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MATTOSO
CÂMARA JR.
CONTRIBUIÇÃO
À ESTILÍSTICA
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PORTUGUES
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1978
14 Edição
MATTOSO CÂMARA E A ESTILÍSTICA
Reimpressues 1925e 1982
6. Tonalidade afetiva, 49
7. Os sinônimos, 54
8. A linguagem figurada, 58
9. Valor estilístico dos sufixos, 60
TRABALHOS CITADOS, 77
PARTEI
O CONCEITO DA
ESTILÍSTICA
1. Complexidade da linguagem.
2. A gramática comparativa. Bopp a Hermann Hirt, desdobrou o método reconstitutivo das proto-
línguas (al. Ursprachen), mesmo quando ela se abalança a especulações
O estudo linguístico, nas primeiras décadas do século XIX, só se mais amplas.
consolidou com relativa facilidade, porque decorreu de um fato muito
particular e inadequado a uma possível investigação dentro das demais Essa obra ganhou ultimamente um novo surto em segurança e
ciências: a semelhança imanente de formas linguísticas em grupos soci- profundidade, deixando-nos entrever um estado linguístico pré-indo-eu-
ais lingúisticamente diversos como índice de uma unidade lingúística re- ropeu, acenando-nos com a possibilidade de uma cognação entre as lín-
mota, a ser indutivamente reconstituída. guas indo-européias e as semíticas e as camíticas, ou ainda depreenden-
do uma base mediterrânea a que o indo-europeu se superpôs. Mas con-
Houve com isso um subterfúgio teórico. Os primeiros lingúístas, tinuou sempre um estudo especial de paleontologia linguística, distinta
que numa restrição consciente se chamavam filólogos ou gramáticos do esforço para se chegar a uma ciência de princípios gerais para o fenô-
comparativistas, fizeram como esses generais que, de um ataque muito meno lingúístico, como é a física para os fenômenos da natureza,
limitado e muito parcial, quase improvisado como recurso fortuito,
criam pouco a pouco, sob as injunções do momento, um plano de con-
quista e consolidação ampla de terreno. 3. A linguagem como fenômeno psíquico.
Mas de um fato particular, explorado embora sistematicamente, Tal esforço, onde realmente se verificou, teve de encarar de início
não poderia sair, pelas leis do conhecimertto humano, a base de uma ci- o intrincado problema que resulta da suma complexidade do assunto
ência geral. Os que desenvolveram a gramática comparativa, apenas objetivado.
acantonaram-se, como o Cândido de Voltaire, no seu pequeno jardim,
deixando o imenso mundo da linguagem aos poderosos do dia, sem rei- Sabe-se, por exemplo, como foi, por muito tempo, cruciante o di-
vindicá-la propriamente na sua unidade essencial. lema entre os aspectos físicos e os aspectos psíquicos da linguagem.
Pode-se dizer, até, que fixaram mais um ângulo de observação, À existência, aparentemente incontestável, de órgãos humanos de
quando, mercê dos seus estudos, se depreendeu a noção de que a lingua- execução específicos, ou seja — o aparelho fonador, juntaram as pes-
gem muda paulatina e inelutavelmente no tempo, através das gerações, quisas médicas no século passado a tese da localização cerebral da facul-
e é, portanto, também muito tipicamente um fato histórico. A circuns- dade de que essa execução decorre, e as pesquisas linguísticas a de sons
tância de até então a história não ter tomado consciência do que há de apenas mecânica e biologicamente condicionados.
seu no fenômeno lingiúístico, criou a ilusão de se ter constituído um
assunto específico de ciência nova com essa exploração sistemática; e, Só muito recentemente se logrou, de todo, melhor do que resol-
uma vez reconhecido o equivoco, determinou a reação que vemos hoje ver, superar a dificuldade que assim se nos defrontava para colocar a lin-
de um Terracini, por exemplo, quando, propondo-se a responder ao guística entre as ciências do homem, fora do quadro das da natureza.
Que é a lingiiística?, acaba por diluí-la na história da cultura (LVIII-45).
Ninguém hoje põe em dúvida, quanto aos órgãos do chamado apa-
O verdadeiro esforço no sentido de uma ciência geral da lingua- relho fonador, que lhes cabe no corpo humano um conjunto de funções
gem não está a rigor na obra indo-europeísta, que, na linha de Franz biológicas primárias, a que a sua aplicação à fala se superpôs, encobrin-
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descritiva, mas de princípios causais, que não poderia absorver em si a nou-o tecnicamente a língua (fr. la langue), com que apenas consolidou
gramática, nem tão pouco nela se dissolver. e apurou o alcance de um termo vulgar. Opôs-lhe concomitantemente a
fala — ou, segundo sugeri há tempos e tem sido usado entre nós, o dis-
Tal é a antinomia que em Wilhelm Humboldt fundamenta a divi- curso (fr. la parole), como um campo complexo e confuso à margem da
são dicotômica do érgon e da enérgeia. A gramática encarou o produto linguística.
(al. Werk), ou érgon, e a própria gramática comparativa não saiu eviden-
temente deste âmbito ao estudar o produto na linha do tempo, em vez É fácil verificar, não obstante, com Kristen Moller entre outros
de surpreendê-lo numa de suas fases. Para Humboldt, ao contrário, o in- (XXXVII-92), como ao lado da oposição do plano coletivo ao plano in-
teresse está na atividade (al. Tátigkeit), ou enérgeia, isto é, — no traba- dividual, com que mais se tem impressionado a exegese para concordar
lho eternamente ocorrente do espírito para se expressar (XIV -44.5). ou discordar, há na língua assim depreendida a noção, pura e simples,
de um esquema de valores simbólicos, sobre que se desenrola a ativida-
Com isso, não ficamos confinados, necessariamente, na atividade de lingiiística. Em outros termos, a “língua” é um sistema organizado,
dos indivíduos, porque a enérgeia está latente no érgon sob o aspecto de enquanto o “discurso” é um conglomerado de fatos assistemáticos.
soma dos trabalhos psíquicos individuais. Apenas, há um deslocamento
O caráter de produto coletivo e o de produto sistemático, por par-
de valor no estudo gramatical, que passa a ser uma sintomatologia da
te da língua, coincidem até certo ponto pela circunstância da sua fun-
atividade linguística: as estruturas da linguagem humana, na sua diver-
ção social, que é estabelecer a comunicação entre os membros do grupo:
sidade, continuam a merecer análise, pois são outros tantos pontos de
o sistema é, em linhas gerais, comum a todos, porque as exigências do
vista da representação do universo (al. Weltansicht) por parte dos ho-
intercâmbio tendem a suprimir os desencontros de concepção esquemá-
mens (XIV-61). Nos termos de Leo Weisgerber (LXI-16 e passim),
tica de um membro a outro; mas não se trata, entre Os dois caracteres, de
temos diante de nós a pesquisa de um universo lingúístico (al. sprachli-
uma unidade de essência,
ches Weltbild) em que a cultura de um povo se entrosa, se reflete e se
alimenta.
A língua preexiste aos indivíduos — é certo —, como insiste Meil-
let nas diretrizes do seu pensamento durkheimiano (XXXV-230). Entre-
Vê-se assim como a concepção de Humboldt, com que direta ou
tanto, a personalidade de cada um de nós trabalha nessa matéria para in-
indiretamente se relacionam múltiplas correntes “etnolingúísticas””
tegrá-la em si, de sorte que a sistematização, em princípio, resulta indi-
urbe et orbe, acaba por passar por cima de uma segunda dicotomia, que
vidual. “A aquisição” — como diz Roman Jakobson — “não é uma sim-
é outro percalço na constituição de uma ciência geral da linguagem: a
ples cópia; toda imitação pressupõe uma escolha e, portanto, um desvio
que decorre de um plano individual em confronto com um plano cole-
criador em relação ao modelo” (XV-2).
tivo.
6. As funções
da linguagem. Foi essa redução, empiricamente feita, que deu oportunidade a
constituir-se o estudo gramatical, e para ela apelou a doutrina de Saus-
Para compreendê-las, essas antinomias, é preciso levar em conta, sure, a fim de fixar um objetivo nítido e uno para a linguística. Não se
com a Teoria Lingiiística de Karl Bihler (V-12ss), que a linguagem tem, trata senão de uma parte determinada, reconhece ele; mas é uma parte
pelo menos, três funções primordiais, que não se resolvem em unidade. essencial, e, “desde que lhe damos o primeiro lugar entre os fatos da
linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se
Ela é um meio precípuo de exteriorização psíquica, de manifesta- presta a nenhuma outra classificação” (L-25).
ção espontânea de estados dalma. Com isso não se confunde, evidente-
mente, o seu papel de meio de atuação sobre o próximo na vida em co- Teoricamente, justifica-se este ponto de vista pela circunstância
mum. Enfim, estrutura a nossa experiência mentada (para usarmos o de ser a representação mental, mais do que uma função, também a pró-
neologismo filosófico dos espanhóis), dando-lhe uma pauta para desen- pria essência da linguagem humana. É o que lhe permite, melhor do que
volver-se e uma forma para consubstanciar-se. Há para considerar, em os gestos e os gritos inarticulados, exteriorizar estados dalma, atuar so-
consegiiência, a manifestação anímica (al. Kundgabe), a atuação social bre o próximo, tanto quanto consubstanciar a nossa experiência do
ou apelo (al. Auslôsung ou Appell) e a representação mental (al. Dars- mundo dos objetos. Por isso, diante da conceituação tripartida de
tellung). Biihler, Friedrich Kainz decompõe a representação linguística no que
lhe cabe como natureza essencial (al. Darstellung, propriamente dita)
Wolfgang Kayser lembrou, recentemente, como as três funções,
e como função informativa (al. Bericht). A circunstância de podermos
assim destacadas, encontram correspondência na poesia, relacionando-
pela linguagem manifestar estados psíquicos ou influir no comporta-
-se-lhes, respectivamente, em essência, o gênero lírico, o drama e a épica
mento dos nossos semelhantes (Kundgabe e Appell) decorre, tanto
(XX11-336). É um índice interessante do que há de básico na tríade
quanto a transmissão de um nosso conhecimento (Bericht), do “mo-
funcional de Búhler, a qual assim se entremostra ainda no plano restrito
mento representativo”, que para todas as funções se encerra na lingua-
de uma aplicação sofisticada da linguagem, qual é a poesia, quando um
gem humana: ela é sempre “símbolo”, nunca um mero “sinal” de apelo
meio de comunicação ampla se reduz a matéria de uma mensagem de
ou um mero “sintoma” de exteriorização psíquica (XX-176).
arte.
