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Metacontingências das Excepcionalidades no Sistema Socioeducativo do Distrito

Federal: Recortes de Gênero e Parentalidade.

Bárbara da Silva Martins Britto - UnB

Cínthia Borges Camimura - UnB

Laércia Abreu Vasconcelos - UnB

Resumo: Este trabalho buscou analisar as metacontingências do Sistema Nacional de


Atendimento Socioeducativo do Distrito Federal, utilizando para tanto o arcabouço
normativo vigente e fazendo análises quanto à diferença de gênero e parentalidade. Para
tanto, foi realizado estudo exploratório por meio de visita e questionário a duas unidades de
cumprimento de medida socioeducativa em semiliberdade, uma feminina e uma masculina.
Foi identificado que há diferenças entre as unidades quanto a quantidade de adolescentes,
ao tipo de práticas para fortalecimento de autoestima, a responsabilização sobre os filhos e
a criação de vínculo com a equipe de apoio socioeducativo. Foi observado que importantes
dados como escolaridade e número de filhos não estão disponíveis, e que apesar de existir
normativos buscando a não discriminação, tais mecanismos não garantem que haja uma
prática isenta no dia a dia de trabalho de cada unidade pesquisada.
Palavras-chave: SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, Metacontingência,
Gênero, Parentalidade, Maternidade.
1. Introdução
1.1 A criação do SINASE

O Sistema Socioeducativo brasileiro é responsável pela proteção e atendimento de


crianças e adolescentes em situação de risco ou em conflito com a lei, de forma a cumprir o
que é previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O Código de Menores - CM (Brasil, 1979) foi o primeiro a regulamentar o


atendimento à infância e juventude em situação de risco ou em conflito com a lei. Em
1990, foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Brasil, 1990), que traz uma
nova abordagem ao tratamento de crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade,
por meio da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990 e revoga o código anterior. De acordo
com o normativo legal, o sistema socioeducativo tem como objetivo proteger os direitos da
criança e do adolescente e garantir a sua formação como pessoa socialmente responsável.

O ECA estabelece que a medida socioeducativa para adolescentes infratores deve


ser sempre a última opção, depois de esgotados todos os demais meios de proteção à
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criança e ao adolescente. As medidas socioeducativas incluem o acolhimento em
instituições, o trabalho em equipes multidisciplinares para atendimento aos adolescentes, e
a participação em programas de orientação e formação.

A lei também prevê que, ao longo do processo socioeducativo, sejam garantidos


aos adolescentes infratores o direito à educação, à saúde, à cultura, ao esporte, ao lazer e a
outros direitos previstos na Constituição Federal - CF (Brasil, 1988). Além disso, a lei
estabelece que o processo socioeducativo deve ser orientado pelo princípio da proteção
integral, para garantir que os direitos da criança e do adolescente sejam respeitados em
todas as etapas do processo.

Em 2012, a promulgação da Lei do Sistema Nacional de Atendimento


Socioeducativo - SINASE (Brasil, 2012) marcou uma mudança significativa na abordagem
do sistema socioeducativo, passando de uma perspectiva punitiva para uma abordagem
mais centrada na proteção e reintegração social dos jovens. O SINASE é responsável por
definir as diretrizes, normas e procedimentos para o atendimento socioeducativo de
crianças e adolescentes em situações de risco ou em conflito com a lei.

Os esforços para a implantação dos princípios trazidos por essa doutrina de


proteção integral se iniciaram em 2006, quando o Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente - CONANDA instituiu o Sistema – regulamentado com a Lei em
2012 -, estabelecendo ainda diretrizes para o atendimento socioeducativo no país. O
objetivo era construir parâmetros mais objetivos para a aplicação das medidas
socioeducativas, de modo a dirimir a discricionariedade que muitas vezes se observa na
Justiça Juvenil e, ainda, prezar para que direitos e garantias constitucionalmente previstos
sejam respeitados (CNJ, 2019).

Responsável por deliberar sobre a política de atenção à infância e à adolescência,


O CONANDA atuou como articulador, ampliando os debates, de forma a envolver efetiva
e diretamente os demais atores do Sistema de Garantia dos Direitos - SGD, pautado pelo
princípio da democracia participativa (Brasil, 1991).

Um amplo diálogo nacional foi promovido, com a participação de cerca de 160


atores do SGD, que discutiram, aprofundaram e contribuíram com a construção do
documento referente ao SINASE. Esse material, afinal, se tornou um guia na

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implementação das medidas socioeducativas. Reza a cartilha do SINASE que a
implementação do Sistema “objetiva primordialmente o desenvolvimento de uma ação
socioeducativa sustentada nos princípios dos direitos humanos”, com o alinhamento
conceitual, estratégico e operacional, estruturada, principalmente, em bases éticas e
pedagógicas. (CONANDA, 2006, p.16)

Fortalecida pela Doutrina da Proteção Integral, estabelecida pelo artigo 227 da


Constituição Federal de 1988, a proteção das crianças e adolescentes tornou-se princípio
constitucional de prioridade absoluta e dever da família, da sociedade e do Estado. Dois
anos depois, com o intuito de regulamentar sobre as previsões contidas no artigo 227 da
Constituição e, portanto, assegurar sua eficácia, foi promulgada o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). A legislação se fundamenta no princípio de que todas as crianças e
adolescentes, sem distinção, desfrutam dos mesmos direitos e se sujeitam a obrigações
compatíveis com a peculiar condição de desenvolvimento que se encontram. “Rompendo
com a percepção de que a justiça e garantia de direitos era destinada apenas às crianças e
jovens com nível social e econômico maior, enquanto que, para os sujeitos de classes mais
baixas a legislação era diferente” (SUBSIS, 2016).

Vaccari (2017) defende que o novo paradigma da proteção integral pressupõe


mudanças contempladas pela Justiça Restaurativa - JR. Conhecida por ser um método com
potencial para a resolução de conflitos e pacificação social – o que complementa o papel do
sistema jurisdicional – a medida busca, a partir do conflito, trazer à tona questões
subjacentes, identificar necessidades tanto da vítima quanto do ofensor, e restaurar não
apenas o dano provocado com a conduta, mas as relações afetadas.
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As práticas restaurativas pressupõem a responsabilização dos envolvidos,
sobretudo dos ofensores, estendendo essa responsabilidade à resolução do conflito. Este
processo se realiza a partir do diálogo, mantendo a autonomia e dignidade dos atores
sociais envolvidos (ofensor, vítima, sociedade, mediadores, judiciário).

Se hoje o sistema de justiça é marcado por um alto índice de reincidência e


também de violação dos direitos humanos, a JR vem, em oposição, propor um uso de
reforço diferencial de respostas incompatíveis com o comportamento inadequado,
resultando em um sistema muito mais efetivo. Esta efetividade seria amparada pela
construção de relações saudáveis entre os envolvidos em conflitos, promovendo um
ambiente propício para a aprendizagem de comportamentos sociais adequados, bem como
o desenvolvimento de repertórios de autoconhecimento e autocontrole, consequentemente
(Vaccari, 2017).

A implementação deste processo é realizada com a participação ativa das pessoas


arroladas no processo e a comunidade que as envolve, com a intenção de promover um
desenvolvimento pessoal permeado de pertença e acolhimento que contribuem na
construção de uma auto estima positiva no que diz respeito ao adolescente e da
responsabilidade afetiva de todos os envolvidos (Ferraz et al, 2022).

Figura 2: Linha do tempo acerca da criação de Legislações pertinentes ao atendimento socioeducativo.

