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I

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I

Seleçao de textos, revisdo critica e apresentacdo


) Heliana Angotti Saigueiro
)
) Traduçao
CelyArena
UNIVERSIDADE DR SAO PAULO

)
Rnitor Jacques Mtocovitch
Vice-rritor Adoipho José Melfi

)
Ied°°P
U EDITORA DA UN! VERSIDADE DE SAO PAULO
)
Prnsidrute Plinio Martins Fitho (Pro-!enpnre)

Corn LOo Editorial Plinio Martins Filho (Presidcnte)


José Mindlin
Lanes dc Mello e Souza
MurilloMaes
) Oswaldo Paulo Forattini

Diretora Editorial Silvana Bird


) Diretora Gsrnr,-rja/ Eliana Urabayashi
DiretorAdrnioistra(iyo Renato Calbucci
) Editorai,vte,,te Joao Baodeira
Copyright © 1996 by Bernard Lepetit - -

Dados Internacionajs de Catalogaçao na Publicaçao (CIP)


(Camara BrasiLejra do Livro, SP, Brasil) Era urn homem de grande envergadura, urn desses corn quem
sabemos poder contar No momento ern que as estudos urbanos estño
Lepetit, Bernard
Por Uma Nova Históda Urbana/Bernd Lepetit; seleçao de sen reativados, seu desaparecirnento deixa urn vazto ainda major
textos, revisSo crItica e apresentaçao Heliana Angotti Salguci-
ro traduçao Cely Arena - São Paulo Editora da Universidade /. Cabe a voci, a você e a todos aqueles que trabaihavam corn ele, retornar
de São Paulo 2001
a chama e dar a conhecer seu pensamento cuja notavel inteligencia
.... ....__.._ impresszonou a todos nos.

Dv
Bibliografia
ISBN 85-314-0612-9
6
François Loyer em carta a Heliana A. Salguciro,
1. Ciências Sociais - História 2. História social 1. Salgueiro,
Heliana Angotti II Titulo referindo-se a morte de Bernard Lepetit, em 1996
06

01 1037 CDD 306 fO.;Z

0 que essa rnorteprecoce tern de insuportavel esta iniclalmente


Indices para catálogo sistematico
1 Historia urbana Sociologia nisto ela veto inteomper urn pensamento que so se concebia no moat
306
mento e na confrontaçao Bernard Lepetit citou varias vezes umafrase
que Michel Foucault djrjge a si mesmo e que ele transformara em regra
d9 vida: "Vocijdprepara a salda que Ihe permitird, em seu próximo
Direitos em lingua portuguesa reservados a
livro, ressurgir em outra parte e zorn bar como
Edusp - Editora da Universidade de Sao Paulo faz agora: näo, não, eu
Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J. 374 flao estou ai onde voces me esprettam mat aqut de onde rindo eu as
6 andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária
05508-900 - São Paulo - SP - Brasil - Fax (Oxx Il) 3818-4151 j difz
vejo ' [... que a morte tenhaforçado opensarnento
Tel. (Oxxll) 3818-4008/3818-4150 de Bernard Lepetit a imobilidade contra a qual ele construiu sua vida.
WWw.uspbr/edusp - e-mail: edusp@edu.usp.br
Impresso no Brasil 2001 I
Jacques Revel 1998
Foi feito o deposito legal -


S U MARIO

Apresentacão . 11

1. Proposicoes Para uma Prátjca Restrjta da Interdisciplinaridade ..... 31


2. A Cidade Moderna na Franca. Ensaio de História Imediata ........ 45
3. De Alexandria ao Cairo. Práticas Eruditas e Identificaçao dos
Espacos no Final do Seculo )(VIII 87
4. Uma Lógica do Raciocinio Histórico (Nota CrItica) ............. 117
5. EPossIvel-umaHerrnenêutica Urbana? .......... .................137
6. 0 Presente da História . .................................. 155
7 Arqwtetura Geografia Historia Usos da Escala 191
8 A Historia Leva os Atores a Serio? 227
9 A Evoluçao da Noção de Cidade segundo os Quadros
Geograficos e Descriçöes da Franca (1650-1850) 245
10 Os Espeihos da Cidade Urn Debate sobre o Discurso dos Antigos
Geografos (Bernard Lepetit Marcel Roncayolo Jean-Claude Perrot
Jean-Pierre Bardet e Daniel Roche) 265

