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Recebido em: 21/05/2018 | Aceito em: 23/02/2019 | E-ISSN 1808-2599 |

Performance e documentário 1

de memória afetiva

E-compós (Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação), ISSN 1808-2599, v. 22, jan–dez, publicação contínua, 2019, p. 1–24. http://dx.doi.org/110.30962/ec.1573
Cássio dos Santos Tomaim
Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil

Resumo Introdução
Este artigo propõe uma aproximação entre Desde meados de 1980 acompanhamos
performance e memória traumática e suas
implicações para a narrativa documentária em uma mercantilização da memória, o pas-
primeira pessoa (autobiográfica). A performance sado ou a lembrança do passado, nas suas
é entendida como um comportamento expressivo
capaz de transmitir a memória e a identidade mais diversas formas, tornou-se um pro-
cultural, a partir da valorização tanto do repertório
duto atraente nas prateleiras de livrarias,
quanto do arquivo, como proposto por Diana
Taylor (2013). Nesse tipo de cinema, o testemunho supermercados, nas vitrines dos shoppings,
é da ordem da performance, de uma performance
na televisão e no cinema. O passado histó-
afetiva do documentarista. O teor testemunhal
desses documentários se reveste de um potencial rico nunca esteve tão acessível ou próximo
afeccional, em que o cineasta que narra é também
de nós como nos dias de hoje, porém, esta
afetado pela narração do trauma/passado.
Palavras-chave enxurrada de informações armazenadas
Documentário autobiográfico. e transmitidas pelos diversos suportes
Performance. Memória traumática.
midiáticos ameaça a memória, assim como
nosso conhecimento histórico, uma vez que
“a referência ao passado não se dá de forma
única, em momento algum; mais que isso,
chega-se a uma estrutura sempre mais com-
plexa de superposições e entrecruzamentos
entre diferentes planos da memória: o plano
dos textos, dos objetos remanescentes, dos
vestígios e do lixo” (ASSMANN, 2011, p. 233).

Diante desta sedução pelo tema da memó-


ria, Andreas Huyssen (2000, p. 20-21) faz
o alerta: “[...] não podemos discutir memó-
ria pessoal, geracional ou pública sem
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considerar a enorme inf luência das novas realizador, logo, nem todo documentário
tecnologias de mídia como veículos para que se vale deste tipo de narrativa (em pri-

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todas as formas de memória”. Neste termo, meira pessoa) pode ser considerado perfor-
o documentário, como “mídia de memória” mático, uma vez que não está em jogo um
( ASSMANN, 2011), não escapa a este con- entendimento e uma representação de si
texto político e cultural que alguns autores mesmo (a do realizador).
(HARTOG, 2014; WINTER, 2006) denomina-
ram de “boom da memória”. O presente artigo procura contribuir com
o debate a respeito das implicações da nar-
Ainda neste contexto, no que diz respeito ração em primeira pessoa nos documen-
à história do documentário, vemos o sur- tários autobiográficos, problematizando
gimento de um tipo de “cinema do Eu” que a relação entre performance e memória
evoca um novo lugar para o documen- traumática. Não se tem a pretensão de
tarista. Se na origem do documentário apresentar uma proposta de método analí-
temos um sujeito compromissado ética tico, tão pouco de pensar categorias fecha-
e esteticamente com a representação do das para abordar este tipo de cinema docu-
Outro, na década de 1980 uma modali- mentário que prioriza uma “escrita do eu”
dade de documentário coloca em primeiro ou uma “escrita de si”, portanto, os filmes
plano a f igura do cineasta. Sem muito que figuram neste artigo são apenas pontos
pudor o Outro da alteridade é deslocado de partida para as ref lexões teóricas que
ou até mesmo apagado do seu lugar de proponho ao colocar em diálogo memória,
objeto representacional. Esta modalidade cinema e performance.
de documentário Bill Nichols (2005) defi-
niu como “documentário performático”, Também se reconhece a necessidade de sub-
cinema em que o ponto de partida é um categorizar o cinema que aqui está em análise,
problema individual, íntimo do cineasta. por entender que nem todo documentário
Nesse tipo de documentário, o relato em narrado em primeira pessoa, ou até mesmo
primeira pessoa coloca o cineasta no centro que nem todo documentário autobiográ-
da narrativa documentária, reclamando fico tem implicado na sua origem uma per-
para este tipo de cinema sua dimensão formance afetiva do cineasta, que nos leva
subjetiva. Entretanto, nem todo documen- a pensar no “documentário de memória afe-
tário em primeira pessoa parte de ques- tiva” como um subproduto do “documentário
tões psicológicas, afetivas e íntimas do seu de memória” (GAUTHIER, 2011).
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O olhar para as performances no documen- a alterações ou manipulações que favorecem
tário é menos para as teatralizações que certos projetos políticos de memória, é um

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colocam em cena o documentarista e sim dos primeiros mitos que precisam ser aban-
para uma atitude performática que não donados para que possamos voltar a olhar
necessariamente pressupõe um estar em para o repertório como aquele que encena
cena; é este estar em cena, mas também a memória incorporada. Nas palavras da
é um estado que manifesta um compor- autora: “o repertório, seja em termos de
tamento (ou um gesto) expressivo capaz expressão verbal ou não verbal, transmite
de transmitir1 uma memória e identidade ações incorporadas reais. Assim, as tradi-
cultural. Trata-se de pensar como a perfor- ções são armazenadas no corpo, por meio
matização de uma memória – que encontra de vários métodos menmônicos, e são trans-
materialidade (sua dimensão arquivística) mitidas ‘ao vivo’ no aqui e agora, para uma
em forma de filme – coloca em jogo “os audiência real” (2013, p. 55).
roteiros que compõem os imaginários indi-
viduais e coletivos” (TAYLOR, 2013, p.378). Mais do que dicotomizar entre o arquivo e o
repertório, a autora propõe que ambos têm
Entre o arquivo e o repertório sido fontes importantes de conhecimento,
Segundo Taylor, a História baniu o reper- variando o grau de importância de um e outro
tório para o passado em detrimento do conforme o tipo de sociedade (letrada/semi-
arquivo, apoiando-se em alguns mitos. letrada). Para Taylor (2013, p. 70-71), “o ato de
A memória “arquivística” existe na depen- contar é tão importante quanto o de escre-
dência de suportes que sejam capazes de ver; o fazer é tão central quanto o registrar
um armazenamento duradouro. O arquivo a memória passada por meio dos corpos e de
excede o que acontece ao vivo. Porém, práticas mnemônicas”; ambos os sistemas –
para a autora, acreditar no arquivo como arquivo e repertório – se complementam, um
algo não mediado, que não seja vulnerável não contraria a lógica do outro.

