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A Década do Agito

Poucas décadas da história moderna foram tão movimentadas,


profícuas, coloridas e revolucionárias como a década de 60. Repletos de
mudanças culturais e comportamentais definitivas — o surgimento da
contracultura, a explosão do rock, as rebeliões estudantis, a revolução
sexual, as experiências alucinógenas, a espiritualização via religiões
orientais —, os anos 60 até hoje continuam influenciando decisivamente
uma grande parcela da juventude ocidental.
Luiz Carlos Maciel, que praticamente sintonizou o Brasil com o
universo underground dos 60 — com os artigos que escrevia no Pasquim
—, faz aqui um balanço destes dez anos explosivos, que ele viveu com
profunda intensidade.

Loucos Anos

Panteras Negras, LSD, hippies, líderes estudantis, estrelas do rock,


gurus, pacifis-tas, visionários, profetas lisérgicos — eis alguns dos
protagonistas de uma das décadas mais explosivas da história recente: a
década de 60. Depois dela, o mundo já não voltaria a ser o mesmo.
Foi nos 60 que praticamente nasceram os movimentos ecológicos e
pacifistas, que se criaram as comunidades rurais, se “descobriram” as
religiões milenares do Oriente, se deflagrou a revolução sexual, que se
mergulhou na experiência alucinógena.
Todo este universo colorido e movimentado é analisado agora por um
de seus principais protagonistas no Brasil: o jornalista e escritor Luiz Carlos
Maciel, que com sua coluna no semanário Pasquim sintonizou a juventude
brasileira da época com o underground internacional.
I
Os anos 60 foram muito importantes; para mim, por exemplo. Nasci
em 1938, o que significa que vivi a célebre década dos vinte e dois, aos
trinta e dois anos, ou seja, na flor da idade. Simplificando, a juventude que
agitou os 60 era formada por três faixas: os que a viveram dos vinte aos
trinta, como eu; a turma intermediária, dos quinze aos vinte e cinco; e as
crianças que viram os 60, dos dez aos vinte anos. Os mais jovens que isso
não viram nada; os mais velhos nada entenderam.
Eu estava na faixa mais madura da geração, o que era adequado à
minha natural vocação para a reflexão. Foi divertido. Aconteceram coisas
demais, nos 60. Senão, vejamos.
Acho que deve ser mencionada, em primeiro lugar, a vocação política
da geração. Queríamos mudar o mundo, era a nossa questão básica; mais:
tínhamos a certeza de que isso ia acontecer — para melhor, bem entendido.
Não nos passava pela cabeça que o ser humano pudesse passar seu tempo
de vida sobre a Terra alheio aos problemas sociais e políticos; esta era, para
nós, a pior das alienações. Foi assim que, nos 60, produziu-se uma arte
política, uma cultura voltada para a questão social. Muitos da geração
comprometeram suas vidas com a política e seu modo específico de encarar
a realidade; alguns, por causa disso, foram presos, exilados, torturados ou
simplesmente assassinados.
1968 foi o clímax de uma aventura que ainda se arrastou penosamente
através dos anos 70 e que nem agora, nos 80, revelou plenamente o seu
significado. Às vezes, fico chocado ao perceber que as gerações mais
recentes não mostram a mesma disposição para a transformação, em
qualquer de seus níveis, preferindo a inércia conformista e deixando que os
60 ganhem, cada vez mais, a aura de ter sido a década da rebeldia par
excellence. Hoje, os jovens evitam o confronto; preferem falar mal dos
adultos pelas costas. Talvez seja mais hipócrita, mas é mais prudente.
Nos 60, a gente tinha de correr da polícia, com os olhos e as vias
respiratórias ardendo por causa do gás lacrimogêneo. Não demorou muito,
entretanto, para que se descobrisse que o impulso para a rebelião tinha, na
política, apenas um canal externo. Na raiz interna, o inconformismo era
existencial. Não era apenas a sociedade que estava errada; era o jeito que a
gente vivia. Não eram apenas o mundo externo, a vida coletiva que, por
injustos e cruéis, deviam ser transformados, mas a própria vida individual, a
que se vivia todos os dias, a experiência pessoal, íntima, o ser interno que,
por confusos e dolorosos, deviam revelar o seu sentido até então oculto.
Esse aprofundamento foi feito em contato direto com a repressão
externa que foi, finalmente, reconhecida como manifestação da repressão
interna, mais grave, mais funda, e experiência pessoal de cada um de nós.
Percebemos, nos anos 60, que nossa educação havia sido uma distorção;
nossa formação, um processo mórbido, uma deformação.
Na verdade, ir em cana, nos 60, era uma das melhores maneiras de
crescer como ser humano, evoluir espiritualmente. O primeiro momento era
uma lúcida desilusão com os valores sagrados da opressão, denunciados
como Maya, ilusão. O processo envolvia a mutação psicológica que haveria
de marcar a década como seu acontecimento central.
O pensamento oriental tem tido uma importância muito grande na
evolução espiritual dos últimos anos. No meu caso particular, isso se
verifica desde que percebi que alguns dos seus conceitos fundamentais
eram análogos a certas posições do que se chamou “contracultura”,
estabelecidas a partir da experiência vivida. Percebi, ainda, que a intenção
fundamental da contracultura foi contestar a visão de mundo que prevalece
na sociedade ocidental como um todo, além das possíveis diferenças
políticas.
Aliás, comunistas e capitalistas têm mais coisas em comum do que
eles próprios acreditam. Ambos vêem o mundo como uma coisa objetiva,
que já está feita. Quer dizer, o mundo é uma espécie de artefato, um
produto.
A contracultura contestou essa concepção na medida em que abriu a
possibilidade de uma verdadeira liberdade para as pessoas. Não o fez
contestando O pretenso objeto em favor da pura indeterminação subjetiva,
mas simplesmente reivindicando, por razões afetivas, obscuras e pessoais,
uma liberdade individual mais ampla. Mas, no pensamento oriental, há uma
crítica mais profunda: a crítica da realidade dita objetiva, do tal mundo, do
tal artefato, do tal objeto pronto. No Oriente se chegou a formulações muito
mais simples e precisas dessa denúncia da realidade objetiva enquanto tal.
A realidade não é um sujeito que confronta um objeto: é uma
experiência instantânea. O que aconteceu no instante anterior não existe
mais em lugar nenhum, só em nossas cabeças, como memória; isto é: uma
imagem. Mas as imagens são diferentes entre si e, entre elas, não existe
nenhuma objetiva, nuclear, substancial.
O que dizemos sobre a realidade é apenas descrição; a realidade não é
nenhuma dessas descrições; ela é totalmente livre e instantânea; agora
brilha fugazmente; agora morre; ressurge no instante seguinte; e por aí vai.
A partir da visão da instantaneidade, da compreensão do aqui e agora,
você também pode agir politicamente. Isso vai exigir de você, como homem
de ação, uma grande concentração. O homem político abraça uma
ideologia, elege uma política, e descansa. Á cabeça dele fica preguiçosa.
Mas há alternativa.
A política é um jogo falso e desastroso porque é feita por homens
desatentos, homens escravizados por seus próprios preconceitos. Mas
imaginem que poder, que eficiência teria a ação política se ela fosse
exercida por homens livres que soubessem que a única realidade é aqui e
agora, que a experiência plena do instante VIVO é suprema.
Esta é uma idéia tântrica: fazer, desse jogo mentiroso que é a política,
um caminho de libertação.
Das tradições orientais, o Tantra é certamente a que melhor se aplica às
atuais necessidades concretas do Ocidente. Sua utilização da fraqueza ou da
confusão ou do pecado, simplesmente, para o crescimento espiritual parece,
mesmo, ser a única via para a regeneração, em grande escala, da nossa
sociedade.
O nosso caminho, estou convencido, só pode ser tântrico: arranca sua
força do desamparo, inventa a vitória no coração da derrota e continua vivo,
graças a sua aceitação da morte.
Passei o Ano Novo, de 1959 a 1960, em Pittsburgh, nos Estados
Unidos. Dias antes, tinha visto o primeiro Natal com neve da minha vida.
Estava tão distraído com as novidades que nem sequer notei que estávamos
começando a célebre década de 60, os anos inesquecíveis do sonho.
Começávamos a sonhar, mas sem saber.
Eu estava no local, com uma bolsa da Fundação Rockefeller, para
estudar teatro no Carnegie Institute of Technology. Tinha vinte e um anos
de idade, ia fazer vinte e dois em seguida.
Meu objetivo, naturalmente, era aprender para ajudar a tornar o teatro
brasileiro o melhor do mundo. Tínhamos consciência de que estávamos
predestinados. A cultura brasileira queria se libertar definitivamente do
complexo colonial e, no mínimo, igualar-se às mais desenvolvidas do
planeta. No Brasil, a década começou com um grande projeto coletivo pela
emancipação nacional, pelo menos no plano do espírito, e se isso não fosse
de todo também possível, nos planos mais concretos, o econômico, o social.
Contribuir para a execução desse projeto era responsabilidade de todo
jovem que não fosse completamente alienado. Era isso que eu achava.
Estávamos em plena modernização do Brasil. Juscelino Kubitschek
construíra Brasília, líamos os teóricos do Instituto Superior de Estudos
Brasileiros, ouvíamos os discos de João Gilberto, a classe média instruída
lançava-se às artes populares. Nossos ídolos eram Heitor Villa-Lobos,
Cândido Portinari e Oscar Niemeyer. Eles anteciparam o nosso futuro,
aquele que a nova geração — a nossa — inevitavelmente iria consolidar. A
hipótese de que, ao invés disso, o futuro traria uma ditadura militar de vinte
anos era impensável, mesmo pelo mais louco dos reacionários, em seus
sonhos mais desvairados.
Vivíamos, portanto, em fase de vibrante otimismo: o futuro era nosso.
Nos Estados Unidos, onde eu tinha ido aprender, me permitia até um
secreto sentimento de superioridade. Aquele era um país que já estava
pronto; atingira o ápice do desenvolvimento econômico e tecnológico nos
anos 50, agora a decadência seria inevitável; era o esclerosamento final do
capitalismo, sua falta de perspectivas era nítida na debilidade da esquerda
norte-americana. As notícias que eu recebia do Brasil, ao contrário,
indicavam que marchávamos para o socialismo. A conscientização política
era o principal fenômeno da vida brasileira na época, pelo menos entre nós,
jovens intelectuais de classe média.
Já o fenômeno norte-americano que me interessava era, não o sucesso
capitalista, um sucesso necrófilo, no fundo, mas a crítica que se fazia à
sociedade norte-americana, principalmente as mais radicais, que não eram,
na minha opinião, as feitas pelos políticos, mesmo de esquerda, mas as dos
artistas inconformados e rebeldes do país, como, por exemplo, os escritores
da beat generation. O que importava era o vigor e a eficiência da negação.
Como estudante brasileiro, isto é, latino-americano, nos Estados
Unidos, a questão política que mais se mobilizou, no período 1960-1961,
foi a defesa da revolução em Cuba. As vozes que se ergueram a favor dela
num país que se transformara no paraíso da reação, eram poucas mas
corajosas, e conquistaram minha admiração.
Norman Mailer disse que Fidel Castro era um dos maiores heróis do
século. C. Wright Mills escreveu Listen Yankee, uma explicação da
revolução cubana, do ponto de vista do povo cubano, endereçada ao povo
norte-americano.
A classe média norte-americana era histericamente anticastrista, o que
reforçou meus sentimentos espontaneamente marginais. Quanto mais a
televisão, os jornais, os colegas e os vizinhos falavam mal de Cuba, mais
indignado com o imperialismo ianque e mais convencido eu ficava de que o
socialismo era a via de libertação dos povos latino-americanos.
Nos EUA, a consciência e o exame do conformismo, que dominou a
sociedade norte-americana ainda na década de 50, foram exaustivos. Os
sociólogos denunciaram a mudança fundamental do caráter social
americano, de inner-directed para other-directed, nos termos de David
Riesman, isto é, do pioneiro criador e individualista das origens do
capitalismo americano para a ânsia por segurança que instalou, no país, a
submissão generalizada, o conformismo e a necessidade de uma
identificação com a imagem de cada um tal como é reclamada pela
sociedade. Q homem empreendedor que criou a riqueza capitalista, as
grandes empresas, desapareceu. Foi substituído pelo tipo mais adequado às
novas exigências: não se trata de criar empresas, mas de servir às que já
existem.
William Whyte descreveu, em The Organization Man, o novo tipo e a
satisfação com que ele aceitava a ética conformista que lhe era imposta pela
grande organização em que trabalhava. A infecção conformista é um
resultado natural da estrutura capitalista, em seu estágio contemporâneo de
desenvolvimento. Esse conformismo parece indispensável para o equilíbrio
de uma sociedade que exige o aumento artificial do consumo, através de
falsas necessidades.
O livro de Vance Packard, The Hidden Persuaders, demonstrava a
conveniência do conformismo para a prosperidade capitalista e apresentava
a busca de status social como a dinâmica básica da sociedade
contemporânea. O que estava se verificando, portanto, era a intensificação
de velhas formas de alienação e o surgimento de novas. Para o psicanalista
Erich Fromm, a alienação conformista era, sob o nome de ajustamento
social, o remédio mais receitado nos consultórios de seus colegas. Para os
cânones conformistas, a contestação e o protesto seriam manifestações
mórbidas de desajustamento.
Desde que o conformismo tem suas raízes no grau de alienação que
permite a manipulação em massa da opinião e o amoldamento das
consciências pela ameaça de perda do prestígio social, a luta prioritária, no
interior de uma sociedade conformista, é em defesa do direito de discordar.
Nisso, portanto, ela não difere da sociedade autoritária. O poder totalitário,
aberto ou dissimulado, exige do povo um endosso passivo das opiniões
oficiais; os insubmissos são considerados casos patológicos. Essa
uniformidade de opinião é o que se pretende, hoje, no Brasil, com o
objetivo de obstruir o processo de democratização, expresso em eleições
livres e diretas para a Presidência da República. É a ela que visa o
anunciado “pacto” social.
O conformismo — definido pelo marxismo como alienação e
denunciado pelo existencialismo como existência inautêntica — é a
essência do que se passou a chamar caretice, a partir da revolução interna
deflagrada nos anos 60. Por definição, careta é o homem que não é livre,
não assume a responsabilidade da própria existência e prefere deixar-se
conduzir com o resto da manada. Ele obedece, sem questionar, as regras que
lhe são impostas.
Para o sistema, é conveniente que a população seja composta, em sua
totalidade, por caretas convictos. No momento atual, no Brasil, atribuiu-se
principalmente aos meios de comunicação de massa — jornais, rádio,
televisão — a principal responsabilidade pela realização desse sonho
dourado do capitalismo autoritário: o condicionamento perfeito de todos os
cidadãos, como no Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou no 1984,
de George Grwell.
O povo brasileiro, por certo, não permitirá que essas tenebrosas
profecias se tornem realidade logo aqui, no querido Brasil, apesar dos
esforços da classe dominante a que estamos assistindo no momento. O
conformismo é incompatível com a verdadeira democracia, que significa,
acima de tudo, participação popular efetiva no poder.

1961 — O SUICÍDIO DO REBELDE


É impossível às almas mais sensíveis, aos mais lúcidos, principalmente
os lúcidos por intuição, viver em nosso mundo. Pior: a sociedade
contemporânea agrava essa impossibilidade, pois não os aceita mais do que
eles a aceitam. Nela, portanto, jamais se integram os que despertam para o
vazio da existência humana e sua verdade.
Este tema não é inédito. Tem sido, em infinitas variações, uma das
inspirações mais freqüentes do espírito contemporâneo, principalmente
quando se reveste de um alcance metafísico, nos momentos mais juvenis da
meditação sobre o paradoxo da existência. Os problemas do indivíduo
incapaz de encontrar um propósito na vida organizada, serializada (para
usar um termo de Sartre) da sociedade moderna, que é, por isso, condenado
a viver sem rotas nem raízes, em busca de uma liberdade vazia, e
transforma seu desencanto social em desencanto metafísico, dão-lhe uma
forma adequada.
Há anos atrás, um novo dramaturgo norte-americano, Edward Albee,
converteu-se numa figura exponencial do novo teatro americano, com uma
peça em um ato chamada The Zoo Story. O que preocupa Albee é
exatamente o tema que mencionamos e que pode ser encontrado em muitos
de seus companheiros de geração. Há alguns anos, por exemplo, um pouco
antes do lançamento do manifesto dos angry young men, o ensaio de Colin
Wilson, The Outsider, trazia-o no título e no texto.
O outsider de Wilson é esse indivíduo inaceitável e inaceitante que
vive fora da engrenagem social oficialmente reconhecida, para a qual é, de
alguma maneira, demasiadamente lúcido. A chamada beat generation norte-
americana também renovou o tema. O mais articulado desses novos
niilistas, cuja solução parece ser a inarticulação, é Norman Mailer, autor
principalmente de várias novelas e um ensaio, The White Negro, que, entre
outras coisas, divide a humanidade numa maioria de squares, isto é, de
conformistas submetidos à máquina social, serializados, e uma minoria de
hipsters, os rebeldes sem causa e sem esperança de nossa época.
Fiquemos nesses dois exemplos recentes e suficientemente ilustrativos.
Albee retoma as mesmas preocupações para uma formulação pessoal, não
num novo ensaio, mas numa peça teatral. A solução — ou impossibilidade
de solução, como se quiser — encontrada não difere da geralmente
proposta, com um aborrecimento sem compreensão, pelos insensíveis aos
insolúveis problemas do outsider. Por que não se mata? Sim, por que não?
— e, efetivamente, o Jerry de Edward Albee se mata no final da peça, mas
não antes de um esforço final pela compreensão de um square, não antes,
em todo caso, de tentar dar um sentido ao gesto extremo, o que confere
profundidade aos seus motivos, um interesse central à peça e uma dimensão
significativa irredutível a uma mera aceitação da sugestão de suicídio
oferecida pelos burgueses aborrecidos. Segundo Albee, se você aceita as
regras estabelecidas, a paz lhe é possível na leitura de um livro num banco
de parque; se não as aceita, a paz só é possível na morte. Ainda que a
primeira escolha pareça mais aconselhável por motivos tão óbvios a ponto
de eliminar imediatamente, para as pessoas de bom senso, a possibilidade
da alternativa, a segunda apresenta sobre a primeira a mesma vantagem da
lucidez sobre a cegueira, ou do homem que é ele próprio sobre o homem
que perdeu a si mesmo na teia de ilusões da organizada sociedade moderna.
Um dos traços que mais marcam e distinguem essas duas atitudes,
como dois projetos opostos de vida, é o fato de serem inconciliáveis e de
estabelecerem um conflito. O tema de The Zoo Story é, afinal, a
impossibilidade de conciliação ou entendimento entre esses dois projetos
originais de existência, o do solitário outsider e o do homem enquadrado
nos quadros vigentes e obediente às recomendações oficiais sobre
comportamento.
Esse conflito é encarnado por Jerry e Peter no seu encontro, num
domingo à tarde, num banco do Central Park de Nova Iorque. Jerry força a
comunicação e, apesar de seu desinteresse inicial, Peter é obrigado a tentar
estabelecê-la da maneira mais confortável possível, isto é, em seus próprios
termos. A ação básica da peça é, por isso, essa esforçada tentativa das duas
personagens para atingir uma relação satisfatória. É esse esforço que a
move, que a põe para diante. Movida por ele, entretanto, a peça se
desenvolve através de seus fracassos. As tentativas são inúteis e a relação
entre os dois homens permanece extremamente desconfortável para Peter e
progressivamente irritante para Jerry. E The Zoo Story atinge seu clímax
com uma briga provocada pelo último. Se, como sabemos, a ação básica de
uma peça, sua espinha — na expressão posta em moda por Bolelavsky —
deve traduzir no concreto, isto é, no comportamento dos personagens, em
termos de uma ação, o seu tema, em The Zoo Story as tentativas fracassadas
de alcançar uma relação satisfatória manifestam a sua temática, a
impossibilidade de entendimento ou conciliação entre duas atitudes opostas
diante do mundo.
O motivo do fracasso é evidente, desde que expressa o tema. Uma
relação humana satisfatória significa coisas inteiramente diferentes para
Peter e para Jerry. Posto que eles perseguem fins diferentes a respeito um
do outro, suas maneiras de tentar o tipo de comunicação desejado por cada
um também diferem radicalmente, dando oportunidade e lugar ao conflito.
O isolamento de Jerry é produto da insólita intuição de um profundo
isolamento em que as pessoas vivem a despeito da convivência. Para Jerry,
portanto, não se trata de conviver com os outros, ele opta pela solidão, mas
da possibilidade de estabelecer com ele uma verdadeira comunicação.
Trata-se do problema de uma sensibilidade machucada até o fundo pela
necessidade da comunicação que, não realizada no mundo das regras
estabelecidas, transforma-se, de uma forma genérica e obsessiva, na
preocupação dominante da vida de Jerry. Aqui a importância da “história do
zoológico”, que a justifica como título da peça, e o relevo que possui dentro
dela a longa fala de Jerry em que conta suas relações com o cachorro da
pensão em que mora.
Ê evidente que Jerry provoca Peter. Essa provocação, entretanto, não é
gratuita. Ainda que obscuramente, Jerry sabe que sua tentativa de contato
com Peter é a última e adivinha seu fracasso. Por ser a última, é também a
mais violenta e iluminadora: um dramaturgo escolhe sempre o momento
climático da vida de seu protagonista. Mesmo atravessado pela descrença,
Jerry pretende comunicar sua experiência a Peter; a provocação é uma
maneira de extirpar do contato a conversa convencional, a falsa
comunicação, naturalmente desejada pelo último. Peter não permanece
insensível e a história sobre o cachorro o perturba profundamente. Mas
reage com a violência do homem que vê seus valores em jogo e ameaçadas
as próprias bases sobre as quais assenta sua existência. O cerco de Jerry,
então, se intensifica e, com as defesas abaladas, Peter precisa manter seu
mundo, suas ilusões. O antagonismo se resolve numa discussão absurda em
torno da propriedade do banco em que estão sentados. Aqui é preciso, antes
de tudo, que se perceba o sentido simbólico da discussão. As imagens de
Albee são criadas a um nível realista. Não só esse banco é seu — aqui o
sentido da metáfora —, mas Peter é também, dos dois, o único que pode se
sentir neste mundo como em sua casa. O conflito principal da peça se
transforma, então, num conflito de direitos, e Albee questiona a consciência
do espectador sobre os direitos de Jerry à existência em nosso mundo. A
resposta é negativa e chega ao espectador através do gesto de Jerry de jogar
a faca aos pés de Peter. E, logo depois, ao atirar o corpo sobre a lâmina
erguida pelo braço trêmulo mas firme de Peter, ele consuma sua
desesperança. Por que não se matar, se este mundo não nos oferece valores
e não nos cremos capazes de criá-los? Se uma situação violenta, dominada
pela presença da morte, se uma situação-limite é capaz de despertar a
consciência submersa no cotidiano mecanizado para a tragédia, esse
suicídio pensado com a finalidade de culpar um desconhecido é o
derradeiro esforço de Jerry pela comunicação de suas experiências mais
profundas: ele oferece sua morte em holocausto à lucidez, procurando fazê-
la atingir um outro. Não são a pena por Jerry ou a simpatia por um inocente
Peter que devem dominar essa cena final, mas, antes de tudo, uma
consciência de culpa e, além dela, a angústia do sacrifício de uma vítima da
impossibilidade da existência autêntica, ou melhor, do sacrifício de uma
vocação para ela, frustrada numa e por uma determinada sociedade. Não
nos equivoquemos com o ponto de vista de Albee. Ele não se coloca no
plano da explicação social, mas no da rebelião metafísica, no sentido de
Albert Camus, e é o real em sua totalidade, e não uma determinada
circunstância histórica, que pretende negar, com a rebelião encarnada por
Jerry.
É verdade que Albee não só se permite, mas parece fazer questão de
revelar o suficiente sobre o passado de Jerry, para abri-lo à elucubração
psicanalítica, apontando prováveis raízes neuróticas em sua vida familiar,
em sua experiência homossexual na adolescência, etc. Mas, para o ponto de
vista de Albee, é evidente que a carência de saúde mental não invalida,
antes foi uma conseqüência, ou até mesmo uma autêntica catalisadora, da
válida intuição de Jerry. Os mais sensíveis — esta é uma lição de
psicanálise contemporânea —, submetidos à coação serializadora, são
sempre neuróticos, quando mais frágeis. O homem moderno apresenta,
geralmente, um certo grau de neurose, além da fronteira imprecisa que a
separaria da normalidade, na razão direta de sua sensibilidade e de sua
debilidade espiritual. A reação do humano à desumanização é natural e
inevitável, embora, sem direção, sem ser realizada pelo sentido e pelo valor,
resulte em desequilíbrio. Para Albee, parece que se trata, em Jerry, de uma
sensibilidade excepcionalmente vulnerável, sendo a sua incapacidade para
superar o fator neurotizante de sua intuição secundário diante da
importância e verdade dessa intuição. O homem comum, submetido à falsa
vida imposta pelas regras estabelecidas, é um tipo inferior, se não é
assediado pela neurose; a sua é uma falsa saúde mental, porque deixa
evidente — ao invés de desmentir, o que faria se legítima — a sua
desumanização, a perda satisfeita, sem problemas, de si mesmo numa
engrenagem. Á reação, então, parece se processar num outro plano, o
fisiológico, e esses insensíveis passam a sofrer de uma falta de saúde
orgânica: úlceras, insuficiências cardíacas e outras doenças. Apesar de
desprovida de comprovação ou “valor científico”, a idéia de Norman Mailer
de que o ajustamento imposto pela ética protestante ao norte-americano
provoca o câncer, isto é, uma rebelião das células, tem pelo menos um valor
simbólico para expressar as conseqüências da passividade conformista. Por
outro lado, sabemos que, se o caminho da maturidade passa pela crise da
negatividade, atravessa também a iminência de neurose que ela pode
provocar. Ambas devem ser superadas, de maneira frontal e decisiva, em
favor de uma autêntica saúde mental, que é a condição da autêntica
humanização e o correlato essencial da atividade criadora. Verifica-se,
portanto, que não só o diagnóstico da psicanálise existencialista (a mais
avançada, a de Sartre), mas também sua terapêutica, concorda com a da
psicanálise sociopsicologista atual (a de Erich Fromm, por exemplo). Para
Albee, entretanto, o importante é a crise, e só a crise. E seu personagem,
enredado nela, é definitivamente impotente para superá-la. Albee não
apresenta nenhum indício de que acredita na superação. E, se a crise é
verdadeira, pouco lhe importa a neurose.
É certo que a conversação de The Zoo Story conduz a uma progressiva
revelação dos dois personagens. Mas esse processo revelatório está
comprometido com a evidência da impossibilidade de comunicação, como
dissemos, e a serve. Há um movimento interno, na peça, que acompanha e
estrutura esse processo: um movimento que a conduz do cômico para o
patético. Da graça obtida pelo embaraço' inicial de Peter e da aguda
disposição de Jerry em provocá-lo e gozá-lo, a peça atinge o trágico em seu
clímax, e aquela não passa de um caminho para este. Albee repete e explora
esse mesmo movimento interno — do cômico ao patético — em outras
peças suas. The Sandbox e The American Dream, por exemplo, e mais
acentuadamente, embora com menos sucesso. Ainda aqui, encontramos essa
profunda identidade ou solidariedade entre o cômico e o trágico, que vem
assaltando o teatro contemporâneo, de que nos fala Friedrich Dürrenmatt
quando afirma que a única maneira pela qual o dramaturgo contemporâneo
pode atingir o trágico é a da comédia, e da qual a atual vanguarda francesa,
ao fazer do cômico o veículo próprio do trágico, apresenta exemplos
abundantes. Já se vê, portanto, que o possível parentesco entre Albee e a
vanguarda francesa — ou pelo menos a possível influência dela sobre ele
— não se limita à semelhança temática, à preocupação comum pelo absurdo
da existência. É preciso, entretanto, que se reconheçam as diferenças. Em
Albee, não se trata de uma fusão do cômico e do trágico numa situação
estática, como em Samuel Beckett, mas de um movimento. Embora tenha
mudado de atitude em The Sandbox e The American Dream, Albee ainda é
um realista em The Zoo Story