Bibliografia das Obras de Bernard Lepetir 301


APREsENTAcA0

Bernard Leperit era urn Mestre. Como raramente se encontra algurn. Em


todos os sentidos, dc se entregava ao duplo ofIcio de historiador-rnesrre corn
paixão, corn inteligência, corn o prazer de nos comunicar a cada serninário suas
novas reflexöes e de ouvir nossos senrimentos a respei to. Urn Mestre que em tao
pouco tempofez escola dinâmica e aberta ao trabalho experimental, conquistou
seguidores que se ret'inem ainda hoje, rnesmo que esporadicarnenre, pot estar-
mos muitos de nos espaihados em vários paIses do mundo. E quando nos
encontramos em Paris unidos por sua ausencia falarnos dele em nossos proje
tos e dilvidas - que devernos agora resolver sozinhos - ou cam inhamos juntos
em silencto nos arredores da Ecole des Hautes Etudes sentindo sua presença a
nosso lado. Bernard Lepetit foi surpreendido pela morte, por atropelarnento,
aos 47 anos, enquanto fazia seu jogging num domingo, 31 de marco de 1996,
emVersalhes onde nascera em 28 de agosto de 1948
Cursou a École Normale Superieure de Saint-Cloud, cuja reputacão in-
telectual para a formação em ciências sociais 6 das mais reconhecidas; em segui-
da fez Doutorado em Historia (na epoca chamado de Doctorat de Trozsième
Cycle) e depots Docto rat dEtest en Lettres (Historia e Geografia) na Universidade
de Paris I. Professor na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales desde

11

1I -- - -- - -
) BERNARD LEPETIT PDR UMA NOVA HISTOR,A URBANA

1984 e Directeur d etudes a partir de 1989 ministrava naquela insritulção dois e recusada em nome das convençöes e da racionalidade processual a antropolo
) serninarsos Espace etH,stoiree La recherche urbaine clans les Sciences Sociales Foi gia estrutural e contestada pelo estudo das modalidades e efeitos da pratica

) também secretário de redaçao dos Annales de 1985 a 1990 e em seguida co- historicizada das culturas. Em várias disciplinas, levantam-se ddvidas que, jun-