1 A autora emprega o termo “transmissão” no sentido de que a memória experiencial pode ser compartilhada, que o
conhecimento de uma experiência passada, vivida, encontra na performance, assim como no arquivo, uma forma de
transpor as gerações. Conhecimento que se manifesta como traço de uma herança cultural. No caso da transmissão
da experiência traumática, Taylor concebe que ela se assemelha a um “contágio”, aquele que ouve ou acompanha
uma recordação – que deve ser interpretado aqui como o ato performático da memória – incorpora o peso, a dor e
a responsabilidade associada ao evento traumático. Mas isto não quer dizer que aquele que testemunhou deixa de
sofrer, que se verá livre do trauma. O contágio é um compartilhamento virtual da experiência traumática.
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Enquanto a performance atualiza o repertório 2013, p. 60). Roteiros estes que estão mani-
no tempo agora, no “ao vivo”, o arquivo crista- festados nas performances afetivas dos

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liza fragmentos do repertório. Então, temos documentaristas que enfrentam o desa-
que a vida da performance se limita ao presente. fio de atualizar suas memórias traumáti-
Não pode ser salvada, gravada, documentada: cas, mesmo que o filme nos ofereça apenas
fragmentos destas performances, já que se
A performance “ao vivo” nunca pode ser trata de um registro que satisfaz mais o sis-
captada ou transmitida por meio do arquivo.
Um vídeo de uma performance não é uma tema arquivístico.
performance, embora frequentemente
acabe por substituir a performance como No entanto, o filme não exclui o repertó-
uma coisa em si (o vídeo é parte do arquivo;
o que representa é parte do repertório). A rio como parte de uma ação de intervir
memória incorporada está ‘ao vivo’, excede e interpretar o mundo vivido que se dá na
a capacidade do arquivo de captá-la. Porém, própria feitura deste filme. Cabe ao ana-
isso não significa que a performance –
como comportamento ritualizado, formali- lista encontrar novas ferramentas metodo-
zado ou reiterativo – desaparece. As perfor- lógicas ou aprimorar as já existentes, pois
mances também replicam a si mesmas por não se trata de abandonar o lugar privile-
meio de suas próprias estruturas e códigos
(TAYLOR, 2013, p.51). giado dos textos e das narrativas na aná-
lise fílmica, mas complementar a análise
Segundo Taylor, não se propõe aqui simples- acrescentando a ela dispositivos capazes
mente mudar o foco para o “ao vivo” como de identificar os rastros destas memórias
objeto de análise, o que talvez dependeria incorporadas. Quando pensamos em um
de adotar outras estratégias para a coleta conjunto de documentários que aborda-
de dados, como a pesquisa etnográfica, ram as memórias traumáticas das ditadu-
entrevistas e anotações de campo. Ao con- ras na América Latina, por exemplo, pode-
trário disto, a autora nos provoca a repen- mos nos perguntar: o que estes filmes têm
sar o nosso método de análise, “ao invés de a nos dizer sobre os roteiros dos traumas da
privilegiar textos e narrativas, poderíamos repressão, do exílio, do desaparecimento, na
também ver os roteiros como paradigmas perspectiva de que “[...] os roteiros moldam
para a construção de sentidos que estrutu- e ativam os dramas sociais” (TAYLOR, 2013,
ram os ambientes sociais, comportamen- p. 61)? Um estudo mais denso de como
tos e conseqüências potenciais” (TAYLOR, esta memória é performatizada por meio
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de uma narrativa autobiográfica ainda (TAYLOR, 2013, p. 51), arrisco a dizer que em
está por ser feito, por enquanto restam as “documentários de memória afetiva” os ves-

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problematizações.2 tígios do repertório estão mais presentes
do que em outros tipos de documentários,
Ao comentar sobre a insistência no “ao vivo” pois neles há uma forte carga emotiva que
da performance, a autora diz não ter a inten- está na origem da atitude documentária do
ção de diminuir a importância dos teste- realizador. Por ser produto de um dever de
munhos virtuais e em vídeo colocados em memória, de um engajamento do cineasta
circulação nas últimas décadas, tão pouco com o passado, este tipo de cinema que venho
acreditar que a transmissão da memória trau- denominando de “documentário de memó-
mática aconteça apenas no encontro “ao vivo”, ria afetiva” lhe cobra outra postura narrativa.
pelo contrário, Este documentarista não é um narrador qual-
quer, é um narrador implicado na cena, em
[...] elas [estas iniciativas de sistema que recordar é assumido por ele como um
arquivístico, como o filme documentário]
armazenam conhecimento e o disponibili-
ato político. Recordação esta que também
zam para um número maior de pessoas do é uma performance.
que qualquer roteiro ‘ao vivo’. Mas o ‘re’ de
‘recaptar’ não é a repetição reiterativa do
trauma ou da performance, mas uma trans- Assim como Sarmento-Pantoja (2016), vejo
ferência para o arquivo – uma economia de a necessidade de ampliarmos a leitura do
armazenamento e representação diferente conceito de performance, uma vez que limi-
(TAYLOR, 2013, p. 402).
tar o potencial performático à condição da
Por mais que diante de um filme não pode- sua execução “ao vivo” nega outros tantos
mos mais falar em performance, pois segundo aspectos que envolvem a sua própria fixa-
a autora, “a memória incorporada está ‘ao vivo’ ção ou registro em um suporte midiático.
e excede a capacidade do arquivo de captá-la” Segundo o autor, a ação performática não

2 A tese Performance, Trauma e Testemunho no Cinema Pós-64 (2016), de Carlos Augusto Nascimento Sarmento-
Pantoja já nos oferece algumas respostas ao analisar os documentários Que bom te ver viva (Lúcia Murat, 1989) e
No olho do furacão(Renato Tapajós e Toni Venturi, 2002). O autor atrela o conceito de performance ao de testemunho,
logo, “A performance neste caso expressa a necessidade de recuperar as memórias as quais aterrorizam o
testemunhador” (2016, p.198). O documentarista é este sujeito performador/testemunhador, em que suas ações
performáticas procuram testemunhar o horror do trauma, expressarem “[...] em suas narrativas ‘segredos’ revelados
de um passado difícil e passivo de ser superado, mas as câmeras e todo aparato técnico requerem uma filmagem a
qual pressupõe uma observação de si, fazendo com que a narração seja anteriormente pensada para que diante da
câmera e do diretor seja dado seu depoimento” (SARMENTO-PANTOJA, 2016, p.197).
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é realizada apenas pelo artista, o performa- dimensão ao documentário: a filmagem
dor, mas também por outro personagem: torna-se uma experiência do corpo afetado.

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o performante. Aquele que é ao mesmo O filme é produto desta afetação. Ainda
tempo destinatário e responsável para que conforme o autor,
o enunciado performático seja validado.
‘corpo’, aqui, vale como manifestação sen-
No caso do documentário quem ocupa este
sível de uma subjetividade, de uma história
lugar é o espectador, por mais que seja ele do sujeito que precisamente sua fala [...]
sujeito de uma ação performática mediada. dobra e desdobra no tempo real da tomada.
Nessa duração, há algo de uma libido que
se esgota: desejo de ser filmado, desejo de
Assim o ato performático não se concretiza
filmar, de falar, de jogar o jogo do plano-se-
somente na arte do aqui e agora. Ela pode
quência (p. 286).
ser compreendida também após sua fixa-
ção, já que há um princípio performático
em toda forma de linguagem, que leva o Para colocar em exemplo esta potência afec-
performante a performar no momento de
sua experiência com objeto artístico (SAR- cional do documentário recorremos ao filme
MENTO-PANTOJA, 2016, p.173). Cuchillo de Palo (2010), de Renate Costa. Nesse
filme, a diretora paraguaia investiga o mis-
O “documentário de memória afetiva” exige tério em torno da morte do seu tio, Rodolfo
do cineasta uma performance afetiva que é ao Costa, que foi perseguido pela ditadura de
mesmo tempo um estar no mundo e interpre- Alfredo Stroessner no Paraguai, na década
tá-lo. O sujeito que narra é também uma tes- de 1980, por conta de sua orientação sexual.
temunha a quem não se dispensa um poten- Durante as filmagens a cineasta descobre que
cial afeccional. É um sujeito afetado pelo o tio fazia parte da “lista dos 108”, um grupo
passado/trauma, o ato de recordar instaura de homossexuais que foi perseguido pelo
uma temporalidade em que a hegemonia do regime da época. Fato que o pai da cineasta,
presente sobre o passado no discurso fílmico irmão de Rodolfo Costa, prefere negar. Depois
é da ordem da experiência, em muitos casos, de uma pescaria frustrada entre pai e filha,
da ordem da experiência traumática. ambos se sentam diante de uma mesa na qual
começam uma conversa sobre o que ocorreu
Segundo Comolli (2008), opera-se no docu- com Rodolfo Costa. É a penúltima sequência
mentário autobiográfico um complexo jogo do documentário. Diante de documentos ofi-
de presença/ausência, de mostrar-se/escon- ciais do regime, o pai de Renate Costa insiste
der-se em que este corpo do cineasta que no que dizem os arquivos, que o seu irmão foi
é colocado em cena acrescenta uma nova apenas detido. Nega que a morte dele esteja
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relacionada com a tortura sofrida nos porões Documentário de memória afetiva
da ditadura, como acredita a documentarista. Foi Guy Gauthier (2011) quem propôs uma

