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OS CLÁSSICOS E A EDUCAÇÃO PARA A PAZ

Dora Incontri
Os clássicos e a educação para a paz

Dora Incontri

“A responsabilidade de evitar aos conflitos, cabe aos políticos;


a de estabelecer uma paz durável, aos educadores.” Maria
Montessori, A Educação e a Paz.

Os clássicos da Educação são clássicos porque apontam ideias e propostas que


transcendem o seu momento histórico. Claro, considerando-se que existam pelo menos
algumas verdades atemporais e que nem tudo é mero contexto das circunstâncias. E
justamente um dos conceitos atemporais que nos servem na hora de pensarmos uma educação
para a paz é o conceito do ser humano.
Quem são esses clássicos a que nos referimos, em primeiro lugar? Entre os antigos,
destacamos Sócrates (morto em 399 a.C.); retratado e continuado por Platão; Jan Amos
Comenius (1592-1670) educador checo e pacifista, autor da Pampaedia (Educação
Universal); Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), um pouco menos desconhecido no Brasil; e
Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), o educador que introduziu o conceito e viveu a
prática do amor pedagógico. Entre os clássicos contemporâneos, podemos enumerar, pelo
menos aqui, Maria Montessori (1870-1952) a médica-educadora italiana e o também médico-
educador judeu polonês Janusz Korczak (1878-1942), morto no Campo de Concentração de
Treblinka, com suas 200 crianças órfãs. Esses dois inspiraram no século XX todo o
movimento de Direitos das Crianças.
O que educadores de tão diferentes épocas, culturas, religiões e países, podem ter em
comum? Sócrates, pré-cristão; Comenius, Rousseau e Pestalozzi, os três nascidos em culturas
protestantes, mas que fizeram releituras do cristianismo que receberam; Maria Montessori,
católica; Korczak judeu…
Ora, interessa-nos justamente o conceito de ser humano, que anima essas
personalidades, que aliás lhes era a motivação primeira para o exercício da educação. Desde
o parto espiritual proposto por Sócrates, que pretendia, através do diálogo, fazer dar à luz a
divindade interior do outro; passando pelo projeto de Comenius de educar plenamente toda a
humanidade; à bondade humana essencial de Rousseau e ao amor pedagógico de Pestalozzi –
todos eles revelam uma expressão de grande confiança no ser humano – visto como um ser
de potencialidades, com uma essência divina. Montessori se debruça sobre as crianças
pequenas e também enxerga a mesma coisa. Korczak, mesmo no inferno do gueto e da
guerra, ainda mantém viva a sua fé na humanidade.
Esse aspecto otimista do pensamento desses clássicos se relaciona diretamente com sua
visão transcendente da vida. Para eles, olhar o ser humano em sua integralidade, para, através
da educação, estimular o desenvolvimento de todas as suas potencialidades, significa também
incluir a sua dimensão espiritual.
O que tem isso a ver com educação para a paz? Muito. Porque então, pode-se entender
a violência, a agressividade, os impulsos negativos que o ser humano possa apresentar (em
qualquer época de sua vida) como algo circunstancial, com causas determinadas,
identificáveis até, mas não como constituintes de sua essência. Essa essência pode ser a
qualquer momento acordada, pelo diálogo socrático ou pelo amor pestalozziano. Assim, a paz
e o entendimento entre os seres humanos não nascem de consensos arranjados, apertados, de
uma administração de interesses contraditórios, mas de uma religar-se o ser a si mesmo, ao
transcendente e ao outro, no que tem todos têm de essencial e igual.
Educar para a paz não é apenas promover um diálogo de entendimento mútuo, por vias
racionais, argumentativas – embora isso seja importante – mas sobretudo, o despertar de
sentimentos de empatia e fraternidade.
Para Rousseau, por exemplo, temos dois impulsos básicos próprios do ser natural: o
amor de si (que não é a mesma coisa do amor-próprio) e a piedade. Vejamos o que ele diz:

“A piedade é um sentimento natural, que moderando em cada indivíduo a atividade do


amor de si, concorre à conservação mútua da espécie. É ela que nos leva sem reflexão ao
socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz a parte das leis, dos
costumes e da virtude, com a vantagem de que ninguém tenta desobedecer à sua doce voz
[…]. É, numa palavra, nesse sentimento natural, antes que em argumentos sutis, que é
preciso procurar a causa da repulsa que todo ser humano experimentaria de fazer o mal,
mesmo independentemente dos princípios recebidos na educação.” (Rousseau, Discurso
sobre a origem da Desigualdade)
Claro que, para ele, esses impulsos naturais estão degenerados em nossa sociedade
corrompida e por isso, seria necessário conservá-los numa educação “negativa” – a que
preservaria a criança desse contágio social. O amor de si, na sociedade degenerada, vira
amor-próprio, que é um sentimento que “compele o indivíduo a fazer mais caso de si que do
outro”.
Pois aí entra Pestalozzi, que reconhece que a Educação é o deixar florescer desse
natural divino, através das relações amorosas que começam na família e se estendem ao
educador:

“A meta para o qual o método tende constantemente e em todas as coisas, é de atingir,


vivificar e fortificar o que há de verdadeiramente humano, espiritual e moral na criança. Em
outros termos, ele considera e trata a criança, desde o primeiro momento, como uma
natureza humana, espiritual e moral e reconhece nele principalmente esta existência e esta
atividade. O fundamento de sua confiança na criança é a primeira revelação divina a
respeito do homem, que é na realidade uma imagem de Deus. Longe de considerá-la como
uma tábula rasa, sobre a qual é preciso escrever, como um vaso vazio que deve ser
preenchido, ela o vê ao contrário como uma força real, viva, ativa por si mesma, que desde o
primeiro momento de sua existência, opera, organizando, como um corpo orgânico sobre seu
próprio desenvolvimento e extensão… […] A natureza externa, os cuidados maternos, o
entorno doméstico despertam e determinam, regulam e dirigem entretanto, por sua
influência, a atividade dessa força, mas eles nada podem sobre a sua natureza.” (Pestalozzi,
Méthode théorique et pratique)

Na mesma trilha de Rousseau e Pestalozzi, Montessori considera que a Educação tem


que fazer um trabalho de resgate da natureza divina da criança, deixando que ela flua
autonomamente e com isso se faça um mundo de paz.

“Eis aí a grande tarefa social que nos espera: colocar em funcionamento o valor
potencial do homem, permitir-lhe atingir o desenvolvimento máximo de seus dinamismos,
prepará-lo verdadeiramente para mudar a sociedade humana, fazê-la mudar para um
patamar superior.” (Montessori, A Educação e a Paz)
Ou seja, todos esses grandes clássicos do pensamento, confiando plenamente nas
potencialidades humanas de atingirem patamares melhores de amor ao próximo, empatia,
solidariedade e paz, acreditam que a função da educação seja fazer desabrochar esses
impulsos já imanentes no ser, através de estímulos afetivos, de um clima de liberdade e de
um diálogo construtivo.
Dessa maneira, teríamos pessoas que, desde a infância, se sentiriam abastecidas
espiritual e afetivamente; contentes com sua liberdade e consigo mesmas (com um saudável
amor de si, à moda rousseauniana), sem reações de agressividade, violência, que são próprias
do ser humano, acuado, reprimido ou negligenciado. A violência é um sintoma de um
indivíduo que não foi suficientemente amado, cuidado e deixado livre para se fazer a si
mesmo de forma construtiva e segura. A violência social é um sintoma de um sistema
baseado em individualismo, competitividade, conflito de interesses…

“Os homens de hoje se tornaram adultos depois de terem sido, em sua infância e
adolescência, reprimidos, isolados e incitados a perseguir unicamente interesses pessoais.
Foram colocados sob a palmatória de adultos cegos. Esses, muito inclinados a negligenciar
os valores da vida, fixaram nas crianças que lhes foram confiadas apenas o objetivo, egoísta
e mesquinho, e obterem um bom emprego na sociedade.” (Montessori, A Educação e a Paz)

Por essas concepções otimistas que perpassam os clássicos antigos e contemporâneos


da Educação – o que faz que possamos aproximá-los entre si, sem medo de anacronismos –
que Comenius concebeu um projeto de Educação integral, universal, ecumênica e de paz para
toda a humanidade. Estava convencido de que uma educação plena, integrada, para todas as
criaturas humanas garantiria uma era de paz. Ele se refere aqui à Pansofia, sabedoria do todo,
que está longe de ser apenas essa mera instrução parcial, deficitária que hoje chamamos de
educação, mas algo que abrange todas as dimensões do espírito humano:
“Desejamos que todos os homens se tornem pansofos, isto é:
I. entendam as articulações das coisas, dos pensamentos e das palavras;
II. entendam os fins, os meios e os métodos de agir de todas as coisas (das suas e das
dos outros);
III. nas ações (assim como nos pensamentos e nas palavras), que se difundem e
confundem de vários modos, saibam distinguir as coisas essenciais das acidentais, as
indiferentes das prejudiciais. E, consequentemente, saibam distinguir os desvios, próprios e
alheios, dos pensamentos, das palavras e das ações, e estejam sempre e por toda a parte
aptos a regressar ao reto caminho.
Efetivamente, se todos fossem doutos em tudo isto, tornar-se-iam todos universalmente
sábios; e o mundo ficaria cheio de ordem, de luz e de paz.” (Comenius, Pampaedia)

Referências bibliográficas:

COMENIUS, Jan Amos. Pampaedia – Educação Universal. São Paulo: Editora


Comenius, 2014.
MONTESSORI, Maria. A Educação e a Paz. Campinas: Papirus, 2004
PESTALOZZI, Johann Heinrich. Sämtliche Werke und Briefe. Kritische Ausgabe.
Zurique: Orell Füssli, 1927-1980. Vol. 28, Méthode théorique et pratique.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Œuvres complètes. 4 vols. Bibliothèque la Pléiade. Paris,
Éditions Gallimard, 1967.

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