) editor lançando editoriais que foram testernunhos de uma nova fase do pensa tas manifestam a cristalizaçao de urn novo paradigrna 2 A construção da His
mento historiográfico, em 1988 e 1989; seu papel na reorientaçao dessa revista, -, tória comb urn processo em constante revisão sempre rnarcou seu trabalho, que
)
m fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch fol muito alem da mudariça do subti questlonava os modelos e convicçóes estabelecidos havia mais de trinta anos na
tub, em 1993. 0 apelo a urn diálogo internacional e a conscincia de estarmos historiografIa. Consciente da contemporaneidade inerente ao próprio oficio,
vivendo urn "tournant critique" e metodobogico da História cram conscantes em repetia a advertncja de seu mestre Jean-Claude Perrot: "Dc todos os livros,
seus textos daquela epoca inscritos numa conj untura intelectual aberta as prati historiador escreve os mais efemeros ou lembrava a celebre frase de Lucien
I
cas do debate Febvre A Historia e fulha de seu tempo acrescentando a ressalva e a partir de
) No ultimo livro que dirigiu Lesformes de lexperience Une autre histoire questöes do presente que a pesquisa historica reconstitui o passado que por
sociale do qual publicamos aqtti o capitubo de sua autoria dc convoca colegas tanto e objeto de uma reconstrução sempre reiniciada
)
de areas afins ligados a Ecole des Hautes Etudes e aos Anna/es Para revisar A coletânea de Bernard Lepetit que jntroduzo aqui ao piiblico de lingua
conceitos desgastados como mentalidades longa duraçao e contribuir corn portuguesa apresenta se come, seu titulo indica corn o proposito de estimular
)
as analises da açao na situaçâo que lessaltam a liberdade dos atores ,ndtvidua,s a renovação dos rurnos da historia urbana area de estudos que tern crescido e
e o interesse de seus diferentes percursos biograficos microistóricos em vez das j despertado urn interesse scm fronteiras nos i'iltjmos anos, seja no âmbito das
generalizaçoes de classes Trata se de partir das categorlas socials associadas as ciencias soclais sea no ambito da pratica propriamente dita dos que se ocupam
práticas, em análises contrárias a macroeconomia labroussiana, ao furicionalis- - do planejamento das cidades. A cronologia nâo foi priorizada ou seguida a risca
) mo anti historico ou ao estruturalismo determinista dos antigos Anna/es e as na sequencia dos textos (escritos de 1990 a 1996 exceto os dois ultimos que

) velhas noçöes de °domiriaçao" a "controle social", caracreristicas da reoria social


2. Cf. Bernard Lrperit, "Histoire des pratkues. pratiques de l'histoire", introduçao a Lecfor'nn Se I'expési en cc.
radical dos anos de 1970: segundo Lepetit, a linguIstica saussuriana ooöe-se a
1 U,,ca,,rre hiatoiresorialc, Paris, Albin Michel, 1995, P. 14. Para urns critics pdstuma de algumas dessas
sernantica das situaçoes contra as determinaçoes per habitus insiste se flu plu po tur s Yet o historiador log1 , Gareth Stedmanjones, "Une autre histoiresoc, Ie (note critique)",
Annales HSS n 2 mar.-abr. 1998 Aresposta dos A ,-aI a o arugo nao confere inreiramence o estatuto de
rahdade dos mundos da ação a racionalidade substancial dos atores economicos
nov ç oh, toriografica a tod s as id6ias de L petit e dos autores de sua c let n abstr ,ndo a
q er I s iniciadas Poe uns eo Eros as qu is Bernard Lepenc n o pode mais r sponder, seria premoturo
1 Refer ncia ao tirulo do editorial que m r ou epoca: "Histoire et Sciences Sod Ira Un tourn ntcritiqu vail to alcance das novas propostas cuia repercussio e recente o faro e que Lep cit incomodoi, aqueles
- Annalea ESC, n.2, mar.-abr. 1988. Em 1989, encabrçando os Annalesde nov.-dez., n. 6,o mesmo (itUlo imobjlizados mis "verdades esiabelecidas". Ver nesse sentido as observaçoes do discipulo soico, Francois
retorna, confirmando os prOpOSitOS de mudança em editorial ("Tentons l'expérience") e em artigos que Walter, "Portrait. Du spatial au social. Comment Leperit a d&angd nos certitudes", Traverse. Revue d'Hiseoire,
evidnc,vm asnov postuas 31996 pp. 7-12, line aurreh to soil Revue Suiise sa'Hsor vol. 47 1997 pp. 59-66.
l
1 -