O SINASE foi elaborado com o objetivo de padronizar e uniformizar o


atendimento aos adolescentes infratores em todo o Brasil. A sua criação ocorreu por meio
da Resolução Nº 119 (CONANDA, 2006), como uma resposta à necessidade de se garantir
a efetividade do ECA, que prevê medidas socioeducativas para proteção e formação de
crianças e adolescentes em situação de conflito com a lei. Resultado de uma parceria entre
o Conselho Nacional de Justiça - CNJ, o Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS
e o Ministério da Justiça - MJ, possui como base princípios como a proteção integral, a
garantia dos direitos da criança e do adolescente, e a efetividade das medidas
socioeducativas.

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A legislação do SINASE determina a atuação conjunta de diferentes setores e
órgãos do Estado, como justiça, assistência social, saúde e educação, para garantir o
atendimento integrado e personalizado a cada adolescente. Além disso, o sistema
estabelece regras para a elaboração de Planos Individualizados de Atendimento - PIA,
instrumento utilizado para guiar o cumprimento da medida do adolescente. Prevê a
definição de metas em conjunto com a adolescente e sua família, visando atender às
necessidades específicas de cada adolescente e o respeito à sua subjetividade, além de
prever o monitoramento e avaliação das medidas socioeducativas.

A implantação do sistema representou um marco importante na garantia dos


direitos da criança e do adolescente e na efetividade das medidas socioeducativas para os
adolescentes infratores no Brasil, visto que parte de um modelo de padronização e
uniformização do atendimento aos adolescentes infratores em todo o país, buscando
garantir que todos tenham acesso a medidas socioeducativas de qualidade. Estas
características coadunam para a garantia dos direitos da criança e do adolescente,
assegurando a proteção integral e a formação dos adolescentes em conflito com a Lei.

1.2 O SINASE sob a ótica da Análise do Comportamento

Do ponto de vista da análise do comportamento, a análise de sistemas


comportamentais envolvidos na cultura foram mencionados por Skinner (1953), mas
desenvolvidos com maior ênfase por Glenn (1986), sob a forma de metacontingência.
Metacontingências são relações entre contingências comportamentais entrelaçadas - CCE’s
avaliadas pelo seu produto agregado - PA e eventos ou condições ambientais
selecionadoras - CAS. Essa classificação, derivada da tríplice contingência de Skinner,
entende que as CCE’s são contingências entrelaçadas de reforço, nas quais o
comportamento de cada indivíduo é reforçado diretamente e também por uma
consequência comum ao conjunto de comportamentos executados pelo grupo, denominada
produto agregado (Glenn, 2004; Glenn et al., 2016). Como exemplo, podemos mencionar
um jogo de basquete, no qual cada indivíduo possui o reforço individual de jogar e
completar jogadas e o reforço coletivo de, em conjunto, jogar uma partida, fazer cestas, e
vencer a partida.

Aplicando a análise cultural de metacontingência ao SINASE, podemos propor a


classificação conforme descrito a seguir:
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Contingências Condições Ambientais
Comportamentais Produto Agregado - PA Selecionadoras - CAS
Entrelaçadas - CCE’s

Ação dos diferentes Garantia dos direitos da Ressocialização, Reinserção


setores e órgãos do Estado, criança e do adolescente, na escola, Inserção no
como justiça, assistência assegurando a proteção mercado de trabalho,
social, saúde e educação integral e a formação dos Progressão de medida,
tendo como base a adolescentes em conflito Liberação de medidas,
legislação do SINASE. com a Lei. Recidivas, Evasões, Entrada
futura no sistema carcerário.

Tabela 1: Análise metacontingencial do SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo a


partir de seus elementos - Contingências comportamentais entrelaçadas (CCE’s), Produto agregado
(PA) e condições ambientais selecionadoras (CAS).

Para melhor compreender o trabalho do SINASE, além da análise de


metacontingência, foi utilizado o Total Performance System - TPS (Molina et al, 2019),
uma ferramenta de avaliação de sistemas comportamentais que permite representar as
diversas variáveis de um sistema adaptativo e que demonstra o desempenho total do
sistema e seus elementos críticos.

Figura 3: Diagrama do TPS - Total Performance System, segundo modelo desenvolvido por Molina
(2019), aplicado ao Sistema Socioeducativo (SSE).
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O TPS descreve os aspectos importantes de determinada organização ou sistema
para a elaboração de uma análise e possíveis intervenções, conforme for necessário. São
eles: influências ambientais, missão, recursos (entradas), sistema de processamento
(processing system), produtos e serviços (saídas), clientes (sistema receptor), stakeholders,
medidas de feedback, tanto para produtos e serviços quanto para clientes e esquemas
concorrentes. (Molina, 2019)

O TPS aplicado ao SINASE tem como missão a ressocialização de adolescentes


em conflito com a lei e como produto principal a inserção desse adolescente devidamente
ressocializado na escola e no ambiente de trabalho, por meio de diversas ações
multidisciplinares. Como competidores, há duas formas diferentes de visualizar o conceito:
o competidor como sistema concorrente (ou o adolescente é ressocializado ou, na
manutenção da prática delitiva, é inserido no sistema prisional) ou como esquema de
cooperação, na qual instituições atuam em conjunto com o SINASE buscando a
ressocialização, como é o caso de instituições religiosas, artísticas, culturais, musicais, e de
fomento para educação e emprego.

Dessa forma, podemos entender o SINASE como sistema comportamental


complexo, que tem como objetivo principal a regulamentação das medidas socioeducativas
destinadas a adolescentes em conflito com a lei, e que prevê uma rede de setores e órgãos
governamentais, visando garantir os direitos da criança e do adolescente, assegurando a
proteção integral e a formação dos adolescentes, resguardando a eles a condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento (CNJ, 2019) e priorizando a ressocialização e a manutenção do
Sistema de Garantia de Direitos das crianças e adolescentes - SGD (Brasil, 1991),
priorizando para tanto a implantação da Justiça Restaurativa - JR. (Vaccari, 2017).

1.3 Legislação sobre o atendimento socioeducativo de meninos e meninas - o conceito


de gênero

De acordo com o ECA (1990), toda criança e adolescente goza de todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-se-lhes, por lei ou outros meios,
todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Além disso,
tais direitos aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de
nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença,
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deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica,
ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as
famílias ou a comunidade em que vivem. (ECA, 1990; SINASE, 2012)

Nesse tocante, tanto o ECA quanto o SINASE fazem referência de gênero apenas
ao assegurar direitos à adolescente gestante e ao bebê (artigos 8, 10, 13, 19, 1, 23, 228, 229
e 258 do ECA e artigos 49, 63 e 69 do SINASE). No entanto, por mais que as leis maiores
não fazem distinção quanto ao atendimento de adolescentes, meninas e meninos, na prática,
o manejo e o dia a dia das unidades podem apresentar diferenças consideráveis, se
analisadas sob o olhar interseccional de gênero. Um indício dessa constatação pode ser a
resolução Nº 233, de 30/12/2023, que visa estabelecer diretrizes e parâmetros de
atendimento socioeducativo às adolescentes privadas de liberdade no SINASE.

De acordo com Pimentel (2017), “a emergência de um olhar interseccional – que


considere raça, classe, geração, orientação sexual e outras dimensões como elementos
fundantes e inseparáveis do gênero –, deve ser evidenciado em todos os aspectos da
produção científica e das práticas sociais”.

A palavra “gênero” pode ser utilizada em várias acepções e apontar para ideias
diferentes, a depender de seu uso (Wittgenstein, 1991). Atualmente, essa palavra tem sido
utilizada em pelo menos três sentidos distintos, sumarizados por Zanello (2018, p. 51/52) e
dispostos a seguir:

1) Binarismo estratégico: ideia de masculino/feminino,


masculinidade/feminilidade como essência. Por exemplo, mulheres têm instinto
materno e são naturalmente cuidadoras, ao passo que os homens são naturalmente
agressivos. O binarismo ou forma binária de compreensão do mundo e da vida é
uma construção social, criada, reafirmada e mantida por diversos mecanismos
socioculturais.

