Você está na página 1de 4

Uma vitória contra o aparelho de dominação da

burguesia monopolista
por Maurice Cukierman [*]

O que impressiona na vitória do NÂO em França e, de igual modo, na


Holanda, são as condições em que ela aconteceu. Quaisquer que sejam
as consequências (e nada aponta para o pessimismo, muito pelo
contrário), esta vitória tem, desde já, um carácter histórico, pois o NÃO
tinha contra si o que se necessitava para que fosse derrotado.

Todo o aparelho ideológico da burguesia monopolista foi recrutado. Com


excepção dos jornais L'Humanité e Marseillaise, toda a imprensa diária
foi mobilizada para vender o tratado constitucional à opinião pública, tal
como a imprensa semanal e mensal (salvo o Le Monde Diplomatique ). Raramente o Le
Monde e o Libération mentiram com tanta falta de pudor. Os programas de rádio e televisão
não foram excepção. Discursos arrogantes, mentirosos, nojentos mesmo, alguns deles,
quando se referiam aos partidários do NÃO!. Os debates ou eram organizados entre
partidários do SIM (manifestamente mais fácil), ou eram concebidos como ciladas onde
deviam cair os partidários do NÃO, com jornalistas em chusma no papel de animadores, ou
davam um lugar exagerado à expressão do NÃO reaccionário e xenófobo (FN e de Villiers).
Christine Okrent, jornalista vedeta da televisão, foi tão longe que a Alta Autoridade para a
Comunicação Social, que tanto se tem desacreditado com as suas atitudes, viu-se obrigada
a chamá-la à pedra (sem consequências, evidentemente).

Face ao NÃO, entraram na liça, como nos bons velhos tempos, todas as Igrejas – católica,
protestante e judia – num apelo comum ao SIM que, ao fim e ao cabo, não produziu milagre,
mas diz muito acerca da realidade das ameaças que pesam sobre a separação da Igreja e
do Estado, como também sobre a escola pública, ao contrário do que pretendiam Chirac e
Hollande (a violação das leis respeitantes à laicidade do Estado, aquando da morte do
paladino do anticomunismo e ex-locatário do Vaticano, permitiu-nos constatar o que se
preparava).

O NÃO teve de enfrentar a mobilização do aparelho de Estado dos monopólios capitalistas.


Três intervenções do Presidente da República (que ele tenha sido mau, é outro problema) e
intervenções quase diárias dos ministros, a que se devem acrescentar as intervenções de
membros da Comissão Europeia (antigos e actuais) e chefes de governos estrangeiros. As
circulares eleitorais enviadas para nossas casas, com exclusão das argumentações do
NÃO, exortavam a votar a favor do Tratado.. 60% da juventude votou NÃO, o que é ainda
mais interessante, dado que Durão Barroso, o Presidente da Comissão, enviou a todos os
reitores dos liceus de França, com a cobertura do ministro Fillon, um carta que obrigava os
professores das turmas do 12º ano dos liceus a distribuir uma bruchura sobre o Tratado
Constitucional, cujo conteúdo se caracterizava pela ausência de qualquer referência
concreta ao texto e pelo seu carácter laudatório! Por outro lado, o mesmo Fillon mandou
mandou destruir 165 mil exemplares da revista "Documents pour la classe", pelo facto de a
apresentação do opositor ao Tratado ser mais convincente que a do seu partidário! E a
revista só foi enviada com uma contribuição deste último, acompanhada de um verdadeiro
ultimato aos professores para que a utilizassem a fim de sublinhar as pretensas vantagens
do Tratado Constitucional relativamente ao seu futuro. Desde Pétain, o colaborador dos
ocupantes nazis, muito dificilmente se faria melhor!

Portanto, os trabalhadores, os democratas, os jovens de França (e passou-se o mesmo na


Holanda e passar-se-á onde quer que um referendo esteja previsto) enfrentaram
directamente, com este voto, a máquina de dominação do capital monopolista, tanto no
plano ideológico e institucional como no plano político.

