a Educação da Mocidade. A ordem civil. A
Monarquia da Conquista e o Estado do Trabalho e da Indústria. A edu-
cação e os interesses da ordem civil.

I
Quando, forçado pela situação criada pela política econ01mca
ensaiada nos anos precedentes, o gabinete de D. José I procurou,
com o Alvará de 28 de junho de 1759, reparar a imensa lacuna
causada pela repentina supressão do ensino jesuítico, já existiam
em Portugal, graças ao trabalho de algumas de suas figuras mais
expressiva, as diretrizes pedagógicas capazes, por si sós, de jus-
tificar uma ampla reforma do ensino até então vigorante em ter-
58 'J

59
ras e domínios lusitanos. Se trabalhos havia sobre o modo de en- lectual é a história de um "drama íntimo", que talvez encontre
sinar as humanidades à gente portugu.esa, nem por isso o governo, agora o biógrafo minucioso na apreciação do~ fatos, justo, com-
ao criar as aulas régias, avaliou devidamente o inteiro alcance das I preensivo e erudito, de que tanto necessita a investigação histo-
dificuldades que adviriaro de uma reforma destinada a corrigir os
males notórios de uma pedagogia vigente há quase dois séculos e
de um "sistema" que não mais correspondia às necessidades da polí-
tica de recuperação econômica, erigida como uma das razões mais
r riográfica, interessada na objetiva apreciação dos fatos referentes
à cultura lusitana do século XVIII 2 • Numa carta ao Pe. Joaquim
de Foyos, divulgada por Inocêncio, alude o Barbadinho aos seus
planos de "iluminação" da nação portuguesa. Toda a sua vida é,
altas do regime. Antes das reformas porobalinas, já se faziam sentir neste sentido, um esforço incessante de renovação da cultura portu-
os primeiros sinais precursores do programa de renovação cultural. guesa, como oráculo 3 de uma política de que foi mais vítima do
As sugestivas páginas que o Prof. Hernani Cidade dedicou ao que beneficiário. Reportam em seus livros e em sua correspondên-
estudo da reação contra o formalismo seiscentista 1 , tanto no domí- cia contínuas alusões a obras que pretendia escrever, ou que foram
nio científico e filosófico como na esfera dos problemas literários, escritas e destruídas porque lhe faltou, na hora exata, o apoio finan-
dão bem a idéia dos esforços empreendidos no sentido de abrir à ceiro e moral de que necessitava. Embora tenham parcialmente
inteligência portuguesa horizontes mais amplos e límpidos. Todavia, malogrado os seus propósitos iluministas, sobreviveram entretanto
sem procurar diminuir o significado destas manifestações, procura- as suas idéias, fecundando e impulsionando direções espirituais,
remos analisar, dentro dos propósitos deste trabalho, dois aconteci- abalando coro a veemência de sua crítica os prejuízos da tradição.
mentos de grande importância para a reforma dos estudos menores: Outros foram, sem dúvida, mais seguros na orientação filosófica,
a publicação do Verdadeiro Método de Estudar, de Luiz Antonio como, por exemplo, Azevedo Fortes e Jacob de Castro Sarmento;
Verney, em 1746, e o aparecimento, em 1752, do Novo Método de outros mais profundos e sábios nas suas críticas, como Ribeiro
Gramática Latina, da Congregação do Oratório. Tanto o livro de Sanches e o Bispo Manuel do Cenáculo Villas Boas; outros ainda
Verney como a nova gramática provocaram uma intensa polêmica mais criteriosos e eruditos no trato de questões especiais, como An-
de que são testemunhos os numerosos trabalhos que, a propósito de tonio Pereira de Figueiredo, Sachetti Barbosa, Domingos Vandeli,
um e de outro livro, então se escreveram. Verney, especialmente, João Pereira Ramos de Azevedo Coutinho; nenhum, entretanto,
pelo seu destino singular, e sobretudo pela universalidade do plano tão ilustre como Verney, pela universalidade do plano concebido e
de reforroação pedagógica que traçou e procurou realizar, ocupa nos pela ambição por que procurou, por intermédio de suas obras, rea-
acontecimentos da vida cultural do século XVIII português um
lugar de merecida distinção.
2. ''Drama íntimo" é expressão que o erudito editor do Verdadeiro Mé-
Luiz Antonio Verney, o Barbadinho, foi, sem dúvida, um dos todo de Estudar, Prof. A. Salgado Jr., emprega para definir a vida intelectual
mais insignes arautos da política porobalina. A sua história inte- de Luiz Antonio Verney. As notas criteriosas, elaboradas com beneditina
paciência, pelo biógrafo, na reedição do Verdadeiro Método de Estudar ainda
inacabada, constituem, a nosso ver, elementos preciosos para uma co~preen­
são justa dos propósitos e do valor dos trabalhos do autor do De Re Physica;
1. Ver, neste sentido, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, t. li,
e especialmente Cap. li; Reação contra o Formalismo Seiscentista anterior ao parece-nos que A. Salgado Jr., pelos cuidados demonstrados na reedição da
Verdadeiro Método de Estudar, págs. 17 a 71, onde são .analisados, como ex- obra mais discutida de Verney, fará o trabalho que a investigação histórica
pressões desta reação, no setor da atividade científica e filosófica, os trabalhos urgentemente reclama.
de Rafael Bluteau, Manuel de Azevedo Fortes, Jacob de Castro Sarmento, 3. O trabalho do Prof. Cabral de Moncada sobre Verney e as cartas
Antonio Nunes Ribeiro Sanches, e, no domínio literário, as contribuições de por ele reunidas, sobretudo as que foram acrescentadas na nova edição da
Francisco Xavier de Menezes, Frei Lucas de Santa Catarina, José Xavier Vala- obra demonstram a importância de Verney como um dos oráculos da admi-
dares de Souza, além de uma sucinta análise das academias e, particularmente, nistração pombalina. Ver nos Estudos de História do Direito as cartas Ver-
da Academia Real de História Portuguesa. Para uma visão de conjunto sobre ney-Muratori, págs. 195 e segs., principalmente de Verney a Francisco Almada
a investigação científico-filosófica, ver ainda A. Alberto de Andrade, Vemei e Mendonça, págs. 323 a 409. Há dúvidas a respeito de quem seja o desti-
e a Filosofia Portuguesa, Caps. IX a XVI, págs. 191 a 349. natário destas últimas cartas.

60 61
Iizar o programa planejado quase no verdor dos anos. ~ neste sen-
todo de Estudar 6 • Tamanha repercussão de uma obra por si só
tido que Luiz Antonio Verney é um pedagogo e, enquanto peda- testemunha o profundo abalo por ela provocado.
gogo, um "iluminista" na medida em que o iluminismo é uma forma
de pensar comum de homens que, em atitudes diversas de pensamen- .... . Nas dezesseis cartas do Verdadeiro Método de Estudar, ana-
to, procuraram fazer da cultura um instrumento do progresso e da lisa Verney, com o propósito dirigido para uma reforma geral, a ra-
perfeição das sociedades e dos homens. Em Verney, não há apenas o zão dos est~dos, tanto menores como maiores: as gramáticas, por-
tug~esa ~ latma, o es~~do do grego e do hebraico, a retórica, a poesia,
programa de uma reforma sobre os estudos; há ainda a consciência
da necessidade do desdobramento de uma tarefa pedagógica, reali- a filosofia, a matematlca, a medicina, o direito e a teologia. É todo
um vasto programa pedagógico que aí se examina, com o cuidado
zando na ordem prática as diretrizes que o conhecimento das reali-
de mostrar os prejuízos e defeitos da orientação até então existente
dades portuguesas e das conquistas recentes da cultura impunham
e de indicar as soluções e diretrizes mais aconselháveis. Estas cartas
como propósito preliminar de uma política destinada a "iluminar" des~inavam-se a propor o novo método de estudos que as nações
verdadeiramente a nação lusitana. mms cultas da Europa praticavam. Francisco de Pina, em carta
Quando apareceu o Verdadeiro Método de Estudar para ser ao Marquês de Abrantes, escrevia, em 1752, na Balança Intelectual:
útil à República e à Igreja: proporcionado ao estilo e necessidade "~~cebemos com um gosto inexplicável as modas de França, de

de Portugal exposto em várias cartas escritas pelo R.P. + + + Itaha, de Inglaterra, porém não nos resolvemos a tomar a moda
Barbadinho da Congregação de Itália ao R. R. P. + + + Doutor da de seus estudos. Somos como o rebanho, que não vai para onde
deve ir, senão para onde o levam: e assim entramos nas escolas
Universidade de Coimbra 4, logo acorreram de todos os lados,
mais com a semelhança, que com o raciocínio" 7. Foi exatamente
apoiando ou contestando as idéias nele apresentadas, todos os que,
este "raciocínio", amparado pelas luzes da nova filosofia, que Ver-
ou por simples manifestação pessoal, ou talvez movidos por ordens
ney, fiel a sua v.ocação pe~agógica, procurou introduzir em Portugal,
superiores, se julgaram obrigados a entrar numa polêmica, que se recomendando livros e edições que melhor correspondessem às ne-
tornou calorosa, e a opor, às razões do Barbadinho, as contestações cessidades da cultura de seu tempo.
que lhes pareceram mais justas. Multiplicaram-se os escritos em
Portugal e Espanha e somente agora começaram a aparecer as pri- De todas as sugestões e críticas que apresentou, nenhuma teve,
meiras notícias dos inéditos desta polêmica 5 • Na criteriosa biblio- talvez, tão grande fortuna, como aquelas que se referiram ao estudo
das humanidades e, particularmente, do latim. Em sua primeira
grafia que, a propósito da polêmica verneyana, Antonio Alberto de
carta, começa o Barbadinho por encarecer a necessidade do estudo
Andrade examinou e organizou, computam-se dezessete autores por- do Latim por intermédio da língua vernácula. A gramática Emman-
tugueses e oito espanhóis e mais de quarenta escritos, de diferentes velis I Alvari e soiCietate Iesu I De Institutione 1 Grammatica
ordens, desde simples referências em obras publicadas, cartas, até Libri Tres 8 - reformada depois pelo Pe. Antonio Vellez, era redi-
os pormenorizados estudos de questões tratadas no Verdadeiro Mé-
6. Cf. A. Alberto de Andrade, "Bibliografia da polêmica verneiana" in
Brotéria, vol. XLIX, fases. 2/3, 1949, págs. 210 a 232, onde aparece um C~ns­
4. Impresso em Valença, na oficina de Antonio Baile, 1746, 2 ts.; reim- pecto Geral dos Autores e Publicações da Polêmica; ver Ioc. cit., pág. 232.
presso na mesma oficina, em 1747. 7. Balança Intelectual em que se pesava o merecimento do Verdadeiro
Método de Estudar; que ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Marquês de
5. Mariana A. M. Santos, "Inéditos de Verney", in Biblos, vol. XVIII, t. Abrantes oferece Francisco de Pina e de Mello, moço fidalgo da Casa Real,
li, 1942, em separata, Coimbra, 1942; Antonio Alberto de Andrade, "Inéditos e ,Acadêmico da Academia Real, Lisboa, Oficina de Manuel da Silva, 1752,
da polêmica verneiana", in Brotéria, vol. L, fase. 3, 1950, págs. 281 a 287, pags. 3/4.
on~e. se refere o Autor às pesquisas sobre manuscritos ainda não publicados,
8. O exemplar que vimos na Biblioteca Nacional de Lisboa, no frontis-
red1g1dos por Luiz Antonio Verney. De grande valia são entretanto as cartas
pício, depois das iniciais da Companhia de Jesus, indica: Olyssipone/ Excude-
do Barbadinho reproduzidas por Cabral de Mancada, já mencion~das.
bat loannes Barreriusf Typographus Regius/ M.D.L.XXIl.

62 \
63
gida inteiramente em latim e servia de texto não só às escolas je- gumas figuras das mais eminentes das letras lusitanas e o critério
suíticas mas ainda a todas as demais escolas portuguesas. Redigida de que o Autor faz alarde ao examinar alguns dos problemas da
e publicada nos fins do século XVI, ela se manteve como livro básico latinidade. A crítica verneyana, nesta ordem de problemas, se dis-
para o estudo do latim, sem modificações ouh·as que não as que tingue como expressão de consciência que soube reconhecer na
foram introduzidas pelo Pe. Vellez, por todo o século seguinte, até língua, pela força de seus escritores mais ilustres, a carta de maiori-
o aparecimento do Novo Método de Gramática Latina dos oratoria- dade que a República Literária, tal como a compreenderam os hu-
nos de Lisboa. As críticas de Verney à Gramática do Pe. Alvarez manistas, exigia.
exprimem, antes de tudo, uma característica forma de conceber o Tão segura se patenteou esta consciência que, confiante na
estudo da latinidade. De um modo geral, os seus argumentos contra perfeição das línguas, purgadas pelo passado, não teve Verney dú-
a velha Arte se reduzem, nos seus aspectos essenciais, a duas ordens vidas de censurar, apesar de todo o seu lúcido conhecimento da la-
de problemas, intimamente relacionados. Uns se explicam por ra- tinidade, a pedanteria dos "que enchem os seus escritos de mil pa-
zões pedagógicas, strictu sensu; outros, mais profundos, dizem res- lavras latinas sem tom nem som, somente para parecerem erudi-
peito à peculiar idéia da latinidade por que o Barbadinho procurou tos" 11 • E embora aprovasse a adoção de palavras estrangeiras, não
opor-se à concepção que presidiu a feitura da gramática jesuítica. deixou entretanto de reprovar "o que muitos fazem; servir-se sem
De ordem pedagógica são as sugestões no sentido de que o tom nem som de vozes estrangeiras e palavras puramente latinas,
Latim seja ensinado por intermédio da língua portuguesa. Fazendo tendo outras portuguesas tão boas ... " 12 • Tudo isto porque as
seu o que no mesmo sentido preconizara Rollin, no Traité des línguas têm índole própria e :se disciplinam à medida que se vão
E:tudes 0 , admirou-se Verney da persistência de uma prática que purgando até atingir a perfeição. Nesse sentido, vale muito pouco
todos os homens de bom juízo condenam: "É coisa digna de admi- o argumento dos que erigem como regra de vernaculidade tudo o
ração que muitos homens deste reino queiram aprender francês, que se encontra nos antigos autores, pois "esta razão é de cabo-es-
tudesco, italiano, de uma sorte, e o latim de outra muito dife- quadra. Porque tratando-se de línguas vivas (que não estavam pur-
rente. Aprendem aquelas línguas com um mestre que as fala am- gadas pelo passado, mas que na nossa idade se vão reduzindo à
bas, e explica a língua incógnita por meio daquelas que conhecem perfeição), e desta (da qual no nosso tempo apareceu o primeiro
e falam" 10• O estudo do latim não poderia, nesse sentido, seguir Vocabulário), não devemos estar pelo que disseram os velhos, mas
direção diferente da adotada no ensino das línguas vivas. Sob certo examinar se há razão para dizer assim" 13 •
aspecto, a sugestão de V erney implica o tácito reconhecimento do Esta valorização da língua portuguesa não é estranha à re-
estado de maioridade da língua portuguesa. forma da latinidade proposta por Luiz Antonio Verney. Do ponto
No Verdadeiro Método de Estudar, são bastante significati- de vista pedagógico, uma das razões que aconselhavam uma nova
vos os cuidados literários, as apreciações (discutíveis, aliás) de al- orientação no estudo do latim era, sem dúvida, a redução dos anos
exigidos pela aprendizagem tradicional. O estudo da língua ver-
nácula, nas condições existentes, limitava-se às escolas de ler e es-
9. O ensino do latim por intermédio da língua vernácula, que se trans- crever. O latim, em tal situação, exercia uma função disciplinadora
formou num dos pontos fundamentais da reforma pombalina dos estudos me-
nores, fora preconizado pelos pedagogos franceses que seguiram os ensina- da mentalidade dos que se destinavam aos cargos que exigiam qua-
mentos de Comenius. Verney serviu-se particularmente do Traité des Études lificação literária e, correlativamente, servia de grau indispensável
de Rollin. Para maiores esclarecimentos, confrontar os passos do Verdadeiro de ingresso nos estudos universitários, aos quais se reservavam os
Método de Estudar com as transcrições do referido Traité, feitas por A. Salga- postos mais elevados da administração civil e eclesiástica. O estudo
do Jr. Cf. Verdadeiro Método de Estudar, ed. A. Salgado Jr. Texto e notas
das págs. 34, 35, 36 (carta primeira, vol. I) e págs. 139/40 (carta segunda,
vol. I). 11. Idem, pág, 32; ed. A. Salgado Jr., vol. I, pág. 99.
10. Verdadeiro Método de Estudar, ed. 1747, pág. 49; ed. A. Salgado 12. Idem, pág. 37; ed. A. Salgado Jr., vol. I, pág. 112.
Jr., vol. I, pág. 141. 13. Idem, pág. 36; ed. A. Salgado Jr., vol. I, pág. 110.

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do .latim, por intermédio da língua portuguesa, vma simplificar e na vida das escolas portuguesas. Embora sem ser ó primeiro, o
golpe de Verney provocou um estrondo igual a um desabar de mi-
abreviar a natureza e a duração dos trabalhos escolares. Ainda que
narias. As paixões que a sua obra provocou não permitiram aos
hoje possa parecer estranho, o método preconizado pelo autor do
coevos a apreciação justa da concepção que norteou, no domínio
De Re Logica que, à semelhança do que se praticava com as línguas
dos estudos lingüísticos, as suas críticas. Entre a época do Pe. Al-
vivas, pretendia ensinar uma língua desconhecida por intermédio
varez e a da redação do Verdadeiro Método de Estudar, toda uma
de uma língua conhecida, dentro de sua época, encontra razões
sobejas que o justificam. A língua portuguesa seria desta forma série de progressos se tinha realizado: é em nome dela que Luiz
Antonio Verney ergue, nas alturas de uma nova perspectiva histó-
um instrumento propedêutico destinado a diminuir os cansaços e
rica a sua idéia de latinidade. "O mundo, diz Verney na sua se-
conduzir rapidamente os estudantes à compreensão da latinidade. ' carta, estava mui falto de notícias e de método antes do
gunda
Não é fora de propósito lembrar aqui que, nesta altura da his- século passado. Desde o restabelecimento das letras humanas na
tória das instituições educacionais, o latim deixava de ser a língua Europa (direi melhor, no Ocidente) que podemos fixar nos princí-
exclusiva dos conhecimentos doutos para enriquecer-se como ma- pios do sécuo XV (melhor direi, desde a invenção da imprensa no
téria de uma formação, até então insubstituível, que, sem deixar meio do dito século) até o fim do século XVI, não tiveram os ho-
de ser útil, atendia .aos reclamos de uma cultura que não alcan- mens tempo de cuidar em dar método próprio às letras e ciências.
çara ainda o âmago das contradições da crise a que foi lançada. Não fizeram pouco aqueles primeiros doutos em procurar manuscri-
De língua das escolas que fora primitivamente na tradição tos e imprimir as obras dos antigos autores, o mais corretamente
escolástica de língua douta que passou a ser na época do huma- que pudesse ser. Achamos alguns no fim do XV e XVI que foram
nismo, o latim se . transformou, na consciência de alguns letrados letrados à força de estudo, mas não de método" 14 •
portugueses do século XVIII, na finalidade de um programa es- Ora, é precisamente em nome do Método que Luiz Antonio
colar destinado a abrir à visão dos estudantes os horizontes amplos Verney critica a Arte do Pe. Alvarez e os demais livros por que se
da cultura latina, na sua autêntica expressão histórica. Até então explicavam as diversas partes de seu texto, ao mesmo tempo que,
em Portugal, como de resto em toda a Europa, o latim era um ins- numa breve e significativa exposição de caráter histórico, sugere
trumento propedêutico indispensável ao futuro estudo do letrado, a idéia de uma nova gramática. Para Verney, foram os gramáti-
do canonista, do médico, do filósofo e do teólogo. Com Verney cos do século XVII que verdadeiramente descobrh·am as causas e
e os que lhe seguiram, o latim se transformou no ideal de uma pe- a explicação da construção das partes do discurso. Seguindo as
dagogia humanista, abreviada nos seus processos e adequada na concepções de Júlio César Scalígero, no De Causis Linguae Latinae,
sua estrutura às necessidades novas da cultura lusitana. Não é sem Francisco Sanches, em 1587, no Minerva, realizou o que antes su-
propósito que Verney orienta as suas críticas no sentido de um geria o seu ilustre predecessor. "Este livro encontrou em Salaman-
plano ortográfico, de uma gramática portuguesa "curta e clara", ca, e trouxe para Roma, nos princípios do século passado, o famoso
de um dicionário resumido do Vocabulário do Pe. Rafael Bluteau, Gaspar Scióppio, Conde de Claravale, de nação tudesca, aquele
e que, particularmente, insista sobre os problemas da literatura epis- grande homem em letras sagradas e profanas, e que empregou toda
tolar e da eloqüência sacra. "' a sua vida em estudos gramáticos. O livro de Sanches fez todo o
Esta concepção encontra no Verdadeiro Método de Estudar efeito que podia esperar-se. Scióppio (que não costumava dizer
sua mais profunda justificação, na forma por que o Barbadinho bem daquilo que o não merecia, antes pelos seus inhnigos é taxado
procurou traduzir, nos domínios da latinidade, os direitos de seu como censor desumano), cedendo à evidência das razões, prosse-
erudito humanismo. Há mais de cento e cinqüenta anos, a Arte do guiu o mesmo método de Sanches: ilustrou e reformou a sua dou-
Pe. Alvarez, elaboração sem dúvida condizente com os progressos
literários da época em que foi escrita, dominava soberanamente,
auxiliada por inúmeros livros e cartapácios, quase sem contestação, 14. Idem, carta segunda, pág. 50; ed. A. Salgado Jr., vol. I, pág. 145.

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trina, e compôs a primeira gramática que apareceu segundo os tais uma língua morta não se chega a saber bem, mas sabê-lo do melhor
princípios. No mesmo tempo, o famoso Gerardo João V óssio, em modo possível), sem alguma notícia da geografia e cronologia e das
Holanda, tão benemérito das letras humanas e sagradas, explicou antigüidades, em que entram os costumes, a fábula etc." 18•
ainda melhor o dito método seguindo em tudo Sanches e Scióppio,
Quer-nos parecer que esta reforma se compadecia melhor com
os quais, ou copia, ou ilustra" 15 •
as condições sociais da vida portuguesa. A simplificação do estudo
Este método, tão encarecido por Verney, se distingue do al- do latim, seja pela redução mais lógica dos princípios de sua gra-
varista pelo manifesto cuidado de simplificar as regras da sintaxe, mática e seja ainda pelo concurso que neste programa se reserva
buscando razões para explicar e reduzir, por intermédio de prin- à língua vernácula, tendia de um lado a uma melhor disciplina des-
cípios universais, os numerosos cânones da gramática jesuítica. Mais ta última e, de outro, a facilitar ao maior número o ingresso nos
tarde, . na Introdução da sua gramá ti ca, V erney consubstanciará a estudos maiores. Num país que, pela extensão de seus domínios e
sua concepção nestas três ordens de preceitos: "1. 0 que todas as pelos problemas administrativos e políticos dela decorrentes, tanto
línguas têm a mesma ordem natural de sintaxe; 2. 0 que a diversi- necessitava de homens à altura dos seus serviços, não seria sem
dade das línguas na sintaxe é acidental, e consiste em ocultar algu- propósito uma reforma que pudesse favorecer a renovação de seus
mas palavras por elipse, ou em transpô-las por hipérbato, ou em quadros, pelo aproveitamente, em maior escala, dos letrados que
aumentá-las por pleonasmo, e, algumas vezes em suprir com uma saíssem de suas escolas.
só voz várias idéias, ou inventar novas partículas para reger di- Foram estes propósitos que se concretizaram na gramática lati-
versos casos; 3. 0 que todas as línguas se podem reduzir às mesmas na organizada pelos padres da Congregação do Oratório.
regras gerais e essenciais e, especialmente, às mesmas regras da
latina" 16 • Foi esta simplificação que os gramáticos do Novo Mé-
todo procuraram realizar. Enquanto na Gramática do Pe. Alvarez II
se contavam 247 regras de sintaxe, Scióppio, na sua Gramática
Filosófica, não dá mais do que 115 regras "de sintaxe regular sem "Na reforma dos estudos em Portugal, diz Teófilo Braga na
exceção nenhuma" 17• Uma gramática concebida nestes termos, sua História da Universidade de Coimbra, os padres da Congre-
despojada dos versos mnemônicos e redigida em português, facilita- gação do Oratório representam um papel análogo ao dos. pa?res
ria enormemente o estudo do latim. E permitiria ao estudante, li- de Port-Royal em França; aqui acharam-se em frente dos Jesultas,
berta a sua inteligência das abstrusas complicações gramaticais, o lutando com vantagem e opondo à Gramática do Pe. Alvarez o
acesso ao mundo da latinidade, preocupação básica de Verney e Novo Método da Gramática Latina do Pe. Antonio Pereira de Fi-
dos reformadores que se lhe seguiram. :É por este motivo que, na gueiredo, imitada de Lancelot" 19 • Realmente, foram os oratorianos
carta terceira, recomenda o Barbadinho, como disciplinas auxiliares que, pelas suas escolas, contribuíram poderosamente para solapar
indispensáveis ao bom entendimento do latim, a geografia, crono- o imenso prestígio que, há quase dois séculos, gozavam os jesuít~s
logia, história, antigüidade grega e romana. Pois "não se pode nos domínios do ensino português. Foi nos seus cursos, aos qua1s
saber latim, diz Verney (não digo com toda a perfeição, porque comparecia a nobreza sequiosa de novidade e até o próprio rei D.
João V, que a filosofia moderna encontrou abrigo com uma aula
15. Idem, pág. 51; ed. A. Salgado Jr., vol. I, págs. 146/147. de física experimental; foram destes mesmos cursos que surgiram a
16. Apud A. Salgado Jr.: nota a propósito dos autores mencionados por nova gramática do Pe. Antonio Pereira de Figueiredo e a lógica
Verney na breve notícia que dá no Verdadeiro Método de Estudar, referida no reformada Instrução sobre a Lógica, ou Diálogo sobre a Filosofia
texto; cf. ed. cit., nota às págs. 147 a 149.
17. Resposta às "Reflexões" que o R.P.M. Fr. Arsênio da Piedade, capu-
cho, fez ao livro Verdadeiro Método de Estudar, escrita por outro religioso da l 18. Verney, Verdadeiro Método de Estudar, ed. 1747, carta terceira, pág.
dita província, para desagravo da mesma religião e da nação, Valença, of. 70; ed. A. Salgado Jr., t. I, pág. 194.
Antonio Balle, 1748, pág. 23. 19. Teófilo Braga, Hist6ria da Universidade de Coimbra, t. ill, pág. 280.

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Racional, do oratoriano Manuel Alvarez, que, ao lado da Recreação Filosofia da Universidade. Já no reinado de D. José, e depois da
Filosófica, do Pe. Teodoro de Almeida, também oratoriano, con- célebre polêmica gramatical entre oratorianos e jesuítas, idênticas
tribuíram de maneira ponderável para a renovação da mentalidade regalias foram concedidas às escolas oratorianas do Porto e Braga 23 •
portuguesa. É provável que o crescente prestígio dos estu?os, nas es:olas
Tão significativos foram os esforços e tão meritórios os seus da Congregação de São Felipe Nery, ameaçasse senamente os ID:te-
trabalhos que, já em 1708, obtinha a escola, mantida pelos con- resses da Companhia de Jesus, que até então monopolizava o ensmo
gregados de São Felipe Nery, um privilégio real de que até então português. E isto talvez tenha sido decisivo no desencade~r da
só gozavam os jesuítas: o de dispensa dos exames de seus alunos polêmica em torno da gramática latina organizada p~los or~ton~nos.
no Colégio das Artes de Cóimbra 20 • Em 31 de outubro de 1716, Tão árduo e caloroso foi esse debate que nele vm o h1stonador
confirmava o Rei este privilégio que, pela primeira vez, restringia Lúcio de Azevedo o fator decisivo das ulteriores reformas realiza-
o monopólio exercido pelos inacianos: "Eu el-Rei, como Protetor das pelo Marquês de Pombal 24 • Quando surgiu o Novo Método
que sou da Universidade de Coimbra etc. . . Hei por bem escusar da Gramática Latina Dividida em Duas Partes, para Uso das Escolas
do exame de latim aos estudantes filósofos da dita Congregação da Congregação do Oratório na Real Casa de Nossa Senhora das
constando por certidão jurada ao Pe. Perfeito da mesma Congre- Necessidades, os seus autores, no Prólogo, compendiavam cento e
gação que foram examinados na forma dos Estatutos da Universi- vinte erros nas edições Lisbonense e Eborense da Arte do Pe. Ma-
dade, que se haverão por verificados com a dita certidão, a qual nuel Alvarez. Afirmavam os autores ainda que pelo "que pertence
servirá pelo passe que se requere para serem admitidos nas Esco- ao modo de explicar algumas regras e apontar a causa de várias
las maiores" 21 • Entretanto, em 17 de outubro de 1724, revogava construções, tenham entendido os leitores, que se em ,alguns destes
o Rei, por provisão, esta disposição, para, logo a seguir, tornar a dois pontos nos apartamos do Pe. Manuel Alvarez, e porq~~ n.os
concedê-la, e de uma maneira mais ampla ainda: "Eu el-Rei, como pareceu melhor a doutrina de Francisco Sanches, de Gaspar Sc10pp1?,
Protetor que sou da Universidade de Coimbra etc. . . Hei por bem de Gerardo João Vóssio, do Pe. João Luiz de La Cerda, de Claud10
declarar que a provisão que mandei expedir em dezessete de outu- Lancellote na Arte de Porto Real, e de Jácome Perisônio, ilustrador
bro do ano passado a respeito dos exames de latim e lógica não de Sanches: todos seis gramáticos de primeira plana, e nem na
compreende os estudantes seculares da Congregação dos suplican- ciência nem na estimação pública inferiores ao Pe. Manuel Alvarez 25 •
tes (refere-se à Congregação do Oratório) desta cidade, os quais, Não compreenderam da mesma forma as inovações os padres
porém, farão examinar os ditos estudantes em latim e lógica, além da Companhia de Jesus e logo multiplicaram-se os escritos polê-
de todos os mais exames que costumam fazer por dois Mestres, os micos em que, a todo transe, procuravam resguardar a autoridade
quais passarão certidões juradas da suficiência dos examinados, e
pelas referidas certidões serão admitidos na sobredita Universidade 23 . Cf. Teófilo Braga, ob. cit., t. III, págs. 278 a 280, nas quais se repro-
sem que sejam obrigados a fazer segundo exame, como ordenava duz o documento que se encontra no Registro de Cartas e Alvarás, de 1741 a
na dita provisão" 22 • E em 27 de novembro de 1725, estendia- 1799, da Torre do Tombo. .
se ainda mais a força desta regalia, por intermédio da provisão na 24. De acordo com J. Lúcio de Azevedo, a reforma dos estudos foi a
simples conseqüência de uma querela entre ordens religiosas. Cf. .o Marqu~s
qual se dispensavam os portadores de certidões de latim e lógica, de Pombal e a sua Época, 2.a ed., Rio-Lisboa, Anuário do Brasil - Seara
passadas pelos padres da Congregação, de um ano do curso de Nova, 1922, Cap. X, t. III, págs. 338/42. Em trabalho sobre A Lógica de
Mont'Alveme (Boletim LXVII da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da Universidade de São Paulo, Filosofia 2, 1946), embora reconhecendo os
20. Provisão de 17 de julho de 1708. méritos dessa interpretação, dizíamos, à pág. 51: "Seria simpl~icar ~~to,
21. Mesa de Consciência e Ordens, Registro de Provisões de 1696 a reduzir os aspectos da reforma, como acabamento que foi da cnse espmtual
1719, Arquivo Nacional da Torre do Tombo; apud Teófilo Braga, História da do dezoito português, a uma querela entre ordens". , .
Universidade de Coimbra, t. III, pág. 274. 25. Novo Método de Gramática Latina, 7.a ed., pag. 223, texto citado
22. Idem, apud Teófilo Braga, ob. cit., págs. 276 a 278. por Teófilo Braga, ob. cit., pág. 281.

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e o prestígio do insigne mestre quinhentista. Criticando as afir- Pe. Antonio Vellez. O que censuram sobretudo é o atraso em
mações do Prólogo e contestando os erros nele apontados, foram que permaneceram as edições, principalmente portuguesas, da Gra-
aparecendo contra os metodistas escritos de diversos tons: Sessão mática recomendada pela Ratio Studiorum. O notável progresso
da Academia Gramatical; Mercúrio Gramatical dirigido aos estu- que ela marcou, entre os livros congêneres do tempo em que foi
diosos da língua latina em Portugal, com a notícia do que na Dieta redigida, se perdeu assim, por deixar de acompanhar o progresso
da Gramática, na sessão terceira se consultou e determinou sobre literário do século posterior. Foi em nome deste progresso que os
o Novo Método da Gramática Latina, que para uso das escolas metodistas emendaram mais de uma centena de erros que se en-
ordenou e compôs a Congregação do 'Oratório, por Philiarco Phe- contrara na velha Arte. Que a Companhia de Jesus compreendia
répono; As novas declinações,· Advertências necessárias para a inte- perfeitamente a necessidade da atualização e da simplificação da
ligência do Prólogo; Defensa Apologética à Arte do Padre Manuel célebre gramática, provam-no muito bem os apelos da Congrega-
Alvarez,· Progresso da Academia Gramatical; Papel de mataburão a ção Provincial de 1603, nos quais se solicitava ao Geral que se su-
que se passaram envoltas em pretas lágrimas de penoso instrumen- primissem nas escolas os versos, a não ser os referentes à quanti-
to os sentidíssimos ais e dolorosos gritos da senhora D. Gramática dade das sílabas, que o Pe. Antonio Vellez introduzira na Arte
sobre as conclusões públicas que no Hospital real da Corte se defen- alvarista. E ainda na Congregação de 1606 era sugerido um exame
deram aos 30 de abril deste ano de 1752. Dado ao público por dos aditamentos da Gramática eborense, pois, de acordo com a no-
Papírio Mata Castanho,· prezado leal amante da mesma senhora,· tícia que destes documentos nos deu o Pe. Francisco Rodrigues,
e, finalmente, o mais importante destes documentos, o Anti-Prólogo "esses aditamentos impediam o curso fácil dos estudos; já se espa-
crítico, e apologético, no qual à luz das mais claras razões se mos- lhavam rumores da dificuldade em aprender os preceitos da Arte,
tram desvanecidos os erros, descuidos e faltas notáveis, que no in- e havia por este motivo perigo não fugissem os estudantes para
signe Padre Manuel Alvarez presumiram descobrir os R.R. autores compêndios em língua portuguesa, que alguém já estampava, desa-
do Novo Método da Gramática Latina, dirigido aos mesmos reve- creditando o nosso método de ensino. Temia-se até que homens
rendos padres. doutos e conselheiros do rei, aos quais desagradava a multidão e
obscuridade dos versos, levassem ao Tribunal Régio os seus repa-
Não tardou, porém, a contestação. Em 1754, sob o pseudô- ros" 26 • Apesar das recomendações do Geral, que atendiam em boa
nimo de Francisco Sanches, aparecia a Defensa do N()lJJo Método parte a estes reclamos, nada de prático se fez que reparasse defei-
da Gramática Latina contra o Anti-Prólogo Crítico, de autoria do tos tão patentes. E nas escolas portuguesas continuaram a circular
Pe. Antonio Pereh·a de Figueiredo. Nesta extensa resposta, preva- as Artes Grande e Pequena do Pe. Manuel Álvarez, na adaptação
lece o exame das questões gramaticais, tratado por uma dialética, na feita pelo Pe. Antonio Vellez.
qual o seu autor ora se serve da Gramática do padre jesuíta Anto- Ora, convenhamos que não seria fácil tarefa a defesa de um
nio Vellez, para mostrar as lacunas da Arte alvarista, e ora se livro contra o qual já se tinham levantado as vozes dos próprios
serve de ambas para, juntamente com os autores mais modernos, padres da Companhia em duas congregações provinciais. Tarefa
contestar as razões apresentadas pelos apologistas. Nada se encon- tanto mais difícil quanto o adversário, não tendo que defender se-
tra, entretanto, neste documento que nos autorize a admitir tenha não o Método e o bom critério de sua gramática, poderia, em nome
sido hnpugnado o Novo Método preconizado pelos oratorianos. Ora, deste método e deste critério, utilizar, ao lado dos autores recentes,
é precisamente este método que, do ponto de vista pedagógico, o os próprios Padres Álvarez e Vellez, nem sempre concordes em suas
único aliás que diretamente se relaciona com as preocupações deste opiniões, contra o que alegavam os apologistas do insigne gramático
trabalho, marca o aspecto mais expressivo deste prhneiro episódio inaciano. Esta privilegiada posição dos metodistas deu-lhes uma
cultural precursor das reformas pombalinas. enorme vantagem sobre os seus contendores e permitiu-lhes retomar,
Não duvidam os metodistas da autoridade do Pe. Manuel
Álvarez e :n~;;w :m~smo do ilustre reformador da Arte lisbonense, o 26. Francisco Rodrigues S. J., ob. cit., t. H, vol. II, nota 2, págs. 57/58.

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em pleno século XVIII, a bela tradição humanista do quinhentis- Exame de Sintaxe, e Reflexões sobre as suas Regras, dividido em
mo português, de que o Pe. Manuel Alvarez fora, sem dúvida, uma três livros, de Manuel Coelho de Souza, publicado em 1729, con-
das mais significativas expressões. tra o qual, de acordo com Barbosa Machado, apareceram a Con-
Na sua arte explicada, citada na Defensa do Pe. Antonio Pe- tramina Gramatical, de Antonio Franco, e a Apologia, de João de
reira de Figueiredo, dissera João de Moraes Madmeira Feijoo ser Moraes Madmeira Feijoo 31 • Também o Novo Método de Gra-
"a Arte. do Pe. Manuel Alvarez a luz primeira que em Portugal nos mática de Manuel Monteiro, de 1746; encontrou o Antídoto Gra-
amanheceu para a notícia da latinidade, de sorte que antes dela era matical, bálsamo preservativo da corrupção da língua latÚza 32 , que
o latim entre nós tão alheio da sua pureza como próprio da igno- uma tradição satisfeita com a passada grandeza reservava para os
rância" 27 • Contestando essa afirmação, lembra o autor da Tenta- inovadores. Mais violenta e profunda, porém, porque mais fortes
tiva Teológica os nomes dos autores de Gramáticas Latinas que es- e incisivas foram as críticas, foi a reação com que se recebeu neste
creveram antes do aparecimento da Arte jesuítica: Estevam Caval- mesmo ano o Verdadeiro Método de Estudar, de Luiz Antonio
leiro (impressa em Lisboa, em 1516), D. Máximo de Souza (Coim- Verney.
bra, 1535), Nicolau Clenargo (Braga, 1538), Jerônimo Cardoso Embora meramente gramatical no seu aspecto extrínseco, a po-
(Lisboa, 1557), Fernando Soares (Coimbra, 1557) 2 B. E não é lêmica em torno da Gramática, organizada pelos padres da Real
sem propósito lembrar que, na época do Pe. Manuel Álvarez, a Casa de Nossa Senhora das Necessidades, mal disfarçava a preo-
tradição dos estudos latinos em Portugal alcançara o seu esplendor cupação de conduzir o exame das questões em discussão para a
com os mestres do Colégio das Artes, antes de 1555, e ainda com erudita esfera em que se debatem os problemas relacionados com
os nomes de André de Rezende, Jerônimo Osório, Jerônimo Car- o humanismo. Em seu Anti-Prólogo afirmaram os apologistas que
doso, Damião de Góis, Inácio de Moraes, Diogo Mendes de Vascon- "neste tempo se não deve reputar por bárbaro o nome Mavors; visto
cellos "e outros muitos insignes portugueses, uns contemporâneos, que usando dele freqüentemente lhe deram foro de Cidadão Romano
outros mais antigos que o Pe. Alvarez" 29 • os Poetas do século passado XVII, e presente XVIII. Mas não
Era esta tradição que o novo método de gramática latina teria assim no século XVI, em que escrevia o Pe. Alvarez e em que era
procmado restabelecer por intermédio de um processo mais simples mui raro o uso de Mavors" 38 • Semelhante modo de apreciar as
e de uma informação mais ampla e renovada dos autores modernos. questões de uma língua morta não poderia deixar de causar estupe-
Não foi esta a primeira ocasião em que se levantaram críticas à fação àqueles que, preocupados com a verdade dos manuscritos e
Gramática Lisbonense, em termos capazes de suscitar apaixonadas com a correção das edições clássicas, faziam já idéia bem diferente
contestações. O autor anônimo da Carta Exortatória aos Padres da dos problemas da latinidade. Lembrando Vóssio, "príncipe dos gra-
Companhia de Jesus da Província de Portugal já advertiu estas rea- máticos", que nas suas Instituições Oroatórias, Liv. IV, Cap. I, § 4,
ções, pois quando saíra em Lisboa, em 1636, a Arte de Gramática
Latina de Fr. Frutuoso Pra., monge beneditino, dela dissera Fr. 31. Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, vb. "Manuel Coelho de Sou-
Gregório de Argaes na Perla de Catalufia, pág. 464, § 156. "Que za", t. 111, págs. 222123; cf. ainda vbs. "João de Morais Madureira Feijoo",
in Biblioteca Lusitana, t. li, págs. 706/707 e "Antonio Franco", vol. I, págs.
hiziera escurecer todas las artes desta matr.a, si no huviera la opo- 280/281.
sición de la imbidia, y del interes" 80 • Idêntica reação sofrera o 32. Antídoto Gramatical, bálsamo preservativo da cormpção da língua
latina, ou curioso descobrimento dos principais erros, barbaridades e incoerên-
cias do Novo Método para aprender a dita língua oferecida a seu mesmo autor
27. Defensa do Novo Método, Cap. li, pág. 16. por Silvestre Silvério Silveira da Silva, mestre de ler e escrever aritmética e
28. Idem, ibidem, Cap. li. gramática no lugar de Carnexide etc. Valença, Imp. de Antonio Balle, 1750.
29. Idem, pág. 19. Cf. Inocêncio, Dicionário Bibliográfico. De acordo com Inocêncio, a obra é
30. Carta Exortatória aos Padres da Companhia de Jesus da Província de Manuel José de Paiva.
de Portugal, Coimbra, ed. por Mendes dos Remédios, Imp. da Universidade, 33. Anti-Prólogo Crítico e Apologético, pág. 113, passo mencionado na
1909, pág. 18. Defensa do Novo Método, pág. 110.

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"expressamente ensina que a propriedade e uso das palavras latinas logistas mais temerários, ao afirmar "que por mais que os críticos
se deve aprender somente dos Antigos Escritores e não dos que lhes chamem fidelíssimas e corretíssimas, é muito duvidosa a sua
hoje escrevem" 34 não esconderam os metodistas o espanto que lhes fidelidade e correção: que os críticos nenhum penhor nos dão para
causou aquela afirmação. Nenhum escritor, por mais genial que podermos segurar que nos não enganam: que quando eles testificam
seja, tem suficiente força para ditar leis ou dar propriedade às pala- terem visto, conferido, e concordado manuscritos antiqüíssimos, nos
vras de uma língua morta. É por isso que se impõe ao estudioso podem mentir, como a Scalígero enganou Mureta. Finalmente serem
da latinidade um seguro e criterioso trato com os autores clássicos, os modernos críticos uns perturbadores e viciadores dos autores an-
porque somente eles, pelos seus escritos sabiamente restabelecidos, tigos; e conseguintemente mui duvidosa a fidelidade que nas suas
podem dar foro de latinidade às expressões. edições nos prometem" 36 • Semelhantes afirmações não se compa-
Não é de estranhar, portanto, que se demorem os metodistas deciam nem mesmo com o critério por que o Pe. Alvarez organizara
na apreciação da propriedade de termos, invocando a todo momen- a sua gramática e, por este motivo, não causa surpresa o estarreci-
to a autoridade dos antigos escritores e, ao mesmo tempo, procurem, mento que ela provocou entre os adeptos do Novo Método: "agora
contra as alegações de seus contendores, provar, apoiados nos crí- acabo de entender - dizia, a propósito de outra questão, o Pe.
ticos modernos, tais como Vóssio, Scióppio, Borríquio, Vavasseur, Antonio Pereira de Figueiredo - que obraram uma e muitas vezes
Einécio, Sanches, entre tantos outros mais, a pureza e gravidade de bem em o publicarem com o nome do guarda de Santo Antão. Por-
Celso e Columella, a latinidade de Planto e Lucrécio, o acerto de que só em um tosco e rude entendimento se faziam sofríveis ta-
Vitrúvio e o desacerto de Quintiliano num caso particular em que manhos absurdos" 37.
Cícero e Ovídio justificam o contrário. Semelhantes cuidados so- A polêmica em torno da gramática do Novo Método, tal como
mente alcançariam os fins propostos se se amparassem numa vigi- já acontecera por ocasião do aparecimento da célebre obra de Ver-
lante e sempre renovada compreensão dos progressos e das con- ney, revelou a força com que se mantinham as práticas pedagógicas
quistas da investigação erudita. É de presumir que nunca os sec- das escolas jesuíticas. Distantes e quase esquecidos da antiga emu-
tários do Pe. Alvarez se teriam lançado a uma polêmica em defesa lação, que tamanhos proveitos trouxe para os cursos da Companhia
de um livro que, em Portugal, salvo as emendas e ampliações do em Portugal, os adversários do Novo Método resistiram, com tenaz
Pe. Antonio Vellez, permanecia quase tal como o deixara o seu combatitividade, aos esforços renovadores que pretendiam introduzir
autor. Unicamente o exclusivo zelo apologético e o exagerado res- no país as luzes de' um humanismo melhor adequado às novas
peito pela autoridade explicam os excessos de polêmica tão ingrata
condições da cultura. No seu sentido íntimo, este humanismo visava
para os mestres de Santo Antão.
a fazer do latim, não apenas uma língua indispensável aos estudos
Depois do aparecimento das primeiras edições das Artes Lis- maiores, mas também, revivendo a esplêndida lição dos humanistas
bonense e Eborense, tiveram os eruditos notícia de novos manus- do quinhentos, o fundamento de uma formação intelectual que, por
critos de autores clássicos e de novas edições. A propósito de luga- intermédio dos autores clássicos, acomodados aos interesses religio-
res de Cícero em que aparece o nominativo Ei, afirmaram os autores sos, abrisse aos olhos do estudante os horizontes inatingíveis de uma
do Anti-Prólogo, sobre manuscritos, "que não há que fiar neles: cultura que se transformara no ideal de uma pedagogia acatada em
que ninguém pode saber se eles são genuínos ou viciados: que ainda todo o Ocidente.
que sejam antigos não há razão bastante para lhe darmos crédito;
pois achando-se entre si diversos já se não pode distinguir, qual
seja a verdadeira lição" 85 • Acerca das edições foram ainda os apo- 36. Idem, págs. 71/72.
37. Idem, pág. 110. O Anti-Prólogo Crítico e Apologético apareceu
com o nome de Manuel Mendés Muniz, que era guarda dos estudos públicos
34. Defensa do Novo Método, pág. 114. no Real Colégio de Santo Antão. A obra é atribuída ao Pe. Francisco Duarte.
Cf. Inocêncio, Dicionário Bibliográfico, vbs. "Manuel Mendes Muniz e Fran-
35. Defensa do Novo Método, pág. 71. cisco Duarte".

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Era este humanismo, despojado de ornamentos, essencialmente de Gramática La~ina foram transformadas, por força da situação
erudito, crítico e metódico, que a gramática da Congregação do criada com a expulsão dos jesuítas, nos princípios orientadores da
Oratório, ao simplificar as regras da sintaxe, procurava p~r ao al- política pombalina em relação aos estudos menores. :Em .nome da
cance dos estudiosos. Até então, o estudo do latim obngava os união cristã e da sociedade civil justificou o gabinete de D. José I
estudantes a grandes canseiras. O método alvarista exigia, para a a adoção de uma pedagogia destinada a substituir as tradicionais
sua perfeita inteligência, a multiplicação das glosas e comentários práticas por métodos mais condizentes com as razões de uma polí-
em tal número que a Verney causara pasmo 38 • E o judicioso Fran- tica que procurava, dentro da ordem cristã, alcançar os objetivos
cisco de Pina e de Melo poderia queixar-se dos sete anos perdidos !ia soc.j~dade civil em que os interesses seculares encontraram, pela
nas classes de latim, nas quais aprendeu talvez aquela necessidade primeira vez, quem os traduzisse em termos que melhor se compa-
que o levou a estudá-lo sem mestre 30 • · Os comentários à Arte do
deciam com o progresso da cultura e com os fins de uma ordem
Padre Alvarez por si sós eram suficientes para causar desânimo ao
civil consciente de seus direitos. Ao suprimir o ensino dos jesuítas,
mais perseverante dos estudantes. Desde as Curiosas Advertências,
não ignorou, sem dúvida, o governo o significado do dilema em
de Bartolomeu Rodrigues Chorro, as Anotações aos Gêneros e Pre-
que se lançou. Já se faziam sentir em outros países as reivindicações
téritos, as Anotações da Rudimenta Grammaticae, as Margens da
Sintaxe, de João Muniz Freire, até as Explicações Latinas, do Pe. que algumas vozes singulares erguiam na defesa dos interesses pro-
José Soares, o Prontuário, do Pe. Antonio Franco, e os quatro feticamente pressentidos de um ensino a serviço da vida paisana.
tomos da Arte Explicada, de João Moraes de Madureira Feijoo, é Todavia, não conheceu, em suas raízes remotas e em seus motivos
todo um desdobrar inacabável de glosas à Gramática do insigne profundos, o despotismo pombalino a perplexidade do dilema -
jesuíta. É compreensível que tão imensas dificuldades só servissem fé e império - porque a sua lógica foi apenas simples conseqüência
para afastar os estudantes da cogitação dos problemas mais eleva- das situações presentes, que a "experiência" das tentativas de reno-
dos da latinidade. vação cultural, pelos excessos reacionários que provocou, historica-
mente, justificava. A ordem civil pombalina, quando bem apreciada,
III na totalidade de seus aspectos, é tão distante do ideal ultramontano
como do cismontano: é um cosmos político que, à sombra do direito
As diretrizes e os problemas que emergiram das polêmicas civil e canônico vigentes, procura encontrar a equação legal e legí-
causadas pelo Verdadeiro Método de Estudar e pelo Novo Método tima que melhor corresponda às suas necessidades de sobrevivência.
38. "Quando entrei neste Reinos, e vi a quantidade de cartapácios e A criação das aulas régias de latim, grego e retórica, ilustra
artes que eram necessárias para estudar somente a Gramática, fiquei pasmado. muito bem o que dissemos. Enganar-se-ia o historiador que nela
F'alando com V. P. algumas vezes, me lembro que lhe toquei este ponto, e
que não lhe desagradaram as minhas reflexões sobre esta matéria. Sei que, visse a primeira ou uma das primeiras manifestações de ensino pla-
em outras onde se explica a Gramática de Manuel Alvares, também lhe acres- nejado e realizado por força exclusiva dos ideais de um programa ·
centam algum livrinho; mas tantos como em Portugal, nunca vi. As declina- de secularização das instituições educacionais. Os objetivos que
ções dos nomes e verbos estudam pela Gramática Latina; a esta se segue um conduziram a administração pombalina à criação das aulas :régiás
cartapácio português de rudimentos,· depois outro, para gêneros e pretéritos,
muito bem comprido; a este um de sintaxe, bem grande; depois um livro, a foram, ao contrário do que pensam os que se preocupam mais com
que chamam chorro; e outro, a que chamam prontuário, pelo qual se apren- a- aparência do que com a realidade, um imperativo da própria
dem os escólios de nomes e verbos; e não sei que mais há", Verdadeiro Método circunstância histórica. Desalojados os jesuítas de seus colégios, não
de Estudar, Carta segunda, ed. 1747, pág. 48; ed. A. Salgado Jr., vol. I, págs. poderia o governo deixar de suprir prontamente a enorme lacuna .
135/37. ,
39. Balança Intelectual, pág. 19. "Andei nas classes sete anos e sat
que se abrira na vida educacional portuguesa. Em substância, o
delas sem alguma notícia do latim; e esse pouco que sei dela me custou o Alvará de 28 de junho de 1759 não tem outro significado senão
insofrível trabalho de aprendê-la sem mestre, depois de alcançar a necessidade este: o de manter a continuidade de um trabalho pedagógico que
de conhecê-la". a expulsão dos jesuítas ameaçava comprometer.

78 \
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Neste alvará, em que se começam a compendiar os estragos No que se refere aos livros escolares, recomenda o alvará gra-
e impedimentos - para empregar a linguagem característica da máticas de Antonio Pereira de Figueiredo e de Antonio Felix Men-
Dedução Cronológica - causados pelos jesuítas na vida portuguesa, des, ao mesmo tempo que proíbe a Arte do Pe. Manoel Alvarez:
transparece claramente o cuidado de retornar as diretrizes de uma h/..'
"e todo aquele que usar na sua escola - diz o alvará da dita Arte -
tradição desaparecida com o advento do ensino da Companhia de será logo preso para ser castigado ao meu real arbítrio, e não po-
Jesus. O método para o ensino do latim, que, essencialmente, é o derá mais abrir classe nestes reinos e seus domínios". Juntamente
mesmo recomendado por Verney e pela Gramática da Congregação com a Arte do Pe. Alvares, são proibidos os livros dos comenta-
do Oratório, é expressamente nomeado no alvará como antigo. Este dores desta gramática: os de Antonio Franco, João Muniz Freire,
fato por si só ilustra o significado íntimo da concepção que presidiu José Soares e, especialmente, o comentário de Madureira e de todos
à reorganização das classes de latim, grego e retórica, demonstran- os demais cartapácios utilizados pelos professores. Finalmente, dis-
do o temeroso cuidado do governo ao afastar das providências régias põe o alvará que todos os professores gozarão dos privilégios de
qualquer suspeita de urna inovação, ainda que fosse na esfera de nobres, incorporados em direito comum e especialmente no Código,
problemas que só acidentalmente poderiam ferir os interesses da fé Título - De professoribus et medieis.
religiosa. Na lógica do gabinete de D. José I, somente a tradição Nas Instruções que acompanharam o Alvará de 28 de junho
e a experiência do passado têm força para justificar os atos admi- de 1759, transparece claramente o objetivo que norteou a reforma.
nistrativos. Quão distantes estavam estes homens das formas utópicas A preocupação básica é aí a de simplificar os estudos, de modo
do pensar político! Na instituição dos novos cursos, não foram eles que os alunos possam adquirir a ciência do latim com brevidade
buscar o modelo de outros povos mais adiantados, mas sim as e de uma forma que sirva de excitar em os que aprendem um vivo
diretrizes que a experiência da história portuguesa remota e dos fatos desejo de passarem às ciências maiores. O método de ensino deve
recentes parecia justificar. ser breve, claro e fácil sendo indispensável, portanto, que o latim
Depois de um preâmbulo em que se recapitulam episódios da seja estudado por intermédio da língua vernácula. "Todos os ho-
resistência oposta pelos portugueses aos jesuítas, determina o alvará mens sábios confessam que deve ser em vulgar o método para apren-
uma geral reforma, mediante a qual se restitua o método antigo, der os preceitos da gramática, pois não há maior absurdo que inten-
reduzido aos termos simples, claros e de maior facilidade, tal como tar aprender urna língua no mesmo idioma que se ignora" 40 • Men-
o praticam as nações polidas da Europa. Neste método, deverá o cionam as Instruções, expressamente, nesta passagem, os nomes de
professor ensinar, por intermédio da língua portuguesa, desde o Rollin, Larny e Walche. Os alunos se servirão das gramáticas de
nominativo até a construção inclusive, sem distinção de classes como Antonio Pereira de Figueiredo, enquanto os professores, ao lado
até agora se fez com reprovado e prejudicial erro de que não per- de outros livros, devem usar a Minerva de Francisco Sanches, a
tencendo a perfeição dos discípulos ao mestre de algumas das dife- fim de "suprirem na explicação dos discípulos os preceitos de que
rentes classes, se contentavam todos os ditos mestres de se encherem lhe tiver já dado urna sumária idéia o método abreviado por que
as obrigações enquanto ao tempo, exercitando-as perfunctoriamente devem aprender" 41 • E em hipótese alguma, entretanto, quando os
quanto aos estudos e aproveitamento dos discípulos. Por aí se vê alunos estiverem adiantados, permitirão os professores a consulta
I(
que, embora a reforma tenha sido determinada pela situação criada ,. dos livros condenados.
com a expulsão dos jesuítas, a ela não foram estranhos os propósitos De modo especial, insistem as. Instruções na utilidade do estudo
de uma política de qualidade, destinada a corrigir abusos que então _cia gramática portuguesa: "Para que os estudantes vão percebendo
se verificavam. :E: nesse sentido que o mesmo alvará cria o cargo com mais facilidade os princípios da gramática latina, é útil que
de diretor geral dos estudos, com amplas atribuições, e determina os professores lhes vão dando uma noção da portuguesa, advertin-
a prestação de exame para todos os professores. Além dessas provi-
dências, proíbe o alvará o ensino público. ou particular, sem licença 40. Instruções para os Professores de Gramática Latina, § 4.
do diretor geral dos estudos. 41. Idem, § 5.

