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Luiz Carlos Maciel - Anos60
Luiz Carlos Maciel - Anos60
Loucos Anos
.
Nos Estados Unidos as regras estabelecidas o estão com um rigor
sufocante. Um capitalismo plenamente desenvolvido até a abastança cria
precisão rígida em todos os setores da sociedade; ele a cria principalmente
na formulação das leis e dos princípios que asseguram os privilégios das
classes dominantes. Há clareza e nitidez nas imposições dessa sociedade
aos seus membros — imposições que, evidentemente, visam seu
funcionamento livre de perturbações — e, na mesma razão, uma rigorosa
exigência do seu exato cumprimento. Aquelas características humanas
convenientes ao sistema são transformadas nos traços constitutivos de uma
natureza humana a ser encontrada obrigatoriamente em todos — e os que
nela não se enquadram sofrem como se fossem indignos de título humano.
Essa tarefa tradicional das classes dirigentes, em todas as sociedades
conhecidas da História, ganha no mundo moderno e, em especial, nos
Estados Unidos moderno, armas novas e terríveis. Basta ler o testemunho
dos melhores sociólogos e psicólogos americanos. Hoje, a consciência e o
caráter dos homens são facilmente moldados através do emprego maciço
dos meios de comunicação com a massa. As imposições, portanto, não são
apenas feitas de fora, como deveres, mas, graças às cada vez maiores
possibilidades de manipulação das consciências, são introjetadas e
assimiladas de uma maneira tão profunda quanto inconsciente. Os
resultados não poderiam ser outros, senão os que tanto preocupam os
melhores cérebros da América, seus escritores, sociólogos e psicanalistas
mais sérios: a passividade, a apatia, a complacência e o conformismo. Estas
são as condições e, simultaneamente, as conseqüências da automatização.
Toda máquina deve funcionar com a perfeição pretendida quando todas as
suas peças estão ajustadas e cumprem mecânica e obedientemente as
funções a que foram destinadas.
Este esboço talvez seja o bastante para sugerir, ao leitor, que a reação
contra tal circunstância deveria ser uma reação extrema, uma rebelião.
Procuremos ver, agora, por que essa reação é uma rebelião naturalmente
pronta a abraçar o irracional e como as novas gerações americanas, com sua
vanguarda, a conduzem como uma rebelião espontânea mas sem rumos ou,
pelo menos, de rumos incertos.
O economista norte-americano Paul Baran observa que a sociedade
americana está caracterizada pelo alto grau de racionalização capitalista.
Esta é necessariamente parcial: visa a eficácia de suas empresas industriais,
agrícolas e da administração do país, o favorecimento de lucro, de
condições convenientes do mercado, etc. Limita-se, portanto, àqueles
elementos do conjunto social em que se localizam os interesses das classes
dominantes e não visa a totalidade desse conjunto. Na ordem capitalista
norte-americana, essa racionalização total, do todo do conjunto social,
declina enquanto se acentua a racionalização parcial. Temos, portanto, num
todo injusto, não-racionalizado, setores altamente racionalizados — aqueles
que favorecem a expansão econômica da burguesia —, criando, a rigor,
uma falsa ilusão de ordem e organização. Há, aqui, um choque inevitável
entre o que, segundo Baran, se poderia chamar de microssabedoria e
macrodemência. O caráter irracional do conjunto, acentua Baran, não pode
coexistir harmoniosamente com o caráter racional das partes e seu
antagonismo exprime uma das profundas contradições do sistema
capitalista. A cultura burguesa tem exatamente a tarefa, entre outras, de
identificar a racionalização parcial, capitalista, com a própria razão humana,
tentando evitar, desse modo, a superação de sua contradição com a
irracionalidade do todo, num sistema que realizasse também a
racionalização total do conjunto social. Essa identificação é inoculada (com
o poder e a eficiência já mencionados) em todos os membros da sociedade.
A contradição, evidentemente, não é suprimida, ela continua a existir. Mas
o protesto, quando vem, vem viciado por essa identificação entre a razão e o
raciocínio burguês. A revolta contra este último é, por isso, naturalmente
transformada numa revolta contra a própria razão humana, fechada no
antiintelectualismo e à mercê da irracionalidade. Realmente, a única reação
possível ao indivíduo incapaz de compreender as forças que o esmagam é
uma reação irracional que, conclui Baran, é a neurose.
A reação extrema, irracional, das novas gerações americanas é,
portanto, uma resposta natural a sua circunstância. Paul Baran trata, é
verdade, de um fenômeno mais vasto, pois está se referindo à reação do
homem comum, explicando a sua neurose, para concluir que a neurose
caracterial só pode ser curada através de uma reformulação da sociedade.
Os jovens americanos assumem conscientemente sua reação irracional e a
propõem. Enquanto o homem comum corre ao psicanalista, em busca de
“ajustamento social”, que deverá curá-lo da neurose, o rebelde passa a vivê-
la como um outsider, transformado num protesto vivo.
II
Minha geração viveu um interesse intenso e aparentemente profundo
pela arte política, que se estendeu por toda a década de 60, pelo menos. Os
termos “arte política” são, aqui, uma maneira de falar, para resumir. Na
época preferíamos dizer arte empenhada, arte comprometida ou arte
engagé.
A palavra francesa tinha origem na teoria estética que melhor
expressava os nossos sentimentos: a existencialista, de Jean-Paul Sartre, e
seu conceito de engagement. A motivação era de ordem ética. A pedra
angular do existencialismo era a radical liberdade da existência humana. A
fórmula fundamental de que “a existência precede a essência” negava
qualquer norma, modelo ou paradigma moral. Somos livres para fazer
qualquer coisa, mas nossos atos livres criam um conteúdo a posteriori, o
que estabelece a exigência ética. Se somos radicalmente livres, isso
significa apenas que somos totalmente responsáveis por tudo que fizermos,
inclusive as obras de arte. Nossa liberdade, portanto, só tem sentido no
compromisso, ou engagement, e paradoxalmente o artista mais livre é, em
conseqüência, o artista engagé.
Sartre expressou o condicionamento fundamental da liberdade humana
e a necessidade essencial de compromisso, que ele implica no conceito de
situação. A liberdade é sempre “situada”, limitada pelas circunstâncias
externas, e algumas situações extremas, que Sartre chama de “situações-
limite”, têm a virtude dramática de revelar com nitidez a exigência ética,
inseparável da liberdade. O teatro sartreano é, por causa disso, um teatro de
situação, e em “O que É Literatura?” (Situations I) Sartre argumenta
brilhantemente pela necessidade de engagement do escritor de seu tempo
que, afinal de contas, ainda é o nosso.
A “situação” que condiciona a liberdade é comum a todos os homens,
não só os escritores e artistas; é o conjunto de circunstâncias concretas,
objetivas, de sua vida material. Em outras palavras: a situação sartreana é,
antes de mais nada, a situação política. Portanto, o compromisso que Sartre
reclama do escritor e dos artistas em geral é, antes de mais nada, um
compromisso político. Para nossa geração, o engagement, exigido pela
consciência ética, era político. Sentíamos que a situação miserável de
milhões de brasileiros nos obrigava a comprometer nossos sentimentos e
nossa razão, ou seja, nosso trabalho e nossa arte.
A principal preocupação era a de que esse compromisso degenerasse
em submissão partidária e a arte, a atividade cultural em geral, se reduzisse
a mera propaganda. Muitos setores políticos de esquerda já preconizavam,
há tempos, uma arte política, subordinada aos interesses populares, mas
isso, para nós, era uma distorção inaceitável. Queríamos uma estética
rigorosa, inflexível mesmo, como correlato indispensável da seriedade de
nossa ética. Esse debate doutrinário feriu-se em alguns dos movimentos
artísticos mais importantes da geração, como — para ficar na área dos
espetáculos — o Teatro de Arena, de São Paulo, e o Cinema Novo. Ele
também era uma das questões centrais nas teorizações dos Centros
Populares de Cultura que começavam a se multiplicar por todo o país
quando veio o golpe de 1964.
Essa fidelidade irrestrita à verdadeira concepção de arte, no contexto
de uma participação política de tipo passional, explica bastante o fascínio
exercido por Bertolt Brecht, por exemplo, nos jovens intelectuais terceiro-
mundistas. Brecht realizava o aparente milagre de ser, ao mesmo tempo, um
comunista e um artista de primeira classe. Estava ao lado do povo sem
renunciar aos valores mais sofisticados de nossa cultura e nossa civilização.
Pouco antes do golpe de 1964, era preciso esclarecer se a arte
empenhada havia, afinal, se revelado como arte popular, no sentido de arte
criada a partir do ponto de vista político do proletariado, simplesmente, de
maneira que seu fundamento passasse a ser, agora, infra-estrutural,
histórico, e não mais apenas ético, erguido sobre a liberdade individual,
como no momento anterior. Não foi possível. Vinte anos de repressão
obstinada praticamente eliminaram essas questões de nossa vida cultural. A
realidade teve de ser encarada de outros ângulos, através de outros prismas,
mais sutis, para que a ação em geral e a criação em particular continuassem
a ser possíveis. O processo cultural em curso nos anos 60 sofreu, assim,
uma interrupção brusca que o obrigou a fluir por outros canais, inventados
ao sabor dos acontecimentos. A arte, a criação, a liberdade — essas três
palavras são, no fundo, sinônimos — são irreprimíveis.
Entretanto, a repressão não é a única arma do sistema, ou do ego
individual. Ambos, sistema e ego, também empregam a assimilação
estratégica, com finalidades incisivas de deturpação. Esta, aliás, é a postura
que caracteriza o atual regime brasileiro, conforme ficou demonstrado, por
exemplo, pela presença de Celso Furtado no Ministério da Cultura.
Nos anos 60, poder nenhum queria nos assimilar para deturpar, esse
risco não corríamos. Nossas questões eram outras. Queríamos que o povo
tomasse consciência e que a justiça triunfasse — objetivos desaparecidos do
panorama contemporâneo —, mas não admitíamos o dogmatismo estreito, o
sectarismo cego, a burrice. Nossa limitação era a de não ter ainda percebido
que a “situação” sartreana não é apenas política, mas psicológica, ou seja,
espiritual. Hoje isso nos parece óbvio, mas não nos parecia nos anos 60.
Tem que se viver e aprender — esta é a lei.
1965 — LSD
LSD é abreviatura de Lyserg-Saeure-Disethylamid, isto é, distilamida
de ácido lisérgico, um composto químico simples, obtido facilmente em
qualquer laboratório, com o ácido lisérgico que é extraído do grão de
centeio. É chamado de LSD-25 porque foi sintetizado pelo dr. Albert
Hoffman nos Laboratórios Sandoz, na Suíça, num dia 2 de maio.
O dr. Hoffman descobriu as qualidades alucinogênicas do ácido
lisérgico por acaso. No curso de pesquisas para curar a emicrania e estancar
a hemorragia, foi atacado por estranhas alucinações em sua casa. De volta
ao laboratório, ingeriu 200 microgramas de ácido lisérgico, o que provocou
novas e mais intensas experiências alucinatórias. Hoje, sabe-se que uma
dose de apenas 20 microgramas de LSD é suficiente para provocar um
efeito que pode durar até dez horas.