A língua, no seu conceito saussuriano, se deduz apenas da função Tanto vale dizer com Cassirer que a linguagem é, antes de tudo,
representativa, pois compreende a estrutura, o esquema, o padrão ou a um produto intelectivo, e encontra a sua adequação plena na terceira
pauta que rege, em termos lingúísticos, a nossa representação do mun- função de Búhler. A manifestação anímica, em que insiste por exemplo
do exterior e interior. Resulta de um trabalho de intuição infra-racio- - Vossler, e a atuação social, de que partiu De Laguna para a sua conhe-
nal, mas de caráter intelectivo, que justamente a gramática se propõe a cida teoria sobre a origem da linguagem, se lhe impõem por extensão e
trazer para O plano da consciência, pondo-lhe em evidência os sistemas procuram adaptá-la a si.
de sons, de formas, de significações e de ordenação de elementos, ou -
sejam — o fônico, o mórfico, o semântico e o sintático.
7. O estudo da língua como parte da lingiiística.
A redução da linguagem a um dos seus aspectos, em que ela é o
produto da inteligência intuitiva, simplifica o problema da nossa aproxi- É inegável, não obstante, que para uma e outra é a linguagem o
mação científica diante do fenômeno lingúístico. veículo mais próprio e natural. A adaptação é das mais satisfatórias,
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funciona em sua linguagem. Por outro lado, os traços não-coletivos do A título de ilustração, detenhamo-nos numa delas: o caráter ar-
sistema são fáceis ou, antes, inelutavelmente transpostos para o plano bitrário dos símbolos linguísticos, enunciado em termos categóricos
da emoção e da vontade expressiva. A liberdade que a língua faculta por Saussure (L-100). Sabe-se que com isso entendia ele a circunstância
num ou noutro ponto permite-nos ser originais continuando, pelo me- de não haver uma relação necessária entre a natureza das coisas e a dos
nos, inteligíveis; e essa oportunidade o nosso espírito logo aproveita sons que na língua as designam, como logo ressalta ante “a diferença
para o fim das suas exigências expressivas. entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes”.
Tanto vale dizer, por conseguinte, que a conceituação nos mol-
Com efeito, no âmbito daquele sistema, que caracterizamos como
des de Bally é que vai ao cerne do assunto. A depreensão da persona-
intelectivo e que, como vimos, Saussure tinha antes de tudo em mente,
lidade lingúística e o estudo das possibilidades de escolha nela repousam
é inconcussa a possibilidade de um qualquer grupo de sons significar
e dela se nutrem.
uma coisa qualquer. A associação entre um e outra depende apenas de
Compreende-se, por outro lado, que, assim como a língua, no uma convenção semiótica, que é tanto mais maleável e eficiente quanto
conceito saussuriano, se define primordialmente um sistema de “repre- maior é a autonomia dos elementos significantes em face dos significa-
sentações”” sobre ser um bem coletivo, também o estilo caracteriza-se dos, Se a vogal /a/ por exemplo, em virtude da sua sonoridade e do
como um conjunto de “expressões”, independentemente da circunstân- grande abrimento bucal de que decorre, estivesse necessária e exclusi-
cia de ser um predicado do indivíduo. vamente ligada às noções do claro e do brilhante, ficaria ipso facto tolhi-
da no amplo jogo mórfico em que se desdobra para caracterizar uma
Nem a individualização é aí, em regra, muito nítida e rigorosa. Es-
conjugação verbal em português, ou ser um prefixo negativo em grego,
tamos por demais impregnados na atmosfera social para apresentar a es-
ou ser O aumento verbal em sânscrito, e assim por diante; mesmo quan-
te respeito uma originalidade a cem por cento. “Muitas vezes” — co-
do coincidissem o valor interno, na língua, e a correspondência externa,
menta Sapir, encarando o tema da análise da linguagem do ponto de vis-
enfraqueceria ao primeiro esta motivação de outra ordem para a presen-
ta do estudo da personalidade — “temos a impressão de ser originais e
até aberrantes, quando, em suma, estamos apenas repetindo um padrão ça da vogal.
social com a mais ligeira das notas de individualidade” (XLIX-534).
Já do ponto de vista da linguagem expressiva não cabem tais con-
O estilo individual se esbate, assim, no estilo de uma época, de siderações.
uma classe, de uma cidade, de um país. E é desta sorte que se pode fa-
lar até no estilo de uma língua, como pôs em evidência Bally para o Um estado dalma tende a um contacto com o objeto do seu esti-
francês em cotejo com o alemão (este voltado para o sujeito falante, mulo, e cria-se uma harmonização de que a manifestação linguística re-
aquele orientado para o ouvinte) (11-202). sultante apresenta os vestígios. É o que ressalta do conjunto das inter-
jeições puras, onde a ligação com o mundo das coisas pode chegar até
à onomatopéia, que não é o nome intelectivo de um ruído, mas antes a
10. Consegiiências teóricas. exteriorização do prazer, do medo, da curiosidade que ele provoca.
A consideração de uma estilística, ou linguística do estilo, ao lado Aqui, ainda estamos, a bem dizer, numa zona de fronteira em re-
da linguística da língua (se é lícita a aparente tautologia), esclarece não ferência à linguagem humana plenamente elaborada. Se a manifestação
poucas questões intrincadas e controvertidas em matéria de linguagem. e o apelo são, entretanto, funções normais dessa linguagem, é fácil per-
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ceber que a carga expressiva, estendendo-se a todos os elementos lin- fortuita, nos sons, do que podemos chamar um ambiente afetivo (a
gúísticos, forceja por anular o princípio da arbitrariedade, sob cuja tragédia shakespeariana quanto a tempest; a evocação da pirataria no
égide eles se constituíram. mar das Antilhas, à qual se prende o vocábulo inglês Aurricane; e as lem-
branças da experiência diária, associada com storm).
Isso acontece com tanto mais força quanto mais ele funciona co-
mo manifestação psíquica ou apelo, Compreende-se assim que na poesia
É essa tonalidade afetiva (ing. feelingtone) que cria a Tirania das
lírica, em que se consubstancia essencialmente a exteriorização de um
Palavras, de que nos fala Stuart Chase (LVI) e com que tanto se preo-
estado dalma, se apresente em grau elevadíssimo esse afã de relacionar
cupam os seus companheiros do semanticismo norte-americano às vol-
intensamente os conjuntos sonoros com os respectivos significados.
tas com uma “higiene da fala”. Um traço estilístico se introduz no sis-
tema representativo puro, desvirtuando-lhe o aspecto intelectivo e pre-
A maneira por que se dá o que podemos chamar a neutralização
judicando-lhe a função informativa ou Bericht.
do caráter arbitrário no som lingúístico, é múltipla e complexa em
mais de um sentido,
Temos, portanto, um dos propósitos da estilística na depreensão
Walter Porzig distingue no fenômeno três aspectos diversos, que desse mecanismo de motivações que a linguagem expressiva estabelece,
são — a imitação sonora, a transferência sonora e a correspondência ar- entre o significante e o significado, em contradição, por assim dizer,
ticulatória (al. Lautnachahmung, Lautubertragung, Lautgebarde) com a essência meramente semiótica dos elementos lingiiísticos.
(XLIV-21.).
O caráter em princípio individual do estilo explica, neste âmbito,
A primeira é o efeito mais ou menos onomatopaico. O resultado por que não se trata, em regra, de padrões sociais, generalizados regu-
larmente e nítidos. Como ressalva Sapir, as tonalidades afetivas são sus-
de uma elaboração psíquica mais sutil se revela na segunda, onde, na
base das sinestesias, outros predicados sensoriais, que não os ruídos, se
cetíveis de variar enormemente. O mesmo se pode dizer da transferên-
cia sonora, onde os valores cromáticos das vogais, por exemplo, se têm
transferem para os sons linguísticos. Finalmente, há a possibilidade de
criar-se uma correspondência entre o som lingiiístico e as modalidades revelado à experimentação científica caprichosos, fugidios e em muitos
dos movimentos articulatórios que o produzem; salientou-a Wundt pacientes praticamente nulos; basta citar o conhecido soneto de
com especial insistência na sua teoria da linguagem. Rimbaud, onde o subjetivismo atinge ao máximo, provavelmente — co-
mo aventa Svend Johansen — em virtude de uma experiência inicial e
Destarte, conforme o caso, a vogal /a/ se associa com um ruído personalíssima da infância do poeta, na base de uma cartilha de leitura,
forte e estridente, com um efeito de claridade brilhante por sinestesia onde cada letra, para cada vogal, se apresentava com uma cor conven-
entre som e cor, ou com uma impressão de amplitude em consequência cional determinada (XVII-56.8.).
da distensão muscular e do abrimento bucal que exige.