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Pai e filha entram em conf lito e acompanha- distinção entre “documentário no presente”
mos tudo pela câmera de Cuchillo de Palo, que e “documentário de memória”. No primeiro,
registra seus corpos em um duradouro plano segundo o autor, o cineasta tenta apreen-
sequência. Por mais que não seja Renate der o vivido, aproximar-se da “vida como
Costa que opera a câmera, a decisão final ela é”, o filme tem forte apelo ao presente.
por manter a cena no filme é dela, na fase de Já o segundo é o que o senso comum deno-
pós-produção (montagem), o que revela uma mina de “documentário histórico”, podendo
sensibilidade para esta dimensão da afetação ser também indexado como “documentá-
que marca o “documentário de memória afe- rio de arquivo”, “filme testemunho” etc. No
tiva”. Durante a cena, após o auge da discus- “documentário de memória” o cineasta tem
são entre pai e filha, presenciamos o silêncio interesse por compreender o passado, o seu
reinar na tela e abrir-se para um vácuo tem- gesto visa uma atualização da memória seja
poral entre os dois personagens. O silêncio por meio de testemunhos, arquivos e vestígios.
dura, a câmera procura pelos rostos, pelas No entanto, não se pode negar que o trabalho
reações (ou não reações) de pai e filha. Ambos do documentarista se dá no presente, quando
são afetados por sentimentos, ressentimentos se interessa pelo passado o explora com os
que escapam à compreensão do espectador indícios no presente (GAUTHIER, 2011). Logo,
do filme, mas “a performance filmada atesta o “documentário de memória” também exige
a validade da experiência cinematográfica” uma ética da escritura fílmica.
(COMOLLI, 2008, p.290). O silêncio no filme
é tanto a metáfora do próprio processo de Escritura que revela o documentário como
silenciamento a qual ainda estão submetidos uma arte vocacionada (em termos políticos)
os eventos traumáticos da ditadura na socie- para a memória, uma dimensão ética do pre-
dade paraguaia, quanto produto da síntese sente em que rememorar para uma câmera
que envolve conf litos de geração em torno da reveste o ato de um sentido de resistência
temática de gênero. Ao final do plano sequên- que, por sua vez, carrega em si a potên-
cia, a documentarista abandona o silêncio cia da experiência do vivido, da crítica e da
para dizer ao pai o que sente: “é difícil nos revelação. O documentarista é aquele que
entendermos”; e sai da mesa, sai do quadro, deseja salvar uma imagem do passado, está
enquanto que a câmera se volta para o pai, que “[...] submetido ao que, um dia foi. Tem uma
permanece inerte. dívida para com o passado, uma dívida de
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reconhecimento para com os mortos, que faz como uma memória que se pretende coleti-
dele um devedor insolvente” (RICOEUR, 2010b, vizar em termos de sua dimensão afetiva que

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p. 237). Aqui este “dever de memória” induz traz em cena um dever de justiça, um dever
uma relação afetiva e moral com o passado, de memória.
mas que apresenta estratos diferentes. Nem
todo cineasta que se propõe a fazer um “docu- Deste narrador implicado não se espera
mentário de memória” reconhece esta dívida apenas um compromisso moral com o pas-
com o passado, em alguns casos o passado sado que visa reconstruir, o seu compromisso
é apenas um objeto a ser representado, mas deriva de uma afetação, é ele um sujeito afe-
isto não faz o filme deixar de ser classifi- tado pelo passado que representa. O emprego
cado como “documentário de memória”, nos do termo afetivo na composição de um tipo
termos de Gauthier (2011). Por isto, diante de de memória, a memória afetiva, pode nos
documentários que nitidamente se revestem remeter indiscriminadamente à ideia de afeto
deste “dever de memória”, vejo a necessi- ou paixão, ou de lembranças motivadas por
dade de pensarmos neles como subprodutos fortes emoções. Entretanto, é preciso reco-
do “documentário de memória”. Filmes que nhecer a partir dos estudos da neurociên-
o documentarista demonstra uma relação cia que “toda memória é adquirida em um
mais visceral com o passado, assumida geral- certo estado emocional [...]”, sendo que “[...]
mente por uma narrativa em primeira pessoa, a importância emocional de cada memória faz
sendo este um narrador também implicado com que outras, às vezes importantes, adqui-
no processo de recordação que o filme opera, ridas pouco antes ou depois, sejam literal-
sugiro denominarmos de “documentário de mente obliteradas” (IZQUIERDO, 2010, p. 41-42).
memória afetiva”. A memória afetiva pressupõe uma dimensão
de afecção (ou afeição) em que “designa todo
O que nos interessa é pensar filmes documen- estado, condição ou qualidade que consiste
tários que apresentam no seu “DNA” estético em sofrer uma ação ou em ser inf luenciado
e ético um potencial de afetação que conduz ou modificado por ela” (ABBAGNANO, 2007,
a narrativa à atualização de uma memória p. 19). Em alguns casos a ação é derivada de
que é individual (autobiográfica), a priori, mas uma situação traumática, o que torna a sua
que pela performance do cineasta no processo recordação um peso, mas no tocante ao
de fazer o filme, que implica também em um “documentário de memória afetiva” o cineasta
processo de recordação, se apresenta esta escolhe não mais reprimir as memórias que
como uma memória coletiva, ou pelo menos lhe são desagradáveis ou insuportáveis, pelo
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contrário, o filme é produto deste enfrenta- nesta operação, menor são as chances dessas
mento com o passado, um combate ao esque- impressões serem incorporadas à experiência.