O LSD é incolor, não tem gosto nem cheiro. Altamente potente, é
tomado em doses microscópicas. Uma onça, apenas, de LSD fornece cerca
de 300 mil doses, e alguns quilos seriam suficientes para, depositados num
reservatório de água potável, envolver toda uma grande cidade em seus
efeitos. Sua ação psíquica assemelha-se à de outros alucinógenos, como a
mescalina, extraída de um cacto mexicano, o peiote ou a psilocibina,
extraída de um cogumelo. Os índios mexicanos, que há séculos se dedicam
ao culto da carne dos deuses ou carne do diabo, ingerem alucinógenos em
seus rituais religiosos.
O LSD é administrado em injeções ou pílulas. Devido à sua falta de
cor, cheiro e gosto, pode ser dissimulado em torrões de açúcar ou misturado
à água e ingerido inadvertidamente por qualquer pessoa.
Não se sabe com exatidão sua maneira de atuar no cérebro. Parece que
interfere em todas as funções cerebrais que recebem e elaboram para a
consciência as informações dos sentidos. É certo que inibe a produção das
enzimas que regulam. o suprimento de glicose às células cerebrais. Outras
substâncias, contudo, também fazem o mesmo, sem provocar os poderosos
efeitos do LSD, o que leva a crer que este possua outras profundas
conseqüências.
O LSD é o mais eficiente psicodélico que se conhece, nova designação
para substâncias, como a mescalina, que possuem a propriedade de liberar o
inconsciente, ampliar a área da consciência e modificar a recepção dos
estímulos sensoriais pelo cérebro. Também, ao contrário dos tóxicos, o LSD
não cria hábito e não prejudica o organismo, se administrado a pessoas
física e mentalmente saudáveis.
A viagem, como a chamam os apreciadores dos efeitos do LSD, passa
por quatro etapas principais. A primeira, logo depois de ingerida a dose,
dura de meia hora a 45 minutos. Se, ao invés de ingerida, a dose for injetada
na corrente sanguínea, os efeitos se manifestarão mais rapidamente.
Verificam-se ligeiras náuseas, alguma angústia, dilatação da pupila,
taquicardia e outras reações do organismo — que, porém, cessam
completamente na fase seguinte.
Esta é a experiência propriamente dita. Dura de quatro a oito horas e
consiste em ilusões sensoriais a que se tem chamado, não muito
propriamente, de alucinações, pois o efeito do LSD não anula a consciência.
O paciente sabe o que vê, embora as coisas ganhem para ele um significado
diferente do habitual. Espaço e, principalmente, tempo passam a não ter
importância. Desenvolve-se uma especial sensibilidade para as cores, que
parecem mais vivas e mais belas. Muitos se sentem mergulhados num
estado de inocência e pureza infantis; alguns experimentam uma sensação
de regressão ao estado fetal e outros revivem experiências infantis ou
emocionais de importância particular em suas vidas. O estado emocional
também é transformado, geralmente para uma desinibida euforia, que
provoca um riso fácil e abundante. Verificam-se também certo descontrole
no sistema muscular e acelerado processo de ideação, com um fluir muito
rápido de idéias e a sensação de uma grande lucidez. Ao contrário do que
acontece na embriaguez alcoólica ou no uso de tóxicos, como a morfina,
heroína ou cocaína, essa lucidez não é apenas aparente, pois pode ser
integrada na consciência do indivíduo, o que permite o emprego do LSD no
tratamento psiquiátrico,
Ás mudanças de personalidade são freqüentes e as condições psíquicas
de cada indivíduo, sob a ação do LSD, podem originar uma série de
manifestações imprevisíveis. Muitos vêem as pessoas, ou a si próprios,
como outras pessoas. Uma dose exagerada ou, mesmo, uma moderada, em
psicóticos, pode conduzir a estados aterradores, de medo absoluto e
sensação de morte iminente.
Á terceira fase é de recuperação do transe. Pode durar diversas horas e
durante elas o paciente atravessa sucessivamente períodos em que se sente,
de novo, perfeitamente normal, e períodos em que se manifesta o transe do
LSD. A quarta e última fase, que dura até vinte e quatro horas depois ou
mais, é de fadiga, fome e, freqüentemente, tensão nervosa.
Muitas vezes, principalmente quando usado por psicóticos, o LSD tem
efeitos de grande duração e provoca reações alucinogênicas que podem
voltar até três meses depois de tomada a dose. Novas doses não são
necessárias: o simples fato de assistir outro em transe pode provocar essas
reações.
Um nova-iorquino narrou, para a revista norte-americana The New
Republic, suas duas primeiras viagens com o LSD. A primeira forneceu-lhe
um verdadeiro carnaval de sensações maravilhosas. As cores e as visões
que tinha eram tão indescritivelmente belas que ele soluçava de alegria:
“Oh, meu Deus, como é adorável, como é maravilhoso, como é belo o que
vejo”. Palácios de cristal estendiam-se por quilômetros de veludo. Seu
corpo parecia dissolver-se em mel e prata. Viu um Buda de bronze começar
a viver e ouviu uma gravação de Ella Fitzgerald, My Ship, de uma forma tão
maravilhosa, que entregaria a alma para ouvi-la de novo da mesma maneira.
Finda a viagem, foi pra casa e dormiu tranqüilamente. Estava certo de ter
descoberto um novo mundo.
Um mês mais tarde, fez sua segunda viagem. Esta, porém, foi
diferente. Eis como ele narrou: “... A face de meu guia mudou. Ficou
abstrata, reduzida a uma série de planos. Seus olhos fecharam. No seu rosto,
havia uma indiferença perfeita, uma paz total. Uma auréola de luz prateada
envolvia-lhe a cabeça. Então, entre seus olhos, um pouco acima do nível de
seus olhos, vi o terceiro olho, o olho da alma. O quarto escureceu e a
música silenciou. Eu estava deitado de costas no chão. Então, o próprio
quarto desapareceu, e senti que estava afundando, afundando, afundando
cada vez mais. De longe ouvi muito fracamente uma palavra: ‘morte’.
Afundei mais, sentia que caía da Terra a uma distância de milhões de anos-
luz. E ouvi a palavra cada vez mais forte e mais insistente. Tomou forma,
envolveu-me, fechou-me, ‘Morte... Morte... Morte'. Pensei nos olhos de
meu pai em seus últimos momentos. Finalmente, diante de minha própria
morte, gritei ‘Não!’ Terror absoluto. Horror total. Com imenso esforço,
tentei erguer-me novamente de volta à vida. Pareceu que levei uma
eternidade”.
No quarto, ele tremia em convulsões violentas. Mais tarde, contou a
terrível viagem a Richard Alpert, dizendo-lhe: “Eu só queria sair dali,
terminar a experiência”. O sacerdote do LSD encarou-o fixamente e
perguntou: “Você tem certeza?”
Aldous Huxley, num livro famoso, As Portas da Percepção, foi o
primeiro intelectual de nosso século a elogiar os efeitos dos alucinógenos.
Suas experiências com a mescalina levaram-no a proclamá-la como a forma
mais perfeita e eficiente de evasão e alargamento da percepção humana para
o homem do nosso século. Como ele, outros artistas e intelectuais ficaram
convencidos da utilidade das drogas, capazes de ampliar a área da realidade
sensível à abordagem da consciência e de aguçar a sensibilidade.
Em 1962, o escritor Paulo Mendes Campos relatou uma experiência
com o LSD, que estava sendo conhecido, em todo o mundo, como uma
droga mais poderosa do que a própria mescalina.
Depois a descoberta transformou-se em moda. Enquanto, por um lado,
médicos investigavam as suas qualidades terapêuticas, por outro, artistas e
intelectuais passaram a usá-lo para estimular sua capacidade criadora. Em
Nova Iorque, o poeta Allen Ginsberg liderou um movimento de opinião que
reivindicava a liberação legal do LSD e da marijuana, que, como o
primeiro, também é um psicodélico, embora bem mais fraco. Os resultados
foram surpreendentes e, para as autoridades norte-americanas, assustadores.
O LSD foi produzido e traficado clandestinamente, como se fosse um
tóxico, e calcula-se que, na época, de 20 a 30% da juventude universitária
norte-americana tomava LSD como quem fuma um cigarro. Nos Estados
Unidos, como em vários outros países do mundo, o LSD era a onda. Em
Greenwich Village, era a maneira in de take off. Estudantes de vinte e uma
escolas, só de Nova Iorque, possuíam seus próprios laboratórios para o
fabrico de LSD misturado a tóxicos. A administração de Alimentos e
Drogas e o Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos abriram
campanha contra a droga e provocaram uma retração da única empresa que
o fabrica legalmente, a Sandoz Pharmaceuticals, Inc. A verdade é que, nos
Estados Unidos, o LSD começou a substituir a marijuana, a heroína e a
cocaína, todas elas postas na ilegalidade.
Para fazer frente ao aumento do uso de LSD, as autoridades norte-
americanas começaram a empregar contra ele a mesma solução que, há
anos, vinha empregando, sem nenhum resultado positivo, contra os tóxicos,
isto é, a repressão policial. O promotor público Aaron Koota foi o líder da
cruzada contra o LSD, mas, em Greenwich Village, as exposições passam a
ser de “pintura psicodélica” e um conjunto musical de rock, The Turtles,
afirmava tocar “música psicodélica”.
No fundo da nova moda parecia haver uma filosofia, nascida da
angústia da beat generation norte-americana. Ela era, antes de mais nada,
uma ética revolucionária. Se o square norte-americano procurava a
felicidade injetando dólares na sua conta bancária, por que não haveriam os
jovens rebeldes de procurar a felicidade injetando drogas na corrente
sanguínea? Para muitos, a segunda solução era mais moral. As drogas,
embora pudessem prejudicar o organismo, não o fariam mais do que o
stress da vida moderna a que o square estava submetido, com a vantagem
de fornecer um tipo de felicidade mais imediato e gratificante.
Na revista Partisan Review, um ensaísta, Leslie Fiedller, escreve então
que a juventude americana começa a esposar um novo programa de vida,
anti-puritano, hedonista e tendendo à indiferença. “Da mesma maneira —
diz ele — que o liberalismo de hoje é o LSD dos velhos, o LSD é o
radicalismo dos mais jovens.” Onde não existiam outras formas de ser
radical, a aventura interior do transe do LSD era a possibilidade de protesto.
Uma dose de LSD custava, nos Estados Unidos, comprada das mãos
de traficantes, cerca de cinco dólares. Suas características — incolor,
inodoro, insípido — dificultavam o trabalho dos detetives encarregados da
repressão aos narcóticos. O LSD não exige seringas e, traficado sempre em
pequeníssimas quantidades, era facilmente escondido. A repressão policial,
na verdade, estimulou o tráfico clandestino e o uso cada vez maior da droga
sem assistência médica, transformando o LSD em mais uma bandeira dos
jovens rebeldes para agredir as instituições do estahlishment norte-
americano.