80 81
do-lhes tudo aquilo, em que tem alguma analogia com a latina, e bém se recomenda com a autoridade de Quintiliano. Estas preocupa-
especialmente lhes ensinarão a distinguir os nomes, os verbos, e as ções de facilitar o estudo do latim, distribuindo metodicamente as
partículas, por que se podem dar a conhecer os casos" 42 • Somente matérias, de tal maneira que os elementos mais complexos se resol-
depois de conhecidos 'os preceitos gramaticais, permitirá o professor vam pela composição progressiva e integração dos princípios ele-
a ~eitura dos autores clássicos, tendo o cuidado, todavia, de dar mentares, são as mesmas que, nas Instruções, justificaram a proibi-
aos alunos trechos escolhidos e fáceis. Nesse sentido, recomenda a ção de dar, logo no início, temas aos alunos. Estes temas devem
Seleta de Heuzet, professor do Colégio de Beauvais. "Mas como constituir-se de histórias breves e máximas úteis aos bons costumes,
se não pode confiar em tais obras tanto como na dos Escritores que o professor dará ao aluno em dias alternados, para compor em
antigos que escreveram na sua própria língua; deve [o professor] casa e, somente uma vez por semana, a redação dos mesmos será
preferir a excelente coleção feita em Paris no ano de 1752 por v feita em classe.
Chompré para uso da mocidade cristã, que logo no primeiro tomo I
Bastante significativo porém foi o cuidado que teve o legislador
recebe de um autor (Suplício Severo) latino, puro, e católico, os de impedir a corrupção da língua latina. No início dos estudos,
princípios da história da religião em estilo claro e corrente" 48 • A recomenda o alvará, não deve o professor falar o latim nas classes,
virtude desta Seleta reside no fato de permitir, à medida que os alu- pois só desta forma evitar-se-ão os barbarismos que qualquer pessoa,
nos gradativamente vão percorrendo as suas páginas, passando dos ainda que erudita, naturalmente cometerá ao falar sobre qualquer
textos mais simples para os mais complexos, que se possam emen- assunto em uma língua morta. Todavia, nas classes mais adiantadas,
dar as expressões menos latinas, porventura encontradiças nas suas o professor poderá discorrer em latim sobre temas previamente
páginas iniciais, pelas mais puras de que se servem os escritores escolhidos, utilizando para isso Terêncio e Plauto, tais como se en-
mais categorizados. A outra virtude desta coleção consiste na possi- contram nas coleções e diálogos de Luiz Vives, na coleção de pala-
bilidade que ela oferece ao estudante de reconhecer nos trechos, vras familiares portuguesas e latinas, feita por Antonio Pereira de
metodicamente escolhidos, os preceitos gramaticais aprendidos nas Figueiredo e nos Exercícios da Língua Latina e Portuguesa, orga-
classes anteriores. A idéia da Seleta de Chompré já fora preconi- nizados pela Congregação do Oratório .
. zada por Rollin, Lama, Cellário e Walshio. De acordo com as
Instruções, esta Seleta deveria ser publicada para uso das escolas Recomendam as instruções, além das Seletas de Heuzet e de
portuguesas. Chompré e as gramáticas de Antonio Pereira de Figueiredo e Anto-
nio Felix Mendes, a Ortografia de Luiz Antonio Verney aos alunos,
Lembram ainda as Instruções, contra possíveis objeções, as e, aos professores, as obras de Cellário, Dãusqiiio, Aldo Manúcio,
vantagens de semelhante Seleta. Realmente poder-se-ia alegar que Schurtzfleischio - "todos, ou alguns deles" - e os Dicionários de
coleções de tal natureza não facilitavam uma perfeita notícia da Faciolati e Basílio Fabro. Tal como decidiram a respeito da Gra-
fábula e da história. Todavia, consiste o seu valor em fornecer aos mática do Pe. Alvarez e de seus comentadores, proíbem as Instruções
alunos grande número de termos e frases da língua e permitir-lhes, a Prosodia de Bento Pereira "pelo perigo que há de se imprimir logo
através dos textos, o conhecimento do modo mais prático de utili- nos primeiros anos a multidão de palavras bárbaras de que está
zá-los. O que, aliás, está perfeitamente de acordo com Quintiliano cheia"45 • . ,.J
(
"e muitos homens dos mais sábios" 44 • Dentro deste critério, o estudo
da poesia ficou reservado para a ocasião em que os alunos, depois Dp exame do alvará e de suas instruções~r:el>l:lltª ctªJ:ª111ente:
de terem conhecimento dos rudimentos da língua, estivessem em 1) que a reforma dos''esfíidos meno~~~ se caracteriza como um pro-
condições de compreender a poesia na sua beleza, o que aliás tam- grama destinado a preencher, no ensino português, a lacuna aberta
com a supressão das escolas jesuíticas determinada nesta lei régia;
42. Idem, § 6. 2) que a reforma, todavia, além de procurar suprir quantitativa-
43. Idem, § 8. O livro de Chompré é a Selecta Latina Sermonis Exem-
plaria.
44. Idem, § 9. 45. Idem, § 12.

82 83
No Alvará de 28 de junho de 1759 que, repitamos, foi deter-
mente a necessidade de classes e professores, preconiza a adoção minado pela supressão das escolas je.suíticas, e~contram?s apenas
A

1de umã--i)ülíiíca ae aevaÇao do ensino e, incliretamente, de secula- as diretrizes que emergiram das polemicas de Lmz Antomo y~rney
\ rização em maior escala e melhor planejamento do que o até então e Antonio Pereira de Figueiredo. Talvez não optasse a admi~Istra­
\.existente. Sinal expressivo desta política é a criação de um cargo r ção pelo Novo Método se ele não representas~e um fator d~stma~o
'dir0ta e exclusivamente subordinado à Coroa e o estabelecimento a abreviar e simplificar os percalços da aprend1z~gem do .lati:U· Nao
de exames para todos os candidatos ao ensino das Humanidades; é fora de propósito que Verney, Antonio Pereua d.e Figueiredo e
3) que a reforma, de acordo com a necessidade de criar nos alunos
0 próprio alvará insistam na necessidade de um ensmo que .reduza
um grande interesse pelo ingresso nos cursos maiores, visou a abre- 0 número de anos. O desenvolvimento dos estudos naturms, dos
viar os estudos, pela simplificação do método de aprendizagem do
---- ... ··-··············· quais o século XVIII, pelos seus filósofos mais ilustres, apr~end~u
latim·; 4) que, na ordem cultural, o método preconizado se orien- 0 significado e alcance, exigia - e isto nos p.arece que ate hoJe
tava no sentido de criar, nos estudantes, muito mais o gosto da não foi devidamente apreciado - um amadurecimento nos estudos,
latinidade, isto é, dos ideais da cultura clássica, do que o interesse de tal ordem que as inteligências, livres dos embara?os, d~ uma
pelo latim, como e enquanto língua indispensável aos estudos maio- cultura formalística, pudessem aplicar-se a assuntos -~ais utels., YI11
res. Este gosto era a expressão de uma consciência dos fatos preté- dos mais significati"os . aspectos qa cultura pedagogtca d.o seculo
ritos da vida portuguesa, porque representava um deliberado esforço XVII( ou ineihor, do iluminismo, é o seu esforço no sentld~ alta-
no sentido de ~viver-~ bela tradição humanista do quinhentismo, mente' moral, de fazer das artes, das ciências, da instruçao, da
que o advento das escolas jesuíticas ::---- de acordo ·com o pensa- cUltura enfim, um instrumento a serviço da felicidade e do progresso
~to-ê<?.§I{?~il_~)fugiiagem do alvará -.interrompera. dâ-humanidade. Este pragmatismo idealista não poderia compad:-
Se a conjuntura política impôs, ao gabinete de D. José I, a cer:se-com quaisquer propósitos que comprometessem, pelo excessi-
necessidade de uma reforma, a crise entre a tradição e a moder- vo apego a uma tradição ultrapassada e a um f?rmalismo destituído
nidade, em todos os setores por que se manifestou, deu-lhe o rumo de objetivos práticos, os fins de uma menta~Idad: nova, que ~s
inicial de uma política pedagógica que, se até agora se apresentou condições sócio-culturais revelavam. Nesta sltuaçao, o que :nais
· como um programa de recuperação de um ideal perdido, a partir valia era a ordenação desta mentalidade, de tal modo que as mte-
deste momento, foi aos poucos se enriquecendo, por força das con- Iigências pudessem, efetivamente, servir-se do ensino das escolas
dições advindas aa nova situação econômico-social e das reper- não como simples meio de acesso às Faculdades, mas como um
verdadeiro instrumento capaz de permitir-lhes o ingresso no mundo
cussões da ideologia iluminista na mentalidade portuguesa. O con-
flito verificado nos últimos decênios, entre a tradição consciente da cultura. Ao invés dos ornatos retóricos, do formalismo estéril da
e orgulhosa de seus direitos e o esforço inovador de algumas figuras dialética e das infindáveis questões gramaticais, a noção de uma
isoladas e grupos que nenhuma responsabilidade tiveram na situação verdade a ser buscada, seja pela experiência, seja pela razão, como
cultural então existente, foi o motivo que conduziu a administração um critério que os bons estudos deveriam, aos poucos, formar no
pombalina pelo caminho de uma nova orientação pedagógica. ~em espírito dos estudantes.
ferir os interesses_da fé, porque foi com os homens de maior e)(.:- A simplificação dos estudos gramaticais correspond~u ~ .este
pressão ~~;V:idã. religiosa portuguesa que D~ Jósé. contou para a imperativo pragmático, tão característico do pensamento ilumimsta.
realiZaÇão de-seu_sJjns políticos, a reforma poti-J.balina, moderada Interessava ao governo poder recrutar, entre os estudantes das esco-
nQs §~:U.S.. P!ilfl~Ql)_reg_alistas, visava a formar, na ordem civil, o las menores os candidatos aos postos civis e eclesiásticos de que I
cristão útil aos seus propóªitol). Não se vislumbravam ainda aqui as tanto neces;itava uma administração iluminada pela experiência do !
e
complexas delicadas situações nas quais o governo teve de lançar que se praticava nas nações estrangeiras: o teólogo, nas. dignidades
mão de todos os recursos teológicos, canônicos e jurídicos, a fim e benefícios da Igreja; o jurista, nos cargos da. m,a~Istratu~a; o
de fazer prevalecer os direitos que o ultramontanismo, acuado, lhe médico, nos lugares de físico, cirurgião-mor, comissano e duetor
recusava.
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da Medicina; o matemático, na função de cosmógrafo, engenheiro- abreviaturas. Só depois desta iniciação passariam à gramática e, logo
mor, professor de engenharia, artilharia ou náutica; o filósofo, nas a seguir, à construção. Nessa altura, os alunos utilizariam ou o
ocupações de intendentes da agricultura, do ouro, das fábricas e Evangelho de São Lucas, ou os Atos dos Apóstolos ou alguns dos
manufaturas. Compreende-se, portanto, que acima de quaisquer passos previamente escolhidos de Heródoto, de Xenofonte, de Lu-
outros motivos, a administração pombalina se tenha inclinado por ciano e de Teofrasto, tudo conforme ao que se acha "bem ordenado
um método . de gramática ql}e, longe de afastar os estudantes do na Coleção de Patuza, feita para uso da Academia Real de
il1tfl.f.e~Sf)~ pelos cargos civis, se prestava para trazer maior emulàção Nápoles" 47 • Recomendam ainda as Instruções que se evitem os livros
aos trabàlhos escõlares e incentivar as vocações pará os estudos bilíngües, a fim de que os alunos não traduzam o texto grego pelo
superiores. Que estes cuidados sé manifestem com tanta força quan- latino.
to as preocupações de uma renovação profunda dos estudos da Como livro, recomendam as Instruções o Epítome do Método
latinidade é coisa altamente significativa, pois este fato traduz, em de Port-Royal, traduzido em português, "onde tem as regras mais
substância, o objetivo conscientemente elaborado de aparelhar a breves, mais claras e mais sólidas,. que em outro qualquer" 48 • Os
inteligência dos estudantes para enfrentar, com seguro critério, os àlunos utilizarão o Dicionário Manual de Screvélio e os professores
problemas jurídicos e teológicos que porventura tivessem de resol- usarão dos dicionários "mais copiosos" de Escápula, Carlos Estevão,
ver. É este, a nosso ver, o significado da reforma consubstanciada Ubbo Enio e João Meúrcio, além do Método Grande de Port-
no Alvará de 28 de junho de 1759. Royal e 'das melhores edições de Demóstenes, Xenofonte e Tucí-
dides. Os àlunos farão traduções do grego para o latim e português,
mas não abusarão do exercício de composição. Aos mais adianta-
IV dos será permitida a leitura de Homero, por ser, segundo Fenelon,
"o melhor modelo de grande Poeta, útil ainda para a oratória e
O curso de latinirlade completava-se com o estudo do grego e para a fácil inteligência dos Escritores Sagrados" 4 D.
hebraico, este último, por ser destinado aos futuros estudantes de I
teologia, entregue às escolas religiosas. O ensino do grego, todavia, I Completados estes estudos, passarão os alunos às classes de
necessitava de restauração, desde que constituía matéria indispen- retórica. Na reforma dos estudos menores, o curso de eloqüência
sável aos estudos não só do teólogo, mas também do advogado, do ganhou uma amplitude que não conhecera nas escolas até então
artista e do médico. "O testamento novo, dizem as Instruções para existentes. São muito significativas as críticas que Verney, na Quin-
os Professores de Grego e Hebraico, e muita parte do velho é quase ta e Sexta Cartas do Verdadeiro Método de Estudar; faz à oratória
todo em grego. Os Santos Padres, e os concílios dos primeiros dez portuguesa, particularmente do púlpito. Demora-se ele na análise
séculos são em grego. Na Grécia tiveram origem as Leis Romanas; do mau gosto que imperava na elaboração dos sermões e panegí-
e aí se fizeram muitas Constituições, que andam no Corpo do Direito ricos, em todas as suas modalidades. O cuidado de Verney se mani-
Civil; em grego escreveram Hipócrates e Galeno. A filosofia, a elo- festava principalmente na crítica aos ornamentos do estilo, aos tro-
qüência, a poesia e a história, nasceram na Grécia" 40 • Atendendo pos e figuras de que tanto abusavam os oradores portugueses. "Os
à importância deste estudo, já previa o Alvará de 28 de junho que, rapazes que estudam nestes países, diz Verney, não sabem nada
depots de passado ano e meio do estabelecimento das aulas de de retórica, porque lha não ensinam. Os que são adiantados, e
grego, os alunos que as freqüentavam, além de ter um ano levado continuaram os estudos, sabem ainda menos, porque beberam prin-
em conta na Universidade, seriam preferidos em todos os concursos cípios tão contrários à boa razão, que ficam impossibilitados para
das quatro Faculdades da Universidade de Coimbra.
No estudo do grego deveriam os professores ensinar aos alunos
47. Idem, § 4.
a ler primeiro, distinguindo as figuras das letras como das sílabas e
48. Idem, ibidem.
46. Instruções para os Professores de Grego e Hebraico, § 1. 49. Idem, § 8.

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se emendarem. . . Falo somente do comum e falo fundado nas suas "nam si est ipsa bene dicendi scientia, finis ejus et summum est
obras, nas quais se reconhece a verdade de quanto digo. Estão todos bene dicere" 58 •
persuadidos que a eloqüência consiste na afetação e singularidade; Foi esta doutrina que prevaleceu nas Instruções para os Profes-
e, por esta regra, querendo ser eloqüentes, procuram de ser mui sores de Retórica: "É pois a retórica a arte mais necessária ao co-
a:etados nas palavras, mui singulares nas idéias, e mui fora de pro- mércio dos homens, e não só no púlpito e na advocacia como vul-
pósito nas aplicações"õo. garmente se imagina. Nos discursos familiares; nos negócios públi-
É esta lição de bom gosto que as Instruções para os professo- cos, nas disputas; em toda ocasião em que se trata com os homens,
res de retórica procuram inculcar, restabelecendo contra o artificia- é preciso conciliar-lhes a vontade; e fazer não só que entendam o
lismo gongórico da eloqüência a ordem de um discurso singelamente que se lhes diz; mas que se persuadam do que se lhes diz e o apro-
ornamentado. É preciso restabelecer esta arte, dizem as Instruções, vem" 54 • Transparecem aqui aquelas preocupações de pôr os estu-
"que o mau método dos estudos das letras humanas tinha reduzido dos a serviço das utilidades, afastando os prejuízos de uma concep-
nestes reinos à inteligência material dos trapos e figuras, que são ou ção destinada a formar nos letrados o gosto formalístico pelas coisas
a sua mínima parte, ou a que merece pouca consideração"51 • da vida pública e literária.
O que, todavia, melhor caracteriza o objetivo deste estudo é, A retórica deve ser ensinada, determinam as Instruções, pelos
sem dúvida, o conceito amplo que da eloqüência fizeram os legis- preceitos das Instituições de Quintiliano, adaptadas por Lamy ao
uso das escolas. Ao lado deste livro "admirável", recomendam-se
ladores. Já Verney, apoiado em Bernardo Lamy, se insurgira contra
ainda a Retórica de Aristóteles, as obras retóricas de Cícero, o Tra-
o restrito conceito da eloqüência como arte exclusiva do púlpito e
tado do Sublime de Longino e os livros dos modernos - Vóssio,
das cátedras. A sua idéia de retórica corresponde adequadamente
Rollin, Frei Luiz de Granada e outros autores de merecimento 55 •
à necessidade de uma utilização mais generalizada da eloqüência
Depois de explicar os preceitos com clareza e brevidade, passarão
não só na vida pública e eclesiástica, mas também nas múltiplas
os professores à análise das obras dos autores clássicos, servindo-se,
relações que os homens entre si mantêm no trato quotidiano. "Con-
nesse sentido, de orações escolhidas de Cícero e de Tito Lívio, de
fesso, diz Verney, que nos púlpitos e cadeiras faz a retórica gala
tal modo que os alunos se informem e distingam os três gêneros
de todos os seus ornamentos; mas não se limita neles; todo o lugar
de eloqüência. Explicará ainda o professor os diversos estilos das
é teatro para a retórica" 52• Doutrina esta, aliás, que não é estra- cartas, dos diálogos, da história, das obras didáticas, panegíricos,
nha ao pensamento do mestre da eloqüência, Quintiliano. Nas declamações etc., utilizando, neste sentido, "o excelente livro de
Instituições Oratóricas, Liv. I, § 15, discute o retórico latino as Heinécio intitulado Fundamenta Styli Cultiores" 56 •
definições que da matéria deram os mestres gregos e romanos e ter-
mina por admitir, contra a acepção restrita desses autores, o conceito 53. Quintiliano, De Institutione Oratorz'a, L. II, caput XV, § 38, in fine.
mais amplo da eloqüência, em função dos fins a que ela se destina: Cf. ed. de Henri Bornecque, Garnier, t. I, pág. 256.
54. Instruções, § 1.
55. Idem, § 4. Quintiliano, especialmente, é o autor cujos méritos são
encarecidos pelas Instruções. No Compêndio Histórico, Parte H, Cap. li, 34,
50. Verney, Verdadeiro Método de Estudar, Quinta Carta, ed. 1747, pág.
pág. 157, escreveram os membros da Junta de Providência Literária: "Proce-
104; ed. A. Salgado Jr., vol. ll, pág. 9. dendo por outra parte da má retórica, que se ensinava nas classes das escolas
51. Instruções para os Professores de Retórica, § 1. menores jesuíticas, onde se não davam os importantes preceitos desta Arte
52. Verney, ob. cit., Quinta Carta, ed. de 1747, pág. 102; ed. A. Salga- pelos livros de Quintiliano; mas sim pelos de Soares, de Pomey, e de outros
do Jr., vol. II, pág. 5. Confrontar o texto de Verney com o passo de La Rlzé- retóricos modernos da prejudicial sociedade dos mesmos denominados jesuítas,
thorique ou L'Art de Parler do Pe. Bernardo Lamy, transcrito em nota por A. os quais por nenhum princípio podiam emparelhar com aqueles, deixando-se a
Salgado Jr. Ver Verney, ob. cit., vol. !I, pág. 5. Nota: "Rien de si important cristalina fonte das obras daque~e mestre comum da eloqüência para se lhes
que de savoir persuader. C'est de quoi il s'agit dans le commerce du monde, darem a beber as regras dela em regatos já turbos, e inficionados, de que eles
Aussi rien de plus utile que la Rhétorique, et c'est lui donner des bornes trop não poderiam receber igual fruto".
étroites que de la renfermer dans le Barreau e dans les Chaires de nos Églises". 56. Idem, § 6.

88 89
A crítica e a filologia devem inspirar ao professor grandes cui- vavelmente que as conseqüências a que chegara não poderiam ser
dados. As preocupações por uma reforma dos fundamentos do es- as mesmas dos homens que, no governo português, há quase um
tudo da latinidade, tão significativas nas obras de Verney e de decênio, iniciaram a política de recuperação econômico-cultural des-
Antonio Pereira de Figueiredo, encontram aqui cautelas pedagógicas tinada a restituir à gente lusitana e grandeza pretérita. Na menta-
rlestinadas a amainar o possível entusiasmo que a crítica e a filologia lidade de Ribeiro Sanches, à situação de judeu cristianizado se so-
poderiam suscitar no espírito dos estudantes. Estas duas disciplinas mava a experiência lúcida de um "estrangeirado" que soubera colher
devem constituir "um estudo, que o professor há de trazer sempre nos livros e no convívio com povos diferentes e homens ilustres a
diante dos olhos. Mas na crítica se deve haver de sorte que, ins- lição que julgara mais útil aos portugueses. Dificilmente podería-
pirando somente um justo discernimento em os discípulos, lhes acau- mos compreender que 'Uma obra de tamanho alcance filosófico-polí-
tele todo o espírito de contradição, e maledicência" 57 • As compo- tico como as Cartas sobre a Educação da Mocidade, da qual se tirou
sições devem versar sobre narrações sucintas, em português e latim, apenas reduzidíssima edição de 50 exemplares, toda ela posta nas
sobre elogios das grandes figuras e sobre discursos no gênero de- mãos do embaixador português em Paris, pudesse encontrar eco num
liberativo e judicial, no que os alunos utilizarão os bons autores e, país cuja consciência não se libertara ainda, como não se libertou
particularmente, Cícero. Cuidará ainda o professor de fazer ver aos durante o período da administração pombalina, da censura dos tri-
alunos os seus erros, por intermédio do confronto destas composi- bunais sempre prontos a advertir nos escritos os primeiros sinais de
ções com o modelo utilizado. Nas disputas, zelará o professor pela uma "transigência" que ferisse, ainda que inadvertidamente, os inte-
civilidade que entre si devem guardar os disputantes. Finalmente, resses da fé ou do absolutismo. Embora não se conheçam documen-
deve o professor dar aos alunos "as melhores regras da poesia que tos que nos autorizem a admitir qualquer afinidade entre o pensa-
tanta união tem com a eloqüência, mostrando os exemplos dela em mento político iluminista das cartas de Ribeiro Sanches e a orienta-
Homero, Virgílio, Horácio e outros: sem contudo obrigar a fazer ção doutrinária do pombalismo, ainda que seja nos anos mais dra-
versos, senão àqueles em que conhecer gosto e gênio para os fazer" õs. máticos da disputa com os jesuítas, o certo é que estas cartas não
deixaram de ter repercussão, pois a criação do Colégio dos Nobres,
por elas preconizada, logo encontrou o firme apoio do gabinete de
v D. José I.
Ninguém melhor do que Ribeiro Sanches soube, no período
A reforma pombalina dos estudos menores, no seu significado
pombalino, justificar os direitos majestáticos da realeza e os inte-
social e político, encontrou em Antonio Nunes Ribeiro Sanches
resses da ordem civil concebida, não sem alguma dose de utopia,
não só o oráculo de suas intenções, como pretendeu Camilo 60 , mas como uma sociedade de homens na qual, invocando a divindade,
também o intérprete, talvez inconveniente, do plano de secularização soberano e súditos, num corpo civil e sagrado, fizessem um jura-
das escolas, então decretado. Quando Ribeiro Sanches entregou, em
mento de fidelidade.
Paris, ao Monsenhor Pedro da Costa de Almeida e Salema 'IJ(}, a sua
opinião pessoal sobre o Alvará de 28 de junho de 17 59, sabia pro- A propósito da extinção das aulas dos jesuítas e da criação das
classes régias, estende-se Ribeiro Sanches numa série de considera-
57. Idem, § 8.
ções destinadas a mostrar o significado da reforma instituída no
58. Idem, § 11. Alvará de 28 de junho de 1759 61 • Apoiado nas obras de Fleury, de
59. Camilo Castelo Branco, Perfil do Marquês de Pombal, 2.a ed., Porto,
Lopes e Cia., 1900, no Cap. "Oráculo do Marquês de Pombal", págs. 89 a 108
especialmente págs. 104 e segs. Cf. também em Noites de Insônia, o artigo 61. Maximiano Lemos, utilizando documentos por ele publicados na sua
intitulado "Oráculo do Marquês de Pombal". obra, Ribeiro Sanches, Porto, Eduardo Tavares Martins, 1911, indica como
60. Teófilo Braga, na História da Universidade de Coimbra, t. 111, afirma destinatário das Cartas sobre a Educação da Mocidade, na notícia bibliográ-
que as cartas de Ribeiro Sanches foram enviadas para o Principal D. Tomás fica que acompanha a edição de 1922, a Monsenhor Pedro da Costa de
de Almeida, diretor geral dos estudos; cf. Teófilo Braga, ob. cit., pág. 343. Almeida e Salema. Cf. Does. ns. 23 e 24, às págs. 345 e 346 da obra de

90 91
Barônio e de Joly, procurou o insigne médico justificar, contra as
alegações de direito, pelas quais aos bispos, enquanto fiadores dos do mestre de Aviz, em Coimbra, insinua, não sem cautela 66, o
bons costumes e mestres nos mistérios da religião, fora atribuída
médico ilustre que as duas leis mais irrefragáveis de qualquer Estado
a incumbência de ministrar o ensino, que aos reis cabia "decretar leis são: "Que a conservação do Estado civil é a primeira e principal
p<tra a educação dos seus leais súditos, não só nas escolas da puerí- lei" e "Que cada súdito está obrigado a obrar com os outros, como
cia; mas também em todas aquelas onde aprende a mocidade" 62 • ele quisera que obrassem com ele" 67 . Desde que se fez este con-
Esta faculdade pareceu a Ribeiro Sanches a expressão de um legí- sentimento mútuo, ou pacto, ficou "na mão do soberano aquele
timo direito do governo secular e a indagação das origens do poder poder dos súditos para obrar .ações exteri~res; ficou à ~ua disposi-
que sobre as escolas tiveram os Pontífices e os bispos, matéria da ção regrá-las por leis, prevemr que se nao cometesse msu!to que
alterasse ou corrompesse a união e harmonia que deve remar no
maior importância. "Porque até agora não achei autor que tratasse
dela como necessita o Jus da Majestade" 63 . Embora nos pará- Estado civil; ficou no seu poder castigá-Ias como achasse convenien-
grafos iniciais de suas cartas invoque o autor, constantemente, a te para a sua conservação" 68 . Nesta o~d~nação racional da .ordem
autoridade dos mestres da história eclesiástica e canônica, procuran- política, ao súdito se reservaram os direitos: 1) de propnedade,
do mostrar a cristianização progressiva das antigas escolas roma- com obiigação de entregar ao Estado parte de suas rendas.; 2) da
nas, agora, nesta altura de suas análises, como um iluminista, lança "liberdade interior de querer, não querer, amar, aborrecer, Julgar ou
os fundamentos de uma ordem civil que não repousa sobre outros não julgar, ver, ou não ver: que são as ações interiores que passam
princípios que não os da razão. No estado civil, o seu principal fun- dentro de nós, e que se não mostram por ações exteriores, que todo
damento é o consentimento dos povos em obedecer e servir ao sobe- o mundo possa observar visivelmente" 69 . Dos princípios de um
rano64. . "Mas continua Ribeiro Sanches, o que constitui ser o estado político assim constituído decorrem a igualdade de todos os
súditos e a subordinação por eles devi'd a aos magistra
. d os 70 . c·t
I an-
Estado um ajuntamento ou corpo civil e sagrado é o jw·amento de
fidelidade mútuo, tácita ou declaradamente. No ato desta conven- do Platão assinala a propósito Ribeiro Sanches que "a maior ruína
ção invocam os contratantes deste pacto ou contrato, a Divindade de um E~tado é que entre eles (os súditos) haja diversidade, uns
com obrigação de obedecer, e outros absolutos; uns sujeitos às jus-
que mais veneram por testemunha e caução, que hão de executar
tiças, e outros sem nenhum Império" 71 • Como são complexos e
o que prometem; sujeitando-se ao prêmio ou castigo, conforme e
múltiplos os encargos que pelo jus da majestade têm os soberanos,
cumprirem" 61'. Lembrando os antecedentes portugueses que leva-
impõe-se uma divisão do trabalho, na qual este jus, sem perda de sua
ram à aclamação de D. Afonso Henriques, no campo de Ourique, e
legitimidade, é delegado aos que, no exercício de funções detenni-
nadas cumprem, numa esfera mais restrita, os deveres de que foram
Maximiano Lemos, e também a "Notícia bibliográfica", in Cartas sobre a incum'bidos 72 • Somente o imperativo do direito majestático justifica
Educação da Mocidade, nova ed. revista e prefaciada pelo Dr. Maximiano a distinção da nobreza e da fidalguia, porque, independentemente da
Lemos, Coimbra, Imp. da Universidade, 1922, págs. V a XV. ascendência e da geração, "todos os súditos pelo juramento de fide-
62. Cartas sobre a Educação da Mocidade, ed. M. Lemos, pág. 17. lidade são iguais" 73 .
63. Idem, ibidem.
64. Idem, págs. 17/18.
66. "Não se ofenderá, V. Ilustríssima, deste atributo, que dou aos Mo-
65. Idem, pág. 18. Deste contrato resultam os três princípios seguintes: narcas cristãos católicos", diz cautelosamente Ribeiro Sanches ao Monsenhor
"Daqui vem, infere Ribeiro Sanches, que todos os Estados Soberanos estão Salema; cf. ob. cit., pág. 20.
formados por invocação daquela Divindade, que mais veneravam os Povos 67. Idem, ibidem.
e os Soberanos (Concílio de Trento, Sess. XXV. de Reformat., Cap. II). 68. Idem, pág. 21.
Daqui vem chamar-se o Estado, Sacrossanto, e causa sagrada. 69. Idem, ibidem.
Daqui procede que nenhum Estado civil pode formar-se, nem existir 70. Idem, págs. 21/22.
em seu vigor, sem uma Religião, e sem observar-se o sagrado juramento". 71. Idem, pág. 22.
Cf. ob. c loc. cit. 72. Idem, ibidem.
73. Idem, ibidem.
92
93
:É dentro desta ordem, e em nome dela, que Ribeiro Sanches concedidos à nobreza e ao clero serviam unicamente para afastar o
vê, no Alvará de 28 de junho de 1759, o primeh·o esforço no sen- vilão dos seus trabalhos, pois pelo estudo poderiam seus filhos, sem
tido da secularização das escolas portuguesas. Pareceu-lhe que despesas, alcançar no estado eclesiástico honrarias e posições que o
somente um ensino, dirigido e mantido pelo poder secular, poderia ~~­ amanho da terra ou o ingrato exercício dos ofícios mecânicos nunca
corresponder cabalmente aos fins da ordem civil. Nos parágrafos ' permitiriam obter 7 B. As vantagens que a vida monástica conce-
iniciais de suas cartas, procura o autor demonstrar "que toda a edu- dia eram tão grandes que a própria nação, governada por leis no-
cação que teve a mocidade portuguesa, desde que no reino se fun- civas aos seus interesses70 , sentia depauperarem-se-lhe as energias,
daram escolas e universidades, foi meramente eclesiástica, ou con- vendo os seus filhos procurarem, no refúgio dos claustros, a vida
forme os ditames dos eclesiástico; e que todo o seu fim foi, ou que sem as inquietações do século lhes traria o sustento e, talvez,
para conservar o estado eclesiástico, ou para aumentá-lo" 74 • Com- as regalias dos cargos públicos mais elevados. Coerente com a
preendendo bem o significado das novas tarefas que a vida social ideologia burguesa, de que foi, na época, na língua lusitana, um dos
e política da época impunha como imperativo da conservação e do mais expressivos intérpretes, e com a lembrança das perseguições
progresso da ordem civil, procura Ribeiro Sanches, em diversos passos e humilhações sofridas pelos cristãos novos, Ribeiro Sanches ordena
da sua obra, demonstrar os inconvenientes advindos do fato de esta- razões e invoca autoridades para demonstrar os princípios que de-
rem as escolas sob a tutela do poder religioso ou de serem reguladas veriam prevalecer na racional reforma de uma ordem civil desti-
pelos princípios que mais condiziam com os interesses da Religião nada a reforçar o direito majestático e, conseqüentemente, a disci-
do que com os do Estado. Nada ilustra melhor esta afirmação do plinar as aspirações seculares da sociedade, de tal modo que o es-
que a situação de um estudante que ingressa na Universidade para tudo correspondesse decidamente aos fins do trabalho, do comércio
estudar leis. Depois de quatro anos de estudo, examinando as opor- e da indústria.
tunidades de vida que, terminado o curso, encontrará, percebe logo No pensamento político de Ribeiro Sanches a monarquia por-
que mais útil lhe será diplomar-se no curso de cânones, pois as tuguesa fora até então "fundada e conservada c01n a espada" 80 •
suas conclusões neste lhe darão direito aos cargos de magistrado, aos Este regime, a seu ver, correspondeu às necessidades do período das
benefícios das ordens militares e dos cabidos, mediante concurso, aos conquistas, das lutas que se fizeram necessárias à instituição e con-
lugares de pregador, vigário geral, provisor, promotor de algum bis- solidação do reino, mas não poderia satisfazer mais às condições
pado e, finalmente, de advogado 75 • Isto significa, para Ribeiro
decorrentes do imperativo de conservação das colônias e do pro-
Sanches, que a "Universidade é Eclesiástica; aumentar o número dos
gresso econômico da monarquia. No lugar da monarquia da espada
canonistas é servi-la, e aumentá-la. O Estado serve-se deles porque
era preciso pôr o Estado do trabalho e da indústria: "o Estado que
todas as suas leis estão restritas pelas Leis do Decreto, das Decre-
tem terras e largos domínios, diz na sua obra Ribeiro Sanches, e
tais, e mesmo das Clementinas" 76 • Todavia, o que caracteriza ainda
que deles há de tirar a sua conservação, necessita decretar leis para
mais o predomínio dos interesses religiosos sobre os civis, são as
inquirições de limpeza de sangue a que estavam sujeitos todos os promover o trabalho e a indústria, e derrogar ou ab-rogar aquelas
graduados na Universidade que pretendessem alcançar um cargo
público 77. 78. "Em Portugal, diz Ribeiro Sanches, todo o que não nasceu nobre, ou
Não é apenas o ensino maior, na opinião do discípulo de Boer- não é eclesiástico, deseja a vir a ser membro desses dois corpos respeitáveis,
adonde a conveniência, a honra, a distinção e o proveito têm ali o seu assento:
haave, que está a serviço dos interesses e dos fins da monarquia o lavrador, o obreiro, o oficial trabalham dia e noite para fazerem um clérigo,
religiosa. No entender de Ribeiro Sanches a força dos privilégios um abade, e um cavalheiro do hábito de Cristo; uma viúva e três ou quatro
filhas estão fiando dia e noite para meterem um filho frade, pela honra que
74. Idem, pág. 2. dará à família, e porque vindó a ser pregador ou provincial a estabelecerá
75. Idem, pág. 66. toda com honra e cabedais." Cf. ob, cit., págs. 85/6.
76. Idem, ibidem. 79. Ver, nesse sentido, Ribeiro Sanches, ob. cit., págs, 83 e segs.
77. Idem, págs. 139/40. 80. Idem, pág. 80.

94 95
que se estabeleceram no tempo que adquiriam com a espada" 81 • As Cartas sobre a Educação da Mocidade 1 pelo arrojo da sua
É mister, portanto, criar a educação de que necessita o novo Estado. concepção, representam, sem dúvida, um elemento fundamental à
"Nenhuma coisa, observa Ribeiro Sanches, faz os homens mais compreensão do pombalismo. A doutrina política nelas desenvolvida
humanos e mais dóceis do que o interesse: o comércio traz consigo traduz, em muitos dos seus passos, opiniões que coincidem com as
a justiça, a ordem e a liberdade: e estes eram os meios e o são ainda dos homens que, na época, zelavam pelo destino da nação lusitana.
de conservar as conquistas que temos. Agricultura e comércio são O fortalecimento do poder real, o galicanismo doutrinário, a recupe-
as mais indissolúveis forças para sustentar e conservar o conquis- ração econômica do reino, o antijesuitismo, são temas que se encon-
tado: mas esta vida de lavradores, de oficiais, de mercadores, de tram com razões políticas na essência das ações do gabinete de D.
marinheiros e soldados não se conserva com privilégios dos fidal- José I. Todavia, em muitos aspectos, Ribeiro Sanches, como um
gos, com imunidades e jurisdição civil dos eclesiásticos, com a es- autêntico estrangeirado, foi além do que pretenderam os teóricos
cravidão e a intolerância civil" 82 • Conseqüente com esta concep- do pombalismo. Suas críticas à intolerância religiosa e suas idéias
ção, desenvolve o autor do Método para Estudar a Medicina um a respeito de religião estão muito mais próximas da concepção teo-
sistema no qual se fazem sentir, como preocupação predominante, lógica dos iluministas do que do teologismo regalista de Antonio
os cuidados de uma reforma orientada no sentido de reajustar a Pereira de Figueiredo. Não se poderá, entretanto, apreciar devida-
escola às condições novas da vida social e política. As diretrizes mente o significado do pombalismo sem ter presentes as sugestões
que recomenda - o ensino de um catecismo cívico, das quatro ope- inúmeras que Pombal e seus homens encontraram neste livro e trans-
rações e das sumárias regras para escrituração das contas, tudo isto formaram em normas de ação. Se Pombal foi, como pretende Anto-
nas escolas de ler e escrever, assim como a redução do número de nio Sérgio, o homem de ação da elite estrangeira 84, Ribeiro Sanches
classes de latim e humanidades, a criação de um colégio para a foi talvez quem melhor, no aspecto político, indicou as diretrizes da
nobreza e a reforma da Universidade, que é sugerida nestas pági- ideologia iluminista que a situação portuguesa reclamava.
nas - demonstram, de maneira inequívoca, os fins regalistas por O programa pedagógico de Verney e o Novo Método de Gra-
que disfarçava sua concepção iluminista e burguesa do Estado e da mática Latina dos padres do Oratório forneceram as bases sobre as
educação. Ao Estado, que tem no comércio e na indústria o fun- quais se fez a Reforma dos estudos de 1759. A simplificação dos
damento de sua conservação e progresso, deve corresponder necessa- estudos do latim, a renovação do ensino da latinidade e da retórica,
riamente um plano de educação, por intermédio do qual serão for- em que pesem os méritos dos esforços precursores de Verney e dos
mados os homens capazes de conduzir as forças do trabalho para os oratorianos, não se integrariam adequadamente na paisagem cultural
objetivos que melhor satisfaçam o interesse do país. Não se conser- lusitana se lhes faltassem as oportunas sugestões de Antonio Ribeiro
va o Estado, diz Ribeiro Sanches, "com a educação de saber ler e Sanches. O objetivo do insigne médico não era indicar as melhores
escrever, as quatro regras da aritmética, latim e a língua pátria, e instruções para o estudo das línguas latina e grega e das humani-
por toda a ciência do catecismo da doutrina cristã; não se conserva dades mas "somente de mostrar qual deve ser o fim dessas escolas;
como (sic) ócio, dissolução, montar a cavalo, jogar a espada preta, como devem ser dirigidas para serem de utilidade ao Estado" 8 ü. E
e ir à caça: é necessária já outra educação, porque já o Estado tem seus conselhos, ·como veremos, não deixaram de ser ouvidos. Muitos
maior necessidade de súditos instruídos em outros conhecimentos: deles constituem, sem dúvida, elementos preciosos para a compreen-
já não necessita em todos eles aquele ânimo altivo, guerreiro, aspi- são adequada das medidas postas em execução pelo diretor geral dos
rando sempre a ser nobre e distinguido, até ser cavaleiro ou ecle- estudos, D. Tomaz de Almeida.
siástico" 83 •

81. Idem, pág. 86.


-I 84. Antonio Sérgio, História de Portugal, trad. de Juan Moneva y Puyol,
82. Idem, pág. 100. Barcelona-Buenos Aires, Labor, 1929, pág. 156.
83. Idem, págs. 100/1. 85. Cartas para a Educação da Mocidade, pág. 124.

96 97
Capítulo 111

O Desenvolvimento da
Reforma dos Estudos
Menores
I - A Reforma de 1759 e as escolas jesuíticas. As razões econômicas
que influíram na política pombalina. O início da questão jesuítica. As
instruções a Mendonça Furtado. Secularização das Missões e liberdade dos
bulias. li - O ensino na Companhia de Jesus. As escolas jesuíticas em
Portugal e no Brasil. A organização do ensino da Companhia. A situa-
ção dos estudos na Universidade de Évora, nas vésperas da reforma pom-
balina. I I I - Desenvolvimento da Reforma de 1759. As aulas régias em
Lisboa, Coimbra, Évora e Porto. Prisão de professores e apreensão de
livros. Os relatórios anuais do Diretor-geral dos estudos. A administra-
tração dos estudos e a Real Mesa Censória. O subsídio literário. O plano
de 1772. VI- As reformas dos estudos menores no Brasil. Os primei-
ros professores régios. O ensino em Pemambuco. As aulas régias de·
acordo com o plano de 1772. O ensino na Bahia no fim do século XVIII.
V - Quantidade ou qualidade? O ensino da filosofia e da retórica. O
sentido da reforma.

A Reforma dos estudos de 1759, nos seus aspectos mais paten-


tes, foi uma simples conseqüência da expulsão dos jesuítas do reino
e dos domínios portugueses. Não são as razões indicadas no alvará,
por si sós, que justificam esta afirmação. O trabalho missionário dos
jesuítas foi de tal alcance que nem mesmo o mais intolerante dos
historiadores adversos à Companhia de Jesus poderia deixar de reco-

99
Os motivos da ação de Pombal e dos homens que ao seu lado
nhecer os seus benefícios. A obra dos jesuítas, seja ela de simples
participaram das responsabilidades do poder encontram no fato eco-
catequese, de instrução da população analfabeta ou de educação, se
nômico o denominador comum que é quase a razão de ser dos atos
apresenta com tal significado e com tão profundo alcance que seria
pelos quais se fez sentir o pensamento absolutista do rei e de seus
absurdo subestimar os efeitos advindos da reforma pombalina do <t'
áulicos. A idéia de pôr o reinado português em condições econômi-
ensino menor. Aliás, a precipitação com que resolveu o gabinete I
I <:as tais que lhe permitissem competir com as nações estrangeiras é
de D. José I os assuntos referentes ao restabelecimento das escolas
talvez a mais forte das razões a justificar o absolutismo do consulado
por si só autoriza a opinião segundo a qual, ainda que fossem me-
pombalino. Não nos devemos esquecer que, na época, Portugal, mal
lhores as suas intenções, não avaliou o governo a força dos protestos saído das condições que lhe impusera o domínio espanhol, lutava
dos povos que, certa ou erradamente, encontravam nas escolas da contra a escassez de homens, quantitativa e qualitativamente, que
Companhia de Jesus o refúgio benfazejo onde poderiam seus filhos pudessem representar, sobranceira e honradamente, nas salas pacífi-
receber, com o ensino, a dignidade das posições na administração cas da diplomacia ou nos sangrentos campos de batalha, os brios
civil e eclesiástica. da gente lusitana. Nunca foram estranhos ao pensamento de Pombal
Certamente, as providências pombalinas, na sua finalidade, e de seus homens os malefícios decorrentes de uma tutela política
adiantavam-se de muito às condições econômico-sociais da vida por- que envergonhava aos que, no estrangeiro, exerciam a função diplo-
tuguesa. Se a administração pombalina se transformou, aos olhos mática de delegados do pensamento real. Como estrangeirado que
da historiografia posterior liberal e extremada, isto se deve, sobre- conhecera as mundanidades de Londres, fria e calculista no seu co-
tudo, ao fato de os historiadores encontrarem, na legislação de 1750 mércio, e independente na sua fé, e Viena folgazã e irriquieta, Pom-
a 1777, o símbolo de uma conquista que julgaram ser o remédio bal, dentro da larga experiência de um homem via]· ado não ignorou
das contradições políticas lusitanas. Os problemas que se resolveram talvez, os males que' afligiam, por força do excessivo ' desenvolvi-'
no reinado de D. José I, tão múltiplos e aparentemente contraditó-

--
mento do poder religioso, a nação portuguesa. Outros estrangei-
rios, demonstram, sobretudo, que, nesta administração, prevaleceram rados como Pombal, sentiram, igualmente, por experiência própria,
os interesses de uma política destinada a pôr o reino e os domínios o problema.
numa situação econômica capaz de competir com as potências estran-
geiras. Não se pode apreciar devidamente a figura de Pombal, e Já conhecemos o pensamento de D. Luiz da Cunha no Testa-
dos homens que seguiram as suas diretrizes, sem avaliar, nos seus mento Político, a propósito da força de que gozavam os clérigos e
méritos intrínsecos, o alcance do programa econômico a que se pro- das imunidades que o direito vigente lhes garantia. Portugal, "re-
pôs o famigerado cônsul da ordem josefina. Embora ultimamente gião espiritual da Contra-Reforma" 1 , dificilmente poderia, sem relu-
melhores luzes tenham surgido sobre os aspectos da política econô- tância, aburguesar-se nos seus processos ideológicos e políticos. Na-
mica pombalina, é melancólico verificar que, até agora, nenhum ção de conquistadores, que se atirou em empreendimentos para os
trabalho surgiu que examinasse, nas condições políticas, econômicas quais lhe faltava a substância humana (no sentido quantitativo, está
e ideológicas específicas do século XVIII, os problemas com que visto) indispensável à adequada exploração das conquistas, Portugal
se defrontaram as intenções, elevadas nos seus objetivos, do governo se transformou no fortim avançado de uma cruzada missionária no
' '
de D. José I. A história portuguesa deste período, como de resto qual os interesses religiosos erigiram-se como expressão de uma polí-
dos reinados posteriores, até os nossos dias, não pode ser apreciada tica administrativa que, se conservava o império, impedia, entre-
exclusivamente em função dos dados da economia interna do país e tanto, o seu progresso. Do ponto de vista econômico, o governo
dos domínios que lhe serviam. A administração do Marquês de pombalino foi uma tentativa destinada a mobilizar as energias huma-
Pombal ensaiou um programa econômico, de teor monopolista, des- nas a fim de conduzi-las a um estado de progresso que favorecesse
tinado a fomentar o progresso do reinado por intermédio da acumu-
lação de capitais das pessoas que com estes monopólios colheram ,I 1. Na expressiva frase do Prof. Joaquim de Carvalho; cf. Introdução ao
as vantagens e os privilégios dos empreendimentos do comércio ultra- Ensaio Filosófico sobre o Entendimento Humano, cit., pág. 26.
marino.
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100
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aos interesses do país. Admitida esta interpretação, será fácil com- de fazer das missões religiosas fontes de um comerc1o que pudesse
preender no seu sentido íntimo, a luta que durante mais de uma favorecer vantajosamente o progresso do reinado; a segunda decor-
década o gabinete de D. José I manteve com a Companhia de Jesus. reu das vicissitudes advindas do cumprimento do Tratado de Limites
À inspiração que lhe forneceram os estrangeirados e à experiência inspirado pela clarividência política de Alexandre de Gusmão. Não
pessoal de Pombal nas cortes estrangeiras, somaram-se as condições será absurdo afirmar que, num como noutro aspecto desta questão,
peculiaríssimas que a atitude dos jesuítas lhe proporcionou ao resis- a administração pombalina procurou concretizar as diretrizes que
tirem aos planos econômicos de secularização de suas missões. melhor condiziam com o programa político-econômico em que se
Pombal - e o mesmo poderíamos dizer de seus homens - empenhava o governo. Nas Instruções Secretas de Diogo de Men-
não teve nenhum propósito sistemático previamente estabelecido de donça Corte Real transpareciam claramente as intenções do governo
combater os jesuítas:!. Sua doutrina, se é que poderíamos falar em recém-constituído.
termos de individuação de responsabilidade, constitui apenas a ex- "Se encontrardes", dizia o secretário do Ultramar, "nos regula-
pressão de uma vaga e quase genérica reivindicação de portugueses res e pessoas eclesiásticas, alguma dificuldade sobre a mal entendida
"iluminados" pelo que se praticava nas nações estrangeiras. Não lhe escravidão, como também no estabelecimento destes a jornais, para
foram estranhas as preocupações da secularização dos empreendi- a cultura de suas terras, por não encontrarem neste novo método
mentos missionários, porque, como a tantos outros europeus da tantas utilidades como no que até agora praticaram, os persuadireis
época e mesmo do século posterior, pareceu-lhe que as religiões, da minha parte a que sejam os primeiros nesta execução das minhas
pelos seus cabedais, constituíam um fator a pesar desfavoravelmente reais ordens porque os seus estabelecimentos, de todas ou da maior
no equilíbrio das balanças comerciais que faziam o progresso dos parte das fazendas que possuem, é contra a forma da disposição da
povos. Seus objetivos econômicos, portanto, não visam a ofender lei do reino, e poderei dispor das mesmas terras em execução da
os interesses de rima religião particular. Eram, antes, o objetivo dita lei, quando entenda que a frouxidão e tolerância que tem havido
comum dos que, cientes das condições em que se achavam o reino nesta matéria até serve de embaraço ao principal objeto, para se
e domínios portugueses, viam na atenuação dos privilégios de que mandarem a esse estado as pessoas eclesiásticas" 3 • Derrogando dis-
gozavam as ordens religiosas o remédio eficaz de uma política desti- posições de direito vigente, esta instrução secreta de 1751 traduzia
nada a fazer de Portugal menos uma nação conquistadora e missio- um pensamento cuja apreciação tem sido até hoje objeto de inter-
nária do que uma nação conservadora de suas conquistas. O que, pretações que mal disfarçam as parcialidades com que se empenham
aliás, estava perfeitamente de acordo com o despotismo esclarecido alguns historiadores na explicação dos fatos referentes ao consulado
da época. pombalino. Se, entretanto, procurarmos os motivos alegados pelos
O antijesuitismo de Pombal, melhor diríamos, do gabinete de homens do reinado de D. José I, facilmente descobriremos as razões
D. José I, foi mais uma imposição das circunstâncias do que a econômicas que, reforçadas pela legislação mal cumprida dos reis
conseqüência de um programa preestabelecido. Duas foram, entre anteriores, conduziram o governo recém-constituído à adoção de
outras inúmeras, as questões que determinaram o denominado ódio uma diretriz que visava a facilitar à nação os meios mais propícios
de Pombal aos jesuítas: a primeira delas foi o seu plano de liber- de seu progresso. Não seria muito difícil admitir que, na época,
tação dos índios, ao qual estava indissoluvelmente ligada a intenção a escravidão fosse um regime incompatível com o comércio e a
indústria então na fase de seu primeiro e esperançoso impulso. O
português Ribeiro Sanches, é verdade que em data muito posterior
2. "Convém desfazer aqui a idéia, geralmente admitida, de ter Carvalho a essas instruções, traduzindo um estado de espírito comum aos
entrado para .o ministério com opinião formada contra os jesuítas, e já maqui-
nando os projetos, que haviam de terminar pela expulsão deles". Cf. J. Lúcio homens ilustrados das nações européias, condenou como imprópria
de ~zeved~, Os Jesuítas no Grão-Pará, suas Missões e a Colonização, 2.a ed.
revista, COimbra, Imp. da Universidade, 1930, pág. 283. Ver também: Antonio 3. Instruções Régias Pi:tblicas e Secretas para Francisco Xavier de Men-
Ferrão, O Marquês de Pombal e a Expulsão dos Jesuítas (1759) Coimbra donça, capitão-general do Estado do Pará e Maranhão, § 13, in Apêndice de
Imp. da Univçrªiçl11de1 1932, ' ' Os Jesuítas no Grão-Pará, cit., págs. 419/20.

