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O Estado brasileiro e as limites da estatização1

João Manuel Cardoso de Mello2

É inegável a magnitude da intervenção do Estado na economia brasileira, seja do


ponto de vista do peso do setor produtivo estatal, seja da enorme capacidade de controle
de fundos destinados ao financiamento da acumulação de capital. No entanto, é possível
constatar que não ocorreu no Brasil, nos últimos anos, nenhum processo de
“estatização”: nem o Estado ampliou sua participação relativa na propriedade dos meios
de produção, nem mesmo elevou significativamente sua fatia na apropriação do
excedente, em função do seu maior poder fiscal.
Em síntese, não se pode nem desconhecer a importância crucial do Estado no
capitalismo brasileiro nem, por outro lado, ignorar os limites precisos de sua
intervenção. O que nos aflige é a forma de lidar teoricamente com este problema. Não
pretendemos nos limites deste simpósio tentar resolvê-lo, mas apenas indicar alguns
caminhos.
O ponto de partida pode ser tomado da contraposição entre capitalismo
concorrencial e capitalismo monopolista. Poderíamos dizer que a diferença específica
entre eles reside na forma distinta assumida pela dinâmica da acumulação. Em outras
palavras, no capitalismo concorrencial a acumulação de capital é autoregulada, no
sentido de que a concorrência entre os diversos capitais estabelece uma tendência à
equalização da taxa de lucro. Esta tendência é contrariada por uma diferenciação destas
mesmas taxas, de modo que, no seu movimento, o capital redistribui-se continuamente
pelos vários setores, fixando-se neste processo novos padrões de divisão social do
trabalho. Vale dizer, a diferenciação da estrutura produtiva aparece como expressão
deste movimento de contínua redistribuição setorial dos capitais. Essa diferenciação –
desenvolvimento de novos setores e reorganização dos existentes – é a forma pela qual
se desenvolvem, no capitalismo, as forças produtivas. Se quisermos seguir o
ensinamento de Schumpeter, podemos afirmar que a livre concorrência, assim
entrevista, não é um processo de restabelecimento do equilíbrio, senão uma forma de ir

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O presente texto foi publicado originalmente em: MELLO, João Manuel Cardoso de. O Estado
brasileiro e os limites da estatização. Ensaios de Opinião, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 14-16,
1977.
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Professor titular, aposentado, do Instituto de Economia da UNICAMP.
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rompendo, sem cessar, a rotina da vida econômica. Esse processo, no entanto, não é
linear, senão perpassado por oscilações cíclicas, que expressam momentos diferentes do
movimento da acumulação de capital. A expansão é o momento de aceleração da taxa
de acumulação, com simultânea diferenciação da estrutura produtiva.
A crise é o momento de desvalorização e de queima de capital, implicando em
reacomodação das novas relações intersetoriais. É importante reter o que significa
reacomodação das novas relações intersensoriais. No momento de crise, a
desvalorização e queima de capital não se processa homogênea ou uniformemente.
Assim, longe de equalizar as taxas de lucro, promove ao contrário, seu reordenamento e
diferenciação em relação aos investimentos futuros. Em cada setor preexistente a fração
do capital que logrou resistir à crise vê subir progressivamente sua taxa de lucro, como
resultado da destruição do velho capital, o que enseja uma tendência à concentração e
prepara a recuperação futura. Entretanto, a taxa de lucro nos setores existentes, apesar
da concentração crescente, tende a ser inferior à rentabilidade esperada do investimento
nos setores novos, como reflexo das inovações técnicas e da abertura de novas
fronteiras criadas no bojo da expansão anterior. Configura-se, assim, a potencialidade
de uma nova expansão, com base num novo espectro de taxas de lucros setoriais. Desta
forma, no capitalismo concorrencial, a própria crise engendra a recuperação e prepara
uma nova etapa expansiva, pela ação de mecanismos estritamente econômicos.
Isto posto, é necessário fazer referência a uma das dimensões fundamentais do
processo de autoregulação do capital, qual seja, o mecanismo de regulação dos salários.
Na expansão a dilatação da produtividade social do trabalho (proporcionalmente
superior ao movimento da massa de salários) garante a determinação de uma margem
bruta de lucros capaz de viabilizar a subida contínua da taxa de acumulação. Na crise, o
desemprego promove uma forte rebaixa da taxa de salários. Apesar disto, esta rebaixa é
incapaz, por si só, de compensar a violenta quebra das margens de lucro, que resulta
fundamentalmente da contração ainda mais forte do volume das inversões, decorrente
do colapso momentâneo da taxa de lucro esperada. No entanto, à medida que se
processa a queima e concentração de capital, as margens de lucro vão-se-recompondo,
enquanto o desemprego geral impede a subida concomitante da taxa de salários.
Vejamos agora de que modo se passam as coisas no capitalismo monopolista.
Em primeiro lugar, desaparece a tendência à perequação da taxa de lucro entre os
diversos setores. Isto porque numa estrutura monopolista consolidada surge barreiras à
entrada, de modo que o capital vê bloqueado o seu movimento intersocial. Desta forma,