2) Identidade de gênero: sublinhar a relação entre performances de


gênero ditas femininas/ masculinas e certas especificidades corporais. Assim, a
anatomia – ter um pênis ou uma vagina – deveria aparecer sempre ligada, no
primeiro caso, à masculinidade, e no segundo, à feminilidade. (nesse campo se dá a
discussão das questões cis e trans).

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3) Orientação sexual: se baseia em um pressuposto de heterossexualidade
compulsória. Ou seja, na ideia de que seres considerados mulheres devem por
natureza desejar homens, e vice-versa. Uma das premissas aqui é a ideia do sexo
procriativo e uma naturalização da sexualidade.

No desenvolvimento deste trabalho assumimos como sentido do uso da palavra


gênero aquele descrito pela definição número 1, binarismo estratégico, entendendo que
junto do gênero masculino e feminino há performances culturais e emocionalidades
prescritas como naturais, podendo no entanto ressaltar o uso de diferentes sentidos nas
referências bibliográficas pesquisadas.

De acordo com Fraser (2016), o sucesso relativo do movimento feminista em


transformar a cultura permanece em nítido contraste com seu relativo fracasso para
transformar instituições. Esta avaliação tem duplo sentido: por um lado, os ideais de
igualdade de gênero, tão controversos nas décadas anteriores, agora se acomodam
diretamente no mainstream social; por outro lado, eles ainda têm que ser compreendidos na
prática. Assim, as críticas feministas de, por exemplo, assédio sexual, tráfico sexual e
desigualdade salarial, que pareciam revolucionárias não faz muito tempo, são princípios
amplamente apoiados hoje; contudo esta mudança drástica de comportamento no nível das
atitudes não tem de forma alguma eliminado essas práticas culturais. Portanto, pode-se
afirmar que a segunda onda do feminismo tem provocado uma notável revolução cultural,
mas a vasta mudança nas mentalidades, contudo, não tem se transformado em mudança
estrutural, institucional.

Importante ressaltar que em 2002 o Brasil aderiu à Convenção sobre a Eliminação


de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher das Nações Unidas, ratificada por
meio do Decreto no 4.377, de 13 de setembro de 2002 (artigo 5º), e que preconiza, entre
outras ações de combate à discriminação contra as mulheres, que o Brasil tomará diversas
medidas apropriadas para:

“a) Modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres,


com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e
de qualquer outra índole que estejam baseados na idéia da inferioridade ou
superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e
mulheres.

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b) Garantir que a educação familiar inclua uma compreensão adequada da
maternidade como função social e o reconhecimento da responsabilidade comum
de homens e mulheres no que diz respeito à educação e ao desenvolvimento de
seus filhos, entendendo-se que o interesse dos filhos constituirá a consideração
primordial em todos os casos.”

A adesão à convenção, há mais de duas décadas, não garante no entanto que a


alteração proposta é necessariamente presente nas práticas consuetudinárias atuais. Alguns
avanços são percebidos, mas ainda há um longo caminho a ser trilhado para a promoção da
igualdade de gênero na prática.

1.4 O gênero e o sistema socioeducativo

Johnson (2017) trouxe uma revisão de literatura sobre as desigualdades de gênero


que afetam crianças e adolescentes no sistema de justiça juvenil nos Estados Unidos da
América - EUA. O artigo defende que adolescentes meninas experimentam diferentes
barreiras e desafios ao longo do sistema, destacando a importância de se considerarem as
desigualdades de gênero no que se refere à avaliação e o cumprimento de medidas
socioeducativas.

O autor propõe a implementação de abordagens gender-responsive - GR (respostas


ao gênero, em tradução livre) no atendimento socioeducativo para superar as desigualdades
e discriminações de gênero. Os programas GR englobam abordagens que levam em
consideração as diferenças de gênero na prestação de atendimento para crianças e
adolescentes em situação de risco ou conflito com a lei. Eles visam ajudar a prevenir ou
reduzir o envolvimento desses jovens com o sistema de justiça juvenil, bem como apoiar
seu desenvolvimento positivo e resiliência.

Os programas GR tem como objetivo principal fornecer atendimento


individualizado que atenda às necessidades únicas de meninas e meninos, levando em
conta as desigualdades de gênero que eles podem enfrentar. Isso inclui a avaliação de
gênero de cada jovem, compreendendo sua trajetória de gênero e seus desafios específicos,
e personalizando o atendimento para atender às suas necessidades. Além disso, os
programas GR também visam desenvolver habilidades positivas, promover o
desenvolvimento social e emocional, e apoiar o sucesso futuro.

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Alguns exemplos de atividades de programas GR incluem: grupos de apoio para
meninas, programas de formação de liderança para meninos e meninas, e abordagens de
mentoring que levam em conta as desigualdades de gênero. Estes programas são projetados
para complementar outras intervenções, como terapia e tratamento, e são realizados por
profissionais habilitados, como psicólogos, trabalhadores sociais e conselheiros.

Assim, denota-se que os programas de atendimento devem incluir a avaliação de


gênero de cada jovem, a compreensão de como a trajetória de gênero afeta suas
necessidades e desafios, e a personalização do atendimento para atender às suas
necessidades únicas.

Gusmão et al (2022) promove um estudo gendrado sobre adolescentes que


cumprem medidas dentro do sistema socioeducativo brasileiro, no qual conclui que o
próprio crime serve para afirmar as masculinidades, chancelando a performance da
virilidade e possibilitando o consumo de bens (produtos) e usufruto de mulheres. Ou seja,
permite o cumprimento do mandato da masculinidade.

Lima & Büchele (2011) discorrem sobre a necessidade de incluir análises sobre os
processos de socialização e sociabilidade masculinas e os significados de ser homem em
nossa sociedade, fundamentando a crítica de que as políticas de gênero sempre representam
políticas para mulheres, em geral não abarcam os homens, maiores autores dos casos de
violência, em especial no contexto dos adolescentes. Podemos considerar que um
adolescente não está envolvido sozinho neste contexto de violência, e sim pode-se retratar
uma “família em situação de conflito”, nos quais as intervenções deverão abarcar o
envolvimento de homens e mulheres. Costa (2021) afirma que a expressão “cultura do
estupro” fomenta o discurso de que a sociedade se preocupa em ensinar o sujeito a não ser
estuprado, ao invés de ensiná-lo a não estuprar.

Neste contexto, a proposta deste trabalho é de lançar um olhar interseccional de


gênero para as práticas culturais do SINASE, utilizando para tanto a base conceitual da
análise do comportamento e suas ferramentas de análises de práticas culturais.

2. Metodologia

Este trabalho teve como objetivo principal investigar práticas culturais do sistema
socioeducativo no que se refere às questões específicas da execução de medidas aplicadas
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aos adolescentes, apontando as diferenças de procedimentos entre o gênero feminino e
masculino, e em especial às adolescentes mães e pais.

Esses procedimentos visam apoiar os adolescentes em suas responsabilidades e


garantir que suas necessidades e as de seus filhos (quando for o caso) sejam atendidas.
Alguns exemplos incluem: orientação e psicoterapia; colaboração com serviços de
assistência social; preparação para a vida independente, tais como treinamento em
habilidades sociais e financeiras, capacitação para inclusão no mercado de trabalho e
responsabilização parental, quando se tornarem pais ou mães.

Como objetivos secundários, apontamos a realização de investigação documental


(CF, ECA, SINASE, CONANDA, Regulamentos Operacionais - RO da unidade de
semiliberdade do DF, Plano Decenal e Anuário Estatístico do SSE - DF Ano base 2020/
2021); a construção de narrativa qualitativa e apontamento das mudanças culturais
verificadas nos documentos analisados, e a realização de entrevistas e visitas à duas
unidades, uma feminina e uma masculina.