A descoberta das virtudes do ácido lisérgico deu origem a um
verdadeiro culto religioso nos Estados Unidos, cujos maiores sacerdotes
foram os ex-professores de psicologia de Harvard, Timothy Leary e Richard
Alpert. Ambos foram expulsos da universidade por fazerem aberta
propaganda da droga entre os estudantes e distribuírem cerca de 3.500
doses a mais de quatrocentos deles. Leary e Alpert partiram para o México,
onde fundaram uma Federação Internacional de Pesquisa Interior, para
ampliar suas experiências psicodélicas, mas foram expulsos do país pelo
governo mexicano. Então, fizeram de uma mansão em Millbrook, no Estado
de Nova Iorque, o seu quartel-general. Possuem uma fundação, a Castalia
Foundation, sustentada pelo dinheiro de um adepto milionário de vinte e
seis anos, William Hitchcock. Editam uma revista, a Psychodelic Review;
descobriram um velho livro tibetano, O Livro dos Mortos, que é a sua
bíblia; e treinam, numa escola especial, jovens que servirão de guias para
experiências psicodélicas.
No mês de março de 1965, Leary foi detido quando, na companhia de
sua filha de dezoito anos, trazia uma partida de marijuana do México para o
Texas. Foi julgado e condenado. Mas encarou a prisão com um sorriso. “Na
certa — disse ele — converterei ao LSD 80% dos presos e 10% dos
guardas. A uns, ensinarei como deixar de ser criminosos. Aos outros, como
deixar de ser... criminosos.”
Apesar do apostolado de Leary, da justiça da revolta ética dos beats e,
mesmo, da utilidade médica do LSD, a droga também pode ter
conseqüências negativas. Sua ação constante pode fazer o cérebro
descarregar uma substância orgânica ainda não identificada. Essa descarga
pode provocar profundas mudanças na personalidade do indivíduo — que
não serão, necessariamente, para melhor. Muitas pessoas, após o uso do
LSD, sofrem violentas convulsões epiléticas. Em personalidades psicóticas,
ele pode estimular o impulso ao suicídio. Em outras, provoca sensações de
terror tão fortes que os tranqüilizantes e barbitúricos são impotentes para
curar. Só um controle cuidadoso seleciona as pessoas que podem
experimentar, sem perigo de prejuízos sérios, uma viagem de LSD. De
maneira geral, devem ser excluídos, em princípio, todos os que sofrem de
enfermidades cardíacas ou hepáticas, os epiléticos, os que sofrem de
personalidade instável e os portadores de tendências esquizóides.
As qualidades positivas do LSD ainda não estão suficientemente
estudadas. A mais propalada delas é sua possível faculdade de aumentar o
poder do intelecto e de criação do homem. Dois recentes relatórios norte-
americanos apresentaram a esse respeito resultados contraditórios. Um
deles, fruto de experiências com estudantes universitários, afirma que o
LSD não tem influência sobre a capacidade intelectual. Outro, de
observações entre escritores e artistas de talento, verificou um aumento de
fertilidade criadora entre essas pessoas. Ao que parece, o LSD realmente
não cria nada nem pode dar talento a quem não o tenha, mas possui um
efeito liberatório.
O importante fato de que o transe do LSD não suspende a consciência,
mas fornece experiências que ela é capaz de aprender e assimilar, permite o
seu emprego no tratamento dos alcoólatras e viciados em entorpecentes. As
experiências do LSD são mais gratificantes do que as dos tóxicos, permitem
a reflexão e a decisão para curar-se, indispensável no tratamento dos
viciados. Embora não crie hábito, o LSD é mais potente do que qualquer
tóxico. Essa vantagem, porém, acarreta num terrível perigo: seus efeitos são
muito mais profundos e permanentes. Uma das armas mais espantosas, para
explorar os espaços psíquicos, descoberta por acaso pela ciência, o LSD
pode ser também o sintoma mais grave da crise da juventude moderna.
V
Louise L. Hay sabe que todas as doenças físicas, sem exceção, têm
causas mentais e, no seu livro, Heal Your Body, procura estabelecer quais
são os padrões psicológicos que estão na origem das diferentes
enfermidades.
Toda perturbação do corpo começa com pensamentos obsessivos de
alguma espécie. Esta verdade é conhecida pelo homem há muitos séculos;
no momento atual, porém, ela também deve ser utilizada na prática, sob
pena de sucumbirmos a doenças fatais, cada vez mais complexas e difíceis
de serem tratadas pela feitiçaria científica vigente, como a AIDS.
Não me diga! AIDS, então, é uma questão de cuca? — o leitor
perguntará, talvez em dúvida.
Claro — respondo, sem hesitar —, como tudo o mais que existe. A
chamada “realidade objetiva” é uma construção mental, não há exceções;
basta parar de pensar para que ela desapareça. Deve haver, portanto, um
padrão mental que é a verdadeira causa da AIDS, sendo o famoso vírus uma
manifestação material posterior.
Louise L. Hay resume a origem psicológica dessa assustadora doença,
em três fatores principais:
1967 — RODA-VIVA
Um dos primeiros movimentos coreográficos do coro de Roda-Viva é
um gesto brusco, alegre e agressivo: os atores, de costas, voltam-se para a
platéia e descobrem os corpos, até então envoltos em grandes capas negras.
A estilização dos figurinos — malhas justas, inteiriças, cor de carne,
maculadas por manchas que caricaturam pêlos, saliências e reentrâncias dos
corpos de todos nós — indica que estão nus. Eis, portanto, resumida numa
imagem simples, eficiente e teatral, no começo do espetáculo, a sua
intenção mais profunda: o desnudamento. Pouco depois, Benedito Silva é
transformado em Ben Silver. O ator, então, é violentamente despido, pelo
coro, de suas roupas comuns e cuidadosamente vestido, uma cerimônia de
paramentação litúrgica. Eis, portanto, numa segunda imagem, mais
elaborada, mas igualmente eficiente e teatral, resumida a natureza de sua
forma e de seu tipo de comunicação com a platéia: a do rito religioso.
Nem a intenção nem a forma de Roda-Viva são arbitrárias, gratuitas ou
mero teatro pelo teatro. Sustentam-se mutuamente, implicam-se
reciprocamente, necessitam-se. O desnudamento só revela seu sentido na
liturgia, ao mesmo tempo que a desmistifica. Para que isso fique claro, é
preciso indicar quais são as roupas intoleráveis que Roda-Viva quer
arrancar de um corpo a ponto de asfixia.
 peça é uma Paixão. Não a de Cristo, mas a de um cantor popular de
nosso tempo, um dos ídolos fabricados e destruídos pela máquina cancerosa
de nossa televisão comercial. De Ben Silver a Benedito Lampeão,
obedecendo às mágicas corrosivas das pesquisas de marketing, dos índices
de Ibope e das racionalizações paranóicas de seus manipuladores, um
boneco impotente chamado Benedito Silva experimenta os caminhos
sucessivamente gratificantes e cruéis de sua sede de fama e lucro — e de
sua alienação. Ele nunca é sujeito em face da engrenagem: sempre objeto,
deixa-se corromper, transformar-se passivamente e, finalmente, se destruir.
A engrenagem interfere em sua vida privada, envenena-lhe a amizade aos
amigos, impede-lhe o amor à mulher amada, rouba-o — numa palavra —
de si mesmo. Paga-o com a fama. Cobra-o a própria vida.
Esta é, resumida, a história. Contada assim, não vai muito fundo.
Poderia até ser eventualmente comprada pela própria televisão e
transformada numa telenovela dolorosa de nossa escravização, consentida
ou não, a mitos religiosos absurdos e desumanos, o nosso fascínio pelo sexo
e o nosso covarde horror ao sexo, nossa insegurança e nosso temor em face
do olhar do outro, nossa hipocrisia e nossos ressentimentos... — tudo isso o
espetáculo faz dançar diante do espectador, eriçado ou sorridente em suas
defesas, mas sempre atingido. Para exorcizar tantos demônios do espírito de
cada um, era necessário o rito apropriado; para despir tantas vestes, era
preciso esse verdadeiro ritual de desnudamento que é Roda-Viva. A história
de Benedito Silva se reduz, assim, ao material da celebração, de forma
similar à que se verifica naquela obra-prima da dramaturgia contemporânea
que é Les Nègres, de Jean Genet. Podemos dizer, em conseqüência, que a
mise-en-scène de José Celso trabalha sobre o texto de Chico Buarque como,
em tese, qualquer mise-en-scène deveria fazer sobre qualquer texto:
penetrando-o, revelando suas raízes secretas.
Roda-Viva é uma missa negra da alma brasileira. Ela celebra a nossa
má consciência. Não denuncia a nudez de nenhum rei em particular; é,
antes, o balé selvagem da nudez de todos nós. Imagino que Antonin Artaud,
após enlouquecer completamente e ter sido internado no hospício de
Rhodez, deve ter sonhado, numa de suas noites mais torturadas e
iluminadas pela psicose, com alguma coisa parecida. Mas, mesmo os
profetas, como Artaud, são humanos, demasiado humanos, para prever com
exatidão os rumos da misteriosa dialética que rege as realidades profundas
que os fascinam. Era preciso que os pacientes dentes do Tempo, mastigando
com crueldade a carne de todos os homens de teatro deste século fatal,
criassem a chaga sangrenta de onde o novo teatro pudesse brotar. Era
preciso que se suspeitasse seriamente da morte definitiva do teatro, que seu
arsenal de recursos fosse esgotado até a definitiva poeira, que ele parecesse
já totalmente esvaziado de sentido para o homem contemporâneo, para que
pudesse renascer.
No Brasil, também, os dentes do Tempo mastigaram nossa carne.
Descobrimos o teatro, excitamo-nos com ele, desesperamos dele. Passamos
das adocicadas belezas tebecianas ao entusiasmo por um teatro popular que
se revelou irrealizável para desembocar num comercialismo desenfreada e
incompetente até um vácuo desalentador. Cada momento teve a sua estátua:
depois do TBC, o Arena; depois do Arena, Oscar Omstein; depois de Oscar
Ornstein... Os dentes do Tempo continuaram a mastigar nossa carne. Roda-
Viva, com O Rei da Vela, encarna o ponto crítico desse processo, o ponto
crucial do recomeço. Não se pode negar hoje que José Celso foi o primeiro
diretor brasileiro a revelar, em suas encenações, plena consciência de que a
chaga já estava suficientemente aberta e pronta para o parto. Seus
espetáculos expressam claramente uma tomada de consciência da nova
geração de homens de teatro de sua marginalidade submissa e uma decidida
rebelião contra essa condição.
A angústia, a frustração, a humildade, a timidez e o desconforto
existencial da pequena burguesia explodiram; quebraram-se. Roda-Viva
joga os cacos sobre a platéia. Naturalmente, os que estiverem demasiado
acostumados com a canga no pescoço, irão protestar e se postar do outro
lado das barricadas. Os que preferirem se libertar de cadeias desnecessárias
e absurdas, continuarão o caminho.
O resultado da revolução sobre o público foi milagroso. Nada menos.
Solicitadas, provocadas, desafiadas, as platéias finalmente reagiram.