Até a imitação sonora é variável e incerta, o que é muito fácil pôr
Mas há motivações ainda mais fugidias, à maneira do que Sapir em evidência no exame e cotejo das onomatopéias.
destaca nos três sinônimos ingleses storm, tempest e hurricane: o pri-
meiro — simples e incisivo, o segundo — magnificente, o terceiro — im- Na realidade, a coesão estilística só se firma neste particular,
pregnado de uma rudeza direta (XLVIII-41.2). Já não se trata aí de uma quando o texto e a situação lingúística tendem a criar um ambiente afe-
relação entre a natureza dos sons e a das coisas, mas de uma absorção tivo comum, de que emerge um laço uno de motivação. Em outros
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termos, para que o símbolo linguístico perca, apreciavelmente, dentro Põe-se em especial relevo o equilíbrio instável que caracteriza to-
da língua o seu caráter arbitrário, é preciso uma unidade de estados dal- do e qualquer sistema lingúístico, em virtude da própria circunstância
ma no grupo humano, fundamentada na convergência sutil e complexa de ser produto da inteligência intuitiva, constituído por contingências
de fatores psíquicos. em que não entra a ordenação de uma vontade racional. A evolução,
nestas condições, pode ser explicada em grande parte como a conse-
Os poetas líricos sentem o que há de precário e falaz nessa relação quência de um trabalho incessante de redisposições, onde cada mudan-
entre significante e significado, de que fazem o eixo da sua linguagem ça, que vem compensar um desequilíbrio, cria desequilíbrios outros,
expressiva, e raramente se contentam com a evocação que a situação e alhures, na rede de associações e contrastes do sistema.
o texto propiciam. Daí, a delicada técnica estilística que Grammont
tão bem analisa: “sucede-lhes muitas vezes que repercutem em torno Pode-se falar até, com Sapir, numa deriva (ing. drift), determina-
da palavra principal os fonemas que a caracterizam, de sorte que essa da pela conjunção de certos reajustamentos, porque os pontos fortes se
palavra se faz em suma a geratriz do verso inteiro em que figura; ou en- impõem aos fracos e tendem a remodelar o sistema num sentido, que,
tão, quando nenhuma palavra particular está em vista, acumulam nos para a linguística a posteriori, é satisfatoriamente delineável,
versos os fonemas mais próprios para pôr auditivamente em foco a
idéia a exprimir” (VIL-404), Ora, as solicitações da linguagem expressiva também não devem,
paralelamente, ser esquecidas. A cada passo, no discurso, deparamos
com o problema de transmitir a vibração de um estado dalma ou a força
de um apelo a formas que mais propriamente se prestam à representa-
11. A estilística e a evolução lingiística. ção pura. Há como que uma tensão perene no instrumento linguístico,
posto assim ao serviço das emoções e dos impulsos da vontade. Em
Outra questão para que pode contribuir o conhecimento da essên- cada um de nós, o estilo, em dados momentos, faz violência à língua e
cia e da importância do fenômeno estilístico é o que se refere à evolu- não poucas vezes a dobra no seu interesse.
ção das línguas,
Aqueles que, como Leo Spitzer, focalizam de preferência o aspec-
A lingúística hodierna, empenhada em ser uma ciência de conteú- to da exteriorização psíquica, estão em ótimas condições para bem
do próprio e auto-suficiente, tende a relegar para um plano secundário apreciar essa ação da expressividade nas mudanças de uma língua e a
possíveis causas de evolução, de ordem física, biológica, étnica ou so- onipresença da estilística na exata explicação de uma evolução lingúís-
cial. Concentra-se, principalmente, numa explicação fundamentada nas tica.
condições internas do sistema; donde a fórmula de Louis Hjelmslev:
“Toda ou quase toda explicação dada até agora das transformações dia- É, por certo, excessivo dizer que — “toda mudança histórica na
crônicas prende-se à lingúística externa. É chegado o momento de língua decorre do esforço para uma expressão pessoal” (LIV-428), mas
procurar as causas profundas dessas transformações no mecanismo in- é perfeitamente justo levar em conta esse esforço ao lado do critério es-
terno da própria língua” (XII1-286). truturalista.
Para tanto, parte-se — como era de esperar — da língua no sentido Um bom exemplo de interação dos dois fatores proporciona o la-
saussuriano, tim na “deriva” para o romance. Meillet, no seu clássico Esboço de uma
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História da Língua Latina (XXXVI) ressaltou a linha evolutiva que con- terário, concentrarmo-nos num poeta ou num prosador de nota. Dada,
dicionaram ao sistema lingúístico latino as suas próprias disposições de por outro lado, a circunstância de que o estilo tende a ser um denomi-
formas e categorias. Não se esquece, entretanto, de assinalar as repercus- nador comum de um grupo humano coeso, podemos no mesmo sentido
sões que advêm de um constante esforço expressivo por parte de uma tratar de uma época, ou de uma escola literária, ou de uma classe social,
comunidade linguística de vida trepidante, como população urbana que ou investigar uma gíria, quer entendida como um calão de malfeitores,
era, e em incessante expansão e renovação étnica e política. E, mais re- onde se exteriorizam recalques e impulsos afetivos, quer ainda, lato-
centemente, Henry Muller nos faz volver os olhos para a revolução reli- -sensu, como um estilo popular coletivo. Neste último sentido amplo,
giosa do Império, com os novos cultos de Isis, Mitra, Hermes Trimegis- em que em geral se entende em inglês o termo slang, a gíria é compará-
to, orientados para um ansioso “soterismo” individual; todos eles e o vel à expressão literária pelo seu fundo estético e mais ou menos sofisti-
Cristianismo em particular, eclodindo num determinado momento his- cado, resultante que é de “uma disposição de ânimo altamente colori-
tórico, vão fornecer ao homem romano “um motivo transcedente de da, composta de certos elementos de vivacidade, chiste, acinte e petu-
exaltação” (XXXIX-30). lância” (XXII1-434).
Meillet já relacionara o aparecimento do artigo ao abuso estilísti- O ponto de vista que focaliza, antes de tudo, “a escplha que faz
co no emprego dos demonstrativos, decorrente das injunções da expres- dos elementos constitutivos de uma língua dada aquele que a emprega
sividade (XXXVI-256). Henry Muller relaciona a ascensão do acento de em determinada circunstância” (XXVI-198), desviará a pesquisa para a
intensidade ao misticismo e ao fervor religioso que passa a marcar com depreensão de uma língua individual ou de um grupo particular, como
um icto de insistência as sílabas tônicas, até então caracterizadas muito variante da língua comum, no conceito saussuriano.
mais pela altura (XXXIX-30.1). Tanto vale filiar num traço estilístico,
em última análise, a evolução fonética em geral com o seu rol de diton- Seremos, então, levados a insistir em certas anomalias inexpres-
gações, ensurdecimento de finais, africamentos, palatalizações. sivas quanto à exteriorização psíquica e ao empenho da atuação sobre
O próximo, mas porque marca de uma individualidade lingúística em
Temos assim firmada a importância e a posição da estilística na confronto com o uso geral. Por exemplo: a indistinção, no espírito de
ciência geral da linguagem. Alberto de Oliveira, entre os indicativos presentes dos verbos em -uir
(ditongo /uy/) e os subjuntivos presentes dos verbos em -uar (termina-
Resta dizer algumas palavras sobre o método mais conveniente ção dissilábica /u-i/), qual transparece quando faz flutues um ditongo
para o estudo estilístico. em rima com azuis:
12. O método estilístico. “Vem — segredava o luar — descerra uma por uma/as
pétalas azuis!/Dou-te um lago de espuma,/onde melhor flu-
É uma consequência do conceito de estilo, estabelecido no 8 8, tues” (R-204).
termos ante nós mais de um caminho e mais de um campo delimitado
de exploração. O contraste disso, com a pesquisa na base da linguagem expressi-
va, ressalta da diérese nos grupos vocálicos átonos, como recurso para
Visando à pesquisa da personalidade linguística, podemos fazer a uma motivação sônica do significado. Assim, a doçura dalma e a tensão
estilística de um sujeito falante especialmente dotado, e, no âmbito Ii- nervosa, implícitas em piedade e ansiedade respectivamente, é que con-
CONTRIBUIÇÃO À ESTILISTICA PORTUGUESA 25
24 J. MATTOSO CÂMARA JR.
ESTILISTICA FÔNICA
1. Os traços estilísticos.
2. Acento e quantidade.
uma palavra adequada para apor-lhe; ou, ainda, na sílaba inicial de uma A sua posição variável no corpo da palavra funciona — todos o
palavra que reflexão imediata nos induz a cancelar ou substituir. Aí te- sabem — para distinguir palavras constituídas pelos mesmos fonemas:
mos um mero acidente de execução, sem qualquer significação lingiú ís- válido e valido, jaca e jacá, ou entre forma nominal e forma verbal —
tica; é o caso típico do fato de “parole”, que fica à margem quer da lín- fábrica e fabrica, rótulo e rotulo, célebre e celebre, ânimo e animo,
gua, quer do estilo, conquanto possa ser característico de uma fala in-
dividual. Serve ainda para opor partículas átonas a formas nominais ou
verbais tônicas dentro de um sintagma: para aqui (prep. com adv.)