De acordo com a Resolução Nº 233 (CONANDA 2022), nos casos de


cumprimento de medidas de adolescentes meninas, tais medidas deverão ser cumpridas em
unidade exclusiva para o público feminino ou em unidades geograficamente próximas
deverá haver uma separação física e visual de acessos, bem como distinção de corpo
diretivo e equipe funcional. Apesar de tratar-se de resolução recente, na prática já havia
essa divisão no Distrito Federal, conforme observa-se no Regulamento Operacional - RO
(SUBSIS, 2017).

A pesquisa foi exploratória, com a amostra de duas unidades distintas de regime


de internação em semiliberdade (uma masculina e uma feminina), inserida nas seis
unidades que compõem o sistema semiaberto do Distrito federal, conforme artigo 5 do RO
(SUBSIS, 2017).

Em cada uma das duas unidades foi realizada visita de campo de


aproximadamente 150 minutos pela equipe de pesquisadoras, e durante as quais foram
realizadas entrevistas com as gerentes e assessoras das unidades, além de aplicação de
questionário semiestruturado de igual teor para ambas as unidades, contendo 8 questões.
Todos os participantes optaram por participar, fornecendo consentimento livre e

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esclarecido, registrado na gravação das entrevistas. Importante observar que tanto as
pesquisadoras quanto as entrevistadas eram do sexo feminino e que o sigilo quanto às
profissionais entrevistadas será resguardado.

Os resultados estão dispostos em separado para cada unidade, fazendo análises de


dados da unidade, estatísticas do sistema no Distrito Federal disponíveis em meios públicos
e comparação entre os dados e as estatísticas dispostas no Anuário Estatístico do SSE-DF.

3. Desenvolvimento
3.1 Perfil Sociodemográfico e interseccionalidades quanto aos adolescentes em
cumprimento de medida em regime de semiliberdade no Distrito Federal

O anuário estatístico (Subsis, 2022) apresenta dados para identidade de gênero,


conforme acepção de gênero nº 2 (Zanello, 2018), classificando os adolescentes quanto a
identidade de gênero, ou seja, cerca de 99,5% dos adolescentes se apresentavam ao mundo
e se identificavam com o seu gênero biológico, caracterizados como Homem Cis (95,7%) e
Mulher Cis (3,8%). Os jovens que não se identificam com o gênero que lhes foi designado
ao nascer somaram 0,4% (homem trans e mulher trans).

Ainda de acordo com o anuário estatístico, a composição familiar dos


adolescentes em semiliberdade caracteriza-se principalmente por adolescentes que residem
com a mãe e outras pessoas (66,3%) e (15,6%) conviviam com outros familiares. Desses,
49,8% das famílias são providas por “mães solo”. Além disso, 73,1% das famílias não
ultrapassaram 2 salários mínimos de renda familiar mensal. Nessa mesma faixa de renda
familiar encontravam-se 32,5% das famílias de adolescentes que não tinham somente a
mãe como provedora. Isso demonstra uma vulnerabilidade maior nas famílias de mães
solo. (Subsis, 2022)

Além disso, 70,7% dos adolescentes que declararam sua raça ou cor, o fizeram
como pretos ou pardos. Os crimes principais cometidos por eles foram descritos como
roubo, tráfico de drogas e furto, representando aproximadamente 63% das causas da
aplicação da medida socioeducativa.

Dados sobre a escolaridade dos adolescentes em cumprimento de medidas não


foram descritos no anuário, apesar de ser uma das questões principais a serem traçadas no
PIA. A própria introdução do documento comenta a relevância de tal análise e considera
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que os adolescentes devem ser acompanhados em termos de sua frequência escolar,
destacando que a escolaridade tem impacto na inserção no mercado de trabalho, também
item central no PIA de cada adolescente em cumprimento de medida socioeducativa.

Analisando os dados sociodemográficos, conclui-se que é uma amostra de


adolescentes prioritariamente masculina (95,7%), preta ou parda (70,7%) e de situação
econômica vulnerável (73,1%). Não há dados expressos sobre diferença entre os gêneros
ou a presença de filhos sob a responsabilidade dos adolescentes em cumprimento de
medida socioeducativa.

3.2 Unidade Feminina e práticas culturais

A unidade feminina, conforme determina o RO (2017), fica localizada em bairro


residencial do Distrito Federal, considerado como classe média alta, na qual a renda
domiciliar chega a 10 salários mínimos e a renda per capita está estimada em 4 salários
mínimos (DF Imóveis, 2023). A unidade está instalada em casa residencial caracterizada
como uma moradia residencial e sua localização é mantida em sigilo, em cumprimento ao
artigo 5º (RO, 2017). Para preservar o sigilo das partes, não mencionaremos o nome da
unidade e nem do bairro visitado.

As pesquisadoras foram recebidas ao portão cordialmente por um vigilante


terceirizado, caracterizado. A unidade se caracteriza como uma casa. Duas agentes e uma
adolescente em cumprimento da medida estavam na sala de estar, houve comprimentos a
todos os presentes, inclusive à adolescente deitada no sofá, enquanto assistia televisão. As
pesquisadoras foram direcionadas para a sala da gerência, onde foi realizada a entrevista,
em seguida puderam realizar uma visita guiada para conhecimento das instalações das
unidades.

Na sala da gerência, duas mesas com computadores e cadeiras estavam ocupadas


pela gerente e sua assessora, e observou-se haver na sala cinco caixas de absorvente
higiênico, em conformidade com o descrito no art. 8º da Resolução 233 (CONANDA,
2022). A unidade possui 24 servidores no total, sendo 17 agentes socioeducativos, 3
especialistas, 2 administrativos, a gerência e a assessoria.

No momento da entrevista havia uma adolescente cumprindo medida


socioeducativa na unidade (àquela que assistia TV na sala de estar). Em um passado
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recente foram mencionadas 5 adolescentes (últimos dois anos), e se considerados os
últimos quatro anos, relata-se que tiveram sempre uma média de 11 adolescentes, nunca
tendo atingido a lotação máxima de 20 adolescentes por unidade. Houve uma queda visível
de adolescentes na unidade durante a pandemia do COVID 19, corroborando os dados do
anuário estatístico para os anos de 2020 e 2021 (Subsis, 2022). A média anual do efetivo
diário de adolescentes em cumprimento de medida em semiliberdade caiu de 8,3 em 2018
para 6,2 em 2021. Já a taxa de ocupação caiu de 39% em 2018 para 30% em 2021. As
profissionais não souberam determinar objetivamente fatores que levaram à queda, mas
levantaram algumas possibilidades, como por exemplo o uso de redes sociais e a mudança
na conduta policial, sendo esta última também mencionada pelo anuário estatístico (Subsis,
2022).

As entrevistadas mencionaram alguns aspectos que, na perspectiva das


entrevistadas, têm a ver com as diferenças de gênero entre as unidades. Observaram que as
meninas, apesar de ingressarem na unidade em menor número do SINASE, chegam para
cumprir medida socioeducativa “violadas de várias formas: fisicamente, sexualmente,
emocionalmente.” Além de já terem sido violadas, estão mais suscetíveis a novas
violências no ambiente externo, e por isso acabam formando forte vínculo com a equipe de
apoio.

Do ponto de vista da saúde mental, muitas possuem diagnósticos e fazem uso de


medicação psiquiátrica. De acordo com o relato, considerando as últimas adolescentes que
cumpriram medida, todas estavam fazendo uso de medicação psiquiátrica por quadros
diversos, tais como: depressão, ansiedade, insônia, autolesão ou hipótese diagnóstica de
transtorno borderline.

Observaram que, em geral, as adolescentes meninas têm escolaridade baixa.


