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Introdução

"Consideramos estas verdades


autoevidentes"

Às vezes grandes textos su r g e m da reescrita sob pressão. No


seu p r i m e i r o r a s c u n h o da Declaração da I n d e p e n d ê n c i a , p r e p a -
r a d o e m m e a d o s d e j u n h o d e 1776, T h o m a s Jefferson escreveu:
" C o n s i d e r a m o s q u e estas verdades são sagradas e inegáveis: q u e
t o d o s os h o m e n s são c r i a d o s iguais & i n d e p e n d a n t e s [sic], q u e
dessa criação igual derivam direitos inerentes 8c inalienáveis, e n t r e
os quais estão a preservação da vida, a liberdade & a busca da feli-
cidade". Em g r a n d e p a r t e graças às suas p r ó p r i a s revisões, a frase
de Jefferson logo se livrou dos soluços para falar em t o n s mais cla-
ros, mais vibrantes: " C o n s i d e r a m o s estas verdades autoevidentes:
q u e t o d o s os h o m e n s são criados iguais, d o t a d o s pelo seu C r i a d o r
de certos Direitos inalienáveis, q u e entre estes estão a Vida, a Liber-
d a d e e a busca da Felicidade". C o m essa única frase, Jefferson t r a n s -
f o r m o u um típico d o c u m e n t o do século xvin sobre injustiças polí-
ticas n u m a p r o c l a m a ç ã o d u r a d o u r a dos direitos h u m a n o s . 1

Treze a n o s mais t a r d e , Jefferson estava em Paris q u a n d o os


franceses c o m e ç a r a m a pensar em redigir u m a declaração de seus
direitos. Em janeiro de 1 7 8 9 — v á r i o s meses antes da q u e d a da Bas-

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tilha —, o m a r q u ê s de Lafayette, amigo de Jefferson e veterano da klin e crítico frequente do governo inglês, t o r n o u - s e lírico a res-
G u e r r a d a I n d e p e n d ê n c i a a m e r i c a n a , de l i n e o u u m a declaração peito dos novos direitos do h o m e m . "Vivi p a r a ver os direitos dos
francesa, m u i t o provavelmente c o m a ajuda de Jefferson. Q u a n d o h o m e n s mais b e m compreendidos do que nunca, e nações
a Bastilha caiu, em 14 de julho, e a Revolução Francesa c o m e ç o u a n s i a n d o p o r liberdade q u e p a r e c i a m ter p e r d i d o a ideia do q u e
p a r a valer, a n e c e s s i d a d e de u m a d e c l a r a ç ã o oficial g a n h o u isso fosse." I n d i g n a d o c o m o e n t u s i a s m o i n g ê n u o de Price pelas
i m p u l s o . Apesar dos melhores esforços de Lafayette, o d o c u m e n t o "abstrações metafísicas" dos franceses, o famoso ensaísta E d m u n d
n ã o foi forjado p o r u m a única m ã o , c o m o Jefferson fizera p a r a o Burke, m e m b r o d o P a r l a m e n t o britânico, rabiscou u m a resposta
Congresso americano. Em 20 de agosto, a nova Assembleia Nacio- furiosa. O seu panfleto, Reflexões sobre a revolução em França
nal c o m e ç o u a discussão de 24 artigos r a s c u n h a d o s p o r um comitê (1790), foi logo reconhecido c o m o o texto fundador do conserva-
desajeitado de q u a r e n t a d e p u t a d o s . Depois de seis dias de debate d o r i s m o . " N ã o s o m o s o s c o n v e r t i d o s p o r Rousseau", t r o v e j o u
t u m u l t u a d o e infindáveis e m e n d a s , os d e p u t a d o s franceses só Burke. "Sabemos que n ã o fizemos n e n h u m a descoberta, e pensa-
t i n h a m a p r o v a d o dezessete artigos. Exaustos pela disputa p r o l o n - m o s q u e n e n h u m a descoberta deve ser feita, no tocante à m o ra l i -
gada e precisando tratar de outras questões p r e m e n t e s , os d e p u t a - d a d e . [...] N ã o fomos estripados e a m a r r a d o s p a r a q u e p u d é s s e -
dos v o t a r a m , em 27 de agosto de 1789, p o r suspender a discussão m o s ser p r e e n c h i d o s c o m o p á s s a r o s e m p a l h a d o s n u m m u s e u ,
do r a s c u n h o e a d o t a r p r o v i s o r i a m e n t e os a r t i g o s já a p r o v a d o s c o m farelos, trapos e pedaços miseráveis de papel b o r r a d o sobre os
c o m o a sua Declaração dos Direitos do H o m e m e do Cidadão. direitos do h o m e m . " Price e Burke h a v i a m c o n c o r d a d o s o b r e a
O d o c u m e n t o tão freneticamente a j a m b r a d o era espantoso Revolução Americana: os dois a a p o i a r a m . Mas a Revolução Fran-
na sua i m p e t u o s i d a d e e simplicidade. Sem m e n c i o n a r n e m u m a cesa a u m e n t o u bastante o valor da aposta, e as linhas de b a t a l h a
única vez rei, nobreza ou igreja, declarava q u e "os direitos naturais, logo se f o r m a r a m : era a a u r o r a de u m a n o v a era de l i b e r d a d e
inalienáveis e sagrados do h o m e m " são a fundação de t o d o e qual- b a s e a d a na razão ou o início de u m a q u e d a implacável r u m o à
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quer governo. Atribuía a soberania à nação, e n ã o ao rei, e declara- anarquia e à violência?
va q u e t o d o s são iguais p e r a n t e a lei, a b r i n d o p o s i ç õ e s p a r a o Por quase dois séculos, apesar da controvérsia provocada pela
talento e o m é r i t o e e l i m i n a n d o implicitamente t o d o o privilégio Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do H o m e m e do
baseado no nascimento. Mais extraordinária q u e qualquer garan- C i d a d ã o e n c a r n o u a p r o m e s s a de direitos h u m a n o s universais. Em
tia particular, entretanto, era a universalidade das afirmações fei- 1948, q u a n d o as Nações Unidas a d o t a r a m a Declaração Universal
a
tas. As referências a "homens", "homem", " t o d o h o m e m " , "todos os dos Direitos H u m a n o s , o artigo I dizia: "Todos os seres h u m a n o s
homens", "todos os cidadãos", "cada cidadão", "sociedade" e " t o d a n a s c e m livres e iguais em dignidade e direitos". Em 1789, o artigo
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sociedade" eclipsavam a única referência ao p o v o francês. l da Declaração dos Direitos do H o m e m e do C i d a d ã o já havia
C o m o resultado, a publicação da declaração galvanizou i m e - p r o c l a m a d o : "Os h o m e n s nascem e p e r m a n e c e m livres e iguais em
d i a t a m e n t e a opinião pública m u n d i a l sobre o t e m a dos direitos, direitos". E m b o r a as modificações na linguagem fossem significa-
t a n t o contra c o m o a favor. N u m sermão proferido em Londres em tivas, o eco entre os dois d o c u m e n t o s é inequívoco.
4 de n o v e m b r o de 1789, Richard Price, amigo de Benjamin Fran- As origens dos d o c u m e n t o s n ã o nos dizem necessariamente