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cimento e a negação. Segundo Benjamin (1989, p. 108), “só pode se
tornar componente da mémoire involontaire
A memória afetiva da qual trato aqui tem rela- aquilo que não foi expressa e conscientemente
ção com o que Marcel Proust denominou de ‘vivenciado’, aquilo que não sucedeu ao sujeito
memória involuntária: impressões realmente como ‘vivência’. ”
significativas do homem, que trancafiadas
no reservatório do inconsciente só emergem Para o filósofo frankfurtiano, ao declínio da
pelo acaso. Já a memória voluntária é aquela experiência se associa o fim da narração. Foi
lembrança que temos acesso por meio da ação o narrador a figura que sintetizou uma época
do intelecto, “gavetas” de nossa memória em que a matéria da narração e sua existên-
que podemos abrir quando desejamos. Em cia era a própria experiência, narrar era uma
outros termos, o que recordamos volunta- performance do vivido que, como aprende-
riamente são apenas lembranças casuais de mos com Taylor (2013), também é capaz de
uma vida, pois somente a memória involun- transmitir e preservar a memória cultural.
tária é capaz de nos dar acesso às dimensões Nas palavras de Gagnebin (1994), o desapa-
essenciais do passado. Esta visão proustiana recimento da antítese tempo-eternidade na
da memória sugere um passado que “brilha”, percepção cotidiana da modernidade, tendo
que irrompe no presente como uma forma de sido substituída pela perseguição incessante
atualização. Em diálogo com Proust, Walter do novo, levou a uma redução drástica da
Benjamin considera a memória involuntária experiência do tempo, segundo o pensamento
a única capaz de mergulhar suas raízes na benjaminiano, em que “[...] a construção de
experiência. Temos, para o filósofo, a cons- um novo tipo de narratividade passa, neces-
ciência como a resposta do homem moderno sariamente, pelo estabelecimento de uma
às ameaças dos choques, logo, se projeta outra relação, tão social como individual, com
para a modernidade o declínio da experiên- a morte e com o morrer” (p. 74).
cia. Quanto maior for a participação do fator
choque nas impressões cotidianas do indiví- É nestes termos que interpreto este tipo de
duo, mais constante será a presença do cons- cinema documentário marcado por memórias
ciente no intuito de proteger o homem contra afetivas. Tendo a apostar que o “documentário
os estímulos externos. O que equivale dizer de memória afetiva” é parte deste novo tipo
que, quanto maior for o êxito do consciente de narratividade em que os documentaristas
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encontram na linguagem do cinema manei- afetiva” não está preocupado com a preci-
ras de narrar o trauma ou a memória trau- são ou verificação, pode até deixar lacunas

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mática, principalmente em uma perspectiva sobre os fatos históricos, mas não pode
intimista, autorreferencial ou autobiográfica. enganar o que sentiu. O que é focalizado
Eles exercem papel inovador para o campo do nestes filmes é a relação que estes cineastas
documentário, não obstante, é preciso que possuem com o passado representado, em
se diga, não sem um aprendizado que se dá que “não nos encontramos mais no campo
pela chave do trauma. O próprio sofrimento da verdade, das histórias verdadeiras; entra-
lhes ensina maneiras diferentes de lidar com mos, sim, no campo da autenticidade. [...]
a morte e com o morrer, e se espera que isto A memória afetiva baseia-se em uma expe-
encontre matéria, forma no documentário. riência psicofísica que escapa não apenas
à verificação externa, como também à revi-
Para tal empenho, é preciso olhar para os são própria” (ASSMANN, 2011, p. 271, grifo
estabilizadores das recordações, como apre- da autora). Para a autora, ter o afeto como
sentados por Aleida Assmann (2011). Todo estabilizador das recordações não é priori-
“documentário de memória” faz uso e tem zar a verdade subjetiva em detrimento de
uma dependência destes para se confirmar um mundo experiencial objetivo e empi-
como uma narrativa de memórias traumáti- ricamente assegurado. A incapacidade ou
cas, como procurei demonstrar em trabalho impossibilidade de assegurar uma verifica-
anterior (TOMAIM, 2016). O primeiro deles ção do que é recordado por aquele que tes-
é o afeto, que em narrativas autobiográficas temunha o vivido apenas desloca a análise
é difícil não estar associado direta e indis- para uma preocupação mais atenta para
solúvel ao processo de recordação. Porém, a forma desta recordação. Já em termos
a autora faz uma ressalva: “que recorda- estéticos, o que nos interessa é perceber
ções em particular serão ‘afetadas’ por essa como esta recordação autobiográfica atua-
força estabilizadora, isso certamente foge liza o passado na narrativa documentária,
ao controle do indivíduo, pois a participa- tendo em vista que o cineasta, neste tipo de
ção afetiva em determinadas recordações documentário, ocupa dois papéis simulta-
justamente não pode ser controlada pelos neamente: o de narrador (parte da opera-
indivíduos” (ASSMANN, 2011, p.270). ção ficcional da narrativa cinematográfica)
e de testemunha (daquele que experimentou
Neste caso, podemos dizer que o narrador e fala do trauma ou do vivido no presente) –
implicado do “documentário de memória aspectos que desenvolverei mais adiante.
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Segundo Assmann (2011, p. 283), o trauma diferentes. Enquanto no primeiro os signi-
instaura a impossibilidade da narração. Se ficados estão postos nas percepções e recor-

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por um lado encontra no corpo uma área de dações em si mesmas, no segundo estes
gravação, de “inscrição”, por outro, é por ser significados são reconstituídos a poste-
uma inscrição profunda que o trauma priva riori. Segundo a autora, “a estabilidade de
o sujeito de uma experiência do processa- uma parte essencial de nossas recordações
mento linguístico e interpretativo. Na con- depende da questão acerca da possibilidade
tramão do trauma, surge o símbolo como de inventar e acrescentar um tal significado
estabilizador de recordações. “A recordação ou não”, o que significa dizer que “[...] uma
que ganha força de símbolo é compreendida história de vida está baseada em recorda-
pelo trabalho interpretativo retrospectivo em ções interpretadas que se fundem em uma
face da própria história de vida e situado no forma rememorável e narrável” (ASSMANN,
contexto de uma configuração de sentido par- 2011, p. 276). No caso do documentário, a lei-
ticular” (ASSMANN, 2011, p. 275). Neste sentido, tura pela via epistêmica da performance nos
cabe pensarmos que sentimentos como humi- ajuda a compreender melhor os sentidos
lhação, ambição, surpresa, estranhamento destas recordações interpretadas.
e mistificação também são ingredientes para
o jogo da recordação. Estes (res)sentimentos Por último, o trauma é entendido como um
podem mover certas interpretações do pas- estabilizador de outra ordem, “[...] estabiliza
sado “[...] em que percepções se cristalizam uma experiência que não está acessível à cons-
como experiências, experiências como recor- ciência e se firma nas sombras dessa consciên-
dações” (ASSMANN, 2011, p. 275). Relacionando cia como presença latente” (ASSMANN, 2011,
com o “documentário de memória afetiva”, p. 277), por isto a importância de se atentar
desprezar a leitura destas marcas de (res)sen- para os silêncios, os pequenos gestos mate-
timentos nas narrativas documentárias é o rializados na narrativa documentária que
mesmo que subestimar a importância destas evoca testemunhos. Para a autora, o trauma
recordações reformuladas (ou reinterpreta- apresenta uma contradição paradoxal, ele
das), uma vez que o filme é a própria busca é presença e ausência. Apesar de pertencer
por dar um sentido à experiência traumática ao homem como uma parte intransferível,
do cineasta. o trauma não o constitui como sujeito, não
é assimilado enquanto parte de sua identi-
No entanto, é preciso que se diga, o afeto dade, é um corpo estranho. Nestes termos,
e o símbolo são estabilizadores de naturezas Assmann (2011, p. 283, grifo da autora) nos
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chama a atenção para a seguinte triangula- parecem responder a uma “busca de nar-
ção entre os estabilizadores: rativa”, uma vez que toda experiência