Meninas que têm progressão de pena a partir do sistema fechado, precisam
necessariamente estudar dentro da unidade. Abordaram que, em geral, questões com a
imagem corporal são mais importantes pois impedem a inserção no mercado de trabalho.
Como exemplo, relataram casos de duas meninas, que após serem vítimas de violência,
perderam alguns dentes e quando receberam auxílio financeiro o utilizaram para consertar
os dentes e então serem inseridas no mercado de trabalho. Como forma de trabalhar a auto
estima das meninas, anteriormente ao período pandêmico foram propostas atividades, tais

15
como “Dia da Beleza” na unidade, o qual ocorria regularmente, ao menos duas vezes por
semana.

Observaram também que a evasão tem sido baixa, e as metas estabelecidas no PIA
estão sendo atingidas, e as medidas cumpridas no tempo estabelecido, sendo avaliadas
buscando a desvinculação a cada seis meses, conforme determinado pelo SINASE (Brasil,
2012). A esse fenômeno, entendem que a realização de reuniões com os agentes para
melhor entendimento tem deixado a questão mais clara. Adicionalmente, há um mural no
qual todos os PIAs estão disponíveis para consulta, tanto por parte da equipe quanto das
adolescentes.

Quanto aos procedimentos adotados a adolescentes em cumprimento de medida


socioeducativa e que têm filhos, a unidade atende apenas a mãe, não há estrutura para o
bebê. Em um dos casos, o judiciário não autorizou o cumprimento domiciliar recomendado
pela unidade, de modo que tiveram que adaptar os horários a fim de compatibilizar o
cumprimento da medida com as atividades de maternagem. Informam que apesar da
publicação da Resolução nº 233 (CONANDA, 2022), o dia a dia na prática é mais
complicado, de modo que a equipe vai tomando as decisões conforme as questões vão
surgindo. Ações que já foram utilizadas pela equipe são: flexibilização de horário, sempre
avaliando em conjunto com a adolescente, a família a demanda e as metas descritas no
PIA. Após a pandemia, foram autorizados os cumprimentos de medida domiciliar, de
maneira remota, por exemplo.

Em geral, a equipe apoia as adolescentes gestantes (ingressam gestantes ou


engravidaram durante o período de cumprimento de medida), buscando doações de
enxoval, organizando “chá de fraldas”, realizando inscrição em auxílios assistenciais no
CRAS e ofertando espaço adequado para cuidados com o bebê durante as atividades na
unidade. Apesar da criança não permanecer lá, a mãe pode ir e passar o dia junto com a
criança na unidade, ou igualmente a mãe pode passar o dia junto com a criança em sua
residência, no horário previsto pela unidade de semiliberdade.

Quanto a peculiaridades no trato com as adolescentes, afirmaram que uma das


primeiras ações é vincular a adolescente recém chegada à Unidade Básica de Sáude - UBS
que atende a região para realizar todas as questões preventivas quanto à saúde reprodutiva.
Após o contato com a unidade, os profissionais de saúde explicam o contexto e sugerem a
16
aplicação de anticoncepcional injetável, com duração de três meses, e agendamento para
nova aplicação dentro do prazo estabelecido, e na maioria dos casos a sugestão é acatada.
Se já estiverem gestantes, são encaminhadas ao acompanhamento pré-natal. Também
possuem acompanhamento odontológico na unidade, na medida das limitações próprias do
serviço público.

Outra peculiaridade a ser apontada é a construção do PIA dentro da realidade de


ser adolescente em cumprimento de medida socioeducativa e ter filhos. Buscam ajustar os
cuidados com a criança durante o dia e a rotina de estudos à noite, a participação em cursos
online, a redução da cobrança por desempenho escolar para adolescentes mães e que não
possuem rede de apoio, a realização dos passeios aos finais de semana. Tudo isso está
vinculado à percepção de ser uma boa mãe por parte da equipe, uma vez que se houver
liberação e ausência de cuidados com o(as) filho(as), o judiciário deverá ser notificado.

Por fim, a equipe mencionou alguns casos de adolescentes ressocializadas pelo


programa, boa parte delas trabalhando e bem inseridas no contexto social e cultural. Dois
casos merecem ser mencionados: A adolescente A informou que a polícia havia lhe dito
que a buscaria para prender assim que completasse a maioridade. Também informou que o
filho, nascido no período de cumprimento da medida, veio a óbito por cair numa caixa de
gordura aberta em sua residência. Assim que aconteceu, a adolescente voltou à unidade em
busca de apoio psicológico e conforto, uma vez que elas têm na unidade como um ponto de
referência importante. Já a adolescente B sempre volta à unidade, seja para pedir fraldas
para a criança (houve um chá de fraldas preparado pela equipe) e tem muito vínculo, a
ponto de solicitar ser convidada para os passeios, mesmo depois de desvinculada do
cumprimento de medida socioeducativa. Eles tem uma programação intensa, incluindo a
atividade durante as férias denominada “Férias com Vida”, com atrações culturais gratuitas
tais como cinema, exposições de arte, shows e passeios cívicos, muitos dos quais são a
oportunidade única de engajamento nessa atividade, seja por questões econômicas, sociais
ou familiares.

A formação de vínculo entre a equipe e as adolescentes foi a informação de maior


destaque ao longo da visita. Os quartos delas não possuem porta, há biblioteca disponível
para retirada de livros, os cômodos da casa (cozinha, área de serviço, banheiro, sala) são
abertos às adolescentes (apenas a cozinha requer autorização da equipe para ser usada pelas
adolescentes e seu uso é supervisionado por algum servidor do plantão) e há um sino em
17
formato de pássaro, que cada adolescente desvinculada da medida toca como forma de
notificar o seu novo voo, e também para comemorar a vitória quanto ao cumprimento da
medida.

Figura 4: Sino utilizado pelas adolescentes no momento da Figura 5: painel da biblioteca da unidade
desvinculação da medida socioeducativa

3.3 Unidade Masculina e práticas culturais

A unidade masculina, conforme determina o RO (2017), fica localizada em bairro


residencial do Distrito Federal, considerado como classe média, na qual a renda domiciliar
está em cerca de 6,4 salários mínimos (DF Imóveis, 2023). A unidade está instalada em
imóvel entre uma UBS e uma Escola Classe, descaracterizada, em cumprimento ao artigo
5º (RO, 2017). Novamente a fim de preservar o sigilo das partes, não mencionaremos o
nome da unidade e nem do bairro visitado.

Ao chegar ao local, a porta estava aberta, sob a vigilância de profissional


terceirizado e caracterizado, o qual cumprimentou a equipe. Ao adentrar a instalação, as
pesquisadoras foram conduzidas à sala da gestão, que fica nos fundos da biblioteca da
unidade. Não foram visualizados adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa
durante o tempo de visita e coleta de dados. Na sala da gerência, foi realizada a aplicação
do questionário, seguida de visita guiada para conhecimento das instalações das unidades.

Ao adentrar na sala, havia duas mesas com computadores e cadeiras, e


observou-se haver na sala caixas contendo sandálias havaianas, álcool em gel, e quatro
cadeados grandes e suas chaves sobre a mesa da gestora, que os manipulava enquanto
conversava com a equipe de pesquisa. A unidade possui 31 servidores no total, sendo 22
agentes socioeducativos, 4 especialistas, 3 administrativos, a gerência e a assessoria.