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n a d a de significativo sobre as suas consequências. I m p o r t a real- ção. Os fundadores, os q u e e st r u t u r a r a m e os que redigiram as decla-
m e n t e q u e o esboço tosco de Jefferson tenha passado p o r 86 alte- rações t ê m sido julgados elitistas, racistas e misóginos p o r sua inca-
rações feitas p o r ele m e s m o , pelo C o m i t ê dos Cinco* ou pelo C o n - pacidade de considerar todos verdadeiramente iguais em direitos.
gresso? Jefferson e A d a m s c l a r a m e n t e p e n s a v a m q u e sim, p o i s N ã o d e v e m o s e s q u e c e r a s r e s t r i ç õ e s i m p o s t a s aos d i r e i t o s
a i n d a estavam d i s c u t i n d o sobre q u e m c o n t r i b u i u c o m o q u ê na pelos h o m e n s do século xvin, m a s p a r a r p o r aí, d a n d o p a l m a d i -
década de 1820, a última de suas longas e memoráveis vidas. Entre- n h a s nas costas pelo nosso p r ó p r i o "avanço" c o m p a r a t i v o , é n ã o
tanto, a Declaração da I n d e p e n d ê n c i a n ã o tinha natureza consti- c o m p r e e n d e r o principal. C o m o é que esses h o m e n s , vivendo em
tucional. Declarava simplesmente intenções, e passaram-se q u i n - sociedades construídas sobre a escravidão, a su b o r d i n a ç ã o e a s u b -
ze a n o s antes q u e os estados finalmente ratificassem u m a Bill of serviência a p a r e n t e m e n t e natural, c h e g a r a m a imaginar h o m e n s

Rights m u i t o diferente em 1791. A Declaração d o s Direitos do n a d a p a r e c i d o s c o m eles, e em alguns casos t a m b é m m u l h e r e s ,

H o m e m e do Cidadão afirmava salvaguardar as liberdades indivi- c o m o iguais? C o m o é q u e a igualdade de direitos se t o r n o u u m a

duais, m a s n ã o i m p e d i u o s u r g i m e n t o de um governo francês q u e verdade "autoevidente" em lugares tão improváveis? É espantoso


que h o m e n s c o m o Jefferson, um s e n h o r de escravos, e Lafayette,
r e p r i m i u os direitos (conhecido c o m o o Terror), e futuras consti-
um aristocrata, p u d e s s e m falar dessa forma dos direitos autoevi-
tuições francesas — h o u v e m u i t a s delas — f o r m u l a r a m declara-
dentes e inalienáveis de t o d o s os h o m e n s . Se p u d é s s e m o s c o m -
ções diferentes ou passaram sem n e n h u m a declaração.
p r e e n d e r c o m o isso veio a acontecer, c o m p r e e n d e r í a m o s m e l h o r o
A i n d a mais p e r t u r b a d o r é q u e aqueles q u e c o m t a n t a c o n -
que os direitos h u m a n o s significam para nós hoje em dia.
fiança declaravam no final do século xvin q u e os direitos são u n i -
versais vieram a d e m o n s t r a r que t i n h a m algo m u i t o m e n o s inclu-
sivo em m e n t e . N ã o ficamos surpresos p o r eles considerarem que
O PARADOXO DA A U T O E V I D Ê N C I A
as crianças, os i n s a n o s , os p r i s i o n e i r o s ou os e s t r a n g e i r o s e r a m
incapazes ou indignos de plena participação no processo político,
Apesar de suas diferenças de linguagem, as duas declarações
pois p e n s a m o s d a m e s m a m a n e i r a . M a s eles t a m b é m excluíam
do século xvm se baseavam n u m a afirmação de autoevidência. Jef-
aqueles sem propriedade, os escravos, os negros livres, em alguns
ferson d e i x o u isso explícito q u a n d o escreveu: " C o n s i d e r a m o s
casos as m i n o r i a s religiosas e, s e m p r e e p o r t o d a p a r t e , as m u l h e -
estas v e r d a d e s a u t o e v i d e n t e s " . A d e c l a r a ç ã o francesa afirmava
res. Em anos recentes, essas limitações a "todos os h o m e n s " p r o v o -
categoricamente q u e "a ignorância, a negligência ou o m e n o s p r e z o
caram m u i t o s comentários, e alguns estudiosos até q u e s t i o n a r a m
dos direitos do h o m e m são as únicas causas dos males públicos e
se as declarações t i n h a m um verdadeiro significado de e m a n c i p a - da c o r r u p ç ã o governamental". Pouca coisa t i n h a m u d a d o a esse
respeito em 1948. Verdade, a Declaração das Nações Unidas assu-
* O C o m m i t t e e of Five, f o r m a d o p o r T h o m a s Jefferson, J o h n A d a m s , B e n j a m i n
mia um t o m mais legalista: "Visto que o reconhecimento da digni-
F r a n k l i n , R o b e r t L i v i n g s t o n e R o g e r S h e r m a n , foi d e s i g n a d o p e l o C o n g r e s s o
a m e r i c a n o e m 1 1 d e j u n h o d e 1776 p a r a e s b o ç a r a D e c l a r a ç ã o d a I n d e p e n d ê n c i a
d a d e i n e r e n t e a t o d o s os m e m b r o s da família h u m a n a e de seus
americana. (N.T.) direitos iguais e inalienáveis é o f u n d a m e n t o da liberdade, da j u s -