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aos interesses do Estado a manutenção de tão degradante regime 41 das atividades dos jesuítas no Grão-Pará, examinou arquivos brasi-
Sebastião de Carvalho e Melo e D. Luiz da Cunha não seriam dife- leiros e portugueses, não teve dúvidas de afirmar que a Companhia
rentes neste sentir. O contacto com a vida das cortes européias de Jesus teve, nas províncias do norte, não só um caráter coloni-
seria suficiente para lhes mostrar a melhor solução que as condi- zador mas também mercantilista 0 • Sem indagar até que ponto é
ções portuguesas reclamavam. O "liberalismo" pombalino, nesse razoável a opinião do ilustre historiador no que diz respeito ao
sentido, foi, mais do que a expressão de uma filosofia humanitária, mercantilismo dos inacianos, não resta dúvida que, no Brasil, os
o resultado de um cálculo burguês, cujas razões se medem exclusi- padres, ao trabalho apostatar da catequese, pelas imposições do
vamente pelo equilíbrio almejado da balança comercial. meio, juntaram os objetivos colonizadores da conquista de um ter-
Foram estas razões que também prevaleceram na política de ritório até então configurado na imprecisa cartografia dos desbra-
secularização dos bens eclesiásticos que Pombal e seus homens ten- vadores do sertão. "Os jesuítas", diz o insuspeito Pe. Serafim Leite,
taram realizar, política esta que, por força das circunstâncias, de "pelas condições particulares da América, não puderam ser o que
geral que era se transformou num programa particular de reivindi- foram na Ásia, apenas missionários: foram também colonizado-
cação regalista contra os jesuítas e os seus cabedais. Nas Instru- res" 7 • Enquanto colonizadores, sua obra avultou de tal modo que
ções Secretas, já mencionadas, que Francisco Xavier de Mendonça, os historiadores brasileiros, a cada passo, encontram, na sua inves-
irmão de Sebastião de Carvalho e Melo, trouxera para o Brasil, tigação, os vestígios de uma obra de colonização missionária quase
aparecem os propósitos da política que, a nosso ver, constituem a tão importante quanto a obra do pioneirismo bandeirante. Mas,
razão constante dos empreendimentos ideológicos do pombalismo: por isso mesmo, este trabalho de colonização, pelos seus privilégios,
"Como - dizem as Instruções Régias - à minha real notícia tem não podia deixar de contrariar os interesses dos que, sem favores e
chegado o excessivo poder, que têm nesse Estado os eclesiásticos regalias de ordem pecuniária, trabalhavam no amanho da terra, na
principalmente no domínio temporal nas suas aldeias, tornareis a~ mineração, ou na incipiente indústria das manufaturas. Num país
informaçõ.es necessárias, aconselhando-vos com o bispo do Pará, que conhecera, até então, somente o regime econômico das corpo-
que vos mstrua com a verdade, a qual dele confio, por ter boa rações e que mal ensaiava as fórmulas de uma economia de teor
opinião d~ sua prudência e letras, e pela prática que já tem do país, monopolista, não seria de estranhar que uma organização eficiente
para me mformardes se será mais conveniente ficarem os eclesiásti- na sua maneira de agir como a Companhia de Jesus se tornasse o
cos somente com o domínio espiritual, dando-se côngruas por conta alvo predileto de um governo que se propusera realizar a recupe-
da minha real fazenda para cujo fim deve-se considerar o haver ração econômica por intermédio de companhias que, não sendo de
quem cultive as mesmas terras, de que fareis todo o exame, para Cristo, como pretendia num sermão significativo o Pe. Bellester,
me informardes, averiguando também a verdade do fato, a respeito visavam apenas ao lucro particular que enriquece as pessoas que
do mesmo poder excessivo e grandes cabedais dos regulares" r;. dela fazem parte e, talvez, os governos que as instituem.
Estas Instruções por si sós demonstram, satisfatoriamente, os propó- Não poderiam os homens da administração de D. José I subes-
sitos de secularização das missões religiosas e desmentem quaisquer timar o valor da organização jesuítica como empreendimento coloni-
interpretações historiográficas que fazem de Pombal um sistemático zador. Quando Antonio de Souza Pedroso Carnaxide, .no seu lúcido
e obcecado inimigo dos jesuítas. ensaio sobre O Brasil na Administração Pombalina, categoricamente
explica as ações antijesuíticas de Pombal como mera conseqüência
Que a Companhia de Jesus, no Brasil se desviara dos seus
fins exclusivamente missionários parece hoj~ não haver a menor
dúvida. O insigne historiador Lúcio de Azevedo que, a propósito 6. Os jesuítas, diz J. Lúcio de Azevedo, "eram colonizadores; a obra
que haviam empreendido tinha caráter temporal, e, nessa qualidade, somente
com os meios temporais se poderi.a realizar. A sociedade religiosa era pois
4. Ribeiro Sanches, Cartas sobre a Educaçào da Mocidade1 pág. 91. também mercantil". Cf. ob. cit., pág. 240. ' '
5: Instruções Régias Públicas e Secretas, cit., apud J. Lúcio de Azevedo, 7. Pe. Serafim Leite, S. J., História da Companhia de Jesus no Brasil
ob. c1t., pág. 420. 10 vols., Rio de Janeiro, t. III, Imp. Nacional, 1943, Prefácio, pág. XII. '

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de uma situação financeira com que se defrontava então o reinado, mas como quem, amigavelmente, declarava o seu parecer naquela
nada mais faz que repetir, sob uma forma erudita, a lenda segundo matéria" 10 • Os padres, que ignoraram o conteúdo das Instruções,
a qual a perseguição dos inacianos não fora motivada por outro mal imaginavam que, com elas, se derrogavam dispositivos de direito
objetivo que não o da procura do tesouro oculto que se julgara sobre os quais se assentava o regimento das missões. Compreen-
pertencente à ordem. Todavia, as instruções passadas às mãos de de-se, portanto, que a resistência e os protestos opostos aos desíg-
Francisco Xavier de Mendonça, nos autorizam a admitir que os nios de Mendonça Furtado tivessem a sua razão de ser, pois como
propósitos do governo visavam a objetivos muito mais amplos e judiciosamente observou o Pe. Serafim Leite, estas Instruções cons-
profundos. A emancipação dos índios e a diminuição da força dos tituíam, "no seu próprio teor de derrogação secreta, de ordens e
cabedais das ordens religiosas se integravam num único plano desti- resoluções régias vigentes e públicas, uma violação da legalidade" 11.
nado a fortalecer a fazenda real. Que esta política não foi calcula- A obstinada resistência dos padres jesuítas, e de outros missionários
da devidamente no seu alcance, a experiência posterior o confirmou. que os acompanharam, custou-lhes a expulsão do Estado do Grão-
Mas, acreditar que a obsessiva perseguição aos jesuítas tenha sido Pará e Maranhão, antes mesmo que se efetuasse a expulsão geral
motivada por razões simplesmente financeiras, nos parece coisa intei- de 1759. Não sentiram os padres jesuítas que os tempos não lhes
ramente pueril. eram mais propiCios. Aferrados mais aos bens terrenos, que ser-
Os fatos que mais diretamente influíram nos sucessos causa- viam de base aos empreendimentos da obra missionária, do que à
dores da expulsão dos jesuítas estão relacionados com a liberdade elevada obra realizada nos séculos anteriores, esqueceram-se os ina-
dos índios e com a demarcação dos limites, por força do Tratado cianos até mesmo das justas causas em que, no passado, se empe-
de Madrid. A liberdade dos índios, muito antes de ser decretada, nharam. Certos da força e do prestígio da Companhia que,
já constituía um dos pensamentos básicos do gabinete de D. José I. orgulhosamente, ostentavam nas disputas, não tiveram dúvida de
Na Instrução 14, secreta, para Francisco Xavier de Mendonça, capi- atirar-se em mil e uma provocações, no propósito deliberado de
tão general do Estado do Pará e Maranhão, determinava-se que, uma resistência verdadeiramente suicida. Por maiores que sejam
"em tudo isso deveis proceder com grande cautela, circunspecção e as falsidades que a "propaganda" do futuro Marquês de Pombal
prudência, fazendo entretanto observar, com grande cuidado e exa- difundiu pelos países europeus, não se pode deixar de reconhecer
ção, a liberdade dos índios, como nesta instrução vos ordeno, para que, atrás do exagero dos fatos, se encontram, algumas vezes, cabí-
que assim disponhais os ânimos dos moradores desse Estado, para veis e justificadas alegações. A história das múltiplas e sucessivas
que removam de sua idéia os injustos cativeiros, e o bárbaro modo imprudências cometidas pelos jesuítas ao resistirem às determinações
com que, até agora, trataram os índios" 8 • Mendonça Furtado, emanadas do poder civil já foi feita de maneira cabal, no que toca
temperamento não afeito a dissimulações, logo que chegou ao Grão- ao Grão-Pará, pelo insigne historiador Lúcio de Azevedo 12 , Dis-
Pará, procurou, cautelosamente, dar cumprimento às Instruções pensamo-nos, portanto, de repetir aqui as vicissitudes de uma disputa
Régias. Já nos princípios de seu governo fazia sentir aos padres que terminou pela total expulsão dos jesuítas.
jesuítas "que para o serviço de Deus, e . de Sua Majestade naquela Onde, porém, maior e mais grave se fez a resistência dos jesuí-
parte da América eram bastantes sete, ou oito jesuítas no Colégio tas, foi na questão referente à demarcação dos limites, por força
do Pará, e outros tantos no Colégio do Maranhão, e que os demais,
ainda missionários, eram supérfluos; o que proferiu - afirma de
de toda a Companhia de Jesus daquele Estado. Ms. 570 da Biblioteca Geral
maneira muito significativa o autor da Coleção dos Crimes e Decre- da Universidade, publicado por M. Lopes de Almeida, com uma Nota preli-
tos 0 , Domingos Antonio - não como quem o queria executar, minar de Serafim Leite, S. J., Coimbra, 1947.
10. Coleção dos Crimes e Decretos, cit. Prelúdio, pág. 13.
8. Instruções Régias Públicas e Secretas, cit., apud. J. Lúcio de Azevedo,
11. Serafim Leite, S. J., · ob. cit., t. VII, Instituto Nacional do Livro,
ob. cit., pág. 420.
Rio de Janeiro, Liv. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Liv. Portugália,
9. Coleção dos Crimes e Decretos pelos quais vinte e um jesuítas foram Lisboa, 1949, págs. 339.
mandados sair do Estado do Grão-Pará e Maranhão antes do extermínio geral
12. Ver J. Lúcio de Azevedo, ob. cit., caps. VIII a XI, págs. 217 a 333.

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do Tratado de Madrid. Nos escritos que o gabinete mandara o direito paulatinamente conquistado no estabelecimento e expansão
organizar é compendiada uma série enorme de fatos, na qual avultam da obra missionária. Pombal, de acordo com uma informação de
aqueles que responsabilizam os inacianos pelo não-cumprimento das Varnhagen, já declarara ao provincial João Henriques, "que as
disposições constantes do mencionado Tratado. No Grão-Pará, di- principais queixas que tinha o governo contra os jesuítas, versavam
zia-se que os jesuítas se empenharam em negar a Mendonça Furtado sobre assuntos do Brasil" 15 • O sermão do Pe. Bellester, a propó-
os recursos humanos e materiais de que necessitava para o feliz sito da constituição da Companhia do Grão-Pará, a representação
cumprimento da missão que lhe fora confiada. E, mais ainda, que da Mesa do Bem Comum, cuja minuta fora redigida pelo Pe. jesuíta
favoreceram fugas e deserções dos índios que acompanhavam a comi- Bento da Fonseca, os anátemas do Pe. Malagrida, vendo, no terre-
tiva. No sul, são conhecidos os episódios causados pela resistência moto de 1755, o providencial castigo aos erros dos governantes,
dos índios das missões jesuíticas às hastes comandadas por Gomes tudo isso, reunido aos múltiplos episódios surgidos com a execução
Freire de Andrade. Contra as determinações dos reis de Portugal do tratado de limites e a liberação dos índios, ocasionou a expulsão
e Espanha e, à revelia dos conselhos e das ordens do representante de duas dezenas de jesuítas do Grão-Pará e, posteriormente, a total
do Geral da Companhia, Pe. Luiz Altamirano, os inacianos acompa- supressão da Companhia do Reino e domínios lusitanos.
nharam os indígenas na cruenta campanha. Embora nada se possa
alegar nestes episódios contra a Companhia de Jesus, pois são conhe- Era necessário, todavia, suprir a imensa lacuna que, na esfera
cidos hoje os esforços do jesuíta Luiz Altamirano, não resta dúvida do ensino, a expulsão dos inacianos acarretara. Poderia o governo
que o procedimento dos padres das missões, se encontra explicações, incentivar a obra missionária distribuindo côngruas às demais ordens
não encontra, entretanto, razões cabais para justificá-lo. O próprio religiosas, a fim de que pudessem ampliar os seus serviços pedagó-
Pe. Serafim Leite implicitamente o reconhece, quando, na arrumação gicos de tal modo que não fizessem sentir os males advindos da
de conceitos sobre tão disputada questão, afirma: "os missionários supressão das escolas da Companhia de Jesus. A expansão do
(referindo-se aos jesuítas espanhóis) deviam abandonar os povos. ensino jesuítico não foi determinada apenas pela necessidade da
Sentiram-no como missionários e também como súditos de Espanha. propagação da fé. Nos seus começos, não teve a Companhia a
O fato é claro e incontroverso. Os espanhóis não acreditavam no preocupação de dedicar-se à instrução pública: "simples e pobre
propósito sincero da entrega da Colônia do Sacramento. Discute-se associação de estudantes -já observava em 1924, 'desfazendo erros
realmente se era sincero ou não, e a própria e primeira atitude do consagrados, o Prof. Mário Brandão - almejando apenas dedicar-
seu executor dava fundamento à dúvida. Bastava ela para justificar se piedosamente na Terra Santa à conversão dos maometanos, só
prevenções e reações de desconfiança nos executados, como as que muda de intento quando se lhe frustram esses desejos. Rasgam-se
existiam nos executores. O descontentamento de alguns jesuítas então novos horizontes, transforma-se e amplia-se o seu plano ...
influiu inicialmente na decisão dos índios; as tentativas de outros E aí estão, continua o laborioso investigador, como insofismáveis
jesuítas para os deter ficaram sem eco. Mas, uma vez sublevados testemunhos destes planos as missões em terras de infiéis, as Casas
os índios, os jesuítas espanhóis como párocos seus, não os abando- de Santa Marta e os orfanatos, aqui e ali espalhados. Porém, uma
naram" 18 • coisa não buscam nem aceitam a princípio os novos paladinos da fé
- o cuidarem da instrução" 16 • Se à obra missionária se acres-
A estes fatos, outros se somaram, nos quais o orgulho 14 da centou o trabalho educativo, isto, talvez, se deva à feliz harmonia
Companhia de Jesus se manifestou com toda a força que lhe dava entre os imperativos da expansão e conquista das almas e a necessi-

13. Pe. Serafim Leite, S. J., ob. cit., Imp. Nacional, Rio de Janeiro,
1945, t. VI, págs. 556/7. 15. Visconde de Porto Seguro, Hist6ria Geral do Brasil antes de sua Sepa-
14. O historiador J. Lúcio de Azevedo, que com tamanhos cuidados ração e Independência de Portugal, 5. vols., São Paulo, Companhia Melho-
examinou os documentos referentes à ação dos jesuítas, emprega em vários ramentos, s/d, t. IV, pág. 171.
passos de sua lúcida obra o termo orgulho para explicar o modo de agir 16. Mário Brandão, O Colégio das Artes, 2 vols., 1547-1555, t. I, Imp.
que levou os jesuítas à própria ruína. da Universidade, Coimbra, 1924, págs. 192/3.

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dade, humanamente justificável, de as5egurar a este apostolado os dade, consoante, aliás, com a própria natureza primitiva desta insti-
recursos adequados à sua manutenção. tuição medieval. Todavia, não só pelos interesses dos que permi-
tiram, com a doação de seus bens e de outros recursos financeiros,
a fundação de colégios, mas também pela própria necessidade que
li tinha a Companhia de ampliar, com o noviciado, o número das
pessoas que se destinavam aos misteres religiosos, seria perfeitamente
Pelas Constituições da Companhia de Jesus, somente os Colé- natural que, nestes estabelecimentos, o ensino das primeiras letras
gios e as Casas de Formação poderiam possuir bens que lhes garan- e do latim, quando não da retórica, da filosofia e da teologia, logo
tissem o sustento do trabalho pedagógico e missionário 17 • Não surgisse e se transformasse até num dos fins mais altos da obra
resta dúvida, portanto, que a expansão do ensino jesuítico, no reino inaciana.
como nos domínios portugueses, foi condicionada por este relevante
fator. A penetração e o alargamento da obra missionária depen- Foram precisamente os colégios que, no Brasil, não só garan-
diam, fundamentalmente, da criação de escolas, únicos empreendi- tiram a fixação dos padres jesuítas nos mais distantes lugares como
mentos que poderiam justificar, do ponto de vista canônico, a posse ainda permitiram, no caso do Grão-Pará, o extraordinário acometi-
dos bens indispensáveis à concretização dos demais fins da Compa- mento missionário de autêntico bandeirismo. Somente os colégios,
nhia de Jesus. Não é de estranhar, portanto, que, com a persegui- pelos seus bens obtidos de várias formas, poderiam fornecer os ele-
ção movida pelo gabinete de D. José I aos inacianos, se fizessem mentos materiais indispensáveis a tão grandes empreendimentos. De
sentir as reivindicações dos povos que viam desamparados os seus norte a sul, desde 1554 até às vésperas da expulsão dos jesuítas,
filhos, com a supressão das aulas mantidas pela Ordem de Santo multiplicaram-se, no Brasil, as casas de formação e os colégios man-
Inácio. Em Portugal, como no Brasil, desde a entrada dos jesuítas, tidos pelos inacianos. Na Bahia, em São Vicente, depois em São
a fundação dos colégios se efetuou numa escala progressiva. Além_ Paulo, Rio de Janeiro, Olinda, Espírito Santo, São Luiz, Ilhéus,
do ensino das primeiras letras;' das obras de assistência, nas suas Recife, Paraíba, Santos, Pará, Colônia do Sacramento, Florianópolis
. diversas modalidades, e do trabalho missionário, como postos avan- (Desterro), Paranaguá, Porto Seguro, Fortaleza, Alcântara e em
çados da conquista espiritual das almas e como garantia temporal Vigia, efêmera ou duradouramente manteve a Companhia de Jesus
desta mesma conquista, surgiram, nos mais distantes lugares, estabe- colégios aos quais estava ligada uma extensa rede de aulas distribuí-
lecimentos destinados a aumentar os quadros da milícia inaciana e a das pelas aldeias constituídas graças ao trabalho missionário 19 •
trazer aos novos gentios a palavra confortadora da fé cristã. Em Quando, portanto, se suprimiram, com o Alvará de 28 de junho
Portugal, surgem os primeiros colégios em Lisboa, Coimbra e Évora; de 1759, as escolas jesuíticas do reino e domínios lusitanos impôs-
depois amplia-se o trabalho pedagógico e surgem, sucessivamente, se, como tarefa primordial, a adoção de um plano graças ao qual
novos colégios no Porto, Braga, Bragança, Funchal, Ponta Delgada, se mantivesse a continuidade do ensino e livrasse do desamparo as
Vila Viçosa, Portalegre, Faro, Santarém, Elvas, Faia!, Setúbal, Vila populações que até então se beneficiavam dos colégios existentes.
Nova de Portimão, Beja e Vila: de Gouveia, "o último colégio edifi- No referido alvará, dispõe-se expressamente que em cada bairro
cado pelos jesuítas em Portugal no século XVIII" 18 • É verdade de Lisboa haja um professor de latim. Como, porém, tornou-se
que nem sempre, nestes estabelecimentos, houve cursos de latini- difícil a divisão dos bairros "diante da desordem e irregularidade

17. Constit., caput I, § 4; cf. a edição espanhola das Obras Completas 19. Sobre os estabelecimentos escolares dos jesuítas no Brasil, ver, no
de Santo lgnacio de Loyola, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1952, vol. 10 da ob. cit. de Serafim L~ite, S. J., Instituto Nacional do Livro, Rio de
pág. 371. Janeiro, Liv. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Livraria Portugália
18. Francisco Rodrigues, S. J., História da Companhia de Jesus na Assis- ~-1 Lisboa, 1950, nos vbs. Colégio e Colégio de ... , as referências que indicam
tência de Portugal, t. IV, vol. I, pág. 264. Nos volumes já publicados encon- ao leitor as páginas ou passos que nos volumes anteriores tratam do assunto.
tram-se notícias da fundação das escolas jestúticas portuguesas. Cf. vol. cit., págs. 60 a 61.

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em que se acham os habitantes" depois do terremoto, determina o comentários à Arte alvarista. Terminado o curso de gramática,
diploma régio o estabelecimento de oito, nove on dez classes de em três ou quatro anos21, passavam os alunos para a classe de
latim. E, em todas as vilas, um ou dois professores, conforme a humanidades, na qual se estudavam a história, a poesia e a retórica.
maior ou menor extensão de seus termos. Quanto ao ensino de Seguia-se depois um curso de retórica que o pensamento dos huma-
grego e de retórica, prevê o alvará quatro professores para Lisboa, nistas transformara numa das "peças" fundamentais do currículo
dois para Coimbra, Évora e Porto, e um para todas as demais cida- dos estudos menores. J. M. de Madureira acredita "que os jesuítas
des ou vilas, cabeças de comarca. foram os primeiros a limitar este nome (refere-se ao curso de huma-
Os cursos das escolas da Companhia de Jesus, por ocasião da nidades) a uma classe especial intermediária entre a gramática e a
reforma pombalina, correspondiam às exigências das condições dos retórica" ... 22 • Todavia, de acordo com a sucinta disposição das
Constituições, a retórica parece ter sido apenas um estudo que fazia
séculos XVI e XVII e não podiam mais satisfazer às necessidades 1''"\

parte do curso de humanidades: "Sub litteris, inquiunt, Humaniori-


peculiares da vida social e política do século XVIII. O progresso
cultural realizado no período compreendido entre a aprovação da bus praeter Grammaticam intelligatur, quod ad Rhetoricam, Poesim
Ratio Studiorum e a época do florescimento do iluminismo, exigia,
et Historiam pertinet" 23 • De qualquer forma, entretanto, o curso
de gramática e humanidades deveria durar de cinco a seis anos.
por si só, um reajustamento do programa escolar, de tal forma que
Completada a iniciação literária, passavam os estudantes para as
os estudos pudessem corresponder satisfatoriamente às exigências
classes de filosofia, que abrangiam três anos de estudos sobre lógi-
de uma mentalidade voltada para os fins úteis ao progresso humano.
ca, física, metafísica, moral e as matemáticas 24 • Totalizavam esses
O latim, com os estudos que lhe eram complementares, deixava
estudos nove anos.
de ser o meio indispensável para a formação dos futuros "letrados",
fossem eles canonistas, teólogos, médicos ou advogados, a fim de Graças a um manuscrito publicado pelo Prof. Fidelino de
se transformar num problema de humanismo. As reformas pom- Figueiredo, na Revista de História, dispomos hoje de uma informa-
balinas do ensino menor e maior demonstram que os ideais que as ção sobre o estado dos estudos na Universidade de Évora. De
nortearam traduzem, sobretudo, uma finalidade acentuadamente acordo com o relato anônimo havia oito aulas de gramática latina
humanista, na medida em que elas valorizam e revivem questões em que se faziam estudar [os alunos] muito materialmente a gramá-
que foram as preocupações predominantes dos homens dos séculos tica do Pe. Manoel Alvarez com a seguinte repartição: na s.a, as
XVI e XVII. Ao formalismo rotineiro, esquecido dos ideais do regras de nominativo e rudimentos; na 7.a, gêneros e pretéritos; na
seiscentos, em que se achavam as escolas jesuíticas, opôs-se o pro- 6.a e na s.a, sintaxe; na 4.a e na 3.a, construção de Ovídio e Virgí-
grama de um novo humanismo, destinado a restabelecer em Portu- lio: na 2.a e t.a, mais construção e algua coisa pouca de retórica
gal a grandeza de uma tradição interrompida. por apostila tirada de Cipriano Soares; mas nem isto se fazia todos
Nos cursos jesuíticos, ao estudo das classes de gramática
seguiam-se os de humanidades, retórica e filosofia. De acordo com perfecta Sintaxis" - Ratio Studiorum, 1586, Monumenta Germaniae Paeda-
as partes da Arte alvarista, a gramática latina era ensinada, nor- gogica, t. V, pág. 183, apud Etienne Gilson, nota da pág. 111 à ed. do Discours
malmente, em três classes: ínfima, média e suprema. Na ínfima, ,.,,, de la Méthode, Paris, Vrin, s/d.
aprendiam-se os elementos e as regras gerais da sintaxe; na média, 21. Estes estudos poderiam ainda aumentar em número de anos, seja
estudavam-se, de um modo geral, todas as partes da gramática e, pelo desdobramento da classe inferior ou superior. Cf. Regras, 8 e 21.
na superior, este estudo aprofundava-se com a análise dos proble- 22. Apóia-se Madureira na autoridade do Pe. Juvancy da Companhia de
mas da prosódia latina e de todos os demais aspectos da gramáti- Jesus; ver J. M. de Madureira, trabalho sobre a obra da Companhia de Jesus
publicado na Revista do Instit!lto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo es-
ca 20, com o auxílio dos inúmeros trabalhos que serviam de glosas e pecial, vol. IV, pág. 400, nota 744.
23. Constituições, IV parte, Cap. 12, A. Cf. trad. espanhola, Obras
20. "Et in tertia quidem classe explicanda sunt rudimenta Grammaticae. Completas de S. Ignacio de Loyola, Biblioteca de Autores Cristianos, pág. 470.
In Secunda breve et facile compendium Sintaxeos. In prima absoluta et 24. Constituições, IV, 12, C.

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112 113
os anos nem obrigavam os estudantes a estas lições 2 ;;. Estas oito Na conclusão do curso, por oposição, discutiam dois estudantes
classes deveriam naturalmente corresponder aos cursos de gramáti- uma questão metafísica para cuja preparação "restavam os meses
ca, humanidades e retórica. É o que se depreende da notícia do de novembro, dezembro e janeiro, não só interpolados com as
Autor anônimo segundo a qual, "nestas aulas passava a mocidade compridas férias do santo Natal; mas muito mais com três festas
quatro e seis anos ajudada de um mestre de fora, a quem pagava, e três outeiros, que os estudantes deste ano eram obrigados a fazer,
e que lhe servia de o ajudar a verter as lições com o freqüente uso duas a seu mestre na própria aula, outra ao examinador de fora
dos comentas ridículos, que então se usavam, conhecidos, vulgar- em sua casa" 30 • A Universidade de Évora, da Companhia de
mente, pelo nome de Pays Velhos" 26 • Depois desses estudos, os Jesus, constituía, na vida educacional portuguesa, fator de decisiva
estudantes ingressavam nas aulas de filosofia, "das quais - diz o importância para a explicação da ininterrupta passagem dos homens
Autor da memória sobre a Universidade de Évora - havia quatro que, temerosos dos percalços da vida secular, procuravam no refúgio
nesta Universidade. Na primeira se faziam tristes e enfadonhas dos privilégios eclesiásticos o paraíso das regalias e imunidades que
postilas, nas quais se gastavam cada dia duas horas, uma de manhã, o direito vigente consagrava. Nada melhor, para avaliar o signifi-
e uma de tarde, e eram as postilas deste primeiro ano de Universais cado deste fato, do que o número de doutoramentos havido na
e sinais somente, a que se ajuntavam algumas lições rudes e frívolas referida Universidade. De acordo com os dados fornecidos pelo
dos termos lógicos, pelos conhecidos livros de Barreto, Soares, Teles, Dr. Augusto Felipe Simões a D. Antonio da Costa, realizaram-se,
Aranha, Macedo, dos quais faziam comprar aos estudantes" 27 • Na na Universidade de Évora, de 1660 a 1717, 248 doutoramentos na
segunda, havia postilas iguais às do ano anterior, nas quais se conti- primeira década, 265 na segunda, 284 na terceira, 376 na quarta e
nham assunto da física "reduzida à pueril curiosidade de descobrir 404 na quinta s1.
os princípios dos corpos tanto in fieri, como in facto esse; a subti- A situação dos estudos na Universidade de Évora, nas vésperas
Iizar, e supor os apetites da matéria-prima; e tratar muito abstrata- da reforma pombalina, demonstra que o ensino de gramática, huma-
mente da forma substancial, da união destas duas substâncias e da nidades e retórica estava a serviço de interesses estranhos aos obje-
provação desta mesma união" 28 • No terceiro ano de filosofia, "se tivos da ordem civil conscientemente estruturada em função dos
não postilava nada, porque as lições de metafísica indispensavelmen- ideais seculares do Império. Os estudos menores, como de resto
te eram pelo livro do Pe. Silvestre Aranha, e por outro do mesmo os cursos universitários, destinavam-se, até a promulgação das refor-
Autor se ensinavam intelecções, tópicos, e notícias que eram as mas pombalinas, a favorecer muito mais aos interesses do estado
matérias do ato de bacharel que necessariamente haviam neste ano eclesiástico do que aos do civil. O número de anos exigidos para
fazer os estudantes com outras três, que lhe precedia, tiradas das os que cursavam as classes menores contrastava singularmente com
lições do primeiro ano, que eram: 1. a) termos lógicos ou como os objetivos de um país que apenas ingressava, por força de um
diziam dialéticos e rematava este ato com uma questão metafísica, governo despótico a serviço do absolutismo, no mundo dos negócios
e muito metafísica, defendida por uma parte e outra" 20 • que o progresso da burguesia, em outras nações, transformara em
fim útil ao progresso dos Estados.
25. Revista de História, para a História da Universidade, "Breve notícia
dos Estudos que os jesuítas exerciam na Universidade de Évora ao tempo Se a criação das aulas régias de latim, grego e retórica visavam
que foram expulsos: para servir de continuação à história literária de Por- imediatamente a suprir as lacunas abertas com a extinção das clas-
tugal". Este manuscrito, de acordo com a nota introdutória do Prof. Fidelino ses dos jesuítas, mediatamente satisfaziam as necessidades do pensa-
de Figueiredo, encontra-se na Biblioteca da Ajuda "sob a marcação de 51.
XII 42, n. 0 125", e foi atribuído, pelo mesmo professor, conjecturalmente, a
mento típico de uma burguesia apenas nascente. Os cursos menores
Bento José dos Santos Farinha. Cf. vol. X 37-40, 1821, págs. 298 a 305.
26. Idem, ibidem, vol. X 37-40, pág. 300. 30. Idem, ibidem.
27. Idem, pág. 300. 31. Cf. Prof. Joaquim de Carvalho, nota 1, pág. 568, do Cap. IV, "lns·
27. Idem, pág. 300. tituições de Cultura, Organização do Ensino Superior: as Universidades de
28. Idem, pág. 301. Évora e Coimbra", in História de Portugal de Damião Perez e Eleutério
29. Idem, pág. 301. Cerdeira, vol. V, págs. 555 a 568.

114 115
- e as providências da administração pombalina ampLamente o No ano seguinte, dispondo sobre os exames para ingresso nas
confirmam - na nova ordem civil deveriam estar a serviço dos escolas maiores, apareceu o alvará que introduziu algumas modifi"
ideais regalistas que inspiravam a política do gabinete de D. José I. cações _no plano de 28 de junho de 1759. Os exames, que até
Se interpretarmos bem o pensamento dos homens responsáveis pelos .., então se faziam perante uma banca presidida pelo diretor geral em
I
atos relacionados com a vida educacional portuguesa, no período Lisboa, passaram a ser realizados nas .cidades do reino que possuíam
compreendido entre 1759 e 1777, não poderemos deixar de reco" um professor de retórica e dois de gramática latina. Quanto aos
nhecer que a reforma dos estudos do latim e humanidades corres- candidatos que se destinavam ao ensino particular, bastava fossem
ponde a uma aspiração indisfarçável no sentido de fazer da escola examinados por dois professores de gramática latina 34 • Sobre os
o meio para a obtenção do passaporte indispensável ao ingresso na exames exigidos para o ingresso nos estudos maiores, dispunha o
ordem pombalina. Se pudéssemos definir os propósitos de Pombal alvará que as provas se realizassem em Lisboa, na presença do dire"
e de seus homens diríamos que, no lugar das escolas, em grande tor geral, com os três professores existentes, e, em Coimbra, na
número, dos jesuítas, procuraram pôr a escola que melhor atendesse presença do comissário, Manoel Pereira da Silva, e de dois profes"
aos fins da política que as condições portuguesas reclamavam. sores. Estas disposições alteraram as Instruções de 1 de outubro
de 1759 segundo as quais, excetuados os estudantes de escolas per-
tencentes a ordens que têm provisões para expedir certificados de
III conclusão de curso e os alunos dos colégios da Companhia de Jesus,
todos os demais deveriam ser examinados por uma junta de profes"
Logo depois de publicado o Alvará de 28 de junho de 1759, sores convocada pelo Reitor da Universidade. Enquanto se toma-
era indicado, para o cargo de diretor geral dos estudos, D. Tom~ vam estas providências, D. Tomaz de Almeida designava os primei"
de Almeida, no qia 9 de julho. Não tardaram as providências do ros professores para Lisboa, Coimbra, Évora e Porto. Ao iniciar
diretor geral. No dia 28 de julho, eram afixados, em Lisboa e a sua reforma, existiam em Lisboa os seguintes professores, de acor"
em todas as demais cidades, editais sobre os exames indispensáveis do com um documento do Arquivo da Biblioteca da Universidade
à obtenção da licença para o ensino, prevista no alvará de criação de Coimbra 35 : Antonio Felix Mençles, Nicolau Seribô, Manoel Pe-
das aulas régias. Concedia"se um prazo de seis dias para a entrega reira da Costa, Antonio Pereira Xavier, Pedro Joseph da Fonseca,
dos certificados indispensáveis à inscrição no concurso aos candi- Antonio Pombeiro, Inácio de Loyola, João Paulo Manoel de Almei-
datos que residiam em Lisboa, e quinze aos moradores das demais da, João Inácio Henriques, Joseph Leandro de Barbada Franco,
localidades a2. Antonio Garcia Barbada, Miguel Daly e João Codd. Em 1771 e
1772, transcorridos doze anos depois do início da reforma, o núme"
Neste mesmo edital, ordenava-se a continuação das aulas até ro de professores que possuíam autorização para o ensino aumen-
outubro: a partir do dia 1 desse mês "não poderá ensinar pessoa tara consideravelmente. Com o objetivo talvez de recolher elemen-
alguma, nem pública, nem particularmente sem carta minha" 3 3. Ao tos seguros para a aplicação das rendas provenientes do subsídio
mesmo tempo, designavam"se comissários nas cidades do reino e literário, fez"se, na ocasião, um levantamento do número de profes"
dos domínios, os quais logo cuidaram de fazer o levantamento do sores existentes nos vários bairros de Lisboa. Entre os manuscritos
número dos professores existentes, tirando informação sobre sua do códice 2.533 da Biblioteca da Universidade de Coimbra encon-
vida e costumes, a fim de levar ao conhecimento do diretor geral tram"se várias relações elaboradas pelos corregedores e juízes do
dos estudos ampla notícia do estado em que se achavam as escolas crime dos diversos bairros da cidade. Percorrendo estes manuscri"
em cada localidade.

32. Registro das Ordens Expedidas para Reforma e Restauração dos 34. Idem, Alvará de 1 de janeiro de 1760.
Estudos destes Reinos, e seus Domínios, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 35. Biblioteca da Universidade de Coimbra, Secção de Manuscritos,
Ministério do Reino, códice 417. códice 2.533, doc. 22, "Relação das Pessoas de que há informação para serem
33. Idem, ibidem. professores nas novas classes que S. M. manda abrir na cidade de Lisboa".

116 117
tos, encontramos os seguintes nomes: Gabriel de Azevedo Neves no cargo de professor de retórica. A nova cadeira, .entretanto, nos
no bairro do Limoeiro, Manoel Álvares Cabelos, José de Campos: primeiros tempos, não fez grande progresso. Em 1760, Bernardo
José dos Santos Pato, Simão Felipe, Bento Jerônimo, Alberto Car- Carneiro deixava o cargo por moléstia. A cadeira ficou desocupa-
doso e Sebastião Ruiz (professor régio), na freguesia da Pena, da, porque os alunos eram poucos, até 1764, quando nela foi provido
b;.tirro de Andaluz, José Inácio, Domingos Gonçalves Roque, Dr. João Antonio Bezerra e Lima que, até então, lecionara gramática.
Francisco Xavier, Joaquim Xavier, Pedro Mestre, Anastácio José Os estudos retóricos, entretanto, ganharam maior importância desde
de Souza, Francisco José, Alberto Pereira Franco Antonio Coelho o momento em que o exame da matéria passou a ser exigência prévia
'
Pe. Manoel Martins Anseães (professor régio), Manoel Ribeiro e' para ingresso na Universidade. Em 1766, em consulta ao rei,
José Ferreira, na freguesia de São José, também no bairro de Anda- insistia o Principal D. Tomaz de Almeida na necessidade de mais
luz, Antonio Pereira Xavier, Manoel José Ruiz, Pedro Antonio da um professor de retórica para o colégio da Universidade, porque,
Silva Reis, Manoel José, Dr. Pedro José, Joaquim José de Santana dizia, aumentara o número de estudantes de retórica e propunha
e José Marques, na freguesia de São Sebastião, ainda no bairro de para o cargo Jerônimo Soares Barbosa "mestre em o seminário do
Andaluz, Francisco de Sales (professor régio), na Ribeira, Nicolau Bispo de Coimbra há cinco anos; conhecido em toda Universidade
Tolentino (professor régio) e Joaquim José, no bairro da Rua Nova, por um mestre sumamente hábil daquela arte, e, de um procedi-
Manoel Fernandes e Veríssimo José, na Alfama, José Antonio da mento tão exemplar como têm todos os que o Bispo elege para o
Mata, Antonio Pereira Romano, José Rodrigues da Costa e José magistério" 88 • Jerônimo Soares Barbosa prestara as provas exigi-
Joaquim, no bairro do Castelo, Pedro José .da Fonseca (professor das pela lei. E o seu exame foi de tal ordem que D. Tomaz de
régio), Manoel Estevães, Roberto Nunes da Costa (professor régio), Almeida afirmava, na referida consulta, ter sido "o melhor a que
José de Ar. 0 Pena, José dos Santos, Gabriel da Costa, Manoel de tenho assistido depois que tenho a honra de ser diretor geral dos
Jesus José ~ereira, Teodoro José, João Francisco e Joaquim Manoel, estudos" 80 • A cadeira de grego foi provida, em 1761, na pessoa
na Mourana, Manoel José Esteves, José Nogueira Correia José de Guilherme Berminghan, que acabava de chegar de Roma, e era
Dias Duarte, Baltazar Rodrigues dos Reis, José Alves Pi~entel, exímio conhecedor das línguas grega, hebraica e latina. As classes
Bento José e Eusébio Vieira, no Rocio, João dos Santos, Manoel de latim contaram ainda, a partir de 1764, com o trabalho
da Costa, Bernardo Antonio Duarte, Raimundo Luiz de s.a, Fran- dos Profs. Manoel Carlos de Almeida e Domingos Marques da
cisco Gonçalves, Antonio Paulino, José Maria e José Dias Leitão Costa Mendanha.
no bairro de Santa Catarina, Antonio Lomelino de Vasconcelos' No Porto, as aulas de gramática latina iniciaram-se com os
(professor régio) e Francisco Lourenço Roussado, no Belém, além Profs. Antonio Luiz Borges e Ricardo de Almeida. Numa carta
de dois outros professores do Mocambo, cujo nome não consta dos de 25 de agosto de 1759, Luiz de Moraes Seabra e Silva fornecia
documentos 36, num total de 65 professores s7. a D. Tomaz de Almeida informações sobre o estado em que se
Em Coimbra a reforma se efetuou sob os cuidados do comis- achavam os estudos de latim, na cidade do Porto. De acordo com
sário Manoel Pereira da Silva e, posteriormente, de João Mendes esta carta 40, o ensino de latim já se fazia pelo novo método. O
da Costa, que lhe sucedeu. Em setembro de 1759, eram nomeados Pe. José de Santa Maria e Manoel de Jesus "ambos, diz Luiz de
Manoel de Paiva Veloso e João Antonio Bezerra e Lima, professo- Seabra e Silva, estão ensinando pela Arte composta pelo Pe. Anto-
res de gramática latina e, na mesma ocasião, Manoel Francisco
da Silva e Bernardo Antonio de Souza Carneiro foram investidos tica latina, 16 de ler e escrever, 3 de retórica, e 8 sem indicação de matéria.
38. Registro das Ordens, códice 417.
39. Idem, ibidem,
. 36. Biblioteca da Universidade de Coimbra, Secção de Manuscritos, 40. Biblioteca da Universidade de Coimbra, Secção de Manuscritos, códice
cód1ce 2.533, doc. 39, "Lista dos professores dos vários bairros de Lisboa" 1 1.343, Carta de Luiz de Moraes Seabra e Silva para D. Toinaz de Almeida,
a xm, 1771-1772. ' de 25 de agosto de 1759. Cita ainda o documento o nome do Pe. Francisco
37. Desses professores, 20 eram de gramática portuguesa, 18 de gramá- Caetano que seguia o método do Pe. Álvarez, mas conhecia bem o latim.

118 119
nio Pereira" 41 • Além destes encontram-se mais nove professare~ dos demais livros proibidos, eram recolhidos à pnsao e obrigados
"que ensinam por várias partes da cidade pela Arte do Pe. Alvarez". a assinar um termo 45 no qual juravam que nunca mais se ocupariam
Trezentos e trinta e sete estudantes freqüentavam estes cursos, alguns do ensino do latim no reino e seus domínios. Os livros proibidos,
dos quais regidos por professores "pouco capazes". Para a cadeira fossem pertencentes à biblioteca dos professores, fossem das livra-
d~ grego foi nomeado, em 1759, Tomaz Dalany. A de retórica,
rias, eram recolhidos e, algumas vezes, queimados. Tudo indica
porém, só em 1764 foi provida, na pessoa de Vicente José Camejo. que a resistência às determinações do Alvará de 28 de junho de
Para Évora foram indicados, para as aulas de gramática latina, 1759 não foi muito grande. Num de seus relatórios anuais ao Rei,
os Profs. Luiz Madureira e José Antonio da Silva Alvarez de Carva- informava D. Tomaz de Almeida sobre as diligências realizadas no
lho que, no ano seguinte, era afastado do cargo por deixar de cum- Porto, Coimbra e Santarém e acreditava que, em Braga, os mestres
prir o preceito anual da quaresma e ser excomungado 42 • Para a lecionassem pelos livros proibidos: "como não nomeei comissário
cadeira de grego foi nomeado, em 1761, o irlandês João Codd. em Braga - dizia em 17 65 o diretor dos estudos - pelas razões
Parece, entretanto, que esta cadeira ficou vaga até 1767, pois o que já expus a V. M. creio que todo aquele Arcebispado se está
mestre irlandês adoeceu antes de abrir o seu curso e retirou-se para ensinando pelos livros proibidos, e que para ela terão ido muitos
a Irlanda, onde veio a falecer em 1767, quando então foi nomeado pela notícia de que lá se admitem, o que resulta de não haver comis-
para o lugar Antonio dos Santos 43 • Tal como acontecera na cidade sário que zele pela extinção daquela desordem" 40 • Estas diligên-
do Porto, a cadeira de retórica só foi preenchida, em 1764, por An- cias, que continuamente se repetiam, não visavam apenas a recolher
tonio de Mesquita Delgado. Foi em Évora que iniciou o satírico os livros proibidos ou a impedir o ensino pelo método alvarista. Na
Nicolau Tolentino a sua vida no magistério, a qual confere à sua época, se fez uma impressão clandestina da gramática jesuítica.
poesia aquele tom pitoresco de um mestre sempre à espera de uma Numa carta para Manoel Pereira da Silva, escrevia Antonio José
viradeira que o pudesse libertar da Cunha: "tenho feito diligência sobre a impressão das Artes, e
já tenho notícia de que imprimiram em Salamanca e de que o pas-
" destas crianças sador delas é um homem que anda pelas feiras, com livrinhos seme-
onde tenho o meu Forte da Junqueira" 4 4.

A reforma foi, assim, não sem dificuldades, executada nas prin-


cipais cidades do reino. Os novos professores e os comissários
I lhantes, o qual se chama Ant.° Corr.a, ou da Silva, e assiste junto
a Bragança ou em Braga. Ele enganou a um pobre livreiro desta
terra, deixando-lhe algumas para vender, nas quais já fiz apreensão,
e entendo que serão duzentas, poucas mais ou menos" 47•
zelavam atentamente pelo cabal cumprimento das disposições e ins- A 7 de setembro de 1761, apresentava o diretor geral dos
truções determinadas pelo diretor geral. Depois de uma concessão estudos a sua conta anual sobre o progresso dos novos estabeleci-
provisória segundo a qual se permitiu aos professores o ensino sem mentos. Confessava que somente na Universidade de Coimbra,
a licença exigida pelo alvará, os exames foram sendo feitos em Évora, Porto e Lisboa havia professores régios. Explica-se esta
escala progressiva, de tal modo que até mesmo nos lugares mais situação por dois motivos: em primeiro lugar, o diminuto número
distantes normalizou-se a situação. Concomitantemente, procurou
o diretor geral proibir o ensino pelos antigos métodos. Os profes-
sores que teimavam ensinar pela Arte do Pe. Alvarez, com o auxílio 45. São inúmeros os termos que se encontram entre os papéis da Junta
Geral dos Estudos, existentes na Biblioteca da Universidade de Coimbra.
Confiram-se, por exemplo, códice 1.344, does. 11, 12 e 13; códice 2.529, does.
41. Idem, ibidem. 8 e 26; códice 2.530, doc. 14, li; códice 2.531, doc. 37; códice 2.532, does.
42. Registro das Ordens, có~ice 417. 1, 12, 23; códice 2.533, does. 1, 2, 4, 6, 7, 8-II, 9, 16-II, 20, 60 e 65.
43. Idem, ibidem. 46. Registro das Ordens, códice 417.
47. Esta é a segunda das cartas publicadas por Mendes dos Remédios em
44. Nicolau Tolentino, Sátiras, Seleção, Prefácio e Notas de Rodrigues apêndice da Carta Exortat6ria aos Padres da Companhia de Jesus da Província
Lapa, Lisboa, 1941, 6, pág. 5. de Portugal, pág, 44. As outras três se referem ao mesmo assunto.

120 121
de partidos fornecidos aos novos estabelecimentos não permitia hou- Os professores de retórica de Lisboa, J oseph Caetano, Pedro
vesse maior interesse pelos concursos abertos para as novas cadei- José da Fonseca e Francisco de Sales, veriam melhor premiados
ras; em segundo lugar, e isto sobretudo quanto às aulas de grego os seus esforços se os alunos do primeiro e do segundo ano não
e de retórica, faltavam pessoas hábeis que pudessem satisfazer cabal- tivessem abandonado as suas classes. Depois de um ano de estu-
mente as novas atribuições pedagógicas. O zelo com que o diretor dos, os discípulos de Pedro José da Fonseca abandonaram a aula,
geral dos estudos procurou remediar a situação existente, consultan- indo "uns para as religiões e outros para Coimbra" 50 • Do Prof.
do seus comissários e as pessoas doutas sobre a existência de pessoas Francisco de Sales diz o diretor geral dos estudos que "tem tido
capazes de preencher as condições reclamadas pela reforma, paten- excelentes estudantes mas quase todos se têm recolhido em religiões,
teia-se nos seus relatórios e nas cartas por que os seus comissários porque a pobreza dos pais e o gênio da Nação promovem muito
procuravam dar conta das incumbências que lhe foram delegadas. este estado" 51 • Além dos motivos indicados pelo Principal Almei-
Não é de estranhar, portanto, que as cadeiras de retórica, até esta da, convém lembrar, a propósito, que o abandono dessas aulas em
ocasião, com exceção das de Lisboa e Coimbra, não estivessem parte se explica pelo fato de que até a ocasião não se realizavam
ainda providas. em Coimbra os exames de retórica que o alvará previa para todos
:É bastante significativo que as pessoas indicadas para as cadei-
os candidatos às escolas da Universidade.
ras de grego, como Berminghan, Codd, Daly e Dalany, fossem Dos professores de latim existentes em Lisboa, destaca o diretor
estrangeiras. Fato esse tanto mais significativo se lembrarmos que geral dos estudos o trabalho realizado por Aleixo Nicolau Seribô
muitos dos professores de gramática latina tinham sido antigos mem- que, completando as diretrizes consagradas no Novo Método, intro-
bros da Companhia de Jesus e, portanto, que se o ensino do grego duziu no ensino algumas inovações, tais como mapas e tábulas, de
- e o mesmo podemos dizer da retórica - tivesse alcançado alto tal forma que, em cinco meses de experiência, os alunos apresen-
nível na época, · os próprios padres da Companhia seriam aprovei- taram, em exame público, grande progresso.
tados nos cutsos recém-instituídos. Nas aulas dos professores régios
Lembrando a situação em que se encontravam os estudos de
de grego e retórica, preparavam-se os futuros professores das novas
filosofia, suspensos há anos em todas as cidades, encarecia o diretor
cadeiras a serem criadas nas demais cidades do reino e domínios.
geral dos estudos a necessidade do restabelecimento de tais cursos:
No relatório mencionado, elogia o diretor geral dos estudos os tra-
balhos dos professores régios, especialmente os dos professores de "a suspensão, em que há anos se está, da abertura de estudos públi-
grego de Lisboa e do Porto. O primeiro, por ter formado alguns cos de filosofia em todo o reino é sumamente prejudicial porque
discípulos que, "com muito louvável zelo", se aplicaram a esta todos os que se destinavam aos estudos de teologia e medicina, ou
tarefa, "adquirindo nela um tal adiantamento, que em o exame públi- se atrasam muito consideravelmente ou buscam outro emprego, e
co que mandei fazer mostraram uma grande facilidade na tradução por necessidade, há de além de se perder muitas pessoas hábeis
do grego para o latim e português" - especialmente Joaquim de para aqueles estudos, experimenta-se grande falta de pessoas gra-
Carlos Pinto de Souza - que "estarã~ capazes de ensinar aquela duadas para as magistrais das sedes, e muitos outros benefícios,
língua com muita brevidade" 48 • O professor de grego do Porto, que pedem aquela graduação; e também de médicos para todo o
Tomaz Dalany, também formou "alguns estudantes muito bons e reino" 52 • Recomenda, portanto, a criação de cursos filosóficos em
·'
há poucos dias - continua o diretor geral dos estudos - fez um Lisboa, na Universidade de Coimbra, em :Évora, Porto, Braga e
exame público aos seus discípulos com que mostrou quanto tem Santarém, e, significativamente, que os novos professores "não sejam
sido útil o seu magistério aos Vassalos de V. M." 411 • regulares pelas razões, que repetidas · vezes, e em diversas consultas

48. Sobre a conta que S. M. ordena se lhe dê do progresso do estudo no 50. Idem, ibidem.
fim de cada ano, 1761, Registro das Ordens, códice 417. 51. Idem, ibidem.
49. Idem, ibidem. 52. Idem, ibidem.

122 123
tenho posto na real presença de V. M." 53 • O método e sistema inimigos em defesa da Pátria não digo só os estudantes os mes-
destes cursos "deve ser experimental, que hoje se observa em toda mos professores" 56 • Se nos tempos de paz os fatos assim se
a parte do mundo ... " M. Expulsos os jesuítas, ficaram as escolas passavam, o que pensar das épocas de guerra? Não é de estra-
reais, entre as quais o Colégio das Artes de Coimbra, sem o con- nhar, portanto, que em seu relatório de 1763 tenha o diretor ge-
curso de professores de filosofia. Os cursos filosóficos, é verdade, ral dos estudos limitado as suas informações a uma brevíssima e
continuaram a ser mantidos pelas demais casas de ensino das ordens sucinta notícia. "A guerra - diz aí. D. Tomaz de Almeida - em-
religiosas. Todavia, é precisamente contra esta situação que se baraçou o estabelecimento de todos os estudos assim no reino co-
insurge o diretor geral dos estudos, pois, a filosofia ensinada nessas mo nas conquistas" 57 • Por este motivo, somente nas cidades de
escolas " é inutilíssima e os seus professores muito pouco costuma- Lisboa, Coimbra, Évora, Porto e Olinda, os estudos continuaram
dos a tratar com outra gente que não sejam os seus religiosos; e por normalmente.
isso pouco proporcionados a regularem tão numeroso concurso de Não foi somente a guerra, entretanto, que prejudicou o desen-
estudantes seculares, que necessitam de modo, civilidade e respeito, volvimento da reforma. A criação de novas cadeiras dependia es-
que em tais mestres por via de regra se não acham, nem zelo do sencialmente da criação de novos partidos, por intermédio dos quais
aproveitamento dos estudantes" 55 • pudessem os professores manter-se. Na referida conta, insiste par-
No ano seguinte, as aulas foram perturbadas pelas conseqüên- ticularmente o diretor geral dos estudos sobre este ponto de deci-
cias advindas da guerra entre Portugal e Espanha. Os soldados siva importância para a ampliação do programa traçado pelo Al-
eram recrutados entre os estudantes, de uma forma indiscriminada. vará de 28 de junho de 1759: "os meus comissários - afirmava
Por isso instaram os comissionários a fim de que os bons alunos o Principal Almeida - instam por professores régios com parti-
ficassem livres do recrutamento forçado. Apesar desses esforços e dos, custando-lhes muito conseguir que haja quem ensine porque
do Alvará de 28 de fevereiro de 1746, que dispensava os melhores os lucros dos que pagam são tão tênues que não bastam para se
estudantes do serviço militar, çontinuamente as escolas se desfal- sustentarem, pois sendo pobres os habitantes não têm com que
cavam porque as autoridades incumbidas do recrutamento nem pagar os salários aos mestres e não mandam os filhos aos estudos
sempre agiam com o escrúpulo que o caso requeria. O mal seria pelo que se perdem muitos talentos que seriam úteis à Pátria se
muito mais tarde condenado pelo professor régio da Bahia, Luís tivessem aplicação"58 • Somente transcorridos alguns anos foram
dos Santos Vilhena: "É igualmente para notar - dizia a Filópono tomadas as primeiras providências destinadas a restabelecer os estu-
o autor das Cartas Soteropolitanas - o ver que se bloqueiam e dos filosóficos nas principais cidades do reino.
invadem as aulas régias e que sem atenção a coisa alguma se ar- No relatório de 1765 59 não se registra qualquer fato digno de
rancam delas para soldados os estudantes mais hábeis e aplicados, nota. Nele indica apenas o diretor geral as providências tomadas
sendo ignominiosamente tratados pelos executores daquelas diligên-
pelos seus comissários em diferentes localidades, no sentido de
cias os professores respectivos que em serviço do soberano e da recolher os livros proibidos e de suspender os mestres que ensinavam
Pátria se têm empenhado em instruí-los, eni aproveitá-los, chegan-
do a vésperas de mostrarem em seus exames públicos o fruto das
suas diligências e fadigas para então serem presos e sentar-se-lhes 56. Cartas de Vilhena, Notícias Soteropolitanas e Brasílicas, por Luis
praça, quando o seu comportamento e conduta bastavam para isen- dos Santos Vilhena, anotadas pelo Prof. Braz do Amaral e mandadas publicar
tá-los de uma semelhante sorte, bem entendido, que sem urgente pelo Exmo. Sr. J. J. Seabra, Bahia, Imp. Oficial do Estado, 1922, 2 vols.,
necessidade de soldados, porque a haver carência de oposição aos Carta Oitava, 1. 0 vol., pág. 287.
57. Sobre a conta que devo dar a V. M. no fim de cada ano do pro-
gresso dos estudos, 1763, Registro das Ordens, códice 417.
53. Idem, ibidem. 58. Idem, ibidem.
54. Idem, ibidem. 59. Sobre a conta que se dá a S. M. sobre o progresso dos estudos do
55. Idem, ibidem. ano que findou em o último de agosto de 1765, Registro das Ordens, códice 417.