18
No momento da entrevista haviam 27 adolescentes cumprindo medida
socioeducativa na unidade, o que elas relataram ser uma situação bem complexa, pois eles
“tocam o terror, aprontam, querem fazer rebelião: o cão chupando manga” (sic.). Desses
27, pelo menos 12 são reportados como ”passam o dia inteiro procurando motivo para fazer
ocorrências”. Na realidade, a unidade possui 16 camas, distribuídas em quatro quartos com
duas camas beliches cada, e uma limitação de no máximo 20 adolescentes, conforme RO
(2017). Na prática, como após quatro meses de medida e mediante bom comportamento,
eles podem ser liberados para dormir em casa e comparecerem à unidade somente para as
atividades de acompanhamento obrigatórias, o que é denominado de “semi inversa”, não
havendo assim superlotação do espaço, apesar de haver sobrecarga excessiva para a equipe
de trabalho. Possuíam no momento da entrevista dois casos de recidivas entre os
adolescentes. As entrevistadas mencionaram que no passado chegou a ter lotação de 55
adolescentes, e a unidade chegou a ser incendiada três vezes. Com a lei do SINASE
(Brasil, 2012) sendo colocada em prática, a unidade passou a ser diferente, foi dividida e
melhor organizada.

A equipe também relatou queda de adolescentes na unidade durante a pandemia do


COVID 19, corroborando os dados do anuário estatístico para os anos de 2020 e 2021
(Subsis, 2022). A média anual do efetivo diário de adolescentes em cumprimento de
medida em semiliberdade caiu de 30,7 em 2018 para 27,1 em 2021. Já a taxa de ocupação
caiu de 102,2% em 2018 para 90,3% em 2021. As profissionais não souberam determinar
objetivamente fatores que levaram à queda, mas também levantaram algumas
possibilidades, como por exemplo a mudança na conduta policial, que também é
mencionada pelo anuário estatístico (Subsis, 2022) e a flexibilização no processo judicial
aplicado aos adolescentes. “Antigamente era muito difícil liberar o adolescente, hoje está
mais tranquilo. Já recebemos até adolescentes com tornozeleira eletrônica no passado, o
que é incompatível com o cumprimento de medida socioeducativa.”

As entrevistadas mencionaram não visualizar muita diferença quanto ao gênero


entre as unidades feminina e masculina. De acordo com elas, os adolescentes cumprem a
medida durante a semana, dormem na unidade e no final de semana vão para casa. As
entrevistadas relataram que o trato com o público masculino é um trabalho hercúleo. Não
conhecem o trato com o público feminino, mas por outro lado, não tem condições de
formar muitos vínculos, pelo grande efetivo de adolescentes em cumprimento de medida

19
socioeducativa. Nesse ponto deixaram claro que para fazer e acompanhar todos os PIAs
dentro dos prazos estabelecidos pela legislação (Brasil, 2012), fazem milagre com o efetivo
que possuem.

Do ponto de vista da saúde mental, são observados muitos transtornos de


ansiedade “Eles são uma bomba! O adolescente chega na segunda-feira já querendo ir
embora, começa a se atropelar durante a semana, e por fim não vai embora na sexta-feira
por punição.” Relatam que não há um cuidado de saúde mental dentro do sistema de saúde.
Os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS têm espaço para encaminhamento, mas ao
mesmo tempo vivem muito cheios, o que acaba deixando como tarefa uma “matemática
pesada” para encaminhamentos, pois possuem muitos usuários de droga, adolescentes com
transtornos mentais, uso de medicação psiquiátrica e comportamento suicida.

Como exemplo foi mencionado dois casos de estupro (já receberam adolescentes
em cumprimento de pena por esse ato infracional), no qual há a prescrição de suporte à
vítima mas pouco é realizado para a socioeducação do estuprador, o que demanda esforços
extras da equipe para viabilizar a continuidade do atendimento, importante para evitar
recidivas ou ocorrências futuras. Neste caso buscaram auxílio dos grupos como o PAV
Alecrim (2013) e Anjos do Amanhã (2006), e mesmo assim enfrentaram muita demanda
para pouca oferta. Importante ressaltar que só ficam na unidade aqueles cujo motivo da
medida socioeducativa não é revelado, pois a exemplo do que se pratica no sistema
prisional, os grupos rejeitam os autores desse tipo de crime e para segurança do ofensor
perante o grupo, o mesmo deve manter sigilo ou ser retirado da unidade.

Observaram que, em geral, os adolescentes não têm muita disposição para


participar dos cursos e questionam a importância dessa atividade: “Onde vou usar isso,
moça? Preciso de emprego, você vai me arrumar um?” ou ainda “Sobre o que é esse curso?
Para que serve esse curso?”. Ao participar de curso sobre abuso sexual, foram perguntados
pela instrutora o que poderiam fazer em caso de notar uma situação de abuso como
didadãos, ao que responderam: “Cortar a cabeça, matar, linchar” e informaram “A senhora
é cidadã, eu não sou, mato mesmo!”

Não foram abordadas questões sobre escolaridade ou aparência física nesta


unidade. Mesmo estando sem os dentes ou mal vestidos sempre encontram postos como
ajudante de pedreiro, serviços gerais entre outras, que não exigem dos meninos aparência
20
física apresentável ou escolaridade completa. Como forma de trabalhar a autoestima dos
meninos, possuem uma horta, na qual eles plantam, colhem e comercializam as hortaliças e
legumes nas redondezas, tendo direito de manter para si o dinheiro arrecadado. Em dada
situação, cada um dos trabalhadores da horta recebeu R$ 150,00, que foram utilizados em
um bar em Santa Maria, e que gerou uma ligação da polícia à gerente da unidade
questionando a arruaça que estavam fazendo e confirmando a origem do dinheiro.

Observaram também que a evasão tem sido baixa, apesar de existente, com uma
redução proporcional ao número de adolescentes em cumprimento de medida. As metas
estabelecidas no PIA estão sendo atingidas (“fazemos milagres”), e as medidas cumpridas
no tempo estabelecido, sendo avaliadas buscando a desvinculação a cada seis meses,
conforme determinado pelo SINASE (Brasil, 2012), havendo uma ou outra medida que não
conseguem cumprir, como por exemplo o fortalecimento do vínculo com a família. Nesse
tocante, mencionou uma mãe que ligou para a unidade e pediu para que o filho não
retornasse para casa no final de semana do dia das mães. Isso ocorre com alguma
frequência, seja pela quebra do vínculo familiar e dificuldade de refazer esses laços, seja
pelo receio da família de que os adolescentes fora da unidade estão mais expostos à
criminalidade (acreditam que dentro da unidade ele estará mais protegido). Nos deram um
exemplo de adolescente que foi executado dentro de casa enquanto dormia no dia da
extinção da medida, e a mãe, ao vivenciar o luto e a perda de forma violenta, ligou para
ameaçar a juíza do caso, a promotora e a gerente da unidade. De todo modo, não podem
permitir ao adolescente ficar na unidade durante o final de semana, a não ser que esteja
cumprindo alguma penalidade. Quando não é o caso, vão para casa da família, amigos ou
são encaminhados para abrigos.

Quanto aos procedimentos adotados a adolescentes em cumprimento de medida


socioeducativa e têm filhos, a unidade não faz distinção entre os adolescentes que são pais
ou não. Via de regra, respondem à medida normalmente, independente de ter filhos ou não.
Afinal, “É a mãe que cuida, né?” Eles têm os direitos previstos por lei como sete dias de
licença paternidade, e se a criança necessitar de atendimento especial, (internação
hospitalar, por exemplo) devem apresentar atestado médico, e cumprem a medida
normalmente. Algumas vezes os especialistas auxiliam com questões de saúde, emissão do
registro da criança, etc. Foi citado um adolescente que , em conflito com a mãe do filho,
informou em audiência que a criança era maltratada, e que tinha entregue para a tia cuidar.

21
Quando o assunto foi apurado, foi observado que o adolescente estava tentando usar a
criança para escapar da medida socioeducativa, postura vista também em outros casos. Já
cientes desse tipo de conduta, a equipe sempre averigua junto à família a veracidade das
informações dadas visando pesar se deve ou não ser liberado para ficar fora da unidade
para cumprir obrigações parentais.