Verdadeiras reações das platéias era coisa que não se via há muitos anos em
nossas casas de espetáculo. Ria-se um pouco; chorava-se talvez menos;
apreciava-se debilmente um ator ou uma atriz; admirava-se, por vezes, um
cenário ou um figurino de bom gosto. . . Nada muito além disso. À
mensagem humana recebida pelas platéias, no caso de grandes textos, só era
recebida realmente na imaginação dopada por alguns mitos sobre a arte e
sobre a cultura, de alguns críticos e intelectuais. Na verdade, quase sempre
a tal decantada mensagem disparava como um balão de oxigênio sobre as
cabeças dos espectadores, escapava pela primeira janela aberta, perdia-se
num espaço neutro. O teatro não passava de um passatempo incômodo para
as noites de sábados.
De repente, Roda-Viva retesa os espectadores nas poltronas. O
exorcismo atinge, não a cabeça fria ou a chamada sensibilidade estética dos
espectadores, mas seus nervos. Alguns levantam e saem: precisam fazê-lo,
do contrário algo se quebraria dentro deles, as couraças que os protegiam
das realidades exorcizadas. Os que permanecem assistem o milagre,
estarrecidos. O teatro, esse morto velado todas as noites pelos refletores,
estendido no esquife de nossos palcos, começa a respirar; o sangue volta-
lhe às veias; a força reconquistada abre-lhe os olhos. Ele estende os braços
e toca os espectadores.
1968 — THE NEW LEFT
1969 — YIPPIE!
Assim como os hippies sucederam os beatniks, os yippies sucedem
agora os hippies. O nome deriva da sigla YIP, isto é, Youth International
Party, que quer dizer, em português, Partido Internacional da Juventude.
Qual a diferença entre uns e outros? Os yippies parecem um pouco
mais dispostos à ação no terreno da política tradicional. Como os hippies,
acreditam que o negócio é fazer o amor, não a guerra, e são favoráveis à paz
e à legalização da maconha. Mas, entre suas reivindicações, há uma que
exige o direito de voto para maiores de doze anos de idade e sua proibição
aos mais velhos, a partir dos cinqüenta anos.
Seu líder é Jerry Rubin, autor de um artigo publicado pela revista
Evergreen, que é um verdadeiro manifesto do movimento. Transcrevo,
abaixo, algumas das teses de Rubin que são suficientes para definir seu
pensamento.
Ele começa narrando um incidente de fronteira com um policial,
quando viajava para o Canadá:
— Eu tentei arrancar seu uniforme ali mesmo, mas ele recusou,
dizendo: “Tenho que cumprir um dever para sustentar a família”. Esse é o
câncer do mundo ocidental: todo mundo está cumprindo seu dever.
Ninguém aprendeu a lição de Eichmann.
Para Rubin, os yippies são um movimento revolucionário e religioso: a
revolução é uma transformação pessoal em que se deve encontrar Deus e
mudar a sua própria vida. Quem a começou são os jovens de hoje, mas os
vitoriosos deverão ser os jovens de amanhã:
A guerra entre ELES e NÓS será decidida pelos que têm hoje sete
anos de idade. Eles oferecem responsabilidade, medo, puritanismo,
repressão. Nós oferecemos sexo, drogas, rebelião, heroísmo e fraternidade.
Um dos passatempos prediletos de Rubin e seus companheiros é
queimar dinheiro em público. Certa vez, um grupo de yippies jogou notas
de dólar, do balcão da Bolsa de Valores de Nova Iorque, sobre OS
especuladores no andar térreo. Foi um verdadeiro Deus-nos-acuda, brigas,
gritos, confusão, todo mundo atrás do dinheiro. Rubin acredita que isso seja
uma libertação.
Nossos pais trabalharam o ano inteiro para ter duas semanas de férias.
Estamos de férias toda a vida! Não nos seduzimos pelo cristianismo, pela
idéia de que as pessoas vão para o céu depois de mortas. Queremos o CÉU
AGORA!
Rubin faz propaganda pela queima dos cartões de alistamento militar e
prega a guerrilha psicológica nas universidades, através do tumulto
deliberado nas aulas:
Você não aprende nada na escola. Uma hora de prisão ou de tribunal
ensina mais do que cinco anos de universidade.
Jerry Rubin tem trinta e um anos. Foi um dos fundadores do Youth
International Party. Foi jornalista em Cincinnati, repórter de esportes. Uma
viagem a Cuba em 1964 mudou sua vida. Desde então, passa o tempo
fumando marijuana, fazendo demonstração diante dos trens que conduzem
tropas destinadas ao Vietnã e aparecendo quase despido em outras
manifestações públicas. Já foi candidato (derrotado) ao cargo de prefeito de
Berkeley, Califórnia. Ficou famoso durante a última Convenção Nacional
do Partido Democrata, em Chicago, quando liderou a reação dos yippies
contra a ação policial. Por causa disso, foi julgado por um tribunal federal e
condenado a uma multa de 25 mil dólares. Está proibido de tornar a pôr os
pés no Estado de Illinois e é constantemente vigiado pela polícia norte-
americana. Apareceu para depor em Washington, fantasiado de guerrilheiro,
levando nas mãos uma metralhadora de brinquedo e uma bandeira vietcong.
Na marcha de 1967 sobre o Pentágono, foi um dos que urinaram nas
paredes do prédio.
Jerry Rubin insiste sempre nos privilégios da juventude — “nunca
confie em ninguém com mais de trinta anos”, diz um slogan dos yippies —
e afirma que tem apenas “quatro anos de idade”, tempo que participa do
movimento:
— A idade existe dentro de sua cabeça. Bertrand Russel é nosso líder.
Ele tem mais de noventa anos.
Mas parece, para Rubin, que a idade está tanto dentro quanto fora da
cabeça. Ele atribui muita importância à moda dos cabelos compridos:
— Nosso cabelo comprido comunica desrespeito pela América. Uma
sociedade racista, de cabelo curto, é incomodada pelo cabelo comprido. Ele
cega as pessoas. No Vietnã, os americanos bombardeiam os vietnamitas,
mas não podem vê-los porque eles são escuros. Cabelo comprido é vital
para nós porque permite que a gente se reconheça. Temos pele branca como
nossos opressores. O cabelo comprido nos une numa comunidade de
oposição visível.
Acusam-se sempre yippies e congêneres de serem uma rebelião
consentida; a prova seria a promoção que lhes dá a televisão. Rubin, pelo
contrário, considera a televisão uma aliada;
Na América de 1969, os velhos mitos podem ser destruídos, e novos
criados, da noite para o dia, por causa do poder da televisão. Tornando as
comunicações instantâneas, a televisão antecipa a revolução por séculos. O
que poderia levar cem anos, pode levar vinte. O que acontecia em dez anos,
acontece agora em dois. Numa sociedade moribunda, a televisão é um
instrumento revolucionário.
E Rubin dá exemplo do que quer dizer:
O prefeito Daley, de Chicago, mandou botar na televisão um filme
sobre a repressão policial às manifestações da Convenção Democrata. Ele
mostrava guardas enormes batendo nos garotos de cabelos compridos.
Numa das cenas, os guardas jogavam bombas de gás e um dos
manifestantes as apanhava e as atirava de volta. Com quem você acha que
todos os garotos deste país se identificaram?
Rubin gosta de apresentar argumentos que contrariam o bom senso da
velha esquerda dos Estados Unidos. Um deles envolve a valorização de
George Wallace, o candidato da extrema-direita que perdeu a última eleição
presidencial para Nixon.
Wallace é necessário porque traz à superfície o racismo e o ódio que
estão no fundo do país. Ele é um agitador de esquerda. Fala para a mesma
angústia e impotência de que falam a Nova Esquerda e os yippies. Wallace
diz: “Nós estamos contra os negros, os intelectuais, os liberais e os hippies”.
Todo mundo! Ele nos junta. Ele nos organiza, para nós.
E Rubin termina seu manifesto com uma frase solta:
\
Ou você está do lado da polícia ou do lado dos seres humanos.
1969 — CONTRACULTURA
Para efeitos de esclarecimento e compreensão vou experimentar
dividir a evolução interna da contracultura em três etapas distintas.* Essa
divisão é um tanto arbitrária e não se manifesta através de uma cronologia
rigorosa. Vou caracterizá-las como:
1) o ponto de partida hedonista;
2) a politização; e
3) o misticismo profético.
É curioso verificar que um homem como Wilhelm Reich atravessou,
durante sua vida, as três etapas, antecipando, assim, ainda na primeira
metade do século, um processo que só se tornou típico na década dos 60.
Os primeiros hippies surgiram em princípios da década dos 60, por
puro hedonismo. Entendemos a palavra sem as conotações de satânica caça
ao prazer com que a moralidade tradicional a envolveu, mas como o desejo
simples e elementar de felicidade da vida humana. O raciocínio
fundamental, aqui, é muito simples. O sistema é injusto e cria a
infelicidade. Mas o sistema introjeta os seus valores em nós e somos nós
quem sofremos a infelicidade que ele cria. Para os primeiros hippies, a
ênfase se deslocou de seu pólo objetivo para o seu correlato subjetivo.
Julgando-se impotente para transformar o sistema, o hippie se dispõe a
transformar a si próprio, animado pelo projeto novo de ser feliz, a despeito
e à margem do sistema.
Como, porém, alguém pode transformar o próprio espírito e ser feliz a
despeito e à margem do sistema? Todo movimento hippie, em seus
princípios, é feito de tentativas para responder a essa pergunta. A primeira
solução é o drop out, a pessoa que “cai fora” do sistema para criar o seu
próprio estilo de vida. De imediato, todos perceberam que essa solução é
insuficiente, desde que o drop out pode levar para sua existência
marginalizada os valores e falsos valores, os conceitos e preconceitos, as
doenças e os bloqueios de sua vida anterior. O fator descoberto que se
acreditou, então, capaz de romper essas cadeias foram as drogas,
especialmente as drogas alucinógenas ou psicodélicas que expandiram a
mente, levando o indivíduo a compreender e superar os seus mecanismos
neuróticos.
O primeiro impulso do movimento hippie foi, portanto, uma mistura
de Jean-Jacques Rousseau, Wilhelm Reich e Thimothy Leary: acreditava na
volta à natureza e na cura da neurose através dos alucinógenos. Descobriu-
se, então, o chamado Flower Power, o poder da flor, sobre o poder das
armas, automóveis, televisores, máquinas de lavar roupa e outros objetos
fabricados, na indústria moderna, pela mão do homem. Reich ensinava o
verdadeiro sentido da revolução sexual que, ao contrário da pornografia e
da licenciosidade, procura sanear a vida sexual dos indivíduos através de
uma satisfação adequada e completa de seus impulsos eróticos. Há uma
certa “revolução sexual” em marcha no século, estimulada pela publicidade,
os grandes meios de comunicação de massa, etc. Essa liberalização,
entretanto, está dominada pelos vícios repressivos do sistema: ela cria um
máximo de excitação mantendo o mínimo de satisfação fixado pelas
tradições — o que, segundo Reich, não cura as neuroses, mas as alimenta.
O erotismo em filmes, revistas, livros, etc. constitui, via de regra, o que
Herbert Marcuse chama de dessublimação repressiva. Os hippies desprezam
e repelem o erotismo artificial e, na trilha de Reich, só valorizam a
gratificação natural do impulso.
O objetivo é o mesmo das melhores técnicas psicanalíticas e
psicoterápicas já descobertas: a superação de conflitos emocionais e
neuroses, com a conseqüente reintegração do indivíduo em sua vida natural.