) 12 13

)
POE IJMA NOVA HISTORIA URBANA
BERN A RD Lr ET IT

reduzia nem a urn tema nem a uma dimensão ilnica, [embora] predilecöes fossern
são de 1979), uma vez que, em se tratando de Lepetit, a evo!uçao do pensarnen-
desde cedo reconhecIveis"4 . Scm pretensôes de ousar urn ba!anço historiogrEfico
to não é sinbnirno de tri!ha, mas de bifurcaçoes, dados os rniiltiplos paradigmas
de sua obra plural e inacabada, chamo a atenção apenas para alguns eixos de ariElise
crIticos que dc faz dialogarem entre si ou os ângulos de análises que reaparecem que se destacam em seus ini'irneros artigos e !ivros: a CIDADE Co ESPAcO, este
corno releituras, novas facetas de abordagem que, muitas vezes, por caminhos e sempre presente (em razão de sua "vocação inicial para geografo que nunca desapa-
exemplos diversos, levarn a conclusöes de base semeihante, que se ramificam receu") e confrontado ao TEMPO, a gênese do T ERRITO RIO, das aglorneraçöes e
num constante processo de reflexão auto-renovada. da popu!açao (tema da tese de Doutorado em História, em 1976, sobre a cria(iEo
A escoiha dos textos reunidos neste volume de minha inteira responsa- da cidade de Versaihes e sua dernografia no tempo de Luis XIV); seguem a organi-
bilidade e se apóia numa dupla óptka que se cruza: visão geral e metodologica da zaço das REDES URBANAS e a construção e a interpretação de REPRESENTA-
História e especIfica da pesquisa urbana em si, flOS seus vários niveis e escalas de çoEs ESPACTAIS (tema do Doctorat d'Etat, cm 1987), em pie pensar a cidade
observaçao; temas recorrentes os aproximarn em vários pontos - traço caracte- significa pensar junto a maiha urbana e territorial, enfocando-a ainda con-so urn
rIstico da maneira de Bernard Lepetit pensar a História, ou seja, corno urn observatório das relaç6es entre os hornens, onde "passados" diversos se encontram
sistema de crIticas. Pretendendo renovar ou revisar o que se fizera, ou posicio- formando novos sisternas: Les villes dans la France Moderne. 1740-1840, publicado
nar-se em relaçao ao que se estava fazendo, muitas vezes o autor constrói sua em 1988, foi considerado pot Roger Chartier, em resersha para o jonial LeMonde,
reflexão a partir de releituras da historiografia, fundarnentadas em "hipóteses e "como uma pequena revo!ução historiográfics" cuja demonstraçao das hipóteses,
explicacoes solidamente articuladas", numa espécie de "episternologia de traba- apoiada em arnpla pesquisa, 6 articulada como num raciocInio cientIFico. Charder -
Iho de campo", por rneio de "re!açöes de troca entre teoria e prática", experi- observa ainda que, ao deixar de lado o gênero monográfIco herdado da geografia
mentadas no "âmago do próprio objeto"3. Segundo Lepetit, "urn born Iivro de - - regional do começo do sécuio, Lepetit analisou as cidades do Norte e do Sul dentro
História, como urn modelo econom&rico, é urn sistema de exp!icacão so! Ida- de uma rnacroaná!ise nacional, inscrevendo-as num sistema dinâmico em que, nas
mente arnarrado. [.1 representaç6es abstratas, construIdas a partir de relaç6es palavras de Grenier, "a permanência de formas estruturais" nEo impedia "mudanças
hipotéticas que não erltram em contradiçao corn os dados, respondendo a prin- pot vezes radicais nas modalidades de funcionamenro"5; deve-se observar que essa
cipios de coerência interns" (ver Tor uma Prática Restrita da Interdiscip!inari- obra já era fruto de maturidade intelectual, a!icerçada em remas correlatos tratados
dade", texto que abre esta coletânea). anteriormente, corno o dos caminhos e das redes de transporte6.
Nesse senrido, Jacques Revel, ao pronunciar-se sobre Bernard Lepetit dois
anos após sua rnorte, observou que, "como toda obra importante, [a dde] rião se 4. CE Jacques Revel, "Bernard Leperir", Per on Aria nrc Stance delMezzogiarsrn edella Sicilia in En Moderna.
Omaggio a Ber.'ardLrpenit, Nipoles, Liguori Editore, 1998, p. 280.
5.Jean-Yves Grenier, op. cir, p. 522.
3. Jean-Yves Grenier, "Bernard Leperir (1948-1996)", Annalea HSS, n. 3, rnaio.jun. 1996, P. 522 0 a',tor
6. Reflro-me a Cheminade terre Cr reieod'eao. Rtsraux de transport etorganisanios de l'rspsnce en France, 1740-1840,
observa que elesabia compreender aidgica drum testo, st,a construçao e seu lagar nos debates e problem8ticas
Paris. Editions de I'EHESS, 1984.
em curso, na hisrória como nas ciincias sociais. -
as fvf
15
14
- ) BERNARD LE PETIT - Port DMA NOVA HISTORIA URBANA