A equipe também apoia os adolescentes que se tornarão pais, buscando doações de


itens de enxoval, fraldas e realizando a inscrição em auxílios assistenciais no CRAS. Tais
ações já aconteceram no passado, hoje em dia estão ocorrendo com menor frequência.
Poderá haver flexibilização de horários de acordo com a demanda, desde que
fundamentadas e avaliadas em conjunto com a unidade, o adolescente e a família, para
atender possíveis necessidades de paternidade como buscar a criança na creche ou render a
esposa para atividades profissionais, mantendo o foco do previsto no PIA do adolescente.

Quanto a peculiaridades no trato com as adolescentes, afirmaram que também


encaminham os adolescentes para a Unidade Básica de Sáude - UBS que atende a região
para realizar acompanhamento médico e odontológico, mas que o atendimento costuma ser
precário devido à alta demanda. Possuem muitos casos de ISTs, e o posto se encarrega de
fornecer preservativos, se solicitados. Não houve relatos de ações concretas e preventivas
quanto à saúde reprodutiva.

Outra peculiaridade a ser apontada é a construção do PIA dentro da realidade de


ser adolescente em cumprimento de medida socioeducativa e ter filhos. Ocorre que as
informações sobre ter ou não filhos sobre sua responsabilidade não são claras: “Fica tudo
nos bastidores”. Tudo isso é observado para a formulação do PIA, as posturas do
adolescente em todas as instâncias da vida, as informações familiares. Sempre verificam o
todo, se for um adolescente que tem muitos filhos e “tocar o terror”, não será liberado,
especialmente no caso de crimes maiores, tais como latrocínio, homicídio, drogas. Se, por
outro lado, estiver trabalhando para sustentar a família, for provedor da casa, tem
companheira, e filhos, pondera com tudo, não deixando de cumprir as obrigações mas
inserindo todos os dados no PIA. Importante ressaltar que não há nada sobre exceções para
adolescentes pais no regulamento da unidade.

Por fim, a equipe mencionou alguns casos de adolescentes ressocializados pelo


programa, e informou casos de extrema pobreza (não tem onde morar ou o que comer) e
22
um caso em que o rapaz retornou, após atingir a maioridade, para solicitar comida, banho e
abrigo. A equipe o acolheu, pois aparentemente estava em situação de rua, mas não pode
deixá-lo ficar para dormir pois não tinha nem espaço e nem mecanismos judiciais para
justificar a sua estadia.

O que ficou de mais marcado durante a visita e coleta de dados na unidade


masculina foi a sobrecarga da equipe com a tarefa de lidar com tantos adolescentes, com
bastante agressividade e consequente uma maior dificuldade de formação de vínculo entre
a equipe e as adolescentes, até por uma questão de efetivo, de equipe disponível e de
infraestrutura social ofertada pelo estado. Foi dito, durante a entrevista, que os cadeados
sobre a mesa seriam utilizados para trancar os quartos durante o dia, uma vez que os
adolescentes estavam, como forma de conflito entre eles, vandalizando o quarto e os
pertences dos outros. Ela ressaltou que não se usa cadeado na medida de semiliberdade,
mas a medida foi necessária durante o dia, quando muitos se ausentam da unidade, para
que pudessem preservar a ordem e o bem estar entre os adolescentes. Há refeitório, área de
convivência, banheiro coletivo e cozinha de uso interno, além da biblioteca e da horta. A
unidade não guarda similaridade com uma casa, apesar de ter espaços amplos e abertos a
todos, com exceção ao que foi determinado quanto aos quartos. Na porta de entrada e na
sala de convivência há artes em grafite pintadas pelos adolescentes como forma de
expressar o desejo de liberdade e a expressão artística de pertencimento ao grupo.

Figura 6: Arte em grafite na entrada da unidade Figura 7: arte em grafite na sala de convivência

4. Discussão

Ao analisar os dados referentes às unidades feminina e masculina, podemos


observar semelhanças e diferenças importantes no dia a dia de cada unidade, que não
necessariamente estão previstas nos normativos, tais como diferenças na sobrecarga de
trabalho, na formação de vínculo e no que impacta a autoestima dos adolescentes. Em
nenhuma das duas unidades existem acomodações parentais (na unidade feminina tem
23
apenas uma banheira para que possam dar banho em seus bebês caso necessário durante
uma visita), nem acesso a regulamentar a recursos para pais, apenas os que a equipe
voluntariamente providencia em forma de doação - muitas vezes fornecidas pela própria
equipe.

As meninas são em menor número, são cobradas culturalmente a darem muita


importância à aparência física e escolaridade para inserção no mercado de trabalho,
formam maior vínculo com a equipe e são mais responsabilizadas e culpabilizadas em caso
de já terem filhos. Já os meninos estão em maior número, com posturas mais violentas,
pouca formação de vínculo, autoestima vinculada à ganho financeiro e posturas agressivas
( “A senhora é cidadã, eu não sou, mato mesmo!”), além de pouca responsabilidade quanto
aos filhos, ou ainda uso dos filhos como subterfúgio para não cumprimento adequado da
medida socioeducativa.

Tais diferenças, se considerada a análise metacontingencial do SINASE, nos


sinaliza que deveria haver ações específicas e previsões para tais diferenças de gênero, que
sob o manto da lei que se aplica a todos sem discriminação, acaba fornecendo distinções
importantes e que impactam no resultado final no processo socioeducativo, e contratriando
pressupostos que deveriam ser a base da elaboração da lei, conforme determina o Decreto
3.744 (Brasil, 2002).

O anuário estatístico SUBSIS (2022), por sua vez, inclui um tópico específico
sobre interseccionalidades, mas com importantes pontos de melhoria sugeridos. O primeiro
é que o relatório promove a inclusão de dados sobre as diferenças de gênero, conforme a
acepção 2 (Zanello, 2018), que trata da identidade de gênero, mas não fornece informações
importantes sobre a acepção 1, binarismo estratégico, o que poderia gerar novos dados e
insights para a criação e fortalecimento de políticas públicas, tanto para lidar com o público
feminino quanto para o público masculino. Isto mostra que o Decreto 4.377 (Brasil, 2002),
apesar de publicado há mais de 20 anos, não tem, na prática, o seu pleno cumprimento,
corroborando a argumentação de Fraser (2016) quanto ao sucesso em transformar a cultura
contrasta com seu relativo fracasso para transformar instituições e suas práticas culturais.

Adicionalmente, o anuário não engloba duas informações importantes: a


escolaridade dos adolescentes e a ausência ou não de filhos. Os dados falam sobre a família
secundária, de origem (genitores, irmãos), mas não tratam sobre a família primária
24
(cônjuge, filhos), muitas vezes já construídas para esse público, fortalecendo o ciclo da
pobreza (UN, 2021), no qual crianças nascidas em famílias de maior vulnerabilidade social
têm menos acesso a cuidados de saúde, habitação adequada, educação de qualidade e
emprego do que aquelas em agregados familiares com melhores condições. É uma
constatação que pode ser observada pelo caso da Adolescente A, que perdeu seu filho num
acidente trágico, por falta de infraestrutura e segurança doméstica básica. As Nações
Unidas defendem que investir na primeira infância, promover a educação inclusiva, dar aos
jovens adultos uma renda básica e combater a discriminação contra os pobres são os
ingredientes-chave necessários para quebrar os ciclos de vantagens e desvantagens próprios
do ciclo da pobreza. No entanto, negar ou blindar os dados sobre a escolaridade e presença
de filhos acaba deixando uma parcela importante do processo socioeducativo de fora da
análise estatística oficial.