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humana possui uma demanda por narrativa.
Se o afeto excede uma medida suportável Segundo Ricoeur, o ato de narrar apreende
e converte-se em um excesso, então não
estabiliza mais as recordações, mas as o mundo a partir das experiências huma-
destrói. É esse o caso do trauma, que trans- nas, experiências ou ações que são trazidas
forma diretamente o corpo em uma área de para o universo da linguagem, mas que já
gravação e, com isso, priva a experiência do
processamento linguístico e interpretativo.
se encontram pré-significadas no mundo
O trauma é a impossibilidade da narração. vivido. O autor compreende que uma ação
Trauma e símbolo enfrentam-se em um só pode ser narrada porque ela já está arti-
regime de exclusividade mútua: impetuosi-
dade física e senso construtivo parecem ser culada em signos, regras e normas, na sua
os pólos entre os quais nossas recordações origem ela já está “simbolicamente media-
se movimentam. tizada” pelas convenções sociais e culturais.
No entendimento de Ricoeur, toda experiên-
Por isto a importância de estudarmos os cia humana possui uma “estrutura pré-nar-
“documentários de memória afetiva”. São eles rativa”: “o enredamento [das ações] aparece,
um exercício de reelaboração do trauma por antes, como a ‘pré-história’ da história con-
parte dos cineastas. Em muitos casos, o pró- tada, cujo começo é escolhido pelo narrador.
prio ato de fazer o filme ajuda ao documen- Essa ‘pré-história’ da história é o que liga
tarista na operação de transpor as barreiras esta a um todo mais vasto e lhe dá um ‘pano
da memória traumática. Este tipo de cinema de fundo’” (RICOEUR, 2010a, p. 129). No caso
é um movimento do trauma para a ressignifi- dos “documentários de memória afetiva”,
cação de um passado inscrito com dor, angús- o trauma é este pano de fundo que, como já
tia e sofrimento. O “documentário de memó- sabemos, coloca para os cineastas um limite:
ria afetiva” é um sussurro por uma identidade o da transmissão do passado. Mas como
já que sabemos que a memória tem algo a ver bem lembra Ricoeur, estas experiências
não apenas com o passado, mas também com extremas podem ser (e são) intransmissíveis,
a identidade e, por sua vez, com a própria per- em termos de herança, mas não indizíveis
sistência do sujeito no futuro. (RICOUER, 2007, p.459).

Os cineastas que se arriscam a rememo- Ainda nas ref lexões de Ricouer, temos que
rar um passado traumático não sentem para uma narrativa não basta que esta seja
nostalgia deste tempo, mas os seus filmes aceitável, que os episódios reunidos em
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uma determinada lógica sejam coerentes memória”. Presente este que é “[...] simulta-
com a história contada, é necessário que neamente o que vivemos e o que realiza as

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faça sentido ao mundo do leitor/espectador. antecipações de um passado rememorado.
Então, o documentário, ao recorrer aos ves- Em contrapartida, essa realização se inscreve
tígios – sejam eles monumentos, locais trau- na lembrança [...]” (RICOEUR, 2010b, p. 61).
máticos ou ruínas, documentos ou mate-
riais de arquivo (escritos, imagéticos ou Para a narrativa documentária é imprescindí-
sonoros) – e aos testemunhos reveste a sua vel a autenticidade das filmagens, já existe um
narrativa de um tom realista não só pelas pacto de leitura estabelecido que pressupõe
informações que estas imagens operam do menos uma narrativa verdadeira e mais uma
passado, mas também pelos compromissos, verdade do referente. Em outras palavras,
interesses que movem o documentarista em o espectador do documentário espera/exige
torno dessas imagens. que o mundo vivido ou as experiências huma-
nas, configuradas em uma lógica interna no
Tom realista este que evoca à narrativa docu- filme, sejam verdadeiros.
mentária uma “intencionalidade histórica”,
que nos termos do autor é particular de uma Podemos pensar sobre a perspectiva do
narrativa (a histórica) que reivindica para si “pacto autobiográfico” como proposto por
“[...] uma referência que se inscreve na empeiría, Philippe Lejeune. Para ele, a autobiografia
na medida em que a intencionalidade histó- se apõe a todas as formas de ficção por ser
rica visa a acontecimentos que efetivamente um texto referencial, assim como o discurso
ocorreram” (RICOUER, 2010a, p.139). Ao consi- científico e o histórico. Primeiro, o “pacto
derar que a narrativa documentária também autobiográfico” exige tanto um sujeito da
implica em uma “intencionalidade histórica”, enunciação quanto um enunciado na pri-
temos na recordação, ou nos usos que fazem meira pessoa; e segundo, ele expõe um
os documentaristas dos vestígios e dos tes- pacto referencial em que este sujeito na
temunhos para a composição da intriga (o primeira pessoa se propõe “[...] a fornecer
agenciar dos acontecimentos), uma proble- informações a respeito de uma ‘realidade’
mática que diz mais sobre o presente do que externa ao texto e a se submeter portanto
sobre o passado. Como já dito anteriormente, a uma prova de verificação. Seu objetivo não
o documentário sempre fala no presente, por é a simples verossimilhança, mas a seme-
mais que sua referência seja o tempo pas- lhança com o verdadeiro. Não o ‘efeito
sado, como é o caso dos “documentários de de real’, mas a imagem do real” (LEJEUNE,
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2014, p. 43, grifo do autor). Segundo o autor, Em 1987, Lejeune escreveu Cinéma et autobio-
o imperativo da semelhança no discurso graf hie: problémes de vocabulaire, para a Revue

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autobiográfico é um aspecto secundário, Belge du Cinéma, número 14, em que apresen-
pois mesmo que se julgue que a semelhança tou uma grande dificuldade em pensar um
não foi alcançada, o que importa é saber que cinema autobiográfico, mas reconheceu ao
ela foi visada, que o autor se esforçou dupla- final que, devido a alguns aspectos evoluti-
mente ao representar “[...] 1) a sua relação vos deste cinema, em termos de linguagem
com o passado; 2) esse passado tal qual era, – como a utilização da voz off e a invenção
com a intenção de nada modificar” (LEJE- da câmera subjetiva, assim como do apare-
UNE, 2014, p. 48). cimento de equipamentos mais leves, como
o super-8, atrelado ao desenvolvimento da
No caso do documentário se convencionou televisão e do vídeo – “o cinema autobiográ-
a pensar nele como um discurso que exige fico começa portanto a existir, diferente da
provas, pois pretende ser uma narrativa autobiografia escrita, mas também diferente
verossímil, convincente e comovente, em do cinema de ficção, sendo um meio caminho
termos retóricos. Porém, quando olhamos entre o cinema amador e o cinema experi-
mais a fundo para os documentários auto- mental” (LEJEUNE, 2014, p. 271), e que sob esta
biográficos presenciamos uma mudança de perspectiva trata-se de “[...] uma aventura que
foco nas estratégias narrativas do próprio se deve acompanhar com curiosidade” (p. 274).
documentário, em que relatos pessoais com
ramificações sociais e históricas podem ser Já para Timothy Corrigan (2015), a prolifera-
também verossímeis, convincentes e como- ção dos filmes autobiográficos somente nas
ventes, sem que sejam definitivos ou conclu- décadas de 1960 e 1970 foi um sinal atrasado
sivos. Segundo Bill Nichols (2005, p. 82), das mudanças que já se processavam desde
1940, após os traumas culturais e históricos
Muitas vezes, essa união serve para esta- originários da Segunda Guerra Mundial. No
belecer credibilidade e convicção, já que
o cineasta começa com o que conhece pós-guerra, o lugar e o valor da subjetividade
melhor – a experiência familiar – e, dela, e da identidade foram cada vez mais ques-
estende-se para o mundo exterior. [...]. A tionados, principalmente porque os acon-
própria subjetividade compele à credibili-
dade: em vez de uma aura de veracidade tecimentos daquele conf lito bélico haviam
absoluta, temos a aceitação sincera de abalado definitivamente a crença na autori-
uma visão parcial, mas muito significativa; dade do sujeito humanista. Mesmo que tardia,
situada, mas apaixonada.
a resposta dada pelo cinema veio pela via do
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filme-ensaio, assim como acreditava Lejeune vem satisfazer, em termos conceituais, o que
(2014), e reiterado por Corrigan (2015) para venho apresentando aqui como “documen-