124 125
pelo método alvarista. Em Pernes, como em Lisboa, foram apre- suíam as suas classes na matéria que o Alvará de 28 de junho de
endidos os famigerados livros e os mestres que os utilizavam sus- 1759 tornara indispensável ao ingresso nas Faculdades. Também
pensos de suas aulas. No Porto, Coimbra e Santarém foram revistadas os estudos filosóficos encontraram nas providências reais as medi-
as casas dos livreiros e recolhidos os livros condenados. Não se das que reclamavam. Bento José de Souza Farinha já lecionava nas
deve interpretar a ausência de informações mais amplas como um salas da antiga Universidade jesuítica com real agrado das pes-
sinal de que os estudos tenham perdido a sua primeira emulação. soas que freqüentavam o seu curso 65 • O futuro tradutor de Genuen-
Ao contrário, é lícito pressupor que as aulas régias começassem, se iniciara, hoje é possível dizer-se positivamente, os seus cursos
nesta altura, a apresentar os seus primeh·os resultados positivos. por volta de 1764, anos antes de ter sido designado para "ler
Bastante significativas neste sentido são as cartas dos comissários filosofia" na cidade de Évora 60 • Bento José foi nomeado em 1770.
do Porto, Coimbra e Évora, nas quais se dão amplas e pormenori- Já em 1767, entretanto, fora nomeado para Coimbra o professor
zadas notícias do desenvolvimento e progresso da reforma nessas régio de filosofia Antonio Soares, e, em 1768, para a cidade do
cidades. Algumas dessas cartas se encontram na Secção de Manus- Porto, fora indicado Manoel Álvares de Queiroz.
critos da Biblioteca da Universidade de Coimbra. O novo comissá-
Criada em 1768 a Real Mesa Censória, com atribuição para
rio da cidade universitária, João Mendes da Costa, testemunha, em
examinar livros e papéis já introduzidos e por introduzir em Por-
sua correspondência com o diretor geral dos estudos, o cuidado com tugal, alguns anos depois ampliou-se a sua esfera de ação com a
que acompanhava, assistindo aos professores, cumprindo as deter- incumbência que lhe foi conferida de toda a administração e direção
minações de D. Tomaz de Almeida e sugerindo medidas que julgava dos estudos das escolas menores destes reinos e seus domínios.
úteis, o desenvolvimento dos estudos no Colégio das Artes. São Com esta modificação, os estudos menores ganharam amplitude e
notícias amplas e valiosas que se encontram nessas cartas: informa- penetração, pois, graças à instituição do subsídio literário, as aulas
ções sobre as classes dos Profs. Manoel de Paiva Veloso e Domingos de latim, grego, retórica e filosofia passaram a contar, daí por dian-
Marques 6 0 sobre o crédito do Colégio, a sua freqüência e o zelo dos te, os recursos indispensáveis para o seu estabelecimento. Dispondo
professores 61 , sobre providências referentes aos exames de retórica, dos elementos que a experiência administrativa da direção geral
· recentemente estabelecidos, para os candidatos às escolas univer- dos estudos, nos anos anteriores, lhe fornecera, a Real Mesa Cen-
sitárias 62, sobre a visita que fez às classes de retórica e grego, indi- sória encaminhou à apreciação do Rei uma ampla e pormenorizada
cando o número de alunos que as freqüentavam 63 e sobre a oração consulta, na qual consubstanciou as diretrizes que, sem grandes mo~
recitada pelos professores de retórica, providências e consultas de dificações, em administrações sucessivas, foram adotadas até o ad-
diversas naturezas 04 • Tudo isto demonstra o zelo com que foi apli- vento das Reformas de 1835 e 1836. Afirmando "ser necessário
cada a reforma no Colégio de Coimbra, no qual, aliás, desde o um estabelecimento de estudos menores, cujos professores vivam
primeiro momento, não faltaram nunca os professores régios. As distribuídos pelas terras principais do reino, e de todos os Estados,
mesmas providências foram tomadas para as cidades do Porto e e por aquelas terras, que sendo de inferior e desigual graduação
Évora que, se nos primeiros anos posteriores à implantação da re- forem bastantemente povoadas" 67, a Real Mesa Censória elaborou
forma não contaram professores de retórica, a partir de 1764 pos-
65. Ver Mariana Amélia Machado Santos, Bento José, Professor de Filo-
sofia em Évora, Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1945.
60. Carta de 28 de janeiro de 1765, Biblioteca da Universidade de Coim- 66. Os documentos (atestados de diferentes pessoas) que se encontram
bra, Secção de Manuscritos, códice 2.535, doc. 6, LII. na Secção de Manuscritos da Biblioteca da Universidade de Coimbra, códice
61. Carta de 2 de dezembro de 1765, idem, códice 2.535, doc. 6, LIX. 2.530, does. 44 e 45; códice 2.532, does. 4, 5, 9, 13, 14, 15 e 16, e códice
2.535, does. 6-1 e 18; foram p~blicadas pelo Prof. M. Lopes de Almeida in
62. Carta de 21 de outubro de 1765, idem, códice 2.535, doc. 6, LXII. A Propósito de Bento José, Professor de Filosofia em Évora, Coimbra, Biblio-
63. Carta de 17 de março de 1766, idem, códice 2.535, doc. 6, LV. teca da Universidade, 1947, págs. 14 a 17.
64 . V árias cartas, de diferentes anos, que se encontram no códice citado, 67. Consulta sobre o estabelecimento dos estudos menores, Registro elas
doc. 6, LVIII, LXIII, LXV e LXIX. Ordens, códice 417.

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um mapa com a discriminação das cidades, das espectes de aulas e escrever para meninas órfãs e pobres; b) criação de um jardim
do número de professores que deveriam preenchê-las. De acordo botânico; c) criação de uma cadeira para leitura de "caracteres an-
com este mapa, deveriam ser criadas 479 cadeiras de ler e escrever: tigos"; d) auxílio para publicação de obras compostas pelos mem-
440 no reino, 15 nas ilhas e 24 no ultramar; 236 de latim: 205 no bros da Mesa e pelos professores a ela subordinados; e) criação de
rt-lno, 10 nas ilhas e 21 no ultramar; 38 de grego: 31 no reino, um curso de matemática em Lisboa, com os professores necessários
3 nas ilhas e 4 no ultramar; 49 de retórica: 39 no reino, 3 nas e, finalmente; f) a instituição de duas acadeinias, uma para as ciên-
ilhas e 7 no ultramar; 35 de filosofia racional e moral: 28 no reino, cias físicas e outra para as belas letras 72 • Encontram-se nesta con-
3 nas ilhas e 4 no ultramar 08 • Em 11 de novembro de 1773, sulta recomendadas as medidas que foram realizadas com a reforma
aumentava-se o número dos professores com a criação de mais 47 da Universidade e, posteriormente, com algumas das providências
cadeiras de ler e escrever, 37 de gramática latina, 2 de retórica e mais sábias do governo de D. Maria I.
uma de filosofia. A distribuição desses estudos foi feita com muito
cuidado, de acordo com a dignidade e a situação das terras, o núme-
ro de habitantes, o destino dos estudantes, a situação geográfica das IV
localidades e outras razões de igual natureza oo.
Na referida consulta, sugere-se a criação de um fundo pecuniá- Até que ponto esta reforma estendeu-se ao Brasil? Já em 1759
rio para garantia dos novos estabelecimentos. "O fundo pecuniá- realizaram-se na Bahia, por direta incumbência do Principal Tomaz
rio que há de manter este projeto pode estabelecer-se suavíssima- de Almeida, concursos para provimento das cadeiras de latim e re-
mente, e com muita satisfação dos povos, que para ele hão de con- tórica, dos quais saíram-se satisfatoriamente dezenove opositores 73.
tribuir na imposição de um real em cada canada de vinho, e E no mesmo ano eram escolhidos em Portugal os dois professores
quartilho de aguardente, no reino e ilhas e em cada arratel de vaca régios de Pernambuco, Manoel de Melo e Castro e Manoel da Silva
na Ásia, América e África" 7{). Prevendo o êxito da aplicação Coelho. As atividades desses dois professores foram repletas de in-
deste imposto sugere a Real Mesa Censória sejam concedidos orde- cidentes, seja pela resistência que lhes ofereceu a gente da terra,
nados aos mestres, de tal forma "que a sua suficiência sendo pro- seja ainda por certos episódios em que foram envolvidos. As cartas
porcionada ao estado, comodidade e carestia das terras, confira aos por eles enviadas ao Principal Tomaz de Almeida, dando conta de
professores a decente honestidade de habitação e de independência" n. suas atividades, constituem documentos indispensáveis a uma justa
compreensão dos esforços feitos no sentido de introduzir a reforma
Com os recursos deste imposto, chamado subsídio literário, pombalina em nosso país 74.
além do pagamento dos ordenados aos professores, para o qual ele
foi instituído, poder-se-iam ainda obter as seguintes aplicações: 1) A resistência ao trabalho dos professores régios Manoel da
compra de livros para a constituição de uma biblioteca pública, su- Silva Coelho e Manoel de Melo e Castro adquiriu um aspecto sig-
bordinada à Real Mesa Censória; 2) organização de um museu nificativo porque, ao lado do apego ao antigo método, se fez sentir
de variedades; 3) construção de um gabinete de física experimental, também a reação xenófoba dos nativos. Dos diferentes documentos
melhor aparelhado e com maior amplitude do que o existente no que acompanharam esta agitada disputa, que foi dos primeiros dias
Real Colégio dos Nobres; 4) a) amparo a professoras de ler e
72. Idem, ibidem.
73. Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis Referentes ao Concurso de
68. Lei de 5 de agosto de 1772, publicada em 12 de novembro de 1772.
Professores Régios, ms. ns. 4.824 a 4.829.
69. Cf, Consulta ... , cit., onde se encontram as diversas considerações 74. Biblioteca da Universidade de Coimbra, Secção de Manuscritos có·
que conduziram os elaboradores do plano na distribuição das cadeiras. dice 2.534, doc. 35, IV, V, VI, VII e VIII. Estes documentos além de o~tros
70. Idem, ibidem. qu~ se re f erem a
' reforma dos estudos em Pernambuco, serão publicados em'
71. Idem, ibidem. apendice.

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da chegada dos professores régios 7ü até fins de 1762, resulta que destes muito mal, e levantando-lhe muitos testemunhos e pondo-os
os filhos da terra pre~eriram as aulas dos professores nacionais. Luiz no ódio das gentes" 78 •
Diogo Lobo da Silva, que agiu com suficiente equilíbrio nesta con- Diante destes fatos, não seria de estranhar que as aulas dos
tenda, afirmava, em carta datada de Recife, a 24 de agosto de 1762, professores régios perdessem o concurso dos alunos. O abandono
dirigindo-se ao diretor geral dos estudos, que vozes correntes espa- das classes dos professores régios e o crescimento das regidas pelos
lharam por esta terra que o comissário Bernardo Coelho da Gama naturais ilustram-se muito bem por estes números constantes da Lista
Casco "segurava que os professores régios seriam excluídos o que é dos estudantes que aprendem Gramática Latina nas classes estabele-
verossímil acreditarem os nacionais do país, que tinham por ofensa
cidas na cidade de Olinda, Vila do Recife e Povoação da Boa Vista,
meterem-se-lhes mestres europeus quando se julgam pelo amor pró-
elaborada em outubro de 1761 70 : Em Olinda, na classe de Manoel
prio distintos na inteligência de que se desvanecem" 70 • Aliás, já de Melo e Castro, 9 estudantes; em Recife, na classe de Manoel da
chegara aos ouvidos do diretor dos estudos em Lisboa a notícia de
Silva Coelho, 20 estudantes; na classe de Francisco de Souza Maga-
que os professores régios, como quaisquer outros portugueses, vindo
lhães, 59 estudantes, e na classe do Pe. Felipe Nery da Trindade,
para o Brasil, agiam como uma pessoa que "se persuade que é um
35 estudantes; em Boa Vista, na classe do Pe. Manoel da Silva, 30
príncipe e cheio de soberba, de altivez, e de vaidade pretende pisar
estudantes. Esta situação foi, em carta, descrita pelo professor régio
e meter debaixo dos pés a todos que se acham destas bandas; e
Manoel da Silva Coelho: "Dos estudantes que tinha - dizia o
lhe custa muito estar sujeito e obediente aos legítimos superiores" 77 • missivista - morreu há pouco um: o outro foi para frade e uns
A esta resistência dos naturais da terra somou-se, agravando quatro saíram por não quererem ser castigados de modo algum.
a situação, o apego, de que alguns documentos fazem alarde, à Tenho notícia bem fundada que três destes estudam com um clé-
Arte do Pe. Manoel Alvares e à Prosódia de Bento Pereira. O rigo . . . Com que acho-me ao presente com 13 estudantes dois da
próprio comissário, segundo se depreende das cartas e documentos 2.a e os mais da 3.a" 80 •
existentes na Biblioteca da Universidade de Coimbra, muito contri- É provável que estes fatos se explicassem também pelo pro-
. buiu para que maior fosse a reação à introdução do Novo Método. cedimento particular dos professores, contra os quais se levàntaram
Em carta ao conde de Vila Flor, comunicara o Principal Tomaz de queixas que iam desde as imputações de falta de civilidade e des-
Almeida a opinião dos professores régios a respeito do assunto: respeito aos superiores até a violação das ordens régias que deter-
"Que é tal a impressão que deixaram os jesuítas em todo o povo minaram a época das férias e dos suetos 81 •
que o seu método de ensinar era o melhor de todos; e tal as sauda-
des que os naturais têm dele que por esse respeito têm todos ódio Essa disputa terminou com a suspensão dos Profs. Felipe Nery
aos novos métodos que S. M. mandou estabelecer para a reforma e Francisco de Souza Magalhães, sobre a qual escreveu Luiz Diogo
dos estudos e deles dizem todos quanto mal .se pode excogitar per- Lobo da Silva ao Principal D. Tomaz de Almeida, a fim de pedir
suadindo a todos que pelo Novo Método se não pode saber latim, comiseração para os referidos mestres, em virtude do estado em
e assim fazem zombaria e escárnio dos ditos novos métodos e por que ficaram, responsabilizando, ao mesmo tempo, o comissário Ber-
conseguinte também dos professores que os foram ensinar dizendo nardo Coelho da Gama Casco por ter criado e incentivado a crise

75. No Arquivo Histórico Ultramarino, na Caixa 53, existe carta do 78. Idem, códice 2.534, doc. 35, Instrução para o Exmo. Sr. Conde de
professor régio Manoel da Silva Coelho, dando conta de sua chegada. Vila Flor, Govemador de Pemambuco, datada de Lisboa, 7 de outubro de 1761.
76. Biblioteca da Universidade de Coimbra, Secção de Manuscritos, có- 79. Idem, códice 2.534, doc. 35, XV.
dice 2.534, doc. 35, 11. 80. Idem, códice 2.534, doc. 35, VII, cit.
77. Idem, códice 2.534, doc. 35, VII, Carta de Manoel da Silva Coelho 81. Verificar nos Apêndices as cartas dos professores régios, especial-
a D. Tomaz de Almeida, de 18 de julho de 1762. mente a de n. 0 III, defendendo-se dessas acusações.

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que justificou as duras providências do diretor geral dos estudos 82 em seu lugar um discípulo, retirou-se para Lisboa. Em 1770, vinha
Graças a estas providências, voltaram os alunos, não sem ser pre- também de Portugal para Vitória, no Espírito Santo, Domingos
cisa "pequena violência", na expressão de Manoel da Silva Coelho, Barbosa e Torres de Pita Rocha, com ordenado estipulado de acordo
para as aulas régias. Obrigados pela autoridade, os estudantes não com os pareceres dos comissários da Bahia e Rio de Janeiro, o que
Mcontraram outra solução senão a de acatar respeitosamente as faz supor que, nesta última cidade, tal como acontecera na Bahia,
ordens, disfarçando talvez aquele "ódio ao novo método como eles a escolha dos professores se fizera por intermédio de um concurso
publicam dizendo não ser este o leite com que os criaram", na realizado perante os comissários, entre os próprios elementos da
pitoresca expressão de uma das cartas de Manoel de Melo e Castro 83 • terra. Não resta dúvida que, num país como o nosso, onde as ordens
Por força destas imposições, a classe de Manoel de Melo e Castro religiosas tão grande papel tiveram na formação da juventude, a
passou a ter "20 e tantos alunos", enquanto a de Manoel da Silva suspensão das escolas jesuíticas causou imensos transtornos na vida
Coelho, em Recife, alcançava o número de 90 estudantes. das povoações menores. É muito difícil precisar até que ponto e
Completando essas providências, foram realizados inquéritos no em que escala se fez sentir a Reforma de 1759 no Brasil. Nos
sentido de verificar quais os professores que lecionavam sem licença relatórios de D. Tomaz de Almeida, dos quais três se encontram
e quais seguiam ainda, nas suas aulas, os livros proibidos. Pelo registrados no Livro do Registro das Ordens Expedidas para a Re-
auto-sumário sobre professores que ensinam gramática pelo método forma e Restauração dos Estudos deste Reino e seus Domínios,
antigo ou sem licença, realizado na presença do Des. Ouv. geral que se acha no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, apenas as
Bernardo Coelho da Gama Casco, inquiriram-se várias testemunhas, classes dos professores de Pernambuco são mencionadas como aulas
de cujos depoimentos se depreende a existência de um professor em crescente progresso. Isto não significa, entretanto, que somente
que ensinava sem licença e pelo método antigo, de um padre que em Pernambuco tenham funcionado classes régias. Embora nos
lecionava a um estudante pobre com autorização do professor régio faltem documentos, é de presumir-se que em outras cidades brasi-
e de um beneditino, que ensinava sem licença, mas pelo método leiras a escolha dos professores se fizera de acordo com as modifi-
novo 84 • Com o mesmo objetivo, foram feitas diligências por José cações que o Alvará de 1 de janeiro de 1760 introduzira no de 28
Teodoro de Lemos Duarte, secretário da diretoria dos estudos da de junho, modificações estas que permitiram a realização de con-
Capitania de Pernambuco, nas aulas de gramática latina das vilas
cursos perante os delegados do diretor geral dos estudos.
de Igarussu e Goiana e cidade da Paraíba. Nelas encontrou o secre-
tário os alunos instruídos pelo Novo Método e as classes bem Estas providências, entretanto, não foram suficientes para asse-
freqüentadas. Em Igarussu havia 21 estudantes, em Goiana, 16, e gurar a continuidade e a expansão das escolas brasileiras, constan-
na cidade da Paraíba, 24 8 ü. temente reclamadas pelas populações que até então se beneficiavam
Para o Grão-Pará foi nomeado, em 1760, Eusébio Luiz Pereira da assistência que as classes dos jesuítas davam a seus filhos. Foi
Ludon, que permaneceu no Brasil até 1768, ano em que, deixando preciso esperar pela criação do subsídio literário para que o ensino,
ao menos do ponto de vista quantitativo, retomasse a amplitude do~-­
tempos anteriores. Nas novas aulas criadas pela lei de 5 de agosto
82. Códice 2.534, doc. 35, li, carta datada de Pernambuco, a 24 de foram instituídas 17 aulas de ler e escrever: 2 no Rio de Janeiro, 1
agosto de 1762. Sobre a atuação do comissário Gama Casco ver o atestado 4 na Bahia, 4 em Pernambuco, e uma em Mariana, São Paulo,
nos professores régios, a declaração de José Leandro e a carta de Miguel
Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco para Luiz Diogo Lobo da Silva, Vila Rica, Sabará, São João del-Rei, Pará e Maranhão; 15 aulas de ·
códice cit., doc. cit., 11. gramática latina: 2 no Rio de Janeiro, 3 na Bahia, 4 em Pernam- '
83. Idem, códice 2.534, doc. 35, VIII, carta a D. Tomaz de Almeida buco e uma em Mariana, São Paulo, Vila Rica, São João del-Rei,
datada de Olinda, a 25 de novembro de 1762. Pará e Maranhão; 6 aulas de retórica, distribuídas por Rio de ,
84. Idem, códice 2.534, doc. 35, XII. Janeiro Bahia Pernambuco, Pará, Mariana e São Paulo; 3 de língua ·
85. Idem, códice 2.534, doc. 35, XIV. grega e' 3 de ' filosofia, no Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco./ '

132 133
As aulas regtas não impediram, entretanto, que contmuassem - que se observa no Bispado de São Paulo aonde o Huminado e
os estudos nos Seminários e Colégios das Ordens Religiosas. Em virtuoso prelado daquela Diocese não admite os ordinandos às ordens
São Paulo, por exemplo, o Bispo D. Manoel da Ressurreição, num antes de saber essas faculdades" 80 •
relatório de 1777, dá notícia dos trabalhos escolares no planalto: O desenvolvimento dos estudos menores só poderia alcançar,
''Todos estes pretendentes estudaram com aproveitamento três anos dentro do plano de 1772, o seu completo desenvolvimento depois
de filosofia escolástica nas aulas dos franciscanos desta cidade; de- que a arrecadação do subsídio literário vencesse todas as dificuldades
pois freqüentaram os estudos de teologia moral e dogmática com e atingisse o mínimo que lhe era indispensável para a manutenção
o mesmo aproveitamento outro triênio; e agora todas as tardes na de tão arrojado empreendimento. No reino, os benefícios trazidos
minha presença dão lição de escritura sagrada e fazem conferências pelo subsídio logo se fizeram sentir, ainda durante a administração
de moral a que eu presido 86 • Os cursos de filosofia, teologia e pombalina. No Brasil, entretanto, o desenvolvimento das escolas,
moral constituíam a continuação dos estudos de gramática latina graças ao subsídio literário, ao que nos parece, somente alcançou,
e retórica. :É de presumir, portanto, que tenha havido em São Paulo e talvez ultrapassou o plano de 1772, a partir do governo de D.
professor destas matérias. Todavia, referências ocasionais, em carta Maria I. Na Carta Oitava da Recopilação de Notícias Soteropoli-
de Martins Lopes Lobo de Saldanha a Martinho de Melo e Castro, tanas e Brasílicas contidas em Vinte Cartas que da Cidade do Salva-
a respeito da reserva das salas do antigo colégio dos jesuítas para dor Bahia de Todos os Santos escreve um a outro Amigo em Lisboa
os professores régios, demonstram que, pelo menos até 1775, não debaixo de nomes alusivos noticiando-o do Estado daquela cidade,
existiam em São Paulo aulas régias de gramática latina e retórica 87 • sua Capitania, e algumas outras do Brasil, feita e ordenada para
Estas aulas deveriam ser ministradas pelos próprios religiosos o que servir na parte que convier de elementos para a História Brasílica,
aliás é bastante compreensível, pois, como dizia em ofício Luiz ornada de Plantas Geográficas e Estampas . .. 0 (}, Luís dos Santos
Antonio de Souz·a, era "esta terra composta pela maior parte de Vilhena dá notícia das cadeiras existentes na Bahia e comarcas
frades, clérigos e coroinhas, e parentes destes mesmos e não haver adjacentes. Na cidade, havia uma cadeira de retórica, uma de filo-
pessoa alguma que deixe de seguir ou depender deste partido" 88 • sofia, uma de língua grega e outra de geometria; 4 de gramática
Todavia, já nos últimos anos do decênio de 80, deveriam prevalecer latina, com um substituto para todas elas e 6 escolas de ler e
em São Paulo os novos métodos de gramática e até mesmo a filosofia escrever. Nas demais Vilas da Comarca da Bahia e nas comarcas
recomendada pelos estatutos da Universidade de Coimbra. Em uma e vilas a elas pertencentes, de Sergipe del-Rei, Ilhéus, Porto Seguro
carta datada de 1787, os professores régios de língua grega e de e Capitania do Espírito Santo, o número de classes de gramática
retórica do Rio de Janeiro, João Marques Pinto e Manoel Inácio da latina e de ler e escrever atingia a 17 e 15 respectivamente 01 • Por
Silva Alvarenga, censurando a ação dos religiosos daquela cidade, esta minuciosa informação, pode-se ter uma idéia do desenvolvi-
que admitiam nos seus cursos os estudantes que não tinham com- mento do ensino em terras brasileiras. A situação descrita por
pletado seus estudos de filosofia, grego e retórica, afirmavam que o
Bispo de São Paulo não permitia que ingressassem nas ordens reli-
giosas os que antes não tivessem acabado os seus estudos nessas 89. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV,
disciplinas: "como é constante nessa cidade - diziam os professores · Parte Primeira, pág. 200.
90. . . . dividida em três tomos que ao soberano e Augustíssimo Príncipe
Regente Nosso Senhor o Muito Alto e Muito Poderoso Senhor Don João
dedica e oferece o mais humilde dos seus Vassalos, Luiz dos Santos Vilhena,
86. Apud Pe. Heliodoro Pires, A Paisagem Espiritual do Brasil no Século
professor régio de língua grega na Cidade da Bahia, 1802.
XVIII, São Paulo Ed., São Paulo, 1937, pág. 36.
87. Arquivo Histórico Colonial, Província de São Paulo, carta de Martins 91 . Cf. Cartas de Vilhena, ed. Braz do Amaral, Mapa do Rendimento
Lopes Lobo de Saldanha a Martinho de Melo e Castro, São Paulo, 12 de do Subsídio Literário, no qual. se encontram a distribuição das receitas pelas
novembro de 1775, maço 1774-1775. povoações nos anos de 1795 a 1797, com os seus totais e o nome dos profes-
sores, seus ordenados, cadeiras que ocupam e povoação onde residem, in Apên-
88. Idem, Província de São Paulo, Ofício de Luiz Antonio de Souza a
Martinho de Melo e Castro, 18 de junho de 1774, maço 1774-1775. dice, à Carta Oitava, folha separada, 1. 0 volume.

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Vilhena não deveria ser muito diferente nas demais províncias. O tudo, a instaurar no setor educacional uma política de fins regalistas
subsídio literário, tal como foi planejado, deveria corresponder ade- mais de qualidade do que de quantidade. Seu objetivo velado, por-
quadamente às condições econômicas diversas das regiões nas quais que não transparece nos alvarás e leis régias, visava, eminentemente,
foi arrecadado. No caso da Bahia, lastima Vilhena até mesmo o a combater os males que advinham do desenvolvimento do ensino
excessivo número de professores régios existentes. Em Pernambuco, monástico para os interesses econômicos e políticos do Estado. É
tal como acontecera com os estudos franciscanos paulistas, nos pri- compreensível que os homens de D. José I fossem cautelosos no
meiros anos do século XIX 02 , o Colégio de Olinda, graças à ação seu modo de agir e procurassem, aliás com imensos benefícios para
do Bispo Azeredo Coutinho, se transformava na "escola dos heróis" a Coroa, o apoio das figuras mais insignes do clero portu~uês do
de nossa emancipação mental, precursora de nossa emancipação tempo. Nas suas lutas políticas, nos primeiros anos, o gabmete de
política. D. José I insistiu particularmente nos problemas de ordem canônica,
jurídica e econômica. Só mais tarde, na Dedução Cronológica e, pos-
Este auspicioso desenvolvimento, apesar de ter sido realizado teriormente, no Compêndio Histórico, atirou-se o gabinete no terreno
nos anos posteriores a 1777, encontra a sua principal causa no cheio de percalços das questões doutrinárias da política, não se
subsídio literário, instituído pela Real Mesa Censória, durante a eximindo nem mesmo de enfrentar os problemas filosóficos. Bas-
administração pombalina. Os professores régios, da terra ou do tante significativos a esse respeito foram os cuidados que a admi-
reino, que aqui exerciam o seu magistério, foram, sem dúvida, pro- nistração pombalina, no setor do ensino, demonstrou ao tratar dos
pulsionadores dos sentimentos liberais e incentivadores das idéias estudos filosóficos. Apesar das insistências do diretor geral dos es-
filosóficas que tão significativamente se fizeram atuantes nos últimos tudos, Principal Tomaz de Almeida, somente nos últimos anos do
trinta anos que antecederam a independência do País. José Bonifácio, decênio de 60 resolveu-se o gabinete pela criação de aulas régias
ligado à Universidade de Coimbra, Monte Alverne, Feijó, Martim de filosofia nas principais cidades do reino. Ensino propedêutico
Francisco, o professor régio de filosofia da Bahia, José da Silva indispensável à formação dos teólogos e canonistas, a filosofia, livre
Lisboa, e Manoel Inácio da Silva Alvarenga, entre outros, contri- das peias da tradição escolástica, andava como que procurando o
buíram com idéias, às quais não era estranho o espírito da reforma seguro fortim de uma doutrina no qual pudesse garantir, sem ferir
pombalina, para preparar o advento da ordem constitucional que os interesses da fé, os objetivos políticos do Estado. Os estudos
traria para o país a almejada libertação. filosóficos permaneceram desta forma, durante vários anos, desam-
parados de quaisquer providências que os pudessem colocar na mes-
ma altura em que o Alvará de 28 de junho de 1759 elevava os
v estudos de latim, grego e retórica.

O desenvolvimento das escolas menores, que apresentou tão A filosofia, que sempre foi matéria indispensável na Universi-
expressivos índices depois de 1777 (e no Brasil as informações de dade de Coimbra, aos exames de ingresso dos estudantes que se
Vilhena são a este respeito preciosas) correspondem provavelmente destinavam às suas Faculdades, embora continuasse depois do Alva-
a uma significativa mudança de orientação que prevaleceu a partir rá de 1759 a ser exigida na mesma escola, cedeu o seu lugar quase
dos primeiros anos do reinado de D. Maria I. Razões muitas temos exclusivo à retórica, transformada em matéria obrigatória nos refe-
para acreditar que as reformas pombalinas da instrução pública, nos ridos exames. Compreende-se, portanto, o interesse da administra-
diferentes aspectos por que se apresentou, destinavam-se, sobrG- ção dos estudos, pelo qual se cuidava de prover prontamente as
aulas régias da Arte de Quintiliano nas escolas do Porto e da Évora.
Depois de contínuos adiamentos da exigência destes exames, em
92. O Colégio dos Franciscanos de São Paulo era procurado por estu- 1763, por determinação do diretor geral dos estudos, todos os estu-
dantes de outras regiões. Monte Alverne fez os seus estudos em São Paulo. dantes de Lisboa que se destinassem para Coimbra deveriam apre-
Sobre o assunto ver Laerte Ramos de Carvalho, A L6gica de Monte Alverne, sentar certificados de conclusão dos cursos de retórica, ao candida-
cit. págs, 4$ !l $Q,

136 \
137
tar-se às aulas da Universidade. Esta exigência estendeu-se, no ano sucessos da Reforma de 1759, poderia, retrospectivamente, avaliar,
seguinte, aos alunos dos professores régios de Coimbra e, posterior- confrontando o trabalho de duas administrações, o alcance das me-
mente, depois de instaladas as aulas do Porto e Évora, todos os didas adotadas pelo gabinete de D. José I. Lastima o professor de
candidatos à Universidade deveriam apresentar certificados dos pro- filosofia a multiplicação das aulas régias por todas as cidades do
fessores de retórica destas quatro cidades, ou então prestar exame reino. Para este professor, a criação do subsídio literário foi um
em Coimbra, no qual provassem suficiência na disciplina. Tão mal porque permitiu que a quantidade prevalecesse sobre a quali-
grande interesse pelos estudos retóricos demonstra, por si só, a dade do ensino: e entretanto, "ainda que nesta segunda época já
preocupação humanista que presidiu aos planos da reforma dos es- abateram muito os estudos, nunca foi todavia como começou a ser
tudos menores. no ano de 1780, e veio a ser até agora" 04 • Estes males se agrava-
Na época do Renascimento, os trabalhos retóricos de Cícero ram ainda mais com a volta dos estudos às mãos dos religiosos:
e Quintiliano foram aproveitados na sistematização de uma lógica antes, diz Bento José, "havia uns poucos de frades criados com os
que, nos seus fins, procurou substituir o formalismo aristotélico pelo seus estudos, que sempre foram muito superficiais e divertidos; aos
ideal de inspiração romana do orador, tão visível nas preocupa~:ões quais nunca importou vigiar sobre estas aulas, nem concorrer com
de humanistas como Lourenço Valia e Rodolfo Agrícola 03 • Tanto coisa alguma para o progresso e adiantamento delas: antes pelo
no Verdadeiro Método de Estudar e na Dejensa do Novo Método, contrário tinham os olhos nos ordenados dos professores, e só tra-
quarito nas instruções para os professores de retórica que acompa- tavam no modo de haver para si, e repartir pelos seus mosteiros
nharam o Alvará de 1759, transparecem claramente as preocupações os estudos, e os ordenados dos professores.
de fazer do estudo da eloqüência um dos pontos capitais da reforma "Tinha isto suas dificuldades, das quais se aplainaram algumas
dos estudos menores. Já vimos, no primeiro capítulo deste trabalho, com o falecimento do Sr. Rei D. José, e das que restaram as maiores
de que maneira· o curso de lógica, exigido como condição de in- eram que tanto pelo tanto estavam primeiro, e já com anos de
gresso às Faculdades, foi compreendido: esta disciplina era muito serviço os professores: e por isto não tiveram remédio se não ofe-
mais uma matéria de jurístas, teólogos e canonistas do que uma recer-se a fazê-lo por menos. Coroada esta negociação com o
canônica indispensável ao investigador da natureza. A importância respeitável nome de Economia, nem parece mal a proposta, mas
atribuída ao estudo da retórica, em que pesem as suas estreitas dava cuidado o que se havia de fazer a tantos homens que estavam
relações com os propósitos do humanismo, correspondeu perfeita- servindo· sem nota, e muito com louvor" ou.
mente a este objetivo. A reforma pombalina dos estudos menores foi, sem dúvida,
É preciso reconhecer, entretanto, que o programa pedagógico um esforço no sentido de secularização das instituições educacionais.
do pombalismo traduziu, nos seus fins, o imperativo do regalismo Longe estavam, entretanto, os seus elaboradores das idéias liberais
doutrinário do tempo. As escolas de latim e humanidades deveriam que os reformadores do século seguinte procuraram introduzir na
servir, antes de tudo, aos interesses seculares, econômicos, políticos educação portuguesa. Seu objetivo superior foi criar a escola útil
e ideológicos do Estado. Ninguém melhor do que Bento José de aos fins do Estado e, nesse sentido, ao invés de preconizarem uma
Souza Farinha, professor régio de filosofia, conhecedor direto dos política de difusão intensa e extensa do trabalhO escolar, preten-
deram os homens de Pombal organizar a escola que, antes de servir
aos interesses da fé, servisse aos imperativos da Coroa. Ribeiro
93. Ver, nesse sentido, Dilthey, Hombre y Mundo en los Siglas XV! y Sanches sentiu muito bem o problema. Nas suas Cartas sobre a
XVII. Pondo de Cultura, trad. E. Imaz, México, 1944, conferindo as análises
que faz da utilização das fontes romanas, especialmente de Cícero e Quinti-
liano, nos trabalhos dialéticos do Renascimento. Ver, particularmente, El 94. Bento José de Souza Farinha, Sobre Estudos, Memória Terceira,
Sistema Natural de las Ciencias del Espíritu en el Sigla XVIII, IH. Influencia publicado em Apêndice no trabalho de Mariana Amélia Machado Santos,
del Estoicismo Romano en la elaboración del Sistema Natural de la Ciencia Bento José de Souza Farinha e o Ensino, Coimbra, 1948, pág. 43.
dei Espíritu, pág. 165, notas 89 a 90. 95. Idem, pág. 44.

138 139
Educação da Mocidade, procura demonstrar que com um mm1mo
de escolas bem aparelhadas o Reino estará melhor servido do que
com um grande número delas. O que importa, na opinião do Autor
do Método para Estudar a Medicina, é reforçar e garantir, contra
a !úpertrofia do poder eclesiástico, as vantagens do estado civil.
Referindo-se aos inconvenientes das leis vigentes no seu tempo, diz
este arauto da política pombalina que "o maior mal que causam
estas leis vem a ser que cada dia estão saindo do estado de vilão
e de cidadão muitos e muitos súditos, para entrarem naquele de
nobreza e dos eclesiásticos" 06 • As escolas, até o advento das re-
formas pombalinas, eram o meio de que lançavam mão tanto os
Capítulo IV
filhos de nobres quanto os de vilãos para ascender na escala social,
com privilégios, benefícios e imunidades dos altos cargos da admi-
nistração civil e eclesiástica. As escolas de latim, particularmente As Diretrizes da Reforma
porque existentes em maior número e freqüentadas pela população
desprovida de recursos, constituíam o caminho para o ingresso na Universitária de 1772
vida monástica e, desta forma, depauperavam as energias do trabalho
e da indústria que propiciavam a riqueza e o progresso do estado
civil e político. \ I - Os antecedentes da Reforma. A experiência do Colégios dos Nobres.
O ensino da "filosofia" experimental. A organização do curso. A Real
"A causa por que a maior parte da nação aprende o latim"
- dizia Ribeiro Sanches com o seu oportuno senso da realidade Í
I Mesa Censória e a cen.mra dos livros. A criação da Junta de Providência
Literária. O plano da reforma. A instalação dos novos cursos. O Mar-
portuguesa - "provém porque no reino há poucos estabelecimentos quês de Pombal em Coimbra. li - Os Estatutos de 1772. A organiza-
ção. dos estu·d·os. ·-E.a.culdaclccle_TeolQgj_ª, Leis e Cânones.!....Medicit.~{l!_~a- --·
. para ganhar a vida. . . Deste modo todos vão aprender latim, porque
o latim é o passaporte para entrarem no paraíso terrestre, onde se
L .·.temática__ e_]?jlo~ofiq._ III - As diretrizes da Reforma. Experiência e
filosofia. O ecletismo. A renovação dos estudos jurídicos. O Direito
come sem trabalhar ... " D7. Natural. O papel da história. Método analítico e método sintético. A
Teologia Escolástica e a História. O Regalismo. O sentido iluminista
da Reforma.

I
.i
A Reforma da Universidade de Coimbra, em 1772, constituiu
I
·-1.·
o coroamento das medidas pedagógicas ensaiadas ·pelo gabinete de
D. José I desde as primeiras providências escolares decorrentes da
secularização das missões do Grão-Pará 1 • Da criação da aula de
comércio e dos. cursos militares, entre os quais o Colégio dos Nobres,

1. O Alvará de 17 de agosto de 1758 estabelecia em cada povoação dos


índios do Maranhão e do Pará duas cadeiras de primeiras letras, uma para
meninos, e outra para meninas. Esta providência estava relacionada com a
96. Ob. cit., pág. 85. criação dos diretórios, que deveriam substituir a administração eclesiástica,
97. Idem, pág. 150. até então existente pela administração civil nos aldeamentos indígenas. Cf.
José Silvestre Ribeiro, ob. cit., t. I, pág. 203.

140
141
à reforma dos estudos menores e desta à reorganização geral da vida universitária, os preJUIZos decorrentes de um ensino que se
Universidade de Coimbra, é todo um programa educacional, mar- destinava muito mais a habituar os espíritos às disputas dialéticas
cado por ideais característicos, que progressivamente se realiza. Os l sobre os problemas teológicos e da jurisprudência civil e canônica
~;.
estudos universitários, depois da incontestável grandeza das épocas do que a criar o gosto pelos fatos precisos e pelas demonstrações
passadas, caíram num total abatimento. A descrição de Ribeiro San- rigorosas. O eco das conquistas experimentais e da nova filosofia
ches, continuamente repetida pelos historiadores, sobre o estado da não conseguira repercutir no ensino acadêmico de tal forma que a
Universidade nos primeiros decênios do século XVIII, ilustra muito concepção moderna das ciências positivas pudesse abalar os próprios
bem a triste situação em que se encontrava uma instituição, outrora fundamentos do sistema pedagógico vigente. Ao contrário disto, o
tão florescente. Aluno do Colégio das Artes de Coimbra, de 1716 regime das disputas, e oposições propiciava o interesse pelos assuntos
a 1719, onde freqüentara as aulas do Pe. jesuíta Manoel Batista e de alcance provável, com o sacrifício das questões, jurídicas e teoló-
fizera, durante dois anos, estudos de direito civil 2 , Ribeiro Sanches gicas, solidamente estabelecidas. O resultado desta situação con-
poderia, com autoridade, descrever a vida dos estudantes com uma duzia os estudantes a preferirem as vantagens, que os artifícios da
riqueza de pormenores que, ainda hoje, constitui a delícia dos aman- casuística proporcionavam, ao interesse pelas questões que não com-
tes de singularidades. No Método para estudar a Medicina, em mais portavam disputas. Aliás, o regime das oposições acadêmicas, numa
de um passo, refere-se Ribeiro Sanches aos hábitos e práticas abusi- Universidade ortodoxamente zelosa dos ideais da fé católica, facili-
vas dos estudantes da tradicional Universidade. "O curso acadêmico tava a inclinação dos estudantes pelo formalismo verbal e casuístico,
de Coimbra" - diz Ribeiro Sanches - "começando pelo São Lucas porque este se mostrava mais útil aos que ambicionavam os graus
e acabando a quinze de maio, não contém mais do que cento e nove acadêmicos. Fato perfeitamente compreensível, pois numa Univer-
dias letivos; e por causa dos dias de festa da Igreja, dos préstitos, sidade como a de Coimbra não seria possível imaginar disputas aca-
e outras funções acadêmicas, que todo o curso letivo se reduz a dêmicas em torno de questões sobre as quais a Igreja e a Monarquia
quase noventa dias letivos, ou três meses" 8 • Isto sem falar nos es- haviam estabelecido a doutrina inconcussa.
~'>-0• ~~·~--~~ .
tudantes "que voltam para suas casas tanto que se matricularam O Cclegio dos Nõbres foi a primeira experiência do estabele-
na Universidade três vezes por ano, o curso acadêmico para estes cimento das novas disciplinas científicas em Portugal. As necessida-
não foi de vinte dias letivos" . .. 4 • A este relaxamento da disciplina des do tempo exigiam a fundação de uma escola na qual a nobreza
escolar não faltavam, algumas vezes, os abusos, em que terminavam pudesse receber a educação condizente com o seu estado e com os
os oiteiros, e a turbulência dos ranchos, a se desmandarem em interesses políticos, econômicos e militares do reinado. O Colégio
tropelias até mesmo sanguinárias 5 • A estes males se somam, na dos Nobres foi, desta forma, uma escola destinada a substituir o
2. Ver Maximiano Lemos, Ribeiro Sanches a sua Vida e a sua Obra, Colégio das Artes de Coimbra. Se na época de D. João III bastava,
Porto, Eduardo Tavares Martins, 1911, págs. 12 a 161; sobre os estudos de para a formação da nobreza, a existência de um estabelecimento
direito civil: cf. Carta a Sampaio Valadares, dataqa de São Petersburgo, a organizado nos moldes do programa humanista, no século XVIII,
15 de julho de 1735 - "eu também estudei dois anos de direito civil e com o progresso das ciências, e com o próprio desenvolvimento
comecei a ver em casa de letrados alguns arrazoados do que nunca disse coisa
alguma a V. M .... " etc., apud Maximiano Lemos, ob. cit., pág. 14.
social e político, fazia-se necessária a criação de uma escola que
3. Método para Aprender e Estudar a Medicina, Ilustrado com os Apon-
tamentos Para Estabelecer-se uma Universidade Real na qual Deviam Apren- Bartolomeu". Este Rancho assaltava e espancava as famílias levando o desas-
der-se as Ciências Humanas de que Necessita o Estado Civil e Político, 1763, sossego a todos os lugares. Com o estudante Francisco Jorge Ayres foram
pág. 160. presos dezesseis estudantes e um criado de servir. Sobre o "Rancho de Car-
4. Idem, ibidem. queja" ver "Sentença de morte ·Contra o estudante Francisco Jorge Ayres,
5. De triste memória foi, nesse sentido, o "Rancho da Carqueja", que natural de Faiões termo da Vila de Feira, por ser um dos principais delin-
terminou com a condenação à morte do estudante Francisco Jorge Ayres, qüentes, que se levantou na Universidade de Coimbra nos anos de 1720 e
em 20 de junho de 1722, que foi degolado e sua cabeça enviada para Coimbra, 1721", in O Conimbricense, ns. 2.234 e 2.235, de 22 e 26 de dezembro de
"foi espetada em um pinheiro, no 1 de julho imediato, na Praça de São 1868.

142 143
inscrevesse, entre os seus propósitos mais altos, a formação do nobre máticas correspondia à necessidade de uma formação despojada do
que, tanto nos tempos de paz como nos de guerra, deveria desem- formalismo da pedagogia escolástica, que procurasse traduzir os
penhar a função que por direito lhe cabia. Ribeiro Sanches, nas reclamos das novas condições históricas. Sintomática do estado an-
Cartas sobre a Educação da Mocidade, recomendara a organização terior a essas reformas é a rememoração de episódios recentemente
de uma escola na qual a educação da nobreza e da fidalguia estivesse revelados pelo historiador Jaime Cortesão. No prefácio aos do-
proporcionada "à necessidade e ao estado atual de sua pátria ... cumentos referentes à preparação do Tratado de Madrid 7 , recorda
Antes que se usasse da pólvora, e que se fortificassem as Praças o eminente historiador Jaime Cortesão os episódios relacionados
pelas leis da geometria e trigonometria, não necessitava o general com a comunicação do geógrafo Guilherme Delisle, em 1720, à
do exército do exercício das matemáticas, e de algumas partes da Academia Real das Ciências de Paris, sobre a Détennination Geo-
física: a força, o ânimo ousado e a valentia já não são bastantes graphique de la situation et de l' étendue des differentes parties de
para vencer, como quando fazíamos a guerra expulsando os mouros la Terre, na qual "o maior luminar na geografia e cartografia em
da pátria. A arte da guerra hoje é ciência fundada nos princípios França ... negava que o cabo do Norte e a Colônia do Sacramento
que se aprendem e devem aprender, antes que se veja o inimigo: estivessem dentro da zona da soberania portuguesa, delimitada pelo
necessita de estudo, de aplicação, de atenção e reflexão; que o Meridiano de Tordesilhas" 8 • Informado, em março de 1721, por
guerreiro tome a pena e saiba também calcular e escrever, como é D. Luiz da Cunha, sobre as conseqüências políticas decorrentes da
obrigado a combater com a espada e o espontão: o verdadeiro guer- dissertação do geógrafo francês, em nome de D. João V solicitava-se
reiro é hoje um misto de homem de letras e de soldado" a. Nestas a D. Luiz da Cunha que tudo fizesse no sentido de obter a retratação
condições, a educação do nobre deveria ser feita por intermédio de Delisle ou, se isto não fosse possível, a não-publicação de seu
dos estudos indispensáveis à arte militar: matemática, física, astro- trabalho ou ainda, em último caso, a não-impressão das passagens
nomia, nas suas múltiplas aplicações, além do conhecimento das que diretamente feriam os interesses portugueses. A resposta de D.
letras clássicas, como o latim e o grego, da retórica, da história, Luiz da Cunha, em carta de 10 de novembro de 1721, ilustra muito
da poesia e das línguas vivas. Somente desta forma poderia contar bem o sentido da atitude de um estrangeirado que aprendera, no
o Estado não apenas com a valentia, mas ainda com as letras de convívio das Cortes estrangeiras, a apreciar o valor das investigações
seus fidalgos. positivas: "Remeto a V. S. a cópia da dissertação que fez M! Delisle,
A 7 de março de 1761, nas vésperas da invasão espanhola, foi fundada em novas observações astronômicas que se tem feito; de
criado o Colégio Real dos Nobres, talvez mais por força das cir- maneira que, para o convencer, seria necessário terem-se feito algu-
cunstâncias do que pelas oportunas sugestões de Ribeiro Sanches. mas observações mais modernas que as alegadas e, no caso contrá-
Pelos estatutos, eram admitidos na nova escola cem porcionistas, rio, não seria de parecer que se procurasse impugnar a opinião de
todos qualificados com foro de moço fidalgo, com sete anos de um geógrafo, de que nem a Corte de Espanha nem esta se podem
idade, no mínimo, e treze no máximo. No curso, estudariam as servir contra o que está estipulado nos Tratados. E, quando fosse
línguas latina e grega, retórica, poética, lógica e história, além do possível fazê-lo, então seria preciso mostrar o contrário" 0 • Esta
francês, inglês e italiano; aritmética, geometria, trigonometria, álge- resposta, precisa nos seus termos, é um testemunho indireto da ciên-
bra, geometria analítica, análise e cálculo integral; ótica, dióptrica, cia verbalística que predominava na Corte portuguesa. Vislumbram-
catóptrica, astronomia, geografia e náutica; arquitetura militar e se nela os sinais expressivos de uma mentalidade afeita aos hábitos
civil, desenho e física. As disciplinas introduzidas no currículo,
quando comparadas com as do Colégio das Artes de Coimbra, ilus- 7. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1750), obra planejada
tram muito bem o sentido dos propósitos reformistas do gabinete e organizada pelo Prof. Jaime Cortesão, em nove tomos, dos quais a parte
de D. José I. O ensino das línguas vivas e das ciências físico-mate- 111, em dois tomos, se encontra publicada: Al!fecedentes do Tratado, Ministério
das Relações Exteriores, Instituto Rio Branco, Rio de Janeiro, 1951.
8. Ob. cit., Antecedentes do Tratado, t. I, Prefácio, pág. 7.
6. Ribeiro Sanches, Cartas sobre a Educação da Mocidade, cit., pág. 175. 9. Idem, pág. 8.

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das disputas e que imaginava serem possiveis contestações mera- "indocilidade. . . com que se atreveram a resistir às advertências,
mente jurídicas, num terreno em que as aquisições positivas da aos castigos, e até ao respeito devido aos seus superiores" 10.
ciência começavam a prevalecer. A administração civil das escolas, por razões de diversas natu-
O Colégio dos Nobres, no pensamento de Ribeiro Sanches, rezas, havia de trazer, necessariamente, problemas que, do ponto
se integrava num plano de educação da mocidade portuguesa que de vista disciplinar, não podem ser subestimados. Os padres exer-
correspondia aos múltiplos aspectos da orientação dos interesses ciam sobre a mentalidade dos estudantes uma influência de ordem
especificamente diversos da sociedade lusitana. As escolas, na opi- espiritual que o mero trabalho de instrução, no qual se empregavam
nião deste iluminista, deveriam satisfazer, em graus distintos e estru- os professores régios, não poderia substituir. A educação, com-
tura diversa,' aos objetivos do estado civil que pretendesse, pela preendida nestes tempos como uma tarefa de formação sobretudo
agricultura, pelo comércio, pela indústria e pelas letras, integrar, na moral das gerações imaturas, encontrava no ensino eclesiástico o meio
órbita do progresso comum aos povos europeus, uma nação que eficaz de corrigir o abuso das inclinações naturais, conduzindo-as
vivera econômica e politicamente sob o império das tradições obso- para os elevados fins da cristandade. O sistema pedagógico que
letas. Desta forma, a educação da nobreza constituía apenas um então prevalecia pressupunha a idéia segundo a qual o homem era
aspecto de um programa pedagógico destinado a resolver os proble- naturalmente inclinado ao mal e que somente a educação poderia
mas específicos da situação histórica lusitana. As escolas de ler e desviá-lo do caminho da ruína moral a que fatalmente conduziriam
os seus instintos. Foram Locke e, sobretudo, Rousseau, em época
escrever, as classes de latim e humanidades, o Colégio dos Nobres,
posterior, que revelaram os direitos e a necessidade de uma educação
a Universidade Real traduziam, na filosofia do estrangeirado Ribeiro
que se compadecesse com a concepção do homem, despojada do
Sanches, os múltiplos aspectos de um programa pedagógico no qual pessimismo da escatologia cristã. À disciplina heterônoma da peda-
os ideais da burguesia encontravam a sua adequada manifestação. gogia e aos castigos dela decorrentes, a concepção naturalista dos
O estudo das novas técnicas indispensáveis à arte guerreira e diplo- problemas educacionais substituiu a ordem pedagógica em que os
mática, o conhecimento das línguas vivas representavam, sem dú- instintos e as vontades dos educandos, por força da própria natureza
vida, a concretização de um ideal do homem político que as con- e da utilidade que as condições da vida reclamavam, procuraram o
junturas históricas reclamavam. caminho que a razão livre lhes indicava. O Colégio dos Nobres
O Colégio dos Nobres não teve um desenvolvimento à altura constituiu, desta forma, nas condições do ensino português, uma
da inspiração que justificou o seu estabelecimento. Não é a ocasião tentativa de secularização das instituições educacionais, sem prece-
de examinarem-se aqui as razões de suas vicissitudes. :É provável, dentes na experiência pedagógica lusitana.
entretanto, que, num país até então impregnado pelo espírito da Compreende-se, portanto, que o ensino filosófico, atribuição
educação monástica, o novo empreendimento não encontrasse o quase exclusiva das escolas eclesiásticas, tenha sido assunto sobre
ambiente benfazejo que lhe facilitasse uma vida inteiramente voltada o qual o governo se decidiu com grandes cautelas. Apesar de a
para os fins dos interesses seculares da monarquia. Em 1772, dois filosofia experimental, nos anos anteriores à Reforma, ter sido ensi-
alvarás régios, numa série de determinações altamente significativas, nada, com aceitação das pessoas notáveis, nas escolas religiosas, e,
nos dão conta dos abusos introduzidos na disciplina do estabeleci- especialmente, nas aulas da Congregação de São Felipe Nery, so-
mento. A resenha das medidas sugeridas nesses diplomas régios mente depois dos reclamos advindos da situação criada pela extinção
revelam, por si sós, o alcance dos vícios que a secularização do das escolas jesuíticas, se decidiu o governo a estabelecer os cursos
ensino, feita sem maiores cuidados, introduzira no regime secular filosóficos, nas principais cidades do Reino, os quais o regime esco-
do colégio: "A falsa persuasão, de que a fortuna de nobres os con- lar vigente exigia e justificava. O primeiro curso filosófico moderno,
duzia [refere-se aos proporcionistas] a uma como independência das
virtudes, para se fazerem inflexíveis à sujeição dos ditames com que 10. Apud José Silvestre Ribeiro, História dos Estabelecimentos Científi-
deviam dirigir a mesma fortuna para ser permanentes" conduziu à cos ... , cit., t. I, pág. 289, 2. 0 Alvará de 13 de março de 1772, z.a e 3.a.