Grandes efeitos no ritmo poético, em português, dependem das — pára aqui (verb. com adv.), por certo (prep. com adv.) — pôr certo
quantidades vocálicas de valor estilístico. Elas, juntamente com a va- (verb. com adv.).
riável duração das pausas no interior do verso, alteram o tempo regular
do verso silábico e fazem da métrica, aparentemente rígida e invariável, Ora, a força das sílabas tônicas só funciona com plenitude abso-
um desdobramento rítmico que se pode cingir maleavelmente ao pen- luta no vocábulo isolado. Na frase, quando se encadeiam dois ou mais
samento e trazer harmonias inesperadas. vocábulos num contínuo fonético, que reflete a sua integração numa
unidade de sentido ampla, estabelece-se uma hierarquia de sílabas
A leitura silenciosa ou em voz alta recria esses efeitos pela obedi- tônicas em ordem progressiva: a última delas fica a do acento dominan-
ência aos alongamentos expressivos que do texto espontaneamente te do grupo, e as demais perdem, pelo menos em parte, a sua força, bai-
xando a subtônicas. É o que acontece em conjuntos de nome com qua-
emergem. Assim, impõe-se uma vogal longa, com altura ascendente-des-
lificativo, de nome com adjunto nominal, de verbo com complementos
cendente, no adjetivo só da exclamação com que se abre um verso de
modificadores essenciais: o belo livro /ube'lulivru/; o livro de Pe-
Raimundo Correia:
dro fuli'vrudipe'dru/; falei zangado [faley'zanga'du/.
“E ela tão só! ... Já pende fatigada,/ cheia de sono a
A mesma subtonicidade, em virtude do mesmo ritmo acentual
sua fronte linda” (H-122).
progressivo, aparece em vocábulos compostos, quando nitidamente sen-
tidos como tais, e até em derivados como nos advérbios formados com
Uma duração regular, sem acento tonal, com outro ritmo dentro
do mesmo metro, seria a da informação singela, possibilitada numa fra- o sufixo mente. A sílaba tônica radical se reduz a subtônica, mantendo
se em que o poeta desistisse da forma exclamativa: até, no caso de /ê/ ou /0/ aberto, este seu timbre, que se fecharia meca-
nicamente em posição átona (/formo'samen'ti/).
“Ela está só e pende fatigada, / cheia de sono a sua
fronte linda”. Já por aí se vê que a estilística fônica tem duas brechas para atuar
no âmbito da acentuação intensiva. De um lado, pode dar tonicidade a
Em referência à acentuação, o efeito estilístico não depende ape- uma partícula átona, em que se concentra a emoção ou o impulso voliti-
nas, aliás, da altura. O acento de intensidade também possui significa- vo: “Venha para aqui”, com a preposição pronunciada /pára/ de /a/ tô-
ção expressiva. nico e aberto, carreando um apelo incisivo. De outro lado, pode elevar a
tônica plena uma sílaba feita subtônica pela sua posição no sintagma:
Para compreender essa circunstância, é preciso atentar no papel “Um belo livro!”, com a força de emissão de be- em predomínio sobre a
exato da intensidade como elemento fonológico ou fonêmico. de li- numa inversão do ritmo acentual progressivo.
34 J. MATTOSO CÂMARA JR. CONTRIBUIÇÃO À ESTILÍSTICA PORTUGUESA 35
Em poesia, esse efeito ressalta imperativamente, impondo-se à lei- Fonologicamente, as sílabas iniciais átonas só apresentam, com
tura, quando o grupo fonético é cindido pela terminação do verso; as- efeito, a rigor, uma atonicidade relativa. Nelas há, por assim dizer, um
sim, o enjambement (ou encadeamento, se preferirmos a tradução, ado- resíduo de intensidade, que se torna bem sensível em cotejo com as áto-
tada por exemplo por A. Soares Amora) (LIII-142) é um processo de nas finais. É esta diferença que valoriza mais em posição proclítica do
que dispõe o poeta para fazer sentir, mesmo na página escrita, o pro- que em posição enclítica (como veremos adiante) o pronome átono
pósito de uma intensidade de caráter estilístico. adjunto ao verbo.
Raimundo Correia ilustra bem o enjambement a serviço dessa fi- Ora, o intento estilístico pode exagerar a situação fonética normal
nalidade expressiva em dois versos que aqui se colhem quase a esmo. e dar um apreciável acento intensivo à sílaba inicial de uma palavra, con-
centrando expressividade na raiz vocabular: “É formosa! /&for'mô'za/”.
Num deles ressalta emotivamente a preposição para, cuja primeira
sílaba se faz tônica, recebendo o icto métrico de sílaba final de verso, Numa sílaba inicial nestas condições a incidência de um icto mé-
e com um /a/ tônico e aberto passa até a rimar com o qualificativo cla- trico torna, também aqui, muito clara a inesperada tonicidade de fundo
ra enunciado antes: emotivo. É o que sucede no seguinte decassílabo sáfico de Augusto dos
Anjos:
“Para / dos deuses estudar a língua . . .” (H-180).
“Na ogiva fúlgida e nas colunatas” (C-149).
No outro o qualificativo infinda no interior de um sintagma, on- 4 8 10
de normalmente ficaria subtônico, concentra a emoção em virtude da
intensidade plena, também nitidamente imposta pela posição final no 3. Variantes estilísticos.
verso:
Outra tarefa típica da estilística fônica é o exame e a interpreta-
“Cerrase a noite em toda a curva infinda / dos ção do queto Círculo de Praga chama os variantes estilísticos. Entende-
céus...” (H-122). se com isso a alteração articulatória, de vogais ou consoantes, que não
interfere com a função distintiva de qualquer delas, ao mesmo tempo
Olavo Bilac, por sua vez, obtém o mesmo resultado com amargu- que envolve uma carga afetiva. O estilo aproveita, neste caso, o campo
radamente, onde exterioriza melhor o sentido doloroso do advérbio pe- de variação possível que cabe a cada fonema no quadro geral da língua.
la reelaboração acentual, fazendo recair na sílaba que seria normalmen-
te subtônica, o 2º icto métrico de um decassílabo sáfico: É o que sucede, quando emitimos o /r/, em determinadas circuns-
tâncias, com uma intensificação de vibrações, que lhe aumenta a dura-
“Rios, chorais amarguradamente” (F-300). ção e o “rolamento”,
4 8 - 10
Já o sibilo maior do /s/ ou do /z/, em posição pré-vocálica, ou o
Há, entretanto, uma intensidade expressiva ainda mais inesperada sibilo puro, sem efeito chiante, em posição pós-vocálica, classifica-se an-
e sutil. É a que corresponde ao acento inicial de insistência tão notável e tes como um traço permanente de indivíduos ou grupos regionais, sem
típico em francês. se associar com um estado dalma ou um impulso volitivo. É, portanto,
36 J. MATTOSO CÂMARA JR. CONTRIBUIÇÃO À ESTILÍSTICA PORTUGUESA 37
do ponto de vista da expressão, irrelevante mesmo quando decorre de o /1/ velar, que tem com a semivogal certa semelhança fonética. A
um esforço em esporádicas situações formalísticas, para parecer bem fa- existência das duas combinações-=- com /w/ e com /I/ — só persiste ho-
lante. je depois de vogal anterior, com em mau e mal, viu e vil, tendendo
elas — numa evolução noutro sentido — a-confluirem, mediante a vo-
calização do /1/.
Nas consoantes plosivas, de maneira geral, é um traço estilístico o
aumento da força articulatória, A impaciência nervosa pode revelar-se, Entretanto, dentro da estilística fônica, é preciso levar em consi-
por exemplo, no /b/ da exclamação — “Ora bolas!” por uma pressão la- deração um ditongo /ow/ em contraste expressivo com /o/ fechado. A
bial maior e um abrimento mais brusco, que acarreta até um leve sopro grafia, firmada pela tradição, não entra aqui evidentemente em linha de
ou aspiração. Assim, dentro da estilística fônica, podemos falar, para o conta. Qualquer palavra com /o/ — quer se escreva o, quer se escreva
português, numa espécie de plosiva enfática. ou — desdobra-se numa distinção estilística /o/ — /ow/, de sorte que
uma pronúncia /pow'di/, por exemplo, ao lado de /po'di/, para o pret.
Mais curioso ainda é, no âmbito do vocalismo, o contraste estilís- perf. de poder (escrita ortodoxa pôde), revela uma especial intenção
tico entre ditongo e vogal simples, que se surpreende em dois casos pelo enfática. Por isso, os nossos poetas rimam sistematicamente roxo e
menos, frouxo, louca e boca, avô e vou, enquanto a recitação oscila entre o di-
tongo e a vogal simples, de acordo apenas com a atitude estilística, em
Um deles parte da indistinção fonêmica entre /o/ fechado e o di- cada par desses tipos de rima.
tongo /ow/. Normalmente, tanto em Portugal quanto no Brasil, o diton-
go soa reduzido a vogal simples, e já não se pode falar na oposição do Dos demais ditongos decrescentes, aqueles em que figura a semi-
tipo — popa e poupa. A hesitação gráfica no pret. perf. de poder, que vogal /y/ (pai, lei, mói, boi, fui), em contraste com a vogal simples, pa-
vem de longe, (póde e poude), é disso um índice bem eloquente, Daí, a ra distinguir palavras (cf.: pá e pai, mó e mói, lê e lei), sofrem uma neu-
teridência popular a estabelecer a metafonia /o/ — /ô/ (do tipo — /ro- tralização neste contraste diante de consoante palatalizada. É que a pa-
lar'/ com /o/ fechado e átono — /rô'lu, rô'la, ró'lã/ com /ô/ aberto tôni- latalização, que produziu tanto as chiantes quanto as líquidas molhadas
co) em verbos com /ow/, como roubar. em português, decorreu historicamente do contacto com um /i/ assilábi-
co, e sincronicamente há uma correlação, por assim dizer, necessária en-
Assim, no quadro fonêmico dos ditongos já não figura, na realida- tre a semivogal e a consoante palatalizada.
de, o ditongo /ow/.