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quem este cinema está “A meio caminho da tário de memória afetiva”, tendo em vista
ficção e da não ficção, das reportagens jor- que estamos falando de um cinema que, ao
nalísticas e da autobiografia confessional, estabelecer um “pacto autobiográfico” com
dos documentários e do cinema experimen- os espectadores, o faz por se apresentar “[...]
tal”. Segundo o autor, em um filme-ensaio como uma investigação da essência da própria
o realizador “[...] executa uma apresentação subjetividade como multiplicação e perda. Ela
performativa do eu como uma espécie de se torna uma intensificação do pensar o eu
autonegação em que estruturas narrativas ou como discurso público, experiência e história
experimentais são subsumidas no processo – e nessa intensidade surge o vínculo essen-
do pensamento por meio de uma experiên- cial entre autoexpressão e morte” (CORRIGAN,
cia pública” (p.10). Relacionando com o “docu- 2015, p. 97).
mentário de memória afetiva” o que está em
jogo não é a maneira como o filme privilegia Testemunha de si
a expressão e a subjetividade pessoais do O cinema documentário foi sensível à “gui-
documentarista, mas, acima de tudo, “[...] nada subjetiva” dos anos de 1970/80 em que se
a maneira como perturba e complica essa pró- reconheceram os direitos e a verdade da sub-
pria noção de expressividade e sua relação com jetividade nas narrativas da memória, tanto
a experiência” (p. 21, grifo do autor), uma vez na literatura quanto na história. Vimos a apa-
que a expressão ensaística “[...] exige a perda rição de novos sujeitos (os marginalizados, os
do eu e o repensar e refazer o eu” (p.21). excluídos), reconheceu-se o lugar da subjetivi-
dade no narrado (a primeira pessoa da narra-
Considerando que o ponto central desta ção). Enquanto que o testemunho, eleito como
expressão ensaística é o tom pessoal ou sub- ícone de verdade ou recurso mais importante
jetivo que ajuda o realizador a organizar suas para a compreensão do passado (SARLO, 2007),
observações e ref lexões, não podemos esque- deu ao relato em primeira pessoa maior cre-
cer a herança literária do filme-ensaio que dibilidade ao ser interpretado como tradução
inclui, entre outras práticas, os escritos bio- da experiência do vivido.
gráficos e autobiográficos, e que neste tipo de
cinema encontram ressonância duas versões No bojo desta guinada subjetiva, presencia-
do filme-ensaio: o retratístico e o autorretra- mos o surgimento de um tipo de documentá-
tístico (p.81). O filme-ensaio autorretratístico rio que colocou o cineasta em primeiro plano,
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deslocou o olhar da alteridade do Outro para uma combinação entre o real e o imaginado.
um Eu intimista e singular. Para Nichols O cineasta nos apresenta o mundo de maneira

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(2005), as melhores obras do que ele deno- emocional, dá mais ênfase nas característi-
minou de documentário performático são cas subjetivas da experiência e da memória,
aquelas que conseguem conjugar o relato da que, por sua vez, se afasta do relato objetivo
vida pessoal do cineasta com alguns aspec- (NICHOLS, 2005, p.170). Cabe ao analista um
tos sociais e históricos de um mundo que lhe olhar detalhado de como filmicamente estas
é exterior. Ainda segundo o autor, características subjetivas da experiência e da
memória são postas em cena por meio de uma
Esses filmes nos envolvem menos com ação performática do documentarista.
ordem ou imperativos retóricos do que com
uma sensação relacionada com sua nítida
sensibilidade. A sensibilidade do cineasta A despeito da importância desta modali-
busca estimular a nossa. Envolvemo-nos dade de documentário para a contempora-
em sua representação do mundo histórico,
mas fazemos isso de maneira indireta, por neidade, ressalvas precisam ser feitas. Pri-
intermédio da carga afetiva aplicada ao meiro, o cinema documentário é (e sempre
filme e que o cineasta procura tornar nossa foi) subjetivo. Se por um lado o caráter
(2005, p.171).
indexado das imagens e dos sons do mundo
Mas para melhor compreendermos este tipo é um forte componente do aspecto objetivo
de cinema documentário temos que a noção do documentário, não se pode esquecer que
de performance deve ser entendida como “[...] direcionar a câmera para um determinado
um processo de leitura, interpretação e devo- lugar, posição, objeto ou personagem já
lução que integram o mecanismo maior da pressupõe um gesto subjetivo do realizador.
consciência histórica do sujeito – daquele Um gesto que “está” no mundo e procura
que filma, mas também de quem é filmado interpretá-lo. A maquinaria da câmera pode
e de quem assiste” (MOLFETTA, 2006, p.202). sugerir um caráter objetivo no ato de regis-
Entendimento que coaduna com o de Taylor trar o real, mas é o olhar humano, a percep-
(2013), como demonstrarei mais adiante, ção, que conduz o disparo da tomada. Não
e que para as ref lexões aqui lançadas servem obstante, dizer que o documentário é assu-
como um norte teórico. Nestes termos, no midamente subjetivo não implica em negar
documentário performático o que está em a objetividade que também lhe compete.
evidência são as dimensões subjetivas e afe-
tivas com as quais o diretor se relaciona com A segunda ressalva diz respeito ao fato de que
o mundo, e é comum que ocorra nestes filmes nem sempre o documentário em primeira
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pessoa escapa a uma narrativa expositiva, filmadas têm o mesmo papel do que os mate-
o que se nota em alguns filmes é que o relato riais de arquivos, imagens, documentos, ou

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em primeira pessoa é um mero recurso nar- seja, devem funcionar como provas que con-
rativo. Ao estudar algumas variantes de nar- figuram credibilidade e convençam os espec-
rativas documentárias em primeira pessoa, tadores do argumento do filme. Estão mais
Pablo Piedras (2014, p. 83, tradução nossa) nos a serviço de um discurso fílmico do que de
chama a atenção para o fato de que, representar uma situação de alteridade que
pressupõe todo encontro do documentarista
[...] certas vozes em primeira pessoa se com a pessoa filmada.
convertem em um recurso que não se
limita a expressar uma subjetividade ou a
distribuir informações necessárias para a Em seu estudo Piedras (2014) identificou três
organização e compreensão do relato, mas modalidades da narrativa em primeira pessoa
se arrogam uma forte dose de autoridade
textual sobre os outros níveis de discurso no documentário. São elas:
audiovisual [...] 3

1. o relato de experiência e alteridade – um


Desse modo, isso faz com que elas sejam sujeito fala com o outro; aqui o relato em
semelhantes a voz off ( a “voz de Deus”) dos primeira pessoa demarca uma relação
documentários tradicionais. Por fim, é pre- em que sujeito e objeto são ambos afe-
ciso que se diga que a ref lexividade e a perfor- tados. Ninguém sai impune do encontro
matividade nos modos discursivos e de repre- proporcionado pela situação de filmagem,
sentação no documentário não colocaram em o olhar subjetivo do realizador permite
crise o modo expositivo. O expositivo é ainda colocá-lo, assim como o objeto do relato,
o modelo predominante de documentário na em uma condição de transformação
maioria das filmografias dos cinemas mun- em termos de experiência e percepção
diais, contudo, desde a década de 1960, este do mundo;
tipo de cinema vem contando com os méto-
dos de entrevistas para incorporar um novo 2. o relato epidérmico – um sujeito que
elemento a sua narrativa: o testemunho. No fala sobre o outro; o sujeito que narra
documentário expositivo, as falas das pessoas não possui vínculo com a história que