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tende a se cristalizar um espectro de taxas de lucro, cujo perfil e variabilidade dependem
do grau de concentração e do poder monopolístico de cada setor. Desta forma, à
primeira vista, os excedentes de capital poderiam ficar represados no interior de cada
setor, no que a taxa de rentabilidade esperada tenderia a se deprimir, levando à
possibilidade de crise, com disrupção da estrutura monopólica (guerra de preços etc.).
Todavia, nada disso ocorre, pois os obstáculos à mobilidade intersetorial do capital são
superados por uma nova forma de mobilização que se consubstancia no surgimento de
uma nova órbita: a financeira. É necessário, portanto, que o capital assuma sua forma
mais abstrata e portanto mais desenvolvida para que a acumulação possa de novo fluir
livremente. Será exatamente no novo contexto da órbita financeira que se processará, de
modo distinto, a tendência à equalização da taxa de lucro.
É claro que as formas concretas que assume a órbita financeira podem variar em
cada momento histórico do desenvolvimento capitalista. Assim, por exemplo, em vários
casos o capital bancário foi dominante na articulação entre a órbita real e financeira
(sobretudo até a grande depressão).
A partir do pós-guerra, surge o grande conglomerado que agiliza a diversificação
setorial, dentro do mesmo bloco de capital. No primeiro caso, o capital bancário
distribuía sua participação entre empresas de vários setores produtivos, de modo a abrir
os canais indispensáveis à mobilidade do capital. É neste sentido que o capital bancário
impõe sua predominância. No caso do grande conglomerado, o capital bancário é
dispensado desta função, desempenhada agora pela empresa-holding que determina a
alocação dos fundos disponíveis em função de uma estratégia global do bloco de capital
que controla. Desta forma, a equalização da taxa de lucros se verifica entre blocos de
capital, enquanto a mobilidade do capital se processa no interior de cada bloco de
empresas e não mais diretamente entre os setores produtivos (onde a heterogeneidade de
taxas de lucro pode permanecer).
Isto não implica um arrefecimento da concorrência intercapitalista.
Contrariamente, ela se agrava pela luta feroz entre os grandes blocos de capital. Agora
todos são fortes. Nas etapas de expansão, todos se lançam à conquista de novos
mercados e à introdução de inovações técnicas, configurando uma reação em cadeia.
Neste momento, a economia capitalista parece crescer sem fricções, criando-se uma
fronteira de expansão, como resultado desta aceleração conjunta da taxa de inversão.
Nesta hora é possível o atendimento de todos os interesses. Se neste momento a
interferência do Estado cresce, aumentando sua capacidade de direcionamento da

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acumulação pela redistribuição da chamada “poupança”, ela é naturalmente encarada
como legítima e benfazeja pelo próprio capital monopolista, posto que se destina a
promover a reprodução do próprio sistema, livre de fricções sérias. Mas chega o
momento em que a expansão encontra seus limites, quando, no afã individual de se
colocar à frente do processo de expansão, o conjunto de empresas gera capacidade
ociosa não planejada, o que vem deprimir a taxa de inversão, sobrevindo a crise.
Como distribuir o ônus da crise? Como restabelecer a divisão dos mercados
agora mais curtos? Como distribuir os riscos? Como arbitrar a desvalorização do capital
entre os blocos? E, finalmente, por meio de que mecanismos poderia ser gerada uma
nova etapa de expansão?
Parece ter ficado claro que a economia monopolista não dispõe de formas de
auto-regulação. No entanto, apesar disso, o capitalismo do século XX não foi abalado
por uma sucessão contínua de crises catastróficas. Como explicar isto? Na verdade, as
funções de regulação passam a ser exercidas no âmbito do próprio Estado. Com isso não
queremos dizer, é bom advertir, que o Estado tenha-se transformado num
supermecanismo externo de regulação, como sugere a interpretação corrente, de origem
keynesiana. Não se trata de caracterizar o Estado no capitalismo monopolista pelas suas
funções, quer dizer, como “Estado intervencionista”, o que supõe, na verdade, uma
relação de exterioridade entre Economia e Política. Ao contrário, no capitalismo
monopolista há uma politização da economia, no sentido de que tanto a forma da
concorrência intercapitalista como a forma das relações entre capital e trabalho são
constituídas no Estado. Isso, a nosso ver, explica o paradoxo de que nenhum conflito
pode-se subtrair à presença do Estado, e, ao mesmo tempo, a articulação dos interesses é
fugaz e circunstancial. Diante disso, necessariamente toda a crise econômica se
transfigura numa crise política. Em suma, é deste ponto de vista que adquire sentido o
conceito de capitalismo monopolista de Estado.
Neste quadro, como podemos recolocar o problema da “estatização” e seus
limites? Sem querer simplificar a questão, poderíamos dizer que a “estatização” é, na
realidade, o epifenômeno das novas formas de regulação encarnadas no Estado e que
seus limites estão dados pelas necessidades da reprodução conjunta do próprio capital
monopolista. Estas necessidades não permitem que o Estado rompa “de dentro” os
interesses privados que nele estão substanciados, transformando o capitalismo em seu
contrário.