Com chiante pós-vocálica, como nos plurais dos nomes, a 'articula-
ção do iode é um acompanhamento mecânico de vogal, confundindo-
A pronúncia corrente, entre nós, do numeral doze, é de outra or-
se — pás e pais, alemãs e alemães. Daí, uma série de rimas com azuis e
dem. A articulação é aí nitidamente /dol'zi/, e parece assim tratar-se,
luz, traz e mais, vãs e mães, ou uma cacografia treis — tão radicada na
portanto, da sobrevivência de uma forma dialetal arcaica, saída da evo-
nossa tradição tabelioa e burocrática — em analogia com seis, justamen-
lução do /d/ pós-vocálico (duodecim — dodzi — dolzi), como em julgar
te porque não se sente contraste acústico da vogal simples para diton-
(indicare), melga (medicam), malga (madiga, metátese de magidam),
go entre uma e outra palavra.
portalgo (portalicum); é o mesmo /1/ velar de solto, solto, culto.
Do ponto de vista fonético, a diferença é irrelevante, como PrOv ai a de Quintiliano a respeito do /m/ — “littera mugiens”, que (confirma
Marouzeau) convém muito naturalmente ao mugido dos rebanhos e de
indiretamente as hesitações gráficas — pexe (arc) e peixe. baxo (arc)
e baixo, meixer (arc. e pop.) e mexer. feichar (pop.) e fechar. maneira geral à expressão de um ruído surdo (XXVII-28).
À estilística fônica portuguesa cabe apreciar o caráter espontâneo Alhures, situando-se no que chamaríamos com Porzig a transfe-
expressivo das nossas vogais e consoantes, e neste particular são apro- rência sonora e a correspondência articulatória, aprecia o foneticista
veitáveis os testemunhos colhidos em outras línguas a respeito dos sons
da fala análogos aos nossos.
(4) Sabe-se que a fonética acústica tem sido postergada desde os princí-
pios dos estudos fonéticos no século passado. Só agora está desenvolvendo-se em
O critério acústico em fonética — ao contrário do articulatório, bases seguras (cf. especialmente a monografia sobre Fonética Acústica de Martin
que mais diretamente rege os estudos modernos nessa disciplina —, tem Joos) (XVIII), possibilitando o aparecimento de uma fonêmica pautada em con-
sido levado, por propósitos de nomenclatura principalmente, a ponderar trastes acústicos, que tem sido um dos grandes empenhos de Roman Jakobson.
Daí se poderá ascender a uma estilística fônica sistematicamente acústica, que
a impressão auditiva que tende a despertar um fonema. se deixa entrever nos Preliminares para a Análise da Fala, de Jakobson, Gunnar
Fant e Morris Halle, (relatório de suas pesquisas no Laboratório de Acústica
É o que já tinham feito os antigos gramáticos com os nomes de si- do Instituto de Tecnologia de Massachussetts) se partirmos dos contrastes aí
metodicamente estabelecidos para os fonemas: estridentes — doces, compactos —
bilantes para o /s/ e o /z/, chiantes para /x/ e /j/, vibrante e rolado para difusos, graves — agudos, cheios — aflautados (ing. flat), finos — amplos, tensos —
o /r/, líquidas para o /r/ e o /1/, ou com observações esporádicas como relaxados (XVI — 23, 27, 29, 31, 36).
40 J. MATTOSO CÂMARA JR.
CONTRIBUIÇÃO À ESTILÍSTICA PORTUGUESA 41
francês o valor dos fonemas para evocar estados dalma, aspectos natu-
Se lhe examinarmos de perto a configuração fonética, veremos,
rais concretos ou concepções abstratas, como, entre muitos
outros, os por exemplo, que em rolar as duas consoantes líquidas do radical cor-
sentimentos de cólera, admiração, dor, melancol
ia, as sensações de ar- respondem na sua articulação à idéia de um movimento desimpedido e
repio, roçamento, ronco, estalo, ou as idéias de fluidez,
lentidão, peso contínuo, e o arredondamento labial do /o/ se casa bem com a forma
amplitude, tenuidade (VIII-193ss.).
dos objetos que rolam. Já em clarim temos um leve efeito imitativo,
Tal estudo, entretanto, fica insatisfatoriamente vago, relativo e para o qual é responsável o /i/ agudo, secundado pela sonoridade do
precário, quando se circunscreve apenas aos fonemas isolados. /a/ e pelo grupo consonântico /cl/, onde a plosiva lembra o som que
Como
acentua ainda Grammont, é preciso que a acepção da palavra em que irrompe e a líquida o seu prolongamento ecoante e fluido. Luar é um
eles se acham, favoreça o efeito que está latente em cada um deles caso típico de transferência sonora: idéia do claro e do brilhante no /a/,
(VII-395). Quando isso acontece, a palavra se nos impõe na sua e a de uma doce fluidez no /I/, que a significação da palavra ajuda a evo-
motiva-
ção sonora, e à sua significação representativa se acrescenta
uma signi-
car. Compare-se-lhe, em contraste, noturno com a vogal “escura” por
ficação estilística. excelência, que é o /u/, enquadrada em sons consonânticos adequados,
como são as nasais e as plosivas surdas.
Sapir mostrou, por sua vez, quanto aquela pode depende
r desta É evidente que esses valores sônicos não ficam aderidos perma-
num inquérito metódico que partiu de vocábulos inventad
os, como nentemente às palavras em que assim os surpreendemos. É preciso que
mila, mela, mini, wela etc. É curioso, para nós, anotar o efeito
depreen- o estado psíquico do sujeito falante e o dos ouvintes tenham transposto
dido em alguns grupos — quando fictícios em inglês mas corresponden-
do com bastante aproximação a palavras portuguesas tradicio
a linguagem para além do plano meramente intelectivo. A frase pura-
nais, como mente informativa é neutra a esse respeito, e nela a motivação sônica se
mola (oceano à noite), mala (oceano resplandecente) e mina, cuja
indi- esvai.
cação de “água escorrendo por uma ravina através de rochas espalha
das
pelos lados” justificaria estilisticamente a nossa locução —
água de mi-
na (XLIX-71). Ao contrário, na poesia lírica as palavras a rigor nunca valem ape-
nas pelo seu significado representativo; em todas, ou quase todas, emer-
É óbvio que se tem de levar em conta (como fazem Grammont, ge o elemento sensorial acústico, e não raro a comunicação lingiúística
Marouzeau e Sapir) que “nem sempre há acordo sobre a qualidade da repousa praticamente nele. Nem sempre — é verdade — há uma motiva-
impressão auditiva” (XXVIII-18) por causa da base individual, mais ou ção sonora propriamente dita; mas sempre há, pelo menos, um conteú-
menos subjetiva, que é em princípio a do estilo. do estético determinado pelos sons constitutivos do vocábulo.
Há, não obstante, apreciável homogeneidade emocional numa co- O meio mais simples para obter efeito estilístico com o emprego
munidade lingiística, para que se possa falar, ainda aqui, de processos de palavra sonicamente adequada é recorrer às onomatopéias, isto é, aos
estilísticos coletivos. elementos vocabulares ainda à margem do sistema intelectivo, propria-
mente dito, da linguagem. Neles, que estão situados no pólo oposto das
palavras tradicionais de um simbolismo em princípio arbitrário, en-
Ninguém deixa de sentir o valor expressivo de um grande número contra o seu campo natural de exteriorização a comunhão psíquica com
de palavras portuguesas.
o mundo das coisas.
42 J. MATTOSO CÂMARA JR. 43
CONTRIBUIÇÃO À ESTILÍSTICA PORTUGUESA
— donde pelos significantes fônicos se depreende a imagem pictórica: centra na palavra longa e sugestiva paquidermes, apoiada no significado
fluidez (/1/ de todos os vocábulos significativos) num fino traço (/i/ de do qualificativo colossais. Então, irrompe o barulho claro dos galhos e
oscila) de um brilho tênue (/f/, /x/, /m/ e vogais de timbre fechado Jof, folhas que estalam, com os /a/ brilhantes em enfiada, de envolta com o
/u/, /e/) em movimento oscilante (/tr/ e caráter proparoxítono de trê- efeito imitativo do grupo consonântico /tr/ (“a estralada das árvores”).
mula). As palavras centrais luz, flecha, trêmula e oscila, pelo seu contac- Finalmente, o retorno à soturnidade primeira com os sons do verbo
to e pelo sentido global que formulam, estão aproveitadas ao máximo derruba, que fecha a descrição.
no valor expressivo que a sua própria configuração fônica propicia.
É a motivação sonora que especialmente justifica do ponto de vis-
Talvez seja o soneto Banzo a obra prima de Raimundo Correia ta estilístico a rima. O poeta se fixa, para ela, nos sons que a sua inten-
neste sentido: ção poética condiciona, ou num vocábulo que é praticamente evocado
pelos sons que encerra. O pensamento lógico da poesia decorre não raro
“Visões que nalma o céu do exílio incuba, / mortais visões!
dessa atmosfera sônica, que se estabelece por um impulso de exteriori»
Fuzila o azul infando .. . / Coleia, basilisco de ouro onde-
zação anímica; e se pode falar então, com Sapir, em — “O Valor Heu-
ando, / o Níger . . . Bramem leões de fulva juba ...
rístico da Rima” (XLIX-496.9). A insistência no som o torna, por sua
Uivam chacais... Ressoa a fera tuba / dos cafres, pelas
vez, o centro emotivo da composição e prepara a ambientação emotiva
grotas retumbando, / e a estralada das árvores, que um ban- do leitor ou do ouvinte.
do / de paquidermes colossais derruba .. . (H-189).