.
Nos Estados Unidos as regras estabelecidas o estão com um rigor
sufocante. Um capitalismo plenamente desenvolvido até a abastança cria
precisão rígida em todos os setores da sociedade; ele a cria principalmente
na formulação das leis e dos princípios que asseguram os privilégios das
classes dominantes. Há clareza e nitidez nas imposições dessa sociedade
aos seus membros — imposições que, evidentemente, visam seu
funcionamento livre de perturbações — e, na mesma razão, uma rigorosa
exigência do seu exato cumprimento. Aquelas características humanas
convenientes ao sistema são transformadas nos traços constitutivos de uma
natureza humana a ser encontrada obrigatoriamente em todos — e os que
nela não se enquadram sofrem como se fossem indignos de título humano.
Essa tarefa tradicional das classes dirigentes, em todas as sociedades
conhecidas da História, ganha no mundo moderno e, em especial, nos
Estados Unidos moderno, armas novas e terríveis. Basta ler o testemunho
dos melhores sociólogos e psicólogos americanos. Hoje, a consciência e o
caráter dos homens são facilmente moldados através do emprego maciço
dos meios de comunicação com a massa. As imposições, portanto, não são
apenas feitas de fora, como deveres, mas, graças às cada vez maiores
possibilidades de manipulação das consciências, são introjetadas e
assimiladas de uma maneira tão profunda quanto inconsciente. Os
resultados não poderiam ser outros, senão os que tanto preocupam os
melhores cérebros da América, seus escritores, sociólogos e psicanalistas
mais sérios: a passividade, a apatia, a complacência e o conformismo. Estas
são as condições e, simultaneamente, as conseqüências da automatização.
Toda máquina deve funcionar com a perfeição pretendida quando todas as
suas peças estão ajustadas e cumprem mecânica e obedientemente as
funções a que foram destinadas.
Este esboço talvez seja o bastante para sugerir, ao leitor, que a reação
contra tal circunstância deveria ser uma reação extrema, uma rebelião.
Procuremos ver, agora, por que essa reação é uma rebelião naturalmente
pronta a abraçar o irracional e como as novas gerações americanas, com sua
vanguarda, a conduzem como uma rebelião espontânea mas sem rumos ou,
pelo menos, de rumos incertos.
O economista norte-americano Paul Baran observa que a sociedade
americana está caracterizada pelo alto grau de racionalização capitalista.
Esta é necessariamente parcial: visa a eficácia de suas empresas industriais,
agrícolas e da administração do país, o favorecimento de lucro, de
condições convenientes do mercado, etc. Limita-se, portanto, àqueles
elementos do conjunto social em que se localizam os interesses das classes
dominantes e não visa a totalidade desse conjunto. Na ordem capitalista
norte-americana, essa racionalização total, do todo do conjunto social,
declina enquanto se acentua a racionalização parcial. Temos, portanto, num
todo injusto, não-racionalizado, setores altamente racionalizados — aqueles
que favorecem a expansão econômica da burguesia —, criando, a rigor,
uma falsa ilusão de ordem e organização. Há, aqui, um choque inevitável
entre o que, segundo Baran, se poderia chamar de microssabedoria e
macrodemência. O caráter irracional do conjunto, acentua Baran, não pode
coexistir harmoniosamente com o caráter racional das partes e seu
antagonismo exprime uma das profundas contradições do sistema
capitalista. A cultura burguesa tem exatamente a tarefa, entre outras, de
identificar a racionalização parcial, capitalista, com a própria razão humana,
tentando evitar, desse modo, a superação de sua contradição com a
irracionalidade do todo, num sistema que realizasse também a
racionalização total do conjunto social. Essa identificação é inoculada (com
o poder e a eficiência já mencionados) em todos os membros da sociedade.
A contradição, evidentemente, não é suprimida, ela continua a existir. Mas
o protesto, quando vem, vem viciado por essa identificação entre a razão e o
raciocínio burguês. A revolta contra este último é, por isso, naturalmente
transformada numa revolta contra a própria razão humana, fechada no
antiintelectualismo e à mercê da irracionalidade. Realmente, a única reação
possível ao indivíduo incapaz de compreender as forças que o esmagam é
uma reação irracional que, conclui Baran, é a neurose.
A reação extrema, irracional, das novas gerações americanas é,
portanto, uma resposta natural a sua circunstância. Paul Baran trata, é
verdade, de um fenômeno mais vasto, pois está se referindo à reação do
homem comum, explicando a sua neurose, para concluir que a neurose
caracterial só pode ser curada através de uma reformulação da sociedade.
Os jovens americanos assumem conscientemente sua reação irracional e a
propõem. Enquanto o homem comum corre ao psicanalista, em busca de
“ajustamento social”, que deverá curá-lo da neurose, o rebelde passa a vivê-
la como um outsider, transformado num protesto vivo.
II
Minha geração viveu um interesse intenso e aparentemente profundo
pela arte política, que se estendeu por toda a década de 60, pelo menos. Os
termos “arte política” são, aqui, uma maneira de falar, para resumir. Na
época preferíamos dizer arte empenhada, arte comprometida ou arte
engagé.
A palavra francesa tinha origem na teoria estética que melhor
expressava os nossos sentimentos: a existencialista, de Jean-Paul Sartre, e
seu conceito de engagement. A motivação era de ordem ética. A pedra
angular do existencialismo era a radical liberdade da existência humana. A
fórmula fundamental de que “a existência precede a essência” negava
qualquer norma, modelo ou paradigma moral. Somos livres para fazer
qualquer coisa, mas nossos atos livres criam um conteúdo a posteriori, o
que estabelece a exigência ética. Se somos radicalmente livres, isso
significa apenas que somos totalmente responsáveis por tudo que fizermos,
inclusive as obras de arte. Nossa liberdade, portanto, só tem sentido no
compromisso, ou engagement, e paradoxalmente o artista mais livre é, em
conseqüência, o artista engagé.
Sartre expressou o condicionamento fundamental da liberdade humana
e a necessidade essencial de compromisso, que ele implica no conceito de
situação. A liberdade é sempre “situada”, limitada pelas circunstâncias
externas, e algumas situações extremas, que Sartre chama de “situações-
limite”, têm a virtude dramática de revelar com nitidez a exigência ética,
inseparável da liberdade. O teatro sartreano é, por causa disso, um teatro de
situação, e em “O que É Literatura?” (Situations I) Sartre argumenta
brilhantemente pela necessidade de engagement do escritor de seu tempo
que, afinal de contas, ainda é o nosso.
A “situação” que condiciona a liberdade é comum a todos os homens,
não só os escritores e artistas; é o conjunto de circunstâncias concretas,
objetivas, de sua vida material. Em outras palavras: a situação sartreana é,
antes de mais nada, a situação política. Portanto, o compromisso que Sartre
reclama do escritor e dos artistas em geral é, antes de mais nada, um
compromisso político. Para nossa geração, o engagement, exigido pela
consciência ética, era político. Sentíamos que a situação miserável de
milhões de brasileiros nos obrigava a comprometer nossos sentimentos e
nossa razão, ou seja, nosso trabalho e nossa arte.
A principal preocupação era a de que esse compromisso degenerasse
em submissão partidária e a arte, a atividade cultural em geral, se reduzisse
a mera propaganda. Muitos setores políticos de esquerda já preconizavam,
há tempos, uma arte política, subordinada aos interesses populares, mas
isso, para nós, era uma distorção inaceitável. Queríamos uma estética
rigorosa, inflexível mesmo, como correlato indispensável da seriedade de
nossa ética. Esse debate doutrinário feriu-se em alguns dos movimentos
artísticos mais importantes da geração, como — para ficar na área dos
espetáculos — o Teatro de Arena, de São Paulo, e o Cinema Novo. Ele
também era uma das questões centrais nas teorizações dos Centros
Populares de Cultura que começavam a se multiplicar por todo o país
quando veio o golpe de 1964.
Essa fidelidade irrestrita à verdadeira concepção de arte, no contexto
de uma participação política de tipo passional, explica bastante o fascínio
exercido por Bertolt Brecht, por exemplo, nos jovens intelectuais terceiro-
mundistas. Brecht realizava o aparente milagre de ser, ao mesmo tempo, um
comunista e um artista de primeira classe. Estava ao lado do povo sem
renunciar aos valores mais sofisticados de nossa cultura e nossa civilização.
Pouco antes do golpe de 1964, era preciso esclarecer se a arte
empenhada havia, afinal, se revelado como arte popular, no sentido de arte
criada a partir do ponto de vista político do proletariado, simplesmente, de
maneira que seu fundamento passasse a ser, agora, infra-estrutural,
histórico, e não mais apenas ético, erguido sobre a liberdade individual,
como no momento anterior. Não foi possível. Vinte anos de repressão
obstinada praticamente eliminaram essas questões de nossa vida cultural. A
realidade teve de ser encarada de outros ângulos, através de outros prismas,
mais sutis, para que a ação em geral e a criação em particular continuassem
a ser possíveis. O processo cultural em curso nos anos 60 sofreu, assim,
uma interrupção brusca que o obrigou a fluir por outros canais, inventados
ao sabor dos acontecimentos. A arte, a criação, a liberdade — essas três
palavras são, no fundo, sinônimos — são irreprimíveis.
Entretanto, a repressão não é a única arma do sistema, ou do ego
individual. Ambos, sistema e ego, também empregam a assimilação
estratégica, com finalidades incisivas de deturpação. Esta, aliás, é a postura
que caracteriza o atual regime brasileiro, conforme ficou demonstrado, por
exemplo, pela presença de Celso Furtado no Ministério da Cultura.
Nos anos 60, poder nenhum queria nos assimilar para deturpar, esse
risco não corríamos. Nossas questões eram outras. Queríamos que o povo
tomasse consciência e que a justiça triunfasse — objetivos desaparecidos do
panorama contemporâneo —, mas não admitíamos o dogmatismo estreito, o
sectarismo cego, a burrice. Nossa limitação era a de não ter ainda percebido
que a “situação” sartreana não é apenas política, mas psicológica, ou seja,
espiritual. Hoje isso nos parece óbvio, mas não nos parecia nos anos 60.
Tem que se viver e aprender — esta é a lei.

1963 — ARTE EMPENHADA


No Brasil, a discussão estética mais atual é a que envolve o problema
da arte empenhada ou da arte pura. Há apenas alguns anos, esse tipo de
discussão seria considerado secundário. A existência de uma arte
empenhada, que seria circunstancialmente boa ou má, a depender do talento
individual de seus criadores, não colocava nenhuma problemática de ordem
geral. Nossos movimentos artísticos mais revolucionários viam como sua
tarefa fundamental a invenção formal e reclamavam do artista brasileiro um
pioneirismo, que ele nunca havia exercido, de novas formas. O concretismo
é um exemplo bastante claro. Ele nem sequer colocava qualquer questão de
ordem especificamente estética: bastava-lhe a descoberta de novas áreas de
comunicação lingüística, sem que considerasse o aproveitamento, a
utilidade dessas novas áreas para a expressão artística, o conhecimento
científico ou o que fosse. A descoberta cedo mostrou-se inevitavelmente
vazia e gratuita. Tanto os concretistas do Rio como os de São Paulo ou o
abandonaram pela poesia participante, como Ferreira Gullar, ou deram um
assim chamado “salto lingüístico participante”, como o grupo “Invenção”,
de São Paulo. Em ambos os casos, recolocaram em toda sua extensão o
problema da arte empenhada.
Outros movimentos artísticos brasileiros também traziam, no momento
da reviravolta concretista, a questão da arte empenhada como seu suposto
fundamental. Basta lembrar a renovação nacionalista do teatro brasileiro
(iniciada no Arena de São Paulo) ou algumas das teorizações mais bem
articuladas do Cinema Novo. Com essa procura, deram-se os tiros de
misericórdia no beletrismo rançoso que ainda permanecia um dos nossos
critérios literários oficiais, no esteticismo inocente que conduzia nossas
provincianas críticas de cinema e teatro e, enfim, em nossa concepção da
arte ainda digna dos saraus literários familiares com os membros de alguma
academia.
A nova e desastrosa forma com que se revestia o ideal da “arte pela
arte” parnasiana em nossa arte e literatura modernas evitava repetir a
fórmula. O purismo apresentava-se teoricamente descomprometido com o
purismo. E era, por isso, duplamente danoso. Até o concretismo e os
movimentos que sua reviravolta sintomatizou, vivíamos afogados na ilusão
doce e corruptora de um mar do esteticismo mais inconseqüente. A
consciência do problema da arte empenhada é, por isso, um despertar
cultural importante. O clima anterior a ele era o da irresponsabilidade; a
idéia de que o artista só é responsável pela sua obra era a justificação. Ser
responsável por sua obra, no entanto, é ser responsável por sua vida, e não
apenas uma falsa vida isolada nos limites da individualidade, mas a vida
comum e autêntica. Esta exigência ética propiciou o despertar e só os mais
incapazes, humana ou literariamente, entre os nossos escritores e
intelectuais não a sentiram.
Evidentemente, a exigência ética pela participação na vida comum não
caiu dos céus, como um presente divino. A própria vida comum de nosso
povo a engendrou, Os últimos anos da década dos 50 foram um momento
histórico decisivo, pois marcaram o início de uma decidida tomada de
consciência do povo brasileiro de si mesmo e a caracterização nítida de uma
arrancada dialética, em nossa História, pela qual ele passava a sentir a
necessidade de tomá-la efetivamente em suas próprias mãos. Em tais
circunstâncias históricas, uma omissão completa por parte de nossos artistas
e escritores seria um verdadeiro suicídio cultural. Naturalmente, eles não
poderiam cometê-lo. E a preocupação principal passou a ser a de empenhar
a arte brasileira, a comprometê-la nesse processo comum do povo brasileiro
pelo qual ele procura, como sujeito ativo, cumprir o seu destino.
É preciso reconhecer que a procura de participação resultou em muitos
enganos, talvez mesmo mais enganos do que acertos. A exigência ética
chegou a ser absolutizada em detrimento de qualquer exigência estética. A
velha mania de converter os valores morais dos conteúdos e a utilidade
destes no único critério de avaliação da obra de arte foi retomada. A obra de
arte seria boa na medida em que seu conteúdo se identificasse com as
causas populares e em que seu compromisso estivesse tão claro nesse
conteúdo que dispensasse a necessidade de qualquer tipo de forma artística;
inventou-se mesmo uma arte popular de conteúdos em oposição à arte
formal das elites indiferentes ou contrárias ao processo de conscientização
de nosso povo. Evidentemente, o que se trata aqui é de uma distorção da
verdadeira idéia de uma arte empenhada.
Essa distorção tem sua raiz na falsa concepção de que apenas as
exigências éticas possuem validade histórica e de que elas só podem ser
expressas e satisfeitas num conteúdo desligado de toda forma artística. O
que acontece, porém, é bem diferente. Da mesma maneira que a História
cria novas exigências éticas, ela cria também novas exigências estéticas.
Arte empenhada significa arte conteudística e formalmente empenhada. É
um erro cindir a obra de arte em forma e conteúdo, quando ela é uma
totalidade indissolúvel. A distinção consagrada pela estética tradicional só
pode ter função enquanto instrumento de análise. A necessidade de
compromisso, sentida pela arte brasileira, deve ser satisfeita pela totalidade
das obras, pelas formas, portanto, em sua unidade, ou melhor, em sua
identidade com os conteúdos. Sua avaliação ética não deve ser estranha à
avaliação estética: os critérios de sua crítica hão de reconhecer, em suas
qualidades formais, qualidades conteudísticas, pois fazem com estas uma
coisa só. São as próprias estruturas formais da arte empenhada que possuem
a tarefa de expressar seu compromisso.
Os equívocos são sempre inevitáveis. Mas, por outro lado, é sempre
necessário não permitir sua ação desvirtuadora. Todos nós sabemos como
uma simples teoria, a do chamado “realismo socialista” em sua concepção
extremada, foi capaz de minar a vitalidade artística de toda uma geração de
escritores socialistas. E se os fatos históricos importantes ocorrem sempre
duas vezes, “a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”, é nosso
dever tentar evitar que esta farsa aconteça numa cultura nascente como a
nossa, animada de justas esperanças. A batalha teórica contra tais enganos é
importante porque, sem dúvida, a questão por uma arte empenhada é a
realidade artística mais vigorosa em nosso país.
III
Em março de 1964, saí da Bahia, onde trabalhava na Escola de Teatro,
para vir tentar a sorte no Rio. Fiquei hospedado no apartamento de meu
compadre Glauber Rocha, que ficava em Ipanema, perto do Jangadeiros, do
Mau Cheiro e do Castelinho. Ainda estávamos no verão e havia muitas
festas na área, Glauber ia me apresentando para a turma. Ele havia
terminado seu segundo filme de longa metragem, Deus e o Diabo na Terra
do Sol, e viajou para Cannes onde, aliás, foi premiado. Antes, porém, havia
me conseguido um emprego na TV Excelsior, através de sua amizade com
Wallinho Simonsen, no departamento de jornalismo, que era dirigido por
Fernando Barbosa Lima. Tomei conhecimento das primeiras notícias sobre
o golpe na tarde do dia 31. Eu estava na redação do Jornal de Vanguarda,
onde também se encontravam Borjalo, Helio Poli to, Tinhorão e outros
membros da equipe de Fernando. O telex nos trouxe a proclamação de
Magalhães Pinto e a notícia de que as tropas de Mourão já estavam na
estrada, movimentando-se em direção ao Rio. A situação ainda era
indefinida, mas todos sentiam que começávamos a viver momentos
decisivos.
Dediquei aquela noite a beber chope no Jangadeiros e ficar
comentando os boatos que, como sempre acontece nessas ocasiões, eram os
mais variados e desvairados. Lembro que várias pessoas deixaram Ipanema
em direção ao Flamengo, para participar da resistência na sede da UNE.
Não fui, optando por cavar minha trincheira no próprio bar. A situação se
agravava, mas ainda era generalizada a confiança no dispositivo militar de
Jango, não se pensava que o pior viesse a acontecer, como aconteceu. Fui
dormir.
O dia seguinte, dos tolos, foi triste. Cada nova informação confirmava
a queda do governo e o controle da situação pelos militares. Encontrei Tarso
de Castro, editor do jornal Panfleto, para o qual eu havia começado a fazer
uma coluna de teatro. Tarso anunciou em voz grave, mas cheia de
esperanças, que “mais uma vez a resistência virá do Sul”, embora tenha
logo acrescentado, em tom mais baixo, um “parece”. Ele estava procurando
o José Silveira, que não conseguiu encontrar, e o Jânio de Freitas, que
encontrou e nos deu uma carona em seu fusca. Os dois homens de imprensa
comentaram amplamente a situação, procurando sinais positivos que me
deixaram um pouco animado — eles pareciam muito bem informados —
mas que, infelizmente, não se confirmaram.
Lá pelas quatro da tarde, tudo parecia consumado. Heron Domingues
apareceu na televisão saudando a vitória da democracia, a classe média da
Zona Sul começou a festejar e me senti ligeiramente indisposto. Não sabia
ainda, mas começavam os vinte anos de ditadura, durante os quais vivi a
maior parte de minha juventude,