O hippie, entretanto, desconfia mesmo do mais aberto dos médicos ligados
ao establishment. Em conseqüência, uma das primeiras propagandas que se
fez do LSD era que uma só dose da droga é equivalente a anos de análise ou
psicoterapia intensiva. Ás pessoas tomavam ácido para resolver seus
problemas pessoais, seus hang-ups, melhorando suas relações com os
outros e com o mundo. O hedonismo naturalista, porém, enfrentaria
dificuldades dramáticas, conforme foi mostrado no filme Easy Rider. “A
neurose é obrigatória. Cure-se e eu o matarei”, foi a resposta do sistema, o
que levou à politização do movimento.
A contracultura nasceu — como a psicanálise, por exemplo — por
uma necessidade de limpeza psíquica, um projeto de felicidade individual e
coletiva que, entretanto, cedo esbarrou na oposição do establishment. Isso
nos leva à segunda etapa.
O processo de politização do projeto hedonista pode ser facilmente
compreendido através do filme Easy Rider. O principal recado do filme é a
impossibilidade radical da proposição hippie em face da oposição violenta
do sistema. Á verificação histórica de Dennis Hopper, entretanto, já havia
sido antecipada pela vida de Wilhelm Reich. Ele também percebeu, em
princípios da década de 30, que a saúde e liberdade individuais eram
impossíveis num contorno desfavorável. Era necessário um trabalho
coletivo que pudesse estabelecer, em suas palavras, “uma profilaxia eficaz
das neuroses”. Para ele, a transformação da sociedade tornou-se uma
condição prévia e necessária (embora não suficiente) para a cura da
neurose. Fundou, então, a célebre Sexpol, um órgão de militância da
chamada “política sexual” de Reich, e uma clínica que atendia operários,
segundo o princípio de que saúde psíquica, vida sexual equilibrada e
consciência de classes mantêm entre si liames essenciais.
Reich não foi longe com sua Sexpol. Depois que fugiu da Alemanha,
perseguido pelos nazistas, não encontrou mais lugar nenhum da Europa que
o acolhesse. Suas pesquisas eram constantemente interrompidas por
processos, expulsões do país, etc. Reich morreu nos Estados Unidos, na
cadeia, acusado de charlatão. A essa altura da vida, abandonara a orientação
política por uma forma particular de misticismo profético, não muito
diferente do que é, hoje, comum entre os hippies (incluía discos voadores,
invasões da Terra, formas misteriosas de energia, etc.), e que lhe valeu a
acusação de esquizofrenia nos círculos psiquiátricos oficiais.
A exemplo de Reich, confrontada com a situação refletida em Easy
Rider com rigoroso realismo, a contracultura também se politizou. A grande
mudança se verificou em 1968, sob o impacto poderoso da rebelião
estudantil internacional, do surgimento dos enragés franceses, da agitação
da SDS alemã e do crescimento da SDS norte-americana. Nos Estados
Unidos, dois líderes indiscutíveis surgiram nas figuras de Abbie Hoffman e
Jerry Rubin. Eles inventaram o yippie, uma espécie de cruzamento entre o
hippie e o radical da New Left norte-americana. O yippie foi lançado, em
grande estilo, nas manifestações de rua, em Chicago, durante a Convenção
do Partido Democrata. A novidade principal dos yippies é estratégica: eles
brincam demais na ação política. Abbie e Jerry se fantasiam de vietcong,
andam com metralhadoras de brinquedo, dizem besteiras nos comícios, etc.
— e explicam que a revolução deve ser feita “brincando”.
O processo político, entretanto, é lento, demorado e incerto — pouco
adequado, portanto, às crianças de Aquarius, que desejam paradise now, o
paraíso aqui e agora. O vazio deixado pela participação política seria
preenchido pelo misticismo profético.
1969 — RELIGIÃO
Foi realizado em São Francisco, Califórnia, um Holy Man Jam, ou
seja, uma espécie de festival das principais tendências religiosas da
comunidade hippie americana. Num salão de baile alugado, reuniram-se
cerca de 2 mil pessoas para ouvir seus gurus prediletos e cantar músicas
místicas ao som das guitarras elétricas. Naturalmente, estava todo mundo
muito doido, com muito fumo e muito ácido sendo distribuído no enorme
salão. No palco, apareceram, entre outros, Thimothy Leary, o papa do LSD,
e Alan Watts, o grande sacerdote do zen-budismo nos Estados Unidos.
Leary misturou um pouco de política ao ambiente religioso. Foi
candidato ao cargo de governador da Califórnia e afirmou que o caminho
para o Reino de Deus passava pela reforma deste mundo. Watts apareceu
vestido com sua longa túnica de sacerdote zen e fez sua entrada ao som de
fanfarras dissonantes.
Depois dele, apareceu um guru desconhecido que se anunciou como
um novo Messias, afirmou que chegara à Terra a bordo de um disco voador
e convidou a platéia a abandonar seus corpos para acompanhá-lo numa
“viagem astral”.
A essa altura, porém, já estava todo mundo viajando. “A verdadeira
religião é a música”, disse, então, um citarista do Ali Akbar College of
Music, que tocou alguns ragas que Ravi Shankar tornou famosos no
Ocidente e cantou passagens assustadoras do Livro Tibetano dos Mortos.
O misticismo religioso foi, sem dúvida, o lado extremo da
contracultura hippie — como sempre o foi, de resto, de todos os
irracionalismos. O que o caracterizou, foi a mistura delirante de todos os
êxtases: Tibete, índia, parapsicologia, zen-budismo, realismo mágico,
discos voadores, astrologia, bolas de cristal, macumba (vodu, para eles),
iluminações psicodélicas e espiritismo puro e simples estavam, todos,
misturados no mesmo saco místico da contracultura. A revista Newsweek
publicou uma reportagem sobre o vigoroso crescimento das chamadas
“ciências ocultas” nos Estados Unidos. A contrapartida da violência política
que varria o país foi a mágica religiosa. A onda se espalhou e alagou todos
os países ocidentais.
John Lennon e Yoko Ono, por exemplo, pretenderam com seu Festival
de Toronto, Canadá, assegurar a paz mundial através das “boas vibrações”
de um milhão de hippies que pretendiam reunir lá. A viagem do LSD,
diziam alguns psiquiatras, pode ser qualificada como uma “esquizofrenia
experimental”; o próprio estilo de vida dos hippies tinha os traços de uma
esquizofrenia sintética, pré-fabricada; e, finalmente, o lado extremo do
novo misticismo parecia roçar a fronteira do patológico.
Mas as coisas vêm acontecendo assim desde os beats na década de 50.
Quando perguntaram a Jack Kerouac o que procurava a sua geração, ele
respondeu:
— Deus. Nós queremos que Deus nos mostre a Sua Face.
VIII
No desenvolvimento da visão do mundo dos setores mais audaciosos da
cultura ocidental, nos últimos anos, alguma coisa se perdeu. E não foi pouca
coisa. Era uma revelação, uma iluminação súbita, uma verdade sagrada. É
admirável que essa descoberta tenha ocorrido alguns anos atrás — e é
desconcertante que ela tenha sido perdida ou, no mínimo, esquecida. Estou
falando do sentimento lúdico da vida, a brincadeira, a visão da infância.
Parece que voltamos, todos, quase sem exceção, a ser sérios — ou
então, em alguns raros casos, transformamos a própria ausência de
seriedade num trabalho sério, a ser levado a sério. Não sabemos mais
brincar enquanto, até bem pouco tempo, parecia que havíamos finalmente
redescoberto o santo segredo das crianças: o conhecimento intuitivo,
essencial, de que não há nada realmente sério — pois tudo é jogo e
diferentes estilos de jogar. Se a essência do ser no mundo não é o cuidado
ou a preocupação — como quer Heidegger, por exemplo, que é antes de
tudo um filósofo sério — mas a gratuidade do jogo e a natureza evanescente
da brincadeira, deixar de brincar é simplesmente voltar a optar pela neurose
e insistir em que a vida civilizada continue a ser o que sempre foi, fonte de
angústia e confusão mental, beco sem saída, não só para a razão, mas
também — e principalmente — para as próprias emoções e sentimentos.
A seriedade excessiva a que nos sentimos obrigados, em função da
necessidade egolátrica de desempenho no mundo organizado, mata toda
espontaneidade e alegria de viver, adoece toda vida afetiva e alimenta o
câncer.
Tudo isso é lamentável — e triste, porque paramos de rir e deixamos
de nos divertir.
A brincadeira desapareceu quando a nova cultura se sentiu no dever de
confrontar os próprios valores, que começara a criar, com os valores velhos
da cultura estabelecida. Essa necessidade correspondia a um impulso
aparentemente natural de expansão. A criança brinca sem se preocupar com
a maneira de viver dos adultos; a brincadeira é sua atividade admitida no
mundo. A brincadeira de crianças crescidas, porém, não tem a mesma
permissão social, posto que — em nossa cultura — a idade adulta se
caracteriza exatamente pela substituição da brincadeira — livre, humana,
saudável e criativa — pelo trabalho compulsivo neurotizante e desgastante,
cuja principal função e principal objetivo parecem ser, simplesmente, a
morte do trabalhador, o mais rápido possível, através do esgotamento de
suas energias físicas e psíquicas. Em nossa cultura, a brincadeira é um
privilégio das crianças — porque, afinal de contas, também não queremos
matá-las demasiado cedo, antes que possamos, a partir da adolescência, usá-
las como bestas de carga. Aos adultos, reservamos a doença e a morte — e
para que elas sejam eficientes e não falhem, aperfeiçoamos os mais
diabólicos métodos, que se traduzem em stress e ansiedade, condições
insalubres para o corpo e principalmente para o espírito, escassez
econômica e tirania psicológica, só para exemplificar a rotina do trabalho
em nossa cultura. O processo é rígido e obrigatório, previsto nas leis e
vigiado de perto pela polícia e outros organismos repressivos. Eros é uma
concessão especial às crianças. Tanatos é o único direito dos adultos. Nossa
cultura, acima de tudo, adora a morte.
Por isso, querer voltar a ser criança e simplesmente querer viver e
entregar-se à seriedade adulta e ao trabalho compulsivo é iniciar um
romance com a morte. Mas querer viver é, essencialmente, querer que todos
vivam, sem exceção, pois a vida não discrimina e the best love to have is
the Love of Life, como diz Jimi Hendrix, o profeta esquecido, cujas visões
dormem nas cavernas secretas do inconsciente coletivo, para um despertar
mágico no abismo do futuro.
Quando nos sentimos crianças, o instinto natural é pela expansão:
queremos que todos nós sejamos crianças, porque sentimos que só assim,
todos, podemos ser totalmente crianças, sem as sombras das neuroses
típicas criadas pela idade adulta e pela ambição egocêntrica que está na raiz
da seriedade. Em face dessa necessidade de expansão, a reação do mundo
organizado, da cultura e civilização instituídas, é reagir com violência e
com crueldade. Assim, os antigos valores não admitem o confronto com a
nova visão — e o neurótico sério que há dentro de cada um de nós acaba,
invariavelmente, estrangulando até a morte a criança que também há dentro
de cada um de nós.