Outros eixos de pensamnro Se definiriam mais tarde, segundo o cdi to- "história total", expressão costumeira nos anos de 1970/80. Porm defender a
) rial de hornenagem póstuma dos Anna/es: as VJAGENS e as CATEGORIAS DE queda das barrejras do trabaiho intelectual nleo signifIcava, para dc, desrespeirar
ANALISE INDIVIDUAlS. Para representá-los, iriclul aqui urn dos ültimos tex- as jdentidades de cada disciplina; deve-se lembrar que não acreditava nas propa-
)
tos de Lepetit, o iinico que ele escreveu sobre a expedicao francesa ao Egito ladas "alianças" - "o esperanto fbi uma utopia empobrecedora" —' mas em "tro-
)
(tema de uma vasta pesquisa interrompida pot sua morte), em que procura cas interdisciplinares" relativas a objetos concretos. Trocas que não podem de-
reconstituir as novas modalidades de producao de urn saber sobre o espaco a senvolver-se "por acaso mas que adquirem sentido na conjuntura intelectual do
partir das experincias mentais dos atores sociais, sua percepclo do lugar es- meio em que se instalam", ou seja, em centros de pesquisa onde exisrarn possi-
tando "nele mesmo" e a complexidade das diferenças entre uma civilização e bilidades de reflexão conjunta e ocasióes para o debate das diversas práticas face
outra. Em seus seminários sobre o tema, o mestre procurava construir a his- a temas operacionalmente circunscrits.
.1 tória a partir das experincias e observaçoes ao mesmo tempo culturais e Assim, Lepetit via a cidade como "urn objeto complexo a solicitar a con-

- 'i--) intelectuais dos participantes da expedicao: o modelo historiográfico de Vol- frontaçao cruzada das interrogacöes das ciCncias humanas", razão que reforça a
ney e os textos e desenhos de Vivant Denon compöem uma espcie de "siste- importância fundadora das "Proposicöes para urna Prática Restrita da Interdisci-
)
ma de estudos de caso"7 . A expediçlo ao Egito constituiu, segundo Lepetit, plinaridade". Lepetit não so redefine aqul, como virnos, essa noção, limitada aos
- "uma ocasião quase experimental" para se compreender a articulaçao entre as discursos, como analisa a Iuz da historiografia algurnas possiveis relaçöes entre as
modalidades diversas do sistema de representac6es e a fabricaçao da imagem ciências sociais - preocupação vjsIvel tambérn em outros textos selecionados para
pela observaçlo direta, a acumulaçao de dados e a comparacão de informaçöes esta coletânea, corno "Uma LOgica do RaciocInio HistOrico", que é antes uma
tomadas de emprstimo a outros campos do conhecimento, uma vez que o "nota crItica" sobre urn livro do sociologo Jean-Claude Passeron (Le raisonnernent
) Egito foi encarado como urn "laboratório frances das ciências, das artes e das socioksgique. L'espace non-p oppérien tie raisonnement naturel), visando a atingir urn