1964 — LUTA CONTRA A SUBVERSÃO

Foi em 1964. O jovem poeta viera morar no Rio de Janeiro, realizando


um desejo antigo. “Se eu tivesse vivido na Antiguidade, ia querer morar na
Roma dos Césares; como vivo hoje, moro em Nova Iorque”, disse John
Lennon, antes de ser assassinado. Tem gente que só gosta de morar onde as
coisas estão acontecendo. O Poeta se contentava com o Rio. Era um tempo
agitado. A área de Ipanema vivia conturbada pelas comemorações
retumbantes da esquerda festiva. Ele foi a algumas festas e ao comício de
Jango na Central.
Na manhã do dia 1° de abril, acordou com as notícias da deposição de
Jango; as tropas estavam se movimentando. Era uma manhã bonita, com um
sol resplandescente, e ele achou que a situação política não era motivo para
deixar de ir à praia, no Castelinho. Quando cruzou a porta do edifício de
apartamentos e ganhou a rua, o porteiro comentou: “Estão se
movimentando”.
Na praia, passou o resto da manhã e parte da tarde se distraindo um
pouco com essa mistura de informações e boatos que tornam as notícias,
pelo menos provisoriamente, tão mais interessantes. Sentiu fome e voltou
para casa, para almoçar. Ao entrar de novo no edifício, o porteiro informou:
“A Revolução já acabou”.
Sim: tudo parecia consumado. Da janela do apartamento, ele ouvia as
buzinas dos carros, via o papel picado jogado dos edifícios e outras
manifestações com que a classe média da Zona Sul carioca comemorava a
ascensão dos militares ao poder. Começava uma noite tenebrosa, que iria
durar vinte anos, mas não se sabia disso ainda. O Poeta sentiu um leve
distúrbio neurovegetativo, ficou tonto, o chão fugiu-lhe dos pés e ele tomou
um trago para permanecer frio. Dali a pouco chegou o seu amigo, o
Cineasta, levemente em pânico, anunciando que a repressão já começara:
— Estão prendendo todo mundo! Políticos, estudantes, operários,
artistas e intelectuais, tudo em cana! Temos que sair daqui, este apartamento
é visado!
O Cineasta explicou que tinha obtido informações de cocheira do
DOPS, segundo as quais todos os signatários de um recente manifesto de
artistas e intelectuais a favor das reformas de base seriam presos, por
subversão, teriam suas residências vasculhadas pela polícia. Era o caso dos
dois. Mas o Cineasta acalmou o Poeta. Tinha um irmão, chamado Sérgio,
que lhe emprestara sua garçonnière em Copacabana, onde os dois poderiam
ficar escondidos. Sérgio mantivera o endereço rigorosamente secreto, por
razões de ordem conjugal, e os dois poderiam se sentir seguros lá. Fizeram
as malas a toda velocidade e pegaram um táxi. Copacabana estava em festa.
A garçonnière era confortável, um conjugado pequeno, mas que tinha
banheiro, quitinete, uma cama de casal e um sofá. Ficaram uns dias lá, sem
botar o nariz fora da porta; as amigas lhes traziam informações e comida.
Ficavam sabendo quem tinha sido preso, quem tinha se asilado na
Embaixada do México, quem tinha sumido. Um dia, porém, o Poeta não
agüentou mais e resolveu sair, estava há pouco tempo no Rio, sem dinheiro,
tinha que procurar emprego. Convidou o Cineasta para sair com ele, uma
voltinha só, mas este recusou. Considerava-se “procurado” e ficou em casa.
Lá pelas quatro da tarde, a campainha da porta tocou. O Cineasta
tremeu um pouquinho: O Poeta não devia estar de volta tão cedo, as moças
já haviam feito sua visita diária, quem poderia estar batendo? Encheu-se de
coragem, foi até a porta e espiou pelo olho mágico. Do outro lado da porta
havia um sujeito que ele não conhecia e, o que era pior, tinha pinta de tira.
“Fui encontrado!”, pensou o Cineasta, julgando-se perdido. Já podia se ver
atrás das grades.
Andou um pouco, sem rumo, pelo apartamento, considerando o que
poderia fazer na situação. Se abrisse a porta, estava em cana. Mas, se não
abrisse, a polícia certamente arrombaria a porta do apartamento e tudo daria
na mesma, com um agravante: certamente tomaria porrada. Achou melhor
entregar-se sem resistência. Abriu a porta.
Diante dele, o sujeito com pinta de tira abriu um sorriso malicioso e
falou meio em segredo:
— Você é o irmão do Sérgio, não é? Eu pedi e ele me emprestou o
apartamento, pouco tempo, uma horinha só. Por favor, você pode sair um
pouco e esperar? A moça é encabulada, está até escondida ali na escada,
para não ser vista. Você sabe como são essas coisas.
IV
Uma cidade foi o símbolo dos saltos qualitativos operados nos
costumes, no lazer, no comportamento, nas artes populares, durante a
década de 60. Refiro-me naturalmente a Londres, a swinging city daqueles
anos pródigos em novidades.
É possível que as cidades, algumas delas pelo menos, tenham uma
espécie de alma. Para os gregos, que fundaram a nossa civilização, a cidade,
ou polis, tinha um caráter sagrado: ela era “a soma de todas as coisas
humanas e divinas”, nas palavras de Werner Jaeger, em Paideia.
Nos 60, quem podia ia a Londres, não era apenas a cidade da moda,
where the action is; parecia, também, um lugar meio mágico. Expulsos do
Brasil pelo regime militar, Caetano Veloso e Gilberto Gil, por exemplo,
foram morar em Londres. Muitos outros brasileiros da geração fizeram o
mesmo.
O que acontecia em Londres? Bem: a cidade mostrava, com ênfase,
what is was ali about. Acontecia de tudo. Os fenômenos aparentemente
mais fúteis e superficiais, mas reveladores de obscuras pulsões, como a
moda, passavam por verdadeiras revoluções.
Inventou-se a minissaia, uma expressão direta da liberdade emergente.
As moças mostrarem as pernas era um alívio para uma geração criada sob
rígidas condições de repressão sexual. As modas dos anos 60 foram
exemplares! Pessoalmente, fiquei fascinado. Pela primeira — e até agora
única — vez na minha vida, assisti a uma legítima subversão dos valores
oficiais. O fio dental não é nada, em comparação.
Mary Quant não foi um fenômeno isolado: ao contrário, manifestava a
pulsão libertária, generalizada na época. Esta pulsão atingia todos os níveis
e setores. A arte não era apenas surrealista, ou mesmo de avantgarde, como
nas décadas anteriores, mas tornava-se pop, op e mais uma infinidade de
variantes que culminavam no anárquico happening. Pela primeira vez, todo
mundo ficava nu no teatro; o cinema explodia as formas clássicas; a música
era agitada por todos os tipos de experimentalismos. Havia necessidade
vital por liberdade. Quer dizer: era o oposto do que acontece hoje, quando a
sedução conformista começa a parecer irresistível.
A forma estética que melhor caracteriza os 60 é o free jazz. Seu
princípio fundamental — favorecer, no extremo possível, a expressão do
indivíduo — reflete as aspirações da geração. A função paradoxal desse
princípio com o objetivo político — ou seja, a emancipação negra, no caso
do free jazz — define melhor, para ela, o significado da liberdade.
Em Londres, surgiu uma nova sofisticação existencial, um estilo de
vida: a maneira planetária de viver, própria da global village. Num nível
popular, contrastando com o elitismo marginal do free jazz, o rock dos
Beatles e dos Rolling Stones traduzia a mensagem libertária para milhões
de jovens em todo o mundo.
O fato de que foi nos 60 que o homem botou os pés na Lua, para não
mais repetir o feito nos anos que se seguiram, tem uma nítida dimensão
simbólica. O sucesso da empreitada se relaciona, certamente, com as
perspectivas positivas que se desenhavam nos 60, em oposição aos
horizontes sinistros que pintaram nos 80 e cujo símbolo mais evidente deve
ser o desastre da Challenger, em 1986.
A viagem à Lua foi um sonho acalentado por muitas gerações até que
os 60 o tornassem realidade, da mesma maneira que décadas de repressão
crescente, cada vez mais opressivas, foram finalmente postas em questão,
naqueles anos, e respondidas com uma decidida revolução dos costumes.
A transmutação dos valores foi resumida, pelos mass media, na célebre
tríade: sexo, drogas e rock’n’ roll. Cada uma dessas áreas assinalou um
rompimento radical com o passado e, mesmo, com o futuro. Paradise Now
era a palavra de ordem e título de um dos espetáculos do Living Theatre,
uma das organizações artísticas que melhor caracterizaram o espírito da
década. A atividade sexual rompia a barreira do papai-e-mamãe até a
perversão polimórfica, preconizada por pensadores importantes como
Herbert Marcuse e Norman O. Brown; muitas drogas psicotrópicas, naturais
ou químicas, deixaram de ser atribuídas diretamente ao Demônio só porque
haviam sido colocadas fora da lei dos homens e passaram a ser usadas para
o lazer ou a descoberta espiritual; o rock assaltava os corpos, através dos
ouvidos, com sons elétricos que exigiram uma verdadeira mutação no
sistema nervoso do público. Tudo era posto em questão.
A farsa em que a geração havia sido formada era desmentida — e com
arte!
O baixo astral não tardou, na forma de uma rebordosa solerte. Nos
últimos anos, fenômenos contra-revolucionários, como a presente moda da
AIDS, a toxicomania suicida e a degeneração industrial do rock, marcam o
retrocesso. A idéia de que há uma evolução histórica retilínea é,
comprovadamente, uma ilusão intelectualista. Infelizmente, não é assim. O
caráter retrógrado das principais manifestações culturais dos últimos anos é
flagrante.
Lembrar os 60 pode ser mais do que mero saudosismo: pode ajudar a
tomada de consciência de uma decadência que parece historicamente
inevitável, mas que não é metafisicamente necessária. É sempre possível
retomar os caminhos da liberdade. Não se trata de repetir a aventura de
então, cada momento é irrepetível; trata-se de, finalmente, tomar
conhecimento de suas lições; não vamos querer estragar tudo de novo.

1965 — LSD
LSD é abreviatura de Lyserg-Saeure-Disethylamid, isto é, distilamida
de ácido lisérgico, um composto químico simples, obtido facilmente em
qualquer laboratório, com o ácido lisérgico que é extraído do grão de
centeio. É chamado de LSD-25 porque foi sintetizado pelo dr. Albert
Hoffman nos Laboratórios Sandoz, na Suíça, num dia 2 de maio.
O dr. Hoffman descobriu as qualidades alucinogênicas do ácido
lisérgico por acaso. No curso de pesquisas para curar a emicrania e estancar
a hemorragia, foi atacado por estranhas alucinações em sua casa. De volta
ao laboratório, ingeriu 200 microgramas de ácido lisérgico, o que provocou
novas e mais intensas experiências alucinatórias. Hoje, sabe-se que uma
dose de apenas 20 microgramas de LSD é suficiente para provocar um
efeito que pode durar até dez horas.
O LSD é incolor, não tem gosto nem cheiro. Altamente potente, é
tomado em doses microscópicas. Uma onça, apenas, de LSD fornece cerca
de 300 mil doses, e alguns quilos seriam suficientes para, depositados num
reservatório de água potável, envolver toda uma grande cidade em seus
efeitos. Sua ação psíquica assemelha-se à de outros alucinógenos, como a
mescalina, extraída de um cacto mexicano, o peiote ou a psilocibina,
extraída de um cogumelo. Os índios mexicanos, que há séculos se dedicam
ao culto da carne dos deuses ou carne do diabo, ingerem alucinógenos em
seus rituais religiosos.
O LSD é administrado em injeções ou pílulas. Devido à sua falta de
cor, cheiro e gosto, pode ser dissimulado em torrões de açúcar ou misturado
à água e ingerido inadvertidamente por qualquer pessoa.
Não se sabe com exatidão sua maneira de atuar no cérebro. Parece que
interfere em todas as funções cerebrais que recebem e elaboram para a
consciência as informações dos sentidos. É certo que inibe a produção das
enzimas que regulam. o suprimento de glicose às células cerebrais. Outras
substâncias, contudo, também fazem o mesmo, sem provocar os poderosos
efeitos do LSD, o que leva a crer que este possua outras profundas
conseqüências.
O LSD é o mais eficiente psicodélico que se conhece, nova designação
para substâncias, como a mescalina, que possuem a propriedade de liberar o
inconsciente, ampliar a área da consciência e modificar a recepção dos
estímulos sensoriais pelo cérebro. Também, ao contrário dos tóxicos, o LSD
não cria hábito e não prejudica o organismo, se administrado a pessoas
física e mentalmente saudáveis.
A viagem, como a chamam os apreciadores dos efeitos do LSD, passa
por quatro etapas principais. A primeira, logo depois de ingerida a dose,
dura de meia hora a 45 minutos. Se, ao invés de ingerida, a dose for injetada
na corrente sanguínea, os efeitos se manifestarão mais rapidamente.
Verificam-se ligeiras náuseas, alguma angústia, dilatação da pupila,
taquicardia e outras reações do organismo — que, porém, cessam
completamente na fase seguinte.
Esta é a experiência propriamente dita. Dura de quatro a oito horas e
consiste em ilusões sensoriais a que se tem chamado, não muito
propriamente, de alucinações, pois o efeito do LSD não anula a consciência.
O paciente sabe o que vê, embora as coisas ganhem para ele um significado
diferente do habitual. Espaço e, principalmente, tempo passam a não ter
importância. Desenvolve-se uma especial sensibilidade para as cores, que
parecem mais vivas e mais belas. Muitos se sentem mergulhados num
estado de inocência e pureza infantis; alguns experimentam uma sensação
de regressão ao estado fetal e outros revivem experiências infantis ou
emocionais de importância particular em suas vidas. O estado emocional
também é transformado, geralmente para uma desinibida euforia, que
provoca um riso fácil e abundante. Verificam-se também certo descontrole
no sistema muscular e acelerado processo de ideação, com um fluir muito
rápido de idéias e a sensação de uma grande lucidez. Ao contrário do que
acontece na embriaguez alcoólica ou no uso de tóxicos, como a morfina,
heroína ou cocaína, essa lucidez não é apenas aparente, pois pode ser
integrada na consciência do indivíduo, o que permite o emprego do LSD no
tratamento psiquiátrico,
Ás mudanças de personalidade são freqüentes e as condições psíquicas
de cada indivíduo, sob a ação do LSD, podem originar uma série de
manifestações imprevisíveis. Muitos vêem as pessoas, ou a si próprios,
como outras pessoas. Uma dose exagerada ou, mesmo, uma moderada, em
psicóticos, pode conduzir a estados aterradores, de medo absoluto e
sensação de morte iminente.
Á terceira fase é de recuperação do transe. Pode durar diversas horas e
durante elas o paciente atravessa sucessivamente períodos em que se sente,
de novo, perfeitamente normal, e períodos em que se manifesta o transe do
LSD. A quarta e última fase, que dura até vinte e quatro horas depois ou
mais, é de fadiga, fome e, freqüentemente, tensão nervosa.
Muitas vezes, principalmente quando usado por psicóticos, o LSD tem
efeitos de grande duração e provoca reações alucinogênicas que podem
voltar até três meses depois de tomada a dose. Novas doses não são
necessárias: o simples fato de assistir outro em transe pode provocar essas
reações.
Um nova-iorquino narrou, para a revista norte-americana The New
Republic, suas duas primeiras viagens com o LSD. A primeira forneceu-lhe
um verdadeiro carnaval de sensações maravilhosas. As cores e as visões
que tinha eram tão indescritivelmente belas que ele soluçava de alegria:
“Oh, meu Deus, como é adorável, como é maravilhoso, como é belo o que
vejo”. Palácios de cristal estendiam-se por quilômetros de veludo. Seu
corpo parecia dissolver-se em mel e prata. Viu um Buda de bronze começar
a viver e ouviu uma gravação de Ella Fitzgerald, My Ship, de uma forma tão
maravilhosa, que entregaria a alma para ouvi-la de novo da mesma maneira.
Finda a viagem, foi pra casa e dormiu tranqüilamente. Estava certo de ter
descoberto um novo mundo.
Um mês mais tarde, fez sua segunda viagem. Esta, porém, foi
diferente. Eis como ele narrou: “... A face de meu guia mudou. Ficou
abstrata, reduzida a uma série de planos. Seus olhos fecharam. No seu rosto,
havia uma indiferença perfeita, uma paz total. Uma auréola de luz prateada
envolvia-lhe a cabeça. Então, entre seus olhos, um pouco acima do nível de
seus olhos, vi o terceiro olho, o olho da alma. O quarto escureceu e a
música silenciou. Eu estava deitado de costas no chão. Então, o próprio
quarto desapareceu, e senti que estava afundando, afundando, afundando
cada vez mais. De longe ouvi muito fracamente uma palavra: ‘morte’.
Afundei mais, sentia que caía da Terra a uma distância de milhões de anos-
luz. E ouvi a palavra cada vez mais forte e mais insistente. Tomou forma,
envolveu-me, fechou-me, ‘Morte... Morte... Morte'. Pensei nos olhos de
meu pai em seus últimos momentos. Finalmente, diante de minha própria
morte, gritei ‘Não!’ Terror absoluto. Horror total. Com imenso esforço,
tentei erguer-me novamente de volta à vida. Pareceu que levei uma
eternidade”.
No quarto, ele tremia em convulsões violentas. Mais tarde, contou a
terrível viagem a Richard Alpert, dizendo-lhe: “Eu só queria sair dali,
terminar a experiência”. O sacerdote do LSD encarou-o fixamente e
perguntou: “Você tem certeza?”
Aldous Huxley, num livro famoso, As Portas da Percepção, foi o
primeiro intelectual de nosso século a elogiar os efeitos dos alucinógenos.
Suas experiências com a mescalina levaram-no a proclamá-la como a forma
mais perfeita e eficiente de evasão e alargamento da percepção humana para
o homem do nosso século. Como ele, outros artistas e intelectuais ficaram
convencidos da utilidade das drogas, capazes de ampliar a área da realidade
sensível à abordagem da consciência e de aguçar a sensibilidade.
Em 1962, o escritor Paulo Mendes Campos relatou uma experiência
com o LSD, que estava sendo conhecido, em todo o mundo, como uma
droga mais poderosa do que a própria mescalina.
Depois a descoberta transformou-se em moda. Enquanto, por um lado,
médicos investigavam as suas qualidades terapêuticas, por outro, artistas e
intelectuais passaram a usá-lo para estimular sua capacidade criadora. Em
Nova Iorque, o poeta Allen Ginsberg liderou um movimento de opinião que
reivindicava a liberação legal do LSD e da marijuana, que, como o
primeiro, também é um psicodélico, embora bem mais fraco. Os resultados
foram surpreendentes e, para as autoridades norte-americanas, assustadores.
O LSD foi produzido e traficado clandestinamente, como se fosse um
tóxico, e calcula-se que, na época, de 20 a 30% da juventude universitária
norte-americana tomava LSD como quem fuma um cigarro. Nos Estados
Unidos, como em vários outros países do mundo, o LSD era a onda. Em
Greenwich Village, era a maneira in de take off. Estudantes de vinte e uma
escolas, só de Nova Iorque, possuíam seus próprios laboratórios para o
fabrico de LSD misturado a tóxicos. A administração de Alimentos e
Drogas e o Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos abriram
campanha contra a droga e provocaram uma retração da única empresa que
o fabrica legalmente, a Sandoz Pharmaceuticals, Inc. A verdade é que, nos
Estados Unidos, o LSD começou a substituir a marijuana, a heroína e a
cocaína, todas elas postas na ilegalidade.
Para fazer frente ao aumento do uso de LSD, as autoridades norte-
americanas começaram a empregar contra ele a mesma solução que, há
anos, vinha empregando, sem nenhum resultado positivo, contra os tóxicos,
isto é, a repressão policial. O promotor público Aaron Koota foi o líder da
cruzada contra o LSD, mas, em Greenwich Village, as exposições passam a
ser de “pintura psicodélica” e um conjunto musical de rock, The Turtles,
afirmava tocar “música psicodélica”.
No fundo da nova moda parecia haver uma filosofia, nascida da
angústia da beat generation norte-americana. Ela era, antes de mais nada,
uma ética revolucionária. Se o square norte-americano procurava a
felicidade injetando dólares na sua conta bancária, por que não haveriam os
jovens rebeldes de procurar a felicidade injetando drogas na corrente
sanguínea? Para muitos, a segunda solução era mais moral. As drogas,
embora pudessem prejudicar o organismo, não o fariam mais do que o
stress da vida moderna a que o square estava submetido, com a vantagem
de fornecer um tipo de felicidade mais imediato e gratificante.
Na revista Partisan Review, um ensaísta, Leslie Fiedller, escreve então
que a juventude americana começa a esposar um novo programa de vida,
anti-puritano, hedonista e tendendo à indiferença. “Da mesma maneira —
diz ele — que o liberalismo de hoje é o LSD dos velhos, o LSD é o
radicalismo dos mais jovens.” Onde não existiam outras formas de ser
radical, a aventura interior do transe do LSD era a possibilidade de protesto.
Uma dose de LSD custava, nos Estados Unidos, comprada das mãos
de traficantes, cerca de cinco dólares. Suas características — incolor,
inodoro, insípido — dificultavam o trabalho dos detetives encarregados da
repressão aos narcóticos. O LSD não exige seringas e, traficado sempre em
pequeníssimas quantidades, era facilmente escondido. A repressão policial,
na verdade, estimulou o tráfico clandestino e o uso cada vez maior da droga
sem assistência médica, transformando o LSD em mais uma bandeira dos
jovens rebeldes para agredir as instituições do estahlishment norte-
americano.
A descoberta das virtudes do ácido lisérgico deu origem a um
verdadeiro culto religioso nos Estados Unidos, cujos maiores sacerdotes
foram os ex-professores de psicologia de Harvard, Timothy Leary e Richard
Alpert. Ambos foram expulsos da universidade por fazerem aberta
propaganda da droga entre os estudantes e distribuírem cerca de 3.500
doses a mais de quatrocentos deles. Leary e Alpert partiram para o México,
onde fundaram uma Federação Internacional de Pesquisa Interior, para
ampliar suas experiências psicodélicas, mas foram expulsos do país pelo
governo mexicano. Então, fizeram de uma mansão em Millbrook, no Estado
de Nova Iorque, o seu quartel-general. Possuem uma fundação, a Castalia
Foundation, sustentada pelo dinheiro de um adepto milionário de vinte e
seis anos, William Hitchcock. Editam uma revista, a Psychodelic Review;
descobriram um velho livro tibetano, O Livro dos Mortos, que é a sua
bíblia; e treinam, numa escola especial, jovens que servirão de guias para
experiências psicodélicas.
No mês de março de 1965, Leary foi detido quando, na companhia de
sua filha de dezoito anos, trazia uma partida de marijuana do México para o
Texas. Foi julgado e condenado. Mas encarou a prisão com um sorriso. “Na
certa — disse ele — converterei ao LSD 80% dos presos e 10% dos
guardas. A uns, ensinarei como deixar de ser criminosos. Aos outros, como
deixar de ser... criminosos.”
Apesar do apostolado de Leary, da justiça da revolta ética dos beats e,
mesmo, da utilidade médica do LSD, a droga também pode ter
conseqüências negativas. Sua ação constante pode fazer o cérebro
descarregar uma substância orgânica ainda não identificada. Essa descarga
pode provocar profundas mudanças na personalidade do indivíduo — que
não serão, necessariamente, para melhor. Muitas pessoas, após o uso do
LSD, sofrem violentas convulsões epiléticas. Em personalidades psicóticas,
ele pode estimular o impulso ao suicídio. Em outras, provoca sensações de
terror tão fortes que os tranqüilizantes e barbitúricos são impotentes para
curar. Só um controle cuidadoso seleciona as pessoas que podem
experimentar, sem perigo de prejuízos sérios, uma viagem de LSD. De
maneira geral, devem ser excluídos, em princípio, todos os que sofrem de
enfermidades cardíacas ou hepáticas, os epiléticos, os que sofrem de
personalidade instável e os portadores de tendências esquizóides.
As qualidades positivas do LSD ainda não estão suficientemente
estudadas. A mais propalada delas é sua possível faculdade de aumentar o
poder do intelecto e de criação do homem. Dois recentes relatórios norte-
americanos apresentaram a esse respeito resultados contraditórios. Um
deles, fruto de experiências com estudantes universitários, afirma que o
LSD não tem influência sobre a capacidade intelectual. Outro, de
observações entre escritores e artistas de talento, verificou um aumento de
fertilidade criadora entre essas pessoas. Ao que parece, o LSD realmente
não cria nada nem pode dar talento a quem não o tenha, mas possui um
efeito liberatório.
O importante fato de que o transe do LSD não suspende a consciência,
mas fornece experiências que ela é capaz de aprender e assimilar, permite o
seu emprego no tratamento dos alcoólatras e viciados em entorpecentes. As
experiências do LSD são mais gratificantes do que as dos tóxicos, permitem
a reflexão e a decisão para curar-se, indispensável no tratamento dos
viciados. Embora não crie hábito, o LSD é mais potente do que qualquer
tóxico. Essa vantagem, porém, acarreta num terrível perigo: seus efeitos são
muito mais profundos e permanentes. Uma das armas mais espantosas, para
explorar os espaços psíquicos, descoberta por acaso pela ciência, o LSD
pode ser também o sintoma mais grave da crise da juventude moderna.
V
Louise L. Hay sabe que todas as doenças físicas, sem exceção, têm
causas mentais e, no seu livro, Heal Your Body, procura estabelecer quais
são os padrões psicológicos que estão na origem das diferentes
enfermidades.
Toda perturbação do corpo começa com pensamentos obsessivos de
alguma espécie. Esta verdade é conhecida pelo homem há muitos séculos;
no momento atual, porém, ela também deve ser utilizada na prática, sob
pena de sucumbirmos a doenças fatais, cada vez mais complexas e difíceis
de serem tratadas pela feitiçaria científica vigente, como a AIDS.
Não me diga! AIDS, então, é uma questão de cuca? — o leitor
perguntará, talvez em dúvida.
Claro — respondo, sem hesitar —, como tudo o mais que existe. A
chamada “realidade objetiva” é uma construção mental, não há exceções;
basta parar de pensar para que ela desapareça. Deve haver, portanto, um
padrão mental que é a verdadeira causa da AIDS, sendo o famoso vírus uma
manifestação material posterior.
Louise L. Hay resume a origem psicológica dessa assustadora doença,
em três fatores principais:

1. Negação do próprio eu — Eis uma regra geral em nossa sociedade. As


pessoas não se aceitam, procuram fabricar uma imagem socialmente
conveniente. Negar-se é uma espécie de auto-agressão.
2. Culpa sexual — A repressão sexual, renovada por inúmeras gerações,
não pode ser facilmente removida da mente obstinada. A
permissividade sexual é considerada como uma transgressão que deve
ser punida. Há uma equação entre sexo e culpa.
3. Uma forte crença de não ser “suficientemente bom” — A
autodepreciação é uma das manifestações mais astutas do ego
insaciável. Se não consigo ser melhor do que os outros, prefiro ser
pior. A pessoa que se diminui perante si própria é extremamente
egocêntrica.
Havendo essas três condições, há — ou pode haver — AIDS.
A imprensa vive comentando que a AIDS assinala o triunfo da contra-
revolução sexual, típica dos anos 80, em contraste com a esgotada
revolução sexual que caracterizou os 60. Essa contra-revolução era uma
velha aspiração dos conservadores, que a consideravam, há muito, uma
necessidade indispensável para a sobrevivência do sistema. Se a AIDS não
existisse, eles teriam de inventá-la. Mas parece que não foi preciso: a AIDS
existe, inventada pelo sentimento de culpa das massas, em face da liberação
sexual deflagrada nos anos 60.
As grandes epidemias são sempre produto de padrões mentais
coletivos, que dominam um determinado grupo humano. Vista como
pecado, transgressão, pela nossa sociedade, a liberdade sexual devia ser
punida. AIDS é autopunição, imposta pela mente mórbida; é um castigo,
sim, não de Deus, como querem religiosos ingênuos e iracundos, mas dos
próprios homens; não é o resultado da permissividade sexual dos 60, mas,
mais uma vez, da repressão obstinada que nos acompanha há muitos
séculos. Ao contrário do que insinua a propaganda reacionária, ser livre
nunca deixou ninguém doente; por outro lado, as auto-recriminações, a
obsessão por pensamentos negativos, a culpa inquietante e outros estados
mórbidos da consciência não só adoecem como matam. De AIDS, por
exemplo.
Nos anos 60, a repressão foi questionada e, em conseqüência,
descobriu-se a alegria do sexo. Era bom e não tirava pedaço. Velhos mitos
foram desmascarados, até mesmo alguns preservados pela instituição
psicanalítica. Freud percebeu que a repressão sexual está na origem das
neuroses, mas sustentava que ela é necessária ao funcionamento da
civilização. Pensadores como Wilhelm Reich, Herbert Marcuse e Norman
O. Brown superaram as limitações de Freud, iluminando a perspectiva
libertária. Não se pode negar que houve um avanço e as novas gerações
puderam crescer sem muitos dos condicionamentos neuróticos que
atingiram até minha geração. Houve mais liberdade. Mas a velha repressão
procurou sua revanche, de maneira insidiosa e terrível, através da culpa e da
autopunição. Essa situação psíquica das massas engendrou a AIDS.
Vejam bem: a própria contaminação da AIDS deve ser feita pelo
sangue, o vírus deve penetrar a corrente sanguínea, o que exige a abertura
de uma ferida. Quer dizer: a forma de contaminação é agressiva. O sexo
anal é o mais perigoso exatamente porque oferece maiores probabilidades
de causar ferimentos, sem os quais não há contágio. Há um conteúdo sado-
masoquista, pelo menos a nível simbólico, na relação sexual, que transmite
o vírus de um parceiro para o outro. Para que a AIDS prolifere, é necessário
que sexo seja uma coisa que tira pedaço.
Em suma: a doença depende de um contexto no qual a relação sexual
seja uma agressão e o sexo um pecado a ser punido, isto é, um contexto no
qual vive a maioria das pessoas; num contexto diferente, no qual a relação
sexual fosse manifestação de carinho e o sexo uma fruição natural, a doença
não teria condições de existir e seu misterioso vírus não chegaria, sequer, ao
conhecimento dos desnorteados cientistas.
Não apenas a doença em si, a paranóia crescente que acompanha o
fenômeno da AIDS comprova a extensão em que o sentimento de culpa
reina em nossa sociedade. O medo do vírus revela sempre o pecador. O
próprio fato de que a bandeira da liberdade sexual, desfraldada nos 60,
fosse entendida como mera “permissividade”, ou gandaia, indica a sólida
presença dos tabus repressivos, mesmo entre os que se proclamavam os
mais liberados. As massas retrógradas e obscurantistas acreditam que se foi
longe demais nos 60. Dessa maneira, o grupo humano a ser a primeira
vítima foi aquele que carrega o maior peso de culpas: os homossexuais.
Negação do eu, culpa sexual e auto-condenação podem traçar seu perfil
psicológico.
Apesar de tudo, o caráter negativo do atual momento histórico não
deve velar a ampla dialética que o compreende. A revolução sexual dos 60
foi uma conquista importante para o crescimento humano; a contra-
revolução dos 80, que resultou na AIDS, é uma doença mental que deve ser
erradicada. As perspectivas não são muito boas, pois as campanhas oficiais
se limitam à camisa-de-vênus, sem perceber que só um saneamento
psíquico, espiritual, pode conter a doença. A única solução é aprofundar as
lições dos 60, denunciar a culpa mórbida e tentar, mais uma vez, libertar o
ser humano de seus fantasmas.

1967 — RODA-VIVA
Um dos primeiros movimentos coreográficos do coro de Roda-Viva é
um gesto brusco, alegre e agressivo: os atores, de costas, voltam-se para a
platéia e descobrem os corpos, até então envoltos em grandes capas negras.
A estilização dos figurinos — malhas justas, inteiriças, cor de carne,
maculadas por manchas que caricaturam pêlos, saliências e reentrâncias dos
corpos de todos nós — indica que estão nus. Eis, portanto, resumida numa
imagem simples, eficiente e teatral, no começo do espetáculo, a sua
intenção mais profunda: o desnudamento. Pouco depois, Benedito Silva é
transformado em Ben Silver. O ator, então, é violentamente despido, pelo
coro, de suas roupas comuns e cuidadosamente vestido, uma cerimônia de
paramentação litúrgica. Eis, portanto, numa segunda imagem, mais
elaborada, mas igualmente eficiente e teatral, resumida a natureza de sua
forma e de seu tipo de comunicação com a platéia: a do rito religioso.
Nem a intenção nem a forma de Roda-Viva são arbitrárias, gratuitas ou
mero teatro pelo teatro. Sustentam-se mutuamente, implicam-se
reciprocamente, necessitam-se. O desnudamento só revela seu sentido na
liturgia, ao mesmo tempo que a desmistifica. Para que isso fique claro, é
preciso indicar quais são as roupas intoleráveis que Roda-Viva quer
arrancar de um corpo a ponto de asfixia.
 peça é uma Paixão. Não a de Cristo, mas a de um cantor popular de
nosso tempo, um dos ídolos fabricados e destruídos pela máquina cancerosa
de nossa televisão comercial. De Ben Silver a Benedito Lampeão,
obedecendo às mágicas corrosivas das pesquisas de marketing, dos índices
de Ibope e das racionalizações paranóicas de seus manipuladores, um
boneco impotente chamado Benedito Silva experimenta os caminhos
sucessivamente gratificantes e cruéis de sua sede de fama e lucro — e de
sua alienação. Ele nunca é sujeito em face da engrenagem: sempre objeto,
deixa-se corromper, transformar-se passivamente e, finalmente, se destruir.
A engrenagem interfere em sua vida privada, envenena-lhe a amizade aos
amigos, impede-lhe o amor à mulher amada, rouba-o — numa palavra —
de si mesmo. Paga-o com a fama. Cobra-o a própria vida.
Esta é, resumida, a história. Contada assim, não vai muito fundo.
Poderia até ser eventualmente comprada pela própria televisão e
transformada numa telenovela dolorosa de nossa escravização, consentida
ou não, a mitos religiosos absurdos e desumanos, o nosso fascínio pelo sexo
e o nosso covarde horror ao sexo, nossa insegurança e nosso temor em face
do olhar do outro, nossa hipocrisia e nossos ressentimentos... — tudo isso o
espetáculo faz dançar diante do espectador, eriçado ou sorridente em suas
defesas, mas sempre atingido. Para exorcizar tantos demônios do espírito de
cada um, era necessário o rito apropriado; para despir tantas vestes, era
preciso esse verdadeiro ritual de desnudamento que é Roda-Viva. A história
de Benedito Silva se reduz, assim, ao material da celebração, de forma
similar à que se verifica naquela obra-prima da dramaturgia contemporânea
que é Les Nègres, de Jean Genet. Podemos dizer, em conseqüência, que a
mise-en-scène de José Celso trabalha sobre o texto de Chico Buarque como,
em tese, qualquer mise-en-scène deveria fazer sobre qualquer texto:
penetrando-o, revelando suas raízes secretas.
Roda-Viva é uma missa negra da alma brasileira. Ela celebra a nossa
má consciência. Não denuncia a nudez de nenhum rei em particular; é,
antes, o balé selvagem da nudez de todos nós. Imagino que Antonin Artaud,
após enlouquecer completamente e ter sido internado no hospício de
Rhodez, deve ter sonhado, numa de suas noites mais torturadas e
iluminadas pela psicose, com alguma coisa parecida. Mas, mesmo os
profetas, como Artaud, são humanos, demasiado humanos, para prever com
exatidão os rumos da misteriosa dialética que rege as realidades profundas
que os fascinam. Era preciso que os pacientes dentes do Tempo, mastigando
com crueldade a carne de todos os homens de teatro deste século fatal,
criassem a chaga sangrenta de onde o novo teatro pudesse brotar. Era
preciso que se suspeitasse seriamente da morte definitiva do teatro, que seu
arsenal de recursos fosse esgotado até a definitiva poeira, que ele parecesse
já totalmente esvaziado de sentido para o homem contemporâneo, para que
pudesse renascer.
No Brasil, também, os dentes do Tempo mastigaram nossa carne.
Descobrimos o teatro, excitamo-nos com ele, desesperamos dele. Passamos
das adocicadas belezas tebecianas ao entusiasmo por um teatro popular que
se revelou irrealizável para desembocar num comercialismo desenfreada e
incompetente até um vácuo desalentador. Cada momento teve a sua estátua:
depois do TBC, o Arena; depois do Arena, Oscar Omstein; depois de Oscar
Ornstein... Os dentes do Tempo continuaram a mastigar nossa carne. Roda-
Viva, com O Rei da Vela, encarna o ponto crítico desse processo, o ponto
crucial do recomeço. Não se pode negar hoje que José Celso foi o primeiro
diretor brasileiro a revelar, em suas encenações, plena consciência de que a
chaga já estava suficientemente aberta e pronta para o parto. Seus
espetáculos expressam claramente uma tomada de consciência da nova
geração de homens de teatro de sua marginalidade submissa e uma decidida
rebelião contra essa condição.
A angústia, a frustração, a humildade, a timidez e o desconforto
existencial da pequena burguesia explodiram; quebraram-se. Roda-Viva
joga os cacos sobre a platéia. Naturalmente, os que estiverem demasiado
acostumados com a canga no pescoço, irão protestar e se postar do outro
lado das barricadas. Os que preferirem se libertar de cadeias desnecessárias
e absurdas, continuarão o caminho.
O resultado da revolução sobre o público foi milagroso. Nada menos.
Solicitadas, provocadas, desafiadas, as platéias finalmente reagiram.
Verdadeiras reações das platéias era coisa que não se via há muitos anos em
nossas casas de espetáculo. Ria-se um pouco; chorava-se talvez menos;
apreciava-se debilmente um ator ou uma atriz; admirava-se, por vezes, um
cenário ou um figurino de bom gosto. . . Nada muito além disso. À
mensagem humana recebida pelas platéias, no caso de grandes textos, só era
recebida realmente na imaginação dopada por alguns mitos sobre a arte e
sobre a cultura, de alguns críticos e intelectuais. Na verdade, quase sempre
a tal decantada mensagem disparava como um balão de oxigênio sobre as
cabeças dos espectadores, escapava pela primeira janela aberta, perdia-se
num espaço neutro. O teatro não passava de um passatempo incômodo para
as noites de sábados.
De repente, Roda-Viva retesa os espectadores nas poltronas. O
exorcismo atinge, não a cabeça fria ou a chamada sensibilidade estética dos
espectadores, mas seus nervos. Alguns levantam e saem: precisam fazê-lo,
do contrário algo se quebraria dentro deles, as couraças que os protegiam
das realidades exorcizadas. Os que permanecem assistem o milagre,
estarrecidos. O teatro, esse morto velado todas as noites pelos refletores,
estendido no esquife de nossos palcos, começa a respirar; o sangue volta-
lhe às veias; a força reconquistada abre-lhe os olhos. Ele estende os braços
e toca os espectadores.
1968 — THE NEW LEFT