Há aí dois planos de motivação sonora: o plano visual da paisagem É um estudo estilístico dos mais fecundos o exame, conduzido
africana, sobre o qual, como sobre uma tela de fundo, se evocam os ruí- nestas diretrizes, das rimas de um determinado poema. Assim, na Tris-
dos da selva, a constituir o plano auditivo. teza de Momo de Raimundo Correia (H-88), os dois quartetos, que des-
crevem a risada que abala o Olimpo ante o espetáculo inesperado de
A palavra incuba marca de início a tonalidade soturna e sombria Momo chorando, põem em alternância as rimas /adas/ e /ia/, marcando
com a sua vogal nasal (velada), o /u/ (escuro), a plosiva velar (máte, co-
em imitação sonora os dois sons típicos e extremos de uma gargalhada
mo diria Jakobson) e o choque mole do /b/ labial. O /u/, repetindo-se
(ha, ha, ha... hi, hi, hi...) Nos tercetos, para acentuar os apupos, te-
insistentemente num Leitmotiv wagneriano, de par com outras vogais
mos a rima em /oa/ (ho, ho, ho . . .) ao lado de uma rima /aya/, em que
graves, como a posterior nasal de infando e bramem, abafa a luminosi- os dois /a/ interrompidos pelo iode assinalam, por correspondência ar-
dade áurea do rio, e por tudo paira essa cor que tão bem expressa o ad-
ticulatória, um fluxo que se expande pouco a pouco e por fim se espa-
jetivo fulva, cujos fonemas se valorizam pelo contacto com os de juba
lha avassaladoramente:
estilisticamente análogos, mal se entrevê o traço brilhante que corta o
ambiente com o /i/ agudo de fuzila, basilisco e Niger.
“Pela primeira vez, ímpias risadas/ susta em prantos o deus
da zombaria:/ chora, e vingam-se dele, nesse dia,/ os silvanos
No plano da evocação sonora, é igualmente a vogal grave que do- e as ninfas ultrajadas;/ trovejam bocas mil escancaradas,/
mina até quase o fim da descrição (uivam, tuba, ressoa, retumbando), e rindo; arrombam-se os diques da alegria;/ e estoura descom-
nela se perde o estridor do grito dos chacais, marcado discretamente posta vozeria/ por toda a selva, e apupos e pedradas. . J
por um só /a/ tônico brilhante. Mas a passividade soturna do ambiente é Fauno o indigita; a Náiade o caçoa;/ Sátiros vis, da mais in-
quebrada pela passagem dos elefantes, cuja massa pesada e tarda se con- digna laia,/ zombam. Não há quem dele se condoa!/ E Eco
46 J. MATTOSO CÂMARA JR. CONTRIBUIÇÃO À ESTILÍSTICA PORTUGUESA 47
Em cão, por exemplo, entra uma carga afetiva de antipatia e vio- ESTILÍSTICA LÉXICA.
lência que torna a palavra mais própria do que cachorro para o insulto
e a apóstrofe atrevida, dentro da dicotomia sinonímica do uso brasilei-
6. Tonalidade afetiva.
ro. Aqui intervêm a mais, todavia, fatores de outra ordem, que dizem
respeito a uma estilística das significações, ou estilística léxica.
Do ponto de vista saussuriano, a palavra tem um significado inte-
lectivo, em que se apóia a função representativa da linguagem. Cão é um
E assim somos conduzidos a encarar um segundo aspecto do estu-
nome de um animal quadrúpede, que concebemos como uma classe de
do do estilo.
seres distinta de outras, como a dos gatos, a dos coelhos, a dos carncei-
ros, a dos lobos e assim por diante.
tas, isto é, designativas de conceitos abstraídos das coisas concretas, não ções. Assim, a madrasta fica adstrita uma repugnância afetiva, malgrado
há a rigor coincidência semântica nas múltiplas línguas individuais de as boas madrastas que tem havido e continuará a haver pelo tempo em
uma comunidade lingiúística. fora; e tirano foi tão contaminado pela carga do ódio, que o próprio
significado intelectivo se alterou, e o historiador que fala objetiva e tec-
o mais importante, contudo, neste particular, é que ao significado nicamente da “tirania da Grécia antiga”, arrisca-se a não ser compreen-
propriamente dito se adjunge em cada palavra uma tonalidade afetiva, dido.
que funciona preponderante na Kundgabe e no Appell. A circunstância
de as duas funções estarem socializadas indica que essa tonalidade é É, essa tonalidade afetiva, resultante de uma sensação convencio-
quase tão coletiva quanto a representação intelectiva que na palavra se nalizada do ser designado, que determina o que Svend Johansen chama
encarna. Do contrário, o apelo cairia no vácuo e a manifestação psíqui- expressivamente “o mito coletivo das palavras” (XVII-231). Do seu
ca não encontraria a simpatia exterior que a estimula e até a orienta.
ponto de vista de estrita estilística literária, à margem da lingiística, ele
acentua o perigo de ceder o poeta a esse “mito” e assim cair no lugar
Vimos, ao tratar da estilística fônica, como a configuração sonora
comum, com grave dano para a sua “criação” estética. Contrapõe-lhe,
pode concorrer para uma tal tonalidade. Mas, desde a Parte I deste
trabalho, ficou ressalvado que há outras fontes para isso, provindas do por isso, “'o mito individual”, que recria esteticamente a palavra e a
“aclimata” em nova função. (XVII-232). O “mito individual” só fun-
próprio conteúdo vocabular.
ciona, entretanto, (ressalvemos por nossa vez) se é passível de sociali-
o
zar-se; ou, em outros termos, se contém um ponto de contacto com
Se procurarmos analisar mais de perto o fenômeno, verificaremos
“mito coletivo”, que lhe permite exercer o seu apelo eficientemente.
que o caracteriza certa complexidade imanente.
Dizemos, então, que a palavra empregada é sugestiva ou “incantatória”,
isto é, desperta em nós uma tonalidade afetiva inesperada e nova.
Logo de início ressalta a circunstância de que o vocábulo sofre o
contágio das sensações agradáveis ou desagradáveis que decorrem das
É na tonalidade afetiva que está o segredo do efeito estético dos
próprias coisas: céu tem a tonalidade de doçura e encanto; mar, de ma-
nomes próprios históricos ou literariamente clássicos. Há às vezes, em
jestade e trágica magnitude; da mesma sorte que em abismo transuda
parte, uma ação decorrente da configuração fonética, mas sempre, para-
um frêmito de pavor e em paixão um arrebatamento doloroso.
lelamente e em maior grau, a de aderência de lembranças extralingú ísti-
cas. Exemplos muito típicos são os nomes geográficos de lugares a que
Sucede, porém, que as sensações que as coisas do universo desper- se atribui encantamento paisagístico, delícia climática ou sedução míti-
tam não são iguais para todos os indivíduos nem iguais ou sequer se- ca; são eles que dão halo poético a — “a brisa de Misora” de Castro Al-
melhantes no correr de uma vida individual: o mar infunde ora encan- ves (G-140) e a — “as barbacãs e torres de Castela” de Alphonsus de
tamento, ora respeito submisso, ora medo franco, ora revolta; o abis- Guimarães (L-257). Os poetas parnasianos, como anteriormente Victor
mo apavora mas também atrai; a paixão é muitas vezes um gozo íntimo Hugo em França e Castro Alves no Brasil, exploraram ao máximo a to-
da alma; e do próprio céu disse o poeta, diante de uma criança morta nalidade do nome próprio, histórico ou lendário; e Bilac achou-a sufici-
ser — “aquele ninho que as mães adoram mas amaldiçoam”. ente para criar uma chave de ouro de soneto:
Daí não resulta uma tonalidade heterogênea e incerta, no sentido «... ao lado / do pendão de Balduíno, imperador do Orien-
absoluto, porque se dá na língua uma como que decantação de sensa- te” (F-241).
52 J. MATTOSO CAMARA JR. CONTRIBUIÇÃO À ESTILÍSTICA PORTUGUESA s3
A boa compreensão da tonalidade afetiva pode mostrar-se Num trabalho anterior, já tentei mostrar como Machado de Assis
muito procedeu no Quincas Borba diante da sinonímia brasileira entre cão e
útil na interpretação do fenômeno da sinonímia.
cachorro (XXX-298ss.56ss.72ss.).
É claro que os sinônimos não se distinguem apenas estilistica-
mente. São inegáveis quase sempre leves diferenças de ordem Não há entre nós a distinção significativa, que reserva em Portugal
intelecti- o segundo desses nomes para “o cão novo e pequeno”, como registra o
va, nas quais se baseia a opinião corrente de não haver sinônimo
s perfei- Dicionário de Cândido de Figueiredo (VI). Em compensação, o primei-
tos. É o que Karcevski coloca em termos mais exatos, quando
os faz re- ro é adquirido, segundo a terminologia de Bally, já aqui citada, e só apa-
sultar da generalização conceptual que está no cerne da linguage
m como rece transmitido na acepção de diabo: é o termo tradicional da língua li-
meio de comunicação social: “confundindo” duas situações
por fazer terária, clássico, consagrado. Assim, enobrece a frase e dá-lhe um cunho
abstração do que as distingue, tornamos intercambiáveis os
símbolos literário ou científico, ao mesmo tempo que se presta para os sentimen-
correspondentes (XXI-158).
tos fortes do ódio e do desprezo. Ao contrário, cachorro é a palavra fa-
É preciso atentar, porém, em que a classificação intuitiva e parce- miliar, que primeiro conhecemos em criança, a que aprendemos a bal-
lada do mundo das coisas — fundamento último do vocabulár buciar para designar o animal do nosso meio doméstico, com quem pu-
io de uma
língua — não favorece a delimitação rigorosa de termo a lávamos e corríamos. Não tem valor científico, e é preferida para frisar
termo, que a
gramática, em regra a posteriori, estabelece segura de si. Há o elo entre o animal e o dono, aproximando sentimentalmente aquele
necessaria-
deste, em vez de opô-los na escala zoológica.