Esse assassinato psíquico é realizado em massa, todos os dias,
favorecido por todas as circunstâncias mundanas. As armas do crime estão
à mão, é só usá-las — e as leis, no caso, protegem o criminoso. Como
acontece em tantos casos, tantas vezes, o crime é cometido com tanta
insistência, que acabamos por esquecer que se trata de um crime.
O desenvolvimento da visão do mundo manifestada pela crítica mais
radical que se fez, nos últimos anos, à natureza e aos rumos da cultura
estabelecida, pode ser descrito como o processo da criança assassinada.
Descobrimos, fora de qualquer dúvida, que é proibido brincar. Nenhuma
outra proibição é, natural e paradoxalmente, tão séria quanto esta — ou tão
desastrosa. No caso específico do que se convencionou chamar de
contracultura, o corpo inteiro do indivíduo, seu próprio organismo vivo,
parece morrer junto com a criança assassinada.
Tomemos o caso do rock, por exemplo. O florescimento da visão
infantil, nos anos 60, tinha um som próprio, ou música de fundo, um
acompanhamento musical que expressava, não só para o ouvido, mas para o
olho — cores, roupas, cabelos —, para os demais sentidos e para o corpo
todo — a dança, a experiência sensorial em novos níveis —, o próprio
espírito dessa visão. Pois bem: o rock praticamente acabou, como tradução
sensorial da visão infantil.
Sofisticou-se artisticamente, cedendo aos protestos da velha cultura, e
foi sumariamente comprado pelos interesses das grandes gravadoras e
empresários. Virou mais um artigo, o lixo dourado da cultura estabelecida.
O rock foi uma revolução infantil, mas vitoriosa: hoje, é memória dos
adultos.
Não me queixo, embora não possa deixar de escrever palavras como
desconcertante ou lamentável.
Sartre, cuja sensibilidade para a psicologia é inegável, afirma que
somos sempre vítimas e cúmplices. A criança não pode ser morta apenas
por fora: o que consuma o assassinato é a sua asfixia interna, em cada um
de nós. Não me queixo: esses são apenas os novos dados do jogo, só resta
jogá-lo — ainda que de mau humor. Mas já sabemos das coisas de um jeito
melhor, mais fundo, do que o apontado, no momento, pelas aparências de
sempre. O assassinato da criança é a revanche da doença, o seu dia.
Tudo bem. Mas a criança ainda ressuscita; a revelação voltará a
brilhar, como um sol, o pesadelo chegará ao fim e, queiram ou não,
voltaremos a brincar. Todos nós.
1970 — ROCK E EU
Deixem-me contar um pouco de minha vida.
Ao contrário do que possa parecer aos que sabem de meu interesse
pelo rock dos 60, o surgimento desse interesse foi bastante tardio. Ele não
foi despertado pela explosão dos Beatles, Rolling Stones ou mesmo Bob
Dylan, ainda na primeira metade dos 60, mas bem posterior, mais próximo
aos anos finais da década, quando os artistas citados já eram grandes
superstars e a vaga que haviam levantado já se transformara no maremoto
cultural de que, hoje, temos plena notícia. Reconheço que devo ter sido bem
lento em reconhecer as coisas, um caso um tanto constrangedor de
percepção retardada, mas, se o erro é um momento da verdade, como quer a
dialética, é possível também que os aspectos mais falhos de nossa
apreensão da realidade tenham seus inusitados aspectos positivos —
fazendo-nos, por exemplo, ver melhor o que demoramos a ver. A pressa é
inimiga da perfeição, o que às vezes faz da preguiça e até da simples
estupidez inesperadas amigas de sábia paciência.
Pois é: não me liguei de cara no rock moderno. Tinha a impressão que
não passava de uma elaboração um tanto afetada, mas mais aguada, menos
vital, do rock’n’roll dos 50.
Este último, sim, havia sido anos antes uma das fascinações mais
intensas de minha adolescência. Lembro que comprei, com o sacrifício de
cinemas, cigarros e coca-colas, o primeiro LP (importado) de Elvis que
chegou por aqui. Assisti No Balanço das Horas e todos os outros filmes da
época que tinham rock’n’roll, não sei quantas vezes. Tinha todo o Bill
Hailey que saíra no Brasil, em LPs de 10 e 12 polegadas. E Little Richard.
E Chuck Berry. E Gene Vincent, etc. Foi uma música que encheu minha
adolescência de ritmo, mexeu com meu corpo e excitou a minha alma com
seus desafios, sua petulância e seus ares de rebeldia. Blusões de couro,
James Dean e rock’n'roll eram a minha trip na época, podem crer.
Depois, tudo passou.
Um timing aparentemente estranho, mas natural, sincronizou a
decadência do rock’n’roll com minha entrada na chamada idade adulta. À
medida que eu ia completando o ginásio e o científico, tirava título de
eleitor, prestava o serviço militar, podia entrar em boates sem medo do
Juizado de Menores, etc., Elvis Presley se adocicava, Bill Hailey
desaparecia, Little Richard parava de cantar e as gravadoras deixavam de
editar os velhos rockers, substituindo-os por coisas comerciais como The
Platters e Bobby Darin e similares que, para ser franco, nunca me disseram
nada. Eu crescia na Idade das Trevas do rock e ele foi se tomando, cada vez
mais, uma coisa do passado.
Musicalmente, meu coração abandonou por inteiro o velho amor
decadente e se entregou, com novas forças, que tinha por mais maduras, ao
jazz. Este parecia mais satisfatório, sob todos os aspectos: tinha uma força
expressiva mais intensa, parecia mais complexo tanto musical quanto
emocionalmente, era ao mesmo tempo intelectualmente mais sutil e tinha
mais sangue. Em suma: era mais completo.
Envolvido pelo famoso esnobismo jazzista, o homenzinho que
despontava do adolescente passou, inclusive, a desprezar um pouco — isto
é, bastante — a paixão musical deste último. Rock’n’roll havia sido coisa
de garoto sem as devidas luzes, uma bobagem. O desprezo foi suficiente
para me fazer perder os velhos discos: devem ter ido parar em lojas de
discos usados e, de lá, só Deus sabe onde.
Não senti sua falta. O que iam me interessar aqueles cantores sem
nuances, os ritmos quadrados, pesados, duros, as harmonias pobres, as
melodias primárias e os solos de sax e guitarra sem a menor imaginação,
principalmente se comparados com o trabalho dos melhores jazzistas? Esse
julgamento formal acompanhava, naturalmente, a nova sedução por sons
abstratos e cerebrais enquanto o corpo se tornava rígido e mesmo a rebeldia
passava a assumir a forma contraída de teorias e formulações racionalistas.
Foi assim que comecei a navegar no mar agitado da década dos 60:
insensível e racionante, um aspirante a intelectual sem nenhum swing. Mas
esse mar preparava suas surpresas.
Já disse que atravessei mais ou menos incólume a famosa explosão dos
Beatles e Rolling Stones. Eles excitaram minha curiosidade, é claro, mas
mais a minha curiosidade jornalística do que musical. Em que pese a
inegável sedução de suas imagens, seria difícil, na época, que eu tirasse do
toca-discos um LP de Miles Davis ou Charles Mingus ou John Coltrane
para escutar um Help ou um Out of our Heads. Estes últimos discos traziam
uma música ainda humildemente apegada à terra, enquanto eu já andava por
altas estratosferas sonoras. Mesmo quando o caso era escutar alguma coisa
mais leve, eu era bem mais chegado a um Gerry Mulligan, por exemplo.
Aqui embaixo, entretanto, eu começava a mergulhar numa grande
crise, dilacerante e pluridimensional — crise pessoal e política, afetiva e
cósmica —, que ameaçava me fazer perder o pequeno lugar no mundo que
racionalmente — quer dizer, insensatamente — eu tentara assegurar para
mim. Os meados da década dos 60 trouxeram em seu bojo, na verdade, um
verdadeiro terremoto, difícil de ser atravessado para quem tinha uma mente
tão organizada e um corpo tão contraído como eu tinha.
O que posso dizer sem entrar em detalhes mais íntimos e capazes até
de ferir meus naturais pudores?
Uma coisa, por exemplo: dei para beber demais.
Outra: deixei de gostar de música, até o jazz.
Este enveredava pela apocalíptica fragmentação do free jazz, uma
fragmentação que — bem observada — correspondia a uma fragmentação
geral de toda a cultura ocidental, um processo que alcançaria o seu clímax
em 1968, ano da “morte da cultura”, como dizem Julian Beck e Judith
Malina. Embora eu não tivesse, ou mesmo não pudesse ter, clara
consciência disso, a crise pessoal tinha uma correspondente planetária. A
crise era a morte iminente de todos os valores estabelecidos — o que, na
verdade, apenas anunciava a grande transmutação que estamos vivendo
hoje — e atingia a todos nós, individualmente, soubéssemos disso ou não. E
quando a mente organizada é sacudida, o corpo rígido também é ameaçado.
Os trabalhos subterrâneos da psique finalmente afloraram à minha
superfície pessoal, numa certa tarde de verão, dentro de uma loja de discos,
onde eu procurava o fundo musicai para um espetáculo de teatro e onde
escutei, pela primeira vez, um disco de Jimi Hendrix.
Para meus efeitos pessoais, a audição daquele disco, o fundamental
Electric Ladyland, foi a declaração de uma revolução cultural extremada.
Aquele som era, ao mesmo tempo, a síntese da dilaceração dos tempos e a
indicação, a abertura, para o futuro, através da liberação de novas energias.
Eu estava sendo finalmente confrontado com o rock dos 60, na plenitude de
seus poderes.
Não cabe aqui fazer o elogio de Hendrix — e, mesmo que eu quisesse
fazê-lo, por certo me faltariam as palavras. Mártir e profeta, seus discos
revelam finalmente, em toda a sua extensão, as transformações insinuadas
na ebulição da década. Tem um caráter nítido de revelação — não só nas
letras, vocalizadas em novas e quietas intensidades, e não só no trabalho
penetrante de sua guitarra, mas em toda a exuberância de seu som. Hendrix
é a mais luminosa comprovação contemporânea do dito de William Blake:
A Exuberância é Beleza. E a Beleza, digo eu, é a primeira porta que se abre
quando as coisas ficam demasiado difíceis.
Electric Ladyland e Smash Hits, ambos de Hendrix, foram os
primeiros discos de rock contemporâneo que comprei. Eu os toquei durante
meses a fio, todos os dias, de uma maneira sôfrega e praticamente
incansável. Toco-os até hoje, perplexo e feliz. Tal perseverança, vista
retrospectivamente, ganha para mim as dimensões de uma verdadeira ioga
musical, através da qual velhos e resistentes condicionamentos começavam
a ser abalados. Hendrix assestava seus poderosos golpes nas muralhas
rígidas de um sistema nervoso sufocado pelos condicionamentos de uma
cultura que se revelava, afinal, um equívoco lamentável, uma adoração da
morte. Se algo, então, mudou radicalmente em minha vida, devo-o a várias
coisas, e Jimi Hendrix foi, sem dúvida, uma delas.