146 147
doutrina da Dedução Cronológica, o índice Expurgatório Romano
criado no período da administração pombalina, funcionou no Colégio não era aceito em nenhum país da Europa cioso das prerrogativas
Real dos Nobres. Este curso foi, na opinião de Teófilo Braga, o régias a respeito da censura e condenação dos Livros. No índice
primeir~ esboço da Faculdade de Filosofia 11 • Romano condenavam-se muitas obras que, contra os princípios do
Os estudos filosóficos, matéria indispensável a todos os que, ultramontanismo, sustentavam as doutrinas que melhor satisfaziam
completados os anos de latim e humanidades, se destinavam aos aos interesses das monarquias. A aprovação do índice Romano, feita
cursos universitários ou à carreira eclesiástica tinham, nesta altura, sem o conhecimento de Felipe IV (III de Portugal), deixava a
passado por transformações que, na sua configuração doutrinária, inteligência portuguesa inteiramente entregue às diretrizes do pensa-
se distanciavam das elaborações sistemáticas do século anterior. A mento eclesiástico. Este fato foi suficientemente compreendido pelo
filosofia para os homens fiéis às diretrizes do pombalismo era uma Marquês de Pombal e pelos homens que a ele se ligaram. Seria
questão sobre a qual se exercitavam, em elucubrações perigosas, os impossível o progresso político e intelectual da nação enquanto
libertinos, os espíritos fortes, os deístas, os filósofos em suma. Habi- prevalecessem diretrizes doutrinárias que vedavam o exame das ques-
tuados na tradição ortodoxa do ensino escolástico, mal podiam os tões que pudessem favorecer o desenvolvimento autônomo da socie-
homens ligados a Pombal vislumbrar o valor da dúvida que, na ago- dade civil. O índice Romano-Jesuítico que servia de base à censura
nia das contradições, encerrava o fecundo caminho das heterodoxias. dos livros portugueses, depois de 1624, fixava as linhas gerais de
Por este motivo, a filosofia pombalina foi "experimental" e poste- um pensamento que deveria prevalecer em todos os setores da vida
riormente "eclética". O seu critério foi o valor dos fatos e pensa- intelectual e inclusive na própria Universidade. Não resta dúvida,
mentos positivos. Experiência, ecletismo e positivismo constituem portanto, que a filosofia moderna, as doutrinas teológicas e jurídicas
sempre formas de pensar cômodas e úteis a todas as situações polí- que as condições dos novos tempos justificavam, não poderiam
ticas, quaisquer que sejam. merecer o apoio de uma instituição que se confinara no exame das
O exame das formas de pensamento constituiu um dos assun- questões segundo as quais somente os interesses da Igreja consti-
tos prediletos da administração pombalina. Na Dedução Crono- tuíam o critério supremo da apreciação dos fatos, ainda que não
lógica 12 , depois de recapitular, na primeira parte, os fatos referen- fossem de matéria de fé.
tes à adoção do índice Romano, no qual se indicam os livros con- Ao ultramontanismo que prevalecia nos problemas referentes
denados pela Igreja13 , adoção esta que foi "o último golpe mortal à censura de livros e opiniões, substituiu o gabinete de D. José I
da literatura portuguesa" desferido pelos jesuítas, preconiza José o regalismo doutrinário que prevaleceu nos atos da Real Mesa
de Seabra da Silva a volta ao regime anterior a 1624, que o edital Censória. A censura dos livros fora introduzida em Portugal cerca
de D. Fernando Martins Mascarenhas havia suprimido. Segundo a de 1540. Souza Viterbo encontrou um documento que sugere ter-se
iniciado a censura em 1537: é o Alvará de 22 de fevereiro, no
qual se concede a Baltasar Dias privilégio para as suas obras 14 •
11. Teófilo Braga, História da Universidade .de Coimbra, cit., pág, 371. Já nos anos posteriores, surgem as primeiras relações de livros proi-
12. Dedução Cronológica e Analítica, em duas partes, acompanhadas da bidos. De um modo geral, a impugnação das obras era feita sob o
Coleção das Provas que foram citadas nas Partes Primeira e Segunda, dada
à luz pelo Doutor José de Seabra da Silva. Desembargador da Casa da Su- critério religioso-moral. Não há dúvida, entretanto, que a censura
plicação e Procurador da Coroa de S. M., para servir de instrução e fazer parte tenha sido, primitivamente, assunto da competência do poder civil
do recurso, que o mesmo ministro interpôs e se acha pendente na Real Pre- e que, depois do Concílio de Trento, se tenha tornado, em Portugal
sença do dito Senhor, sobre a indispensável necessidade, que insta pela mgente e Espanha, mais rigorosa. O exame dos Livros era realizado seja
reparação de algumas das mais atendíveis entre as ruínas, cuja existência se
acha deturpando a Autoridade Régia, e oprimindo o público sossego em Lisboa,
ano de MDCCLXVII, na Oficina de Miguel Manescal da Costa, por ordem 14. José Timóteo da Silva Bastos, História da Censura Intelectual em Por-
de S. M., em três volumes. tugal (Ensaio sobre a compressão do pensamento português), Coimbra, Impr.
13. Dedução Cronológica, cit., Parte I, Divisão Oitava, §§ 273 a 300, págs. da Universidade, 1926, pág. 14.
140 a 156.
149
148
pela Inquisição, seja pelo Ordinário, seja pelo Desembargo do Paço, e juristas, que satisfaçam todos completamente aos seus respectivos
ou mesmo pelos três conjuntamente. "Desde o início da censura, objetos. . . e aprovando V. M. este arbítrio, verá V. M. felizmente
diz Timóteo da Silva Bastos, 22 de janeiro de 1537 até a criação da concordado o Sacerdócio com o Império, dando-se mutuamente as
Real Mesa Censória, é o Conselho Geral da Santa Inquisição, e o mãos sem ofensa dos seus respectivos direitos" 17 • No dia 5 de abril
Ordinário na sua diocese, e o Desembargo do Paço quem exerce de 1?68, criava D. José I, em nome do direito majestático, de feitio
toda a vigilância, absoluta, sobre livros a imprimir ou reimprimir" ll.í. absolutista, uma Junta perpétua denominada Real Mesa Censória,
invocando textualmente: "o Pleno, e Supremo Poder, que na Tem-
No reinado de D. José I, a necessidade da consolidação de poralidade' recebi imediatamente de Deus todo Poderoso, em JUStà.
uma doutrina política, que servisse aos fins do regalismo, encon- e necessária defesa; assim da mesma Igreja, e seus Cânones, de que
trou na Inquisição um fator de resistência aos seus objetivos. A sou Protetor nos meus Reinos, e Domínios, e da Minha Real Auto-
censura dos livros, como já indicamos, apoiava-se nos índices Ex- ridade; como da reputação, honras, vidas, fazendas e público sossego
purgatórios Romanos, cuja introdução em Portugal se iniciara em dos Meus fiéis Vassalos" 18 • Na Dedução Cronológica alegava-se
1624. Neste índice figuravam livros de autores que procuravam que os lndices Romano-Jesuíticos não poderiam ser aceitos sem a
defender e justificar os direitos da realeza. Entre as provas reunidas obtenção do beneplácito régio e, ainda mais, que nem mesmo este
pelo relator da Dedução Cronológica, encontra-se um trecho extraído beneplácito poderia legitimá-los, pois a nenhum monarca cabia "ab-
de Lourenço Bouchel, na sua Biblioteca do Direito de França, da dicar, ou permitir, que se lhe usurpasse a independência temporal
edição feita em Paris, no ano de 1667, no qual diz expressamente da sua Coroa; e a defesa e proteção da autoridade da sua soberania,
este autor: "Je Iaisserai discourir á part ceux, qui par passion se e do sossego público dos seus vassalos; por serem coisas inerentes
sont estendus la dessus à monstrer, que le Concile a voulu donner à Majestade, que é a mesma em todos os soberanos, emanada ime-
pouvoir absolu au Pape de condamner comme heretiques tous les diatamente de Deus todo Poderoso, livre, absoluto, e sem admitir
livres, qui ont esté faits pour Ia defense des droits, de la puissance, sujeição temporal a pessoa alguma criada; como são primeiros prin-
& auctorité des Empereurs des Roys, & des Princes, & en ont parlé cípios de que só duvida a Cúria de Roma" 10 • Estas afirmações
autrement, que comme Vassaúx, & feudataires du Saint Siege" 16 • constituíam o primeiro passo, no domínio doutrinário do absolutis-
Compreende-se, portanto, o empenho do gabinete de D. José I em mo, para a preparação da ideologia que a administração pombalina
fazer da censura dos livros uma atribuição exclusiva do poder se- erigiu como sistema de governo.
cular. José de Seabra da Silva, na Petição de Recurso, publicada
na Segunda Parte da Dedução Cronológica, condenara a introdução A Dedução Cronológica, enquanto peça jurídica decorrente da
da Bula da Ceia e dos índices Expurgatórios Romano-I esuíticos em luta contra os jesuítas e a Cúria Romana, é um documento parcial
Portugal, indicando os males advindos da não-publicação de livros destinado a expor, com uma abundância de fatos e provas, os males
que defendiam os direitos da Coroa. Sobre o recurso, foi ouvida a que, na lógica do seu relator, ou relatores 20 , os inacianos acarreta-
Mesa do Desembargo do Paço e, logo a seguir, o Conselho Geral
do Santo Ofício que, em consulta de 4 de abril de 1768, recomen- 17. Arquivo do Ministério do Reino, Torre do Tombo, L. I, 362, publi-
dava a criação de "um Tribunal privativo para este importantíssimo cado por José Timóteo da Silva Bastos, ob. cit., págs. 112 a 114. Cf. pág. 114.
Ministério, composto de um Inquisidor do Tribunal da Fé, que V. 18. Decreto de 5 de abriu de 1768, apud José Timóteo da Silva Bastos,
M. ou o Inquisidor Geral eleger; de quem assista por parte da ob. cit., págs. 116 a 123. Cf. pág. 120.
Jurisdição Ordinária, que pode ser o Vigário Geral, ou outro qual- 19. Dedução Cronológica, Parte I, Divisão Oitava, § 280, pág. 146.
quer a quem o Ordinário cometa as suas vezes; e de bons teólogos, 20. Embora tragam os volumes da Dedução Cronológica, no seu frontis-
pício, o nome de José de Seabra da Silva, acreditam os autores que o tr~balho
tenha sido redigido com o c.oncurso de várias pessoas, pelo Marques de
15. Idem, ibidem, pág. 76. Pombal. "Quem reuniu, pergunta J. Lúcio de Azevedo, em O Marquês. de
16. Dedução Cronológica, cit., Coleção das Provas da Segunda Parte, De- Pombal e a sua Época, e pôs em forma os elementos deste f~moso escnto?
monstração V, § I, pág. 193. Quem compôs a Dedução Cronológica? Por muito tempo se Julgou fosse o

150 151
vam à nação lusitana. Todavia, embora seja um documento jurídico,
a Dedução Cronológica, na apreciação dos fatos da história portu- das que acompanha este edital, publicada por Teófilo Braga, as
g?esa desenvolve uma .li~ha de interpretação que não seria exagero omissões são mais significativas do que a indicação nela expressa
dtzer-se dela que constitUI verdadeiro ensaio sobre o desenvolvimento dos livros condenados. No setor jurídico, que tão de perto interes-
da naci?nalidade at~ o . s.éculo XVIII e, ao mesmo tempo, o ponto sava ao governo, pois a luta contra os jesuítas não alcançara ainda
de partida para a justificação doutrinária do "iluminismo" portu- o seu termo, aparecem apenas o De Cive e o Leviatan, de Hobbes,
guês. . A segunda parte do trabalho, que trata do problema da cen- o Contrato Social, de Rousseau, o Tratado Teológico-Político, de
s~a, Impress~o, ~ proibição dos livros, prepara o caminho para a Spinoza, obras estas que, pelas implicações doutrinárias do pensa-
dtsputa doutrmana entre o Papado e o Império lusitano e também, mento nelas contido, seriam sempre capazes de causar incômodos
pela ?errogação dos índices expurgatórios vigentes, propicia a atmos- aos espíritos apegados à tradição. Na lista de 1770, não aparece
~er~ ~t~lectua: na _qu~l deveriam fundar-se, alguns anos d.epois, as nenhum dos livros, por mais ousado que fosse o seu conteúdo, que
mstitmçoes umversttánas. Realmente, de nada adiantava uma re- serviram de base às razões expostas no pensamento regalista desen-
forma dos estudos se o Tribunal do Santo Ofício continuasse a volvido na Dedução Cronológica.
exe:c~r a sua censura inquisitorial, apoiado nas relações de livros De qualquer maneira, entretanto, a reforma dos Estatutos da
prOibidos, elaboradas na Cúria Romana. A preocupação fundamen- Universidade de Coimbra nunca poderia ter o alcance que lhe
tal dos reformadores da Universidade foi, sem dúvida, a elaboração deram os membros da Junta de Providência Literária, se a Real
de u~ programa de estudos secularizados que, sem ferir os ideais Mesa Censória, como Tribunal secular incumbido da censura e pu-
da c:tstandade, correspondesse às necessidades da ideologia política blicação de livros, não tivesse substituído, nesta esfera específica, o
dommante: Nestas condições, a Real Mesa Censória, zelando para Conselho Geral do Santo Ofício. Sem o estabelecimento de novas
que a socredade se preservasse "daquele castigo, a que seria perpe- diretrizes no domínio do pensamento filosófico, jurídico e teológico,
!ua~ente exposta, se o medo de um juízo futuro, mais certo e a reforma fatalmente se transformaria numa simples modificação
m~ai:~~l .do. que o mesmo homem, não fosse capaz de o conter e de métodos e hábitos escolares. O estado de decadência da Univer-
COibrr , mdtcou, no edital de 24 de setembro de 1770 a lista dos sidade, entretanto, exigia uma intervenção mais profunda do poder
livr?s por i~ter~~~io dos quais se inoculava no organis~o da nação público, pois a rotina nela imperante provinha da própria inércia
o VIrus da zrrelzgzao e da falsa filosofia 21 • Na lista de obras proibi- dos espíritos acostumados a ler e repetir doutrinas que os Estatutos
determinavam e a vontade régia obrigava a cumprir. A reforma
Pro~~rador da Coroa, . a quem por um estratagema, talvez por ser dele a da Universidade, nestas condições, teria forçosamente de ser a ex-
Petzçao ~e ~~curso, Oeiras fez que fosse a obra atribuída, mandando imprimir pressão de uma vontade que, de cima para baixo, se impusesse,
no frontisplC!o: dada à luz por José de Seabra da Silva Na- 0 ha' t d · mostrando aos professores o caminho das aquisições científicas e
d ' 'd . . . , · o avia
UVI a que o autor foi Oeiras. O estilo e bem dele, e páginas inteiras, adita- literárias que o ensino escolástico vedara à inteligência portuguesa.
mc:ntos, notas e, correções de seu punho, a começar pelo título, no original
existente, tudo da a prova de que a Dedução foi .não só concebida pelo ministro Embora fosse a Universidade um estabelecimento real, a força que
c_omo inteiramente redigida também. Certo que teria colaboradores. Por aba: o poder eclesiástico exercia era tamanha que uma reforma, da im-
hzado_que foss~ no ~irei to eclesiástico e erudito na literatura referente aos jesuí- portância da que foi realizada em 1772, só foi possível depois que
tas, n_ao ?odena soZinho, ne.sta quadra, a mais afanosa de sua vida, coligir 0 uma nova doutrina política, de reação ao status vigente, se esta-
matenal _rmens~ de fatos, citações e juízos que constituem o fundo da obra.
O própno Jose de Seabra, o monge Cenáculo, o teólogo Antonio Pereira
beleceu.
Verney, col~borador em Roma do ministro Almada, o famoso Platel quand~ A 23 de dezembro de 1770, era criada a Junta de Providência
esteve 7m Lrsboa - porqu~ o. trabalho é de anos - a todos esses, sem arrojo Literária, com a incumbência de redigir e reformar os Estatutos da
de c~n]ect?ra, se pode atnbmr algum contingente no estrondoso libelo". Cf.
ob. crt., pags. 290/1. Universidade. Nesta carta régia, recapitulam-se, tal como acontece
· 21. Preâmbulo do edital de 24 de setembro, apud Teófilo Braga, ob. cit., em outros escritos da administração pombalina, os males causados
vol. III, pág. 59. pelos jesuítas à Universidade, desde a ocupação do Colégio Real
das Artes. Sob a inspeção do Cardeal da Cunha e do Marquês de
152
153
Pombal, trabalharam ativamente na Junta o presidente da Real redo os traduzia para o latim. João Pereira Ramos de Azeredo Cou-
Mesa Censória, D. Manoel do Cenáculo, e os Drs. Francisco Anto- tinho reunia o material sobre a reforma dos estudos jurídicos e
nio Marques Giraldes, José de Seabra da Silva, José Ricaldi Pereira Francisco de Lemos, seu irmão, coordenava a parte referente à
de Castro, Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, Manoel matemática, filosofia, teologia e medicina, ouvindo todos os que
1-ereira da Silva e João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho. Ouvi- pudessem trazer alguma contribuição para o assunto. Os trabalhos
ram os membros da Junta a opinião dos professores e especialistas, estenderam-se por todo o ano de 1771 até meados de 1772.
sempre que se fez necessário. Não foram estranhas ao trabalho
Já em resolução de 2 de setembro de 1771, determinava o Rei
realizado pela Junta de Providência Literária as sugestões de Luiz
que subissem "as minutas dos estatutos e cursos científicos, para
Antonio Verney, no Verdadeiro Método de Estudar, de Antonio
sobre eles determinar o que entender". A 25 de setembro, comu-
Nunes Ribeiro Sanches, nas Cartas sobre a Educação da Mocidade
't.-· nicava o Marquês de Pombal, em nome do Rei, a Frei Pedro Tomaz
e no Método para Estudar a Medicina. Colaboraram ainda Sachetti
Sanches, lente e claustro da Universidade de Coimbra, a ordem
Barbosa, Miguel Antonio Ciera, Miguel Franzini, Miguel Daly e
para a suspensão dos estudos, a fim de que "sejam regulados no
José Monteiro da Rocha 22 •
ano que se acha próximo a principiar pelos novos estatutos, e cursos
Nas minuciosas informações sobre as reuniões da Junta de Pro- científicos. . . e que não obstantes os outros estatutos antigos cujo
vidência Literária, avultam as figuras dos brasileiros Francisco de efeito há o mesmo senhor por suspenso, se não proceda a abertura,
Lemos de Faria Pereira Coutinho, e de seu irmão João Pereira Ramos juramentos, e matrículas, que até agora se fez, e se prestarem no
de Azeredo Coutinho. Este último, principalmente, deu uma con- primeiro dia do mês de outubro, e por todo o dito mês até nova
tribuição decisiva à parte referente aos estudos jurídicos, sem dúvida ordem de Sua Majestade" 24• Todavia, somente no dia 8 de agosto
a mais volumosa· e a mais cuidada, tantà no Compêndio Histórico de 1772 era assinada a carta de roboração dos Estatutos da Univer-
quanto nos Estatutos. Diz textualmente o bispo Cenáculo, referin- sidade de Coimbra, que confirmava o trabalho realizado intensa-
do-se à elaboração do trabalho, que João Pereira Ramos "é o com- mente pela Junta de Providência Literária, durante mais de ano
positor e coordenador, pois há seis ou sete anos que El-Rei deter- e meio.
minou que fosse ajuntando e compondo o que fosse preciso para a Nas suas linhas gerais, os novos Estatutos procuram traduzir
reforma da Universidade, e agora só o que faz é coordenar pelo o progresso das investigações positivas, na órbita dos problemas
método que dispõe o Marquês, e ele só faz o que pertence à parte da filosofia, da medicina e da matemática; e no domínio do pensa-
jurídica" 23 • À medida que o trabalho se ia fazendo, os manuscritos mento teológico e jurídico, o ideal de uma doutrina rebelde ao
eram levados para a imprensa e, uma vez impressos, corrigidos por verbalismo escolástico e integrada nos propósitos políticos do gabi-
Frei Luiz do Monte Carmelo, enquanto Antonio Pereira de Figuei- nete de D. José I. A valorização do método experimental e do mé-
todo matemático, o antiescolasticismo sistemático, o apego à história,
22. Notícias secretas, inéditas, e muito curiosa, da junta reformadora à crítica e à hermenêutica, no tratamento das questões teológico-
da Universidade de Coimbra, extraídas do Diário de D. Frei Manoel do jurídicas, constituem os traços mais gerais do programa de renova-
Cenáculo, in Folhetim do Conimbricense, Miscelânia, CCXCIX a CCCII, ns. ção da cultura portuguesa proposto pela Junta de Providência Lite-
2.328 a 2.331, de 16, 20, 23 e 27 de novembro de 1869: "Na conferência
de quarta-feira, 22 de julho", diz Cenáculo neste valioso Diário, "se acabou de rária. Na multiplicação de preceitos doutrinários, de regras e prin-
ler o 5. 0 ano do curso canônico; e a este tempo já está impressa o que pertence cípios, que se encontram no Compêndio Histórico e nos Estatutos
à medicina, matemática e física; e foi obra do médico Sachetti, conferida com da Universidade de Coimbra, o que prevalece, no seu significado
Ciera, Franzini, Daly, professor de grego, que é bom matemático, e Monteiro, histórico mais expressivo, são as razões políticas que presidiram a
que foi jesuíta e já o tem preparado no conceito do Marquês para ser despa-
chado".
23. Idem, loc. cit. Aliás, Jerônimo Soares Barbosa no Epitome Lusi- 24. Publicado por M. Lopes D'Almeida, Documentos da Reforma Pom-
tanae Historiae tam Veteris quam Novae já registrara o fato. Cf. Te6filo balina, por Ordem da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1937, vol. I, I,
Braga, ob. cit., t. UI, pág. 329, nota. pág. 1.

154 155
vidência Literária o meio termo cômodo do ecletismo: "Não haverá
ela~oração destes documentos. Por este motivo não é fora de pro-
sistema algum filosófico", que o professor "inteiramente subscreva
pósito lembrar o rol dos livros proibidos pela Real Mesa Censória,
porque ele demonstra até que ponto prevaleceram nos ideais do na exploração, e demonstração das leis naturais: Antes pelo con-
governo as formas de pensamento mais atrevidas do iluminismo trário a filosofia, que ele deverá seguir será precisamente a eclética" 27.
europeu. Procurando harmonizar os interesses do sacerdócio com No ecletismo, a força da experiência e dos métodos positivos, tão
os do Império, os reformadores da Junta de Providência Literária fecunda na órbita da investigação natural, poderia perfeitamente
evitaram todas as questões que pudessem lançar Portugal no caminho harmonizar-se com a crítica e a hermenêutica de que se serviram
do deísmo, do ateísmo e do materialismo: "porquanto me constou, Pombal e os seus homens nas razões que coligiram para a defesa
diz. o Rei no Preâmbulo do edital da Real Mesa Censória, que dos direitos do reinado, contra as pretensões da doutrina ultra-
mmtos dos referidos escritos, abomináveis produções da increduli- montana. E, evitando as conseqüências últimas do pensamento ilu-
dade ~ da liber~i~agem de homens te.merários e soberbos, que se minista, a Junta de Providência Literária, obediente às diretrizes da
denommam Espmtos Fortes e se atnbuem o especioso título de censura secularizada, atendia os temerosos cuidados da fé que o
Filósofos, depois de terem soçobrado os países mais próximos ao deísmo, o ateísmo e o materialismo tão seriamente ameaçavam. No
~eu. nascimento, haviam chegado a penetrar neste reino por caminhos
dia 28 de agosto de 1772, assinava o Rei uma carta, dando ao
mdiretos e ocultos; havendo mandado proceder com a mais exata Marquês de Pombal plenos poderes para a fundação da Universidade,
diligência no exame deles, constou pelas censuras conterem doutrina a fim de proceder "em tudo, dizia este diploma régio, como Meu
ímpia, ofensiva da paz e sossego público, e só própria a estabelecer Lugar-Tenente, com jurisdição privativa e ilimitada" 28, para pôr
os grosseiros e deploráveis erros do ateísmo, deísmo e materialismo em execução os novos Estatutos e determinar as outras providências
a introduzir a relaxação dos costumes, a tolerar o vício e a faze; que a tal respeito se fizessem necessárias. No dia 22 de setembro
perder toda a idéia da virtude' 2 ú. Na lista que acompanha este edital do mesmo ano, investido de tão grandes poderes, chegava o Mar-
estão as obras de Bayle, Rousseau, Spinoza, Voltaire, Hobbes, Di- quês de Pombal a Coimbra, para dar cumprimento às deliberações
derot, La Mettrie, Shaftesbury, Mandeville, Toland etc. 2 6. Cioso régias. Durante mais de um mês, permaneceu em Coimbra Sebastião
de suas prerrogativas, procurou o gabinete de D. José I evitar que de Carvalho e Melo, dando as providências para a fundação dos
o empenho com que se atirou na disputa com os inacianos pudesse novos cursos universitários. No dia 19 de setembro, já se reunira
favorecer aos adversários sempre prontos a indicar o germe de mani- o Claustro Pleno da Universidade, sob a presidência do Reitor,
festações doutrinárias nocivas aos interesses da fé católica. Daí o Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, para elaborar o
afoito cuidado com que se houve a Mesa Censória ao incluir na programa de recepção ao Visitador da Universidade. Resolveu-se
Relação dos livros proibidos todos aqueles que pudessem permitir então que "fosse o Ilmo. Sr. Reitor por parte da Universidade ao
aos adversários do pombalismo suposições de compromissos com lugar de Condeixa, a cumprimentar S. Exa.; e que as pessoas mais
a ideologia dos "iluministas" avançados. distintas da Universidade o fossem esperar além da Igreja da Espe-
rança porque até esse lugar era antigo costume, e era preciso
Propondo, como critério de aferição das doutrinas, as aquisi-
ções positivas, a experiência, a história eclesiástica e a história
civil, o pombalismo pretendeu encontrar o caminho da filosofia
mais apta aos seus interesses. Entre o espírito de sistema da filosofia
J
I
adiantarem-se mais para fazer o aplauso distinto: que se repicassem
os sinos, houvesse luminárias três dias, e os mais acadêmicos o espe-
rassem no paço destinado para o seu alojamento, e ultimamente se
deprecasse a Câmara mandasse fazer o costumado obséquio de
do século XVIII e o espírito sistemático dos filósofos do iluminismo,
para empregarmos expressões de Cassirer, preferiu a Junta de Pro-
27. Estatutos da Universidade de Coimbra, Liv. li, que contêm os Cursos
Jurídicos das Faculdades de Cânones e Leis, Lisboa, na Régia Oficina Tip.,
25. Edital da Mesa Censória, de 24 de setembro de 1770; Cf. Te6filo 1773, Cursos Jurídicos, Tít. III, Cap. V, § 4, pág. 112.
Braga, ob. cit., t. III, pág. 59.
28. M. Lopes D'Almeida, Documentos da Reforma Pombalina vol. I doc.
, 26. A relação dos livros foi publicada por Te6filo Braga, ob. cit., t. III, II, págs. 2 a 4. ' '
pags. 60 a 63.

156 157
luminárias por três dias" 20 • Desta visita existe um Diário do que fala na sala da Universidade, na qual dava por finda a sua tarefa,
se passou em a cidade de Coimbra desde o dia 22 de setembro de passando às mãos do Reitor a direção da reforma das Faculdades
1772, em que o Ilmo. e Exmo. Sr. Marquês de Pombal entrou até novamente estabelecidas, certo de que a Academia "há de ressus-
o dia 24 de outubro, em que partiu da dita cidade, que foi publicado citar em toda a sua anterior integridade o esplendor da Igreja Lusi-
pur Antonio de Vasconcelos 30 • tana, a glória da Coroa del-Rei meu Senhor e a fama dos mais
Emprestou-se aos atos do Marquês, nos dias que durou a sua assinalados varões que com sua memória honraram os fastos portu-
permanência, um fausto que há muitos anos não conhecia a Uni- gueses" 30 • Os cursos da Universidade de Coimbra, integrados agora
versidade. A nomeação dos novos professores foi feita com todo o no plano dos Estatutos de 1772, poderiam iniciar vida nova, livres
aparato das tradições universitárias. No dia 27, publicaram-se, pela dos prejuízos da rotina e dos hábitos escolares obsoletos, que tanto
manhã, os despachos referentes às nomeações dos professores de impediam o seu progresso. Os novos professores, muitos dos quais
teologia, cânones, leis, matemática e filosofia 31 • No dia seguinte, estrangeiros, eram pessoas que se distinguiam pelo saber e probidade.
eram jubilados os professores da Faculdade de Medicina nas cadeiras Seria legítimo esperar, portanto, que os novos cursos pudessem
que até então regiam, por intermédio de uma portaria na qual, ao restituir à tradicional Universidade o prestígio das épocas passadas.
mesmo tempo, eram conservadas as pensões de alguns doutores da
mesma Faculdade 32 • No dia 6 foram publicados os despachos dos
professores de medicina 33 que haviam sido assinados pelo Marquês II
de Pombal, no dia 3 de outubro M. Depois de outras providências
referentes à instalação dos diversos cursos e à normalização dos Na Reforma de 1772, a estrutura dos cursos da Universidade de
Coimbra passou por substanciais transformações. No curso teoló-
trabalhos escolares, realizada nos dias subseqüentes, prestou o Reitor
gico, que tinha a duração de cinco anos, no lugar das quatro cátedras
da Universidade, Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho,
e três catedrilhas, até então existentes, foram criadas oito cadeiras,
no dia 23 de outubro, "nas mãos do Sr. Marquês o juramento de
uma de história eclesiástica, três de teologia dogmático-polêmica (as
Reformador na Capela Particular do Paço". . . sendo testemunhas
quatro, segundo a designação dos Estatutos, chamadas Pequenas Ca-
"os condes da Ponte e S. Payo" 35 • No dia anterior, recitava a sua
deiras), uma de teologia moral, uma de teologia litúrgica e duas de
escritura, na qual eram estudados o Antigo e o Novo Testamento,
29. Antonio de Vasconcelos, Escritos Vários Relativos à Universidade cadeiras estas denominadas Grandes. Para o ingresso no curso exi-
Dionisiana, Coimbra Ed., 1938, vol. I, Secção H, "Algumas notícias e aponta: gia-se a idade mínima de 18 anos e, além dos certificados referentes
mentos históricos sobre a Universidade, Diário da Visita do Marquês de Pom-
bal a Coimbra na Reforma da Universidade", págs. 340 a 341. à vida dos estudantes, preparação suficiente em latim, retórica, disci-
30. Antonio de Vasconcelos, ob. cit., vol. I, págs. 342 a 359, acompa- plinas filosóficas, metafísica e ética. Os estudantes residentes em ci-
nhado dos papéis referentes ao mesmo Diário, cf. ;págs. 360 a 388. dades ou vilas nas quais não havia aulas de grego e hebraico deve-
31. Cf. Diário, 27, domingo, Antonio de Vasconcelos, ob. cit., pág. 347. riam estudar estas disciplinas em Coimbra enquanto seguiam o cur-
Os despachos com a relação dos ·nomes dos professores e respectivas cadeiras se teológico. Na Faculdade deveriam os alunos estudar história sa-
foram publicados pelo Prof. M. Lopes D'Almeida, in Documentos da Reforma grada e eclesiástica e história literária da teologia, disciplina do mé-
Pomba/ina, vol. I: Decreto dos Despachos da Faculdade de Teologia, V, págs. todo e lugares teológicos no 1.0 ano; no 2. 0 , além da repetição das
7 /8; idem, da Faculdade de Cânones, VI, 8/9; idem, da Faculdade de Mate-
mática, VII, 9/10; idem, da Faculdade de Filosofia, Vill, 10.
matérias do ano anterior, estudavam teologia teorética ou dogmática
32. Portaria para as jubilações dos Lentes, M. Lopes D'Almeida, Do-
simbólico-polêmica; no 3. 0 , teologia mística e teologia prática ou mo-
cumentos da Reforma Pombalina, vol. I, X, págs. 12/13. ral; no 4. 0 , teologia canônica ou direito público eclesiástico, Institui-
33. Diário, 6, terça-feira, Antonio de Vasconcelos, ob. cit., pág. 350. ções de direito canônico e teologia litúrgica; no 5. 0 , finalmente, teo-
34. Cf. M. Lopes D'Almeida, Documentos da Reforma Pombalina, vols.
.~·
I, XIII e XIV, págs. 15 e 16. 36. Documento n. 0 13, que acompanha o Diário da Visitação do Marquês
35. Diário, 23, sexta-feira, Antonio de Vasconcelos, ob. cit., pág. 358. à Universidade, publicado por Antonio de Vasconcelos, ob. cit., pág. 377.

158 \ 159
logia exegética do Testamento Velho e o do Novo Testamento 37 • nos sobre os cursos realizados nas escolas menores, deveriam os estu-
Terminado o curso, poderia o estudante obter o grau de bacharel e, dantes provar a sua suficiência naquelas matérias perante uma comis-
somente depois de mais um ano e meio de estudos, estaria em con- são de professores do Colégio das Artes, sem o que não poderiam
dições de obter a licenciatura e o doutoramento. Os livros adotados ingressar na Universidade. Na velha organização, possuía a Facul-
no curso eram a História Eclesiástica, de Berti, os livros didáticos de dade de Cânones cinco cátedras e duas catedrilhas, com as tradicio-
Martin Gerbert sobre teologia e as Instituições Eclesiásticas de nais denominações canônicas. As Decretais eram estudadas na Ca-
Fleury. Para as novas cadeiras criadas foram indicados os Profs. deira de Prima e de Véspera. Na de Terça, lia-se o Decreto. Na
Carlos Maria de Matos (Testamento Novo), D. Bernardo da Anun- de Nôa, o Sexto das Decretais. Havia ainda, sem designação canô-
ciação (Testamento Velho), Manoel Francisco da Costa (teologia li- nica, uma cátedra de Clementinas. As Decretais e as Clementinas
túrgica), Frei José da Trindade (teologia moral), Jaime Antonio de eram ainda estudadas nas duas catedrilhas. De acordo com os ve-
Magalhães, Frei Bernardino de Santa Rosa e Bernardo Antonio Car- lhos estatutos, a Faculdade de Leis era constituída por quatro cáte-
neiro (para as três cadeiras de teologia dogmática) e D. Antonio da dras. O Digestwn lnfortiatum, o Digesto Novo e o Digesto Velho
Anunciação (história eclesiástica) 38 • Até a reforma, liam-se nas ca- eram lidos, respectivamente, nas cadeiras de Prima, de Véspera e de
deiras da Faculdade de Teologia o mestre das Sentenças, Pedro Lom- Terça. Na cátedra de Nôa, estudavam-se os três livros do Código.
bardo, a Suma Teológica, de Santo Tomaz de Aquino, as Escrituras e Havia ainda duas catedrilhas, onde se liam o Código e duas que tra-
os livros de Duns Scott e, na catedrilhas, de acordo com as designa- tavam de lnstituta 41 •
ções canônicas das cadeiras, estudavam-se "respectivamente Duran- Na Reforma de 1772, os estudos canônicos e jurídicos sofreram
do, Escrituras, e Santo Tomaz ou Gabriel Biel" so. A utilização dos profundas transformações, muito menos pelo número das cadeiras
livros modernos, como base dos estudos teológicos, por si só ilustra criadas do que pela nova orientação pedagógico-doutrinária dada ao
o sentido dos rumos da Faculdade de Teologia na Reforma de 1772. seu programa. Na Faculdade de Leis estabeleceram-se oito ca-
O curso jurídico, nos seus dois aspectos, o canônico e o civil, deiras e, na Faculdade de Cânones, sete. Havia ainda uma cadeira
comum aos dois cursos, de Direito Natural, Público Universal, e
tinha a duração de cinco anos, três menos do que o exigido pelos ve-
das Gentes. Na primeira destas Faculdades foram instituídas uma
. lhos estatutos 40 • Os estudantes que pretendessem nele ingressar de-
cadeira subsidiária, de História Civil dos Povos, Direito Romano
veriam ter 16 anos de idade e formação propedêutica de latim, retó- e Direito Português, duas de Elementos do Direito Civil, três sin-
rica, lógica, metafísica e ética. Exigia-se ainda certificado de estu- téticas, sendo duas de Direito Romano e uma de Direito Pátrio, e
do do grego para todos os candidatos vindos de cidades onde havia o duas analíticas, de Direito Civil Romano e de Direito Pátrio. Na
referido curso. Depois de examinar as certidões exibidas pelos alu- Faculdade de Cânones, instituíram-se uma cadeira subsidiária, de
História da Igreja Universal e Portuguesa e de Direito Canônico Por-
37. Cf. nos Estatutos da Universidade de Coimbra, Liv. I, que contém o tuguês, uma elementar, de Instituições do Direito Canônico, três sin-
curso teológico, Lisboa, na Régia Oficina Tip., 1773, Tít. III, sobre as matérias téticas, uma do Decreto de Graciano e duas das Decretais, e duas ana-
do curso teológico: 1. 0 ano, Caps. I e II, págs. 32 a 85; 2. 0 ano, Cap. III, líticas, de Direito Canônico 42 • Todas as cadeiras analíticas, dos
págs. 85 a 108; 3. 0 ano, Caps. IV, V, e VI, págs. 109 a 159; 4. 0 ano, Cap. VII,
págs. 159 a 183 e 5. 0 ano, Cap. VIII, págs. 184 a 210.
41. Estatutos Velhos, Liv. III, Tít. V, Cânones, §§ 7 a 13 e Leis, §§ 14
38. Decreto dos despachos da faculdade de Teologia, in Documentos da a 19. Cf. Compêndio Histórico, Parte I, Prelúdio IV, § 58, págs. 87/9.
Reforma Pombalina, cit., V, pág. 7.
42. Os professores das Faculdades de Leis e Cânones são os que constam
39. Estatutos Velhos, Liv. III, Tít. V, Teologia, §§ 1 a 6, nos quais são dos dois despachos a seguir: Faculdade de Leis - "Tendo consideração aos
indicados os números das cadeiras e as matérias nelas ensinadas. Cf. Com- merecimentos, e Letras dos Doutores na Faculdade de Leis abaixo declarados:
pêndio Histórico, Parte I, Prelúdio IV, § 58, págs. 86/7. Hei por bem nomear para Lentes das Cadeiras da Mesma Faculdade: a saber:
40. Estatutos da Universidade de Coimbra, Liv. li, que contém os cursos Tomaz Pedro da Rocha, para a Primeira Cadeira de Analítica de Leis: Pedro
jurídicos das Faculdades de Cânones e Leis, Lisboa, na Régia Oficina Tip., 1773, de Araújo, para a Segunda Cadeira Analítica de Leis: José Joaquim Vieira
Tít. II, Cap. I, § 1, pág. 37. Godinho, para a Cadeira de Direito Pátrio: Alexandre de Abreu. Corrêa, para

160 161
dois cursos, seguindo a tradição, eram denominadas Grandes e as de- O 1.o e z.o anos dos Cursos de Leis e Cânones eram comuns,
mais Pequenas. com a diferença apenas que, no segundo ano canônico, continuavam-
se os estudos de Direito Natural, iniciados no ano anterior. No 1.0
ano estudavam-se o Direito N aturai, na cadeira comum aos dois cur-
a Primeira Cadeira Sintética de Digesto: Antonio Freire Gameiro, para a sos, a História Civil das Nações e Leis Romanas e Portuguesas, a
Segunda Cadeira Sintética de Digesto: Antonio Pereira da Rocha Faria Gayo,
para a Primeira Cadeira de Instituía: Antonio Lopes Carneiro, para a Segunda Doutrina do Método do Estudo Jurídico e uma Notícia Literária da
Cadeira de Instituía: Manoel Pedroso Lima, para a Cadeira de Direito Natural: Jurisprudência Civil e dos Livros Jurídicos, na cadeira subsidiária.
Francisco Xavier de Vaz Cancelos Coutinho, para a Cadeira de História do Completava-se o curso com os Elementos do Direito Civil, das cadei-
Direito Civil Romano, e Pátrio: e Hei outrossim por bem nomear para Substi- ras elementares. No 2.0 ano, analisavam-se os Elementos de His-
tutos das Sobreditas Cadeiras com Privilégios de Lentes aos Doutores: a saber: tória da Igreja Universal e Portuguesa, Direito Canônico Comum e
Duarte Alexandre Holbeche, para Substituto das Cadeiras Analíticas de Leis:
Paschoal José de Melo, para Substituto da Cadeira do Direito Pátrio: Bernardo Português, na cadeira subsidiária do Curso de Cânones, e as Institui-
José Carneiro, para Substituto das Cadeiras Sintéticas de Digesto: Francisco ções do Direito Canônico, Doutrina do Método de Estudo e a Notí-
Monteiro Pereira de Azevedo, para Substituto das Cadeiras de Instituía: Ma- cia Literária e Bibliográfica referente à Jurisprudência Canônica, na
noel Luiz de Soares, para Substituto da Cadeira do Direito Natural: E a José cadeira elementar do Curso de Cânones. No 3. 0 ano, porém, ini-
Cardoso Castello, para Substituto da História do Direito Civil Romano, e ciava-se a separação dos dois cursos, estudando-se, pelo método sin-
Pátrio. O Marquês de Pombal do Meu Conselho de Estado, e Meu Lugar- tético, nas aulas de Leis, o Direito Civil Romano, e, pelo mesmo mé-
Tenente na Fundação da Universidade de Coimbra, o tenha assim entendido,
e lhes mande passar os despachos necessários. Palácio de Nossa Senhora da
todo, nas de Cânones, o Direito Canônico Público e o Decreto de
Ajuda em onze de setembro de mil setecentos e setenta e dois. Rei. Cumpra-se Graciano. No 4. 0 ano, continuavam-se esses estudos pelo mesmo
e Registre-se. Coimbra aos 27 de setembro de 1772. Marquês Visitador". método, sobre os assuntos do ano anterior, completando-se apenas,
Faculdade de Cânones. "Tendo consideração aos merecimentos, e Letras dos nas aulas de Cânones, o estudo do Decreto, com a análise das Decre-
Doutores na Faculdade de Cânones abaixo declarados: Hei por bem nomear tais de Gregório IX. No 5. 0 ano do Curso de Leis estudavam-se,
para Lentes das Cadeiras da mesma Faculdade: a saber: Manuel José Álvares, ainda, pelo método sintético, o Direito Civil Pátrio e completava-se
para a Primeira Cadeira de Cânones Analítica: José Antonio Barbosa, para a
Segunda Cadeira de Cânones Analítica: João Teixeira de Carvalho, para a
esse estudo com a interpretação e aplicação das leis aos fatos, por in-
Primeira Cadeira Sintética de Decretais: Manoel Tavares Coutinho, para a termédio de lições e exercícios de Jurisprudência, pelo método analíti-
Segunda Cadeira Sintética de Decretais: Antonio Henriques da Silveira, para a co. No 5. 0 ano de Cânones, estudavam-se Jurisprudência Canônica,
Cadeira de Decreto: Francisco José Ribeiro de Guimarães, para a Cadeira de pelo método analítico, e Direito Civil Pátrio, pelo método sintético 43 •
Instituições Canônicas: Marçalino Pinto Ribeiro, para a Cadeira da História da
Igreja: e do Direito Eclesiástico: E hei outrossim por bem nomear para Subs- A classificação das cadeiras em subsidiárias, elementares, sinté-
titutos com Privilégios de Lentes das sobreditas Cadeiras aos Doutores: a ticas e analíticas corresponde às intenções pedagógicas do programa
saber: Vicente Rodrigues Ganhado, para Substituto das Cadeiras de Cânones traçado pela Junta de Providência Literária. Ao conhecimento dos
Analíticas: Sebastião Pita de Castro, para Substituto das Cadeiras Sintéticas de elementos do Direito fornecidos pelas cadeiras propedêuticas do cur-
Decretais: Antonio Caetano Maciel, para Substituto da Cadeira de Decreto: so, dever-se-ia seguir o estudo sintético dos princípios da Jurisprudên-
Gabriel de Vilas Boas Palmeira, para Substituto ·da Cadeira das Instituições
Canônicas: E a Francisco Xavier da Silva e Moura, para Substituto da Cadeira
cia: partindo das definições, passaria o professor à divisão das ma-
da História da Igreja e Direito Eclesiástico. O Marquês de Pombal do Meu térias, até indicar os "primeiros princípios e preceitos gerais mais
Conselho de :Estado, e Meu Lugar-Tenente na Fundação da Universidade de simples e mais fáceis de se entenderem", deduzindo depois "as con-
Coimbra, o tenha assim entendido, e lhes mande passar os despachos neces-
sários. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda em onze de setembro de mil 43. Cf. nos Estatutos, Liv. li, sobre as matérias do Curso de Leis: 1.0 ano,
setecentos e setenta e dois. Rei. Cumpra-se, e Registre-se. Coimbra, aos vinte Tít. III, Cap. X, § 60, págs. 195/6; 2. 0 ano, Tít. IV, Cap. IV, § 37, pág.
e sete de setembro de 1772. Marquês Visitador". Cf. M. Lopes D'Almeida, 244; 3. 0 e 4. 0 anos, Tít. V, Cap. UI, § 49, pág. 296; 5. 0 ano, Tít. VI, Cap.
Documentos da Reforma Pombalina, cit. IV e VI, respectivamente, pãgs. 6/7 IX, § 46, pág. 390; sobre as ·matérias do Curso de Cânones: 1.0 ano, Tít.
e 8/9. Na "Relação Geral do Estado da Universidade de Coimbra", citada VII, Cap. li, §§ 1 a 4, págs. 393 a 395; 2. 0 ano, Tít. VII, Cap. Ill, §§ 1 e 2,
na nota 48, são mencionados os professores e as cadeiras vagas das duas págs. 395/6; 3. 0 e 4.0 anos, Tít. VIII, Cap. VI, § 47, págs. 486/7 e 5. 0 ano,
Faculdades, no ano de 1777. Cf. Relação, págs. 31/3. Tít. IX, Cap. II, § 3, pág. 493.

162 163
clusões mais particulares, formadas da combinação de maior número ~ Como condições de ingresso no curso médico, exigi,~-se c~nhe­
de idéias" 44 • O método sintético é ainda denominado, nos Estatutos, cimentos de latim e grego, estudos filosóficos e matemat1cos: filoso-
compendiário e demonstrativo. Compendiário, na medida em que os fia racional e moral, e física, dependendo estes da freqüência de três
professores devem evitar o ensino da Jurisprudência por sistemas am- anos nos cursos filosóficos e matemáticos, a fim de obter as noções
plc>s e difusos e demonstrativo pela ordem científica a que os profes- de geometria, de história natural, de física, de mecânica e de guímica,
sores devem obedecer na distribuição das matérias do curso 45 • Com- indispensáveis ao perfeito conhecimento das matérias médica~~ Alé~
pletados os estudos de Jurisprudência pelo método sintético, recebe- destas disciplinas, recomendam ainda os Estatutos, sem carater obn-
riam os estudantes as lições de Jurisprudência pelo método analítico, gatório, a aprendizagem do francês e do inglês. Depois de comple-
método este destinado a exercitar os estudantes na aplicação dos co- tados os estudos menores e obtidos os certificados de conclusão nos
nhecimentos adquiridos nos anos anteriores e nos segredos da inter- cursos filosóficos e matemáticos, aos 18 anos de idade poderia inscre-
pretação justa dos textos jurídicos, pois "a análise dos textos, en- ver-se o estudante no 1.0 ano do curso médico, o qual durava cinco
quanto se achou destituída dos verdadeiros princípios e subsídios, foi anos. Para a obtenção dos graus de licenciado e doutor era neces-
a que brotou as falsas inteligências dos glosadores, que corromperam sário mais um ano de cu
a certeza do Direito: E que a análise acompanhada dos referidos
princípios e subsídios foi e é o único meio de restituir, e· depurar a Na organizaçã reforma, o curso médico era consti-
jurisprudência das ditas falsas opiniões, e dos erros dos Glosadores, tuído de se1s cade1ra · a nma compreendia seis anos de curso,
e Bartolistas" 46 • Esta orientação pretendia, afastando-se das Lições nos três primeiros dos quais liam-se "o Tegne de Galeno, e os Livros
de Irnério, Acúrcio e Bártolo, seguir as diretrizes da escola Cuja- de Locis Affectis". No 4. 0 ano, estudavam-se os livros De Morbo et
dana 47 , modificando-as e adaptando-as às necessidades do progres- Symptomate, no 5.0 , os dois livros De Differentiis Febrium e, no 6.0,
so dos estudos jurídicos. Dentro desta orientação, foram adotados "os Três Livros De Simplicibus, Terceiro, Quarto e Quinto, com uma
os livros de Heinécio, de Fleury, de Van-Espen, de Hertalo, Berti, breve declaração dos símplices" 40 • Na cadeira de Véspera, o curso
Bachio, Martini, além das Instituições de Justiniano, e as Ordenações durava cinco anos, nos quais dois anos eram dedicados aos Aforismos
do Reino 48 • de Hipócrates e o nono Ad Almansorem 50 • Nos anos seguintes, os
Livros hipocráticos De Ratione Victus, Epidemias e Prognósticos 51 •
44. Estatutos, Liv. li, Tít. III, Cap. I, § 18, pág. 76. Na cadeira de Avicena, o curso durava cinco anos, estudando-se nos
45. Sobre o método sintético-demonstrativo-compendiário ver Estatutos, três primeiros a Fen prima quarti, que tratava das febres, e Fen quarta
Liv. li, Tít. III, Cap. I, §§ 19 a 22, págs. 76/9.
46. Estatutos, Liv. H, Tít. III, Cap. I, § 25, págs. 80/1.
47. Idem, ibidem, § 13, págs. 72/3: "Será pois a Escola da Jurispru- 49. Estatutos Velhos, Liv. III, Tít. V, Medicina, § 20. Cf. Compêndio
dência, que somente se abrace, e inviolável, e uniformemente se siga por todos Histórico, Parte I, Prelúdio IV, § 58, pág. 89.
os professores, assim nas dissertações, e escritos, como nas lições públicas das 50. Livro do médico árabe Razi ou Rhazes, que viveu nos fins do século
escolas, precisamente a Escola Cujaciana, a qual tendo sido fundada no prin- IX e começo do X. O livro nono do seu Tratado de Medicina, oferecido ao
cípio do século XVI por André Alciato, foi depois tão adiantada por Cujácio, califa Almansor, que era lido na Cadeira de Véspera, tendo o seguinte título:
que dele tomou a denominação, com que hoje é conhecida". Liber nonus, de sanguine per os emisso tractans, in duo dividitur capitula,
48. Sobre os Compêndios, ver as sucintas informações do Reitor da Uni- quorum primum est de modis, causis, signis sive accidentibus, pronosticatione
versidade, D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, na "Relação sanguinis emissi per os. Capitulum secundum este de cura sanguinis missi per os.
Geral do Estado da Universidade de Coimbra desde o princípio da nova Segundo notícia de Bernardo Antonio Serra de Mirabeau, em cujo livro encon-
reformação até o mês de setembro de 1777, para ser presente à Rainha Nossa tramos esta informação sobre o médico árabe, existe na Biblioteca da Faculdade
Senhora pelo seu Ministro e Secretário de Estado da Repartição dos Negócios de Medicina da Universidade de Coimbra uma edição da tradução latina da
do Reino, o limo. e Exmo. Sr. Visconde de Vila-Nova de Cerveira, dada pelo obra. Cf. Bernardo Antonio Serra de Mirabeau, Memória Histórica e Come-
Bispo de Zenópole e coadjutor e futuro sucessor do Bispado de Coimbra e morativa da Faculdade de Medicina nos Cem Anos Decorridos desde a Re-
atual Reformador e Reitor da mesma Universidade", publicada por Teófilo forma da Universidade, em 1i12 até o Presente, Coimbra, Imp. da Univer-
Braga in Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa, Classes de sidade, 1872, pág. 12, nota 1.
Ciências Morais, Políticas e Belas Letras, Lisboa, Tip. da Academia, 1895, 51. Estatutos Velhos, Liv. III, Tít. V, Mediç!P.!l1 § 21. Cf. Compêndio
Nova série, t. VII, Parte I, págs. 31/3. Histórico, Parte I, Prelúdio IV, § 58, pág. 89,

164 165
primi, que versava sobre a medicação em geral. Nos dois últimos providas, inicialmente, apenas quatro, pois de acordo com os despa-
anos, liam-se a Fen prima primi, referente ao objeto da medicina, hu- chos de 3 de outubro de 1772, não há qualquer referência à nomea-
mores etc., e a Fen secunda primi, na qual tratavam-se das doenças e ção dos professores da cátedra de Aforismos e de uma das cadeiras
suas causas etc. 52 • Na cadeira de Nôa, liam-se dezessete Livros de de Prática 58 • Todavia, no ano de 1777, de acordo com as sumárias
G&leno, De Uso Partiwn, durante cinco anos. O professor deveria indicações da Relação Geral de D. Francisco de Lemos, todas as ca-
ainda fazer "Anatomia de membros particulares seis vezes cada ano deiras já se encontravam devidamente providas 5o.
e t res germs 53 . A s dema1s
A • " . obras de Galeno eram objeto de estudo'
das. duas catedril~as, durante cinco anos. Numa delas, nos dois pri- A organização dos estudos médicos, na Reforma de 1772, consti-
meiros anos, analisavam-se os De Crisibus e De Diebus Criticis e nos tuiu, sem dúvida, um dos aspectos mais felizes da renovação pedagó-
nos posteriores, De Naturalibus Facultatibus, De Pulsibus ad Tiro- gica universitária planejada pela Junta de Providência Literária. A
es e De Inaequali Intemperie. Na outra, liam-se De Methodo Me- lúcida concepção metodológica, as radicais transformações por que
1e~di e De Sanguinis Missione, nos dois primeiros anos, e, nos três passou a Faculdade médica e as providências determinadas com o ob-
ultimos, De Temperamentis, Arte Curativa ad Glaucone e Quos et jetivo de nobilitar a profissão, se, por um lado, testemunham, indire-
Quando Purgare Conveniat 54. tamente, o atraso em que se achavam os estudos médicos, patenteiam,
por outro, os cuidados que presidiram a estruturação dos cursos no-
No lugar destas cadeiras, cujos lentes foram previamente jubila-
vamente instituídos. A articulação dos estudos médicos com as au-
dos 55, foram estabelecidas seis cátedras a saber: a Primeira delas de
las das Faculdades de Filosofia e Matemática demonstra, por si só, o
M~téria Méd~c~, a Segund.a, de Anatomia, Operações Cirúrgicas e
Arte Obstetnc1~, a Terce~ra de Instituições Médico-Cirúrgicas, a elevado espírito por que se traduziu, no setor em apreço, a Reforma
Quarta de Afon.s~os, a Qumta e a Sexta de Prática, tanto de cirurgia de 1772. Ao estudo meramente livresco dos tratados de Galeno e
q~~n~o de mediCma. Seguindo a velha tradição, estas cátedras se Aviceno, substituíram os reformadores uma concepção na qual a se-
dividiam em menores e maiores, sendo as duas primeiras menores e gurança metodológica, a base das ciências experimentais e os exer-
as d emms,· mmores
· 5o
. Essas cadeiras encontravam-se distribuídas cícios práticos se faziam sentir como o organon fecundo dos novos
pelo. cinco anos do curso, na ordem de sua própria designação, deven- estudos. Seguindo as sugestões de Sachetti Barbosa, Ribeiro San-
do ~m~a o estud.ante, no 5. 0 ano, dedicar-se à prática no hospital, sob ches, Domingos Vandeli e Miguel Franzini, a Junta de Providência
a direçao da Qumta e Sexta Cadeiras 57 • Destas seis cadeiras, foram Literária colocou, no lugar da medicina de Avicena, Galeno e Razi,
a tradição hipocrática renovada por Hermann Boerhaave. Por este
52. Estatutos Velhos, Liv. III Tít. V Medicina § 22 Cf c 0111 p' zd' motivo, figuravam como livros básicos do curso médico ao lado do
H' t' · p , ' ' ' . . e1 10
~~ orzco, arte I, Preludio IV, § 58, pág. 89. Sobre o estudo das obras de Compêndio de Anatomia de Hister e dos trabalhos de Chrantz sobre
Avicena e a sua característica distribuição, em um certo número de Fen e estas Matéria Médica, os Aforismos de Hipócrates e de Boerhaave e os li-
em tr~tados e capítul.os e a indicação das matérias neles contidas, ver Bernardo
Antomo Serra de Mirabeau, ob. cit., pág. 12, nota 2.
. ~~· Estatutos Velhos, Liv. III, Tít. V, Medicina, § 23. Cf. Compêndio
Hzstorzco, Parte I, Prelúdio IV, § 58, págs. 89/90. 58. De acordo com os despachos do Marquês Visitador, formn designados
nesta data o Bel. Antonio José Pereira, para a cadeira de Instituições Médico-
, ~4. .Es;atutos Velhos, Liv. III, Tít. V, Medicina, §§ 24 e 25. Cf. Com-
pendzo Hzstorico, Parte I, Prelúdio IV, § 58, pág. 90. Cirúrgicas, juntamente com um substituto com privilégio de lente, Dr. Manoel
Antonio Sobral; Dr. Simão Goud, para a cadeira de Prática Cirúrgica e Mé-
55. Portaria de 28 de setembro de 1772. Ver M. Lopes D'Almeida
Doc~lltos da Reforma Pombalina, X, págs. 12/3. ' dica; Dr. José Francisco Leal, para a cadeira de Matéria Médica; Dr. Luiz
- 56. "!lstatutos ~a Un~versidade de Coimbra, Liv. III, que contêm os Cursos Cichi, para a cátedra de Anatomia, Operações Cirúrgicas e Obstetrícia, para a
qual foi designado também o demonstrador José Correia Picanço. Cf. M.
da~ :1encms Naturms e Filosóficas, Lisboa, na Régia Oficina Tip., 1773, Curso
Med1co, Parte I, Tít. II, Cap. III, § 1, págs. 33/4. Lopes D'Almeida, Documentos da Reforma Pombalina, XII, XIII e XIV, págs.
. 57. Cf. nos Estatutos, Liv. II, Tít. III, Caps. I a V, págs. 39 a 108, nos 14 a 16.
qums se encontram as matérias do curso médico distribuídas pelos cinco anos 59. Cf. "Relação Geral do Estado da Universidade de Coimbra", cit.,
com as recomendações sobre o modo de ensiná-las. ' pág. 50.