Outro ponto importante é sobre o apoio ser pouco dimensionado para o público
masculino, que é majoritário na prática delitiva, no cumprimento de medidas
socioeducativas e nas estatísticas sobre violência doméstica. Johnson (2017) propõe grupos
de apoio para meninas, no entanto, conforme defendido por Lima & Büchele (2011) e
Costa (2021), é preciso incluir também, e principalmente grupos de apoio e auxílio para
meninos, que não necessariamente são ensinados a não estuprar, matar, e na contramão,
como produto cultural do meio, são estimulados a performaram a sua masculinidade de
maneira a supervalorizar o consumo de bens e mulheres (Gusmão et al, 2022), estimulando
posturas agressivas e, em última instância, delitivas, num contexto social de exceção como
o vivido atualmente, fortemente engravescido pela vivência da pandemia mundial da Covid
19.

Assim, a legislação atual já representa uma significativa evolução. A metodologia


utilizada para sua construção - participativa e envolvendo inúmeros atores relacionados
com a vivência da execução de programas socioeducativos - fizeram com que a mudança
na lei se apresentasse de forma consistente com a relativa mudança social da área. Os
objetivos iniciais demonstram sistematicidade com as mudanças apontadas pelo anuário.
Estes dados e os estudos anteriores de análises de leis a partir de metacontingências
indicam que a forma como a lei foi escrita e implementada tem impacto na mudança das
práticas elencadas por ela. A Lei do SINASE, entretanto, falha em determinar
procedimentos concretos para a execução das medidas socioeducativas, sinalizando apenas

25
a necessidade da construção de novos documentos que o façam. Nas normativas seguintes,
pouco foi dito acerca dos procedimentos específicos das questões de gênero, maternidade e
paternidade. As ações, mesmo as bem sucedidas, não partem de uma regra e ainda
dependem da discricionariedade dos servidores de cada unidade, em oposição ao proposto
na própria elaboração do SINASE.

A resolução Nº233/2022 do CONANDA, como documento mais recente acerca


destes procedimentos, visa estabelecer condições de igualdade às adolescentes em relação
aos adolescentes. Nas visitas às unidades de semiliberdade realizadas para fins desta
pesquisa ficou evidente a necessidade desta normatização, pois as condições não poderiam
ser mais díspares entre o tratamento dispensado na unidade masculina em relação à
feminina. A resolução, entretanto, não contempla nenhuma consequência para seu
descumprimento e também prevê poucas mudanças estruturais que viabilizem a mudança
nas ações.

Nas entrevistas ficou evidente que desde o primeiro procedimento - relativo ao


encaminhamento para unidade de saúde visando garantir orientação de planejamento
familiar e saúde sexual das adolescentes - não há sistematicidade com relação à unidade
masculina, as quais sequer oferecem preservativos, nem possuem orientação regular e
específica acerca de saúde sexual e contracepção.

Ainda não há programação de contingências para o desenvolvimento de uma


paternidade responsável e presente - a equipe se atenta apenas para a possibilidade do
adolescente estar usando o(a/as/os) filho (a/os/as) para receber benefícios de flexibilização
de regras e horários de cumprimento da medida, mas nenhum programa é destinado à sua
real responsabilização e envolvimento nas atividades das crianças.

Quando as leis trazem contingências completas e operacionais, percebe-se uma


mudança nas práticas culturais consistente com o previsto na Lei, logo, o estabelecimento
de normas consistentes, que denotem a previsão de uma topografia de comportamentos,
dentro de um contexto bem esclarecido e com a sinalização das consequências para o
descumprimento delas pode garantir que o processo de ressocialização não apenas seja
mais efetivo, mas encontre amplitude ao amparar possíveis mudanças na estrutura familiar
dos adolescentes em conflito com a Lei, em lugar de manter as condições sociais
envolvidas no problema do envolvimento infracional.
26
Como fator preponderante, deveria ser incluído no TPS aplicado ao SINASE
(Molina, 2019) o perfil principal do adolescente que cumpre medida socioeducativa no
Distrito Federal: meninos, pretos ou pardos e em vulnerabilidade social. Tal inclusão pode
alterar a forma de processamento, a distribuição dos recursos e otimizar os resultados
apresentados. Não olhar para as diferenças de gênero pode perpetuar uma visão carente de
feedbacks e com pouca efetividade na prática da ressocialização dos adolescentes em
conflito com a lei, prejudicando assim o cumprimento da missão do Sistema Nacional de
Socioeducação.

Olhar para o gênero apenas como identidade de gênero exclui as


excepcionalidades presentes no fato de se tratarem de adolescentes meninas ou meninos,
com diferentes performances, cobranças culturais e contextos de socialização. Um olhar
mais atento sobre tais diferenças pode enriquecer o processo de análise cultural e possíveis
ganhos com o processo socioeducativo no Brasil, que avançou muito na última década, mas
ainda possui desafios importantes para os próximos dez anos.

A análise do comportamento tem muito a contribuir para efetivar mudanças em


problemas sociais, tendo ferramentas de investigação de questões complexas e tecnologias
comportamentais que contemplam mudanças em práticas culturais que podem ser
fundamentais para a transformação do contexto em que a cultura infracional se desenvolve.

Como sugestão de trabalhos futuros, fica o desenvolvimento de estudos


específicos sobre a saúde mental dos trabalhadores envolvidos no cumprimento da medida
sócio educativa, seja pela grande formação de vínculo, seja pela sensação constante de
“enxugar gelo”, por não haver efetivos resultados sendo apresentados no curto prazo. É
preciso valorizar o trabalho desses profissionais e entender os adolescentes como
importantes vetores na construção de uma sociedade mais igualitária e menos violenta.

5. Referências Bibliográficas

Anjos do Amanhã (2006) Rede Solidária Anjos do Amanhã - Vara da Infância e da


Juventude do TJDFT, voluntariado aplicado às necessidades apresentadas por
crianças e adolescentes atendidos pela Justiça da Infância e da Juventude.
https://www.tjdft.jus.br/informacoes/infancia-e-juventude/programas-e-projetos/site-
anjos-do-amanha

27
Brasil (1979). Código de Menores. Retirado em 08 de fevereiro de 2023, do
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/l6697.htm
Brasil (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Retirado em 11 de
junho de 2022, do http://www.planalto.gov.br
Brasil (1990). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e
do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF:
Presidência da República, 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 17 abril. 2021.
Brasil (1991). Lei nº 8.242, de 12 de outubro de 1991. Cria o Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF: Presidência da República, 1991. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8242.htm.
Brasil (2002). Decreto Nº 4.377, de 13 de setembro de 2002. Promulga a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979,
e revoga o Decreto no 89.460, de 20 de março de 1984. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm#:~:text=DECRETO%
20N%C2%BA%204.377%2C%20DE%2013,20%20de%20mar%C3%A7o%20de%
201984.
Brasil (2012) Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo. SINASE. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2012.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12594.htm. Acesso
em: 16 abril. 2021.
CNJ (2019) Conselho Nacional de Justiça. Reentradas e reinterações infracionais: um
olhar sobre os sistemas socioeducativo e prisional brasileiros/ Conselho Nacional de
Justiça – Brasília.
https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/01/Panorama-das-Reentradas-no-Si
stema-Socioeducativo.pdf
CONANDA (2006) RESOLUÇÃO N.º 119, DE 11 DE DEZEMBRO DE 2006 Dispõe
sobre o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e dá outras providências.
https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/download/resolucao_119_conanda_sinase.p
df
CONANDA (2022) RESOLUÇÃO N.º 233, DE 30 DE DEZEMBRO DE 2022
Estabelece diretrizes e parâmetros de atendimento socioeducativo às adolescentes
privadas de liberdade no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE).
https://www.gov.br/participamaisbrasil/https-wwwgovbr-participamaisbrasil-blob-ba
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