No momento em que a Convenção do Partido Democrata que escolheu


Hubert Humphrey como seu candidato à Presidência deixava de ser uma
festa cheia de mocinhas louras e de minissaia, e uma onda de protestos
sacudia Chicago, o tumulto assinalava — apesar ou por causa da derrota do
senador Eugene McCarthy — uma vitória parcial de um fenômeno político
típico desta década nos Estados Unidos. Os observadores são unânimes em
reconhecer que, dentro e fora dos salões da convenção, a chamada New
Left, a Nova Esquerda norte-americana, fincou suas raízes. Nenhuma
repressão policial conseguiria deter a onda de agitação. Julian Bond já
conseguira, cindindo a representação da Geórgia, abrir o precedente de
conquista à voz e voto da minoria esquerdista do partido, para a
perplexidade dos conservadores. O triunfo previsto de Humphrey não
silenciou, dentro dos salões da convenção, os partidários de McCarthy, e
nas ruas, os jovens yippies, do Partido Internacional da Juventude, jogavam
não flores, mas pedras nos policiais. Os resultados da visão mais complexa
da vida política americana, inaugurada oficialmente para o Partido
Democrata durante a convenção, não tardaram. A cisão está no horizonte: a
relutância de McCarthy em unir o partido em torno de Humphrey para
evitar a vitória de Nixon é uma prova suficiente. Se os líderes da Nova
Esquerda estão certos, a convenção de Chicago foi apenas um microcosmo
do que será a política americana nos próximos anos.
Revista a história da Nova Esquerda, desde sua emergência, por volta
de 1960, é preciso reconhecer que seus líderes têm lá suas razões para
prever mais tumulto, no futuro. A escolha de John Kennedy na cidade de
Los Angeles, em 1960, parece ter encerrado a passividade absoluta que
dominou a esquerda americana durante a década dos 50, afogada pela
violenta repressão macarthista. Se, até então, as mocinhas louras e
sorridentes eram a regra indisputável nas convenções dos grandes partidos
para escolha do candidato à Presidência, sua presença em Miami, oito anos
depois, parece uma exceção. A mudança do quadro geral foi complexa:
envolve uma guerra — a do Vietnã; três assassinatos políticos importantes
(John e Bob Kennedy, Martin Luther King); o arejamento do pensamento
marxista, com sua libertação da burocrática tutela soviética; o gigantismo
opressivo das
leis da sociedade industrial de consumo e o fenômeno biológico da
crescente influência dos sentimentos da juventude em todos os países —
para não falar em fenômenos secundários, como a utilização de descobertas
científicas, químicas, como válvulas de escape para a necessidade de
protestos subjetivos, como aconteceu com o LSD e o psicodelismo, ou a
sublimação dessa mesma necessidade em manifestações artísticas, como
aconteceu com a música dos Beatles, de Joan Baez ou de Bob Dylan.
Por coincidência ou não, tudo parece ter começado mesmo em 1960.
Na época, a mola que acionou o surgimento da Nova Esquerda foi o
incipiente movimento estudantil norte-americano. Um fato conhecido
ilustra o fenômeno. Naquele ano, os estudantes da Universidade da
Califórnia, em São Francisco, protestaram contra as investigações do
Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara, nova versão da célebre
comissão do Senado americano que institucionalizou a repressão
macarthista durante a década dos 50. A repressão foi violenta: a polícia
invadiu a universidade e os estudantes foram presos e espancados. A
comissão resolveu aproveitar o fato com a finalidade de propaganda,
exibindo um filme que mostrava a repressão policial, Operation Abolition,
em todos os campus universitários do país. O tiro saiu pela culatra. O efeito
das exibições foi o oposto do previsto e os pequenos grupos que agitavam a
bandeira da liberdade de expressão nas universidades foram fortalecidos.
Ao mesmo tempo, jovens universitários se integravam na luta dos negros
norte-americanos contra a segregação racial. Não por acaso, 1960 foi o ano
dos Freedom Riders, viagens ao Sul dos Estados Unidos com objetivo
integracionista, das quais participaram (e foram espancados pela policia e
segregacionistas sulistas) vários universitários brancos, e dos célebres sit-
ins em locais públicos dos estados do Sul, onde a segregação racial era
institucionalizada. A aliança que começava a surgir entre jovens estudantes
brancos, que lutavam pelos direitos civis, e os negros que combatiam a
segregação, foi o berço da Nova Esquerda.
Os beats e seu preguiçoso protesto, que haviam sido os únicos rebeldes
americanos da década dos 50, entravam em crepúsculo. Começavam a ser
substituídos pelos floridos hippies, que trocaram o torpor da heroína pela
exaltação do LSD e colocaram em circulação um slogan célebre: make love,
not war.
Como seus predecessores, tiveram importância no surgimento da Nova
Esquerda: mostraram que havia razões de ordem existencial para o protesto
e inspiraram, com a publicidade gratuita que obtiveram da grande imprensa
norte-americana, a união de todas as correntes de opinião pacifista no
protesto contra a guerra do Vietnã. No fundo, porém, o relativo
engajamento político dos hippies — na verdade, ele só existe se for
comparado à ausência total de engajamento político nos beats — não era
uma força motriz. Era apenas um reflexo.
A verdadeira luta pelo crescimento e pela influência política da Nova
Esquerda travava-se em outra frente, na frente estudantil. Em todos os
Estados Unidos formavam-se novas organizações universitárias, com
tendência liberal ou esquerdizante. Cronologicamente, a mais importante
delas foi o SNCC (Student Non-violent Coordinating Committee), que
começou como uma organização moderada, dirigida por um líder religioso,
John Lewis, seguidor de Martin Luther King, e terminou como uma
organização radical com a ascensão de Stockely Carmichael à sua liderança,
em 1966. O começo da luta foi duro; Julian Bond, que também foi um líder
surgido nos quadros do SNCC, conta que em 1960, quando ele próprio tinha
vinte anos de idade, a comissão executiva reunia-se e os debates
processavam-se mais ou menos assim:
Fui preso quatro vezes nos últimos trinta dias. E você?
Bem. Eu não fui preso. Mas fui espancado duas vezes na rua.
— E eu? Não fui preso nem espancado. Mas me expulsaram da escola.
As carreiras políticas de Carmichael e Bond são conhecidas. O
primeiro tornou-se o grande líder dos radicais negros: desvinculou-se
totalmente da política convencional americana; fundou um partido
revolucionário, Black Panther, para organizar os radicais negros; propõe
abertamente a transformação total da sociedade americana e uma aliança
firme com o esquerdismo castrista da América Latina. Bond elegeu-se
legalmente deputado no Estado da Geórgia, pelo Partido Democrata; teve
seu mandato cassado por causa de sua posição enérgica contra a guerra do
Vietnã; recuperou-o, por decisão da Suprema Corte de Justiça; tentou uma
aliança de todas as facções da Nova Esquerda, através de uma National
Conference for the New Politics, que afinal redundou num fracasso, e afinal
transformou-se numa estrela da ala esquerdista do Partido Democrata, como
o demonstrou sua atuação na convenção de Chicago. Bond acredita na
possibilidade de ação da Nova Esquerda através dos organismos vigentes no
establishment americano; como radical, ele justifica a posição de Eugene
McCarthy a favor da Nova Política, uma ação política de esquerda, não-
convencional, no esquema institucional convencional — o que, com a
derrota de Chicago, poderia levar potencialmente à formação de um novo
partido liberal, à margem do Partido Democrata.
Além do SNCC, entretanto, outras águas rolariam sob a ponte da
política americana, durante a década dos 60. Entre a massa estudantil, duas
organizações alcançaram algum relevo, a partir da desagregação do Partido
Comunista americano — iniciada com seu esvaziamento na década de 50 e
completada com a medida da administração John Kennedy, em seus
princípios, obrigando-o a registrar-se legalmente como “agência de uma
potência estrangeira”. Em 1961, Milton Rosen e Mortimer Scheer, dois
ativistas com cerca de quarenta anos de idade, foram expulsos do PC por
seu “radicalismo” e fundaram o Progressive Labor Party, de linha chinesa.
O PLP procura realizar uma ação direta entre o proletariado urbano e rural
dos Estados Unidos, com o fito de preparar uma revolução marxista armada
nos moldes clássicos. Embora sem nenhum poder político efetivo, tem certa
penetração nos meios estudantis e deve ser reconhecido como uma
tendência viva na Nova Esquerda. A outra organização marxista, de
orientação clássica da Nova Esquerda americana, é representada pelos
DuBois Clubs, que seguem uma linha geralmente apontada como soviética
e reformista. DuBois é o nome de um negro comunista americano —
William DuBois — que morreu há alguns anos expatriado em Gana. Os
DuBois Clubs tiveram, durante algum tempo, a colaboração do May 2nd
Movement, também de orientação “marxista-leninista-reformista-
soviética”, já dissolvido. Seu apelo parece ser débil para a juventude, como
força da Nova Esquerda.
O apelo mais decisivo parece vir do SDS (Student for a Democratic
Society), organização que catalisa as aspiràções dos jovens brancos de
classe média com a mesma eficiência mostrada pelo SNCC, no que se
refere aos jovens negros. Embora a aspiração revolucionária do SDS seja
similar à dos radicais negros, seus métodos diferem no espírito e seus
objetivos diferem na essência. O SDS deseja uma nova sociedade, mas
regulada pelos princípios humanistas clássicos e seus membros são avessos
ao sangue, ao tiro e à violência. Seu slogan, Build, not burn, é uma resposta
direta ao Burn, baby, burn, dos extremistas negros. Liderada pelo jovem
Paul Booth, a SDS tornou-se a mais importante organização política
estudantil da Nova Esquerda. A orientação oficial para a militância é aberta
e eminentemente anti-sectária. Dela fazem parte liberais interessados na
preservação dos direitos civis elementares; intelectuais desejosos de uma
forma de ação simultaneamente radical e afastada dos padrões marxistas
convencionais; hipsters e anarquistas pressionados pela necessidade
subjetiva de ação política efetiva; e todos os jovens liberais que se espalham
e multiplicam nas universidades americanas, formados, geralmente, por
motivos mais afetivos do que racionais. O SDS não tem uma ideologia:
pode, mesmo, ser considerado uma resposta da esquerda à diagnose de
Daniel Bell em seu famoso livro The End of Ideology, em que o marxismo
é condenado em nome das novas estruturas psicossociais criadas pela rica
sociedade americana. A filosofia do SDS é existencial; seu motor mais
poderoso, a exigência ética.
Para os jovens do SDS, para o setor mais vital da Nova Esquerda
americana, Marx, Lênin, Mao, Trotski, Lukács, etc. não são tão importantes
quanto C. Wright Mills, Michael Harrington, Albert Camus, Norman
Mailer, Jean-Paul Sartre, Herbert Marcuse, etc. A paixão moral ganhou o
primeiro plano. Com ela, a pequena burguesia politizada afirma tanto sua
disposição para a luta quanto sua força para a transformação da sociedade.
Trata-se, sem dúvida, nos Estados Unidos, de uma minoria. Mas Jack
Newfield, um de seus porta-vozes, já a chamou de uma “minoria profética”,
que esboça hoje o futuro político da América. E foi também Newfield quem
previu, anos atrás, que “jovens como Paul Booth, Julian Bond e Stockeley
Carmichael seriam os líderes de toda a nova política americana”, carregada
do sentimento do protesto e da exigência da mudança.

1968 — O PENSAMENTO DE DIREITA


Seria, realmente, possível que o pensamento de direita, no Brasil,
permanecesse no nível anacrônico de seus velhos professores tomistas de
filosofia, de seus gustavos corções ridiculamente agitados por falsas
indignações e de seus ingênuos teóricos fardados da Sorbonne local? É
claro que não. Um dos sintomas caiu-me às mãos, na forma de alentado
artigo, publicado no suplemento especial domingueiro de um matutino.
Chama-se Filosofia da Guerra Subversiva. O autor é suficientemente
inteligente para tentar injetar seu veneno no leitor, de maneira “solerte” —
para usar um adjetivo que deve ser de seu agrado. O estilo do trabalho tem
fluência jornalística e mede sua retórica, ao contrário do que costuma
acontecer com os fellow travellers intelectuais do autor. A informação
demonstrada sobre alguns mestres do pensamento moderno pode parecer
sedutora. A estrutura do trabalho é cuidada, nos termos de sua própria
lógica — o que contrasta com os outros artigos sobre o mesmo tema, “a
guerra subversiva”, publicados no mesmo suplemento.
Mas as pílulas douradas são sempre as mais perigosas. É preciso ver
com clareza as suas componentes. No fundo, o artigo é apenas uma
tentativa de conferir sutileza, sofisticação e sentido atual ao impotente
arcabouço filosófico do pensamento reacionário. Ser sutil, com um
pensamento de direita, já é bastante difícil: é o mesmo que tentar
transformar um elefante num bailarino. Ser sofisticado parece uma proeza
mais fácil — e o autor a tenta, através dos toques fáceis de ironia e a
descontração pouco filosófica, jornalística, de seu artigo. Mas ter sentido
atual é uma façanha de tal ordem para o pensamento de direita que ele só
poderia realizá-la por milagre divino. Admito que o autor acredite em
milagres, mas seu artigo não é um deles. Ele apenas assinala que existe um
esforço por parte da direita de manter-se intelectualmente na vanguarda.
Mas também ajuda a demonstrar o seu fracasso.
A parte inicial do artigo é uma tentativa de assustar o leitor com a
chamada ameaça da conspiração comunista mundial, nos termos mais
convencionais usados pela Sociedade pela Tradição, Família e Propriedade:
para ele, “a controvérsia entre comunistas chineses e russos não afeta o
objetivo comum, que é a revolução mundial, mas apenas a escolha de
métodos”. E estamos conversados. A sutileza do autor, aqui, não é bastante
para fazê-lo desconfiar que talvez “a revolução mundial” signifique coisas
diferentes, para uns e outros. O que importa, porém, neste trecho inicial do
artigo, sobre política internacional, é a tática de abordagem do problema
empregada. 0 autor, talvez influenciado pelos filósofos que leu para tentar
demolir, ataca a questão de um ângulo negativo. Nega a interpretação
marxista corrente de que os conflitos atuais da política internacional devem
ser interpretados como uma tradução concreta, no piano internacional, da
luta de classes, mas para simplesmente substituí-la a seguir pela sua
formulação direitista da luta entre blocos. O fato atual que autoriza o autor a
desmentir a luta de classes e a endossar a ideologia oficial da guerra fria, do
conflito entre blocos, preconizada pelos teóricos da Escola Superior de
Guerra, é “uma perspectiva absolutamente nova: o embate nuclear”. Ele não
parece saber que a ideologia da guerra fria é, hoje, uma tese envelhecida até
para seus colegas da direita teórica norte-americana, por fatos que até agora
só foram razoavelmente iluminados por alguns pensadores que ele ataca no
resto de seu artigo. E que esses fatos, ao invés de desmentirem a tese da luta
de classes, demonstraram, apenas, a sua complexidade e a necessidade de
ainda ser elucidada.
A revolução cultural chinesa, a crescente vitalidade da nova esquerda e
a recente diversificação qualitativa dos movimentos políticos de protesto
hão de parecer epifenômenos desprezíveis para o autor. Mas não para a
História. É por isso que a certa altura de seus argumentos ele precisa apelar
para um “mistério”, para o inexplicável, e falar do “fator misterioso e
inerente à própria condição existencial do Ocidente democrático: a opinião
pública. A opinião pública, interna e internacional, representa
manifestamente o fator psicossocial decisivo como contrapartida do embate
nuclear”.
O que o autor chama de “fator misterioso”, “opinião pública”, “fator
psicossocial”, etc. é, no fundo, a conhecida práxis marxista, “decisiva”,
como ele a afirma, inclusive em face da realidade concreta estabelecida
pelo conflito entre as grandes potências atômicas — e explorado pela
primária ideologia da guerra fria. As formas complexas — ainda a serem
investigadas pelo pensamento criador — da luta de classes continuam a ser
o conteúdo concreto da práxis efetiva dos povos. Tentar ser antimarxista, no
sentido que quis o autor, é ficar sempre aquém de Marx — conforme deixou
claro Jean-Paul Sartre — e ser obrigado a falar em “fatores misteriosos”.
O idealismo escolástico ignora o primado da realidade efetiva sobre
sua conscientização filosófica, bota o carro adiante dos bois e desconhece o
sentido da palavra práxis. Depois de sentir-se seguro de que assustou
bastante seus leitores com a ameaça comunista na política internacional, o
autor passa a denunciar os filósofos responsáveis por tais sustos, como se
eles fossem os únicos motores da realidade — e não isso e reflexo,
“educados e educadores”, como diria Marx. O autor, por razões
“metodológicas” — de critérios, estes sim, misteriosos —, divide suas
vítimas em três “heresias”: as da Fé (a tradição racionalista européia), as do
Amor (que abrangem tanto Rousseau quanto a psicanálise) e as da
Esperança (que parecem resumir-se na de Ernest Bloch). Não sobra
ninguém. Hegel, Marx, Rousseau, Reich, Marcuse, Debray, Lukács e Ernest
Bloch são indiscriminada e impiedosamente triturados. Do final da Idade
Média em diante, toda a história da filosofia parece ao autor um vasto
processo herético de corrupção e degradação espiritual. Para ele, depois da
Idade Média, nos atolamos em trevas infernais, das quais só nos
salvaremos, aparentemente, por um toque de mágica no Juízo Final.
A respeito de Hegel, o autor não deixa por menos: afirma que teve um
impacto “dos mais infelizes sobre a vida moderna”. Para ele, a dialética
hegeliana não passa de “lavagem cerebral”, “uma técnica de double think: a
paz é a guerra, o preto é branco, a mentira é verdade”, um “tipo de quebra-
cabeça”, uma “arma propagandística”, etc. Só uma cabeça escravizada à
lógica formal, como a do autor, poderia concluir que a “batalha de
Stalingrado foi um conflito gigantesco entre os braços esquerdo e direito de
Hegel”. Admito que uma metáfora possa apontar alguma verdade. Mas,
quando isso acontece, apresenta um mínimo de coerência interna e com o
contexto conceituai em que é inserida. A do autor aceita a existência de dois
braços em Hegel, de duas tendências — para a esquerda e para a direita —
de sua filosofia. Mas sua argumentação é pensada para provar justamente o
contrário: que fascismo e comunismo identificam-se em sua origem
comum, que sua natureza herética e demoníaca é a mesma e que ambos são
os resultados do mesmo sopro maléfico do Geist hegeliano. Essa tentativa
de dissolver a diferença ideológica entre esquerda e direita é uma tática
típica do pensamento reacionário.
A segunda heresia, para o autor, consistiu em “desintegrar o Amor de
sua transcendência no Ser divino, sexualizá-lo completamente, tendo como
conseqüência a dissolução da família e da ordem jurídica e moral”. Aqui, a
lista inquisitorial do articulista começa com o nome de Rousseau, mas os
pensadores que mais o irritam são mais recentes, os que classifica como
“gnósticos lúbricos”: Herbert Marcuse e Wilhelm Reich. É curioso que o
autor não mencione o trabalho pioneiro de Freud, mas tente utilizá-lo em
seu próprio diagnóstico psicanalítico amador de Marcuse. E, por outro lado,
preocupa-se em ridicularizar Marcuse e Reich — os indivíduos e não o
conteúdo de seus pensamentos —, exatamente os homens que procuraram o
fundamento histórico, social e econômico das descobertas de Freud no
terreno da psicologia individual profunda. Marcuse é refutado,
simplesmente, porque é apreciado por “jovens na agitação da puberdade”,
“artistas frustrados”, “playboys ociosos”, “os rapazes zangados de 1968” e
“artistas da avant-garde de Greenwich Village, Montparnasse e Chelsea” —
pessoas por quem o autor nutre um desprezo cujas raízes no seu próprio
despeito e ressentimento não consegue dissimular. A crítica a Reich é
preparada com a acusação de que o grande analista sofria de “parafrenia
sistematizada de invenção”, mas omite qualquer menção ao fato de que o
psiquiatra que primeiro formulou essa acusação, dando origem à célebre
discussão sobre a “esquizofrenia” de Reich, era um impotente sexual — o
que certamente dificultava sua abertura intelectual para avaliar
corretamente as penetrações de um livro como A Função do Orgasmo.
Admito — e espero — que o autor e o falecido professor Mira y Lopes, a
autoridade que cita no caso, jamais tenham sofrido do mesmo mal, mas ao
veicular a difamação e ao usá-la como arma tornaram-se cúmplices da má
fé. Quanto às teorias de Reich relativas à unidade psicossomática do
organismo humano, o autor tem motivos para torcer para que sejam
cientificamente incorretas — o que não está tão provado como supõe —,
pois ele próprio poderia estar sofrendo, em breve, de câncer ou úlceras, na
melhor das hipóteses. Vide A Biopatia do Câncer.
Embolado — mais uma vez misteriosamente — com Marcuse e Reich,
“na linha romântica da juventude”, Regis Debray é o alvo seguinte do
articulista. Embora A Revolução na Revolução lhe pareça uma obra
“filosoficamente fraca”, o autor dedica um amplo espaço de seu trabalho à
crítica do livrinho de Debray. Acusa-o de ignorar totalmente, entre outras
evidências, “o poder de pressão política e moral da opinião pública nas
sociedades abertas do Ocidente”, quando é claro que Debray deu-se ao
trabalho de escrever e publicar, ao invés de simplesmente empunhar um
rifle ao lado de Che Guevara, justamente porque não a ignora. Mais:
porque, ao contrário da abstração escolástica e direitista do autor, o conceito
de “opinião pública” tem um conteúdo concreto para ele. De resto, no
examinar a política latino-americana, para contrapor uma tese sua às de
Debray, o autor abre seu jogo, afirmando sua crença na efetividade da luta
de gerações e das lideranças carismáticas — para ele mais decisivas do que
os conflitos sociais —, para concluir que Debray é apenas um pequeno-
burguês rousseauniano, apaixonado pela “floresta tropical americana,
frondosa e exótica”.
Denunciada a rebelião romântica da juventude, o autor passa então a
acusar os mais velhos que não pensam como ele. Sua condenação do
movimento progressista da Igreja católica é tímida e cuidadosa. O autor
deve ter seus motivos para ficar cheio de dedos na questão. Mas, como
ideólogo que empunha o estandarte medieval da TFP, não esquece de
apontar ao leitor, com o dedo em riste, o processo de secularização da
Igreja, que estaria lamentavelmente tentando trazer o Reino de Deus para
este mundo, “num ato imediato e cataclísmico de revolução”.
Com os pensadores de esquerda que não são católicos e de quem trata
a seguir, classificando-os na rubrica de “ativismo gnóstico”, Georg Lukács
e Ernest Bloch, o autor não tem tantas contemplações. Lukács é poupado
por um curioso silêncio — talvez porque o autor não o tenha lido bastante
—, mas Bloch é violentamente atacado, principalmente através de uma
refutação da teologia de Thomas Muntzer, assunto de um dos seus livros. O
pensador alemão serve também para que o autor introduza o tema da
Esperança em seu artigo, para concluí-lo revelando abertamente a sua
posição filosófica, embora sem chamá-la pelo nome. É um escolástico
medieval, ao velho estilo, apesar das tentativas de sutileza, sofisticação e
atualização. A Esperança blochiana é refutada por sua equivalente
tradicional que justifica a injustiça, a miséria e a opressão desta vida pela
promessa de felicidade eterna na outra. Pois, para o autor, “a verdadeira
Esperança é aquela de que fala São Paulo na Epístola aos romanos, a
Esperança por aquilo que não se vê e que, não se vendo, se espera com
paciência...”
Nenhuma paciência, porém, resistirá à espera por um pensamento de
direita criador ou revelador. No artigo, estão presentes todos os vícios
catalogados por Simone de Beauvoir em seu ensaio sobre O Pensamento da
Direita Hoje. A transformação, da sociedade é sempre tratada como uma
catástrofe que deve ser prevenida e evitada. Embora o autor se permita
reconhecer, por exemplo, que “a contribuição inicial de Reich para a
Psicanálise do Caráter (1933) fora positiva e até respeitada”, ou que, em
relação a Marx, “a sua análise da sociedade no início da revolução
industrial era perfeitamente correta”, seu objetivo final é utilizar o pânico
como freio à alteração do mundo: fala em transformação “catastrófica e
apocalíptica”, em “cataclismo revolucionário”, etc. O resultado é que a
fórmula que utiliza para caracterizar nossos tempos, que tanto ele odeia, de
“agnosticismo religioso e gnosticismo político e filosófico”, pode ser
invertida para caracterizar sua própria filosofia. Seu artigo é um exemplo
perfeito de pretenso gnosticismo religioso e completo agnosticismo político
e filosófico. Mesmo quando utiliza as idéias de um pensador moderno, vai
buscá-las na ala direita da psicanálise, em C. G. Jung — que, aliás, não cita
como fonte. Seu objetivo profundo é contribuir para a elaboração de um
freio teórico ao processo de conhecimento e de conquista, pelo Homem, de
sua realidade concreta.
O artigo é ilustrado, além dos retratos de Debray e Lukács, por uma
fotografia que mostra em primeiro plano dois capacetes militares e ao fundo
um grupo de jovens que apedrejam os soldados. No plano intelectual, o
artigo é um daqueles capacetes. Seu freio ao conhecimento é uma
inspiração à violência militarista e policialesca. Está ao lado dos policiais
que invadiram e depredaram a Universidade de Brasília, das bombas de
Napalm que arrasaram os casebres vietnamitas, dos tanques russos que
ocuparam Praga e dos espancadores dos negros americanos.
VI
Dezoito anos depois das históricas manifestações que marcaram toda
uma geração, os estudantes franceses voltaram às ruas de Paris. O objetivo,
desta vez, parecia menos amplo do que o de 1968. Tratava-se de sustar a
elitização crescente da universidade, através da chamada Lei Devaquet,
cujo projeto foi finalmente retirado pelo primeiro-ministro Jacques Chirac,
diante do enérgico protesto estudantil. Tudo estaria calmo se a repressão,
como de hábito, não tivesse fabricado um mártir: o estudante Malik
Oussekine foi espancado até a morte pelas forças policiais.
Os acontecimentos estão em curso e é difícil avaliar as conseqüências.
Mas já foram suficientes para despertar, na imprensa e no público em geral,
as inevitáveis lembranças de maio de 1968. Naquela oportunidade, a chama
da rebelião se alastrou rapidamente por Paris, por toda a França, e alcançou,
como uma inspiração, outros países do Ocidente, como, por exemplo, os
Estados Unidos e o Brasil, onde o protesto estudantil foi a primeira voz a se
erguer contra a ditadura militar, então instalada há poucos anos no país.
Os estudantes não tomaram o poder, nem aqui nem lá. Os protestos
foram sufocados com prisões, torturas, etc., como sempre com a
conveniente colaboração dos meios de comunicação de massa, que se
tornaram, ao lado da força bruta, um dos pilares do sistema. Mas as formas
de luta desenvolvidas na prática e o debate teórico que elas suscitaram são
valiosos e merecem ser reexaminados no contexto das condições atuais.
Três questões, em particular, podem ser enfatizadas.
1. A importância das experiências transitórias de contestação do poder.
As manifestações de 68 na França demonstraram que as entidades
organizadas não detêm o monopólio da iniciativa de ação política. Os
estudantes franceses perceberam que é preciso manter o poder sob
contestação permanente, a ser exercida, não pela oposição oficial, mas por
todos os segmentos da sociedade. Isso significa que o protesto não pode ser
subordinado às estratégias definidas de determinadas organizações; pelo
contrário, ele é a expressão direta do interesse público. O fato de muitos
protestos não serem “estratégicos” ou “oportunos” é irrelevante em face de
sua autenticidade. A sinceridade é convincente, também na política. As
experiências transitórias de contestação do poder também definem uma
estratégia, mas a posteriori. Trata-se de agir para pensar depois.
2. A mobilidade e a eficiência do protesto espontâneo.
Maio de 68 foi uma demonstração brilhante da doutrina espontaneísta.
Não foram necessárias filosofias, teorias, ideologias ou, mesmo, palavras de
ordem para que o movimento brotasse, crescesse e atingisse o seu clímax,
envolvendo todo o país, colocando o poder em cheque e espalhando seus
efeitos libertários na juventude de praticamente todo o mundo. Assistimos,
então, à formação espontânea do que Sartre chama de grupo em fusão, na
Crítica da Razão Dialética. O rompimento das cadeias ideológicas permitiu
o florescimento de uma nova visão política que proibia proibir e colocava a
imaginação no poder. Esse processo foi fundamental para toda uma geração
que, ao enfrentar corajosamente a repressão externa, era obrigada, por
questão de sobrevivência, a atacar com energia as suas repressões internas,
a livrar-se delas, se possível. A política anarquista, no bom sentido, de 68,
tinha uma dimensão espiritual. Nossa alma queria ser livre.
3. As conseqüências, para a classe operária, das brechas abertas, pelos
estudantes, no sistema de poder.
Ao entrevistar Daniel Cohn-Bendit sobre 1968, Sartre observou que os
estudantes “não são uma classe”, pois “o estudante é alguém que, por
definição, deve um dia deixar de ser estudante”. Cohn-Bendit replicou que a
divisão social do trabalho entre “estudante” e “trabalhador” é justamente
uma das características do sistema burguês, que deve ser transformado, com
a abolição dessa distinção, no novo sistema socialista. Estudantes e
trabalhadores têm objetivos existenciais comuns, além dos cortes sociais ou
ideológicos. Sua união para contestar o poder é natural, pois também é uma
expressão legítima do interesse público.