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Finalmente, vamos tocar uma questão que aliás esteve subjacente nas demais
exposições. É possível, a partir do que foi discutido sobre o capitalismo monopolista de
Estado, oferecer algumas sugestões sobre sua problemática no Brasil?
Em primeiro lugar, o capitalismo monopolista de Estado aqui se instaura ao fim
do ciclo Juscelino, que marca a última fase da industrialização. Aí foram completadas as
bases técnicas necessárias à autodeterminação do capital (base produtiva pesada de bens
de produção), cristalizadas no estabelecimento de relações entre os Departamentos de
Bens de Produção, Bens de Consumo Assalariado e Bens de Consumo Capitalista, o que
impõe uma dinâmica especificamente capitalista ao processo de acumulação.
Explicando melhor, é verdade que a presença dominante de monopólios marca, desde o
início do século, nossa estrutura industrial; mas não se pode pensar em capitalismo
monopolista de Estado antes do fim da industrialização, quando se configura
uma estrutura monopólica capaz de determinar o caráter da acumulação.
O capitalismo monopolista de Estado assume no Brasil características
particulares decorrentes da própria industrialização tardia. De um lado, a estrutura
monopolista é marcada pela existência de um setor produtivo estatal na indústria de
base e pela profundidade do processo de internacionalização do sistema produtivo, e
conseqüentemente por uma fragilidade congênita do capital monopolista nacional. É a
partir destes traços que podemos entender a natureza da função reguladora do Estado na
economia brasileira.
Do ponto de vista estrutural maior, essa função impõe ao Estado a presença de
um setor produtivo estatal capaz de apoiar em forma negociada e, portanto, conflitiva as
grandes empresas internacionais, e ao mesmo tempo proteger o capital nacional,
regulando seu avanço em direção à monopolização, porém de forma contraditória.
Evidentemente, em situação de expansão acelerada, as fricções são resolvidas de forma
positiva. Em situação de crise, porém, o caráter conflitivo e contraditório desta
associação se traduz num arrefecimento da capacidade reguladora do Estado. Não se
trata, porém, apenas de um conflito desencadeado a partir de interesses gerais de cada
segmento empresarial, como se cada um deles pretendesse fixar um caminho para a
expansão, necessitando, para isso, submeter os demais. O problema na realidade é muito
outro: em torno de cada projeto definido pelo Estado, há que compor interesses
específicos das empresas de cada segmento. Ocorre que nenhum dos interesses é capaz
de se impor, viabilizando o objetivo fixado pelo Estado. Nestas circunstâncias, o Estado

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se vê dardejado por uma onda de solicitações contraditórias que é incapaz de atender e
conciliar.
Alguns pontos merecem um exame mais apurado, na tentativa de desfazer
equívocos. Em primeiro lugar, o chamado setor produtivo estatal não possui autonomia
financeira suficiente para saltar à frente e liderar a expansão futura. Isto porque, desde
logo, não há nenhuma articulação orgânica entre as várias empresas públicas que atuam
como oligopólios isolados, de modo que não há a possibilidade de uma gestão conjunta
de recursos que permitisse a centralização do capital e sua canalização para novos
investimentos. Mais que isso, dado o comportamento das empresas, não há a
possibilidade de fixação de prioridades que privilegiassem certos programas de inversão
em detrimento de outros.
Alguém poderia objetar que o Estado teria condições de transferir recursos
fiscais para reforçar o poder de acumulação de suas empresas. Mas aí também o Estado
se vê às voltas com solicitações da empresa privada, que reivindica sua parte no bolo. O
aturdido Leviatã assiste, de mãos atadas, o encurtamento súbito de seu poder financeiro
e é surpreendido por acusações de promover a estatização desenfreada.
Por outro lado, a grande empresa internacional, diante da crise mundial, mantém
um comportamento cauteloso: não está disposta a se envolver em projetos por demais
ambiciosos, nem a investir sem que lhe sejam oferecidas vantagens de monta. Não está
comprometida com os nossos destinos, como potência capitalista, mas sabe muito bem
que o avanço do capitalismo no Brasil não será logrado sem sua larga participação.
Nestas condições, é utopia crer que será possível dinamizar o capitalismo ferindo os
interesses fundamentais da grande empresa internacional.

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