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tiça e da p a z no m u n d o " . Mas isso t a m b é m constituía u m a afirma- tribuições? C o m o , então, explicamos a r e p e n t i n a cristalização das
ção de a u t o e v i d ê n c i a , p o r q u e "visto q u e " significa l i t e r a l m e n t e afirmações dos direitos h u m a n o s no final do século XVIII?
"sendo fato que". Em outras palavras, "visto q u e " é simplesmente Os direitos h u m a n o s r e q u e r e m três qualidades encadeadas:
um m o d o legalista de afirmar algo d e t e r m i n a d o , autoevidente. devem ser naturais (inerentes nos seres h u m a n o s ) , iguais (os m e s -
Essa afirmação de a u t o e v i d ê n c i a , crucial p a r a os direitos m o s p a r a t o d o m u n d o ) e universais (aplicáveis p o r t o d a p a r t e ) .
h u m a n o s m e s m o nos dias de hoje, dá origem a um paradoxo: se a Para q u e os direitos sejam direitos humanos, t o d o s os h u m a n o s em
igualdade dos direitos é tão autoevidente, p o r que essa afirmação todas as regiões do m u n d o devem possuí-los igualmente e apenas
t i n h a de ser feita e p o r que só era feita em t e m p o s e lugares específi- p o r causa de seu status c o m o seres h u m a n o s . Acabou sendo mais
cos? C o m o p o d e m os direitos h u m a n o s ser universais se n ã o são fácil aceitar a qualidade n a t u r a l dos direitos do que a sua igualdade
universalmente reconhecidos? Vamos nos contentar c o m a explica- ou universalidade. De muitas maneiras, ainda estamos apren-
ção, d a d a pelos redatores de 1948, de que " c o n co r d a m o s sobre os d e n d o a lidar c o m as implicações da d e m a n d a p o r igualdade e u n i -
direitos, desde q u e n i n g u é m nos p e r g u n t e p o r quê"? Os direitos versalidade de direitos. C o m q u e idade alguém t e m direito a u m a
p o d e m ser "autoevidentes" q u a n d o estudiosos discutem há mais de p l e n a p a r t i c i p a ç ã o política? Os i m i g r a n t e s — n ã o - c i d a d ã o s —
dois séculos sobre o que Jefferson queria dizer c o m a sua expressão? p a r t i c i p a m dos direitos ou n ã o , e de quais?
O debate continuará para sempre, p o r q u e Jefferson n u n c a sentiu a Entretanto, n e m o caráter natural, a igualdade e a universali-
necessidade de se explicar. N i n g u é m do C o m i t ê dos Cinco ou do dade são suficientes. Os direitos h u m a n o s só se t o r n a m significa-
C o n g r e s s o quis revisar a sua afirmação, m e s m o m o d i f i c a n d o tivos q u a n d o g a n h a m c o n t e ú d o político. N ã o são o s direitos d e
e x t e n s a m e n t e o u t r a s seções de sua versão preliminar. Aparente- h u m a n o s n u m estado de natureza: são os direitos de h u m a n o s em
m e n t e c o n c o r d a v a m c o m ele. Mais ainda, se Jefferson tivesse se s o c i e d a d e . N ã o são a p e n a s direitos h u m a n o s e m o p o s i ç ã o aos
explicado, a autoevidência da afirmação teria se eva porado. U m a direitos divinos, o u direitos h u m a n o s e m oposição aos direitos
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afirmação que requer discussão não é evidente p o r si m e s m a . animais: são os direitos de h u m a n o s vis-à-vis u n s aos outros. São,
Acredito q u e a afirmação de a u t o e v i d ê n c i a é crucial p a r a a p o r t a n t o , direitos garantidos n o m u n d o político secular ( m e s m o
história dos direitos h u m a n o s , e este livro busca explicar c o m o ela q u e sejam c h a m a d o s "sagrados"), e são direitos que r e q u e r e m u m a
veio a ser tão convincente no século XVIII. Felizmente, ela t a m b é m participação ativa daqueles que os d e t ê m .
propicia u m p o n t o focal n o q u e t e n d e a ser u m a história m u i t o A igualdade, a universalidade e o caráter natural dos direitos
difusa. Os direitos h u m a n o s t o r n a r a m - s e t ã o u b í q u o s na atuali- g a n h a r a m u m a expressão política d i r e t a pela p r i m e i r a vez n a
d a d e q u e p a r e c e m r e q u e r e r u m a h i s t ó r i a i g u a l m e n t e vasta. A s Declaração da I n d e p e n d ê n c i a a m e r i c a n a de 1776 e na Declaração
ideias gregas sobre a pessoa individual, as noções r o m a n a s de lei e dos Direitos do H o m e m e do Cidadão de 1789. E m b o r a se referisse
direito, as d o u t r i n a s cristãs da alma... O risco é q u e a história dos aos "antigos direitos e liberdades" estabelecidos pela lei inglesa e
direitos h u m a n o s se t o r n e a história da civilização ocidental ou derivados da história inglesa, a Bill ofRights inglesa de 1689 n ã o
agora, às vezes, até a história do m u n d o inteiro. A antiga Babilônia, declarava a igualdade, a universalidade ou o caráter n a t u r a l d o s
o h i n d u í s m o , o b u d i s m o e o islã t a m b é m n ã o d e r a m as suas con- direitos. Em contraste, a Declaração da I n d e p e n d ê n c i a insistia q u e

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"todos os h o m e n s são criados iguais" e que todos possuem"direitos das por tanto tempo contra os habitantes inofensivos da África, e
inalienáveis". Da m e s m a f o r m a , a Declaração dos Direitos do que a moralidade, a reputação e os melhores interesses do nosso país
H o m e m e do Cidadão proclamava que "Os h o m e n s nascem e per- desejam há muito proscrever.
m a n e c e m livres e iguais em direitos". N ã o os h o m e n s franceses, n ã o
os h o m e n s brancos, n ã o os católicos, mas "os homens", o que t a n t o Ao sustentar q u e os africanos gozavam de direitos h u m a n o s ,
naquela época c o m o agora não significa apenas machos, mas pes- Jefferson n ã o tirava n e n h u m a ilação sobre os escravos n e g r o s no
soas, isto é , m e m b r o s d a raça h u m a n a . E m o u t r a s palavras, e m país. Os direitos h u m a n o s , pela definição de Jefferson, n ã o capaci-
algum m o m e n t o entre 1689 e 1776 direitos que t i n h a m sido consi- tava os africanos — m u i t o m e n o s os afro-americanos — a agir em
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derados m u i t o frequentemente c o m o sendo de d e t e r m i n a d o povo seu p r ó p r i o n o m e .
— o s ingleses nascidos livres, p o r e x e m p l o — f o r a m transformados D u r a n t e o século x v n i , em inglês e em francês, os t e r m o s
em direitos h u m a n o s , direitos naturais universais, o que os france- "direitos h u m a n o s " , "direitos do gênero h u m a n o " e " d i r e i t o s da
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ses c h a m a v a m les droits de Vhomme, ou "os direitos do homem". h u m a n i d a d e " se m o s t r a r a m t o d o s d e m a s i a d o gerais p a r a servir ao
e m p r e g o político d i r e t o . Referiam-se antes ao q u e d i s t i n g u i a os
h u m a n o s do divino, n u m a p o n t a da escala, e dos a n imais, na o u -
OS DIREITOS HUMANOS E "OS DIREITOS DO H O M E M " tra, do q u e a direitos p o l i t i c a m e n t e relevantes c o m o a l i b e r d a d e de
expressão ou o direito de participar na política. Assim, n u m d o s
U m a breve incursão na história dos t e r m o s ajudará a fixar o e m p r e g o s m a i s a n t i g o s (1734) d e "direitos d a h u m a n i d a d e " e m
m o m e n t o d o s u r g i m e n t o d o s direitos h u m a n o s . A s pessoas d o francês, o acerbo crítico literário Nicolas Lenglet-Dufresnoy, ele
século x v n i n ã o u s a v a m f r e q u e n t e m e n t e a expressão "direitos p r ó p r i o um padre católico, satirizava "aqueles m o n g e s inimitáveis
h u m a n o s " e, q u a n d o o faziam, em geral q u e r i a m dizer algo dife- do século vi, que r e n u n c i a v a m tão inteiramente a todos 'os direitos
rente do significado que hoje lhe a t r i b u í m o s . Antes de 1789, Jeffer- da h u m a n i d a d e ' q u e p a s t a v a m c o m o animais e a n d a v a m p o r t o d a
son, p o r exemplo, falava c o m m u i t a frequência de "direitos n a t u - p a r t e c o m p l e t a m e n t e nus". D a m e s m a forma, e m 1756, Voltaire
rais". C o m e ç o u a u s a r o t e r m o "direitos do h o m e m " s o m e n t e p o d i a p r o c l a m a r c o m i r o n i a que a Pérsia era a m o n a r q u i a em q u e
depois d e 1789. Q u a n d o e m p r e g a v a "direitos h u m a n o s " , q u e r i a mais desfrutava dos "direitos da h u m a n i d a d e " , p o r q u e os persas
dizer algo mais passivo e m e n o s político do q u e os direitos naturais t i n h a m os m a i o r e s " r e c u r s o s c o n t r a o tédio". O t e r m o " d i r e i t o
ou os direitos do h o m e m . Em 1806, p o r exemplo, u s o u o t e r m o ao h u m a n o " apareceu em francês pela p r i m e i r a vez em 1763 signifi-
se referir aos males do tráfico de escravos: c a n d o algo semelhante a "direito natural", m a s n ã o p e g o u , apesar
de ser u s a d o p o r Voltaire no seu a m p l a m e n t e influente Tratado