) t&nicas do espaco nos sculos XVIII e XIX"8 . "optimum metodolOgico" para essas ciCncias fora dos riscos da generalizacleo; ao
As propostas de associação da História corn as outras Ciências Sociais tratar da liberdade do pesquisador frente a seu objeto, destaca a pertinência do
sempre caracterizaram scu trabalho. Em contraponto com a major parte das recotte como qrsestiio central para tornar viável uma interpretaçleo que deve cons-
análjses em curso, Lepetit via a cidade não apenas como urn cenário ou uma truir-se tomando como base o cruzarnento de fontes de natureza diversa e ern
2
rnoldura, mas como um ponro de convergencia de enfoques pluridisciplinares, vários nIveis de articulaçöes. Desse modo trabalha Lepetit, seja quando dialoga
- que nao queria dizer que era urn objeto que se prestasse as ambiçöes de uma
9. Segundo palavras do prdprio Bernard Lepetit, 'Les Anna/es. portrait de groupe avec revue". Une école pour its
7. Observaçlo de Bernard Lepetic em semin8rio realizado no EHESS, em 4 de janeiro de 1996. iE/.
saencesss'ciales. De la I'7 section 2 des HautesEderen Sciences So c/aLe,, rexcos reunidos porJacques Revel
8. Pars a expresslo de Leperir, cf. A,,nssles HSS, n. 5, set-our. 1997,p. 967. A observacso carte aspss 6 de C. NarhanWachrel, Paris, Cerf/EHESS, 1996, p. 45, e nasua inrrodugSo "Hisroire des prariques, pratiques de
) Topalov, "Bernard Lepetit in mes,soriasn", Geneses, n. 23. jun. 1996. P. 3. l'Hirroire", em Lesfomesdrl'expErieece, op. cit.. p. 16.

16 17
)
)
POE UMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

corn aqueles que analisa, seja corn os atores de histórias aparentemente circunscri- de Perrot: "todo o sentido (de urn trabaiho] está na relação entre os seus diferen-

tas, inscrevendo-os nos exercicios cornparativos das relaçóes entre o caso e o mode- tes nIveis". A construção da coerncia interna a partir de urn sistema de relaçôes

lo. Nesse eixo, algurnas questöes presentes em sua obra interessarn-nos sobrernar 6 premissa de conduta lembrada em quase todos os seus textos de marcada voca-

rseira, pois revelarn major pertinncia para o estudo das inter-relaç6es: os processos ção metodológica. Num deles, tambêm inc!uIdo aqui, "A Cidade Moderna na

de difusão de inovaçóes e os fenôrnenos de aculturaçao'°. - Franca. Ensaio de História Imediata", Lepetit Se mostra mais uma vez atento ao

Nas "Proposicoes para uma Prática Restrita da Interdisciplinaridade", as trabaiho de pesquisadores estrangeiros, confrontando algumas obras de tradi-

reflexóes são expostas em tópicos nurnerados, alguns contendo subt6picos, re- çöes historiograficas diferenres, nas quais a cidade desconsts-uiasana1iticamen-

curso didático complementado por notas de rodape em que estão citados aiguns -. te, de urn lado como elemento de urn sistema que a engloba, de outro como

dos mais importantes textos sobre as tomadas de posicão de porta-vozes das sistema cujos elementos ganham sentido em relaçao uns aos outros; dal a opcão

ciências do hornem nos áltimos vinte anos (muitos traduzidos entre nós). A set pot entender a cidade a partir de questöes parciais colocadas frente a suas multi-

ressaltada a confrontação crItica proposta na leitura de Lepetit, que inova a plas dimensöes.

cornpreensão do papel de cada uma das ciências sociais e de suas complexas Ele se perguntava como apreender esse fenômeno sociocultural total

relaçöes recIprocas, scm cair no otimisrno teórico de uma convergncia ou uni- que é a cidade e escapar das causalidades circulates que ]he são inerentes sem

ficaçao ilusória de métodos e objetos, mas mantendo-se atenro as perspectivas cait nas armadilhas do funcionalismo ou da ideologia que impregnaram por

de alianças praticáveis, abertas a variaçôes controladas e perrinentes segundo a tanto tempo a análise urbana. Charna a atenção em especial Para as frequen