166 167
l
I
filosófico, no regime anterior, era realizado no Colégio das Artes de
vros de Albert von Haller, discípulo e comentador do médico holan-
Coimbra e compreendia todas as disciplinas do programa escolástico-
dés 60 •
jesuítico. Na Reforma de 1772, o ensino filosófico, sem deixar de
As Faculdades de Matemática e de Filosofia completavam a or- constituir matéria propedêutica indispensável aos estudos médicos,
ganização da Universidade de Coimbra. Ambas diferençavam-se das teológicos e jurídicos, se transformou num curso de nível superior,
demais pelo duplo destino de seus cursos. Havia no curso de Filo- como hoje diríamos. Significativo, porém, é que as matérias de seu
sofia duas categorias de estudantes: a dos Ordinários, constituída de currículo, pela sua própria natureza, estavam muito distantes das
alunos que se aplicavam aos estudos filosóficos com o objetivo, seja preocupações sistemáticas que, até então, prevaleciam nas escolas por-
"desinteressado", seja com a preocupação de ingressar na carreira tuguesas deste tipo. As diretrizes que a Junta de Providência Lite-
universitária, e a dos Obrigados, formada pelos estudantes que "de- rária deu à Faculdade recém-instituída, caracterizam muito bem o es-
verão necessariamente estudar; ou toda a filosofia; ou parte dela, co- pírito que animou a reforma. Pelos Estatutos, foram criadas qua-
mo subsídio e preparação para as Faculdades, a que se destina- tro cadeiras: a Primeira, de Filosofia Racional e Moral; a Segunda,
rem" 01 • No curso matemático, a estas duas classes de estudantes, de História Natural; a Terceira, de Física Experimental e a Quarta,
Ordinários e Obrigados, acrescentavam os Estatutos uma terceira, a de Química Teórica e Prática 04 • O ensino destas cadeiras durava
dos Voluntários, que compreendia todos os estudantes que por não quatro anos e foi distribuído pela ordem de sua numeração, sendo
"se destinarem às sobreditas Faculdades; nem se acharem com forças, que, no 2.0 ano, juntamente com as aulas de História Natural, deve-
e gênio para estudar a matemática de profissão" . . . quisessem "ins- riam receber os estudantes artistas as lições de Geometria Elementar,
truir-se por curiosidade em qualquer das partes dela, para ornamen- no curso geral da Faculdade de Matemática.
to de seu espírito, como muito convém a todas as classes de pessoas,
Por Decreto de 27 de setembro de 1772, o Marquês de Pombal,
e principalmente. à nobreza" 02 • A classe dos Obrigados compreen-
por ocasião de sua visita à Universidade de Coimbra, designou o Prof.
dia: os estudantes que se destinavam ao curso médico e que necessi-
Antonio Soares para a cadeira de Lógica, Metafísica e Ética, e Do-
tavam de três anos de estudos matemáticos; os candidatos aos cursos
mingos Vandeli para as cadeiras de História Natural e Química.
teológicos e jurídicos, para os quais se exigia um ano de Elementos de
Posteriormente, foi nomeado para a cadeira de Física Experimental
Geometria, estudo este que poderia ser realizado concomitantemente
João Antonio Dallabella 05 • Os livros adotados no curso eram os de
com as aulas do curso filosófico a que estavam igualmente obriga- Lineu, para História Natural, o Compêndio de Muslcaem Broeck,
dos 68 •
para a cadeira de Física Experimental, e o Compêndio de Genuense
As condições para habilitação dos estudantes ao curso filosófico para a cadeira de Lógica, Metafísica e Ética 00 • Sobre a orientação
consistiam no seguinte: curso completo de humanidade, grego e 14
anos de idade, além das exigências a respeito da vida e costumes dos 64. Estatutos, Liv. 111, Parte 111, Tít. 11, Cap. 111, § 1, pág. 338.
estudantes, exigências estas observadas em todos os demais cursos 65. Sobre os professores do curso filosófico, cf. M. Lopes D'Almeida,
como condição preliminar de acesso aos estudos maiores. O curso Documentos da Reforma Pombalina, VIII, pág. 10. Ver ainda a "Relação dos
lentes que El-Rei Nosso Senhor foi servido prover nas cadeiras novamente cria-
das na nova fundação da Universidade de Coimbra, por despachos de 11 a 28
60. Sobre Albert von Haller ver A. Castiglioni, Histoire de la Médicine, de setembro de 1172", existente na Biblioteca da Academia de Ciências, Papéis
trad. francesa de J. Bertrand e F. Gidon, Paris, Payot, 1931, págs. 499/501. Vários, vol. XXVIII, publicada por Teófilo Braga, Hist6ria da Universidade
61. Estatutos da Universidade de Coimbra, Liv. III, Parte III, Curso de Coimbra, t. IH, págs. 421 a 424. Na "Relação Geral sobre o Estado da
Filosófico, Tít. I, Cap. III, § 2, pág. 332. Universidade de Coimbra", de 1777, consta o nome do Dr. João Antonio
62. Idem, Parte li, Curso Matemático, Tít. II, Cap. I, § 8, pág. 226. Dallabella como professor de Física Experimental. Cf. Relação, cit., pág. 58.
Sobre a categoria dos estudantes Ordinários e Obrigados ver, no capítulo citado, O Prof. Dallabella foi designado para a Universidade em 1772, segundo consta
§§ 2 a 7, págs. 224/6.
de uma carta do Marquês de Pombal ao Reitor D. Francisco de Lemos, datada
63. Os estudantes que pretendiam ingressar no curso teológico ou jurídico de 27 de novembro do mesmo ano, cf. M. Lopes D'Almeida, ob. cit., XXXVIII,
deveriam seguir as aulas de Elementos de Geometria no 2. 0 ano de estudos, pág. 63.
juntamente com as de História Natural do 2. 0 ano do Curso F1lo$6fico. Cf. 66. Cf. "Relação Geral do Estado da Universidade de Coimbra", loc. cit.
Estatutos, Liv. III, Parte li, Tít. H, Cap. I, § 6, pág. 225.

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filosófica, é oportuno lembrar aqui o ofício enviado pelo Marquês sicas e Matemáticas, compreendendo a Mecânica e a ótica, em todos
de Pombal ao Reitor da Universidade de Coimbra, em 23 de setem- os seus ramos, sob a designação de Foronomia. Finalmente, no
bro de 1773, sobre as emendas a serem feitas na edição das obras 4. 0 ano, com o Prof. Miguel Antonio Ciera, pelo Compêndio de La-
de Antonio Genovese. Sinal característico da exagerada preocupa- cailhe, aprendiam Astronomia 60 •
ção de combater Aristóteles são os termos do referido documento:
"Logo no Parágrafo Terceiro, escreve o Marquês de Pombal refe- O curso de matemática, na Reforma de 1772, teve amplitude
rindo-se às Instituições da Lógica e da Metafísica de Genuense, dos e alcance excepcionais. O número de cadeiras e a sua seriação, o
Prolegômenos se contém as palavras que vão canceladas por Mim; e programa para elas traçado pela Junta de Providência Literária, ou-
que creio se podem, e devem omitir na impressão, que novamente se vindo especialistas, e os professores que ocuparam as cátedras, tudo
fizer. Porque ainda que vejo que neste Compêndio se trata somen- isto se destinava a trazer o progresso a uma ordem de estudos da
te da Lógica, e não da Metafísica, em que o Estatuto da Universi- qual tanto dependiam os interesses políticos e econômicos do país.
dade impugnou Aristóteles; sempre o nome de um filósofo tão abo- Foram, sem dúvida, esses interesses que prevaleceram na instituição
minável se deve procurar, que antes esqueça nas Lições de Coimbra de uma cadeira de Matemática na Universidade dos tempos ante-
do que se presente aos olhos dos Acadêmicos como um atendível Co- riores à Reforma 70 • Entretanto, o abandono em que praticamente
rifeu da Filosofia. Além de que não é tão certo, como Genovese o ficaram as ciências expe1imentais impediu que os estudos mate-
diz, que Aristóteles desse as mais Completas Regras desta Arte. Nem máticos se desenvolvessem de tal forma que as artes militares e de
isto se pode dizer no tempo de hoje, no qual as regras mais seguras construção pudessem propiciar ao país os seus enormes benefícios.
são as que mais se apartaram do mesmo Aristóteles" 67 • Os com- Criando quatro cadeiras na Faculdade de Matemática e incentivando
pêndios de Genuense propugnavam, no domínio filosófico, por um a nobreza para esses estudos, os elaboradores dos Estatutos da Uni-
ecletismo moderado, do qual não estão ausentes as preocupações mais
versidade de Coimbra perceberam muito bem as vantagens que advi-
características da ideologia iluminista.
riam do progresso de semelhantes estudos.
O curso da Faculdade de Matemática, muito semelhante ao
da Faculdade de Filosofia, exigia, como condição de ingresso, estu-
dos de humanidades e, principalmente, de língua latina, filosofia 69. Sobre os professores, ver M. Lopes D'Almeida, Documentos da
racional e moral, além do conhecimento não obrigatório das lín- Reforma Pombalina, VII, págs. 9/l.Q. Sobre os Compêndios, ver Relação
guas francesa e inglesa. Nele ingressava o estudante aos 15 anos de Geral do Estado da Universidade de Coimbra, pág. 47. A indicação de José
idade, e devia, no 1.0 ano, ouvir, no curso filosófico, as aulas de Anastácio da Cunha foi de data posterior. A 5 de outubro de 1773, escrevia
História Natural e, no 2.0 ano, de Física Experimental, sem o que o Marquês de Pombal a D. Francisco de Lemos, sobre o ilustre matemático:
"o dito militar é tão eminente na ciência matemática, que tendo-o eu destinado
não lhe seria permitida a matrícula no 3.0 ano 68 • O curso tinha para ir à Alemanha aperfeiçoar-se com o Marechal General, que me tinha
a duração de quatro anos e os estudos distribuíam-se por quatro pedido dois ou três moços portugueses para os tornar completos, me requereu
cadeiras: Geometria, Cálculo, Ciências Físico-Matemáticas e Astro- o Tenente-general Francisco Marican que o não mandasse, porque ele sabia
nomia. No 1.0 ano, os estudantes aprendiam a Geometria, pelos mais que a maior parte do que os Marechais de França, de Inglaterra e de
Elementos de Euclides, com o Prof. José Anastácio da Cunha, Alemanha, e que é um daqueles homens raros que nas nações cultas costumam
aparecer. Sobre estes e outros igualmente autênticos testemunhos foi provido
e História Natural, com Domingos Vandeli. No 2. 0 ano, Cálculo, na primeira cadeira do curso de matemática, atendendo a que nela não podem
compreendendo Análise Infinitesimal e Integral, pelo Compêndio de os professores das cadeiras maiores ensinar este ano tendo-a regido no prece-
Bezont, com o Prof. Miguel Franzini. No 3.0 , pela Mecânica de dente". Apud Francisco de Castro Freire, Memória Histórica da Faculdade
Marie, com o Prof. José Monteiro da Rocha, estudavam Ciências Fí- de Matemática nos Cem Anos Decorridos desde a Reforma da Universidade,
em 1772, até o presente, Coimbra, Imp. da Universidade, 1872, pág. 34.
67. M. Lopes D'Almeida, Documentos da Reforma Pombalina, XLVIII, 70. Estatutos Velhos, Liv'. III, Tít. V, Matemática, § 27: "Haverá uma
pág. 76. cadeia de matemática por ser ciência importante ao bem comum do reino, e
68. Estatutos, Liv. III, Parte II, Tít. II, Cap. III, § 5, pág. 231. Sobre navegação, e ornamento da Universidade". Cf. Compêndio Histórico, Parte I,
as condições de ingresso ver, no mesmo capítulo, §§ 1 a 4, págs. 229/31. Prelúdio IV, § 58, págs. 90/1.

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Agravava ainda mais esta situação o fato de os estudos universi-
tários, presos à rotina e aos processos obsoletos, não corresponde-
A reforma dos estudos Gersidade de Coimbra, nos seus rem mais às condições de vida da época. Compreende-se por este
aspectos mais significativos, traduz um esforço de integração da ideo- motivo o grande empenho com que os reformadores procuraram
logia iluminista na vida intelectual portuguesa do século XVIII. substituir, no lugar do ensino escolástico, as novas ciências da na-
Sem arriscar-se pelos perigosos caminhos que a consciência filosó- tureza. D. Francisco de Lemos, membro que foi da Junta de Pro-
fica européia ensaiava nos múltiplos setores do conhecimento, os vidência Literária e Reitor da Universidade de Coimbra, no período
reformadores da Universidade, sem deixar de atender aos imperati- posterior à implantação da reforma, sabia não só que o progresso
vos do progresso científico e doutrinário da época, se decidiram à do país dependia, em grande parte, do aproveitamento dos mais ca-
transformação radical da tradicional instituição universitária portu- pazes entre todos os que houvessem cursado os estudos universitá-
guesa. Entre as sugestões do pensamento avançado de algumas das rios, mas também que o desenvolvimento dos estudos científicos só
mais expressivas figuras do século e o respeito aos valores do pas- alcançaria o objetivo almejado se os graduados pela Universidade
sado, a Junta de Providência Literária procurou uma direção que, fossem aproveitados pelo poder público nos cargos que exigiam qua-
pelos ideais de uma filosofia característica, traduzisse, de maneira lificação universitária. "Todas as ciências têm fins reais e de grande
satisfatória, um programa de recuperação e de emancipação mental utilidade para o Estado" - dizia, na sua Relação Geral, D. Fran-
da gente lusitana. O espírito escolástico , das disputas e das cons- cisco de Lemos. "Para se conseguirem estes fins se mandam ensinar
truções meramente verbais, divorciadas da realidade, encontrou, no e aprender nas Universidades" 72 • Por este motivo, insistia o Reitor,
Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra e nos Estatutos, nesse documento, na necessidade de se ampararem com cargos de
uma das mais audaciosas e decididas impugnações. A Universi- diversas naturezas, instituídos ou a serem criados, todos os gra-
dade, esquecidos os anos de esplendor, se afundara no formalismo duados pelas novas Faculdades, da mesma forma que já se prati-
dos processos escolares, sem espírito e sem finalidade. A vida da cava com os teólogos, canonistas e advogados. Somente o sábio
cultura, como expressão e meio do progresso e da felicidade huma- aproveitamento dos matemáticos, filósofos e médicos poderia pro-
nos, se transformara numa questão de graus acadêmicos a serem porcionar à nação seguros rumos aos seus empreendimentos. Não
obtidos sem muito trabalho, por todos aqueles que ambicionavam teve, portanto, a Reforma de 1772 um aspecto de_m_exa_r_eno:v:ação
alcançar os altos cargos na administração civil e eclesiástica. Os da cultura lusitana; seus objetivos mai~ificativos relacionam-se
índices de matrícula nas diversas Faculdades da Universidade de com os propósitos de integr~ção do progr_ª!I!_ª_c:_t:tltural n.Q._quadro da
Coimbra foram aumentando de qüinqüênio a qüinqüênio, desde '--vida social e política portuguesa.
1573 até 1769, com pequenas quebras periódicas, de tal forma que, Dentro desta concepção, os estudos filosóficos, monásticos e
no qüinqüênio 1764-1769, anterior à reforma pombalina, a matrí- médicos deveriam passar por uma profunda transformação. Não se
cula atingia o expressivo número de 20.453 estudantes, assim dis- tratava mais de uma leitura de longos tratados sistemáticos sobre
tribuídos: Teologia, 566, Medicina, 996, ·Leis, 2.493, Cânones, estas disciplinas, durante vários anos de estudos. A teoria deveria
16.398 71 • Tais índices, num país que sempre se via a braços com estar ligada à prática, e a filosofia, longe de ser um sistema que
o problema da falta de elementos para suas empresas militares, dos servisse de base aos estudos maiores, se convertia numa atitude e
quais tanto dependia a conservação do reinado, testemunham o sin- num método de pensamento. As três Faculdades deveriam entro-
toma da hipertrofia a que havia alcançado a procura da Universidade sar-se de tal forma que "entre as ciências, como entre as virtudes"
pela população letrada. houvesse, como pretenderam Cícero e Quintiliano, "um certo nexo
e sociedade, com que todas mutuamente se ajudam e nenhuma pode
separar-se da outra, sem .arruinar-se ou fazer disforme o seu edifí-
71. Antonio de Vasconcelos, Escritos Vários Relativos à Universidade
z::ionisiana, Coimbra Ed., 1941, Secção III, B, Mapas Estatísticos, 1) Estatís-
tica das matrículas efetuadas na Universidade de Coimbra durante dois séculos, 72. "Relação Geral do Estado da Universidade de Coimbra", cit.,
págs. 120/1. pág. 50.

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cio" 73 • Este ideal de unidade no trabalho científico é característico sino português. Por este motivo, a experiência era um refúgio e
do pensamento iluminista, na medida em que ele indisfarçavelmente o ecletismo criteriosamente construído, a solução capaz de irma-
traduz a concepção da .unidade de um princípio, a ser buscada pelos nar, numa 'aspiração única, o múltiplo trabalho das investigações
caminhos da própria investigação das leis da natureza. E foi exa- positivas. Tão significativo era este ecletismo que, sem advertir
tam,mte esta concepção que justificou os preceitos recomendados as conseqüências filosóficas que fatalmente adviriam, recomendavam
nos Estatutos, por meio dos quais olestudo médico deveria tornar-se os reformadores, no Compêndio Histórico, o estudo da ontologia
._ympírico-racional. A ciência médica deveria estar tão distante do como prolegômeno de todas as ciências, pois somente por seu in-
JmW_emp_frjçiS11JO como das especulações lrrbJ.tr~~õilliliS­ termédio poderiam ser definidos os conceitos de natureza, essência,
mo. _A teoria médicanão se-funâamentaria, por!~-"e!!!_ hip_!j_- causa, efeito, necessário, contingente, perfeito, imperfeito etc. 75 , in-
-rese,-õu iisfiiina algum antigo, ou modêrno,-ã-cu}O serviço se sacri- dispensáveis à investigação natural.
-fiql1eJ.f.faSõbsetva:ções~-e-·experiênêias por me10 de exphcaçoes for-
Compreendendo muito bem que o trabalho científico não se re-

-çadas e somente imag!!!açlas.. a fim de não deixar à natureza des-


menhr a opinião,.
que
. -·····
antecipadamente
.
se abraçou: n~m
.. ------------···. ...
tamb~m_no
-------
sincretismo ··ae··diferentes Sistemas, procurando _ rec:pnçiliá,:-los entre
sumia numa simples interpretação de textos, mas na inteligente ob-
servação dos fatos naturais, a administração pombalina organizou,
na Universidade, o gabinete de física experimental, transferindo-o
si;e""cõnrundindo princípios diversos em prejuí~~ maior do bem do Colégio dos Nobres, de Lisboa, para Coimbra, e aumentando o
público, do que o mesmo que tem resultado dos ditos Sistemas: nem número de seus aparatos. Criou ainda o Observatório, o Jardim
fíiiãlilleilte no -ecleTismo vãgo·cr-uetem feito tão grande ruína nas Botânico, o Laboratório Químico e o Teatro de Anatomia. Com
letras; tomando cada um a liberdade de escolher as opiniões, e pro- estes recursos, o ensino filosófico deixava de ser um simples comen-
babilidades do seu gosto; e sendo este tão estragado na maior parte tário dos livros, para se h'ansformar no caminho de uma investiga-
dos ecléticos, que não fica opinião alguma tão absurda, extrava- ção no próprio teatro da natureza, como se expressava D. Fran-
gante, e insensata que não agrade a algum deles" 74 • A teoria mé- cisco de Lemos numa carta ao Marquês de Pombal 70 • A expe-
dica deveria fundar-se no maior número possível de experiências, riência que tanto apregoavam os Estatutos não era, portanto, uma
cuidando todavia de evitar o grosseiro e sofístico raciocínio, tão simples figura literária e nem tampouco o meio de que lançaram
comum na arte médica, post hoc, ergo propter hoc. ~.<L.d~ mão os reformadores para demonstrar, num quadro sombrio, o es-
verá amparar-se nos recursos que lhe fornecem as_ciências.._!laturais, tado a que o ensino escolástico havia lançado a tradicional Uni-
mass·obretudo procurará imitar o exemplo de exatidão das verctãdes versidade. A valorização do trabalho científico, por intermédio do
~máti_ças_.. reconhecimento do seu alcance e utilidade, foi sem dúvida um dos
Esta valorização da expenencia traduz uma atitude que, no propósitos comuns dos autores iluministas. Nenhuma restrição de
seu íntimo significado, se ajustava pedeitamente ao espírito de com- ordem doutrinária fizeram os membros da Junta de Providência Li-
bate à tradição escolástica até então imperante. O reduzido lugar terária às diretrizes por que se elaboraram os planos dos cursos mé-
ocupado pelas disciplinas propriamente filosóficas de lógica, meta- dico, matemático e filosófico. :B verossímil acreditar, entretanto,
física e filosofia moral, e a importância conferida aos estudos expe·· diante de inúmeros passos do Compêndio Histórico, que, entre a
rimentais testemunham até que ponto os reformadores da Universi- concepção que presidiu à estruturação desses cursos e a que animou
dade se insurgiram contra todas as formas de pensamento sistemá- o planejamento dos estudos teológicos e jurídicos, havia um abismo
tico. Aristóteles, Galena, Avicena e todas as autoridades que ser- causado pela contraditória noção da natureza da filosofia. Para o
viam de base aos estudos universitários se apresentavam como os teólogo e o jurista, a filosofia devia ser a base e o fundamento de
principais fatores e as mais altas expressões da decadência do en- sua formação. Para os naturalistas, ela :::eria o espírito e o pro-

73. Compêndio Histórico, Parte li, Cap. III, § 4, pág. 313. ..1_ 75. Compêndio Histórico, Parte li, Cap. III, § 14, pág. 3ÍS.
74. Estatutos da Universidade de Coimbra, Liv. III, Parte I, t. li, Cap. 76. Carta de 2 de novembro de 1772, apud Teófilo Braga, História da
li, § 5, pág. 27. Universidade de Coimbra, t. III, págs. 443/4.

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cesso de uma atitude cognoscitiva em busca da v~rdade, não como gravam-se nos propósitos da ideologia absolutista que a força dos
ponto de partida, mas como meta. Somente esta contradição ex- acontecimentos políticos reclamavam. O direito natural, recomen-
plica o fato de o ecletismo, repudiado nos Estatutos como diretriz dado pelo Compêndio Histórico e pelos Estatutos, se filiava à tra-
dos estudos médicos, ser expressamente recomendado na lógica e dição de Grócio e Pufendorf, desprezando a contribuição enorme
na própria filosofia, da mesma forma que se compreende o lugar dos juristas da Segunda Escolástica. Lembrando as impugnações
conferido à ontologia como prolegômeno a todas as ciências, quan- que a doutrina do autor do De Juri Belli ac Pacis sofrera por parte
do a investigação natural de há muito se afastara dos conceitos com dos autores católicos, o Compêndio Histórico insiste, particular-
implicações metafísicas, que tantos prejuízos causavam ao progresso mente, nas vantagens que adviriam da adoção de um jusnaturalismo
das ciências. que se inspirasse, expurgado de suas implicações teológicas, nos en-
sinamentos da orientação grociana. O direito natural dos jesuítas
A filosofia, no sistema pedagógico do pombalismo, foi uma v· ..
não poderia, de forma alguma, satisfazer os ideais políticos do abso-
concepção vaga e insegura quanto aos fins, embora no que se re- lutismo do gabinete de D. José I. Fundamentado no primado das
fere às aquisições positivas perfeitamente ajustada ao estado em verdades teológicas sobre as canônicas e das leis canônicas sobre
que se encontravam, no tempo, as investigações científicas. Vaga as civis, a concepção jurídica que prevaleceu na Universidade de
e insegura quanto aos fins porque nela não transparecem as fecun- Coimbra não poderia corresponder às diretrizes pelas quais tanto se
das contradições que, nos diversos setores do conhecimento, o pro- empenhara a administração pombalina nas disputas contra a Cúria
gresso do trabalho científico, por força de sua própria lógica inter- Romana. Por este motivo, a concepção do direito deveria basear-
na, acarretara para a consciência filosófica do século XVIII. A se na idéia segundo a qual o poder dos reis emana diretamente de
contradição entre a razão e a experiência, com todas as suas múl- uma ordem natural que tinha em Deus o seu supremo fiador. Esta
tiplas implicações no terreno especulativo e prático, não encontrou equação básica, claramente sustentada na Petição de Recurso, pelo
o menor eco na doutrina do Compêndio Histórico e dos Estatutos Procurador da Coroa, José de Seabra da Silva, contra a introdução
da Universidade de Coimbra, porque essa doutrina resultou de um
da Bula da Ceia e dos lndices Expurgatórios Romano-Jesuíticos em
esforço de eliminação das diferenças e conflitos de princípios e con- Portugal, foi também sustentada, na Parte I, Divisão Oitava, da De-
seqüências, na fecunda ideologia do século XVIII. Compreende-se, dução Cronológica, onde se diz, recapitulando os sucessos relaciona-
desta forma, que o ecletismo se transformasse na solução ideal dos dos com a adoção dos referidos índices, que nenhum monarca por-
problemas filosóficos. Todavia, este ecletismo, para tornar-se um tuguês podia "abdicar, ou permitir que se lhe usurpasse a indepen-
corpo sistematizado e coerente, necessitava de um critério em função dência temporal da sua Coroa; e a defesa e proteção da autoridade
do qual pudesse estabelecer-se. Na esfera da investigação natural da sua soberania, e do sossego público dos seus vassalos; por serem
e matemática, este problema prévio foi afastado, porque a própria coisas inerentes à Majestade, que é a mesma em todos os sobera-
natureza destas investigações trazia consigo as regras de sua efeti- nos, emanada imediatamente de Deus Todo-Poderoso, livre, abso-
vação. No domínio dos estudos teológicos, este critério teve de ser luta, e sem admitir sujeição temporal a pessoa alguma criada,· como
previamente estabelecido. E é neste setor que encontramos os ele- são primeiros princípios, de que só duvida infelizmente a Cúria de
mentos mais significativos para a compreensão do pombalismo en- Roma, com tantas quebras da sagrada reputação em que todos os
quanto manifestação típica do iluminismo português. fiéis católicos desejaríamos ver os Ministros do Vigário de Cristo
Na organização dos estudos jurídicos, a reforma pombalina se Senhor Nosso, e Cabeça Visível da Santa Madre Igreja, da qual
caracterizou, sobretudo, por três diretrizes fundamentais: a restau- foram sempre os Senhores Reis deste Reino devotíssimos filhos" 77 •
ração, sob novas bases, do direito natural, a introdução dos estudos Todavia, tão claras manifestações não significam que o conceito do
históricos das leis e das instituições, como ponto de partida para a direito natural, defendido .no Compêndio Histórico, seja o mesmo
compreensão do corpo jurídico, e, finalmente, a substituição, no .J que os maquiavelistas e monarcômacos construíram na órbita do di-
ensino, do método analítico de Bártolo pelo método sintético da es-
cola Cujaciana. Estes três aspectos, na sua finalidade íntima, inte- 77. Dedução Cronológica, Parte I, Divisão Oitava, § 280, pág. 146.

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rei to público universal: "As sólidas regras, e os inalteráveis princí- passos, no Compêndio Histórico, que se referem ao direito natural
pios da mesma disciplina confundem inteiramente as duas pernicio- como parte da ética. Aliás, já Grócio definia a lei como "uma regra
sas seitas dos ímpios monarcômacos, e maquiavelistas, que por di- dos atos morais que obriga ao que é justo" 81, distinguindo desta
ferentes caminhos conspiram ambos para dissolver, e romper a aper- forma a sanção moral interna da externa, específica da lei. Tomaz
tada, e indissolúvel união dos vassalos com os monarcas, com a Antonio Gonzaga, num tratado que se encontra na Coleção Pomba-
qual prosperam e florescem as monarquias" 78 • O direito natural lina· da Biblioteca Nacional de Lisboa, como homem do seu meio e
seria, portanto, muito menos um sistema de verdades estabelecidas de seu tempo, traduziu melhor o espírito do absolutismo imperante
do que um instrumento a serviço da boa interpretação das leis. No ao preferir à de Grócio a definição de Einécio: "a lei é a regra
lugar da hermenêutica dos interpretadores que procuravam, nos arti- dos aws morais prescrita pelo superior aos súditos para os obri-
ficiosos recursos dialéticos de que careciam para interpretar capri- gar" 8 2 • A ordem moral constitui o pressuposto da vida jurídica,
chosamente as leis, pretenderam os homens de Pombal erigir o di- em todas as suas múltiplas manifestações, e o direito natural é a
reito natural como critério da boa razão que deveria prevalecer na expressão mais alta da ética e as suas leis não são outra coisa senão
justa exegese dos textos jurídicos. A força das leis dependia, por- formas obrigatórias e externas de coerção aos atos humanos.
tanto, não apenas da tradição e das autoridades, mas ainda das Compreendei)do o direito natural como uma parte da ética,
próprias luzes da razão que, na diversidade dos sistemas jurídicos, nem por isso os homens de Pombal deixaram de entendê-lo como
descobriam o princípio único e inconcusso que, sob diferentes mani- um critério para a interpretação das leis. "O jurista, recomendava
festações, aparecia com a força de sua evidência. Antes da reda- o Compêndio Histórico, que quiser aproveitar o seu estudo, há de
ção do Compêndio Histórico e dos Estatutos da Universidade de trazer de dia, e de noite em uma mão os Anais da História, e em
Coimbra, já se adiantara a administração pombalina no caminho de outra o Código das Leis Naturais: Este para lhe servir de farol
uma nova compreensão dos fatos jurídicos. A Lei de Boa Razão, na interpretação de todas as leis positivas, canônicas, ou civis que
de 18 de agosto de 1769, formulava os princípios básicos da juris- se conformam com a razão natural; as quais só por ela se podem
prudência que deveriam, anos depois, se transformar no programa explicar. . . Aqueles para lhe ilustrarem o espírito na inteligência
.pedagógico de 1772, no setor dos estudos jurídicos. Nesta lei, diz das leis, em que os legisladores se apartam das ditas leis naturais,
o Prof. Cabral de Mancada, "se definem, mais uma vez, a ética, o ampliando-as ou restringindo-as por meio das modificações neces-
direito natural e o das gentes como modalidades distintas mas con- sárias" 83 • O direito natural e a história do direito romano e pátrio,
cordantes da mesma razão natural, chamada a boa razão, tomada civil e canônico, constituíam, desta forma, os guias indispensáveis
como critério supremo da justiça intrínseca de todas as leis" 70 • No ao jurista nos difíceis problemas da hermenêutica. Esta posição
direito natural, que a Reforma de 1772 tanto encareceu, a idéia da define uma atitude de valorização dos princípios racionais do di-
imutabilidade do direito, como critério para a justa apreciação dos reito e, ao mesmo tempo, de compreensão histórica dos fatores de
fatos jurídicos, constitui, sem dúvida, um dos elementos mais sig- que surgiram as leis jurídicas e as instituições delas, até certo ponto,
nificativos para a compreensão dos fins da ideologia pombalina. O dependentes. A boa razão, diz a lei de 18 de agosto de 1769, "con-
direito natural era uma das manifestações da ética, compreendida siste nos primitivos princípios, que contêm verdades· essenciais in-
esta no sentido amplo como ciência do homem 80 • São inúmeros os trínsecas e inalteráveis, que a ética dos mesmos romanos havia es-

78. Compêndio Histórico, Parte H, Cap. II, § 154, pág. 216. 81. De Juri Belli ac Pacis, 1. 1; Cap. I; § 9, n.o 1, apud Lourival Gomes
79. Cabral de Moncada, Estudos de História do Direito, vol. I, O "Século Machado, O Tratado de Direito Natural de Tomaz Antonio Gonzaga, tese
XVIII na Legislação de Pombal", pág. 100. Este artigo apareceu, primitiva- apresentada ao concurso de Livre-docência de Política da Faculdade de Filo-
mente, no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. sofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1949,
IX, 1926. pág. 131 e nota.
80. Só a filosofia moral "mereceu e conseguiu a antonomásia de ciência 82. Apud Lourival Gomes Machado, ob. cit., pág. 131.
do homem". Compêndio Histórico, Parte li, Cap. li, § 59, pág. 171, in fine. 83. Compêndio Histórico, Parte li, Cap. li, § 185, págs. 236/7.

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tabelecido e que os direitos divino e natural formalizaram para ser- traduzisse, no harmonioso mundo das leis naturais, os interesses au·
virem de regras morais e civis entre o cristianismo" s4. tênticos da nacionadidade. Não se pode avaliar, no domínio das
O conhecimento da história, como propedêutica indispensável manifestações ideológicas, o alcance das medidas de um governo pela
aos estudos humanísticos, filosóficos, jurídicos e teológicos, foi pre- soma de utilidades e benefícios dela decorrentes. As idéias adian-
conizado por Verney no Verdadeiro Método de Estudar. Nos Es- tam-se muito aos homens e às instituições. E por este motivo, na
tatutos da Universidade de Coimbra, adotou-se, sem relutância, essa justa apreciação de um sistema político, o trabalho do historiador
diretriz, quer seja nos domínios da teologia, do direito ou da própria nunca poderá ser equiparado à tarefa do juiz. A investigação his-
medicina. Entretanto, onde mais se encareceram as vantagens dos tórica busca descobrir, nos atos, as intenções que os animaram e
estudos históricos foi no domínio dos estudos teológicos e jurídicos. estas intenções só podem ser historicamente compreendidas na me-
A história das instituições surgiu aos olhos dos reformadores da Uni- dida em que elas se traduzem e se explicam pela unidade espiritual
versidade como um elemento destinado a corrigir os abusos do arti- que, em atos diversos e até aparentemente contraditórios, concretiza
ficialismo verbal dos escolásticos e a orientar os espíritos para as aspirações e ideais que, pela sua própria índole, nem sempre são inte-
noções históricas, sem as quais o direito e a teologia se transfor- gralmente realizáveis. A história, como subsídio da jurisprudência,
mariam num simples jogo de palavras. Da mesma forma que se e o direito natural foram o critério de que lançaram mão os ho-
recomendam a leitura dos livros sagrados e dos escritos dos santos mens de Pombal para descobrir, no emaranhado texto das disposi-
padres, diretamente nos próprios textos, procuram os membros da ções jurídicas, o caminho de uma hermenêutica política perfeita-
Junta de Providência Literária realçar o significado da história para mente ajustada aos ideais do .absolutismo e aos interesses de uma
a perfeita compreensão dos fenômenos jurídicos. Significativo, en- nação que pretendia extirpar em suas raízes as causas de seu atraso.
tretanto, é que .estas recomendações, transformadas em diretrizes Por estas razões, não compreendemos a afirmação do Prof. Cabral
obrigatórias, não se limitam apenas a completar os estudos do di- de Moncada, segundo a qual a "obra de Pombal foi. . . força é re-
r:it~ ~omano e. do direit? eclesiásti~o pela história romana e pela
conhecê-lo, uma obra de desnacionalização. O que teve de euro-
histona da IgreJa, mas ex1gem tambem o estudo do desenvolvimento peu, por ser demasiado brusco e violento, impediu-a de ser nacio-
do direito português, por intermédio da análise das situações histó- nal. Como o que teve de nacional, por falta de suficiente base his-
ricas que o condicionaram. Com essa diretriz procurava-se alcan- tórica, impediu-a de ser europeiamente fecunda" so.
çar as regras de um critério jurídico que, no lugar das razões mera- Foram estas mesmas intenções que conduziram a Junta de Pro-
mente dialéticas, estabelecesse o princípio de uma hermenêutica fiel vidência Literária a recomendar o método sintético da "escola"
aos motivos históricos que justificavam as leis e as instituições. Cujaciana no lugar do analítico, que até então prevalecia na Uni-
"A história", afirma-se no Compêndio Histórico, "tem um comércio versidade de Coimbra. Ao jurista deveria muito mais interessar a
tão íntimo, tão familiar e tão freqüente com a jurisprudência como a ordenação dos princípios basilares do direito, por intermédio dos
alma tem com o corpo" sõ. quais se ordenavam todos os fatos jurídicos, do que as glosas e os
comentários analíticos que, embora porventura precisos, conduziam
Encarecendo o significado do valor da história para a juris-
as inteligências ao caos dos pormenores, muito mais propiciadores
prudência, o pombalismo se apresenta como uma manifestação em
do espírito sofístico do que da clara interpretação dos textos. Até
que os reclamos da realidade presente e passada, iluminados pela
boa razão discernidora, se transfiguram numa concepção autentica- a adoção dos novos Estatutos, os professores da Universidade de
mente lusitana. Ao arbítrio caprichoso das leis elaboradas em con- Coimbra se limitavam, segundo o Compêndio Histórico, "a lerem
dições diversas e sob a injunção dé diferentes vicissitudes histórico- uniformemente pelo método analítico: constando todas as suas lições
políticas, o pombalismo procurou substituir uma ordem jurídica que de simples comentários a textos" 87 • Os novos Estatutos pretende-

84. Apud Cabral de Mancada, oh. cit., nota 1, às págs. 100/1. 86. Cabral de Mancada, ob. cit., pág. 125.
85. Compêndio Histórico, Parte II, Cap. II, § 183, pág. 234. 87. Compêndio Histórico, Parte li, Cap. II, § 250, pág. 275.

180 \ 181
pios revelados e a ver que "a razão e a filosofia só serviam para
ram que o estudo da jurisprudência se transformasse na expressão
de uma doutrina certa nos seus princípios, meios e fins, e, por este melhor se ilustrarem os dogmas" 80 •
motivo, não é fora de propósito lembrar que o Compêndio Histó- O programa teológico traçado pela Junta de Providência Lite-
rico insistia particularmente sobre as conseqüências do pombalismo, rária, para os estudos da Universidade de Coimbra, traduziu, dentro
c!o pirronismo moral e do ateísmo da ética aristotélica que, conjun- da concepção dos ideais católicos, os objetivos regalistas da admi-
tamente .com a filosofia escolástica, se implantara nas escolas jesuí- nistação pombalina. É muito significativo, neste sentido, o trecho
ticas e no Colégio das Artes de Coimbra. O pombalismo ignorou do Diário do bispo Cenáculo, rememorando os fatos referentes à
os caminhos tortuosos da dúvida, porque os reais objetivos de sua escolha dos compêndios que deveriam ser adotados nos cursos de
política não permitiam perplexidades e nem tampouco indecisões. Coimbra. Dá a entender um dos passos deste Diário que o Reitor
Sua velada ambição foi talvez o ideal de um sistema ético construído da Universidade, D. Francisco de Lemos, José de Seabra da Silva,
com toda a evidência de princípios iguais aos da geometria. O di- e talvez o próprio irmão do Reitor, se inclinavam pela adoção dos
reito como expressão da moral era um mundo em que a razão na- compêndios de Martin Gerbert que, de acordo ·com Grabmann foi
tural, por si só, devia encontrar as evidências supremas. Nestas teólogo que sustentou "os ensinamentos da Igreja contra os erros do
condições o método sintético, compendiário, demonstrativo, de ins- febronianismo" numa de suas obras, escrita com certo tom apocalí-
piração Cujaciana, se prestava muito mais para atender aos ideais tico oo. O bispo Cenáculo insistira em demonstrar o ultramontanis-
políticos dominantes do que as glosas e os comentários analíticos da mo do teólogo alemão. Vale a pena citar um dos trechos desse diá-
escola de Bártolo. rio: "Na segunda-feira, 2 de setembro, fui ao Marquês, a ele me
acudiu: - "Oh homem! é verdade, grande teólogo é o Gerbert; eis
A nova concepção do direito, que, na vida intelectual portu- aqui um teólogo como eu desejava! Mandei-o buscar para o ver;
guesa, o Compêndio Histórico e o segundo volume dos Estatutos e acho que é o melhor curso que há". Eu lhe toquei, todavia, algu-
preconizaram, constituiu o fundamento ideológico sobre o qual, ti- mas espécies do meu sentimento, acrescentando que seria porque
midamente, tentou o pombalismo a constituição de uma doutrina não tenho grande lição dele. Respondeu: - Pois leia, que há de
que, sem comprometer os dogmas e as verdades da fé católica, se achar isto; veja os prefácios; - e me mostrou em um a passagem
compadecia com os. interesses do pensamento político dominante. em que Ceiller reprovou o sistema de Gerbert; e lendo eu reprovavit,
O ensino teológico realizado na Universidade de Coimbra fora, até disse o Marquês: - é erro, porque deve ser approvavit. Calei-me,
então, uma disputa de partidos entre aqueles que escolhiam como mas é reprovavit. Depois fez-me ver o Febrônio, Jus Ecclesiasticum
mestre Santo Tomaz de Aquino e os que viam em Duns Scott o ad usum catholicorum. Eu lhe disse: este sim, que é metódico; se
mestre por excelência em matéria de teologia. À leitura dos textos o Gerbert escrevesse assim e o necessário, seria ótimo, porque tem
do dominicano e do franciscano, se acrescentavam ainda nos cursos bom latim e é muito douto" 01 • Todavia, apesar da relutância do
conimbricenses os comentários aos livros de Gabriel Biel, de Duran- esclarecido bispo Cenáculo, os livros de Gerbert foram adotados na
do e às Sentenças de Pedro Lombardo. Com cautelosos cuidados, Universidade. Fato tanto mais surpreendente, pois o Padre Anto-
examinou a Junta de Providênca Literária· o valor da contribuição
nio Pereira de Figueiredo escrevera, em 1769, a sua Tentativa Teo-
de cada um destes autores escolásticos. Reconheceu as Sentenças lógica, na qual o poder dos bispos de dispensar nos impedimentos
de Pedro Lombardo como obra digna da sabedoria e do zelo do
seus autor, porém, não sem defeitos, aliás explicáveis pela insufi-
ciente informação de que poderia dispor na época 88 • Quanto a 89. Idem, ibidem, § 76, in fine, pág. 230.
Santo Tomaz de Aquino, acreditou a Junta que as suas luzes, "supe- 90. Martin Grabmann, História de la Teología Católica, desde Fines de
riores às do seu século", conduziram-no a compreender os vícios la Era Patrística Hasta Nuestros Dias, versão espanhola do Pe. David Gu-
tiérrez, Madrid, Espasa-Calpe,. S. A., 1940, pág. 259.
que comprometiam a teologia, a fundar esta disciplina nos princí- 91. "Notícias secretas inéditas e muitos curiosas". . . cit., in Conimbri-
cense, reproduzidas por Teófilo Braga, na História da Universidade, de Coimbra,
88. Compêndio Histórico, Parte li, Cap. I, § 68, pág. 126. t. III, págs. 398 a 416.

183
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públicos do matrimônio, e de prover espiritualmente em todos os A concepção que presidiu à organização dos cursos de teolo-
mais casos reservados ao Papa, todas as vezes que assim o pedir a gia traduz as mesmas diretrizes que nortearam o plano dos estudos
urgente necessidade dos súditos era, posto à luz dos fatos da his- jurídicos. No lugar das questões abstratas, procuraram os estatu-
tória eclesiástica, interpretada pelo tradutor da Bíblia, no mesmo tos estabelecer o gosto pelos estudos históricos e pelo critério seguro
p1.ano em que se achavam as atribuições do chefe supremo da Igreja. de discernimento das doutrinas teológicas. Evidentemente, o res-
Se, no domínio dos problemas da economia interna da Igreja, um peito às verdades reveladas, à autoridade dos santos padres e às
homem como Antonio Pereira de Figueiredo, que tão integrado es- decisões dos Concílios constituíam as diretrizes básicas do pensa-
teve nas reformas da administração pombalina, se atreveu a sus- mento nuclear da concepção do Compêndio Histórico e dos Esta-
tentar, com imensa repercussão, uma doutrina tão ousada, dificil- tutos da Universidade. Nem por isso, entretanto, a história deixou
mente se compreede a cautela adotada pela Junta de Providência de representar, na teologia recomendada pela Junta de Providência
Literária ao planejar o programa de estudos teológicos da Univer- Literária, uma função fundamental. Contra os artificiosos e arbi-
sidade de Coimbra. :É verdade que, ao lado de Gerbert, de orto- trários caprichos da dialética, tão expressivos do espírito da esco-
doxia até certo ponto insuspeita, apareciam as Institutiones Eccle- lástica, a Reforma de 1772 fez prevalecer as preocupações de uma
siasticae de Fleury, que tanto escândalo causaram aos homens do teologia voltada para as lições da história eclesiástica, como meio
governo de D. Maria I, que o próprio Reitor da Universidade, na capaz de afastar as inteligências das disputas sobre as questões pro-
sua Relação Geral do Estado da Universidade de Coimbra, se aba- babilísticas, que tantos prejuízos causavam a todos os que preten-
lançou, num adendo, a justificar a adoção desta obra. "Quando na diam superar as dúvidas para alcançar o terreno firme dos princí-
Junta Literária se tratou de nomear livros para as lições do curso pios indiscutíveis. O mal do ensino universitário nesse setor era,
jurídico, foram examinadas todas as Instituições Canônicas, que sem dúvida, a inclinação que o espírito da filosofia escolástica e
constava terem composto; e entre todas não apareceu alguma, que o sistema universitário favoreciam, conduzindo os estudantes muito
pudesse disputar a preferência às de Fleury; por serem todas poucos mais ao gosto das disputas do que ao interesse pelas questões que
conformes com o Novo Plano dos Estudos Canônicos, e não tra- não comportavam diversidade de opiniões. O método dos escolás-
zerem nas matérias as suas origens. Conhecendo-se, que as ditas ticos, dizia D . Francisco de Lemos, "não tinha outro espírito senão
Instituições deviam ser aprovadas, assentou-se, que se mandassem o de disputar", por isso, "foi o veículo de muitos absurdos. Porque
imprimir para uso dos estudantes. E porque na Alemanha se tinha como as matérias, de que tratavam, eram meras possibilidades de
feito uma edição delas com notas de Bochmero; muitas das quais entes imaginários e coisas fúteis nas quais não podia haver verda-
eram úteis, porque não tocando na religião ilustravam mais o que des que subministrassem princípios para a resolução das questões;
dizia Fleury em Compêndio; pareceu que na impressão se deviam é claro que a análise não podia ser utilmente aplicada ao exame e
meter as ditas notas, exceto aquelas, que não fossem convenientes discussão das ditas matérias e que precisamente deviam ficar as
, à mocidade: Para o que se passaram ordens ao revisor. Estas questões sempre irresolúveis e vacilantes, para nelas ter lugar o
foram as cautelas, com que se procedeu na. edição da dita Instituía. sim e o não" 98 • Por esta razão, no lugar da dialética, como meio
:É digno de reflexão, que nunca ninguém declarasse contra o Har- de interpretação dos textos, os Estatutos colocaram a história, tal
precto, o Vinnis, e outros A.A. muitos velhos, e vulgares na Univer- como fora preconizada para os estudos de direito civil e canônico.
sidade, e fora dela, contendo eles sobre algumas matérias erros con- Unicamente a história poderia livrar as inteligências das seduções
tra a religião; e só lembre agora o declamar contra Fleury e as notas, que as abstrações metafísico-teológicas exerciam nos espíritos. O
por darem notícia de muitos abusos, aliás muitos conhecidos a quem que pedagogicamente importava, no que se refere aos problemas de
revolve os monumentos da Igreja" 92 • teologia, era criar o gosto por esses estudos, demonstrando, à luz
dos fatos históricos, a força e o valor da palavra revelada.

92. "Relação Geral do Estado da Universidade de Coimbra", nota 1,


às págs. 13/4. 93. "Relação Geral do Estado da Universidade de Coimbra", pág. 8.

184 185
Onde, entretanto, o programa pedagógico do pombalismo se Foi precisamente este ideal de umao cristã que conduziu os
traduz de forma mais expressiva é na crítica, longa e minuciosamente elaboradores do Compêndio Histórico a condenar a ética de Aris-
desenvolvida no Compêndio Histórico, à ética de Aristóteles. Os tóteles adotada nas escolas da Companhia de Jesus, como propi-
historiadores que trataram dos fatos referentes ao governo de D. '
ciadora do probabilismo e do pirronismo moral, que tantos preJUl-
.,
José I, colocaram-se sempre em posições sistemáticas, de tal forma zos causavam à doutrina cristã e à ordem civil. Lembrando o que,
que, para uns, este período histórico apareceu como uma época sobre a ética de Aristóteles, escreveram os autores modernos, entre
precursora das idéias liberais e, para outros, como uma fase his- os quais Luiz Vives, o Compêndio Histórico enumera e analisa os
tórica que se caracterizou pelos abusos do poder decorrentes da fundamentos e os conceitos das virtudes da moral aristotélica, de-
vontade indômita de um homem e do próprio absolutismo. Distan- monstrando o quanto se distanciavam da filosofia genuinamente
ciados pelos prejuízos doutrinários ou pela força das paixões, in- cristã. Este esforço, entretanto, representava a aspiração de fazer
sistiram estes mesmos historiadores, entre os quais se contam algu- da ética a ciência do homem em todas as suas relações com a so-
mas figuras insignes, nos aspectos acidentais e inexpressivos da ad- ciedade civil e religiosa. O objetivo do pombalismo foi também
minitração pombalina. Não é de estranhar, portanto, que a ação neste aspecto eminentemente prático e político. As longas e exaus-
do gabinete de D. José I fosse apreciada como obra exclusiva de tivas justificações teóricas se destinaram a reforçar e a valorizar o
um homem, e o que é mais lastimável, como expressão de um pen- programa de ação, objetivo direto da administração pombalina. Na
samento desligado da realidade portuguesa. O pombalismo não foi medida em que o pombalismo se caracterizou pelo predomínio dos
obra de uma pessoa: foi um denominador comum de aspirações, valores de ação sobre os princípios especulativos, representou uma
integradas na vontade resoluta de um ministro que procurou reali- atitude ética, ou melhor diríamos, pedagógica: a realidade portuguesa
zar o ideal da recuperação econômica, política e cultural da nação era apenas a matéria-prima sobre a qual o pensamento político de-
portuguesa. Compreendem-se, portanto, o exagero e as paixões que veria exercer-se, modelando, tal como um artista, a imagem do Por-
acompanharam todos os atos no período de 1750 a 1777. O que, tugal de amanhã.
todavia, não se avaliou, suficientemente, exceção feita aos trabalhos
de Latino Coelho, foi o sentido das aspirações do grupo político
que, neste período, ensaiou novas diretrizes à nacionalidade. Fato
tanto mais estranhável quanto quase todas as ações do governo
foram acompanhadas de amplas razões, fundamentadas no conhe-
cimento dos fatos da história portuguesa e em algumas das lições
mais expressivas dos corifeus do pensamento moderno.
O pombalismo representou, na sua essência, a forma caracterís-
tica do iluminismo português. A sua justificação, como forma de
modernização ideológica, política e econômica, embora concretiza-
da sob as limitações do absolutismo, traduz as preocupações gené-
ricas do movimento iluminista. As reformas da instrução pública,
nos múltiplos aspectos por que se apresentaram, embora inicial-
mente determinadas pela pressão dos acontecimentos históricos,
constituíram um esforço destinado a fornecer ao poder público os
recursos indispensáveis ao progresso do país. Dentro dos quadros
do regalismo, elevado ao grau extremo do absolutismo, a ordem
política almejada pelo gabinete de D. José I exprimia o ideal de
realizar a 1.mião cristã na sociedade civil.

186 187
·('·
I

Conclusão
Nos quatro capítulos deste trabalho, deixando de lado alguns
problemas que nenhuma relação direta têm com a questão pedagó-
gica patente no programa de reformas da instrução pública, no pe-
ríodo pombalino, procuramos indicar, numa tentativa de interpre-
tação histórica, as íntimas conexões das diretrizes deste programa
com as condições políticas e culturais do terceiro quartel do século
XVIII português. Pareceu-nos que as reformas realizadas no perío- \
do que vai de 17 50 a 1777, do ponto de vista pedagógico, traduzi-: \,/f,r"
ram um esforço característico, de ajustamento e integração dos )(/
ideais de cultura, no sentido de dotar o poder público dos recursos ,{
humanos indispensáveis ao progresso da nacionalidade. O pomba-
lismo foi, sem dúvida, uma concepção política e cultural inspirada,
até certo ponto, na ideologia iluminista. Os motivos que nortea.:: \
ram a ação dos homens do gabinete de D. José I foram, sobre-
tudo, de ordem prática e, o que é mais significativo, apresentaram-se 1
c~ranifestaçoein&óricas de problemas que a força dos aconte- '
cimentos históricos parecia impor como solução oportuna dos pro-.· )
blemas que afligiam o País. A criação das aulas régias de latiill.,
do Colégio dos Nobres, dos estudos relacionados com a arte militar,
assim como a instituição da aula de comércio e a reforma da Uni-
versidade são expressões, e mais do que isso, são conseqüências de
uma concepção política orientada no sentido de fazer da nação por::-1
tuguesa um Estado progressista à altura das demais nações européias.j
O absolutismo .e o ilyminismo politicamente confundem-se n~
medida em que ambos, em certo sentido, convergem para o objetivo
comum de .lutar contra a força do poder eclesiástico. Sem dúvida, ....,
o iluminismo foi muito aléin, pois procurou, num esforço indaga-

189
tório, as raízes legítimas e racionais deste poder. A instrução pú- hora a reforma pedagógica do pombalismo expressamente visasse a
blica, na sua estrutura e nos seus diversos níveis, foi o meio de que atingir os jesuítas, as suas diretrizes foram de tal alcance que emer-
lançou mão o grupo político de D. José I para reforçar os funda- giram das condições políticas da época. Assimilando os valores do
l
mentos da ordem civil. O programa traçado no Alvará de 1759, as •''!\"', pensamento contemporâneo, integrando-os na tradição nacional
diretrizes adotadas na criação do Colégio dos Nobres, das aulas mi- conscientemente interpretada, ajustando-os às peculiares condições
litares e do comércio e na reforma universitária de 1772 consti- da realidade portuguesa, o pombalismo, na sua finalidade, exprimiu
tuem a expressão pedagógica tanto do absolutismo quanto do ilu- e definiu o sentido de uma época. A pedagogia, no sentido amplo
minismo. Absolutismo na medida em que a Coroa reivindica para si do termo, constitui sempre uma das formas que traduzem, com in-
a execução--de tiinà ·tarefa que, até então, fora, de modo quase gene- dividuação característica, as culturas; nela se concretizam os ideais
ralizado, atribuição própria do poder eclesiástico. . Iluminismo por- dos grupos humanos, das épocas históricas e das nações, consciente
que o programa e as diretrizes da reforma pombalina traduziram ou inconscientemente sentidos.
os ideais de uma cultura que, nas suas manifestações, se apresentou
como a expressão autêntica do pensamento moderno, definido em A pedagogia pombalina foi a expressão de uma época, expres-
função dos valores e ideais do passado e da tradição vigente. são tanto mais significativa quanto ainda hoje sugere fecundas lições
propiciadoras de perplexidades para uns e certezas para outros.
A modernidade da pedagogia pombalina, por maiores que se-
jam as suas conseqüências políticas, só poderá ser compreendida
à luz dos fatos pretéritos. Na reorganização do ensino das escolas
menores, como, aliás na própria Universidade, prevaleceram as li-
ções dos humanistas que lutaram contra o jugo da autoridade do
filósofo peripatético e contra o saber verbal e dialético até então
imperantes nas escolas européias. Ao contrário do que possam
pensar os intérpretes afoitos do governo de D. José I, o pombalismo
foi a expressão de um ideal político cultural muito mais voltado
para o passado do que para o futuro. Não é fora de se:o,tido lem-
brar que uma das diretrizes básicas da administração pombalina
foi o combate ao messianismo sebastianista. Nesse sentido, o pom-
balismo foi antecipada expressão dos ideais burgueses, pois o
burguês ignora o conforto da esperança e a incerteza do futuro; seu
cálculo, frio e matemático, atinge apenas o imediato e a realidade
presente. A pedagogia pombalina, concretizando estas aspirações,
apresentou-se como a solução por intermédio da qual os problemas
políticos que afligiam a nacionalidade encontraram, a posteriori, os
fundamentos teóricos capazes de justificar os objetivos imediatos do
governo de D. José I.
A reforma dos estudos de latim e humanidades representou
uma volta à tradição humanista do quinhentismo, renovado pelo
progresso dos estudos literários dos séculos posteriores, e o progra-
ma traçado pela Junta de Providência Literária constituiu, por sua
, vez, um esforço de recuperação dos ideais da cultura superior que
· o predomínio dos interesses religiosos havia comprometido. Em-

190 191
Apêndice
"Papéis pertencentes aos professores de Pernambuco, cartas dos
mesmos, Certidões e informações do Comis. e Gov." - Da Biblio-
teca Geral da Universidade de Coimbra. Documentos com a cota
35, que se encontram, entre outros, reunidos sob o n. 0 2.534.