Eu lhes felicito, colegas cidadãos, por estar próximo o período em sobre a tolerância!'

que poderão interpor constitucionalmente a sua autoridade para E n q u a n t o os ingleses c o n t i n u a r a m a preferir "direitos n a t u -
afastar os cidadãos dos Estados Unidos de toda participação ulte- rais" ou s i m p l e s m e n t e " d i r e i t o s " d u r a n t e t o d o o século x v n i , os
rior naquelas violações dos direitos humanos que têm sido reitera- franceses i n v e n t a r a m u m a n o v a expressão na década de 1760 —

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"direitos do h o m e m " {droits de l'homme). "O(s) direito(s) n a t u - Antes de 1789, "direitos do h o m e m " t i n h a p o u c a s incursões
ral(is)" ou "a lei n a t u r a l " (droit naturel t e m a m b o s os significados no inglês. Mas a Revolução Americana incitou o m a r q u ê s de C o n -
em francês) t i n h a m histórias mais longas q u e recuavam centenas dorcet, defensor do I l u m i n i s m o francês, a d a r o p r i m e i r o passo
de a n o s no passado, m a s talvez c o m o consequência"o(s) direito(s) para definir "os direitos do ho mem", que p a r a ele incluíam a segu-
n a t u r a l ( i s ) " t i n h a um n ú m e r o exagerado de possíveis significados. rança da pessoa, a segurança da p r o p r i e d a d e , a justiça imparcial e
Às vezes significava simplesmente fazer sentido d e n t r o da o r d e m idônea e o direito de c o n t r i b u i r para a formulação das leis. No seu
tradicional. Assim, p o r exemplo, o bispo Bossuet, um porta-voz a ensaio de 1786, " D e l'influence de la r é v o l u t i o n d ' A m é r i q u e sur
favor da m o n a r q u i a absoluta de Luís xiv, u s o u "direito n a t u r a l " l'Europe", C o n d o r c e t ligava explicitamente os direitos do h o m e m
s o m e n t e ao descrever a e n t r a d a de Jesus Cristo no céu ("ele e n t r o u à Revolução Americana: "O espetáculo de um g r an d e povo em q u e
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no céu pelo seu p r ó p r i o direito n a t u r a l " ) . os direitos do h o m e m são respeitados é útil p a r a to d o s os o u t r o s ,
O t e r m o "direitos do h o m e m " c o m e ç o u a circular em francês apesar da diferença de clima, costumes e constituições". A Declara-
depois de sua aparição em O contrato social (1762), de Jean-Jac- ção da Independência americana, ele proclamava, era nada m e n o s
ques Rousseau, ainda q u e ele n ã o desse ao t e r m o n e n h u m a defini- q u e " u m a exposição simples e sublime desses direitos q u e são, ao
ção e ainda q u e — ou talvez p o r q u e — o usasse ao lado de "direi- m e s m o t e m p o , t ã o s a g r a d o s e h á t a n t o t e m p o esquecidos". E m
tos da humanidade","direitos do cidadão"e"direitos da soberania". janeiro de 1789, E m m a n u e l - J o s e p h Sieyès u s o u a expressão no seu
Q u a l q u e r que fosse a razão, p o r volta de j u n h o de 1763, "direitos incendiário panfleto c o n t r a a nobreza, O que é o Terceiro Estado?.
do h o m e m " tinha se tornado um termo c o m u m , segundo u m a O r a s c u n h o de u m a declaração dos direitos, feito p o r Lafayette em
revista clandestina: janeiro de 1789, referia-se explicitamente aos "direitos do homem",
referência t a m b é m feita p o r C o n d o r c e t no seu p r ó p r i o r a s c u n h o
Os atores da Comédie française representaram hoje, pela primeira do início de 1789. D e s d e a p r i m a v e r a de 1789 — isto é, m e s m o
vez, Manco [uma peça sobre os incas no Peru ], de que falamos antes. antes da q u e d a da Bastilha em 14 de j u l h o — m u i t o s debates sobre
É uma das piores tragédias já construídas. Há nela um papel para um a necessidade de u m a declaração dos "direitos do h o m e m " p e r -
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selvagem que poderia ser muito belo: ele recita cm verso tudo o que m e a v a m os círculos políticos franceses.
temos lido espalhado sobre reis, liberdade e os direitos do homem, Q u a n d o a l i n g u a g e m d o s dire i t o s h u m a n o s a p a r e c e u , n a
em A desigualdade de condições, em Emílio, em O contrato social. s e g u n d a m e t a d e do século xvin, havia a princípio p o u c a definição
explícita desses direitos. Rousseau n ã o ofereceu n e n h u m a explica-
E m b o r a a peça n ã o e m p r e g u e de fato a expressão precisa "os direi- ção q u a n d o u s o u o t e r m o "direitos do h o m e m " . O jurista inglês
tos do homem", m a s antes a relacionada "direitos de nosso ser", é William Blackstone os definiu c o m o "a liberdade natural da h u m a -
claro que o t e r m o havia e n t r a d o no uso intelectual e estava de fato nidade", isto é, os "direitos a b s o l u t o s do h o m e m , c o n s i d e r a d o
diretamente associado c o m as obras de Rousseau. O u t r o s escrito- c o m o um agente livre, d o t a d o de discernimento para distinguir o
res do I l u m i n i s m o , c o m o o b a r ã o D ' H o l b a c h , Raynal e Mercier, b e m do mal". A m a i ori a daqueles que usavam a expressão nas déca-
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a d o t a r a m a expressão nas décadas de 1770 e 1780. das de 1770 e 1780 na França, c o m o D ' H o l b a c h e Mirabeau, figu-