1968 — DUAS HISTORIAS


1968. Estávamos todos, artistas e intelectuais cariocas, no Teatro
Gláucio Gil, em Copacabana, em assembléia geral permanente para
protestar contra a ditadura, mobilizados pela morte do estudante Edson
Luís, no restaurante do Calabouço. Já haviam acontecido: o enterro —
quando não houve repressão — e uma segunda passeata, reprimida pela
Polícia Militar com bombas de gás lacrimogêneo, cassetetes tamanho
família, cães e cavalos.
A assembléia, presidida pelo Grisolli, discutia as táticas a serem
adotadas numa nova manifestação nas ruas, marcada para o dia seguinte.
Considerava-se certa uma nova ação policial e se debatia o que devia ser
feito em face das delicadas e arriscadas circunstâncias.
Um rapaz, lá em cima, pediu a palavra:
Sugiro à assembléia que lancemos, contra a polícia, bombas de merda!
— propôs ele, com voz firme.
Perplexidade geral. Murmúrios generalizados. Esboços de protesto.
Mas o rapaz prosseguiu, com convicção:
Por favor, eu peço a atenção da assembléia por poucos minutos. Vou
explicar tudo, por favor, trata-se de uma idéia perfeitamente exeqüível.
Fez-se silêncio. Com esse tácito voto de confiança da assembléia, o
rapaz prosseguiu:
Felizmente, temos tempo, até amanhã, para a coleta do material. Além
de recolher nossa própria produção pessoal, podemos pedir a parentes,
empregadas, vizinhos, etc., que contribuam para que possamos acumular a
maior quantidade possível de material. Além, é claro, do que podemos obter
de cães e gatos. Todos podem e devem ajudar. Esse material deve ser
acondicionado em sacos plásticos — conseguidos em outra simples coleta
— e os sacos, isto é, as bombas, serão levados para o alto dos edifícios nas
ruas por onde a passeata vai passar. A munição está pronta. Quando a
polícia vier, seus soldados serão alvejados do alto dos edifícios. A
assembléia há de concordar que uma tropa toda cagada perde a moral e,
portanto, não tem mais condições de luta. As bombas de merda resolvem
nosso problema.
Metade da assembléia começou a rir. A outra metade ficou indignada.
Provocação! — gritou um.
Está querendo avacalhar a assembléia — denunciou outro.
Só pode ser da comunidade de informação — concluiu um terceiro.
Fez-se o tumulto. Mas o presidente impôs ordem na assembléia e
submeteu, democraticamente, a proposta à votação.
As bombas de merda foram rejeitadas.
Nos idos de 1968, rolavam muitos lances engraçados, o que era natural
porque vivíamos dias de tensão, expectativa, excitação, angústia e até
pânico, de maneira que o comic relief parecia obrigado a brotar
espontaneamente na estrutura dramática construída pela seqüência dos
fatos. Esses lances pintavam muito nas assembléias de artistas e intelectuais
que protestavam contra a ditadura.
Logo na primeira assembléia, realizada a partir de meia-noite do dia
em que o estudante Edson Luís foi morto, no Teatro Opinião, o pau
quebrou. Os participantes dividiam-se, grosso modo, em três grupos
principais: o pessoal do Partidão, que era muito organizado; os chamados “
representativos “, artistas e intelectuais de renome, sem compromissos
ideológicos, mas contrários aos métodos do governo; e, finalmente, os
porras-loucas ou meninos de Marcuse, como os outros os chamavam, isto é,
a esquerda jovem e independente que, disposta a levar a imaginação ao
poder, ficava sempre tumultuando tudo, com suas idéias e propostas
desvairadas. É claro que eu próprio fazia parte deste último grupo.
Mas, logo na primeira assembléia, dizia eu, o pau quebrou entre
representantes dos vários grupos, num bate-boca de fazer gosto. O conflito
básico era entre audácia e cautela, mas aos gritos. Lá pelas tantas, o João
das Neves, um dos diretores do Opinião, resolveu dar um paradeiro naquilo
e pediu a palavra. Ponderou que estávamos perdendo tempo discutindo, que
deveríamos parar imediatamente e seguir para a Câmara Municipal, na
Cinelândia, onde estava sendo velado o corpo do estudante. Acentuou que
isso seria o que ele, pessoalmente, iria fazer em seguida. Então, caminhou,
decidido, para a porta de saída e concluiu, com grande efeito dramático.
— Quem for brasileiro que me siga!
Ninguém seguiu, só a Pichin Piá que, como todos sabem, é argentina.
No começo, aliás, a decisão final de sair às ruas em passeata era
sempre aprovada por unanimidade no plenário, mas depois da segunda
passeata, que a polícia reprimiu na base da violência, muitos, em especial os
“representativos”, com o acordo dos “partidões”, decidiram que as
manifestações de rua tinham se esgotado como forma de protesto e que,
agora, era melhor encontrar outras formas menos arriscadas, eles não
gostariam de apanhar da polícia nem de ser presos. Considerando-se
sensatos, passaram a esvaziar as assembléias. Mas os porras-loucas,
partidários de toda e qualquer manifestação de rua, sem discriminações, não
desistiram.
Reuniões memoráveis foram, então, realizadas no Teatro Jovem, no
Mourisco. O perigo aumentava. As autoridades fortaleciam o esquema
repressivo que iria culminar no AI-5, de lamentável memória. O buraco,
portanto, ficava cada vez mais embaixo. Pois numa das reuniões, Clarita —
certamente superestimando o poder do teatro — propôs a realização de
espetáculos teatrais nas portas das fábricas, “até a ditadura arriar as calças”,
segundo suas palavras textuais. Infelizmente, ninguém acreditou que isso
pudesse acontecer, a proposta foi rejeitada e a ditadura não arriou as calças.
Mas a grande revelação veio quando o pintor Carlos Vergara, ao
justificar seu voto contrário a uma nova passeata, argumentou que, para
enfrentar a repressão, seria preciso “ter três colhões” e que ninguém ali os
tinha.
“Eu tenho!”, declarou, alto e bom som, o ator e cineasta Hugo
Carvana, favorável à manifestação.
Carvana foi delirantemente aplaudido e, em seguida, cumprimentado
calorosamente por quase todos os presentes.
VII
O Pasquim surgiu em 1969. Parece que foi ontem, há um instante
atrás. Vínhamos da desastrada rebeldia do ano anterior. Era comum estar-se
no exílio, simplesmente em cana ou morto. Não era mole. A situação exigia
soluções de natureza artística, a cada passo.
Bem, há poucos dias, presenciei uma reunião mais ou menos política.
Uma companheira, um pouco mais velha, digamos assim da minha idade,
contava suas desventuras nos tempos da ditadura. Ao sofrer, numa cela, por
exemplo, consolava-se imaginando que, um dia, no futuro, colheria os
doces frutos do amargo sacrifício, sua recompensa. Agora, a hora chegou.
Quando terminou a devida purgação, outra companheira, esta mais
jovem, comentou que já estão um saco essas histórias tristes do nosso
passado autoritário, com suas torturas, mortes, exílios, etc. e tal.
Era moça, mas sensata, e falou exibindo uma paciência ostensiva.
— Nós, jovens, respeitamos vocês, o que fizeram e sofreram, etc. e tal.
Agora, a gente respeita, mas também ficar repetindo essas histórias o resto
da vida, assim não dá. Tá certo, foi muito bonito, foi todo mundo herói,
parabéns, mas chega, temos de tratar dos problemas de agora. Foi torturado,
foi; se morreu, morreu; o que é que se pode fazer agora? Paciência, a vida
continua.
Em 1969 estávamos mais ou menos ao Deus-dará. O sonho tinha
acabado, não se tinha o que fazer ou para onde ir, formava-se o vazio
histórico e existencial onde medraram a luta clandestina e o desbunde. A
circunstância era apropriada às naturezas acomodadas; os temperamentos
rebeldes não se sentiam à vontade. Estávamos penetrando um paraíso
conservador, o clímax da ditadura, com o milagre do Delfim, a repressão
finalmente científica, o Brasil do ame-o ou deixe-o, altas barras. Em 1969,
estávamos sem perspectivas.
Mas 1969 foi o Ano 1 da Nova Era. Digo isso não por alguma
revelação esotérica, astrológica ou ocultista de qualquer matiz, mas
simplesmente baseado na mera observação dos fatos. O vácuo histórico e
existencial, inventado pela ansiedade conservadora nos anos 60, acabou por
inevitavelmente abrir um espaço virgem, penetrado por novas idéias, novas
sensações principalmente, novas maneiras de ver e de sentir. O terreno
estava limpo, não dava para acreditar em nada, tinha que começar tudo de
novo. Foi o que fizemos.
Dezessete anos parecem ser um bocado de tempo, mas, depois que
passam, não são nada. Na perspectiva do passado, não se pode falar em
muito ou pouco tempo; seria o mesmo que falar em muito ou pouco nada; é
o mesmo; o tempo não existe; olha o horizonte; o sol cai; é mais um dia que
se vai; que se esvai, em nada; em nada mais.