Requerimento de Diogo Velho Cardoso, professor na Vila de


lgaraçu.
Diz Diogo Velho Cardoso que, vagando os estudos gerais de
gramática da Vila de lgaraçu em Pernambuco pelas novas ordens
de S. M., e pondo-se a concurso o lugar de mestre para a dita Vila
entre outros opositores foi o suplicante eleito e aprovado para en-
sinar gramática na dita Vila e com efeito está atualmente ensinando
pelo novo método com aceitação geral, como consta da certidão
junta, e há de constar dos papéis, que o dr. ouvidor geral, como
diretor dos estudos de gramática daquela capitania, havia remeter a
V. Ex.n; e porque lhe não determinou ordenado algum, e o supli-
cante o necessita para a sua sustentação, não podendo pela ocupa-
ção do magistério de outra sorte adquirir para si, e sua família e a
V. Ex.n como diretor geral dos estudos está encarregado por S. M.
o arbitramento dele para todos os mestres de gramática, que, como
o suplicante, forem eleitos segundo as novas determinações do mes-
mo Senhor.
Para V. Ex.n seja servido determinar-me o ordenado conve-
niente, visto estar eleito, e aprovado, e em atual exercício, segundo
as ordens de S. M.

193
II 2. 0 - Que por efeito deste ódio, e engano em que vivem de
que os novos métodos não servem para o ensino tiram aos pro-
"Instrução para o Ex."'" Sr. Conde de Vila Flor Gov. de Per- fessores os estudantes para outros, mestres dos naturais da terra,
nambuco a respeito das queixas, que na Capital do mesmo Governo o que dá a entender, que estes ainda que aparentemente ensinem
se formam contra os professores régios de gramática latina e das que pelos novos métodos, por que S. M. manda, que as doutrinas com
estes também formam contra o seu comissário e contra os naturais que os explicam serão as antigas reprovadas por S. M., por que
do mesmo estado." se não fora isso, antes os haviam querer conservar, nas aulas dos
professores régios aonde não pagam causa alguma, do que nas aulas
Diz o Comissário por si, e pelos paisanos. dos naturais, aonde lhes hão de pagar todos os meses o que for
1.0- Que os professores régios não têm coonestado a aceita- estilo do país.
ção esperada e que não sabe se é pela oposição dos naturais, ou se 3. 0 - Que um dos professores dos naturais, que se chama
é pelo mau modo, com que na verdade se têm portado com indi- Francisco de Souza Magalhães tem sido o mais especial nas pe-
zíveis omissões nas horas clássicas com pouca assistência e fervor tulâncias com que se tem oposto aos professores régios, dizendo mal
na educação dos seus discípulos, o que dá motivo a que continua- deles por toda a parte, e aos seus discípulos desencaminhando-os das
mente estejam os pais dos estudantes requerendo a ele comissário aulas régias para as suas, o que tem conseguido.
licença para passarem seus filhos para os estudos dos naturais.
4. 0 -Que por este motivo se vêem os professores régios desam-
2. 0 - Que matriculando-se em a aula do professor régio de parado~, desa~endidos, e insultados por todas as partes, faltando-
Olinda a princípio 57 estudantes, tinham desertado tantos da tal lhes ate o abngo, e proteção do seu legítimo superior, que é o co-
aula, que em fevereiro passado apenas se achavam 12. missário subdelegado do diretor geral dos estudos o Des. Ouv. Ber-
3. 0 - Que o Dr. Manoel da Silva Coelho pretendeu a seu ar- n.ardo Coelho da Gama, por que devendo este proteger, e patro-
bítrio perverter a forma das férias, não as dando em setembro como cmar aos professores régios e com o seu patrocínio e amparo fazê-
S. M. ordena, em seu Alvará e Instruções, mas querendo mudá-las los respeitar de todos pelo bom serviço de S. M., que os quis mandar
para dezembro pelo que foi necessário ser advertido pelo comissário. para aquele país, não só o não faz, mas antes segue o partido dos
naturais sendo um dos primeiros, que abominam o Novo Método,
4. 0 - Que o mesmo Manoel da Silva Coelho com a vaidade e que está persuadido das vantagens do antigo. O que suposto, ou-
de ser bacharel formado na Universidade de Coimbra tem feito suas vindo o sr. conde assim ao comissário, a queixa, que tem dos
incivilidades alheias da obrigação de súdito a ele comissário. professores, como os professores a queixa, que tem do comissário,
e do povo, me fará o favor de fazer toda a diligência por ver se
Dizem os Professores acha algumas pessoas, que não sejam parciais, e que sejam de ver-
dade e inteligência para se informar de tudo, e sabendo com cer-
1. 0 - Que é tal a impressão, que deixaram os jesuítas em teza o que houver no particular ou contra o comissário, ou contra
todo o povo, que o seu método de ensinar era o melhor de todos, ,,.., os professores, ou contra todos, dirá a cada um dos que tiverem
e tal as saudades, que os naturais têm dele, que por esse respeito cometido coisa, que seja digna de reparo, o que entender para se
têm todos ódio aos novos métodos, que S. M. mandou estabelecer emendarem, dando-me parte de .tudo, para eu lhe dar o remédio
para a reforma dos Estudos, e deles dizem todo quanto mal se que for conveniente, e me fará a graça no caso, que aos professo-
pode excogitar persuadindo a todos, que pelo novo método se não res cumpra com a sua obrigação e ainda não a tendo cumprido,
pode saber latim, e assim fazem zombaria, e escárnio dos ditos emendando-se pelas suas admoestações de os proteger com toda a
novos métodos e por conseguinte também dos professores, que o eficácia, para que se extinga a oposição, que lhes têm e lhes vão
foram ensinar dizendo destes muito mal, levantando-lhes muitos todos os estudantes para as suas classes, que eles puderam bem
testemunhos e pondo-os no ódio das gentes. reger, fazendo também, que o meu comissário os proteja com a efi-

194 195
cácia que é obrigado, e que os corrija, e advirta igualmente em principalmente quando as desculpas que se alegam são a um supe~
tudo, o que julgar é conveniente, e nisto fará S. Ex." um grande 1ior que se não acha em alguma instruído. Parece-me que estou
serviço a Deus, e a S. M. e à Pátria. Lisboa em 7 de outubro de no mesmo caso; ainda que outra causa me deixaria julgar a fé que
1761. Principal D. Tomaz de Almeida, diretor geral dos estudos. .i a V. Ex." devo. Donde ser-me-á lícito, digo, se V. Ex." m'a con-
cede, expor por agora os fundamentos, e fatos em que se ·estriba-
vam as notícias e queixas que de mim a V. Ex." fizeram, e de que
III V. Ex." me adverte, e justamente me repreende: cujas repreensões
recebo com a inteira; e devida submissão de súdito. Mas Senhor,
Carta de Manoel da Silva Coelho a D. Tomaz de Almeida confesso a V. Ex." ingenuamente que por mais exata diligência; séria
defendendo-se de diversas acusações. reflexão que sobre isto tenho feito não posso descobrir outro algum
fundamento mais que o ódio considerável que aqui tem concebido
1 - Pela frota recebi u'a carta de V. Ex." com a data de 2
contra mim não só os do país mas os meus naturais; e não sei se
de outubro de . . . tive nela um particular gosto, e também igual
sentimento. Pelo primeiro partido contribui muito a honra van- mais ainda aqueles que me deviam proteger. Disto parece é prova
tajosa que V. Ex." me confere em escrever-me. Pelo outro: tive- algua causa racionável a verdade que por vezes a V. Ex." tenho
ram grande força as demonstrações que nela vinham do meu desa- declarado: que V. Ex." queira dar crédito ao que acima digo que
ingenuamente lhe confesso, e ter por verdadeiras as causas que agora
grado: o que se ingeriu no ânimo de V. Ex." por meio das notícias
por partes entro a ponderar ao meu respeito.
que daqui se enviaram, concluídas em manifesto, e grande descré-
dito meu: se o posso julgar maior que em ter desagradado a V. Ex.", 3 -Diz-me V. Ex." na sua carta, depois de me fazer a honra
sendo sempre o meu especial cuidado buscar todos os meios con- de se mostrar persuadido das desordens que na minha lhe relatei;
ducentes a aquistar em utilidades; e honra minha o agrado, e não que também receia que da minha parte hajam algumas, as quais
desmerecer a proteção de V. Ex." a quem rendo uma inteira humil- caindo em o mau ânimo dos do país produzam as más conseqüên-
dade; o mais respeitoso afeto, e a mais delicada atenção. Mas cias de que a V. Ex." avisei. Receia muito, diz outra vez V. Ex.":
Senhor este sentimento e afeição que se me acrescentou àquele de pelas muitas notícias que sabe do Brasil: quando em passando para
que há muito me vejo oprimido no meio de tantas desordens, da este estado algum dos do reino se persuade que é um príncipe e
mais formidável oposição; e enfim: de uns ânimos cujo caráter cheio de soberba, de altivez, e de vaidade, pretende pisar, e meter
constitui em grande parte a malignidade e inquietação, como V. Ex." debaixo dos pés a todos que se acham destas bandas; e lhe custa
muito terá colhido das minhas verdadeiras e largas narrações: seria muito estar sujeito, e obediente aos legítimos .superiores. Quanto
bem capaz de pôr-me na última consternação se me não animasse a esta parte quero supor que V. Ex." me fará a honra de crer que
que poderia de algum modo reparar; quando melhor descobrisse a o estado pouco delicioso, e circunstâncias, tristes em que vivo abor-
verdade; o crédito que tenho jurado, e aquele agrado que a V. Ex." recido, e desprezado de todos, sem nenhum cabedal, apartado de
tive a fortuna de ver; antes que as ditas notícias me constituíssem toda comunicação familiar, metido no canto da minha casa, e enfim;
alheio, e mais indigno de tal merecimento. reduzido aos trabalhos de uma justa moderação; são meios bem
conducentes não só a curar-me, mas ainda a desviar-me dos acha-
2 - Como porém a justa defesa é permitida por todos os di-
reitos, ser-me-á lícito aqui, não digo defender-me, o que além de ques acima referidos, e de que V. Ex." tão justamente me adverte.
outras razões seria menos próprio depois de ser por V. Ex." jus- 4 - No que respeita a atestação que a V. Ex." enviei inclusa
tamente repreendido. Nem também desculpar-me porque entendo na carta do Pe. Luiz Francisco. Não foi o meu fim justificar com
aquela fé, e juro que se deve dar a semelhantes desculpas produ- ela a V. Ex." o que nela se alegava; porque além de que eu estava
zidas pelos mesmos culpados: de que talvez é o fundamento a certo da fé que a V. Ex." ·devo, conhecia também que a dita ates-
grande dificuldade que padecem os homens em se confessarem de- tação era produzida por termos impróprios, e ilegítimos para firma-
linqüentes, e mais ainda não se desculpando no foro da consciência, rem a verdade do que aí se propunha. Mas isto mesmo que acabo

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de dizer me faz julgar que a tal atestação me serviria nesta parte, mais poderiam esquecer. Além de que pela notícia que tenho foi
a saber; que assim como não tem vigor algum, e absolutamente em dia ocupado, em que não deveria deixar a minha indispensável
nada vale, a prova dada por todos os discípulos a favor da classe obrigação que é bastante fundado para supor que ele não julgasse
em que aprendem: assim também pari passu, ou ainda com razão incivilidade nesta parte. Segundo em algumas petições que lhe
m:::is forte, pareceu não deva valer a prova, ou dito em desabono, tenho feito a obviar com sua autoridade as desordens que havia,
e descrédito da classe produzida por um só discípulo, que dela sabe e que manifestamente concluíam em prejuízo dos vassalos de.~· ~··
sem mais causa, que por não querer obedecer a um moderado, e em frustrar o fim para que fomos mandados, e por consequencta,
merecido castigo; a fim de passar para outra classe sem outra algua em impedir o progresso das retas intenções do de V. Ex.n. São 4
causa; e sem precederem os requisitos da lei: o que se tem prati- as que lhe tenho feito das quais uma consumiu ele em seu poder,
cado antes, e depois da dita atestação. Este foi o ponto preciso que a qual não pude haver com toda a diligência que foi frustrada sem
a V. Ex.n me propuz mostrar na atestação e não a verdade de que outra algua causa mais, que a de não querer despachá-la: no que
nela se mencionava. Além disto eu não obriguei os meus discípu- estou bastantemente certificado. As outras três foram a V. Ex.n:
los a tal atestação, e se me lembro, não o soube senão alguns dias das quais duas foram inclusas na carta que escrevi ao Pe. Lui~ ~ra~­
cisco e juntas com a atestação referida. Eram as mesmas ongmats.
depois que eles a tinham feito e entregado, ou assinado na pre-
Da outra enviei uma fiel cópia na carta que a V. Ex.n remeti pela
sença do comissário de V. Ex.n. Digo assim porque estou bem
frota da Bahia. Se nisto consistem as ditas incivilidades V. Ex.n
certo que quando tive notícia disto lhes perguntei pela atestação que mesmo o poderá julgar pelas mesmas petições. Mas é verdade que
tinham feito, e dizendo-me eles que ainda tinham uma cópia dela, todas elas aqui consistiram. Tendo disto certeza inteira a qual al-
a mandei vir: e foi esta a que a V. Ex.n enviei. Mas não obstando cancei claramente do mesmo superior pelas demonstrações que deu
nada disto já os tenho avisado para que não façam outra alguma de enfadado e sentido nas ocasiões destas petições: dizendo em al-
atestação como V. Ex. n me adverte. gumas partes e també~ em minha prese.nça e de meu compan~eiro:
5 - Diz mais V. Ex.n que lhe consta que eu tenho feito algu- que se entendera dantes que não havm caber na sua autondade
mas incivilidades ao seu comissário e meu legítimo superior. E mudar os estudantes para onde quisesse, sem se ver obrigado a
· acrescenta na série: que se eu não tiver dado uma satisfação muito despachar tais petições depois de ter dado licença à passagem para
outra classe; certamente não teria aceitado o tal emprego. E chegou
completa ao seu comissário de forma que ele se ache inteiramente
a dizer-nos por uma destas ocasiões que a pessoa que com ele se
satisfeito, que o há de V. Ex. n satisfazer; e que terei eu muito que tinha empenhado ou como ele mesmo nos disse, que a Senhora que
sentir. Não posso deixar aqui de confirmar-me mais do amor tinha sido valia para ele passar um estudante da minha classe para
cristão que devo a este próximo, e pessoas que mandaram de mim para a do Magalhães, lhe tinha mandado um recado mu~t~ enfa-
semelhante notícia: a que corresponderei com compadecer-me delas, dada; em que lhe dizia que já que é o de que trata a copia que
ainda sem as conhecer entre o seu grande número a quem também acima diz o enviei pela frota da Bahia, não tinha vigor para o con-
fico devendo a mais forte matéria para exercitar a minha paciência, servar na classe para onde fora despachado; que lhe era mais fácil
exercício que tenho sem algua interrupção depois que aqui moro. não estudar nunca que tornar para a minha donde por licença sua
•i!'
Mas Sr. é verdade que estou pronto a dar mil juramentos os mais
firmes, e legais de que não tenho feito incivilidade ao comissário de rí
tinha saído. Também é claro aqui consistirem; porque ele meu su-
perior queixando-se ao Sr. Gen. de mim sobre o mesmo ponto, lhe
I
V. Ex.n e meu legítimo superior: se estas não consistem. Primeiro I disse queria fazer junta entre ele dito Sr. e V. Ex.n Rev.mn o Sr.
em que não fui assistir a um seu criado que aqui se casou; a quem Bispo ao meu respeito. Mas respondendo o Sr. <;Jen. que. esta~a
acompanharam algumas pessoas, por seu respeito dele; o que eu pronto para isso; e que havia dizer nela, que ele dito supenor nao
tinha obrado nem obrava bem no que fazia. O que ouvindo: não
não pude fazer porque o não soube, senão por acaso, e depois
de muito tempo: como me sucede comumente: pois pela reclusão
.
falou mais em' junta. Com que se nisto as tiverem, o que bem creiO,
em que vivo, quando chego a saber as cousas, é já quando aos as ditas muitas incivilidades já daqui protesto a V. Ex.n não fazer-

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lhe mais petição algua e nenhum caso: esperando de V. Ex.n me Enfim não será possível haver fato verdadeiro que contraria a ver-
releve a culpa, e desacordo, quando o houvesse em fazer aqueles: dade que sobre este ponto a V. Ex.n tenho dito. Quando por oca-
o que obrei por me mover a isso o meu zelo, por buscar de algum sião disto me lembro dizer que a todos é notório; e se pode provar
mouo impedir as desordens, que segundo a minha observação de por muitos fatos o modo, e desprezo com que nos tem tratado o
perto iam crescendo, e enfim: por ignorar que neste procedimento qual tem chegado a ser tão público como escandaloso, ainda as
encontraria o agrado, e retas intenções de V. Ex.n a quem humil- pessoas de maior nota, e autoridade. Disto seria bastante prova o
demente peço me permita lembrar-me aqui de caminho; que a não modo com que tratou na ocasião do conhecimento das classes, e
ser o meu zelo tão ardente a ver as cousas nos seus justos termos ainda a mim em desprezo maior. Para o que bastará a menção
nem se teria concebido contra mim ódio tão formidável, nem por de que trouxe a conhecer da minha classe dois mestres do país
conseguinte seriam tão próximas, as ocasiões de desagradar a os quais sabia muito bem que eram dos meus maiores opositores,
V. Ex.n; que é para mim a causa mais sensível. Mas tornando ao e inimigos: e ali os fez perguntar, e lhes consentiu a ampla liber-
fim da minha narração. dade de fazerem perguntas as mais delas impróprias ao modo dos
6 - Não me posso lembrar de incivilidades alguas que tenha meninos, e só a mim dirigidas; cuja intenção para se conhecer não
praticado com o meu superior. Porque além de que não tem ha- era preciso muito discernimento além do que as circunstâncias e
vido ocasião alguma para isso, sempre lhe tenho obedecido a risco termos a mostravam claramente. Pois contendendo comigo um dos
com uma tal prontidão; que me lembro que antes de partir para ditos mestres sobre uma voz que defendia ser boa, e própria para o
Lisboa a frota passada, estando eu molestado, e de cama, e tendo caso por saber na escritura santa; de cuja voz apontou exemplo na
notícia de que ele. me queria falar; não esperei que me mandasse minha escritura: quando esta não foi composta a fim de nos mos-
chamar, e fui a sua casa, estando deste modo legitimamente impedido. trar o bom gosto da eloqüência, e a delicadeza dos pensamentos en-
Desta ação poderá ele mesmo ser testemunha: se dela se quiser lem- genhosos, mas de nos ensinar o que devemos crer e obrar para con-
brar pois soube que eu me tinha levantado da cama nesse dia só seguir a salvação eterna. De outra sorte dever-se-iam imitar os he-
por ir falar-lhe; ainda não procedendo nisto mais que uma leve braísmos e helenismos que se vêem a cada passo na Vulgata: as tau-
notícia que tive de outra parte. Ora isto parece uma tão forte prova tologias, hipérboles portentosas, comparações extraordinárias que
da inteira obediência que lhe rendo, que também faz parecer que se lêem no Cântico, nos Salmos, nos Profetas; e outras mil figuras
não implica desobediência algua por mim com eles praticada. De fortes, e veementes que são próprias de quase todas as línguas orien-
mais quanto a atenção com que o trato: cuido não tem sido nada tais: como também todos os barbarismos na desinência, e na frase;
diferente daquela humildade e decoro com que se devem tratar os Ide que está cheia a Vulgata: ·chamara tudo isto gentilezas da elo-
superiores. Eu o visito sempre, e em todas as ocasiões que a obri- qüência e do bom gosto: como o dito mestre contra mim susten-
gação e civilidade o requerem: e tanto que muitas vezes me tem tava, dizendo, e ratificando muitas vezes, que a escritura sagrada
dito que o não visitei senão por ocasião de negócio. Se bem que era para ele, e devia ser para todos, a regra de todo o bem. E o
ainda nestas me recebe com desagrado, e demonstrações de senti- mais é que por bom modo ia escarnecendo, e os seus sócios afir-
mento. Não há muito que indo-o eu visitar a sua casa a fim de mando que criam em tudo da escritura, como cristãos, e desprezando
lhe expor causas necessárias e respectivas ao serviço de V. M. e de o que eu dizia, como que daqui se argüisse alguma causa contra a
V. Ex.n e mandando dentro fazer-lhe saber que lhe queria falar, os fé, e lei que eles e eu professamos enfim chegou a tanto o desprezo
ouvi enfadar bastantemente com o criado,· perguntando-lhe em vozes que o dito mestre fez de mim, que me disse e pediu, ou para falar
altas que diabo (assim dizia) queria eu lá. Mais quando eu não es- mais nos próprios termos me mandou que descesse da cadeira para
tivesse inteiramente certo de que lhe não tenho feito incivilidades: compor com ele, dizendo aí mesmo ao comissário de V. Ex.n que
também me serviria algua causa para o não duvidar a lembrança desse matéria para isto. Eu aqui não disse u'a só palavra por
segura que tenho de que nunca me fez advertência alguma nesse atender a seriedade do ato, e a meu superior. Este também não
particular; o que podia fazer como superior para minha emenda. dizia nada, parecendo devia de algum modo repreender o dito mestre

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por tal desafio, e perturbação da paz, e civilidade que se deve obser- dous forçosamente: resolvemo-nos não dar férias em setembro só a
var entre os contendores. Donde o que eu obrei também é prova fim de por este modo repararmos os que os discípulos houvessem de
grande da obediência que pratico com o meu superior; não dei- tomar em dezembro. Propusemos esta nossa resolução, e parecer
xando por seu respeito cegar-me neste caso, nem da fúria da disputa, ao juiz de fora que então fazia as vezes do comissário de V. Ex.n
pem da razão que tinha de dizer algua cousa a quem sem ela tão por este estar ausente; o juiz aprovou a nossa resolução; dizendo que
fora de propósito me desafiava, e incitava. O que ele meu supe- era racionável, e zeloso. Logo aqui assentamos com ele consultar
rior aprovou, também é prova do pouco apreço que faz de mim; a Lisboa sobre isto. Pois nunca foi meu ânimo, nem ainda à ca-
não dizendo nada ao dito mestre, quando a nós nas classes que beça me veio dar um só passo sem esta precedência mas sim con-
fomos conhecer tanto nos desprezou, e repreendeu, quando fazíamos sultar os nossos superiores, e soberano sobre o que parecia ser justo,
alguma pergunta necessária e o mais que deixo por lembrar-me que e mais conforme à sua mente: o que julgo é concedido a quem se
na carta passada dei disto a V. Ex. n uma larga, e verdadeira notícia. ocupa no serviço do Rei; e da República: e que a não merecer
O que posto, e não obstante a verdade que a V. Ex.n tenho pro- louvor algum, não argüi também menos sujeição às leis do soberano.
testado sobre as incivilidades refe1idas, e de que fui por V. Ex.n com Que o nosso fim não dando férias em setembro fosse só o zelo de
razão repreendido me sujeito com inteira humildade a todo o castigo repararmos as que os discípulos haviam tomar em dezembro, pa-
que V. Ex.n for servido ordenar-me.
rece não é necessária outra prova, que a verdade a todos notória;
7 - Diz mais V. Ex.n que lhe consta que eu quisera mudar de que por todo este mês último tivemos as nossas classes abertas
as férias de setembro para dezembro e aqui acrescenta devidamente: para os estudantes que quisessem vir, ainda que não vieram, pelo
que desejava saber se em Coimbra me conferiram algum poder su- que assim digo. De que seja menos verdade que eu quisesse mudar
perior de soberano para corrigir, interpretar, ou mudar as suas leis; as férias por autoridade própria; também são provas concludentes as
o que tudo inculCa um gênio orgulhoso, e livre, o qual ou eu hei consultas que fiz ao meu superior, e ao Senhor Gen. sobre este par-
de emendar, ou mo hão de fazer emendar. Até aqui V. Ex.". ticular para se fazer a Lisboa quando lá se quisesse determinar outra
Agora a inteira verdade do caso: o qual a não ter sido exposto a causa para o futuro que no presente e por então não pretendi mais
V. Ex. n por modo tão alheio dela e dos termos em que se passou, do que acima disse. O mesmo que tínhamos proposto ao juiz de
bem creio que a retidão de V. Ex.n se não deixaria persuadir dos fora propusemos ao comissário de V. Ex.n quando chegou. Disse-
feios epítetos que acima se ajuntam ao meu gênio. mos-lhe nos parecia justo consultar-se a Lisboa sobre este ponto;
8 - Quando principiei a exercer aqui o meu ministério, achei para que pelo tempo futuro (o que pelo presente remediamos com
os estudantes em tão miserável estado que não pude deixar de me o nosso zelo) não houvessem 2 meses de férias; o que era preju-
compadecer muito: soube certamente que dando-lhes férias pelo mês dicial aos estudantes. Respondeu-nos que não importava que os
de setembro forçosamente haviam ter outras pelo de dezembro. em estudantes tivessem 2 meses de férias, um dado pela lei, e outro
que, por costume já inveterado, se retiram os moradores da praça tomado por eles quando iam para fora com seus pais: aqui ajuntou
a tomar banhos, e a moderar os ardentes calores que há em toda a comparação: que também em Coimbra se davam 5 meses de
estação: e também talvez porque a experiência lhes mostre ser o férias; e que não era muito que aqui tivessem dois; (e a falar
mês de dezembro o mais próprio neste estado para os banhos, e pelos seus formais termos) que aqui se dessem 2. Esta a sua formal
outros remédios tais, e necessários à saúde de seus corpos. Donde: resposta: o que afirmo debaixo do juramento dos Santos Evange-
indo os pais para fora neste tempo, é forçoso que também vão os lhos donde a nossa consulta e esta sua resposta conferidas em ordem
. filhos; o que agora vejo melhor com a experiência. O que posto: ao fim do soberano e intenção da sua lei: deixo à consideração reta,
e assentando comigo, e juntamente meu companheiro: que a mente e profunda de V. Ex." a parte onde se representa maior zelo, e
de S. M. a quem com fiel, e ardente zelo procuramos servir é o mais rigorosa, e inteira sujeição às leis do mesmo Senhor. Enfim
aumento dos vassalos e que por isso lhes não concede aos mestres
a verdade do que tenho dito, e do que sobre este ponto tenho
mais que um mês de férias grandes: e pelo que digo, haviam ter
obrado, não tem semelhança alguma com o que corrigir, interpre-

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tar, ou mudar as leis do soberano: antes buscar em tudo a sua in· manifestar o nosso zelo; perdendo os dias feriados que por elas nos
teira observância e conservação. E bem creio que o mesmo pare- são determinados para repararmos as tardes as manhãs de outros,
ceria a V. Ex.n a ser mais cristã, e verdadeira a notícia que deram em cujas faltas não incorremos nem as leis nos obrigam encher.
de mim neste ponto e também a não ser totalmente alheia do fato: Finalmente lembro-me aqui que esta culpa que sobre este ponto para
st. bem que os devo desculpar por que quando a paixão é predomi- lá nos formaram tem muita semelhança com a antecedente da mu-
nante costuma produzir tais procedimentos. Também não pude dança das férias: também com aquela que a câmara formou na
deixar de fazer aqui a devida reflexão de que esta notícia que a frota passada que não foi mais que querer culpar o nosso zelo,
V. Ex.n se enviou fosse só de mim, como colho da repreensão; a e inteira observância às leis. Pois se queixaram de nós não fa-
qual só a mim se dirige; quando eu e meu companheiro consultamos zermos orações retóricas e por conseguinte por não faltarmos a as-
sempre juntos o acima referido; e nunca só falei em semelhante ma- sistir a cadeira e a nossa principal obrigação por alguns meses:
téria. Mas também isto pode servir de forte prova de ódio que como praticou aquele que aqui fez uma tal, e bem célebre oração,
contra mim maiormente tem concebido, e também de pouca verdade a qual só pelo tempo que nela trabalhou o seu autor mereceria os
que neste ponto disseram. aplausos que aqui teve, maiormente do Sr. Bispo; que também 2. 0
a notícia bem fundada que tenho, foi o principal motor da dita
9 - Diz mais V. Ex.n: que lhe dizem que nós tomamos nos
queixa. É verdade que para não termos ninguém por nós até este
suetos nossos arbítrios por autoridade própria: e que não enchemos
as horas da lei. A queixa ou notícia que davam de nós quanto a Sr. nos é oposto: o que mostra bem sensivelmente desde a Ln vez
1. n parte neste ponto não foi outro caso mais que querer culpar o que o visitamos. E o mesmo nosso superior nos tem dito por vezes
nosso zelo. Pois não houve outro fundamento mais que a verdade que ele é bastantemente desafeiçoado ao método novo. Mas não
de que em algumas 5"" feiras feriados termos dado classe: do que obstante nada disto, nunca deixamos de o visitar, e respeitar pelo
quereriam julgar que mudamos o sueto do dia da lei, ou que dáva- seu caráter e pela recomendação que de V. Ex.n para isso temos.
mos classe no dia feriado para. tomarmos em outro dia a nosso arbí- Mas tornando ao que ia dizendo.
trio. Isto pareceu talvez aos que desejam a nossa ruína que po- 1O - Não posso deixar de assentar comigo ser um grande
deria servir para se nos formar culpa: mas cuido que se enganaram pedaço da infelicidade minha: pois vejo que só de mim se formam
porque antes poderá contribuir para se fazer mais manifesto a culpas para V. Ex.n sem haver outro fundamento para elas, mais
V. Ex.n o zelo que despendemos na nossa ocupação. Porque enfim que o meu zelo, e a sinistra intenção dos ânimos, que pretendem
com esta sua notícia que de nós mandaram nos deram ocasião de ingerir no de V. Ex.n o meu desagrado: o que já em parte, como
declararmos a verdade do ponto. É pois verdade que em alguas vejo, têm conseguido: quando vejo, e faço justo reparo que a V. Ex.n
sn• feiras de sueto temos dado classe mas não foi para que em outro se não diga nada dos mestres do país; em quem com notoriedade
dia tomássemos sueto a nosso arbítrio; foi sim para por este modo pública se ponderam fatos, e procedimentos tão culpáveis: porque
repararmos a falta de lição que os discípulos em outro dia haviam em nada satisfazem as leis. Não na doutrina, e método, como
ter forçosamente. Por ex.: na 6n feira de passos, e alguns outros claramente observamos quando conhecemos das suas classes. Não
dias de procissões, em que costumam faltar à classe. Assim nas horas porque além da notícia que temos de que não enchem
temos praticado algumas vezes, ou sempre até agora para que não mais que duas de manhã, e 2 de tarde; por nós mesmos se obser-
perdessem a lição 2 dias na semana: advertindo que ainda que dá- vou na classe de Francisco de Souza Magalhães. Pois estando avi-
vamos classes nas ditas sn• feiras nem por isso deixávamos de ter a sado dantes pelo nosso superior do conhecimento que se havia
classe aberta nas ditas 6n• e semelhantes dias de ·procissão para os fazer das classes, e mandando-o ele dito superior outra vez avisar no
que quisessem vir: se bem que não vinham senão de manhã sendo mesmo dia em que íamos a conhecer da sua, não bastou isso para ele
a procissão de tarde; e ainda de manhã vinham só alguns. Mas Sr., dito mestre ao menos nesse enchesse as horas das leis: pois quando
isto está tão longe de tomarmos suetos a nosso arbítrio de argüir estávamos para ir a sua classe mandou o nosso superior adiante a sa-
em nós falta às leis; que antes parece, além de muito conforme a lei, ber se os seus estudantes lá estavam ainda; e já tinham saído; antes

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das 10 horas completas, tendo entrado pelas oito, como costuma, e por nenhum modo se poderá justamente contradizer, implica que eu
como então soubemos certamente. Daqui colhe racionavelmente a não satisfaça as horas da lei: que era a segunda parte do ponto prin-
sua satisfação e este no quanto pelos mais dias, em que há circuns- cipal. Quanto à 1.a de dar suetos a arbítrio próprio implica também
tâncias menos urgentes para aquele fim. E que não me sucederia se pela mesma razão que acabei de dizer; e mais ainda posta a verdade
isto se ponderasse em mim, e na minha classe tão publicamente pelo dos empenhos de que me não venci para o seu fim, a qual então me-
meu superior e pelos mais? Mas enfim como isto não era falta minha, lhor poderia ( ... ) com o pretexto de satisfazer a política de quem
mas de mestre natural do país, foi forçoso que se desculpasse, e que os pediam. E por não faltarem a esta os costumam estes mestres
nem ainda se lhe falasse em tal matéria, como observei: e me confir- dar: talvez me chamem incivil pelo não fazer. Mas eu sigo outra
mei da ( ... ) na verdade e certeza que assevera o dito Magalhães, estrada diferente assim como em tudo o mais: porque julgo acertado
quando diz que tem o nosso superior da sua parte. E pode ser que que em concurso de 2 causas urgentes se deve seguir a que mais urge:
fiado nisto ou mais em alguma notícia e promessa particular, dizia que neste caso é a observância da lei pública, e do soberano, e não a
a muitas pessoas antes desta frota aqui chegar, que eu e meu compa- política particular e do vassalo. Mas enfim Sr. não obstante o mui
nheiro vínhamos suspensos do ministério infalivelmente; de cuja infa- exato procedimento na mesma ocupação, e bem diferente do daque-
libilidade dizia tinha certeza particular: além das queixas que sabia les, nem por isso, digo, deixo de me considerar em estado muito me-
se tinham feito a Lisbóa de nós ambos. Dizia mais que nesta certeza nos feliz, e de pior partido. Porém não me posso admirar disto
tinha já comprado uma saia de veludo para sua mulher vestir quando quando sei que há diferença de um, e outro estado, e partido proce-
dita frota chegasse em aplauso deste sucesso. Muita gente o acom- de da diferença que há entre o ódio e amor que aqui a respeito de
panhou neste alvoroço e se tinham comprometido fazer vários ban- mim e deles se praticam.
quetes ao mesmo respeito. Mas tornando ao modo com que satis- 12 - Tenho declarado a V. Ex.n toda verdade dos fatos, em
fazem aos ditos mestres. que se fundaram as notícias que de mim a V. Ex.n constaram. Fico
11 - Tenho notícia, e bastantes fundamentos para saber que certo de que não haverá prova algua justa que a controverta e des-
.dão suetos aos discípulos na maior parte de funções, e festas de igre- faça. Parece-me que todos sabem, e ainda o Sr. Gen. (o qual está
jas que aqui se celebram, especialmente quando são em conventos. muito bem informado de tudo pelo ter observado) das desordens que
Sei que dão suetos a toda a pessoa que entrando nas suas classes e os há e tem havido, e de quem é a causa delas: não contribuindo eu na-
pede, e não sei se alguas sem lhe pedirem. Ora em quanto a mim da para isso. Mas antes a não ser o meu gênio tão inteiro, fiel, e
bem poderia provar com verdade mui justificada que ainda nos ardente no serviço do meu soberano e de V. Ex.n, vivo certo de que
maiores empenhos que em muitas ocasiões se me tem proposto na as causas estariam reduzidas à sua última ruína. Como tudo está
minha classe por frades, clérigos, e outras pessoas de autoridade para da mesma sorte que a V. Ex.n por vezes tenho dito, julgo desneces-
dar sueto aos discípulos; ainda por uma manhã, ou tarde, o não fiz sário repeti-lo. Direi só: que até agora se não tem executado nada
nunca: livrando-me de tais empenhos com dizer que o não posso fa- do que V. Ex.n prescreveu ao seu comissário e meu superior na car-
zer por não faltar às leis que indispensavelmente devo satisfazer. O ta que pela frota a ele enviou; a qual ele leu a mim e a meu compa-
mesmo costumo fazer quando algum convento me mandou pedir os nheiro naquela parte onde se lhe encomendava praticar alguas causas
discípulos para irem assistir a alguma festividade e se em algumas necessárias: o que cuido confirma sensivelmente a verdade que a V.
destas ocasiões, mui raras vezes, os tenho mandado é depois de satis- Ex.n já por vezes expusemos firmada por nós ambos com os jura-
fazerem a suas lições para o que entrei mais cedo a encher as horas mentos dos Santos Evangelhos, isto é, que a diretoria lhe não pas-
da lei: as quais muitas vezes costumo exceder; ainda com o pequeno sava pela memória, como ele nos disse; e a mesma causa tornou a di-
número de estudantes que tenho. Aqui ajunto também que ainda zer, ainda que por outras palavras, na minha classe, quando delas
vindo-me um só estudante, o que sucede várias vezes no tempo de veio conhecer: o que me parece me lembrei dizer a V. Ex.n na carta
chuva, sempre vou à cadeira: o que não vi ainda praticar em parte passada sobre o conhecimento das classes. Dos estudantes que ti-
nenhuma. Finalmente posta esta mesma verdade e inteireza, a qual nha morreu há pouco um: o outro foi para frade; e uns 4 saíram por

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não quererem ser castigados de modo algum. Tenho notícia bem peço, para glória do Reino, e aumento de seus súditos. Pernambu-
fundada que 3 destes estudam com um clérigo, o qual me disse que co, 18 de julho de 62. Ex.rno e Rev.rno Sr. De V. Ex.n o mais reve-
lhe não era defendido ensinar particularmente e que a lei só se en- rente súdito. Manoel da Silva Coelho.
tendia das classes públicas. Este foi algum tempo padre jesuíta.
Nada disto tem cá remédio porque se vê a cada passo, e não sem
óbvia, tanto nos seculares como nos clérigos: se bem que dos últimos IV
nos diz o nosso superior, que tendo falado alguas vezes a esse res-
peito ao Sr. Bispo, a cuja jurisdição pertencem, este dito sr. não fez Atestado dos professores régios Manoel da Silva Coelho e Ma-
disto caso algum. Com que acho-me ao presente com 13 estudan- noel de Melo e Castro, no qual há referências ao que se passara entre
tes dois da 2.a e os mais da 3.a. Todos eles me parecem estão com eles e Bernardo Coelho da Gama Casco, quanto à Arte Gramática do
bastante aumento no seu gênero. Dois deles com mais algum tem- Pe. Manoel Alvarez.
po seriam capazes de serem professores. O que acima digo me mor-
reu era o mais insigne de todos: faltava-lhe muito pouco para mes- Nós os professores régios Manoel da Silva Coelho e Manoel de
tre. A todos vou educando, e instruindo conforme as leis. Além Melo e Castro atestamos, debaixo do juramento dos Santos Evange-
do mais que lhes pratico; aplico o meu maior desvelo a fazê-los re- lhos, que Bernardo Coelho da Gama Casco, Ouv. Geral de Pernam-
ger muito, construir muito, e compor muito com pureza e acerto. buco, aonde também atualmente serve de diretor dos estudos por co-
Aquele aumento que lhes considero parece-me advém mais, se não missão do Ex.mo e Rev.rno Sr. Principal D. Tomaz de Almeida, nos
é inteiramente ao meu zelo, e trabalho que ao seu estudo pela muita disse, por vezes em sua casa, que tinha comprado uma Arte Gramáti-
preguiça, de que este terreno é o mais fértil que tenho conhecido. ca do Pe. Manoel Alvarez para frasear e compor o latim necessário
para quando fosse para a Relação. Item disse, que a dita arte se ti-
13 - Tenho falado muitas vezes a V. Ex.a sobre a côngrua. nha descaminhado, e que havia comprar outra; ou uma pequena do
V. Ex.n logo na próxima carta se lembrou de nos prometer a prote- método novo para o mesmo fim. Item disse aqui mesmo nesta
. ção, e consultar S. M. a este respeito: porém desde então não temos
ocasião, que ele para si nunca havia seguir o método novo, mas sim
disso notícia alguma. Nós temos firme, e segura esperança na pro-
o antigo. E com efeito daí a tempos ele comissário nos mostrou uma
teção de V. Ex.n. Julgo desnecessário repetir: que a que aqui nos
Arte do Pe. Manoel Alvarez, o qual disse, que era sua, donde ra-
arbitraram é muito pouco proporcionado aos gastos do país e decên-
cionalmente colhemos que ou a tinha comprado de novo ou era mes-
cia, que S. M. mandou (ainda que nos defenda o fasto); se nos aten-
desse a este respeito. Falta-nos o necessário para passarmos com a ma que disse, se tinha descaminhada. Isto outra vez atestamos de-
decência de vida. Até agora não pudemos comprar mais que um baixo do dito juramento ser dito pelo Comissário a nós mesmos os
escravo, que é toda a nossa família: quando este adoece passamos professores acima nomeados. Pernambuco, 30 de julho de 1762,
muito mal por não termos quem nos sirva e o mais que a V. Ex.n te- Manoel da Silva Coelho I I Manoel de Melo e Castro.
nho ponderado; principalmente na carta que foi pela frota da Bahia
o Sr. Gen. está muito bem informado nos gastos da terra. Ele mes-
mo nos disse que quatrocentos mil réis em Lisboa valiam mais, que v
aqui oitocentos. O que posto: nós não pretendemos senão a eqüida-
de para o que ficamos certos na proteção de V. Ex.n. Digo ultima- Atestado dos professores régios Manoel da Silva Coelho e Ma-
mente, e o confesso com ingenuidade: que a não ser a honra e gosto noel de Melo e Castro relacionado com a carta anterior de Luiz
grande que tenho no serviço do meu soberano e de V. Ex.n, certamen- Diogo Lobo da Silva ao Principal D. Tomaz de Almeida.
te me não deteria aqui, ainda pelas maiores conveniências. Assim .J Nós os professores régios Manoel da Silva Coelho e Manoel
mo fazem crer as circunstâncias tristes em que vivo neste país. Deus de Melo e Castro atestamos debaixo do juramento dos Santos Evan-
guarde a Excelentíssima pessoa de V. Ex.n, como incessantemente gelhos, que Bernardo Coelho da Gama Casco ouvidor geral de

208 209
Pernambuco aonde também atualmente serve de diretor geral dos cfo aceitação, que deviam os esperar, mas não presumo sejam as
estudos por comissão do Exmo. e Rev.mo Senhor P1incipal D. Tomaz suas omissões, a causa, que se lhes atribui. Reputo dignos a estes
de Almeida indo nós ditos professores em algumas ocasiões a tratar homens dos empregos, que exercitam, e não poderei nunca julgar
com ele dito comissário; e requerer-lhe cousas respectivas e indispen- tantas as suas faltas, que as capitulei = por indivisíveis = depois
savelmente necessárias ao serviço de S. M., e observância das leis de os ver aprovados, por quem na sua qualidade, e literatura tem
régias, cujo progresso, por obrigação, consciência, e honra procura- prova exclusiva de todo erro, e nomeados por um rei que conti-
mos promover ansiosamente nos disse, que a Diretoria lhe não passava nuamente manifesta o seu vigilante, e real cuidado no geral apro-
pela memória. Item disse, que nós estávamos longe. Item, que veitamento dos seus vassalos.
quem nos mandou, não soube o que fez, porque não éramos cá No breve tempo, que eu servi de subdelegado do Ex.mo Rev.mo
necessários. Item, que S. M. não podia obrigar, a que os estudantes diretor indaguei, e disse a este fidalgo o seguinte = que o pro-
estudassem nesta ou naquela classe determinada. Item, que não se fessor régio estabelecido no bairro do Recife não teria tão grande
devia devassar das pessoas, que ensinavam sem licença e contra as número de discípulos, como se poderia presumir à vista das mi-
ordens, porque isto não era caso de devassa. Item, que se antevisse, nhas faculdades, porque o amor dos brasileiros aos seus nacionais
que não havia poder passar só por sua autoridade, e arbítrio os es- a que se não pode negar igual viveza, que preguiça os obrigava a
tudantes das classes régias para outras, não havia ter aceitado a fazerem deles um conceito extraordinário, e a reputarem por ofensa
comissão, e emprego de diretor. Item, que se deviam extinguir as toda ação exclusiva do seu préstimo.
cadeiras, que S. M. aqui tinha estabelecido, que certamente nisso Esta enquanto a mim é a causa da pouca aceitação dos pro-
viria a parar, e que assim devia se, e que isto mesmo havia propor fessores, e não tenho fundamento sólido, que me faça mudar de
a Lisboa. Item, que andassem por onde andassem pois sempre inteligência.
haviam de vir a parar em Manoel Alvarez, Bento Pereira e método Quanto ao 2. 0 capítulo sei, que ao professor régio de Olinda
antigo. Tudo isto em geral, e cada cousa em particular de novo deixei 57 estudantes, e a ausência desta terra pelas minhas pere-
atestamos debaixo do referido juramento ser dito pelo comissário a grinações indianas, me não permitem assentar no verdadeiro mo-
nós mesmos os professores acima nomeados. Pernambuco, 14 de tivo desta deserção. Tenho sobre ela ouvido mil discursos, e quase
agosto de 1762. Manoel da Silva Coelho. Manoel de Melo e todos se desvaneceriam, a não dar meu companheiro licenças para
Castro. ensinarem aqueles mesmos, que reprovei para este ministério, pois
além de ser certo, que em Olinda bastava o mestre, também é sem
VI dúvida, que havendo o natural do país, sempre seria preferido aos
do reino pelos votos do povo.
Carta de Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco para
Luiz Diogo Lobo da Silva, dando parecer sobre os capítulos reme- Pelo que respeito ao 3. 0 capítulo; é verdade o que nele se
tidos pelo diretor geral dos estudos. expressa, porque a mim me propôs Manoel da Silva Coelho mudar
limo. e Exmo. Sr. Já que a legítima escusa que representei a as férias: eu lhe respondi se deviam inteiramente observar as ins-
V. Ex.n não é bastante para me eximir de dar o meu parecer sobre truções, e ao mesmo tempo conheci, que a sua pretensão era fun-
os capítulos que a V. Ex.n remete o Exmo. Sr. diretor geral dos estu- dada em justiça. Segundo o que refere o grande Solorzano na sua
dos, a que obedeço ao seu preceito, porque além de que o meu pú- política = o legislador a quem se dá com razão o nome de artífice
blico ofício deve prevalecer à minha particular piedade, as ordens da vida há de acomodar os seus preceitos conforme as regiões, e
de V. Ex.n evitam no seu acerto toda a réplica e no seu segredo se- gentes, a que os encaminha, porque cada Província requer diver-
guram a confiança, com que fico, de que este papel não passará dos sas providências, assim como são diversos os seus climas, lugares,
olhos de V. Ex.n. e habitadores, e ainda em uma mesma terra sucede, e convém mu-
Respondendo pois aos ditos capítulos digo quanto ao 1.0 do dar-se amanhã, o que hoje se estabeleceu suavemente com espe-
comissário, que é certo não terem os professores régios concilia- cialidade nas índias, aonde tudo é novo ou digno de inovar-se =

210 211
Em Pernambuco o mês de dezembro é o setembro de Portugal po- língua pela melhor sociedade, que ouvi prometia com ele fazer o
rém, isto não obstante, não se devia alterar uma lei sem proposta, que sobredito Magalhães. Finalmente ao quarto capítulo, nada posso
conseguisse a dispensa da sua determinação. Quanto ao 4. 0 e últi- dizer, que V. Ex.n não saiba melhor do que eu. :É público o
mo capítulo do comissário, não sei, nem tenho ouvido, que Manoel
da Silva Coelho pratique incivilidade alguma com o seu superior,
-
I
desagrado de meu companheiro pelos professores régios a que tem
livrado de maior desprezo o amparo de V. Ex.n; mas nego, que eles
e sem embargo, que o seu modo o inculca inquieto, pelo que expe- sejam desatendidos por todas as partes. Se meu companheiro, o
rimento parece-me impossível fizesse desatenção a meu compa- Des. Ouv., abomina o novo método tenho razões para o não
nheiro. Isto é o que posso depor, e responder aos capítulos contra averiguar, e neste ponto remeto-me a curiosa indagação de V. Ex.n,
os professores, e passando, aos que estes formam digo ao primeiro segurando ser falso, que para distinguir vantagens de método an-
que me parece afetado, e encarecido. :É verdade que alguma gente tigo, tenha tempo, ou o queira ter Bernardo Coelho. Eu escrevi
do povo estava e poderá estar ainda capacitada da utilidade do dele ao sr. diretor o que pedia a civilidade de colega, e harmonia,
método de Manoel Alvarez, porém os homens doutos, ou que po- que desejo conservar, ainda com os que a procuram destruir, e V.
diam fazer partido, logo se persuadiram do maior acerto, e clareza Ex.n, pelo favor que me faz, há de querer confirmar a minha as-
do novo método. severação para maior aumento das minhas dívidas, e crédito da
paciência e benignidade de V. Ex.n, que Deus guarde muitos anos.
O segundo capítulo foi estabelecido em uma presunção impro-
Soledade, 22 de agosto de 1762. II.mo e Ex.mo Sr. Luiz Diogo Lobo
vável, porque é notório, que os três mestres, o Pe. Manoel da Sil-
va, o Pe. Felipe Nery e Francisco de Souza Magalhães, ensinam da Silva I I criado de V. Ex.n I I Miguel Carlos Caldeira de Pina
pelos livros destinados nas Instruções Régias, e se não fizerem uso Castelo Branco.
de todos, será pela falta que se experimenta de alguns. Bem pode
ser, que os mestres aproveitados para lugares distantes não conhe- VII
çam os melhores Autores; e posto que tenham motivo para esta
desconfiança, nem acuso, nem defendo, o que discorro, só seguro, Declaração de Joseph Leandro, a respeito dos artigos da queixa
que pelo que pertence aos nomeados, sou testemunha de fato pró- contra os professores régios de Pernambuco.
prio dos dois sacerdotes, porque com o Pe. Manoel da Silva por Jl.mo e Ex.mo Sr. Obedecendo à ordem de V. Ex.", digo o que
aprender da sua erudição tenho repetidas palestras, ainda sem sei sobre os artigos do papel incluso. Enquanto ao 1. 0 e 2.o artigos
as permitirem as minhas ocupações, e do Pe. Felipe Nery, estou do comissário é notória a pouca aceitação, que nesta praça e cidade
certo, pratica o novo método, porque prestando-lhe no princípio de Olinda têm os professores régios da gramática latina: assim
u'a Arte das grandes do Pe. Antônio Pereira não foi possível con- está publicando o pequeno número de estudantes, que versam as
seguir a restituição, enquanto ele não adquirisse outra para o go- suas aulas, querendo antes pagar aos outros professores, que os
verno da sua classe. Quanto ao terceiro Francisco de Souza Maga- ensinam, do que serem ensinados de graça pelos professores ré-
lhães ouço, posto que o não afirmo, e ignoro em ditos de gios.
parte à parte qual ficaria de melhor partido. Se ele ou Manoel
da Silva Coelho. Que descaminhasse os discípulos deste também o Do 3. 0 e 4. 0 artigos não digo cousa alguma, porque o conteúdo
ignoro, e só tenho lembrança I se não me engano 1 concedi um neles é, para mim, matéria nova, que agora sei. Enquanto ao 1.0
passe ou dois, a estudante, ou estudantes da Aula do dito Manoel artigo dos professores, não há dúvida, que não teve o novo método
da Silva, ouvindo-o, e concordando ele no requerimento, que se de ensinar a gramática latina, a aceitação, que merece, porém en-
me fez. Estas graças, que dizem, se prodigalizaram algum tem- tendo que esta falta de ser o método novo. Todas as novidades
po, devendo ser dificultosas, entendo foram causa da queixa for- enquanto não mostram os ·efeitos, que se prometem, não são tam-
mada neste capítulo, e se Manoel de Melo trocasse a assistência bém aceitas logo, como depois, que levem os efeitos prometidos.
com seu companheiro, talvez, não houvesse tantas contendas de O ponto está, que se lhe não impeçam os seus efeitos deixando-se

212 213
de praticar como se deve, porque então não é defeito do método, V. Ex.n lhe ordenava, e que eu estava pronto a prestar todo o
senão culpa dos impedientes. Dos mais artigos não tenho que auxílio, e a seguir as insinuações de V. Ex.n.
dizer. V. Ex.n ordenará o que for justiça. Congregação do Orató- Nesta resolução mandou logo fechar as duas aulas dos mes-
rio do Recife de Pernambuco, 23 de agosto de 1762. Joseph Lean- tres, que V. Ex.n fez suspender, os quais não padeceriam este golpe
driJ. por falta de merecimento se a pouca inteligência do comissário de
V. Ex.n no novo método não fomentasse entre os professores e mes-
VIII tres do país a má harmonia, que se estabeleceu logo que entrou o
referido ministro a exercitar a comissão, que V. Ex.n lhe conferiu,
Carta de Luiz Diogo Lobo da Silva ao Principal D. Tomaz de e não lhe faltasse a moderação necessária para a conservar no es-
Almeida. tado em que a deixou o seu antecessor como a V. Ex.n foi constante.
A carta de V. Ex.n de 19 de junho do corrente ano, que me Porém como Des. Ouv. ouvi, que andassem por onde an-
foi entregue em 13 do presente acompanhada da instrução, de que dassem nunca poderiam deixar de se valer de Bento Pereira, e do
V. Ex.n me encarrega o exame sobre os recíprocos capítulos do Pe. Manoel Alvarez, para se seguirem com acerto as luzes da boa
comissário, e professores régios, me deixa cheio de desvanecimen- gramática, e latinidade, não posso deixar de acreditar as vozes, que
to na parte em que se persuade ter eu satisfeito a obrigação de os geralmente se espalharam por esta terra, de que o mesmo segura-
proteger, quando era justo, e devia em observância das reais or- va, que os professores régios seriam excluídos, o que é verossímil
dens, e mortificado na que faz relação a entender V. Ex.n poderei acreditarem os nacionais do País, que tinham por ofensa meterem-
desempenhar a diligência, que novamente me comete, sendo o meu se-lhes mestres europeus, quando se julgam pelo amor próprio dis-
ofício muito alheio dela. Já disse a V. Ex.n as justificadas razões, tintos na inteligência de que se desvanecem.
que me assistiam para procurar quanto coubesse em uma resigna-
da paciência, evitar questões, e combates com ânimos menos ra- Pode ser, que a facilidade deste ministro os animasse por ou-
cionáveis, e como no comissário de V. Ex.n não conheço a docili- tras expressões relativas ao mesmo respeito não menos galantes,
dade precisa para sem estrondo se conseguir, o que é útil à pátria como a de segurar em ocasião de exames o sentimento com que
e o real serviço, confesso a V. Ex.n que esta circunstância me dava se achava de se lhe ter descaminhado uma Arte do Pe. Manoel
fundamento para não apetecer incumbências, que me obrigassem Alvarez o que o metia na indispensável precisão de comprar outra
a algum rompimento ocasionado pelo gênio deste ministro. para se habilitar a frasear o latim na relação, a que esperava chegar
com brevidade.
Porém como deve prevalecer o serviço do príncipe, o proveito
comum dos seus vassalos, e o preceito de V. Ex.n, sacrifico-me a A verdade deste fato comprova a testação número 1, e do que
todas as contingências do acaso, por serem para o meu gênio mais deixo antecedentemente referido, que não padece a menor dúvida,
fortes as razões públicas, do que as particulares, que deixo expostas. se manifesta o meu pensamento na afirmativa de que do comis-
sário procede não estarem geralmente aceitos os professores régios,
Em conseqiiência daquelas mandei logo entregar ao referido
comissário e professores as cartas, que V. Ex.n por minha via lhe e serem castigados os dois mestres que V. Ex.n mandou excluir.
dirigiu, ao que se seguiu vir o primeiro sem demora à minha pre- Pelo que a estes respeita, estou informado de que a moderação do
sença pouco satisfeito da justa, e moderada correção, com que V. Pe. Felipe N ery, e o seu procedimento humano, e literário mere-
Ex. n o advertiu, querendo justificar o seu procedimento e entran- ciam alguma comiseração, especialmente de se atender ao descô-
do no empenho, de que eu concorresse com o Rev.mo Bispo para uma modo de irem os estudantes do bairro de Santo Antônio ao do
junta sobre esta matéria; porém como a via acertadamente deci- Recife, e ao exorbitante número de discípulos, que terá o profes-
dida na resolução, que V. Ex.n tomou, me escusei a tão desneces- sor Manoel da Silva Coelho a mandar-lhe todos para sua aula o
sário, como infrutuoso meio segurando-lhe devia logo praticar o que ministro comissário.