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ras controversas do I l u m i n i s m o , referia-se aos direitos do h o m e m se ressoa d e n t r o de cada indivíduo. Além disso, t e m o s m u i t a cer-
c o m o se fossem óbvios e não necessitassem de n e n h u m a justificação leza de q u e um direito h u m a n o está em questão q u a n d o nos senti-
ou definição; eram, em outras palavras, autoevidentes. D ' H o l b a c h mos h o r r o r i z a d o s pela sua violação. R a b a u t Saint-Étienne sabia
argumentava, p o r exemplo, que se os h o m e n s temessem m e n o s a (|ue p o d i a apelar ao c o n h e c i m e n t o implícito do q u e n ã o era "mais
m o r t e "os direitos do h o m e m seriam defendidos c o m mais ousa- aceitável". Em 1755, o influente escritor do I l u m i n i s m o francês
dia". M i r a b e a u denunciava os seus perseguidores, q u e n ã o t i n h a m I )enis Diderot t i n h a escrito, a respeito do droit naturel, q u e "o uso
" n e m caráter n e m alma, p o r q u e n ã o t ê m a b s o l ut a m e n t e n e n h u m a desse t e r m o é t ã o familiar q u e quase n i n g u é m deixaria de ficar
ideia d o s direitos dos h o m e n s " . N i n g u é m a p r e s e n t o u u m a lista convencido, no interior de si m e s m o , de q u e a n o ç ã o lhe é obvia-
precisa desses direitos a n t e s de 1776 (a d a t a da D e c l a r a ç ã o de mente conhecida. Esse s e n t i m e n t o interior é c o m u m t a n t o p a r a o
1 lilósofo q u a n t o p a r a o h o m e m q u e a b s o l u t a m e n t e n ã o refletiu".
Direitos da Virgínia redigida p o r George Mason). "
A a m b i g u i d a d e dos direitos h u m a n o s foi percebida pelo pas- ( ] o m o o u t r o s de seu t e m p o , Diderot dava apenas u m a indicação

tor calvinista jean-Paul Rabaut Saint-Étienne, q u e escreveu ao rei vaga do significado de direitos naturais: " c o m o homem", concluía,

francês em 1787 para se queixar das limitações de um projeto de "não t e n h o o u t r o s direitos n a t u r a i s q u e sejam v e r d a d e i r a m e n t e

edito de tolerância p a r a protestantes c o m o ele p r ó p r i o . E n c o r a - inalienáveis a n ã o ser aqueles da h u m a n i d a d e " . Mas ele tocara na

jado pelo s e n t i m e n t o crescente em favor dos direitos do h o m e m , qualidade mais i m p o r t a n t e dos direitos h u m a n o s : eles r e q u e r i a m
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R a b a u t insistiu: " s a b e m o s hoje o q u e são os direitos n a t u r a i s , e certo "sentimento interior" a m p l a m e n t e p a rt i l h a d o .

eles certamente d ã o aos h o m e n s m u i t o mais do q u e o edito con- Até Jean-Jacques Burlamaqui, o austero filósofo suíço da lei
cede aos protestantes. [...] C h e g o u a h o r a em q u e n ã o é mais acei- natural, insistia que a liberdade só podia ser ex p e r i m e n t a d a pelos
tável q u e u m a lei invalide a b e r t a m e n t e os direitos da h u m a n i d a d e , s e n t i m e n t o s i n t e r i o r e s d e c a d a h o m e m : "Tais p r o v a s d e s e n t i -
que são m u i t o b e m conhecidos em t o d o o m u n d o " . Talvez eles fos- m e n t o estão acima de t o d a objeção e p r o d u z e m a convicção m a i s
sem b e m conhecidos, m a s o p r ó p r i o R a b a u t a dm i t i a q u e u m rei p r o f u n d a m e n t e arraigada". Os direitos h u m a n o s n ã o são apenas
católico n ã o p o d i a sancionar oficialmente o direito calvinista ao nina d o u t r i n a formulada e m d o c u m e n t o s : baseiam-se n u m a dis-
culto público. E m suma, t u d o d e p e n d i a — c o m o ainda d e p e n d e — posição em relação às o u t r a s pessoas, um c onj unt o de convicções
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da interpretação dada ao q u e n ã o era "mais aceitável". sobre c o m o são as pessoas e c o m o elas d i s t i n g u e m o c e r t o e o
e i r a d o no m u n d o secular. As ideias filosóficas, as tradições legais e
.1 política revolucionária precisaram ter esse tipo de p o n t o de refe-
iciicia e m o c i o n a l interior p a r a que os direitos h u m a n o s fossem
COMO OS DIREITOS SE TORNARAM AUTOEVIDENTES
verdadeiramente "autoevidentes". E, c o m o insistia Diderot, esses
M i i i i m e n t o s t i n h a m d e ser e x p e r i m e n t a d o s p o r m u i t a s pessoas,
Os direitos h u m a n o s são difíceis de d e t e r m i n a r p o r q u e sua
Bio s o m e n t e pelos filósofos q u e escreviam sobre eles."
definição, e na verdade a sua p r ó p r i a existência, d e p e n d e t a n t o das
e m o ç õ e s q u a n t o da r a z ã o . A r e i v i n d i c a ç ã o de a u t o e v i d ê n c i a se O que sustentava essas noções de liberdade e direitos era um
baseia em última análise n u m apelo emocional: ela é convincente • onjunto de pressuposições sobre a a u t o n o m i a individual. Para