1969 — YIPPIE!
Assim como os hippies sucederam os beatniks, os yippies sucedem
agora os hippies. O nome deriva da sigla YIP, isto é, Youth International
Party, que quer dizer, em português, Partido Internacional da Juventude.
Qual a diferença entre uns e outros? Os yippies parecem um pouco
mais dispostos à ação no terreno da política tradicional. Como os hippies,
acreditam que o negócio é fazer o amor, não a guerra, e são favoráveis à paz
e à legalização da maconha. Mas, entre suas reivindicações, há uma que
exige o direito de voto para maiores de doze anos de idade e sua proibição
aos mais velhos, a partir dos cinqüenta anos.
Seu líder é Jerry Rubin, autor de um artigo publicado pela revista
Evergreen, que é um verdadeiro manifesto do movimento. Transcrevo,
abaixo, algumas das teses de Rubin que são suficientes para definir seu
pensamento.
Ele começa narrando um incidente de fronteira com um policial,
quando viajava para o Canadá:
— Eu tentei arrancar seu uniforme ali mesmo, mas ele recusou,
dizendo: “Tenho que cumprir um dever para sustentar a família”. Esse é o
câncer do mundo ocidental: todo mundo está cumprindo seu dever.
Ninguém aprendeu a lição de Eichmann.
Para Rubin, os yippies são um movimento revolucionário e religioso: a
revolução é uma transformação pessoal em que se deve encontrar Deus e
mudar a sua própria vida. Quem a começou são os jovens de hoje, mas os
vitoriosos deverão ser os jovens de amanhã:
A guerra entre ELES e NÓS será decidida pelos que têm hoje sete
anos de idade. Eles oferecem responsabilidade, medo, puritanismo,
repressão. Nós oferecemos sexo, drogas, rebelião, heroísmo e fraternidade.
Um dos passatempos prediletos de Rubin e seus companheiros é
queimar dinheiro em público. Certa vez, um grupo de yippies jogou notas
de dólar, do balcão da Bolsa de Valores de Nova Iorque, sobre OS
especuladores no andar térreo. Foi um verdadeiro Deus-nos-acuda, brigas,
gritos, confusão, todo mundo atrás do dinheiro. Rubin acredita que isso seja
uma libertação.
Nossos pais trabalharam o ano inteiro para ter duas semanas de férias.
Estamos de férias toda a vida! Não nos seduzimos pelo cristianismo, pela
idéia de que as pessoas vão para o céu depois de mortas. Queremos o CÉU
AGORA!
Rubin faz propaganda pela queima dos cartões de alistamento militar e
prega a guerrilha psicológica nas universidades, através do tumulto
deliberado nas aulas:
Você não aprende nada na escola. Uma hora de prisão ou de tribunal
ensina mais do que cinco anos de universidade.
Jerry Rubin tem trinta e um anos. Foi um dos fundadores do Youth
International Party. Foi jornalista em Cincinnati, repórter de esportes. Uma
viagem a Cuba em 1964 mudou sua vida. Desde então, passa o tempo
fumando marijuana, fazendo demonstração diante dos trens que conduzem
tropas destinadas ao Vietnã e aparecendo quase despido em outras
manifestações públicas. Já foi candidato (derrotado) ao cargo de prefeito de
Berkeley, Califórnia. Ficou famoso durante a última Convenção Nacional
do Partido Democrata, em Chicago, quando liderou a reação dos yippies
contra a ação policial. Por causa disso, foi julgado por um tribunal federal e
condenado a uma multa de 25 mil dólares. Está proibido de tornar a pôr os
pés no Estado de Illinois e é constantemente vigiado pela polícia norte-
americana. Apareceu para depor em Washington, fantasiado de guerrilheiro,
levando nas mãos uma metralhadora de brinquedo e uma bandeira vietcong.
Na marcha de 1967 sobre o Pentágono, foi um dos que urinaram nas
paredes do prédio.
Jerry Rubin insiste sempre nos privilégios da juventude — “nunca
confie em ninguém com mais de trinta anos”, diz um slogan dos yippies —
e afirma que tem apenas “quatro anos de idade”, tempo que participa do
movimento:
— A idade existe dentro de sua cabeça. Bertrand Russel é nosso líder.
Ele tem mais de noventa anos.
Mas parece, para Rubin, que a idade está tanto dentro quanto fora da
cabeça. Ele atribui muita importância à moda dos cabelos compridos:
— Nosso cabelo comprido comunica desrespeito pela América. Uma
sociedade racista, de cabelo curto, é incomodada pelo cabelo comprido. Ele
cega as pessoas. No Vietnã, os americanos bombardeiam os vietnamitas,
mas não podem vê-los porque eles são escuros. Cabelo comprido é vital
para nós porque permite que a gente se reconheça. Temos pele branca como
nossos opressores. O cabelo comprido nos une numa comunidade de
oposição visível.
Acusam-se sempre yippies e congêneres de serem uma rebelião
consentida; a prova seria a promoção que lhes dá a televisão. Rubin, pelo
contrário, considera a televisão uma aliada;
Na América de 1969, os velhos mitos podem ser destruídos, e novos
criados, da noite para o dia, por causa do poder da televisão. Tornando as
comunicações instantâneas, a televisão antecipa a revolução por séculos. O
que poderia levar cem anos, pode levar vinte. O que acontecia em dez anos,
acontece agora em dois. Numa sociedade moribunda, a televisão é um
instrumento revolucionário.
E Rubin dá exemplo do que quer dizer:
O prefeito Daley, de Chicago, mandou botar na televisão um filme
sobre a repressão policial às manifestações da Convenção Democrata. Ele
mostrava guardas enormes batendo nos garotos de cabelos compridos.
Numa das cenas, os guardas jogavam bombas de gás e um dos
manifestantes as apanhava e as atirava de volta. Com quem você acha que
todos os garotos deste país se identificaram?
Rubin gosta de apresentar argumentos que contrariam o bom senso da
velha esquerda dos Estados Unidos. Um deles envolve a valorização de
George Wallace, o candidato da extrema-direita que perdeu a última eleição
presidencial para Nixon.
Wallace é necessário porque traz à superfície o racismo e o ódio que
estão no fundo do país. Ele é um agitador de esquerda. Fala para a mesma
angústia e impotência de que falam a Nova Esquerda e os yippies. Wallace
diz: “Nós estamos contra os negros, os intelectuais, os liberais e os hippies”.
Todo mundo! Ele nos junta. Ele nos organiza, para nós.
E Rubin termina seu manifesto com uma frase solta:
\
Ou você está do lado da polícia ou do lado dos seres humanos.
1969 — CONTRACULTURA
Para efeitos de esclarecimento e compreensão vou experimentar
dividir a evolução interna da contracultura em três etapas distintas.* Essa
divisão é um tanto arbitrária e não se manifesta através de uma cronologia
rigorosa. Vou caracterizá-las como:
1) o ponto de partida hedonista;
2) a politização; e
3) o misticismo profético.
É curioso verificar que um homem como Wilhelm Reich atravessou,
durante sua vida, as três etapas, antecipando, assim, ainda na primeira
metade do século, um processo que só se tornou típico na década dos 60.
Os primeiros hippies surgiram em princípios da década dos 60, por
puro hedonismo. Entendemos a palavra sem as conotações de satânica caça
ao prazer com que a moralidade tradicional a envolveu, mas como o desejo
simples e elementar de felicidade da vida humana. O raciocínio
fundamental, aqui, é muito simples. O sistema é injusto e cria a
infelicidade. Mas o sistema introjeta os seus valores em nós e somos nós
quem sofremos a infelicidade que ele cria. Para os primeiros hippies, a
ênfase se deslocou de seu pólo objetivo para o seu correlato subjetivo.
Julgando-se impotente para transformar o sistema, o hippie se dispõe a
transformar a si próprio, animado pelo projeto novo de ser feliz, a despeito
e à margem do sistema.
Como, porém, alguém pode transformar o próprio espírito e ser feliz a
despeito e à margem do sistema? Todo movimento hippie, em seus
princípios, é feito de tentativas para responder a essa pergunta. A primeira
solução é o drop out, a pessoa que “cai fora” do sistema para criar o seu
próprio estilo de vida. De imediato, todos perceberam que essa solução é
insuficiente, desde que o drop out pode levar para sua existência
marginalizada os valores e falsos valores, os conceitos e preconceitos, as
doenças e os bloqueios de sua vida anterior. O fator descoberto que se
acreditou, então, capaz de romper essas cadeias foram as drogas,
especialmente as drogas alucinógenas ou psicodélicas que expandiram a
mente, levando o indivíduo a compreender e superar os seus mecanismos
neuróticos.
O primeiro impulso do movimento hippie foi, portanto, uma mistura
de Jean-Jacques Rousseau, Wilhelm Reich e Thimothy Leary: acreditava na
volta à natureza e na cura da neurose através dos alucinógenos. Descobriu-
se, então, o chamado Flower Power, o poder da flor, sobre o poder das
armas, automóveis, televisores, máquinas de lavar roupa e outros objetos
fabricados, na indústria moderna, pela mão do homem. Reich ensinava o
verdadeiro sentido da revolução sexual que, ao contrário da pornografia e
da licenciosidade, procura sanear a vida sexual dos indivíduos através de
uma satisfação adequada e completa de seus impulsos eróticos. Há uma
certa “revolução sexual” em marcha no século, estimulada pela publicidade,
os grandes meios de comunicação de massa, etc. Essa liberalização,
entretanto, está dominada pelos vícios repressivos do sistema: ela cria um
máximo de excitação mantendo o mínimo de satisfação fixado pelas
tradições — o que, segundo Reich, não cura as neuroses, mas as alimenta.
O erotismo em filmes, revistas, livros, etc. constitui, via de regra, o que
Herbert Marcuse chama de dessublimação repressiva. Os hippies desprezam
e repelem o erotismo artificial e, na trilha de Reich, só valorizam a
gratificação natural do impulso.
O objetivo é o mesmo das melhores técnicas psicanalíticas e
psicoterápicas já descobertas: a superação de conflitos emocionais e
neuroses, com a conseqüente reintegração do indivíduo em sua vida natural.
O hippie, entretanto, desconfia mesmo do mais aberto dos médicos ligados
ao establishment. Em conseqüência, uma das primeiras propagandas que se
fez do LSD era que uma só dose da droga é equivalente a anos de análise ou
psicoterapia intensiva. Ás pessoas tomavam ácido para resolver seus
problemas pessoais, seus hang-ups, melhorando suas relações com os
outros e com o mundo. O hedonismo naturalista, porém, enfrentaria
dificuldades dramáticas, conforme foi mostrado no filme Easy Rider. “A
neurose é obrigatória. Cure-se e eu o matarei”, foi a resposta do sistema, o
que levou à politização do movimento.
A contracultura nasceu — como a psicanálise, por exemplo — por
uma necessidade de limpeza psíquica, um projeto de felicidade individual e
coletiva que, entretanto, cedo esbarrou na oposição do establishment. Isso
nos leva à segunda etapa.
O processo de politização do projeto hedonista pode ser facilmente
compreendido através do filme Easy Rider. O principal recado do filme é a
impossibilidade radical da proposição hippie em face da oposição violenta
do sistema. Á verificação histórica de Dennis Hopper, entretanto, já havia
sido antecipada pela vida de Wilhelm Reich. Ele também percebeu, em
princípios da década de 30, que a saúde e liberdade individuais eram
impossíveis num contorno desfavorável. Era necessário um trabalho
coletivo que pudesse estabelecer, em suas palavras, “uma profilaxia eficaz
das neuroses”. Para ele, a transformação da sociedade tornou-se uma
condição prévia e necessária (embora não suficiente) para a cura da
neurose. Fundou, então, a célebre Sexpol, um órgão de militância da
chamada “política sexual” de Reich, e uma clínica que atendia operários,
segundo o princípio de que saúde psíquica, vida sexual equilibrada e
consciência de classes mantêm entre si liames essenciais.
Reich não foi longe com sua Sexpol. Depois que fugiu da Alemanha,
perseguido pelos nazistas, não encontrou mais lugar nenhum da Europa que
o acolhesse. Suas pesquisas eram constantemente interrompidas por
processos, expulsões do país, etc. Reich morreu nos Estados Unidos, na
cadeia, acusado de charlatão. A essa altura da vida, abandonara a orientação
política por uma forma particular de misticismo profético, não muito
diferente do que é, hoje, comum entre os hippies (incluía discos voadores,
invasões da Terra, formas misteriosas de energia, etc.), e que lhe valeu a
acusação de esquizofrenia nos círculos psiquiátricos oficiais.
A exemplo de Reich, confrontada com a situação refletida em Easy
Rider com rigoroso realismo, a contracultura também se politizou. A grande
mudança se verificou em 1968, sob o impacto poderoso da rebelião
estudantil internacional, do surgimento dos enragés franceses, da agitação
da SDS alemã e do crescimento da SDS norte-americana. Nos Estados
Unidos, dois líderes indiscutíveis surgiram nas figuras de Abbie Hoffman e
Jerry Rubin. Eles inventaram o yippie, uma espécie de cruzamento entre o
hippie e o radical da New Left norte-americana. O yippie foi lançado, em
grande estilo, nas manifestações de rua, em Chicago, durante a Convenção
do Partido Democrata. A novidade principal dos yippies é estratégica: eles
brincam demais na ação política. Abbie e Jerry se fantasiam de vietcong,
andam com metralhadoras de brinquedo, dizem besteiras nos comícios, etc.
— e explicam que a revolução deve ser feita “brincando”.
O processo político, entretanto, é lento, demorado e incerto — pouco
adequado, portanto, às crianças de Aquarius, que desejam paradise now, o
paraíso aqui e agora. O vazio deixado pela participação política seria
preenchido pelo misticismo profético.
1969 — RELIGIÃO
Foi realizado em São Francisco, Califórnia, um Holy Man Jam, ou
seja, uma espécie de festival das principais tendências religiosas da
comunidade hippie americana. Num salão de baile alugado, reuniram-se
cerca de 2 mil pessoas para ouvir seus gurus prediletos e cantar músicas
místicas ao som das guitarras elétricas. Naturalmente, estava todo mundo
muito doido, com muito fumo e muito ácido sendo distribuído no enorme
salão. No palco, apareceram, entre outros, Thimothy Leary, o papa do LSD,
e Alan Watts, o grande sacerdote do zen-budismo nos Estados Unidos.
Leary misturou um pouco de política ao ambiente religioso. Foi
candidato ao cargo de governador da Califórnia e afirmou que o caminho
para o Reino de Deus passava pela reforma deste mundo. Watts apareceu
vestido com sua longa túnica de sacerdote zen e fez sua entrada ao som de
fanfarras dissonantes.
Depois dele, apareceu um guru desconhecido que se anunciou como
um novo Messias, afirmou que chegara à Terra a bordo de um disco voador
e convidou a platéia a abandonar seus corpos para acompanhá-lo numa
“viagem astral”.
A essa altura, porém, já estava todo mundo viajando. “A verdadeira
religião é a música”, disse, então, um citarista do Ali Akbar College of
Music, que tocou alguns ragas que Ravi Shankar tornou famosos no
Ocidente e cantou passagens assustadoras do Livro Tibetano dos Mortos.
O misticismo religioso foi, sem dúvida, o lado extremo da
contracultura hippie — como sempre o foi, de resto, de todos os
irracionalismos. O que o caracterizou, foi a mistura delirante de todos os
êxtases: Tibete, índia, parapsicologia, zen-budismo, realismo mágico,
discos voadores, astrologia, bolas de cristal, macumba (vodu, para eles),
iluminações psicodélicas e espiritismo puro e simples estavam, todos,
misturados no mesmo saco místico da contracultura. A revista Newsweek
publicou uma reportagem sobre o vigoroso crescimento das chamadas
“ciências ocultas” nos Estados Unidos. A contrapartida da violência política
que varria o país foi a mágica religiosa. A onda se espalhou e alagou todos
os países ocidentais.
John Lennon e Yoko Ono, por exemplo, pretenderam com seu Festival
de Toronto, Canadá, assegurar a paz mundial através das “boas vibrações”
de um milhão de hippies que pretendiam reunir lá. A viagem do LSD,
diziam alguns psiquiatras, pode ser qualificada como uma “esquizofrenia
experimental”; o próprio estilo de vida dos hippies tinha os traços de uma
esquizofrenia sintética, pré-fabricada; e, finalmente, o lado extremo do
novo misticismo parecia roçar a fronteira do patológico.
Mas as coisas vêm acontecendo assim desde os beats na década de 50.
Quando perguntaram a Jack Kerouac o que procurava a sua geração, ele
respondeu:
— Deus. Nós queremos que Deus nos mostre a Sua Face.
VIII
No desenvolvimento da visão do mundo dos setores mais audaciosos da
cultura ocidental, nos últimos anos, alguma coisa se perdeu. E não foi pouca
coisa. Era uma revelação, uma iluminação súbita, uma verdade sagrada. É
admirável que essa descoberta tenha ocorrido alguns anos atrás — e é
desconcertante que ela tenha sido perdida ou, no mínimo, esquecida. Estou
falando do sentimento lúdico da vida, a brincadeira, a visão da infância.
Parece que voltamos, todos, quase sem exceção, a ser sérios — ou
então, em alguns raros casos, transformamos a própria ausência de
seriedade num trabalho sério, a ser levado a sério. Não sabemos mais
brincar enquanto, até bem pouco tempo, parecia que havíamos finalmente
redescoberto o santo segredo das crianças: o conhecimento intuitivo,
essencial, de que não há nada realmente sério — pois tudo é jogo e
diferentes estilos de jogar. Se a essência do ser no mundo não é o cuidado
ou a preocupação — como quer Heidegger, por exemplo, que é antes de
tudo um filósofo sério — mas a gratuidade do jogo e a natureza evanescente
da brincadeira, deixar de brincar é simplesmente voltar a optar pela neurose
e insistir em que a vida civilizada continue a ser o que sempre foi, fonte de
angústia e confusão mental, beco sem saída, não só para a razão, mas
também — e principalmente — para as próprias emoções e sentimentos.
A seriedade excessiva a que nos sentimos obrigados, em função da
necessidade egolátrica de desempenho no mundo organizado, mata toda
espontaneidade e alegria de viver, adoece toda vida afetiva e alimenta o
câncer.
Tudo isso é lamentável — e triste, porque paramos de rir e deixamos
de nos divertir.
A brincadeira desapareceu quando a nova cultura se sentiu no dever de
confrontar os próprios valores, que começara a criar, com os valores velhos
da cultura estabelecida. Essa necessidade correspondia a um impulso
aparentemente natural de expansão. A criança brinca sem se preocupar com
a maneira de viver dos adultos; a brincadeira é sua atividade admitida no
mundo. A brincadeira de crianças crescidas, porém, não tem a mesma
permissão social, posto que — em nossa cultura — a idade adulta se
caracteriza exatamente pela substituição da brincadeira — livre, humana,
saudável e criativa — pelo trabalho compulsivo neurotizante e desgastante,
cuja principal função e principal objetivo parecem ser, simplesmente, a
morte do trabalhador, o mais rápido possível, através do esgotamento de
suas energias físicas e psíquicas. Em nossa cultura, a brincadeira é um
privilégio das crianças — porque, afinal de contas, também não queremos
matá-las demasiado cedo, antes que possamos, a partir da adolescência, usá-
las como bestas de carga. Aos adultos, reservamos a doença e a morte — e
para que elas sejam eficientes e não falhem, aperfeiçoamos os mais
diabólicos métodos, que se traduzem em stress e ansiedade, condições
insalubres para o corpo e principalmente para o espírito, escassez
econômica e tirania psicológica, só para exemplificar a rotina do trabalho
em nossa cultura. O processo é rígido e obrigatório, previsto nas leis e
vigiado de perto pela polícia e outros organismos repressivos. Eros é uma
concessão especial às crianças. Tanatos é o único direito dos adultos. Nossa
cultura, acima de tudo, adora a morte.
Por isso, querer voltar a ser criança e simplesmente querer viver e
entregar-se à seriedade adulta e ao trabalho compulsivo é iniciar um
romance com a morte. Mas querer viver é, essencialmente, querer que todos
vivam, sem exceção, pois a vida não discrimina e the best love to have is
the Love of Life, como diz Jimi Hendrix, o profeta esquecido, cujas visões
dormem nas cavernas secretas do inconsciente coletivo, para um despertar
mágico no abismo do futuro.
Quando nos sentimos crianças, o instinto natural é pela expansão:
queremos que todos nós sejamos crianças, porque sentimos que só assim,
todos, podemos ser totalmente crianças, sem as sombras das neuroses
típicas criadas pela idade adulta e pela ambição egocêntrica que está na raiz
da seriedade. Em face dessa necessidade de expansão, a reação do mundo
organizado, da cultura e civilização instituídas, é reagir com violência e
com crueldade. Assim, os antigos valores não admitem o confronto com a
nova visão — e o neurótico sério que há dentro de cada um de nós acaba,
invariavelmente, estrangulando até a morte a criança que também há dentro
de cada um de nós.
Esse assassinato psíquico é realizado em massa, todos os dias,
favorecido por todas as circunstâncias mundanas. As armas do crime estão
à mão, é só usá-las — e as leis, no caso, protegem o criminoso. Como
acontece em tantos casos, tantas vezes, o crime é cometido com tanta
insistência, que acabamos por esquecer que se trata de um crime.
O desenvolvimento da visão do mundo manifestada pela crítica mais
radical que se fez, nos últimos anos, à natureza e aos rumos da cultura
estabelecida, pode ser descrito como o processo da criança assassinada.
Descobrimos, fora de qualquer dúvida, que é proibido brincar. Nenhuma
outra proibição é, natural e paradoxalmente, tão séria quanto esta — ou tão
desastrosa. No caso específico do que se convencionou chamar de
contracultura, o corpo inteiro do indivíduo, seu próprio organismo vivo,
parece morrer junto com a criança assassinada.
Tomemos o caso do rock, por exemplo. O florescimento da visão
infantil, nos anos 60, tinha um som próprio, ou música de fundo, um
acompanhamento musical que expressava, não só para o ouvido, mas para o
olho — cores, roupas, cabelos —, para os demais sentidos e para o corpo
todo — a dança, a experiência sensorial em novos níveis —, o próprio
espírito dessa visão. Pois bem: o rock praticamente acabou, como tradução
sensorial da visão infantil.
Sofisticou-se artisticamente, cedendo aos protestos da velha cultura, e
foi sumariamente comprado pelos interesses das grandes gravadoras e
empresários. Virou mais um artigo, o lixo dourado da cultura estabelecida.
O rock foi uma revolução infantil, mas vitoriosa: hoje, é memória dos
adultos.
Não me queixo, embora não possa deixar de escrever palavras como
desconcertante ou lamentável.
Sartre, cuja sensibilidade para a psicologia é inegável, afirma que
somos sempre vítimas e cúmplices. A criança não pode ser morta apenas
por fora: o que consuma o assassinato é a sua asfixia interna, em cada um
de nós. Não me queixo: esses são apenas os novos dados do jogo, só resta
jogá-lo — ainda que de mau humor. Mas já sabemos das coisas de um jeito
melhor, mais fundo, do que o apontado, no momento, pelas aparências de
sempre. O assassinato da criança é a revanche da doença, o seu dia.
Tudo bem. Mas a criança ainda ressuscita; a revelação voltará a
brilhar, como um sol, o pesadelo chegará ao fim e, queiram ou não,
voltaremos a brincar. Todos nós.