' urbano tornou-


dimensão de cada terna de pesquisa. Para Marcel Roncayolo, "o tes reduç6es de situaçöes locais a categorias genéricas e para as modifcaçoes

sea torte de Babel das ciências da sociedade"1 , torte em que Lepetit queria "vet que o pragmatismo imprime no modelo. Levanta urn ponto comurn nas

felizes seus construtores". obras que analisa nesse "ensaio de história irnediata": a relaçao indissociEvel

Proclamava assirn a mobilidade disciplinar como urn "direiro fundamen- entre os grupos sociais e a configuracao material das cidades, alertando ao

tal [...] de toda atividade intelecrual", desde que exercido derirro de ljnijtes plau- mesmo tempo sobre os limites das relaçóes imediatas entre espaco e socie-

sIveis'2. Essa prdtica restrita, que incentivava nos diversos trabaihos do tese que dade, território a comunidade, cristalizadas pelos determinismos, e rnostra

dirigia, era guiada pela formula que dc havia guardado de seu rnestreJean-Clau- o interesse de se estudar o engajarnento das sociedades urbanas no presente
:
das cidades ou as modalidades de reutilização das formas urbanas do passa-
do, problemática da atualidade recorrente em sua obra.
10.Sobre os primeiros, vet: La yule etl'innoyatio,, en Europe, 14-19 siecles. Estudos publicados sob a direçao tie
BernardLepeticejochen Hook, Paris, Editions del'EHESS, 1987. 0 ESPAçO associado ao TEMPO suscitou pesquisas de objetos
11. Marcel Roncayolo, Let grammaires dune ri/Ic. Eooai our In gcnisedeootrssctureo urbaineoti Marseille, Paris, definidos, ao longo da trajetOria de Lepetit, desde o texto fundador,
Editions del'EHESS, 1996, p. 20. - -
"Histoire Urbaine et Espace", publicado na revista L'Espace Geographique,
12. Cf. Jacques Revel, op. tic, p.283.

18 19
) BERNARD LEPETIT POE LIMA NOVA HISTORIA URBANA

)
n. 1, em 1980, ate seus 61timos projetos interdisciplinares, o da expedicao mesma duraçao, e, nessa conjuntura, o papel que cabe a pesquisa: pensar
ao Egito (ao qual já nos referimos) e o das viagens pelo Mediterrâneo'3. A de maneira menos mecanicista a diversidade dos tempos da cidade e suas
) questao espafo/tempo na história das cidades, sendo nuclear em seu relaçöes corn os usos e práticas sociais. Atento a complexidade das teorias

) pensamento, merece çomenthrios mais detaihados, pois está presente em da auto-.organizafão e da teoria do caos, Lepetit escreveu sobre a necessidade
varios textos desta co!etânea. Lepetit observava "as formas da experincia" de se entender como "aevo!ução das sociedades urbanas ao mesmo tempo
)
nas cidades, "nós de temporalidades plurais onde o passado sedimentado está contida em seu passado e e pouco previsIvel"t. AD considerar "a
nas formas sempre co!ocado no presente nas práticas" 4 , extraindo historicidade dos sistemas espaciais ele sugere como as mudanças podem
conseqüèncias metodo!ogicas das diferentes temporalidades dos elementos set pensadas através do jogo de atualizaçóes possIveis das formas passadas
que compóem as cidades, dos ritmos do tempo das coisas e do tempo dos de organizacão do espaco em combinaçóes novas"17, A relaçao do espaco
- homens, expressôes dde mesmo na conferência "Le temps des villes", que corn seus usuários ou os fenômenos de semantização dos lugares já estão
retoma e resume quest6es de dois textos aqui traduzidos, "A Cidade presentes no artigo de 1993, "E PossIvel urna Hermenutica Urbana?", em