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ter direitos h u m a n o s , as pessoas d e v i a m ser vistas c o m o indiví- ( c n d o , a b a n d o n a n d o o serviço, a d q u i r i n d o u m a p r o p r i e d a d e ou
d u o s separados q u e e r a m capaz.es de exercer um julgamento m o r a l 1 o i n p r a n d o a sua liberdade. Apenas as m u l h e r e s n ã o pareciam ter
i n d e p e n d e n t e ; c o m o dizia Blackstone, o s direitos d o h o m e m n e n h u m a dessas o p ç õ e s : e r a m definidas c o m o i n e r e n t e m e n t e
a c o m p a n h a v a m o indivíduo "considerado c o m o um agente livre, 1 lependentes de seus pais ou m a r i d o s . Se os p r o p o n e n t e s dos direi-
d o t a d o de discernimento para distinguir o b e m do mal". Mas, p a r a tos h u m a n o s n a t u r a i s , iguais e universais excluíam a u t o m a t i c a -
q u e se t o r n a s s e m m e m b r o s de u m a c o m u n i d a d e política baseada mente algumas categorias de pessoas do exercício desses direitos,
n a q u e l e s j u l g a m e n t o s m o r a i s i n d e p e n d e n t e s , esses i n d i v í d u o s era p r i m a r i a m e n t e p o r q u e v i a m essas pessoas c o m o m e n o s do q u e
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a u t ô n o m o s t i n h a m de ser capazes de sentir empatia pelos o u t r o s . plenamente capazes de a u t o n o m i a m o r a l .
T o d o m u n d o teria direitos s o m e n t e s e t o d o m u n d o pudesse ser Entretanto, o p o d e r recém-descoberto da empatia podia fun-
visto, de um m o d o essencial, c o m o semelhante. A igualdade n ã o cionar até c o n t r a os preconceitos mais d u r a d o u r o s . Em 1791, o
era apenas u m conceito abstrato o u u m slogan político. T i n h a d e g o v e r n o r e v o l u c i o n á r i o francês c o n c e d e u d i r e i t o s iguais aos
ser internalizada de alguma forma. judeus; em 1792, até os h o m e n s sem p r o p r i e d a d e foram e m a n c i -
E m b o r a c o n s i d e r e m o s n a t u r a i s as ideias de a u t o n o m i a e pados; e em 1794, o governo francês aboliu oficialmente a escravi-
i g u a l d a d e , j u n t o c o m o s direitos h u m a n o s , elas s ó g a n h a r a m dão. N e m a a u t o n o m i a n e m a e m p a t i a e s t a v a m d e t e r m i n a d a s :
influência no século XVIII. O filósofo m o r a l c o n t e m p o r â n e o J. B. e r a m habilidades q u e p o d i a m ser aprendidas, e as limitações "acei-
Schneewind investigou o q u e ele c h a m a de "a invenção da a u t o n o - táveis" d o s direitos p o d i a m ser — e f o r a m — q u e s t i o n a d a s . Os
mia". "A nova perspectiva q u e surgiu no fim do século XVIII", afirma direitos n ã o p o d e m ser definidos de u m a vez p o r todas, p o r q u e a
ele, "centrava-se na crença de q u e t o d o s os indivíduos n o r m a i s são sua base e m o c i o n a l c o n t i n u a a se deslocar, em p a r t e c o m o reação
igualmente capazes de viver j u n t o s n u m a m o r a l i d a d e de a u t o c o n - Is declarações de direitos. Os direitos p e r m a n e c e m sujeitos a dis-
trole." Por trás desses " i n d i v í d u o s n o r m a i s " existe u m a longa his- cussão p o r q u e a nossa percepção de q u e m t e m direitos e do q u e são
tória de luta. No século XVIII (e de fato até o presente) n ã o se imagi- (".ses direitos m u d a c o n s t a n t e m e n t e . A r e v o l u ç ã o dos d i re i t o s
n a v a m todas as "pessoas" c o m o igualmente capazes de a u t o n o m i a 1111 m a n o s é, p o r definição, contínua.
m o r a l . D u a s qualidades relacionadas m a s distintas estavam impli- A a u t o n o m i a e a e m p a t i a são práticas culturais e não apenas
cadas: a capacidade de raciocinar e a i n d e p e n d ê n c i a de decidir p o r ideias, e p o r t a n t o são i n c o r p o r a d a s de forma bastante literal, isto
si m e s m o . A m b a s t i n h a m de estar presentes p a r a q u e um indiví- r, têm d i m e n s õ e s t a n t o físicas c o m o e m o c i o n a i s . A a u t o n o m i a
d u o fosse m o r a l m e n t e a u t ô n o m o . Às crianças e aos insanos faltava n i i l i v i d u a l d e p e n d e d e u m a percepção crescente da separação e do
a necessária capacidade de raciocinar, m a s eles p o d e r i a m a l g u m (Ifáter sagrado dos c o r p o s h u m a n o s : o seu c o r p o é seu, e o m e u
dia ganhar ou recuperar essa capacidade. Assim c o m o as crianças, iOrpo é m e u , e devemos a m b o s respeitar as fronteiras entre os cor-
os escravos, os c r i a d o s , os s e m p r o p r i e d a d e e as m u l h e r e s n ã o pos um do o u t r o . A e m p a t i a d e p e n d e do r e c o n h e c i m e n t o de q u e
t i n h a m a i n d e p e n d ê n c i a de status r e q u e r i d a p a r a s e r e m p l e n a - I tutros s e n t e m e p e n s a m c o m o fazemos, de que nossos sentimen-
m e n t e a u t ô n o m o s . As crianças, os criados, os sem p r o p r i e d a d e e i " . interiores são s e m e l h a n t e s d e u m m o d o essencial. P a r a ser
talvez até os escravos p o d e r i a m um dia t o r n a r - s e a u t ô n o m o s , cres- l U t ô n o m a , u m a p e s s o a t e m d e estar l e g i t i m a m e n t e s e p a r a d a e