3 [...] ciertas voces en primera persona se convierten en un recurso que no se limita a expresar una subjetividad o a
distribuir informaciones necesarias para la organización y comprensión del relato, sino que se arrogan una fuerte
dosis de autoridad textual por sobre los otros niveles del discurso audiovisual.
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conta, é “una presencia desencarnada”. Performance afetiva
Neste caso, estamos distantes de uma e memória traumática

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narração da experiência que revela ou Ao analisar o trabalho de memória de uma
que coloca um “eu” em uma situação de história criminosa, como a repressão ocorrida
conf lito consigo mesmo ou com o mundo na Argentina nos anos de 1970, a partir das
vivido. Na maioria das vezes, a narrativa manifestações públicas dos H.I.J.O.S que pro-
em primeira pessoa neste tipo de relato movem escraches nas ruas, denunciando os
satisfaz mais um gesto retórico (e/ou ego- sequestradores, torturadores e assassinos de
cêntrico) do realizador que se beneficia seus familiares, Taylor comenta como o polí-
de artifícios narrativos, como o corpo em tico da performance auxilia na transmissão
cena e a exacerbação da subjetividade, da memória traumática. “Se a performance
para plasmar uma narrativa que sugere transmite a memória traumática e o com-
uma versão pessoal e subjetiva dos fatos prometimento político, parece que nós, que
(PIEDRAS, 2014, p.81); os acompanhamos, recolhemos essa memó-
ria” (TAYLOR, 2013, p. 232). Nestes termos, ao
(3) a narração autobiográfica – um sujeito que atentarmos para a relação entre performance
fala sobre si mesmo; caracteriza-se por uma e memória traumática, e suas implicações
relação mais visceral entre o sujeito e objeto para a narrativa de documentários autobio-
do enunciado, em que a narração em primeira gráficos, reconhecemos o potencial político
pessoa evoca uma identidade em crise, em deste tipo de cinema que vem marcado, na
descoberta ou construção. sua origem, de um dever moral do cineasta
com o passado que é retratado. Não se trata
O testemunho enquanto narrativa é uma de um interesse ou curiosidade que nasce do
redescoberta do sujeito em si no mundo. estudo, da pesquisa de um determinado fato
Nos documentários autobiográficos, ou no histórico, da vontade de conhecer ou desco-
que denominei de “documentário de memó- brir algo que nos remeta a um acontecimento
ria afetiva”, este testemunho é da ordem da passado, como ocorre com os cineastas na
performance, de uma performance afetiva maioria dos documentários ditos históri-
do documentarista. O teor testemunhal cos; a vontade é mais forte que o realizador,
destes documentários se reveste de um o filme nasce de uma obrigação de dizer algo,
potencial afeccional, em que o cineasta que de narrar e recordar para não esquecer; nestes
narra é também afetado pela narração do filmes também há descobertas, mas em geral
trauma/passado. são da ordem do afetivo.
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Ao procurar respostas para a questão de como transformam neste “participante e coproprie-
a performance transmite a memória traumá- tário do acontecimento traumático’” (p.235).

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tica, Taylor (2013, p.235) aponta que “o protesto Na visão de Taylor (2013), o ato de testemunhar
em forma de performance auxilia os sobrevi- é transferível. Nestes termos, em um filme em
ventes a lidar com o trauma individual e cole- que o narrador é também uma testemunha,
tivo, usando-o para incentivar a denúncia polí- considerando que a narrativa autobiográfica
tica”, o mesmo acredito pode ser aplicado ao apresenta uma dependência do teor testemu-
“documentário de memória afetiva”. O filme, nhal, a interação entre personagens sociais,
na perspectiva de um dever de memória, narrador/cineasta e os espectadores ocorre
coloca o cineasta neste mesmo lugar de reme- pela via do afeto, ou do potencial afeccional do
moração. Ela acrescenta que “o trauma, como encontro entre estes sujeitos e os corpos filma-
a performance, caracteriza-se pela natureza dos, uma vez que “[...] o humor, a intensidade,
de suas repetições” e que “ambos se fazem a beleza dessas performances [em primeira
sentir afetiva e visceralmente no presente”, por pessoa] frequentemente se originam do ato
isto pensarmos a performance do documen- de captar o pequeno, o pessoal, o confessio-
tarista nestes filmes como uma performance nal, fazendo-os falar para uma comunidade
afetiva da memória. Para a autora, no que se organizada ao redor de uma ‘identidade’, sem
refere ao trauma e a performance “cada um limitar-se a ela” (p. 318).
intervém no corpo individual/político/social
em um momento particular e ref lete tensões No caso dos “documentários de memória
específicas”. E, por fim, “a memória traumá- afetiva”, os cineastas visam a transmissão ou
tica frequentemente conta com a performance “contágio” da memória traumática no espec-
interativa e ao vivo para sua transmissão”, em tador até para cumprir o seu fim político, o de
que “dar testemunho é um processo ao vivo, não esquecer, mas sabe que ao chegar ao final
um fazer, um evento que acontece em tempo do filme a dor permanece sua, pois como nos
real, na presença de um ouvinte que ‘passa adverte Taylor (2013, p. 236) existem diferen-
a ser participante e coproprietário do aconte- ças entre performance e trauma:
cimento traumático’” (p. 235).
Na performance, os comportamentos e
as ações, podem ser separados dos ato-
No “documentário de memória afetiva” não res sociais que os performatizam. Essas
só os espectadores, mas todos aqueles com ações podem ser aprendidas, encenadas
e passadas para outras pessoas. A trans-
quem o cineasta se relaciona (os personagens
missão da experiência traumática se parece
sociais) durante a feitura das filmagens se
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mais com o ‘contágio’ – uma pessoa ‘pega’ 20


justiça para outra pessoa que não aquela que
e incorpora o peso, a dor e a responsabili-
dade de comportamentos/acontecimentos recorda; a justiça é voltada, por excelência,

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passados. A experiência traumática pode para o Outro e não para si; (2) é preciso não
ser transmissível, mas é inseparável do
confinar este sentimento de dever de memó-
sujeito que a sofre.
ria a uma noção de culpabilidade, o que está
Taylor (2013) reconhece, apoiada em Victor em jogo é uma “escrita com dívida”, o sujeito
Turner, que as performances não são capazes que rememora é uma pessoa em dívida com
de “nos dar acesso a outra cultura, permitindo o seu passado, com um sentimento de dever
vê-la em profundidade, mas elas certamente a outros, por isto narrar; narrativa que aqui
nos dizem muito sobre nosso desejo desse é compreendida sob a forma de transmissão
acesso e ref letem a política de nossas inter- cultural, em que “A ideia de dívida é inse-
pretações” (p. 32). Por isso reconhecemos que parável da de herança”; e (3) por fim, é pre-
as performances dos cineastas nos “documen- ciso considerar que “[...] dentre esses outros
tários de memória afetiva”, apesar de não ser com quem estamos endividados, uma prio-
uma ponte direta à memória involuntária, ridade moral cabe às vítimas”, que na visão
podem nos dizer muito sobre o desejo destes do autor “[...] a vítima em questão aqui é a
documentaristas em atravessar esta ponte, vítima outra, outra que não nós” (p. 101-102).
além do filme ref letir uma vontade política de
memória. As interpretações de suas memórias Mesmo reconhecendo que “os materiais do
traumáticas é um gesto político com os outros arquivo dão forma à prática incorporada de
que também fazem parte de sua história. inumeráveis maneiras, mas nunca ditam
totalmente a incorporação” (TAYLOR, 2013,
O transmissível aqui da memória traumá- p.51), ou seja, que o filme, enquanto “mídia de
tica é da ordem da herança. “É a justiça que, memória”, só nos oferece à análise fragmentos
ao extrair das lembranças traumatizantes de um repertório, de uma memória cultural
seu valor exemplar, transforma a memória em transformação, desprezar a performance
em projeto; e é esse mesmo projeto de jus- como uma forma de reter a memória cultural
tiça que dá ao dever de memória a forma não nos parece ser plausível estando diante
do futuro e do imperativo” (RICOUER, 2007, destes “documentários de memória afetiva”.
p.101). Entretanto, segundo o autor, esta É preciso lembrar que há situações em que não
relação entre justiça e dever de memó- há documentos, fotografias, vestígios, logo, só
ria precisa ser problematizada sob três resta aos sobreviventes acionar o repertório.
aspectos: (1) o dever de memória é fazer É o que vemos no documentário A imagem que
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falta (2013), em que Rithy Panh recorre a bone- arquivo e trilhas, constrói uma atmosfera de
cos de argila para reconstruir a comunidade forte potencial de afeccção em nós espectado-