A atitude dos partidos da burguesia monopolista tradicional não nos espanta muito. Mas, a
oligarquia financeira pôde contar também com representantes seus no seio do movimento
popular que são a direcção e o aparelho do Partido Socialista, sujeitando-os a exporem-se
numa posição difícil perante as massas. Contrariamente aos que pretendem continuar fiés
ao reformismo e alinharam no campo do NÃO, Hollande, Strauss-Kahn, Lang, Aubry e
outros tiraram a máscara e defenderam uma aliança descarada com o liberalismo. Daí, o
terem-se revelado abertamente como liberais-socialistas, socialistas nas palavras e liberais
nos actos. Esta dilucidação das suas posições deve permitir ao movimento popular dissipar
qualquer equívoco a este respeito. É que não há SIM de "esquerda", se "esquerda"
significar "responder às expectativas dos trabalhadores e das massas"! Os que fizeram
campanha a favor do SIM fizeram campanha pela destruição das Caixas de Aposentação
em proveito dos Fundos de Pensões, da Segurança Social e instituições de Providência em
proveito dos bancos e companhias de seguros, pela diminuição dos impostos sobre
rendimentos, por uma política monetarista contra salários e pensões, pelo aumento dos
orçamentos militares e reforço da NATO, pela criação de organismos políticos todo-
poderosos, responsáveis perante... ninguém, pela concorrência livre e não falseada ( ou, por
outras palavras, para que não haja mais empresas públicas nem possibilidade de
intervenção pública que ajude este ou aquele sector da economia ou empresa), pela
privatização contra as nacionalizações, pelas deslocalizações e filosofia da directiva
Bolkenstein... A implementação de um tal programa pode fazer-se com mais ou menos
violência, mas é sempre a política dos monopólios capitalistas contra os trabalhadores: o
velho reincidente do social-liberalismo, Lionel Jospin, não disse, aliás, outra coisa, quando
apontou o carácter heteróclito do NÃO que impediria (pelo menos era o que pensava) a sua
união! Com isso, ele subentendia pura e simplesmente que o campo do SIM era
homogéneo e, portanto, equivalia a reconhecer que a diferença entre a política do PS
maioritário e a de Chirac-Raffarin-Villepin-Sarkozy são, de facto, duas formas de uma
mesma política, o que os eleitores haviam muito bem compreendido em 2002 e reafirmaram
rotundamente em 29 de Maio. As forças democráticas, o movimento popular devem, pois,
deixar esses senhores e essas senhoras sociais-liberais no seu campo, o da reacção, e não
os ajudar a refazer uma falsa virgindade.

Os eleitores do NÃO tiveram ainda de se opor aos falsos sindicatos que, na realidade, são
funcionários da União Europeia, dadas as somas que esta lhes paga de uma maneira ou de
outra, e dirigentes da Confederação Europeia dos Sindicatos e seus cúmplices. Esses
senhores apelaram a votar SIM ao lado das organizações patronais. Le Monde, Libération,
os meios de comunicação social difundiram largamente a sua posição. Em França, ao lado
de Chérèque e da CFDT, o Secretariado Confederal da CGT, contra as decisões do Comité
Confederal Nacional e das federações, apostou maioritariamente no campo do SIM. E não
apenas Le Duigou e os seus amigalhaços do clube de Philippe Herzog, onde convivem lado
a lado patrões, sindicatos amarelos e socio-liberais! Bernard Thibaut tudo fez, nessa altura,
para atenuar o alcance da tomada de posição da direcção nacional da CGT. Também aqui é
necessário que os trabalhadores separem, sem tardança, o trigo do joio, para que essa
gente não possa apodrecer a colheita.

O desafio é importante. A classe dominante precisa, por um lado, das organizações que
continuam a enquadrar e a desencaminhar o movimento popular, confinando-as à
alternância... da mesma política, e, por outro, não pode renunciar ao seu projecto de uma
União Europeia dos imperialismos, que procura construir há cinquenta anos!

A tentativa, à vista, de estender a mão aos partidários do liberalismo social, não pode
separar-se do seu reverso: a reafirmação de que o NÃO seria uma vontade dos eleitores de
verem o Tratado renegociado e que isso não poria em causa a construção europeia! As
forças do campo do NÃO, que se entregam a esta manobra, exactamente como os socio-
liberais e a direita, não compreenderam nada do que se passou em França a 29 de Maio e,
na Holanda, no dia 1 de Junho. De facto, não há lugar para o sonho e para as utopias que
preparam um despertar doloroso. O que se condenou foi uma política, para lá dos matizes
marginais, que, de há cinquenta anos para cá, é a desta União Europeia, no quadro de cada
Estado que a compõe. A UE foi criada para esta política e para nenhuma outra. Por
consequência, reclamar uma renegociação, fazer planos tão miríficos quanto irrealistas,
quer do ponto de vista do conteúdo dos tratados existentes (Roma, Maastricht, Amesterdão
e Nice), quer da relação de forças, é contribuir para um retorno ao seio da dominação
monopolista – PS maioritário incluído – das massas populares. O novo primeiro ministro, de
Villepin, tal como Chirac e Hollande não se enganam quando afirmam que os franceses
querem continuar "a aventura europeia"! Evidentemente, a aventura deles, a dos seus
lucros e das suas prebendas!

Começámos por qualificar como histórica a vitória do NÃO. E são raras na História, nos
períodos não-revolucionários, os períodos em que o povo, contra todo o aparelho de
dominação, rejeita o espartilho a que a classe dominante o quer sujeitar. Mas isso está a
multiplicar-se há alguns anos e o clube vai crescendo: a Noruega por duas vezes, a
Dinamarca por duas vezes, a Irlanda, uma vez, a Bolívia, duas vezes em poucos meses, a
Argentina, o Equador e, agora, a França e a Holanda. E, todas as vezes, sobre questões
relativas à mundialização da exploração pelas forças imperialistas. As "ovelhas negras",
expressão que Chirac pensou ser dissuasiva, tornaram-se um rebanho e, muito
rapidamente, poderá surgir, de novo, um canto que os monopólios e os seus homens de
mão julgaram esquecido: "É a luta final, unamo-nos e amanhã..."

[*] Militante da URCF

Tradução de MJS.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Você também pode gostar