1970 — ROCK E EU
Deixem-me contar um pouco de minha vida.
Ao contrário do que possa parecer aos que sabem de meu interesse
pelo rock dos 60, o surgimento desse interesse foi bastante tardio. Ele não
foi despertado pela explosão dos Beatles, Rolling Stones ou mesmo Bob
Dylan, ainda na primeira metade dos 60, mas bem posterior, mais próximo
aos anos finais da década, quando os artistas citados já eram grandes
superstars e a vaga que haviam levantado já se transformara no maremoto
cultural de que, hoje, temos plena notícia. Reconheço que devo ter sido bem
lento em reconhecer as coisas, um caso um tanto constrangedor de
percepção retardada, mas, se o erro é um momento da verdade, como quer a
dialética, é possível também que os aspectos mais falhos de nossa
apreensão da realidade tenham seus inusitados aspectos positivos —
fazendo-nos, por exemplo, ver melhor o que demoramos a ver. A pressa é
inimiga da perfeição, o que às vezes faz da preguiça e até da simples
estupidez inesperadas amigas de sábia paciência.
Pois é: não me liguei de cara no rock moderno. Tinha a impressão que
não passava de uma elaboração um tanto afetada, mas mais aguada, menos
vital, do rock’n’roll dos 50.
Este último, sim, havia sido anos antes uma das fascinações mais
intensas de minha adolescência. Lembro que comprei, com o sacrifício de
cinemas, cigarros e coca-colas, o primeiro LP (importado) de Elvis que
chegou por aqui. Assisti No Balanço das Horas e todos os outros filmes da
época que tinham rock’n’roll, não sei quantas vezes. Tinha todo o Bill
Hailey que saíra no Brasil, em LPs de 10 e 12 polegadas. E Little Richard.
E Chuck Berry. E Gene Vincent, etc. Foi uma música que encheu minha
adolescência de ritmo, mexeu com meu corpo e excitou a minha alma com
seus desafios, sua petulância e seus ares de rebeldia. Blusões de couro,
James Dean e rock’n'roll eram a minha trip na época, podem crer.
Depois, tudo passou.
Um timing aparentemente estranho, mas natural, sincronizou a
decadência do rock’n’roll com minha entrada na chamada idade adulta. À
medida que eu ia completando o ginásio e o científico, tirava título de
eleitor, prestava o serviço militar, podia entrar em boates sem medo do
Juizado de Menores, etc., Elvis Presley se adocicava, Bill Hailey
desaparecia, Little Richard parava de cantar e as gravadoras deixavam de
editar os velhos rockers, substituindo-os por coisas comerciais como The
Platters e Bobby Darin e similares que, para ser franco, nunca me disseram
nada. Eu crescia na Idade das Trevas do rock e ele foi se tomando, cada vez
mais, uma coisa do passado.
Musicalmente, meu coração abandonou por inteiro o velho amor
decadente e se entregou, com novas forças, que tinha por mais maduras, ao
jazz. Este parecia mais satisfatório, sob todos os aspectos: tinha uma força
expressiva mais intensa, parecia mais complexo tanto musical quanto
emocionalmente, era ao mesmo tempo intelectualmente mais sutil e tinha
mais sangue. Em suma: era mais completo.
Envolvido pelo famoso esnobismo jazzista, o homenzinho que
despontava do adolescente passou, inclusive, a desprezar um pouco — isto
é, bastante — a paixão musical deste último. Rock’n’roll havia sido coisa
de garoto sem as devidas luzes, uma bobagem. O desprezo foi suficiente
para me fazer perder os velhos discos: devem ter ido parar em lojas de
discos usados e, de lá, só Deus sabe onde.
Não senti sua falta. O que iam me interessar aqueles cantores sem
nuances, os ritmos quadrados, pesados, duros, as harmonias pobres, as
melodias primárias e os solos de sax e guitarra sem a menor imaginação,
principalmente se comparados com o trabalho dos melhores jazzistas? Esse
julgamento formal acompanhava, naturalmente, a nova sedução por sons
abstratos e cerebrais enquanto o corpo se tornava rígido e mesmo a rebeldia
passava a assumir a forma contraída de teorias e formulações racionalistas.
Foi assim que comecei a navegar no mar agitado da década dos 60:
insensível e racionante, um aspirante a intelectual sem nenhum swing. Mas
esse mar preparava suas surpresas.
Já disse que atravessei mais ou menos incólume a famosa explosão dos
Beatles e Rolling Stones. Eles excitaram minha curiosidade, é claro, mas
mais a minha curiosidade jornalística do que musical. Em que pese a
inegável sedução de suas imagens, seria difícil, na época, que eu tirasse do
toca-discos um LP de Miles Davis ou Charles Mingus ou John Coltrane
para escutar um Help ou um Out of our Heads. Estes últimos discos traziam
uma música ainda humildemente apegada à terra, enquanto eu já andava por
altas estratosferas sonoras. Mesmo quando o caso era escutar alguma coisa
mais leve, eu era bem mais chegado a um Gerry Mulligan, por exemplo.
Aqui embaixo, entretanto, eu começava a mergulhar numa grande
crise, dilacerante e pluridimensional — crise pessoal e política, afetiva e
cósmica —, que ameaçava me fazer perder o pequeno lugar no mundo que
racionalmente — quer dizer, insensatamente — eu tentara assegurar para
mim. Os meados da década dos 60 trouxeram em seu bojo, na verdade, um
verdadeiro terremoto, difícil de ser atravessado para quem tinha uma mente
tão organizada e um corpo tão contraído como eu tinha.
O que posso dizer sem entrar em detalhes mais íntimos e capazes até
de ferir meus naturais pudores?
Uma coisa, por exemplo: dei para beber demais.
Outra: deixei de gostar de música, até o jazz.
Este enveredava pela apocalíptica fragmentação do free jazz, uma
fragmentação que — bem observada — correspondia a uma fragmentação
geral de toda a cultura ocidental, um processo que alcançaria o seu clímax
em 1968, ano da “morte da cultura”, como dizem Julian Beck e Judith
Malina. Embora eu não tivesse, ou mesmo não pudesse ter, clara
consciência disso, a crise pessoal tinha uma correspondente planetária. A
crise era a morte iminente de todos os valores estabelecidos — o que, na
verdade, apenas anunciava a grande transmutação que estamos vivendo
hoje — e atingia a todos nós, individualmente, soubéssemos disso ou não. E
quando a mente organizada é sacudida, o corpo rígido também é ameaçado.
Os trabalhos subterrâneos da psique finalmente afloraram à minha
superfície pessoal, numa certa tarde de verão, dentro de uma loja de discos,
onde eu procurava o fundo musicai para um espetáculo de teatro e onde
escutei, pela primeira vez, um disco de Jimi Hendrix.
Para meus efeitos pessoais, a audição daquele disco, o fundamental
Electric Ladyland, foi a declaração de uma revolução cultural extremada.
Aquele som era, ao mesmo tempo, a síntese da dilaceração dos tempos e a
indicação, a abertura, para o futuro, através da liberação de novas energias.
Eu estava sendo finalmente confrontado com o rock dos 60, na plenitude de
seus poderes.
Não cabe aqui fazer o elogio de Hendrix — e, mesmo que eu quisesse
fazê-lo, por certo me faltariam as palavras. Mártir e profeta, seus discos
revelam finalmente, em toda a sua extensão, as transformações insinuadas
na ebulição da década. Tem um caráter nítido de revelação — não só nas
letras, vocalizadas em novas e quietas intensidades, e não só no trabalho
penetrante de sua guitarra, mas em toda a exuberância de seu som. Hendrix
é a mais luminosa comprovação contemporânea do dito de William Blake:
A Exuberância é Beleza. E a Beleza, digo eu, é a primeira porta que se abre
quando as coisas ficam demasiado difíceis.
Electric Ladyland e Smash Hits, ambos de Hendrix, foram os
primeiros discos de rock contemporâneo que comprei. Eu os toquei durante
meses a fio, todos os dias, de uma maneira sôfrega e praticamente
incansável. Toco-os até hoje, perplexo e feliz. Tal perseverança, vista
retrospectivamente, ganha para mim as dimensões de uma verdadeira ioga
musical, através da qual velhos e resistentes condicionamentos começavam
a ser abalados. Hendrix assestava seus poderosos golpes nas muralhas
rígidas de um sistema nervoso sufocado pelos condicionamentos de uma
cultura que se revelava, afinal, um equívoco lamentável, uma adoração da
morte. Se algo, então, mudou radicalmente em minha vida, devo-o a várias
coisas, e Jimi Hendrix foi, sem dúvida, uma delas.
Conquistado, seduzido por Hendrix, eu agora queria mais — e, desde
que a mente se abrira um pouco, e o corpo se tornara um pouco mais
flexível, e ambos abandonavam um pouco as velhas teorias e as velhas
poses, mais me foi dado. Ainda tenho os poucos discos que vieram, logo a
seguir, apoiar o trabalho de Hendrix em mim. São coisas bastante
esquecidas, hoje em dia, talvez menos vigorosas, coisas que talvez não
tenham tido a mesma capacidade de deixar sulcos mais fundos na abstrata
estrada do tempo. Mas tiveram o seu papel, como se diz, histórico.
Um disco que eu tocava muito era o In-a-Gadda-Da-Vida, do Iron
Butterfly; outro que despertou minha curiosidade foi a Missa em Fá Menor,
dos Electric Prunes; meu favorito, porém, foi Eric Burdon Declares “War”
— no qual uma das faixas, I Have a Dream, narra uma experiência de morte
e ressurreição, fornecendo assim uma imagem clara dos processos que eu e
tantos, tantos outros começávamos a viver.
Depois desses, vieram ainda mais discos: uma série de três LPs,
Underground Explosion, que me colocou em contato com grupos e artistas
como Giger Baker's Air Force, Jack Bruce, Taste, John Mayall, Blind Faith,
Cream, The Who, Beast, MC 5, Yes, Delaney & Bonnie, Allman Brothers,
Cold Blood, Fleetwood
Mac, Neil Young, Frank Zappa e os Mothers of Invention e muitos,
muitos outros. Feita essa iniciação, eu já podia caminhar sobre minhas duas
pernas no mundo do rock: não estava mais engatinhando.
Daí por diante, posto que meu interesse na verdadeira vida renascera,
meu interesse pela música em geral também renasceu. E desde que a
verdadeira vida, quando realmente vivida, nos cumula de presentes e
dádivas, o item seguinte que surgiu foi nada menos do que o álbum de
Woodstock, com três LPs que traziam para as devidas apresentações, ou um
conhecimento mais íntimo, nomes como Butterfield Blues Band, Canned
Heat, Joe Cocker, Country Joe & the Fish, Crosby, Still, Nash & Young,
Richie Havens, Jefferson Airplane, Santana, Sly & the Family Stone, Ten
Years After, etc. A esta altura dos acontecimentos, eu já estava em plena
viagem no mundo maravilhoso do rock.
A década dos 60 assistiu a um fenômeno de dimensões psicológicas,
sociais e culturais que nenhuma teoria fora capaz de prever. De maneira
espontânea, quase súbita, a juventude dos países industrializados, em
particular os anglo-saxões, começou a negar todo o modo de vida ocidental,
abandonando suas tradições tidas como mais firmes e contestando quase
todos os seus valores, mesmo os mais sagrados. Nossa civilização viu-se,
assim, repentinamente diante da possibilidade de uma mudança radical de
rumo, promovida exatamente por aquele setor da população supostamente
destinado a manter tais tradições, respeitar tais valores e assegurar a
sobrevivência desta cultura no futuro, isto é, a juventude de classe média. E
a música foi o seu principal meio de expressão e veículo de comunicação.
Novas culturas nascem sempre como música e como poesia, assegura
Nietzsche, e foi assim que nasceu o rock contemporâneo.
Nos Estados Unidos, o processo de robotização e desumanização do
ser humano parecia ter atingido o seu auge em fins dos anos 50. Âs
engrenagens do controle e manipulação social pareciam funcionar,
finalmente, como uma máquina sem falhas — e a melhor sociologia
americana da época já denunciava o caráter social teleguiado que se
formava no país. Os extremos, entretanto, não só se tocam como se
convertem um no outro — o que constitui o motor de toda a dialética.
Assim, a extrema manipulação deu origem à extrema liberdade das novas
gerações. O rock'n’roll, a música da juventude par excellence, chafurdava
no pântano da comercialização. Em conseqüência, os jovens americanos
começaram a ser atraídos pelo country & western, de raízes populares e
respeitável tradição política, como demonstram os nomes de Woody
Guthrie e Pete Seeger, e pela poesia beat (Allen Ginsberg, etc.) que
florescera nos círculos boêmios e literários durante a década anterior.
Os jovens universitários americanos deixaram a barba crescer,
compraram um violão e cantavam folk songs. Bob Dylan foi o produto
natural dessa mudança de condições, que também deu origem à New Left e
a agitações políticas em praticamente todo campus universitário norte-
americano.
Dylan alcançou um sucesso fulminante, não só como artista, mas
também — ou principalmente — como porta-voz e líder de toda uma
geração. Considerado o poeta máximo da protest song, ele impressionou o
público e outros compositores com a qualidade excepcional de suas letras
— a princípio, de um fio político corante e, a seguir, de uma riqueza e
colorido de imagens já classificada de “surrealista”, mas sempre de alta
categoria poética —, que influenciaram não só os Beatles, como
praticamente todos os letristas do rock. Musicalmente, seu interesse pelo
rock elétrico foi uma das principais fontes do moderno folk rock.
Enquanto se verificava o processo de politização da juventude
americana e da ascensão de Dylan, o rock’n'roll ressurgia com ímpeto
inesperado na Inglaterra — como “uma bomba de efeito retardado”, nas
palavras de Roberto Mugiatti.
Em Liverpool, como conseqüência disso, estudantes de nível superior,
oriundos das classes trabalhadoras (e favorecidos pela socialização da
educação determinada pela legislação trabalhista), escolhem o rock’n'roll
como porta de acesso ao mundo da cultura ocidental, dando assim —
provavelmente sem ainda o saberem — o primeiro passo para a sua
renovação radical.
Cálculos modestos dão conta de cerca de 350 grupos de rock’n’roll em
atividade em Liverpool, nos primeiros anos da década de 60. Eles criaram o
chamado “som de Liverpool” — versões juvenis do rock americano,
notadamente o dos 50, produzido pelos negros —, e dois deles, pelo menos,
iriam alcançar em pouco tempo um sucesso internacional sem precedentes,
modificando de modo profundo não só a música popular, mas todo o estilo
de vida do Ocidente. Os Beatles e os Rolling Stones, com efeito, parecem
ter encarnado as duas forças primais — Yang e Yin; Apoio e Dioniso; Dia e
Noite; Céu e Terra — que haveriam de engendrar toda a convulsão cultural
que caracterizou os 60.
Os Beatles foram um verdadeiro laboratório de influências e pesquisas
que vão da eletrônica à canção folclórica, dos ragas indianos às mensagens
existenciais de suas letras, que comunicam uma visão filosófica do
desconcertante cotidiano existencial, na segunda metade do século, em LPs
que se transformaram em marcos históricos como Rubber Soul e Sgt.
Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que praticamente inaugura a era do
experimentalismo eletrônico na música popular contemporânea. Os Stones,
por sua vez, menos sutis e mais intensos, se caracterizam pelo poder do
beat, as tonalidades negróides firmemente enraizadas nos blues e a
violência, tanto de seus temas quanto de suas apresentações ao vivo. Os
Beatles, portanto, eram experimentais, requintados, detalhistas, arty; os
Stones, enraizados na tradição negra, básicos, intuitivos, dionisíacos;
aqueles cresciam dentro de um estúdio, elaborando técnicas e truques, e
estes nas apresentações ao vivo, como uma desreprimida força da natureza.
Pode-se dizer que apenas dez pessoas — Dylan, os quatro Beatles e os
cinco Stones —, nos dois lados do Atlântico, iniciaram uma verdadeira
revolução cultural. Eles foram seguidos imediatamente por legiões cada vez
maiores de músicos, poetas, artistas de diferentes setores e feiticeiros de
variados matizes e graus de evolução e conhecimento. Reunidos em grandes
festivais (Monterrey, Woodstock, Ilha de Wight, etc.), revelaram já
somarem centenas de milhares, ainda na segunda metade da década de 60;
hoje, hão de ser certamente milhões vivendo em mágico segredo em todos
os países do Ocidente (ou serão do mundo?), industrializados ou não.
Já em meados da década, dois centros de irradiação da nova cultura
estavam praticamente estabelecidos; um na Califórnia, nos Estados Unidos
(em especial, a cidade de São Francisco, cujas tradições inconformistas
remontam aos beats dos 50), e outro em Londres, austera e tradicional
cidade que virou, por artes mágicas, a grande lançadora das modas pop, nos
60. A expansão da consciência, que intelectuais como Allen Ginsberg,
Thimothy Leary e Ken Kesey preconizavam na Califórnia e que se travestia
de cultura pop em Londres, era o fundamento de todas as energias novas
que se apresentavam no palco da história ocidental: ela negava, em bloco,
toda a cultura tradicional — literalista, racionalista, discursiva, verbal —
como produto de um estado inferior, contraído, da consciência; e apontava
para uma nova cultura, livre e dionisíaca, imaginativa e fundada na
experiência direta, sensorial, do mundo e da vida — e, portanto, anterior às
suas traduções verbais, essa fraude do pensamento que escravizou o homem
ocidental à neurose.
No plano musical, a nova sensibilidade dionisíaca voltou-se imediata e
intensamente para a tradição negra, em particular o blues. O antigo
rock’n’roll passava a ser simplesmente rock e se diversificou em múltiplas
tendências: na verdade, deixava de ser um simples gênero musical para ser
um novo mundo — um universo alternativo, paralelo, cheio de blues por
todas as partes, que começava a ser povoado pelos jovens egressos da velha
cultura. Descobriam eles que a chamada realidade objetiva não era nem
objetiva nem realidade, pois dependia de seu consenso pessoal e podia ser
alterada, imediatamente, por um ato interno da vontade. Cabelos e barbas
cresciam; as roupas apresentavam-se coloridas e selvagens; os corpos
perdiam a rigidez das couraças repressivas e moviam-se, dançavam, livres
pela primeira vez. Pela primeira vez, uma geração inteira não só reconhecia
como assumia em sua vida a magia fundamental da realidade. E verificava
que as entonações da música negra eram as entonações da liberdade. Os
blues — presentes no trabalho de Dylan e dos Beatles; decisivos no dos
Stones — passam a ter uma importância cada vez maior na nova música.
Não é nem o requinte experimentalista dos Beatles nem o lirismo penetrante
de Dylan que vai dominar o desenvolvimento do rock e formar a espinha
dorsal de sua mainstream, mas o blues pura e simplesmente.
Na Inglaterra, os Yardbirds e John Mayall formam os dois núcleos
fundamentais do blues inglês, dos quais saíram Eric Clapton e o Cream, Jeff
Beck e seus Groups, Jimmy Page e o Led Zeppelin que, juntamente com o
Traffic de Steve Winwood e o The Who, de Pete Townshend, são as
principais expressões do rock inglês que procuraram desenvolver o blues.
Nos Estados Unidos, a revalorização inglesa do blues teve um efeito duplo:
por um lado, estimulou o aparecimento de jovens músicos brancos, vindos
principalmente do Sul do país — Johnny Winter, Paul Butterfield Blues
Band (onde Mike Bloomfield tocava), Allman Brothers, etc. —, com estilos
que são uma evolução do velho R & B negro; por outro lado, voltou a
prestigiar os antigos criadores do R & B, que vieram, assim, a conquistar
nos 60 o público branco que o rock’n’roll lhes havia roubado uma década
antes. Este processo deu novas direções às carreiras de artistas como
Muddy Waters, B. B. King, Howlin Wolf, John Lee Hooker, Albert King,
Freddie King, etc. — que começaram, inclusive, a se apresentar e a gravar
com jovens músicos brancos.
Foi, entretanto, um jovem negro, cuja formação musical havia sido
feita no R & B negro e cujo destino existencial se ligou profundamente à
expansão da consciência iniciada pelos jovens universitários brancos, quem
criou a grande síntese musical dos 60, elevando o rock às mais vertiginosas
alturas artísticas e abrindo de maneira decisiva os caminhos do futuro.
Em Jimi Hendrix se realizam as núpcias entre as duas forças primais
do rock: ele une a cultura negra, de raiz dionisíaca, à cultura branca, de
índole apolínea, realizando a fusão entre blues e rock’n’roll, entre o instinto
vital da origem africana e a sofisticação eletrônica criada pela tecnologia
branca. Quando Hendrix deixa Nova Iorque e voa para Londres, onde
organiza um trio — o Jimi Hendrix Experience — com dois jovens
ingleses, o baterista Mitch Mitchell e o baixista Noel Redding, ele
estabelece um poderoso ponto de confluência do blues da tradição negra
americana e o novo blues inglês, numa síntese superior entre o R & B, o
pop e a experiência da expansão da consciência. Anos após sua morte, o
alcance global de sua arte ainda não foi superado — ou mesmo sequer
igualado, embora hajam equivalentes de sua visão globalizante, na
Mahavishnu Orchestra, por exemplo. Ela só pode ser comparada ao de outra
grande morta, Janis Joplin, também cantora de blues; mas a arte de Joplin,
apenas uma vocalista, não tem a extensão da de Jimi, compositor, letrista,
cantor, guitarrista, arranjador e, principalmente, inspirador e profeta. Em
tudo, e não apenas como instrumentista, ele foi uma figura de exceção.
Janis nasceu no Texas mas esteve ligada ao rock de São Francisco,
cidade que, como a Liverpool inglesa, assistiu, de meados da década em
diante, a uma grande proliferação de grupos e tendências, desde o conjunto
com que primeiro ela trabalhou, o Big Brother and the Holding Company,
até o rock latino de Carlos Santana, com seus ritmos dançantes e sua
variada percussão. A tendência mais típica do rock de São Francisco,
porém, foi para o chamado acid rock, que procurara, através da criação de
espaços musicais amplos e abstratos, o emprego de estranhas sonoridades,
reproduzir aspectos auditivos, climas e sugestões emocionais da experiência
psicodélica. Os grupos mais famosos dessa audaciosa aventura do rock são
o Jefferson Airplane e o Grateful Dead, cujos membros ainda ficaram
conhecidos, fora dos palcos e estúdios, por seu pioneirismo existencial, na
procura de um novo estilo de vida. Os Dead eram, inclusive, o grupo de
rock dos célebres Merry Pranksters, grupo de hippies que, liderados pelo
escritor Ken Kesey, percorriam os Estados Unidos, em meados da década
de 60. Eles foram assim os principais divulgadores do ácido lisérgico e suas
alegadas virtudes terapêuticas, além de criadores de um estilo de rock
inspirado na experiência liberadora da droga. Seu líder, Jerry Garcia, é o
grande guru psicodélico da cena musical americana.
Na Inglaterra, o LSD também influenciou a criação musical, rompendo
barreiras e estruturas que haviam se petrificado e perdido a flexibilidade. O
acid rock inglês, ou head music, começa com o Pink Floyd, ainda sob o
comando de Syd Barret, e se apresenta mais experimental e instigante do
que o americano. Embora possamos apontar um predecessor importante em
Third Stone From The Sun, de Hendrix, é praticamente o Pink Floyd, com
seu importante LP duplo, Ummagumma, um marco histórico, que
estabelece os fundamentos da nova escola. Ela haveria de originar grupos
como o Yes, King Crimson, Moody Blues, Jethro Tull, etc., que são
crescentemente influenciados pela música erudita européia. O processo é
uma das primeiras tendências definidas da chamada terceira geração do
rock e acaba por desembocar na tentativa de uma fusão entre rock e música
clássica, que se apresenta como uma das direções dominantes dos anos 70.
IX
A grande lição que se tentou aprender, nos anos 60, foi a liberdade.
Verificou-se o seguinte: o que as pessoas fazem socialmente é pura loucura,
um escudo usado como proteção contra a verdadeira natureza da realidade,
espontânea e incontrolável. As instituições cristalizam essa proteção, para
que ela possa ser utilizada pelas massas. Mas não possui nenhum valor
substancial. Só pode haver conhecimento de verdade, clareza, quando os
escudos são dispensados. Um escudo é útil, como defesa, mas também
cobre a visão.
A experiência vital dos 60 foi distorcida, diluída e, finalmente,
esquecida nos anos seguintes. Os caminhos da liberdade foram perdidos
mais uma vez. O destino do rock é o exemplo típico. Nos 60, era um hino
libertário, um canto espontâneo, um gesto zen. Submetido à manipulação
das gravadoras multinacionais, foi, primeiro, distorcido, isto é, esvaziado de
sua inspiração libertária, substituído por uma mímica inofensiva que
caracteriza, ainda hoje, heavy metal, punks, etc. A conseqüência inevitável
foi a diluição crescente que acabou por reduzir o rock a mera e pífia música
comercial, boa apenas para enriquecer homens de negócios e enganar as
novas gerações, coitadas. Esse lance se desdobrou durante os 70,
completando-se cabalmente nos 80, de forma que o rock tem, hoje, todas as
bênçãos do sistema. Como disse Rita Lee, era oposição, e agora é governo.
Feito o PMDB, trocou os ideais de liberdade pelas vantagens concretas do
poder. Os revolucionários do rock foram incapazes de resistir às tentações
do vil metal. As leis do mercado se impuseram, sem grande resistência. O
mundo continua a ser tal qual era: capitalista.
A trajetória, no plano político, foi semelhante. As organizações, ou
melhor, as desorganizações políticas, criadas nos 60 e típicas da aspiração
libertária — como foram exemplos, nos Estados Unidos, o Youth
International Party (Partido Internacional da Juventude) e o White Panther
Party (Partido da Pantera Branca) — foram reprimidas com energia, para
dizer o mínimo, e acabaram sendo substituídas, nos anos 70, por
organizações políticas de tipo cada vez mais convencionai, cujo maior
exemplo é o Partido Verde.
O rompimento inicial com as instituições foi reformulado, por pressão
externa, no sentido de um novo compromisso com essas mesmas
instituições. O Partido Verde disputa eleições, cargos, um espaço no
Congresso, uma fatia do poder, ao lado do resto dos caretas. A possibilidade
de uma alternativa eficiente, que era a intenção nos 60, foi perdida.
O processo foi ainda semelhante no plano religioso, isto é, em relação
à busca de amadurecimento espiritual. Nos anos 60, chegou-se perto da
verdade básica de que a única religião que pode ser considerada autêntica é
aquela que cada um cria para si próprio. As instituições religiosas
desvirtuam o seu propósito original; as igrejas organizadas são a própria
negação do sentimento religioso vivo. A anarquia religiosa dos 60 parecia
indicar um belo florescimento da descoberta espiritual. Não tínhamos
religião, por isso o nosso espírito desabrochava; não tínhamos mestres, por
isso todos eram os nossos mestres, principalmente as crianças e os animais.
Nos anos 70, entretanto, o despertar espiritual foi sendo, cada vez
mais, canalizado para seitas organizadas e subordinado aos ensinamentos
dos mestres que as chefiavam. Em outras palavras: erguiam-se novas
instituições religiosas para substituir as antigas que haviam sido rejeitadas
nos anos anteriores,
Ainda aqui, principalmente aqui, o medo à liberdade, que parece
marcar o ser humano — pelo menos este que conhecemos —, manifestou-
se de maneira irresistível. Todos tremeram. Não parecemos ser capazes de
prosseguir na busca espiritual sem uma proteção paterna de alguma espécie.
O processo também se desenvolveu nos 70, para culminar em padrões
rígidos, nos 80. Multiplicaram-se as seitas e os gurus, em razão geométrica,
e o que resta hoje, do despertar espiritual, é a mímica externa. A
experiência vivida desapareceu.
Em qualquer nível, os três momentos do processo, relacionados
esquematicamente às décadas de 60, 70 e 80, aparecem, com nitidez, para o
observador. A cronologia não é rigorosa, mas serve como referência. Cada
década é um momento do processo.
Ezra Pound disse que há três tipos de artistas: os inventores, os mestres
e os diluidores. Algo semelhante pode ser dito em relação às três últimas
décadas.
Os 60 foram os anos da invenção, da criação original. É por isso, por
exemplo, que dizer vanguarda dos 70, ou 80, soa mal: a vanguarda é dos 60.
Ou, então, dos 20, que foi outro momento de invenção. Os valores
tradicionais são contestados e a liberdade espontânea conquistar seu espaço.
SL Os 70 foram os anos dos mestres, isto é, dos institucionalizadores.
As conquistas dos 60 são oficializadas e viram moda, abençoadas pelo
sistema. Todo mundo se droga; todo mundo curte rock; todo mundo é
místico; o mundo aparentemente mudou e a revolução venceu, isto é,
acabou. Esta aceitação enganosa permitiu a diluição, foi o golpe de mestre
do sistema no gesto libertário. O sucesso da manobra foi assegurado pela
sedução do ego das massas. Todo mundo descobriu a pólvora e, por isso,
não é à toa que os 70 foram chamados de “a década do ego”. Pretensão e
água-benta, cada um toma quanto quer. Tomou-se demais da primeira,
naqueles anos; toma-se demais, ainda hoje, por inércia.
Os anos 80 são os anos da diluição, em soluções cada vez mais
rarefeitas. O gesto libertário perdeu o sentido; a busca acabou; o caminho
está fechado. As instituições, velhas ou novas, mostram-se fortalecidas.
Voltamos ao que havia antes dos 60, só que pior. O egocentrismo é
absoluto; a liberdade desapareceu do horizonte. Não só a Igreja católica e o
Partido Comunista, mas todos os grupos humanos — associações,
irmandades, seitas — se comprazem em controlar seus membros, que
parecem até muito felizes com isso, sem exceção. O conformismo é normal;
a moda é ser careta. O indivíduo desaparece; nascem os robôs. A vitória do
sistema só não é total porque sua natureza é ilusória.
As condições parecem suficientes para a primeira aterrissagem pública
de uma nave-mãe.

:: F I M ::
capa: Caulos
revisão: Suely Bastos, Manfredo Rotermund,
Maria Clara Frantz e José Renato Deitos

ISBN —85-254-0143-9

Ml52a Maciel, Luiz Carlos

Anos 60 / Luiz Carlos Maciel. — Porto Alegre :


L&PM, 1987.
120 p. ; 21 cm.

1. Cultura-Brasil-anos 60. 2. Mudanças sociais-


Brasil-anos 60. I- Título.

CDD 301.2981
CDU 308(81) “196”

Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329.

© Luiz Carlos Maciel, 1987.


Todos os direitos desta edição reservados à
L&PM Editores S/A.
Rua Nova Iorque, 306 - 90450 - Porto Alegre - RS e
Rua do Triunfo, 177 - 01212 - São Paulo - SP

Impresso no Brasil
Outono de 1987
Table of Contents
I
1961 - O SUICÍDIO DO REBELDE
II
1963 - ARTE EMPENHADA
III
1964 - LUTA CONTRA A SUBVERSÃO
IV
1965 - LSD
V
1967 - RODA-VIVA
1968 - THE NEW LEFT
1968 - O PENSAMENTO DE DIREITA
VI
1968 - DUAS HISTORIAS
VII
1969 - YIPPIE!
1969 - CONTRACULTURA
1969 - RELIGIÃO
VIII
1970 - ROCK E EU
IX

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