Conquistado, seduzido por Hendrix, eu agora queria mais — e, desde
que a mente se abrira um pouco, e o corpo se tornara um pouco mais
flexível, e ambos abandonavam um pouco as velhas teorias e as velhas
poses, mais me foi dado. Ainda tenho os poucos discos que vieram, logo a
seguir, apoiar o trabalho de Hendrix em mim. São coisas bastante
esquecidas, hoje em dia, talvez menos vigorosas, coisas que talvez não
tenham tido a mesma capacidade de deixar sulcos mais fundos na abstrata
estrada do tempo. Mas tiveram o seu papel, como se diz, histórico.
Um disco que eu tocava muito era o In-a-Gadda-Da-Vida, do Iron
Butterfly; outro que despertou minha curiosidade foi a Missa em Fá Menor,
dos Electric Prunes; meu favorito, porém, foi Eric Burdon Declares “War”
— no qual uma das faixas, I Have a Dream, narra uma experiência de morte
e ressurreição, fornecendo assim uma imagem clara dos processos que eu e
tantos, tantos outros começávamos a viver.
Depois desses, vieram ainda mais discos: uma série de três LPs,
Underground Explosion, que me colocou em contato com grupos e artistas
como Giger Baker's Air Force, Jack Bruce, Taste, John Mayall, Blind Faith,
Cream, The Who, Beast, MC 5, Yes, Delaney & Bonnie, Allman Brothers,
Cold Blood, Fleetwood
Mac, Neil Young, Frank Zappa e os Mothers of Invention e muitos,
muitos outros. Feita essa iniciação, eu já podia caminhar sobre minhas duas
pernas no mundo do rock: não estava mais engatinhando.
Daí por diante, posto que meu interesse na verdadeira vida renascera,
meu interesse pela música em geral também renasceu. E desde que a
verdadeira vida, quando realmente vivida, nos cumula de presentes e
dádivas, o item seguinte que surgiu foi nada menos do que o álbum de
Woodstock, com três LPs que traziam para as devidas apresentações, ou um
conhecimento mais íntimo, nomes como Butterfield Blues Band, Canned
Heat, Joe Cocker, Country Joe & the Fish, Crosby, Still, Nash & Young,
Richie Havens, Jefferson Airplane, Santana, Sly & the Family Stone, Ten
Years After, etc. A esta altura dos acontecimentos, eu já estava em plena
viagem no mundo maravilhoso do rock.
A década dos 60 assistiu a um fenômeno de dimensões psicológicas,
sociais e culturais que nenhuma teoria fora capaz de prever. De maneira
espontânea, quase súbita, a juventude dos países industrializados, em
particular os anglo-saxões, começou a negar todo o modo de vida ocidental,
abandonando suas tradições tidas como mais firmes e contestando quase
todos os seus valores, mesmo os mais sagrados. Nossa civilização viu-se,
assim, repentinamente diante da possibilidade de uma mudança radical de
rumo, promovida exatamente por aquele setor da população supostamente
destinado a manter tais tradições, respeitar tais valores e assegurar a
sobrevivência desta cultura no futuro, isto é, a juventude de classe média. E
a música foi o seu principal meio de expressão e veículo de comunicação.
Novas culturas nascem sempre como música e como poesia, assegura
Nietzsche, e foi assim que nasceu o rock contemporâneo.
Nos Estados Unidos, o processo de robotização e desumanização do
ser humano parecia ter atingido o seu auge em fins dos anos 50. Âs
engrenagens do controle e manipulação social pareciam funcionar,
finalmente, como uma máquina sem falhas — e a melhor sociologia
americana da época já denunciava o caráter social teleguiado que se
formava no país. Os extremos, entretanto, não só se tocam como se
convertem um no outro — o que constitui o motor de toda a dialética.
Assim, a extrema manipulação deu origem à extrema liberdade das novas
gerações. O rock'n’roll, a música da juventude par excellence, chafurdava
no pântano da comercialização. Em conseqüência, os jovens americanos
começaram a ser atraídos pelo country & western, de raízes populares e
respeitável tradição política, como demonstram os nomes de Woody
Guthrie e Pete Seeger, e pela poesia beat (Allen Ginsberg, etc.) que
florescera nos círculos boêmios e literários durante a década anterior.
Os jovens universitários americanos deixaram a barba crescer,
compraram um violão e cantavam folk songs. Bob Dylan foi o produto
natural dessa mudança de condições, que também deu origem à New Left e
a agitações políticas em praticamente todo campus universitário norte-
americano.
Dylan alcançou um sucesso fulminante, não só como artista, mas
também — ou principalmente — como porta-voz e líder de toda uma
geração. Considerado o poeta máximo da protest song, ele impressionou o
público e outros compositores com a qualidade excepcional de suas letras
— a princípio, de um fio político corante e, a seguir, de uma riqueza e
colorido de imagens já classificada de “surrealista”, mas sempre de alta
categoria poética —, que influenciaram não só os Beatles, como
praticamente todos os letristas do rock. Musicalmente, seu interesse pelo
rock elétrico foi uma das principais fontes do moderno folk rock.
Enquanto se verificava o processo de politização da juventude
americana e da ascensão de Dylan, o rock’n'roll ressurgia com ímpeto
inesperado na Inglaterra — como “uma bomba de efeito retardado”, nas
palavras de Roberto Mugiatti.
Em Liverpool, como conseqüência disso, estudantes de nível superior,
oriundos das classes trabalhadoras (e favorecidos pela socialização da
educação determinada pela legislação trabalhista), escolhem o rock’n'roll
como porta de acesso ao mundo da cultura ocidental, dando assim —
provavelmente sem ainda o saberem — o primeiro passo para a sua
renovação radical.
Cálculos modestos dão conta de cerca de 350 grupos de rock’n’roll em
atividade em Liverpool, nos primeiros anos da década de 60. Eles criaram o
chamado “som de Liverpool” — versões juvenis do rock americano,
notadamente o dos 50, produzido pelos negros —, e dois deles, pelo menos,
iriam alcançar em pouco tempo um sucesso internacional sem precedentes,
modificando de modo profundo não só a música popular, mas todo o estilo
de vida do Ocidente. Os Beatles e os Rolling Stones, com efeito, parecem
ter encarnado as duas forças primais — Yang e Yin; Apoio e Dioniso; Dia e
Noite; Céu e Terra — que haveriam de engendrar toda a convulsão cultural
que caracterizou os 60.
Os Beatles foram um verdadeiro laboratório de influências e pesquisas
que vão da eletrônica à canção folclórica, dos ragas indianos às mensagens
existenciais de suas letras, que comunicam uma visão filosófica do
desconcertante cotidiano existencial, na segunda metade do século, em LPs
que se transformaram em marcos históricos como Rubber Soul e Sgt.
Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que praticamente inaugura a era do
experimentalismo eletrônico na música popular contemporânea. Os Stones,
por sua vez, menos sutis e mais intensos, se caracterizam pelo poder do
beat, as tonalidades negróides firmemente enraizadas nos blues e a
violência, tanto de seus temas quanto de suas apresentações ao vivo. Os
Beatles, portanto, eram experimentais, requintados, detalhistas, arty; os
Stones, enraizados na tradição negra, básicos, intuitivos, dionisíacos;
aqueles cresciam dentro de um estúdio, elaborando técnicas e truques, e
estes nas apresentações ao vivo, como uma desreprimida força da natureza.
Pode-se dizer que apenas dez pessoas — Dylan, os quatro Beatles e os
cinco Stones —, nos dois lados do Atlântico, iniciaram uma verdadeira
revolução cultural. Eles foram seguidos imediatamente por legiões cada vez
maiores de músicos, poetas, artistas de diferentes setores e feiticeiros de
variados matizes e graus de evolução e conhecimento. Reunidos em grandes
festivais (Monterrey, Woodstock, Ilha de Wight, etc.), revelaram já
somarem centenas de milhares, ainda na segunda metade da década de 60;
hoje, hão de ser certamente milhões vivendo em mágico segredo em todos
os países do Ocidente (ou serão do mundo?), industrializados ou não.
Já em meados da década, dois centros de irradiação da nova cultura
estavam praticamente estabelecidos; um na Califórnia, nos Estados Unidos
(em especial, a cidade de São Francisco, cujas tradições inconformistas
remontam aos beats dos 50), e outro em Londres, austera e tradicional
cidade que virou, por artes mágicas, a grande lançadora das modas pop, nos
60. A expansão da consciência, que intelectuais como Allen Ginsberg,
Thimothy Leary e Ken Kesey preconizavam na Califórnia e que se travestia
de cultura pop em Londres, era o fundamento de todas as energias novas
que se apresentavam no palco da história ocidental: ela negava, em bloco,
toda a cultura tradicional — literalista, racionalista, discursiva, verbal —
como produto de um estado inferior, contraído, da consciência; e apontava
para uma nova cultura, livre e dionisíaca, imaginativa e fundada na
experiência direta, sensorial, do mundo e da vida — e, portanto, anterior às
suas traduções verbais, essa fraude do pensamento que escravizou o homem
ocidental à neurose.
No plano musical, a nova sensibilidade dionisíaca voltou-se imediata e
intensamente para a tradição negra, em particular o blues. O antigo
rock’n’roll passava a ser simplesmente rock e se diversificou em múltiplas
tendências: na verdade, deixava de ser um simples gênero musical para ser
um novo mundo — um universo alternativo, paralelo, cheio de blues por
todas as partes, que começava a ser povoado pelos jovens egressos da velha
cultura. Descobriam eles que a chamada realidade objetiva não era nem
objetiva nem realidade, pois dependia de seu consenso pessoal e podia ser
alterada, imediatamente, por um ato interno da vontade. Cabelos e barbas
cresciam; as roupas apresentavam-se coloridas e selvagens; os corpos
perdiam a rigidez das couraças repressivas e moviam-se, dançavam, livres
pela primeira vez. Pela primeira vez, uma geração inteira não só reconhecia
como assumia em sua vida a magia fundamental da realidade. E verificava
que as entonações da música negra eram as entonações da liberdade. Os
blues — presentes no trabalho de Dylan e dos Beatles; decisivos no dos
Stones — passam a ter uma importância cada vez maior na nova música.
Não é nem o requinte experimentalista dos Beatles nem o lirismo penetrante
de Dylan que vai dominar o desenvolvimento do rock e formar a espinha
dorsal de sua mainstream, mas o blues pura e simplesmente.
Na Inglaterra, os Yardbirds e John Mayall formam os dois núcleos
fundamentais do blues inglês, dos quais saíram Eric Clapton e o Cream, Jeff
Beck e seus Groups, Jimmy Page e o Led Zeppelin que, juntamente com o
Traffic de Steve Winwood e o The Who, de Pete Townshend, são as
principais expressões do rock inglês que procuraram desenvolver o blues.
Nos Estados Unidos, a revalorização inglesa do blues teve um efeito duplo:
por um lado, estimulou o aparecimento de jovens músicos brancos, vindos
principalmente do Sul do país — Johnny Winter, Paul Butterfield Blues
Band (onde Mike Bloomfield tocava), Allman Brothers, etc. —, com estilos
que são uma evolução do velho R & B negro; por outro lado, voltou a
prestigiar os antigos criadores do R & B, que vieram, assim, a conquistar
nos 60 o público branco que o rock’n’roll lhes havia roubado uma década
antes. Este processo deu novas direções às carreiras de artistas como
Muddy Waters, B. B. King, Howlin Wolf, John Lee Hooker, Albert King,
Freddie King, etc. — que começaram, inclusive, a se apresentar e a gravar
com jovens músicos brancos.