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p r o t e g i d a na sua separação; mas, para fazer c o m q u e os direitos i < > rnais proliferaram, t o r n a n d o as histórias das vidas c o m u n s aces-
a c o m p a n h e m essa separação corporal, a individualidade de u m a síveis a um a m p l o público. A t o r t u r a c o m o p a r t e do processo j u d i -
pessoa deve ser apreciada de forma mais e m o c i o n a l . Os direitos cial e as formas mais extremas de p u n i ç ã o c o r p o r a l c o m e ç a r a m a
h u m a n o s d e p e n d e m tanto do d o m í n i o de si m e s m o c o m o do reco- ser vistas c o m o inaceitáveis. Todas essas m u d a n ç a s c o n t r i b u í r a m
n h e c i m e n t o de q u e t o d o s os o u t r o s são igu almente senhores de si. para u m a percepção da separação e do a u t o c o n t r o l e dos c o r p o s
É o d e s e n v o l v i m e n t o i n c o m p l e t o dessa úl t i m a c o n d i ç ã o q u e dá individuais, j u n t o c o m a possibilidade de e m p a t i a c o m outros.
origem a todas as desigualdades de direitos que nos têm preocu- As noções de integridade corporal e individualidade empática,
p a d o ao longo de toda a história. investigadas nos p r ó x i m o s capítulos, t ê m histórias não desseme-
A a u t o n o m i a e a empatia n ã o se materializaram a partir do ar lhantes da dos direitos h u m a n o s , aos quais estão intimamente rela-
rarefeito do século xvni: elas t i n h a m raízes profundas. D u r a n t e o cionadas. Isto é, as m u d a n ç a s nos p o n t o s de vista parecem acontecer
longo p e r í o d o de vários séculos, os indivíduos t i n h a m c o m e ç a d o todas ao m e s m o t e m p o , em m e a d o s do século xvni. Considere-se,
a se afastar das teias da c o m u n i d a d e , t o r n a n d o - s e agentes cada vez por exemplo, a tortura. Entre 1700 e 1750, a maioria dos empregos
m a i s i n d e p e n d e n t e s t a n t o legal c o m o p s i c o l o g i c a m e n t e . U m da palavra " t o r t u r a " em francês se referia às dificuldades q u e um
m a i o r respeito pela integridade corporal e linhas de demarcação escritor experimentava para e n c o n t r a r u m a expressão apropriada.
mais claras entre os c o r p o s individuais h a v i a m sido p r o d u z i d o s Assim, Marivaux em 1724 se referia a " t o r t u r a r a m e n t e para extrair
pelo limiar cada vez mais elevado da vergonha a respeito das fun- reflexões". A t o r t u r a , isto é, a t o r t u r a legalmente autorizada p a r a
ções corporais e pelo senso crescente de decoro corporal. C o m o obter confissões de culpa ou n o m e s de cúmplices, tornou-se u m a
t e m p o , as pessoas c o m e ç a r a m a d o r m i r sozinhas ou apenas c o m questão de g r a n d e i m p o r t â n c i a depois q u e Montesquieu atacou a
um cônjuge na cama. Usavam utensílios para c o m e r e c o m e ç a r a m prática no seu Espírito das leis (1748). N u m a das suas passagens mais
a c o n s i d e r a r repulsivo um c o m p o r t a m e n t o a n t e s t ã o aceitável, influentes, Montesquieu insiste q u e "Tantas pessoas inteligentes e
c o m o jogar c o m i d a n o c h ã o o u l i m p a r excreções c o r p o r a i s nas tantos h o m e n s de gênio escreveram c o n t r a esta prática [a t o r t u r a
roupas. A constante evolução de noções de interioridade e profun- judicial] q u e n ã o o u s o falar d e p o i s deles". Acrescenta então, um
didade da psique, desde a alma cristã à consciência protestante e às tanto enigmaticamente: "Eu ia dizer q u e talvez ela fosse apropriada
noções de sensibilidade do século xvni, p r e e n c h i a a individuali- para o governo despótico, no qual t u d o q u e inspira m e d o contribui
d a d e c o m u m n o v o c o n t e ú d o . Todos esses processos o c o r r e r a m para o vigor do governo; ia dizer q u e os escravos entre os gregos e os
d u r a n t e u m longo período. romanos... Mas escuto a voz da natureza gritando contra mim". Aqui
t a m b é m a a u t o e v i d ê n c i a — " a voz da natureza g r i t a n d o " — f o r n e c e
Mas houve um avanço repentino no desenvolvimento dessas
o f u n d a m e n t o para o a r g u m e n t o . D e p o i s de Montesquieu, Voltaire
práticas na segunda m e t a d e do século xvni. A a u t o r i d a d e absoluta
e m u i t o s outros, especialmente o italiano Beccaria, se j u n t a r i a m à
dos pais sobre os filhos foi questionada. O público c o m e ç o u a ver
c a m p a n h a . Na década de 1780, a abolição da tortura e das formas
os espetáculos teatrais ou a escutar música em silêncio. Os retratos
bárbaras de punição corporal t i n h a m se t o r n a d o artigos essenciais
e as p i n t u r a s de gênero desafiaram o p r e d o m í n i o das grandes telas
15
na nova d o u t r i n a dos direitos h u m a n o s .
mitológicas e históricas da p i n t u r a acadêmica. Os r o m a n c e s e os

28 29
As m u d a n ç a s nas reações aos corpos e individualidades das 111 i v a s sensações a respeito d o eu interior. Cada u m à sua m a n e i r a
o u t r a s pessoas f o r n e c e r a m um s u p o r t e crítico para o n o v o funda- reforçava a n o ç ã o d e u m a c o m u n i d a d e b a s e a d a e m i n d i v í d u o s
m e n t o secular d a a u t o r i d a d e política. E m b o r a Jefferson escre- . m l ô n o m o s e empáticos, q u e p o d i a m se relacionar, p a r a além de
vesse q u e o "seu C r i a d o r " t i n h a d o t a d o os h o m e n s de direitos, o Ni ias famílias imediatas, associações religiosas ou até nações, c o m
17

p a p e l do C r i a d o r t e r m i n a v a ali. O g o v e r n o já n ã o d e p e n d i a de valores universais maiores.