56 J. MATTOSO CÂMARA JR. CONTRIBUIÇÃO À ESTILIÍSITCA PORTUGUESA 57
Daí, a adequação estilística das duas palavras no seguinte trecho, fica estilisticamente, por exemplo, cliffs, em vez do port. penhasco, na
onde cão exterioriza a idéia “feia”, em Rubião, de que o Quincas Bor- frase entusiástica de Joaquim Nabuco sobre a Inglaterra:
ba tivesse fugido, prejudicando-o irremediavelmente, e cachorro a idéia
“.. . inatacável nos seus altos cliffs brancos, a cujos
“extraordinária” de que o animal tivesse sido vítima de um malvado, o
pés o mar se abre como uma trincheira” (P-108).
que naturalmente comove o dono perplexo:
dramaturgo a palavra beiço, cuja tonalidade afetiva é para nós, como vi- sividade dos termos substituintes. As velas impressionam a nossa sensi-
mos em Raimundo Correia, tão diversa de lábio: bilidade pela sua evocação sobre a vastidão azul dos mares; o ferro é o
metal que caracteriza uma das tradicionais idades do mundo e traz em si
“Não é assim, meu irmão, não te cegues com a dor, a vibração dos males e das crueldades que nela se consubstanciam (“de
não te faças mais infeliz do que és. Já não és pouco, meu duro est ultima ferro”); a coroa é o nome de um objeto precioso e hie-
pobre Manuel, meu querido irmão! e Deus há de levar em rático, que fala à imaginação visual.
conta essas amarguras. Já que te não pode apartar o cálix
dos beiços . . .” (B-63). Em referência às metáforas, a qualidade estilística ginda se torna
mais óbvia.
Em matéria de fraseologia, essas diferenças de tonalidade entre os
dois povos, não menos que os desencontros entre lusismos e brasileiris- Para prová-lo bastam alguns ligeiros exemplos.
mos, criam os desajustamentos que justificam a tese de Aires da Mata
Machado sobre a existência de uma “fraseologia diferencial luso-brasi- Descreve-se como “um desfilar de formigas”” um comboio de au-
leira” (XXIX-57ss.). tomóveis vistos do alto, porque os nomes de animais estão naturalmen-
te envolvidos por um halo de simpatia (ou, noutros casos, repugnância)
e a máquina assim se entrosa no mundo dos sentimentos humanos, que,
8. A linguagem figurada. como mostram as fábulas e o totemismo, se estende ao mundo da fau-
na. Justamente por isso, dificilmente se ouvirá alguém descrever a for-
Outra parte do estudo semântico em que é imprescindível o pon- migas em marcha como um comboio de automóveis, porque seria pre-
to de vista estilístico, é o das chamadas figuras de linguagem. Concen- ferir a uma palavra cheia de sugestões latentes outra que apenas intelec-
tremo-nos, para algumas rápidas considerações, na metonímia e na me- tualmente rotula. Ora, no âmbito da informação pura, a possibilidade
táfora, incluindo na primeira, com Wolfgang Kayser entre outros, o que da primeira metáfora pressupõe a da metáfora recíproca.
se entende por sinédoque (XXI1-113).
É a tonalidade afetiva implícita nos nomes de animais que torna
É evidentemente chegar a menos do que meia verdade explicá-las, tão viva e sedutora a apresentação de uns pés femininos, patinhando na
no plano meramente intelectivo, pelas associações de idéias e pelo esfor- chuva, como um —
ço para ser claro e incisivo na informação.
“par de pombos, que a ponta delicada/ dos bicos metem
Trata-se em regra, muito mais do que isso, da substituição de uma nágua e doudejantes/ bebem nos regos cheios da calçada”
palavra com forte tonalidade afetiva a outra mais ou menos neutra nes- (H-109).
te particular. A relação entre os significados e as semelhanças implíci-
tas, que justificam respectivamente as metonímias e as metáforas, O efeito de “branca açucena”, “clícia mimosa”, “crisântemo de
atuam secundariamente na enérgeia lingúística que as cria. amor”, na poesia lírica, está analogamente em aproveitar o carinhoso
encanto em que se envolvem os nomes das flores. Assim, “talhe de pal-
Velhas metonímias, como vela por navio, ferro por espada ou meira”, dito de um porte feminino, não pode ter qualquer valor descri-
punhal, coroa por realeza, se beneficiam, antes de tudo, com a expres- tivo; a tomar a locução como informação objetiva, só teríamos a mais
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desagradável das imagens. A sua função é apenas sugestiva, de acordo as significações que a eles se prendem. “É curioso” — observa a este pro-
com a nomenclatura de Paulhan já aqui citada. Em outros termos, a pósito Rodrigues Lapa — “que, de todos os derivados de livro, mencio-
tonalidade de atração e graça, concentrada na palavra palmeira, trans- nados pelos dicionários usuais, só dois não têm significado afetivo. São
põe-se para a mulher, sem haver o mais leve intento de fazer coincidir eles: livrete = livro pequeno, cademeta, e livreiro = o que trata com
as duas representações verbais — a da planta e a do ser humano. livros. Todos os outros têm, mais ou menos, valor sentimental” (XLVI-
110).
Quando a metáfora não se realiza, e, em vez da substituição de um
símbolo vocabular pelo outro, se fica no plano da comparação explícita Assim se destacam em nosso espírito certos sufixos como pode-
(A é como B, A parece B, A dir-se-ia B), O propósito informativo apare- rosos centros de carga afetiva, e o seu conteúdo é quase só nisso que se
- ce muitas vezes mais nítido e até preponderante. O cotejo pode ter, resume. Como elementos de formação vocabular, que essencialmente
antes de tudo, em vista esclarecer um conceito confuso ou vago por ou- são, a sua posição no interior do sistema lingúístico é muito mais mór-
tro facilmente apreensível. fica do que semântica: servem o mais das vezes, antes de tudo, para
transpor um radical de uma categoria de palavras para outra, e apenas
Ainda assim, entretanto, é a tonalidade afetiva no segundo termo um pequeno número deles — e ainda assim de maneira um tanto precá-
da comparação a causa última de ele ser verdadeiramente fácil; a emo- ria, inconsistente e vaga — encerra significação intelectiva, como em
tividade, ainda sopitada diante do primeiro termo, desperta então e es- douro (idéia nominal do lugar da ação), -ada (idéia nominal de golpe),
timula a inteligência. -itar (aspecto verbal iterativo) -ecer (aspecto verbal incoativo).
Por isso, para nos dar a idéia nítida do caráter retraído, agressivo Essa vacuidade nocional facilita o fenômeno da saturação afetiva,
e enérgico do Conselheiro Zacarias, nos empolga Joaquim Nabuco com e faz de muitos sufixos portugueses uma série de vigorosos elementos
a imagem de um navio misterioso, poético em última análise:
estilísticos. Haja vista o sufixo -ice, que “revela em geral forte afinidade
eletiva por adjetivos que exprimem vícios ou defeitos pessoais”
“A sua posição lembra um navio de guerra, com os
(XLVII-7), e envolve a informação em repugnância e desprezo, por
portalós fechados, o convés limpo, os fogos acesos, a equi-
meio de vocábulos dos mais “carregados”, como modernice, bachareli-
pagem a postos, solitário, inabordável, pronto para a
ce, gramatiquice.
ação” (Q-117).
A exploração do valor estilístico dos sufixos é bem apreensível “queima como ferrete” (naturalmente tendo em vista canalha, genta-
na oratória política, no jornalismo cotidiano e na gíria lato-sensu. lha, emporcalhar e assim por diante) (E).
e É variantes mórficos (anões: anãos; colorir: colorar: deságua: desa- Sabe-se como se tem debatido o emprego do infinitivo pessoal,
gua). : em face do impessoal, com resultados clarificadores muito pouco pro-
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Já no caso da partícula proclítica, a sílaba átona é interpretada como de A diferença prosódica e a diferença de junção sintagmática entre
fim de vocábulo, quanto ao quadro fonêmico, e, como nas demais síla- o pronome enclítico e o proclítico explicam por que a próclise oferece
bas átonas finais, dá-se a neutralização (al. Aufhebung, fr. neutralisa- maiores oportunidades à Kundgabe e ao Appell e tem tanta preponde-
tion) do contraste /e/-/i/, /o/-/u/ em proveito de um elemento arquifo-
rância na língua cotidiana.
nêmico /i/ e /u/, respectivamente. É o que logo se destaca, quando se
comparam as pronúncias de — me tente /miten'ti/ e metente (verbo
Na linguagem literária intervém um motivo, ainda de ordem esti-
meter) [meten'ti/, te será jtisera'/ e tecerá [tesera”/, se pára /sipa'ra/ e
lística, que fortalece um tanto o prestígio da ênclise. É a sensação do
separa [sepa'ra/, o lavo fula"vu/ e Olavo [ola'vu/. majestoso, do solene, do hierático, que já vimos estar associada com os
proparoxítonos em português.
Ora, a partícula, mantendo a sua individualiade em próclise (co-
mo sucede analogamente com as preposições e as conjunções), oferece Tocamos assim com o dedo á verdadeira causa do uso tantas ve-
as possibilidades mais inesperadas; haja vista uma pausa intencional en- zes incontido da ênclise no estilo de José de Alencar. É uma faceta da
tre ela e o verbo para destacar-se numa autonomia nítida, que marca a sua atitude romântica de fugir à vulgaridade através do refinamento es-
personalidade de quem por ela é designado. tético. Trata-se de um desses detalhes de linguagem que, no seu estudo
sobre Lingiística e História Literária, Leo Spitzer põe em foco como
ponto de partida para a exploração integral da psique de um escritor,
Não é por acaso que, na linguagem cotidiana, a próclise é de regra
na base da coordenação do seu sistema nervoso, do seu sistema filosófi-
com a partícula me em frase imperativa: “Me dá isso!”. É que assim se
co e do seu sistema estilístico (LV-135); e, em princípio, poderia ser
consegue pôr estilisticamente em realce a própria pessoa, numa afirma-
utilizado nos moldes em que utiliza Leo Spitzer “a instabilidade e va-
ção da tensão psíquica e da vontade. A construção — dá-me abumbra
riedade dos nomes dados a certos personagens (e a variedade das expli-
o pronome; daí pode resultar em última análise uma possibilidade
cações etimológicas apresentadas para esses nomes)”, no D. Quixote,
para a maior ênfase do verbo — é certo —, o que explica que João Ribei-
(LV-41) para evidenciar o “perspectivismo filosófico” de Cervantes, ou
ro considere a ênclise com o imperativo um índice da atitude volunta-
em que tira conclusões amplas do abuso do qualificativo grande na poe-
riosa e atribua à próclise o caráter de delicada insinuação (XLV-11.12).
sia de Paul Claudel (LV-198ss.).