214 215
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Esta mesma razão de descômodo, a pobreza, e a aplicação de em que se achavam no referido tempo as aulas de gramática dos
Francisco de Sousa Magalhães poderiam servir-me de motivos para professores régios pela oposição, que estes encontravam, a qual
rogar a V. Ex.n se compadecesse dele; porém não devo calar, que ainda que nascida da emolução dos filhos deste País, não se teria
este homem concorreu com vários dictérios para as contendas, que aumentado ao excesso a que chegou, se na pessoa destinada a pro-
agora se dissiparam, ainda que a pronta obediência, que prestou teger os ditos professores achassem a constância necessária a re-
às ordens de V. Ex.n, e com que seguia o novo método o fazem digno bater-lhes as falsas argüições, com que maquinavam contra o me-
do mesmo favor, que incita a sua pouca possibilidade. recimento, e inteligência reconhecida por V. Ex.n na aprovação, que
Eu não considerava nestes mestres dano algum à mocidade deles fez, e não negada das poucas pessoas que nesta Praça amam
do País, quando tivessem comissário nesta terra capaz de os con- mais a pureza da verdade, que os estímulos da paixão, ou desafeto,
ter nos limites da justa atenção, que se deve praticar para com os que na maior parte, ou em quase todos estes habitadores diviso, e
professores régios, por estar certo, que eles se não animariam a via fortificar-se, visivelmente, e sem rebuço na aprovação com
tratá-los em ausência com menos decoro, ou a examinar os seus que os favorecia neste erro o comissário delegado de V. Ex.n.
discípulos, quando lhe faltasse a companhia do referido ministro, Estas circunstâncias, que faziam mais grave a queixa, e obri-
que sem fundamento os levou pelo seu ditame às aulas para o gavam a remédio alguma causa violento, me não resolveram logo
mencionado efeito, e pelo mesmo se envolveu agora com petulância a aplicá-lo persuadindo-me, que bastar1a metê-los no desengano de
em autos públicos, sem outro motivo mais, que o de adverti-lo que deixando de observar inteiramente os institutos e ordens ré-
particularmente nos seus despropósitos. Finalmente em observân- gias, que lhes dizem respeito, procederia na conformidade que V.
cia da instrução de V. Ex.n havia feito para o meu sucessor, tomei Ex.n me determinava: correram dois meses, sem que o referido meio
por informantes dos capítulos transcritos na mesma ao Juiz de Fora obrasse na sua renitência o efeito que desejava, e vendo ser-me im-
Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco, e ao Pe. Joseph praticável poupá-los ao castigo, me resolvi a mandar repentina-
Leandro, examinador, que foi no concurso com os professores ré- mente prender na cidade de Olinda todos os que se conservavam
gios, e o que eles responderam, verá V. Ex.n nas cópias ns. 2 e 3. na dita renitência, tirando três para soldados, que logo lhes assentei
praça, soltando os mais com termo de continuarem na sobredita aula,
Não posso dizer mais a V. Ex. n que ainda entre a lida de que
e na de Manoel da Silva Coelho um que se mostrava menos obe-
me vejo rodeado apesar do tempo que me falta para o descan-
diente, e sem o respeito devido ao dito professor.
so preciso, fico com grande vontade de desempenhar quanto cou-
ber nas minhas forças a execução das ordens de V. Ex.n e á obri- A dita diligência havia precedido desprezar todos os requeri-
gação de o servir. mentos que com aparentes pretextos me fizeram os pais, e paren-
tes de não poucos estudantes, pondo-os na indubitável certeza de
Deus guarde a V. Ex.n muitos anos. Recife de Pernambuco,
que para todo aquele, que antes da introdução do novo método se-
24 de agosto de 1762.
guia o estudo da gramática, e por oposição a ele se separavam
Luiz Diogo Lobo da Silva i de o continuar, não havia escusa, que os revelasse, que não fosse
a total inércia do sujeito declarada pelo mestre, ou queixa tão gra-
ve, que por certidões dos médicos verificasse o inabilitava, para os
IX

Carta de Luiz Diogo Lobo da Silva ao diretor geral dos Es-


r seguir, ao mesmo passo, que podiam ficar na certeza, que S. M.
os não obrigava a que aplicassem ao dito exercício aqueles filhos,
tudos na qual se relatam episódios referentes ao en'Sino do latim em que até agora lhes não haviam dado este princípio, porém que des-
O linda. tinando-os a ele, lho não consentiria em outras aulas que não fos-
sem as dos professores régios, ou daqueles mestres, que na confor-
Na carta que escrevi a V. Ex.n em 24 de agosto em resposta midade das reais ordens, estivessem pela diretoria aprovados, e não
à de que me fez favor de 19 de junho expus a V. Ex.n o estado, se achassem pela mesma inibidos.

216 217
Com os referidos expedientes tenho conseguido ainda sem pra- lhes compita, os tenham a independência de que não devem gozar
ticar até o presente igual procedimento na vila do Recife, estar a em desprezo das reais ordens, e sem utilidade da· mesma Igreja a
aula do professor régio Manoel da Silva, que não contava até o que na aparência se dedicam.
tempo, em que chegaram as ditas ordens, mais que treze estudantes É verdade, que pelo edital, que o prelado mandou fixar, fez
"Om noventa, e a de Manoel de Melo em que só andavam seis certo não admitir a ordem algum daqueles, que não apresentasse
com vinte e seis, pois sem embargo destes o Comissário de V. Ex.n certidão dos professores, porém este meio, que era o mais profícuo,
logo que as recebeu feito passar os que seguiam a de Magalhães, para que os buscasse com preferência ex vi da paixão, que em todos
e Felipe Nery para a desta praça em execução do que se lhe deter- predomina de serem eclesiásticos, mais por interesse dos pais, que
minou, contudo, como viam o pouco afeto, que o mesmo tem ao vocação dos filhos, foi de nenhum efeito, e se iludiu admitindo-se-
novo método, e o quanto lhe era violento o que praticava, confian- lhes em lugar de atestações dos professores certidões do secretário
do em que ficasse em satisfação aparente, e não houvesse outro
';> .....

da diretoria; e como por estas não constava, se freqüentavam as au-


encarregado da sua observância, a maior parte dos mencionados es-
las, e só terem dado o nome para a matrícula, em lugar dos sete, que
tudantes não fez mais que dar os seus nomes para a matrícula, e as apresentaram dos professores, se admitiram todos que apareceram,
desamparar a continuação de seguirem as aulas com que se redu- de sorte, que há freguesia, que tem cincoenta adictos fora da minha
ziriam ao 1. 0 estado, quando faltasse em os obrigar como deixo
jurisdição para o procedimento, e ainda que o mesmo prelado, tocan-
dito: maiormente quando ouço as ( .......... ) por si e outros
do-lhes nesta matéria mo não embaraçou, e em virtude deste consen-
seus parciais na pouca duração, que terá a subsistência dos referidos
timento o fiz a respeito de alguns, desejo, por evitar dúvidas, que V.
professores em virtude das suas diligências, que já a V. Ex.n serão
Ex.n me determine o que devo obrar a este respeito.
presentes, e todas encaminhadas a conservar o seu sistema, e a
entreter este povo na opinião do muito, que são atendidas as suas Estimarei que este procedimento seja do agrado de V. Ex.n e
representações pela inalterável verdade, e bons funàamentos de que que dele acabe de resultar todo o efeito, que S. M. e V. Ex.n apetece.
as acompanha, e grande atenção com que se contempla no Ministério Deus guarde V. Ex.n muitos anos. Recife de Pernambuco, 22
sem refletir no que pr-aticou a respeito do Pe. Antônio das Virgens, de novembro de 1762.
ao qual sem embargo de sair reprovado quando se examinou no
primeiro concurso que fez o Dr. Juiz de Fora como consta na certidão Luiz Diogo Lobo da Silva.
número 1 e de se mandarem fixar as aulas dos aprovados pelos
professores, lhe não embar·açou a licença que lhe havia dado, e
X
consta do n. 0 2 que fiz suspender, passando os estudantes para Ma-
noel da Silva, e determinando-lhe recorresse a V. Ex.n pelo que
Carta de Manoel da Silva Coelho a D. Tomaz de Almeida,
pertence aos tiples, que entretem com o fundamento da solfa até o
acusando recepção de cartas e dizendo ter cumprido a ordem para a
número oito.
suspensão dos mestres Felipe Nery e Francisco de Souza Magalhães.
Os professores me seguram ir presentemente experimentando
nos seus discípulos mais obediência, e menos repugnância ao novo Pela frota passada respondi a de outubro ... , que V. Ex." foi
método, e ainda que alguns se conservam an dureza de não ir, e servido mandar-me da qual me veio ao depois uma cópia, a que acom-
se acham fora dos compreendidos no número dos que deixo dito, panhava outra carta de V. Ex.n onde me ordenava que falasse com o
contudo espero, que não mudando de conduta, e vendo-se aplica- Sr. Gen. e fizesse o que ele me determinasse: à qual também já res-
dos à vida militar servirão de exemplo para todos, e acabará de pondi: Já V. Ex.n estará certo de que logo se executou a ordem que
cair a referida oposição maiormente se houver a liberdade de poder veio, e que foram suspensos· os dois mestres Felipe Nery e Francisco
rebater com prisão uma desordenada quantidade de adictos que de Sousa Magalhães grandes e bem provados obstáculos ao feliz su-
fiados no privilégio da Igreja ainda que sem serviço nela por que cesso nesta matéria.

218 219
Todos os estudantes destas 2 classes vieram para a minha e para mim é moralmente impossível que dele se desvie em tempo algum.
se conduzirem a ela não foi precisa pequena violência; e nem ainda Assim me faz crer o seu mau gênio, e a incomparável oposição que
esta tem sido bastante a vencer a contumácia de alguns, os quais pos- tem ao bom, e verdadeiro e enfim a minha exata observação a este
to que se viram alistar por obrigados não tornarão mais, e confessam respeito: pois nem o espaço de 3 anos, nem o trabalho que nestes te-
publicamente que antes querem sofrer qualquer castigo do que virem nho tido a convencê-los nem as razões mais sãs de que para isto me
estudar este método. Legítima e infalível conseqüência daquele que tenho servido; e em uma palavra: nem o temor do castigo que não
aprendiam, e também do orgulho, e pouca sujeição, em que os cria- ignoro lhes promete a sua inobservância e infração das leis, os tem
vam. · apartado, ainda levemente do seu antigo procedimento: antes cada
Fazem o número de 90 os que se acham aqui alistados; em que vez os pondero mais pertinazes.
entram os 13 que comigo dantes estudavam, e os quais só me tinham Isto é o que entendo em minha consciência, e o que o zelo do
deixado. O número é grande na verdade se bem que não se faz tão serviço do meu soberano e de V. Ex.n cujo progresso procuro an-
penoso pela sua grandeza, como pela doutrina em que vêm educados, siosamente promover, me obriga dizer. Além da certeza física que
e tão embebidos que por hora não será eficaz todo o trabalho a des- eu tinha de que os ditos suspensos não ensinavam nada conforme as
viá-los. Mais ainda assim estou mais consolado que dantes, porque leis, tenho aqui alguns estudantes destes que até agora foram seus dis-
o meu fervoroso, e fiel zelo no serviço do meu soberano e de V. Ex.n cípulos, e os mais adiantados das suas classes, os quais, sem se lhes
não olha para o trabalho mas para circunstâncias que dão esperan- perguntar, confessam que os ditos seus mestres lhes ensinavam o an-
ças mais firmes ao fim, a que ansiosamente se encaminha. Disto me tigo em carne (palavra formal da sua confissão). Ora eu os creio
parece é prova racionável a nota verdadeira que V. Ex.n teve por fielmente porque eles o dizem, e mais ainda pela doutrina que neles
carta do juiz de fora, que então fazia as vezes do comissário de V. se acha, e enfim, porque assim é. Donde vejo-me precisado dizer de
Ex.n de que logo ao princípio e abertura da minha classe me ofere- novo a V. Ex.n o que julgo: que tudo seria uma perdição a este res-
ci com inteira vontade a aceitar qualquer número de estudantes ainda peito quando algum dos suspensos fosse restituído ao magistério ou se
excessivo. É bem verdade que sendo tantos, como digo acima, não admitissem outros semelhantes a tal emprego. Então se continua-
deixam de confessar apesar da inclinação de seus mestres antigos, e ria certamente o dano, de que agora íamos principiando a sair e tam-
mais ainda da sua doutrina, que aqui na minha classe constroem mais, bém descobrindo-se ao mesmo passo, de que em mim não fala senão
regem mais, e compõem mais; e com outra pureza, e acerto do que a verdade despida de qualquer paixão. Lembra-me de caminho que
naquelas onde até agora estudavam. Mas também é certo que cuido também consta dos mesmos discípulos do Magalhães dizer este, que a
muito em os reger de forma que a todos, e a cada um deles ouço a sua Minerva do Sanches não presta e que lhe não agrada: se isto é certo,
lição de manhã e de tarde: o que sei não experimentavam até agora, o que bem suponho, escuso exprimir a conseqüência que daqui legi-
ainda repartidos em duas ou três classes: porque também aqui an- timamente se deduz. Em suma: eu não quero mais provas do que
dam uns 14 que vieram da classe do Pe. Virgens; como a V. Ex.n digo, que as tem havido, justificadas bem sensivelmente "em mani-
julgo dirá o Sr. Gen. festa perda dos vassalos" de V. M. e das retas intenções do meu se-
Sempre assento comigo que V. Ex.n, a vista do número predito, l
'~
nhor a este assunto.
julgará haver precisão de mais um mestre para o bairro de Sto. Antô- Entre os poucos discípulos que me deixaram, houveram três ca-
nio pois sempre me pareceu serem bastantes para as forças de um pazes de ser professores, especialmente um o que morreu a quaresma
mestre os estudantes do Recife, aonde me acho. Mas quando V. passada. Dos dois que ficaram julgo que com especialidade um é su-
Ex.n assim julgue, persuado-me ser desnecessário dizer, que por ficiente para suprir a falta do mestre, de que se necessita. Ele é um
nenhum modo convém que este mestre seja natural do país, e criado ardente defensor do novo método tem uma grande inclinação ao só-
com o antigo pelo prejuízo que tão infausta, e sensivelmente se tem lido e verdadeiro e quanto a mim tem um merecimento muito dife-
experimentado: o qual sempre há de ser muito. Sendo os mestres da- rente neste particular do de qualquer mestre do país; porque enfim,
qui assim criados, e tão encantados do seu método, que quanto a além de saber mais que eles, está criado com a doutrina sã, e confor-

220 221
me as leis o que parece faria bastante pela sua parte para preferir aos - Mas é verdade que ele ainda não cessa de continuar nesse
mais; porque assim promete outras. . . e outras vantagens, e disto seu propósito. Sei certamente que ele quis atrair a José Teodoro
mesmo uma certeza mais firme, do que qualquer outro. Ajunta-se a Secretário da Diretoria a que desse um juramento perante o Sr. Gen.
isto ser de costume bem ajustado, e ter gênio, e modo para ensinar. sobre que eu ensinava o antigo método a um estudante e discípulo
A sua idade cuido são vinte anos pouco mais ou menos. É bastan- meu. Donde; ele comissário pediu o Sr. Gen. que admitisse em sua
temente corpulento, o que também contribui de algum modo a inspi- presença o dito juramento e para obter do dito Sr. isto que repedia,
rar respeito aos discípulos, maiormente em pequena idade dos mes- ele asseverou que eu tinha dito a ele, e não sei se também a José
tres. Finalmente este é o que proponho a V. Ex.n quando julgue Teodoro que com ele estava nessa ocasião, que tinha na minha clas-
preciso um professor mais para o país: V. Ex.n porém ordenará se um discípulo tão inerte, que me via obrigado ir-lhe ensinando o
que for servido. antigo por não lhe achar capacidade alguma. Ora, eu não quisera
As cousas já vão tendo outra cara bem diferente, porque tam- outra prova para minha defesa, que esta sua asseveração produzida
bém é muito diferente, e totalmente outro o que as rege o Sr. Gen. o bem sensivelmente a meu favor. Porque se esse estudante imaginá-
qual vai trabalhando muito a fazer seguir a estrada verdadeira, don- rio não tinha capacidade alguma (como ele asseverou que eu lhe dis-
de o comissário de V. Ex.n trabalhou sempre muito por desviar. Dis- sera) para aprender o claro, o fácil, o breve, enfim, o que é método:
to que acabo de dizer, além de outras muitas, não é precisa maior, e muito menos a teria para aprender o escuro, o difícil, o eterno, en~
mais concludente prova, que aquela conversação que logo ao princí- fim, o que é sem método algum. Não se pôde descobrir até agora o
pio esse comissário teve comigo, e com meu companheiro juntamen- tal estudante o qual se existisse, ou tivesse existido, seria bem fácil ter
te na série da qual nos perguntou com modo bem enfadado por que aparecido, e sem muita violência se patentearia, ainda antes de ser
método tínhamos aprendido? ajuntando logo, e imediatamente a esta buscado, sabendo que se tratava de criminar-me: que tão certo estou
sua pergunta estas razões; a saber que andassem por onde andassem, no afeto que devo a todo país, ainda aos que ensino. Acresce a isto
porque sempre se havia de vir a parar em Manoel Alvarez, e Bento que quando não aparecesse o próprio estudante não faltariam os con-
. Pereira: aqui ajuntou logo que nós estávamos longe: donde, e de tudo oonqt)d omoo 'OlBJ opp~J~l O 10dx~ ~p ill!J oms~m O U1Ud SOindpS!p
o mais que nele se tem ponderado em todo o tempo, confesso em mi- a toda a classe. O Sr. Gen. chamou também o dito José Teodoro, e
nha consciência não posso tirar (se é possível havê-la mais racioná- lhe perguntou pela verdade do caso. Respondeu que não só o não
vel, e mais necessária às circunstantes). Outra conseqüência mais juraria, mas nem ainda poderia dizer tal. E não foi isto pequeno tes-
que a vontade de nos ingerir nos ânimos o aborrecimento ao novo temunho da minha inocência produzido pelo Secretário meu não
método, e o amor do antigo a fim de ensinar-nos este, e desprezar- muito oculto inimigo. Estes, Sr., são os discípulos a quem o comis-
mos aquele. Porém aqui agora me lembra que já fiz relação disto sário de V. Ex.n aplica seus sentidos: mas fora melhor e mais próprio
a V. Ex.n e de outros fatos respectivos a minha matéria; os quais fo- a seu caráter, e também mais conveniente a sua honra que se aplicas-
ram firmados com o juramento dos Santos Evangelhos, e de novo os se a praticar, e fazer executar o que V. Ex.n tão justamente lhe pres-
corroboro com o meu juramento se necessário. creveu, do que até agora não fez caso algum. Mas ele dirá a isto que
Não sei se também tenho segurado a V. Ex.n: que o meu pro- • o Evangelho o avisa de que ninguém pode servir a dois Senhores.
. cedimento desviado bem justamente daquela sua vontade dela me tem Lembra-me também dizer a V. Ex.n que o Sr. Bispo não obstante .
aquistado a sua mais formidável oposição: donde precisamente nas- haver mandado afixar um Pastoral em que ordenava se não preparas-
cem todos os estratagemas, que não ignoro, e todos sabem por sua sem papéis alguns dos ordinandos sem que constasse primeiro por
mesma boca dela (pois disso se costuma jactar) tem maquinado a certidão minha e de meu companheiro haverem exercido as nossas
fim da minha ruína; propondo-se talvez por estes meios bem apar- classes ordenou alguns e não poucos segundo ouço dizer a pessoas
tados da justiça, que deve professar, e da verdadeira religião que pro- de todo o crédito sem proceder o que no dito Pastoral determinava
fessa, imputar-me a culpa, que ache com verdade notória e pública e consta-me que os ordenou por certidões dos mestres com que até
se deve atribuir. agora tinham aprendido. Mas é verdade que não tenho certeza in-

222 223
teira do fundamento porque os ordenou suposta a publicação do XI
referido Pastoral.
Carta de Manoel de Melo e Castro a D. Tomaz de Almeida con-
Também faço saber a V. Ex.n que um estudante menorista des-
tando fatos verificados quando da reforma dos estudos.
tes que estudavam até agora com o Magalhães me fez na minha clas-
se uma desatenção grave e mais ainda pelo mau exemplo que deixou Ex.mo Rev.mo Sr.
aos mais condiscípulos: e requerendo o Sr. Gen. mais de uma vez ao
Sr. Bispo o justo castigo que merecia e encomendava o procedimento
Depois da última carta, que enviei a V. Ex.n, em resposta da
dos mais não tenho notícia que se atendesse a este requerimento.
qual V. Ex.n foi servido escrever-me, me vejo obrigado a perturbar-
Donde todos os que se acham com algumas ordens são cheios de or-
lhe o sossego com esta, tanto para significar-lhe o desejo afervorado
gulho e não têm respeito algum a quem os ensina fiados em que não
que tenho de que V. Ex.n logre a mais feliz disposição, que com ar-
têm castigo e agora maiormente depois daquela desatenção a que não
dentes votos ao céu suplico como também para renovar-lhe a devida e
se castigou por modo algum o que parece devia ser de outro modo
indispensável gratificação do gosto, em que ficamos pelas sábias pro-
mais conducente a sujeição e respeito em que procuro, e devo criá-los.
vidências, com que V. Ex.n tem feito reduzir a tão bom estado, novo
Lembra-me aqui que já alguns dos destes gêneros me tem feito de-
estabelecimento dos estudos, que neste país estava na mais miserável
pois daquelas desatenções graves porém, nestas circunstâncias vou so- decadência que pode considerar-se, como tantas vezes tenho a V.
frendo-os com a paciência e constância que posso. Agora vou a di- Ex.n ponderado; mas ainda agora, estamos melhor conhecendo as
zer a V. Ex.n alguma coisa sobre mim mesmo.
profundíssimas raízes, com se achava estabelecido o que irei su-
Ex.mo e Rev.mo Sr. eu sei muito bem que a isenção sempre foi cintamente ponderando, pelo miserável estado em que achei os estu-
estimável em todos,· e muito principalmente nos que se ocupam nos dantes e o muito que tem custado a reduzi-los a reversão para as
serviços do Rei, e da República; e que no tempo do nosso soberano classes, em que assistimos, ao mais que tem sucedido.
que Deus guarde ainda tem muito preço esta virtude: pois nada lhe
deve tanta atenção, como o desinteresse com que o servem. Mas Sr. Tanto que chegaram as ordens de V. Ex.n se intimaram aos mes-
V. Ex. n também reconhece bem que e, ainda sem me desviar desta tres para fecharem as classes, e os discípulos para se acharem logo
justa consideração, e devido procedimento, não posso deixar de repe- no dia seguinte pelas sete horas nas nossas classes, o foi tão pouco
tir o muito que a V. Ex.n por vezes tenho representado; mas com a in- obedecida esta ordem, que ainda até o presente faltam muitos além
felicidade de não ter sido em alguma delas atendido. A Côngrua não de que mandando-se ao mestre darem a lista das que tinham, temos
chega para a minha subsistência necessária e julgo que já não é preci- alguma notícia não leve que deixaram algua de fora, ao mesmo tem-
so dizer a V. Ex.n as razões disto: tanto porque as tenho dito, como po, que desnecessariamente incluíram outros que se achavam com
porque elas são bem palpáveis em si mesmas. Finalmente eu tenho bem diferentes ocupações, e não existente no estudo. Aqui nesta
por felicidade a mais vantajosa chegar a ter a honra de ser súdito de cidade tomou o Sr. Gen. o expediente de obrigá-los por força man-
V. Ex. 11 e por isso uma bem segura esperança de sua proteção e va- dando-os prender depois de ter feito muitas insinuações, e ver que
lia: se é que a posso descobrir maior a ser atendido pelo meu sobera- nada aproveitavam, mas nem assim se pôde concluir totalmente o ne-
no. Esta consideração me anima no meio dos trabalhos que aqui gócio, porque alguns que se achavam ausentes desprezando os avi-
tenho sofrido, e das oposições, e desordens que bem a meu pesar aqui sos ocultaram-se sem até aqui aparecerem, mas sem embargo disto
tenho observado. Fico fazendo ardentes votos ao céu pela saúde de me acho ao presente com 20 e tantos, os mais deles obrigados da
V. Ex.n e pela prosperidade do seu estado, o que sem interrupção cos- força e temor com que o Sr. Gen. os tem obrigado nascendo tudo isto
tumo e devo fazer. Deus guarde a V. Ex.n para o aumento do reino, do ódio ao novo método como eles publicam dizendo não ser este o
glória, e amparo dos seus súditos. leite com que os criaram, movido eu desta confissão, feita por alguns
Pernambuco, 24 de novembro de 1762- Ex.mo e Rev.mo Sr.- em minha presença os quais já tinham sido meus discípulos, entrei a
De V. Ex.n- Reverente Súdito -Manoel da Silva Coelho. fazer experiência, achei, que por onde ocultamente aprendiam não so-

224 225
mente a deixando de instruir, conforme ao método, mas também lhe na classe do meu companheiro tem um bem apto, capaz de fazer um
inspiraram com intranhável ódio a ele, e isto ainda se faz muito mais exame público sendo necessário, e que com a doutrina, que tem tido
culpável naqueles, que insinuaram publicamente e com tanta justiça a de educar de outra sorte os discípulos que se lhes confiasse, e enfim
foram suspensos, assim o vejo por um discípulo, que aqui me veio do é bem capaz de encher a sua obrigação, eu tenho feito esta experiên-
Mc.galhães, e também o mesmo vi que outros dos seus mestres a quem cia muitas vezes, em construir, reger, e compor tanto em prosa como
procurando ocasião de encontrá-los e fazer experiência do que sa- em verso, na minha classe por ora ainda não tenho outro tão adian-
biam, os tenho achado a todos totalmente ignorantes do que se lhes tado porquanto as repetidas e continuadas faltas que todos eles têm
manda ensinar, e somente destros em algumas coisinhas do Alvarez, feito na freqüência é causa da sua mesma perdição, porém daqui mais
e perguntando-lhe disfarçadamente pelo modo de regulação das suas algum tempo espero ter alguns também aptos, os quais, como têm
classes, era ele tal, que não só era diferente do que as instruções de- outro ensino certamente prometem com maior fundamento, dar sa-
terminam, mas ainda parece que somente tendiam ao fim de totalmen- tisfação ao que S. M. procura, e eu não me descuido de os fazer tra-
te as contrariar, mas enfim, que coisa podia esperar-se em quem ti- balhar, em tudo o que veja é útil para o seu bem, e o público, do que
nha obrado sempre o que a V. Ex.n já referi na carta do conhecimen- devemos sobretudo atender (até?) em que ponto consegui o fim que
to dos estudos, e em outras, e de quem chega a falar com desprezo desejo, tenho de superar primeiro a grande preocupação de que os
do Sanches, que as instruções mandam ter para explicar a gramática, vejo cheios, pelas más doutrinas que os de fora lhes insinuam, e têm
como o melhor que até agora escreveu nesta faculdade. sempre insinuado, como já a si eu fiz menção.
Mas Sr., eles estão justamente suspensos, nem se fazem dignos Também me parece devo dar a V. Ex.n notícia da novidade, com
de atenção algua, neste particular por quanto o que tem obrado an- que o Sr. Bispo mostrou querer patrocinar o novo estabelecimento dos
tes e depois da suspensão, não dá esperança algua de emenda, antes estudos, mandando fixar um edital na sua câmara para que não se
sim de maiores distúrbios no caso que sucedesse eles tornarem a con- pusessem nela prontos para ir alguns para ordens, senão apresentas-
seguir as cadeiras, digo isto por inteirar a V. Ex.n do que eles são por sem primeiro os pretendentes a certidão nossa da freqüência do es-
me parecer útil ao serviço de S. M. e assim o entender na minha cons- tudo, honestidade e aproveitamento mas tão pouco observado que
ciência, e também por ter-me vindo a notícia de que eles juntos com passando eu não somente uma, e meu companheiro alguas bem pou-
o ministro comissário de V. Ex.n, seu acérrimo defensor, e padrinho, cas, ordenaram-se alguns não sei de que modo, e não foram poucos,
vivem na esperança de iludirem a V. Ex.n para tornarem a conseguir que lá buscaram subterfúgios, entre os quais foi um que tendo-se
o que perderam, no que o dito ministro dá mais clara prova da sua ausentado da minha classe, impugnando eu passar-lhe a certidão, fez
contrariedade, que é tal, que não bastando desprezar a execução de
uma petição ao ministro comissário de V. Ex.n e este, em lugar de
tudo, o que V. Ex. n lhe prescreveu, de que nada tem feito, passou, a
mandar-me a mim atestar do dito estudante, mandou ao secretário,
tanto, que nos quis impor a falsidade de que o método por que en-
que lhe passasse do livro da matrícula, como se pela dita matrícula
sinávamos era o antigo, indo à presença do Sr. Gen. a pedir-lhe que
que se faz uma vez no ano pudesse constar algua cousa, do aprovei-
chamasse o secretário da diretoria para dar disto um juramento e cha-
tamento ou freqüência do dito estudante e muito mais deste, que já
mando-o o dito Sr. respondeu de que nem a dizê-lo se atrevia, quanto
na matrícula precedente não estava incluído a respeito do que me
mais a jurá-lo, e esta notícia a tivemos da boca do mesmo Sr., mas
lembra advertir aqui de passagem que este é o costume de tal Minis-
tornando ao fio do que tratava é tal a oposição que em todos experi-
tro, quando se lhe pedem alguas certidões nossas para algum requeri-
mento ao novo método, que afirmo, conforme entendo na minha
mento cousa em que já o Sr. Gen. tem reparado, e não o pode sofrer,
consciência, que a nenhuma pessoa do país se deve fiar algua ca-
mas enfim ele é um homem contrário, preocupado, e negligente, e
deira, sendo necessária, como me parece é na vila do Recife uma, nem
quem chegar a dizer, como já a V. Ex.n (negara?) que nós estáva-
obsta o deixasse à falta de pessoas idôneas para isto sem serem dos
mos longe, e que a da diretoria não lhe passava pela memória e o
nacionais, porquanto algum dos nossos discípulos, que têm sido
criados, conforme S. M. ordena, podem ocupar este ministério, e já mais que já em outros tenho exposto, e por último é quem nada tem

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feito do que V. Ex. n lhe prescreveu, e a meu ver causa total da misé- Dos mais requerimentos que tantas vezes tenho feito a V. Ex.n
ria a que chegou o novo estabelecimento dos estudos. escusado me parece fazer individual repetição porque deles estará V.
Ex.a lembrado, em cuja proteção tantas vezes prometida, espero, e
Do Sr. Bispo também não me admira que deixasse passar, que o pela prosperidade de V. Ex.n fico ao céu continuadamente fazendo as
seu decreto não se observasse tão rigorosamente nem reparasse nos mais ardentes súplicas, como fiel súdito, e amante. Deus guarde a
subterfúgios, com que procuraram muitos iludi-lo, porque já eu tenho V. Ex.n por muitos e dilatados anos para nossa proteção e amparo.
dado a V. Ex.n parte da sua preocupação, na qual, e na pouca obser- 25 de novembro de 1762 - em Pernambuco na cidade de Olinda.
vação do decreto tem o Sr. Gen. também feito grande reparo. Este Ex.mo e Rev.mo Sr. de V. Ex.n o mui humilde reverente e amante sú-
Sr. é digno, e só depois que na sua mão foi servido V. Ex.n por a exe- dito. Manoel de Melo e Castro.
cução das suas ordens é que têm estas cousas mudado de face, e isto
instantaneamente com o que, como já participei a V. Ex.n, estamos
bem consolados.
Esta Sr. é uma breve, e sucinta relação do que me pareceu ne-
cesário dar conta a V. Ex.n deixo alguas cousas não poucas, alguas
por me parecerem a vista do que está dito menos necessárias, e outras
por que meu companheiro as individua com toda a verdade, e por is-
so não quis molestar a V. Ex.n com maior extensão, e o que está dito
basta para se conhecer as profundíssimas raízes com que se achava
este mal estabeleci9o pela negligência do ministro comissário de V.
Ex.n, prejuízo de que está cheio, amizade e liga contraída entre
ele, e os do país, prejuízos, e oposição, destes contra o novo método,
e também pela experiência das ·mesmas qualidades, nos mestres sus-
pensos, a tenaz rebelião com que não executaram o que deviam, e
disto a sua inabilidade para o dito ministério, e todas as mais ruínas
que daqui, e de tudo o mais, que tenho referido, podem infalivelmen-
te coligir-se, como também o pronto remédio delas, e a melhor, e bem
fundada esperança que temos, e vamos experimentando pelas sá-
bias providências com que V. Ex.n foi servida acudir-nos, de cujo
bem, nós e todos os zelosos do bem público, confessaram a V. Ex.n
por protetor do bem do reino, e fiel executor das leis do príncipe fa-
zendo por isto público um eterno agradecimento.
Eu Sr. vou continuando, na instrução dos meus discípulos com
muito trabalho pela sua rebelião que chegou a ser tal que está a fa-
zê-los comprar livros, com verem tão baratos, custa muito pois eles
todos dizem que são pobres e que não têm, o que nasce de sua rebe-
lião com a qual também fazem as diligências possíveis para busca-
rem pretextos com que faltem à classe como sempre têm feito com
grande desconsolação por me impedirem mostrar nisto o meu zelo, o
que me parece ser o malicioso fim, com que obram deste modo.

228 229
,,

\
Bibliografia
li
li\I
\1
I - DOCUMENTOS MANUSCRITOS E IMPRESSOS DO
IJ
PERíODO POMBALINO SOBRE A INSTRUÇÃO PúBLICA
l'
A) DOCUMENTOS MANUSCRITOS
f I
ARQUIVO HISTóRICO ULTRAMARINO - BAHIA: Cartas
do Bispo da Bahia, Inventário, ns. 9.475 e 8.638; Papéis refe-
rentes ao concurso para provimento das cadeiras régias, em 1759,
Inventário, ns. 4.824 a 4.829;- PARA: Cartas acompanhadas
de pareceres sobre organização de Seminário, aula de latim e
aula de filosofia, Maço 1.759 a 1.760; - PERNAMBUCO:
Carta do Bispo, de 25 de maio de 1759, e Carta de Luiz Diogo
Lobo da Silva, da mesma data (Caixa 49); Carta do professor
régio dando conta de sua chegada etc. (Caixa 53) ; Cartas do
Governador de 1 de janeiro, 1 e 30 de março de 1774 (Caixa
59); Documentos referentes à arrecadação do subsídio literá- ·
rio em Pernambuco: Ofícios de José César de Menezes, de 15 de
·julho de 1775 (Caixa 61), e de 17 de julho de 1776 (Caixa
62), Carta do Almotacel (Caixa 66), Ofício com anexos so-
bre o assunto (Caixa 66), Contas do subsídio literário, de
15 de julho de 1775 (Caixa 61), Idem, de 17 de julho de
1776 (Caixa 62); - SÃO PAULO: Cartas do Bispo Frei
Manoel de Ressurreição, de 18, 19 e 20 de março de 1777
( 4 cartas), Papéis Avulsos, maço 1.776. ARQUIVO NA-
CIONAL DA TORRE DO TOMBO: Registro das Ordens Ex-
pedidas para a Reforma, e Restauração dos Estudos destes
Reinos e seus Domínios. Ministério do Reino, 417. BI-
I
~
l
231

J
Lisboa, Tip. da Academia, 1895, págs. I a VI e 1 a 168. Exis-
BLIOTECA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA: Cartas de te um manuscrito mais completo desta Relação, do qual dá no-
nomeação de professores, códice 1.329; Papéis do Arquivo da tícia Silva Carvalho, no artigo "D. Francisco de Lemos e a Me-
Junta da Diretoria Geral dos Estudos, códices 1.339, 1.340 e dicina", publicado in O Instituto, Coimbra, 1937, vol. 92.
1.343; Cartas de Manoel Pereira da Silva para D. Tomaz de Al- Neste volume, Silva Carvalho publicou a parte· referente à orga-
meida, códice 1.338; Papéis relativos à Instrução Pública, có- nização dos serviços e polícia médica, que falta no exemplar
dices 2.530 a 2.536. existente no Arquivo da Universidade de Coimbra, o qual foi o
de que se serviu Teófilo Braga.
B) DOCUMENTOS PUBLICADOS
I I - OBRAS RELACIONADAS COM O PROGRAMA DAS
Diário da Visita do Marquês de Pombal a Coimbra na Reforma da REFORMAS POMBALINAS
Universidade, publicado pelo Dr. Antônio de Vasconcelos, Es-
critos Vários Relativos à Universidade Dionisiana, vol. I, págs. CARVALHO E MELO, Sebastião José de- Cartas e outras Obras Se-
337 a 388. letas do Marquês de Pombal, 5.n ed., Lisboa, Tip. de Costa San-
ches, 1861, 2 vols. Os escritos de Pombal encontram-se reuni-
Documentos da Reforma Pombalina, publicados por M. Lopes D'Al- dos na Biblioteca Nacional de Lisboa, Secção de Reservados,
meida, em dois volumes, por ordem da Universidade de Coim- sob o título geral de Coleção Pombalina. Desses papéis foi fei-
bra, Coimbra, 1937. Os documentos CCIII a CCCLXIII, do to, em 1889 a 1891, um Inventário, que se acha publicado.
período 1783 a 1790, que constituem o segundo volume, ainda
não foram publicados e as suas provas tipográficas nos foram
CUNHA, D. Luiz da- Testamento Político, Prefácio e notas de Ma-
gentilmente cedidas pelo A.
noel Mendes, Lisboa, Seara Nova, 1943.
Notícias Secretas, Inéditas e muito Curiosas, da Junta Reformadora
da Universidade de Coimbra, extraídas do Diário de D. Fr. Ma- MENDES MUNIZ, Manoel - Anti-Prólogo Crítico, e Apologético, no
noel do Cenáculo, in Folhetin de O Conimbricense, Miscelânea, qual à luz das mais claras razões se mostram desvanecidos os
CCXCIX, CCC, CCCI e CCCII, ns. 2.328 a 2.331, de 16, 20, erros, descuidos e faltas notáveis, que no insigne Padre Ma-
23 e 27 de novembro de 1869. noel Alvarez presumiram descobrir os R. R. Autores do "Novo
Método da Gramática Latina", dirigido aos mesmos reverendos
Papéis e Documentos Vários publicados por Teófilo Braga na Histó- padres. Lisboa, Oficina de Miguel Manescal da Costa, 1753.
ria da Universidade de Coimbra, vol. III. Atribui-se esta obra ao jesuíta Pe. Francisco Duarte.

Relação Geral do estado da Universidade de Coimbra desde o prin- PEREIRA DE FIGUEIREDO, Antonio - Novo Método da Gramática
cípio da nova reformação até o mês de setembro de 1777, para Latina, dividido em duas partes, para o uso das escolas da Con-
ser presente à Rainha Nossa Senhora, pelo seu Ministro e Se- gregação do Oratório, na Real Casa de Nossa Senhora das Ne-
cretário de Estado da Repartição dos Negócios do Reino, o cessidades. Nona Impressão, na Imp. Régia, 1824. única edi-
Jl.mo e Ex."' 0 Sr. Visconde de Vila Nova de Cerveira, dada pelo ção que encontramos na Biblioteca Nacional de Lisboa.
Bispo de Zenópole e coadjutor e futuro sucessor do Bispado de
Coimbra e atual Reformador e Reitor da mesma Universidade, - Defensa do Novo Método da Gramática Latina contra o Anti-
publicado por Teófilo Braga, em Memórias da Academia Real Prólogo Crítico, dividida em duas partes. Lisboa, na Oficina
das Ciências de Lisboa, Classe de Ciências Morais, Políticas e de Miguel Rodrigues, 1754.
Belas Letras, Nova Série, t. VII, Parte I (vol. LI da Coleção),
233
232
- Tentativa Teológica, em que se pretendem mostrar, que impe- III - OBRAS, MONOGRAFIAS E ESTUDOS REFERENTES À
dido o recurso à Sé Apostólica se devolve aos Senhores Bispos a INSTRUÇÃO PORTUGUESA E, PARTICULARMENTE,
Faculdade de Dispensar nos Impedimentos Públicos do Matri- SOBRE A UNIVERSIDADE DE COIMBRA
mônio, e de prover espiritualmente em todos os mais casos
reservados áo Papa, todas as vezes que assim o pedir a Pública BRAGA, Teófilo - História da Universidade de Coimbra nas suas
e urgente necessidade dos Súditos, 3.n imp., revista e emendada Relações com a Instrução Pública Portuguesa, 4 ts., Tip. da Aca-
pelo A., Lisboa, Oficina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1769. demia Real das Ciências: t. I (1289 a 1555); t. II (1555 a
1700); t. III (1700 a 1800); t. IV (1801 a 1872), publicados
RIBEIRO SANCHES, Antonio Nunes - Cartas sobre a Educação da respectivamente em 1892, 1895, 1902 e 1902.
Mocidade, Colônia, 1760, reeditadas por Maximiano Lemos, na BRANDÃO, Mário - Colégio das Artes,· Coimbra, lmp. da Universi-
Biblioteca dos Autores do Século XVIII, lmp. da Universidade dade, 2 vols., publicados respectivamente em 1924 e 1933.
de Coimbra, 1922.
- Alguns Documentos Respeitantes à Universidade de Coimbra na
- Método para aprender e estudar a medicina, ilustrado com os E:poca de D. João III, Coimbra, Biblioteca da Universidade,
apontamentos para estabelecer-se uma Universidade Real na 1937.
qual deviam aprender-se as Ciências humanas de que necessita
o Estado Civil e Político, 1763. - A Inquisição e os Professores do Colégio das Artes, publicado
nas Acta Universitatis Conimbrigensis, por ordem da Universi-
dade, em 1948, Coimbra. Este como os anteriores e outros
SEABRA DA SILVA, José de- Dedução Cronológica e Analítica, Lis- trabalhos do Prof. Dr. Mário Brandão se referem a assuntos
boa, 1768, na Oficina de Miguel Manescal da Costa, dividida em relacionados com o humanismo português, e todos conjunta-
duas partes e acompanhada de uma Coleção das provas que fo- mente constituem uma das mais sólidas e pacientes investiga-
ram citadas na Parte PrimeiÍ"a e Segunda e nas duas Petições de ções, sobre os problemas da vida universitária da época em
Recurso do Procurador da Coroa. Em 3 ts. apreço, realizada em Portugal.

VERNEY, Luiz Antonio - Verdadeiro Método de Estudar para ser BRANDÃO, Mário e M. LOPES D'ALMEIDA - A Universidade de
útil à República, e à Igreja: proporcionado ao Estilo, e neces- Coimbra, Esboço da sua História, publicada por ordem da Uni-
sidade de Portugal, exposto em várias cartas, escritas pelo R. versidade, Coimbra, 1937.
P. Barbadinho da Congregação de Itália ao R. P. Doutor na
CARNEIRO DE FIGUEIROA, Francisco - Memórias da Universidade
Universidade de Coimbra, Valença, na Oficina de Antonio Bai- de Coimbra, editadas na Coleção Universitatis Conimbrigensis
le, 1747. Esta obra vem sendo reeditada por Antonio Salgado Studia Ac Regesta, com uma notícia preliminar do Prof. Dr.
Júnior na Coleção de Clássicos Sá da Costa, Lisboa. Já apa- Joaquim de Carvalho, por ordem da Universidade de Coimbra,
receram os 3 primeiros vols., 1949 (vol. I) e 1950 (vols. II
Coimbra, 1937.
e III).
CARVALHO, Joaquim de - "Instituições de cultura", in História de
Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra, no Portugal de Damião Peres e Eleutério Cerdeira, vol. IV, Quinta
tempo da invasão dos denominados jesuítas e dos estragos feitos Parte, Cap. II.
nas Ciências e nos Professores, e Diretores que a regiam pelas
maquinações, e publicações dos Novos Estatutos por eles fabri- J - "Instituições de cultura", in História de Portugal, cit., vol. V,
cados, Lisboa, na Régia Oficina Tip., 1772. Quarta Parte, Cap. IV.

234 235
CASTRO FREIRE, Francisco - Memória Histórica da Faculdade de MACEDO, Newton de - "A Renovação das Idéias e das Instituições
Matemática nos Cem Anos Decorridos desde a Reforma da Uni- de cultura", in História de Portugal, cit., vol. VI, Terceira Parte,
versidade em 1772 até o Presente, Coimbra, Imp. da Universi- Cap. I.
dade, 1872.
MoTA VEIGA, Manuel Eduardo da - Esboço histórico literário da
CIDADE, Hernani - Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, 2 Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra em come-
vols., Coimbra, Coimbra Ed., vol. 1. 0 , 3.a ed., corrigida, atua- moração do centenário da reforma e restauração da mesma Uni-
lizada e ampliada, 1951; vol. 2. 0 , 3.a ed. do "Ensaio sobre a versidade efetuada pelos sábios estatutos de 1772, Coimbra, Imp.
crise mental do século XVIII", novamente refundida e ·amplia- da Universidade, 1772.
da, 1948.
SERRA DE MIRABEAU, Bernardo1 Antonio- Memória Histórica e Co-
CosTA, D. Antônio da- História da Instrução Popular em Portugal memorativa da Faculdade de Medicina nos cem anos decorridos
desde a Funda_ção da Monarquia até os nossos dias, 2.n ed., Por- desde a reforma da Universidade em 1772 até o presente, Coim-
to, Ed. Antônio Figueirinhas, 1900. bra, Imp. da Universidade, 1872.
FERRÃo, Antonio - O Marquês de Pombal e as Reformas dos Es-
tudos Menores: Apontamentos para a História da Pedagogia SILVESTRE RIBEIRO, José - História dos Estabelecimentos Científi-
Portuguesa, Lisboa, Mendonça, 1915. cos, Literários e Artísticos de Portugal nos sucessivos Reinados
da Monarquia, impressa a partir de 1871 na Tip. da Academia
- A Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra e a sua Real das Ciências, Lisboa, 18 vols. Servimo-nos especialmente
Apreciação por Alguns Eruditos Espanhóis, Coimbra, Imp. da do t. I.
Universidade, 1926.
SIMÕES DE CARVALHO, Joaquim Augusto - Memória Histórica da
LEITÃO FERREIRA, Francisco - Notícias Cronológicas da Universi- Faculdade de Filosofia, Coimbra, Imp. da Universidade, 1872.
dade de Coimbra Escritas pelo Beneficiado Francisco Leitão
Ferreira, organizadas pelo Prof. Dr. Joaquim de Carvalho, e TEIXEIRA, Antonio José -Documentos para a História dos Jesuítas
publicadas na Coleção Universitatis Conimbrigensis Studia Ac em Portugal, Coimbra, Imp. da Universidade, 1899.
Regesta, 2.n parte, 2.a ed. publicada por ordem da Universida-
de de Coimbra, Coimbra, 1937. TEIXEIRA BASTOS- A Vida do Estudante de Coimbra (Antiga e Mo-
derna). Duas Conferências na Associação Cristã de Estudantes,
- Notícias Cronológicas da Universidade de Coimbra . .. , t.n ed. nos dias 29 e 30 de abril de 1920, Coimbra, Imp. da Universi-
publicada, revista e anotada pelo Prof. Dr. Joaquim de Carva- dade, 1920.
lho, 2.a parte, 3 vols., editada por ordem da Universidade de
Coimbra, na Coleção Universitatis Conimbrigensis Studia Ac VASCONCELOS, Antônio de - Escritos V árias relativos à Universi-
Regesta, Coimbra, volumes aparecidos respectivamente nos anos dade Dionisiana, 2 vols., Coimbra Ed., 1938 e 1941.
de 1938, 1940 e 1944.
- O Selo Medieval da Universidade Portuguesa, Coimbra, Ofici-
- Alfabeto dos Lentes da Insigne Universidade de Coimbra desde nas da Coimbra Ed., 1938.
1557 em; diante, com uma notícia preliminar do Prof. Dr. Joa-
quim de Carvalho, publicado na Coleção Universitatis Conim- Estatutos da Universidade de Coimbra compilados debaixo da ime-
brigensis Studia Ac Regesta, por ordem da Universidade de diata e suprema inspeção de El-R·ei D. José I, Nosso Senhor,
Coimbra, Coimbra, 1937. Pela Junta de Providência Literária c1:iada p.elo mesmo Senhor

236 237
para a Restauração das Ciências e Artes Liberais nestes Reinos, - Estudos sobre a Cultura Portuguesa do Século XV, vol. I, por
e todos seus Domínios, ultimamente roborados por Sua Majes- ordem da Universidade, Coimbra, 1949.
tade na sua Lei de 28 de agosto deste presente Ano de 1772,
Lisboa, na Régia Oficina Tip., 1773, 3 vols. - Estudos sobre a Cultura Portuguesa do Século XVI, por ordem
da Universidade, Coimbra, vol. I, 1947, vol. II, 1948.

CASTELO BRANCO, Camilo- Perfil do Marquês de Pombal, 2.a ed.,


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ALMEIDA, Fortunato de- História de Portugal, Coimbra, Ed. For- DAMIÃO PERES e ELEUTÉRIO CERDEIRA - História de Portugal, 8
tunato de Almeida, 1926, ts. IV e V. vols., Barcelos, Portucalense Ed., 1928 a 1937.
ANDRADE, Alberto de - V erney e a Filosofia Portuguesa, Braga, DE SouzA, Antonio Sérgio - História de Portugal, Barcelona, Bue-
Liv. Cruz, 1946. nos Aires, Ed. Labor.

ARANHA, Brito- O Marquês de Pombal e o seu Centenário. Notas FERRÃo, Antonio - O Marquês de Pombal e a Expulsão dos Je-
Biobibliográficas, separata do t. XIX do Dicionário Bibliográ- suítas (1759) Imp. da Universidade de Coimbra, 1940.
fico, Lisboa, Imp. Nacional, 1908. Estas notas constituem,
ainda hoje, o melhor repertório sobre a literatura pombalina. FIGUEIREDO, Fidelino de -História da Literatura Clássica, 2.a ed.,
2 vols., Lisboa, Liv. Clássica Editora, 1930.
AzEVEDO, Fernando de- A Cultura Brasileira, Rio de Janeiro, Ser-
viço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, GoMES, Francisco Luiz - Le Marquis de Pombal, Lisboa, Impri-
1943. merie Franco-Portugaise, 1869.

AzEVEDO, J. Lúcio de- O Marquês de Pombal e a sua Época, 2.a HANDELMANN, Gottfried Heinrich - História do Brasil, trad. bra-
ed., Rio de Janeiro, Lisboa, Porto, s/ d, Ed. Anuário do Brasil, sileira do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, boletim do
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- Os Jesuítas no Grão-Pará. Suas Missões e a Colonização, 2.a LATINO CoELHO, José Maria - História Política e Militar de Por-
ed., Coimbra, Imp. da Universidade, 1930. tugal desde os Fins do Século XVIII até 1814, Lisboa, Imp.
Nacional, t. I (2.a ed.), 1916; t. II, 1885; t. III, 1891.
AzEVEDO, M. D. Moreira de - "Instrução Pública nos Tempos Co- - O Marquês de Pombal, publicado no volume comemorativo do
loniais do Brasil", in Revista do Instituto Histórico e Geográ- centenário de sua morte e organizado pelo Club de Regatas
fico Brasileiro, t. 55, II. Guanabarense do Rio de Janeiro, Lisboa, Imp. Nacional, 1885.
CARVALHO, Joaquim de - Introdução ao Ensaio Filosófico sobre o LEITÃO E CARVALHOSA, M. F. de Barros e Souza Mesquita de Ma-
Entendimento Humano (resumo dos Livs. I e II recusado pela cedo - Quadro Elementar das relações políticas e diplomáticas
Real Mesa Censória), Coimbra, Biblioteca da Universidade, de Portugal com: as diversas potências do Mundo desde o prin-
1950. Esta introdução é o melhor e mais esclarecido estudo cípio da monarquia portuguesa até aos nossos dias; ordenado e
do ponto de vista filosófico sobre a situação cultural do século composto pelo Visconde de Santarém. Paris, J. P. Aillaud, 18
XVIII português . vols., 1842-1876.

238 239
LEITE, S. J., Pe. Serafim - História da Companhia de Jesus no SILVA BASTOS, José Timóteo da - História da Censura Intelectual
Brasil, Rio de Janeiro, Lisboa, Instituto Nacional do Livro, Liv. em Portugal (ensaio sobre a compressão do pensamento portu-
Civilização Brasileira, Liv. Portugalia, 10 vols., 1938-1950. guês), Coimbra, Imp. da Universidade, 1926.
MACEDO, Jorge de- A Situação Econômica no Tempo de Pombal. SMITH, John - Memórias do Marquês de Pombal contendo extra-
Alguns Aspectos, Porto, Liv. Portugalia, 1951. tos dos seus escritos e da correspondência diplomática inédita
MESQUITA FILHO, Júlio de - Ensaios Sul-Americanos, São Paulo, existente em diferentes secretarias de Estado, traduzidas por
Liv. Martins Ed., s/d. J. M. D'Afonseca e Castro, Lisboa, Liv. de Antônio Maria Pe-
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ed., 2 vols., Liv. de Antônio Maria Pereira, 1927.
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- História da Civilização Ibérica, 6.a ed., Lisboa, Liv. de Antônio Marquês de Pombal, Secretário de Estado e Primeiro Ministro
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