D e u s , m u i t o m e n o s d a i n t e r p r e t a ç ã o d a v o n t a d e d e D e u s apresen- N ã o h á n e n h u m m o d o fácil o u ó b v i o d e p r o v a r o u m e s m o
t a d a p o r u m a igreja. " G o v e r n o s são instituídos entre os homens", medir o efeito das novas experiências culturais sobre as pessoas do
disse Jefferson,"para assegurar esses Direitos", e eles derivam o seu século xviii, m u i t o m e n o s sobre as suas concepções dos direitos. Os
p o d e r "do C o n s e n t i m e n t o dos Governados". Da m e s m a forma, a i s l udos científicos das reações atuais à leitura e ao ato de ver tele-
D e c l a r a ç ã o francesa de 1789 m a n t i n h a q u e o "objetivo de t o d a \ is.io revelaram-se bastante difíceis, e eles t ê m a v a n t a g e m de exa-
associação política é a preservação dos direitos n a t u r a i s e i m p r e s - miiiar sujeitos vivos q u e p o d e m ser expostos a estratégias de pes-
critíveis do h o m e m " e q u e o "princípio de t o d a soberania reside quisa s e m p r e m u t á v e i s . A i n d a assim, os n e u r o c i e n t i s t a s e os
essencialmente na nação". A a u t o r i d a d e política, nessa visão, deri- psicólogos cognitivos t ê m feito algum progresso em ligar a b i o l o -
vava da natureza mais interior dos indivíduos e da sua capacidade gia do cérebro a resultados psicológicos e no fim das contas até
de criar a c o m u n i d a d e p o r m e i o do c o n s e n t i m e n t o . Os cientistas lociais e culturais. M o s t r a r a m , p o r exemplo, que a capacidade de
p o l í t i c o s e os h i s t o r i a d o r e s t ê m e x a m i n a d o essa c o n c e p ç ã o da 1 onstruir narrativas é baseada na biologia do cérebro, sendo cru-
a u t o r i d a d e política a p a r t i r de ân g u l o s v a r i a d o s , m a s t ê m p r e s - cial para o desenvolvimento de qualquer n o ç ã o do eu. Certos tipos
t a d o p o u c a atenção à visão dos corpos e das individualidades q u e ilc lesões cerebrais a f e t a m a c o m p r e e n s ã o n a r r a t i v a , e d o e n ç a s
16
a t o r n o u possível. 1 o r n o o a u t i s m o m o s t r a m q u e a capacidade de empatia — o reco-
uliecimento de q u e os o u t r o s t ê m m e n t e s c o m o a nossa — t e m
M e u a r g u m e n t o fará g r a n d e uso da influência de novos tipos
m na base biológica. Na sua m a i o r parte, entretanto, esses estudos
de experiência, desde ver imagens em exposições públicas até ler
•.o e x a m i n a m um l a d o da e q u a ç ã o : o b i o l ó g i c o . M e s m o q u e a
r o m a n c e s epistolares i m e n s a m e n t e p o p u l a r e s sobre o a m o r e o
maioria dos psiquiatras e até alguns neurocientistas c o n c o r d e m
casamento. Essas experiências ajudaram a difundir as práticas da
| U e o p r ó p r i o cérebro é influenciado p o r forças sociais e culturais,
a u t o n o m i a e da empatia. O cientista político Benedict A n d e r s o n
essa interação t e m sido mais difícil de estudar. Na verdade, o p r ó -
a r g u m e n t a que os jornais e os r o m a n c e s c r i a r a m a " c o m u n i d a d e
11] i< > eu t e m se m o s t r a d o m u i t o difícil de examinar. Sabemos q u e
imaginada" que o nacionalismo requer p a r a florescer. O q u e p o d e -
l ei 1 í o s a experiência de ter um eu, mas os neurocientistas não con-
ria ser d e n o m i n a d o "empatia imaginada" antes serve c o m o funda-
'.eguiram d e t e r m i n a r o local dessa experiência, m u i t o m e n o s
m e n t o dos direitos h u m a n o s q u e do na c i o n a l i s m o . É i m a g i n a d a
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• plicar c o m o ela funciona.
não no sentido de inventada, mas no sentido de que a empatia
requer um salto de fé, de imaginar que alguma o u t r a pessoa é c o m o Se a n e u r o c i ê n c i a , a p s i q u i a t r i a e a psicologia a i n d a estão
você. Os relatos de t o r t u r a p r o d u z i a m essa e m p a t i a i m a g i n a d a p o r n u e i las sobre a n a t u r e z a d o eu, e n t ã o talvez n ã o seja s u r p r e e n -
m e i o de novas visões da dor. Os r o m a n c e s a geravam i n d u z i n d o 1 lente que os historiadores t e n h a m se m a n t i d o totalmente afasta-

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dos do assunto. A m a i ori a dos historiadores provavelmente acre- sociais. A atenção t e m se voltado para o contexto social e cultural,
dita q u e o eu é, em alguma m e d i d a , m o d e l a d o p o r fatores sociais e e n ã o p a r a o m o d o c o m o as m e n t e s individuais c o m p r e e n d e m e
culturais, isto é, q u e a individualidade no século x significava algo r e m o d e l a m esse contexto. Acredito que a m u d a n ç a social e política
diferente do q u e significa p a r a n ó s hoje em dia. Mas p o u c o se sabe — nesse caso, os direitos h u m a n o s — ocorre p o r q u e m u i t o s indi-
sobre a história da pessoa c o m o um conjunto de experiências. Os víduos tiveram experiências semelhantes, n ã o p o r q u e todos h a b i -
estudiosos t ê m escrito bastante sobre o s u r g i m e n t o do individua- tassem o m e s m o c o n t e x t o social, m a s p o r q u e , p o r m e i o de suas
lismo e da a u t o n o m i a c o m o d o u t r i n a s , p o r é m m u i t o m e n o s sobre i nterações entre si e c o m suas leituras e visões, eles realmente cria-
c o m o o p r ó p r i o eu poderia m u d a r ao longo do t e m p o . C o n c o r d o ram um novo contexto social. Em suma, estou insistindo que qual-
c o m o u t r o s historiadores q u e o significado do eu m u d a ao longo quer relato de m u d a n ç a histórica deve no fim das contas explicar a
do t e m p o , e acredito que a experiência — e n ã o apenas a ideia — alteração das m e n t e s individuais. Para q u e os direitos h u m a n o s se
da individualidade m u d a de forma decisiva p a r a algumas pessoas (ornassem autoevidentes, as pessoas c o m u n s precisaram ter novas
no século xviii. compreensões que nasceram de novos tipos de sentimentos.
M e u a r g u m e n t o d e p e n d e da n o ç ã o de q u e ler relatos de tor-
t u r a ou r o m a n c e s epistolares teve efeitos físicos q u e se t r a d u z i r a m
em m u d a n ç a s cerebrais e t o r n a r a m a sair do cérebro c o m o novos
conceitos sobre a organização da vida social e política. Os novos
tipos de leitura (e de visão e audição) c r i a r a m novas experiências
individuais (empatia), q u e p o r sua vez t o r n a r a m possíveis novos
conceitos sociais e políticos (os direitos h u m a n o s ) . Nestas páginas
tento d e s e m a r a n h a r c o m o esse processo se realizou. C o m o a his-
tória, m i n h a disciplina, t e m d e s d e n h a d o p o r t a n t o t e m p o q u a l -
quer forma de a r g u m e n t o psicológico — nós historiadores fala-
m o s frequentemente de r e d u c i o n i s m o psicológico, m a s n u n c a de
r e d u c i o n i s m o sociológico o u c u l t u r a l — , ela t e m o m i t i d o e m
g r a n d e p a r t e a possibilidade de um a r g u m e n t o q u e d e p e n d e de um
relato sobre o que acontece d e n t r o do eu.
Estou t e n t a n d o voltar de novo a atenção p a r a o que acontece
d e n t r o das m e n t e s i n d i v i d u a i s . Esse p o d e r i a p a r e c e r u m l u g a r
óbvio para p r o c u r a r u m a explicação das m u d a n ç a s sociais e polí-
ticas transformadoras, m a s as mentes individuais — salvo as dos
grandes pensadores e escritores — t ê m sido s u r p r e e n d e n t e m e n t e
negligenciadas n o s t r a b a l h o s recentes das ciências h u m a n a s e

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