A interpretação do saudoso filólogo sistematiza uma apenas das possibi-
lidades estilísticas da próclise. E a rigor não colide com a tese de que se
Sob esse aspecto, o gosto da ênclise do pronome átono com for-
assinala, pela individualidade vocabular do pronome, a personalidade
mas verbais paroxítonas (e com as oxítonas por extensão) se entrosa
psíquica do sujeito falante: essa personalidade se destaca como um cen-
com outros traços de composição e de linguagem de Alencar: o vocabu-
tro de interesse permanente, tanto no pedido mais suave quanto na or-
lário delicado e nobre, os neologismos eruditos (núbil, pubescência,
dem mais altiva.
exale adj., rofado, gárceo, enlance, aflar, justificados na Nota Final da
Diva) (A), a poética aclimatação dos termos tupis, a idealização lírica
Também não é por acaso, por outro lado, que os exemplos es- dos tipos femininos, a idealização mítica do índio.
pontâneos mais comuns de ênclise se verifiquem com o pronome de ter-
ceira pessoa (mormente quando se trata de se como índice de sujeito É, a rigor, a mesma motivação estilística que explicará o mesmo
indeterminado), o qual é em regra um objeto de pouco interesse para fenômeno nos nossos poetas românticos. Pode-se, por exemplo, tirar
nele se concentrar o nosso élan interior. da diversa colocação do pronome adjunto ao verbo a interpretação
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mais exata do espírito de dois trechos de Fagundes Varela: solene e nadas pelas forças expressivas da manifestação psíquica e do apelo. Os
majestoso, na enunciação de um desejo transcendente, o primeiro; e o gramáticos normativos falam a propósito em “construções excepcio-
segundo intimista e simples na descrição de um quadro de doloroso en- nais”, e trazem à balha, conforme o caso, o anacoluto ou a silepse: mas
canto: a linguística, do seu ponto de vista de Sírius, concluirá, antes, que ex-
ceção é a frase inteiramente lógica, posta a serviço da informação desa-
1) “Por que não sou a concha / que volve-se na praia?” paixonada e pura. Até num debate doutrinário, qual o das vantagens e
(1-44). desvantagens da propriedade literária, vemos Alexandre Herculano, im-
2) “E a trepadeira espinhosa /que se abraça caprichosa / à perceptivelmente, enveredar pela frase afetiva; para afirmar que — o di;
forca do condenado” (1-175). reito de propriedade não aproveita a um jovem pobre e idealista que se
inícia como escritor —, põe a idéia-sujeito numa exclamação isolada, a
que se segue uma pergunta enfática com a resposta sugerida em seus
12. Lógica sintática e estilo. próprios termos:
É em referência à concatenação dos elementos da frase, ou cons- “O direito de propriedade literária! Que aproveita es-
trução sintática global, que mais se evidencia a importância do impulso se direito a um mancebo desconhecido, em cuja alma se
estilístico. eleva a santa aspiração da arte ou da ciência e para quem, no
berço, a fortuna se mostrou avara?” (M-85).
Da função informativa desenvolveu-se uma disposição interna,
que se pode chamar lógica, em certo sentido, desde que surgiu e tomou Neste particular, a gramática grega soube compreender o anacolu-
corpo paralelamente à lógica formal, modelando-se por esta e não raro to, por exemplo, como um recurso natural de expressão, que se repete a
inspirando-a por sua vez. É um tipo de frase inteiramente intelectivo, cada momento na prosa de Platão, de Heródoto e de Tucídides; e é uma
que encontra o seu campo adequado na informação da língua escrita. ironia que os nossos clássicos, os quais não poucas vezes lhes seguem as
pegadas, sejam hoje utilizados como fornecedores de textos para a “aná-
Acontece, porém, que as exigências da manifestação psíquica e lise lógica”, que, assente na estruturação da frase singelamente informa-
do apelo se emaranham inelutavelmente em toda enunciação; e na tiva, foi elaborada, à margem do estudo vivo da língua, pelo racionalis-
linguagem falada, bem como em muitas ocasiões da linguagem escrita, mo unilateral e severo de Port-Royal.
atenuam e até sufocam o teor informativo. Domina-nos o que se pode
chamar com Wilhelm Havers o “pensamento emocional”, diante do A luta pela construção lógica da frase, em que hoje faz-fincapé o
qual “é raríssimo” “o pensamento que não é influído por preferências, ensino escolar, é útil, por certo, como contribuição para dar ao espírito
sentimentais e afetos” (X1-35). humano a objetividade intelectiva e à sua linguagem a qualidade de in-
formar plena, nítida e conscienciosamente. É preciso não esquecer, en-
Assim se compreende que, ao lado da frase intelectiva, figura a tretanto, que assim se contrariam tendências essenciais da alma o da fa-
frase afetiva num contraste que Bally já pôs no devido realce (1-23ss.). culdade lingúística do homem, e que se faz imprescindível, pois, dar
bastante elasticidade à disciplina da construção sintática para não defor-
Temos então ou construções inteiramente refratárias ao exercício mar e mutilar a capacidade de uma expressão ampla através da formula-
mental da análise lógica a posteriori, ou construções “lógicas” contami- ção verbal.
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Pode-se chegar a um resultado absurdo, por exemplo, quando se O vigor com que a expressividade procura abrir brecha no aspecto
exige das crianças uma absoluta coerência no tratamento em meio à intelectivo da informação, escrita especialmente, transparece no era
riqueza de tipos de referência à segunda pessoa do discurso que se nos volvimento do chamado estilo indireto livre para transmitir palavras de
apresentam em português. A mudança da forma de tratamento é con- outrem,
sequência natural de uma mudança de atitude psíquica diante do pró-
ximo, e pais e mães, no ambiente familiar, dão-lhes espontaneamente o A transmissão intelectualizada de uma asserção alheia se processa
por
modelo justo, ao ralhar severamente com o seu bebê, que esperneia ou pelo estilo indireto escrito, com a cláusula de infinitivo em latim,
ensaia um tapa: “Não, senhor, não quero isso!”. comum na narração aparente mente objetiva de César, ou
exemplo, tão
com a nossa oração integrante. Por meio do discurso indireto comunica-
É, por exemplo, pela variação do tratamento, como procurei res- se uma espécie de pensamento descarnado: “o leitor toma a
sti-
saltar alhures (XXXIII), que Machado de Assis frisa os tons cambiantes to do que disse a personagem, mas escapa-lhe a expressividade ee
de suas atitudes para com o leitor, nas contínuas referências que lhe faz ca, o fraseado típico, o molde sintático das frases citadas” (XXXI-20).
no correr de suas narrativas,
Assim, no Brás Cubas predomina o tratamento de 32 pessoa, mar- O discurso indireto que Bally e Marguerite Lips denominam “Yli-
cando o distanciamento altivo do defunto autobiógrafo em face dos vi- vre”, E. Lorck “discurso vivido” (al. erlebt) e Jespersen “discurso repre-
vos, que lhe aparecem um tanto difusos e desinteressantes; mas o tu sentado” (ing. represented) (XXX1-23), não é mais do que º resultado
intervém incoerentemente, de quando em quando nos momentos de de- de um esforço para fugir a essa contingência da linguagem informativa
sabafo impaciente ante o leitor “obtuso” (XXXIII-80), “ignaro”” sem abandoná-la totalmente no seu teor geral. Pois o discurso direto,
(id-79), ou, sarcasticamente “fino” (id., ibid.). Já na história do D. Cas- que reproduz ipsis-verbis a asserção alheia, procede a uma evocação em
murro, feita em tom de confidência, que o estilo sóbrio do escritor nos que a figura do narrador, como informante, se obumbra.
apresenta à maneira de uma conversação íntima, o leitor é o ouvinte
concretamente visualizado, a quem pelo tratamento de tu Bento San- É, por exemplo, pelo discurso indireto livre, destruindo o elo sin-
tiago aproxima emocionalmente de si; não obstante, aparece um trata- tático e criando um período autônomo, que o “D. Casmurro”, sem sair
mento de 32 pessoa, que por contraste assinala um distanciamento do primeiro plano diante do leitor, consegue nos dar cálido e pv o
momentâneo: apelo de sua mãe ao vizinho Pádua, perseguido pela idéia do suicídio:
“Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos da in- “Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe
credulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já que vivesse. Que maluquice era aquela de parecer que ia fi-
não o obrigou a isso antes” (0-140). car desgraçado, por causa de uma gratificação menos e per-
der um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem,
É que a hipótese da incredulidade e pouca simpatia do leitor para pai de família, imitar a mulher ea filha (0-48).
com a narrativa o afasta afetivamente do narrador e cria um ambiente
coloquial menos íntimo, exatamente como o pai zangado (como há Esta construção sintática, tão tipicamente estilística, é um bom
pouco exemplificávamos) a dizer para o filho — “Não, senhor, não que- exemplo de como se entrosam o elemento individual e o coletivo em
ro isso!” matéria de estilo. Levando em conta o seu uso metódico e geral, Bally e
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