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em que ele morava com a família em Phnom res. Mesmo que a performance não ocorra ao
Penh, capital do Camboja nos anos de 1970. vivo, pois estamos falando de um filme, somos
Rithy Panh é sobrevivente da revolução do provocados a participar desta performatiza-
Khmer Vermelho, responsável pelo massacre ção da memória, ao ponto de sentirmos“[...] ao
de mais de um milhão de pessoas no Camboja, mesmo tempo contaminados pelo espetáculo
no período de 1975 a 1979, e sua obra cinema- e responsáveis por se posicionarem em rela-
tográfica é dedicada a rememorar este trágico ção a ele” (TAYLOR, 2013, p.118). Na ausência
capítulo da história recente de seu país. de imagens – aquelas que ajudariam a provar
o horror que significou o massacre em Phnom
Segundo Leandro (2014, p. 5), “Na obra de Penh, e do qual se procurou apagar da história
Rithy Panh, a escrita da história na primeira – em A imagem que falta (2013) “Somente por
pessoa não remete a uma subjetividade ou meio da performance pode-se tornar visível
a uma voz que diz ‘eu’, mas ao testemunho do o desaparecimento” (TAYLOR, 2013, p.284).
outro – as vítimas, os mortos e seus algozes,
que testemunham diante do cineasta”. Entre- Considerações finais
tanto, como alerta a autora, o filme A imagem A performance aqui entendida para pensar
que falta é a primeira investida do diretor na o “documentário de memória afetiva” não se
narrativa documentária em primeira pessoa, reduz à teatralidade a qual o conceito está
aqui a história cambojana se confunde com historicamente associado, tampouco a ati-
a da família de Rithy Panh. “Eu busco a minha tude performática do documentarista deve
infância como uma imagem perdida” declara ser interpretada como um mero estar em
o documentarista logo na primeira sequência cena. Em A imagem que falta (2013) não vemos
do filme, no entanto, ao final conclui para nós Rithy Panh – ou vemos sua imagem desfo-
espectadores que ele não encontrou a imagem cada –, logo, a performance afetiva do qual
que faltava de sua infância, e que, portanto, se tratou neste artigo não deve ser reduzida
ele a criou para nós, “[...] para que não parem a uma ação performativa dos corpos filma-
de olhar para nós”. O documentário coloca dos, sobretudo do corpo do documentarista.
em diálogo imaginário e memória, apre- É isto, mas não só isto. Traduz-se em uma
senta uma narrativa em primeira pessoa que, forma de estar no mundo capaz de interpre-
associada a cenas reconstituídas com os bone- tar e transformar/atualizar o passado retra-
cos, e outros dispositivos como imagens de tado, tendo em vista que
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“[...] as performances entram em diálogo 22


performático, que encontra na recordação
com a história do trauma sem que elas
próprias sejam traumáticas. Elas são tra- um gesto revestido de uma potência afeccio-

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balhos elaborados cuidadosamente, que nal. A forma como o filme testemunha/atua-
criam uma distância crítica para ‘reivindicar’
liza o passado, na chave do trauma, convida
a experiência e possibilitar a ação de teste-
munhar, ao invés de seu ‘colapso’” (TAYLOR, os espectadores a serem coparticipantes do
2013, p. 292). acontecimento traumático (TAYLOR, 2013).
Por mais que a dor do trauma é indissociá-
Ter o documentário como uma valiosa “mídia vel daquele que narra, neste tipo de docu-
de memória” (ASSMANN, 2011) da contempo- mentário a performance afetiva da memória
raneidade implica em interpretá-lo como um vem satisfazer um dever moral do realiza-
documento vivo, que comunica, interpela dor com os seus mortos, uma vontade polí-
o espectador. No caso dos “documentários de tica de memória em que narrar não basta,
memória afetiva”, estes atuam politicamente é preciso afetar o Outro. A afetação torna-
na ordem da afetação, os sujeitos que se rela- -se estratégia para acessar uma dimensão
cionam com a narração (seja o realizador, os do evento traumático que seja narrável,
demais personagens sociais, e os especta- compartilhado com aquele que não sofre
dores) são todos afetados pelo trauma (ou do trauma. Mesmo sabendo que se trata de
por sua narrativa) das mais diversas ordens. uma visão parcial, os espectadores deste
Atravessado por uma performance afetiva da tipo de documentário não se importam com
memória, ditado por um “pacto autobiográ- isso, pois o pacto assumido os coloca diante
fico” (LEJEUNE, 2014), este documentário se de uma narrativa subjetiva em que sua den-
reveste de uma expressão ensaística marcada sidade é da ordem da experiência humana.
pela experiência do Eu (CORRIGAN, 2015), que
não se abdica da relação com o Outro, mas Referências
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Performance and documentary Performance y documentario
of affective memory de memoria afectiva

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Abstract Resumen
It proposes an initial approximation of the Se propone una aproximación inicial de
relationship between performance and traumatic la relación entre performance y memoria
memory and its implications for documentary traumática y sus implicaciones para la narrativa
narrative in first person (autobiographical). de lo cine documental en primera persona
Understands performance as an expressive (autobiográfica).Entiende performance como un
behavior capable of transmitting memory and comportamiento expresivo capaz de transmitir
cultural identity, valuing both the repertoire and la memoria y la identidad cultural, a partir de la
the archive, as proposed by Diana Taylor (2013). valorización tanto del repertorio y del archivo,
In this type of cinema the testimony is of the order como propuesto por Diana Taylor (2013).En
of the performance, of an affective performance este tipo de cine el testimonio es del orden de la
of the documentarist. The testimony in these performance, de una performance afectiva del
documentaries is of a power of affectedness, documentalista. El contenido testimonial de
in which the filmmaker who narrates is also estos documentales ten un potencial afeccional,
affected by the narration of the trauma/past. en el que el cineasta que narra también es
Keywords afectado por la narración del trauma/pasado.
Autobiographical documentary. Palabras clave
Performance. Traumatic memory. Cine documental autobiográfico.
Performance. Memoria traumática.

Cássio dos Santos Tomaim


Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (Unesp), campus Franca (SP). Professor
do Departamento de Ciências da Comunicação e do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Santa Maria,
Rio Grande do Sul, Brasil. | E-mail: tomaim78@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0822-831X

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