Foi, entretanto, um jovem negro, cuja formação musical havia sido
feita no R & B negro e cujo destino existencial se ligou profundamente à
expansão da consciência iniciada pelos jovens universitários brancos, quem
criou a grande síntese musical dos 60, elevando o rock às mais vertiginosas
alturas artísticas e abrindo de maneira decisiva os caminhos do futuro.
Em Jimi Hendrix se realizam as núpcias entre as duas forças primais
do rock: ele une a cultura negra, de raiz dionisíaca, à cultura branca, de
índole apolínea, realizando a fusão entre blues e rock’n’roll, entre o instinto
vital da origem africana e a sofisticação eletrônica criada pela tecnologia
branca. Quando Hendrix deixa Nova Iorque e voa para Londres, onde
organiza um trio — o Jimi Hendrix Experience — com dois jovens
ingleses, o baterista Mitch Mitchell e o baixista Noel Redding, ele
estabelece um poderoso ponto de confluência do blues da tradição negra
americana e o novo blues inglês, numa síntese superior entre o R & B, o
pop e a experiência da expansão da consciência. Anos após sua morte, o
alcance global de sua arte ainda não foi superado — ou mesmo sequer
igualado, embora hajam equivalentes de sua visão globalizante, na
Mahavishnu Orchestra, por exemplo. Ela só pode ser comparada ao de outra
grande morta, Janis Joplin, também cantora de blues; mas a arte de Joplin,
apenas uma vocalista, não tem a extensão da de Jimi, compositor, letrista,
cantor, guitarrista, arranjador e, principalmente, inspirador e profeta. Em
tudo, e não apenas como instrumentista, ele foi uma figura de exceção.
Janis nasceu no Texas mas esteve ligada ao rock de São Francisco,
cidade que, como a Liverpool inglesa, assistiu, de meados da década em
diante, a uma grande proliferação de grupos e tendências, desde o conjunto
com que primeiro ela trabalhou, o Big Brother and the Holding Company,
até o rock latino de Carlos Santana, com seus ritmos dançantes e sua
variada percussão. A tendência mais típica do rock de São Francisco,
porém, foi para o chamado acid rock, que procurara, através da criação de
espaços musicais amplos e abstratos, o emprego de estranhas sonoridades,
reproduzir aspectos auditivos, climas e sugestões emocionais da experiência
psicodélica. Os grupos mais famosos dessa audaciosa aventura do rock são
o Jefferson Airplane e o Grateful Dead, cujos membros ainda ficaram
conhecidos, fora dos palcos e estúdios, por seu pioneirismo existencial, na
procura de um novo estilo de vida. Os Dead eram, inclusive, o grupo de
rock dos célebres Merry Pranksters, grupo de hippies que, liderados pelo
escritor Ken Kesey, percorriam os Estados Unidos, em meados da década
de 60. Eles foram assim os principais divulgadores do ácido lisérgico e suas
alegadas virtudes terapêuticas, além de criadores de um estilo de rock
inspirado na experiência liberadora da droga. Seu líder, Jerry Garcia, é o
grande guru psicodélico da cena musical americana.
Na Inglaterra, o LSD também influenciou a criação musical, rompendo
barreiras e estruturas que haviam se petrificado e perdido a flexibilidade. O
acid rock inglês, ou head music, começa com o Pink Floyd, ainda sob o
comando de Syd Barret, e se apresenta mais experimental e instigante do
que o americano. Embora possamos apontar um predecessor importante em
Third Stone From The Sun, de Hendrix, é praticamente o Pink Floyd, com
seu importante LP duplo, Ummagumma, um marco histórico, que
estabelece os fundamentos da nova escola. Ela haveria de originar grupos
como o Yes, King Crimson, Moody Blues, Jethro Tull, etc., que são
crescentemente influenciados pela música erudita européia. O processo é
uma das primeiras tendências definidas da chamada terceira geração do
rock e acaba por desembocar na tentativa de uma fusão entre rock e música
clássica, que se apresenta como uma das direções dominantes dos anos 70.
IX
A grande lição que se tentou aprender, nos anos 60, foi a liberdade.
Verificou-se o seguinte: o que as pessoas fazem socialmente é pura loucura,
um escudo usado como proteção contra a verdadeira natureza da realidade,
espontânea e incontrolável. As instituições cristalizam essa proteção, para
que ela possa ser utilizada pelas massas. Mas não possui nenhum valor
substancial. Só pode haver conhecimento de verdade, clareza, quando os
escudos são dispensados. Um escudo é útil, como defesa, mas também
cobre a visão.
A experiência vital dos 60 foi distorcida, diluída e, finalmente,
esquecida nos anos seguintes. Os caminhos da liberdade foram perdidos
mais uma vez. O destino do rock é o exemplo típico. Nos 60, era um hino
libertário, um canto espontâneo, um gesto zen. Submetido à manipulação
das gravadoras multinacionais, foi, primeiro, distorcido, isto é, esvaziado de
sua inspiração libertária, substituído por uma mímica inofensiva que
caracteriza, ainda hoje, heavy metal, punks, etc. A conseqüência inevitável
foi a diluição crescente que acabou por reduzir o rock a mera e pífia música
comercial, boa apenas para enriquecer homens de negócios e enganar as
novas gerações, coitadas. Esse lance se desdobrou durante os 70,
completando-se cabalmente nos 80, de forma que o rock tem, hoje, todas as
bênçãos do sistema. Como disse Rita Lee, era oposição, e agora é governo.
Feito o PMDB, trocou os ideais de liberdade pelas vantagens concretas do
poder. Os revolucionários do rock foram incapazes de resistir às tentações
do vil metal. As leis do mercado se impuseram, sem grande resistência. O
mundo continua a ser tal qual era: capitalista.
A trajetória, no plano político, foi semelhante. As organizações, ou
melhor, as desorganizações políticas, criadas nos 60 e típicas da aspiração
libertária — como foram exemplos, nos Estados Unidos, o Youth
International Party (Partido Internacional da Juventude) e o White Panther
Party (Partido da Pantera Branca) — foram reprimidas com energia, para
dizer o mínimo, e acabaram sendo substituídas, nos anos 70, por
organizações políticas de tipo cada vez mais convencionai, cujo maior
exemplo é o Partido Verde.
O rompimento inicial com as instituições foi reformulado, por pressão
externa, no sentido de um novo compromisso com essas mesmas
instituições. O Partido Verde disputa eleições, cargos, um espaço no
Congresso, uma fatia do poder, ao lado do resto dos caretas. A possibilidade
de uma alternativa eficiente, que era a intenção nos 60, foi perdida.
O processo foi ainda semelhante no plano religioso, isto é, em relação
à busca de amadurecimento espiritual. Nos anos 60, chegou-se perto da
verdade básica de que a única religião que pode ser considerada autêntica é
aquela que cada um cria para si próprio. As instituições religiosas
desvirtuam o seu propósito original; as igrejas organizadas são a própria
negação do sentimento religioso vivo. A anarquia religiosa dos 60 parecia
indicar um belo florescimento da descoberta espiritual. Não tínhamos
religião, por isso o nosso espírito desabrochava; não tínhamos mestres, por
isso todos eram os nossos mestres, principalmente as crianças e os animais.
Nos anos 70, entretanto, o despertar espiritual foi sendo, cada vez
mais, canalizado para seitas organizadas e subordinado aos ensinamentos
dos mestres que as chefiavam. Em outras palavras: erguiam-se novas
instituições religiosas para substituir as antigas que haviam sido rejeitadas
nos anos anteriores,
Ainda aqui, principalmente aqui, o medo à liberdade, que parece
marcar o ser humano — pelo menos este que conhecemos —, manifestou-
se de maneira irresistível. Todos tremeram. Não parecemos ser capazes de
prosseguir na busca espiritual sem uma proteção paterna de alguma espécie.
O processo também se desenvolveu nos 70, para culminar em padrões
rígidos, nos 80. Multiplicaram-se as seitas e os gurus, em razão geométrica,
e o que resta hoje, do despertar espiritual, é a mímica externa. A
experiência vivida desapareceu.
Em qualquer nível, os três momentos do processo, relacionados
esquematicamente às décadas de 60, 70 e 80, aparecem, com nitidez, para o
observador. A cronologia não é rigorosa, mas serve como referência. Cada
década é um momento do processo.
Ezra Pound disse que há três tipos de artistas: os inventores, os mestres
e os diluidores. Algo semelhante pode ser dito em relação às três últimas
décadas.
Os 60 foram os anos da invenção, da criação original. É por isso, por
exemplo, que dizer vanguarda dos 70, ou 80, soa mal: a vanguarda é dos 60.
Ou, então, dos 20, que foi outro momento de invenção. Os valores
tradicionais são contestados e a liberdade espontânea conquistar seu espaço.
SL Os 70 foram os anos dos mestres, isto é, dos institucionalizadores.
As conquistas dos 60 são oficializadas e viram moda, abençoadas pelo
sistema. Todo mundo se droga; todo mundo curte rock; todo mundo é
místico; o mundo aparentemente mudou e a revolução venceu, isto é,
acabou. Esta aceitação enganosa permitiu a diluição, foi o golpe de mestre
do sistema no gesto libertário. O sucesso da manobra foi assegurado pela
sedução do ego das massas. Todo mundo descobriu a pólvora e, por isso,
não é à toa que os 70 foram chamados de “a década do ego”. Pretensão e
água-benta, cada um toma quanto quer. Tomou-se demais da primeira,
naqueles anos; toma-se demais, ainda hoje, por inércia.
Os anos 80 são os anos da diluição, em soluções cada vez mais
rarefeitas. O gesto libertário perdeu o sentido; a busca acabou; o caminho
está fechado. As instituições, velhas ou novas, mostram-se fortalecidas.
Voltamos ao que havia antes dos 60, só que pior. O egocentrismo é
absoluto; a liberdade desapareceu do horizonte. Não só a Igreja católica e o
Partido Comunista, mas todos os grupos humanos — associações,
irmandades, seitas — se comprazem em controlar seus membros, que
parecem até muito felizes com isso, sem exceção. O conformismo é normal;
a moda é ser careta. O indivíduo desaparece; nascem os robôs. A vitória do
sistema só não é total porque sua natureza é ilusória.
As condições parecem suficientes para a primeira aterrissagem pública
de uma nave-mãe.
:: F I M ::
capa: Caulos
revisão: Suely Bastos, Manfredo Rotermund,
Maria Clara Frantz e José Renato Deitos
ISBN —85-254-0143-9
CDD 301.2981
CDU 308(81) “196”
Impresso no Brasil
Outono de 1987
Table of Contents
I
1961 - O SUICÍDIO DO REBELDE
II
1963 - ARTE EMPENHADA
III
1964 - LUTA CONTRA A SUBVERSÃO
IV
1965 - LSD
V
1967 - RODA-VIVA
1968 - THE NEW LEFT
1968 - O PENSAMENTO DE DIREITA
VI
1968 - DUAS HISTORIAS
VII
1969 - YIPPIE!
1969 - CONTRACULTURA
1969 - RELIGIÃO
VIII
1970 - ROCK E EU
IX