) Moderna na Franca" e "E PossIvel uma Hermenêutica Urbana?" Lembro- que urn prob!ema inevitável para as cidades é ressaltado: a reutilizcição de
me das observaçoes de Lepetit em co!óquio sobre a questão, destacando a edifIcios do passado ou a presenttjicacdo como atualizaçao das formas
irnportncia e o caráter contraditório das mutaçöes econôrnicas, seu efeito antigas, questo de que ele voltará a tratar em "A Cidade Moderna na
desigual no espaco, devido aos contrastados ritmos de desenvolvimento Franca. Ensalo de História Imediata", de 1995.
hoje, quando os elementos que estruturam as dinârnicas urbanas não tern a Bernard Lepetit, que se posiciorlava sempre corn base na critica histo-
riografica, afirmou, nesse texto, como se propusesse urn prograrna metodoló-
) 13. Vet "Dc Alexandria ao Cairo. Prticas Cierstfficas e IdentificaçSo dos Espacos no Final d0 Siculo
gico, que, em vez de voltar as propostas da semiologia urbana dos anos de
XVIII". cujo man uscriro em francIs me foi envi ado polo auror, antes que saisse publicado em iraliarso.
'1
em 1995, sob o titulo "In Presersza del Luogo Stesso... Pratiche Docre e Idenrificazione degli Spazi Olin 1970, estaria atento as sugest6es da aná!ise praticada por Paul Ricoeur quanto
Fine del XVIII Secolo", Quader,si Srbrici, 3, dez. 1995. Sobre o Mediterrineo, ver Bernard Lepetit aos processos de apropriacao e dotaçlo de sentido que tanto a leitura de urn
Marie-Noelle Bourguer, "Remarques sur Ies images de Ia MIditrrranie (1750-1850)", Atas do coIdquio
texto como a afdo comportam. Retrospectivamerite, remetia tambCrn a Mau-
I 'Linvention scienrifique de la Midirerranie", Arenas, jun. 1995.
.
14 ExpressEes ciradas por Christian Topalov em "Bernard Lepetit in ,,ren,,riam", Gm loot, op. cit., referindo-se
- as obras coletivas Temptsralitts tobaj,,es e La Cirtd e /osus' Stone, cicados no biblingrafla de Bernard Lepecir. 0 15. Cl. foihero reference a 'Le tempo des elItes. Journies scientifiques organisies par Ia Maison des sciences de
) fenOmeno da persisrIncia das formas na cidade e as loses de sua histdria haviam sido percebidas por L5once L'homme, Paris, 27-28 de marco do 1992", em que os temas dos sessSes foram: o tempo dos siscemas urbanos,
- Reynaud em seu conhecido Traiiid'Architecture, em meados d0 sIculo XIX; essas quesracs foram retomadas o tempo dos atores sociais, n tempo dos formas urbanas.
e acualizadas nas reflexaes de Lepetit e esrBo presences em alguns tacos desca coletlnea; areferIncia aos irmios 16. Observaçao de Francois Walter, "Une aurre hisroire sociale", Recur Sui,eed'Hiotoinc, vol. 47, 1997, p. 62.

J - sansirnonisras Reynaud, especialmenre no belo texco "Villes", de Jean Reynaud, do EncyclopEdic nouvelle, 17. "Hommage S Bernard Lepecic. Prisenrstion", Anna/es lESS, n. 5, set-out. 1997, p. 965. 0 comentirio
aparece em urn dos tools importances capleulos do mu ji citado Let p1/Ic, dons La France rnodmse: "Rerour aux refere-se so torso "Remarques our la concribuiriors do l'espace I I'analyse historique", em l'aysages dEcauverts,
representations". 1993, vol. II, PP. 79-90.

-) 20

)
Port UMA NOVA HtSTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT -

rice Halbwachs, quanto aos fenômenos de formaçao social do valor no espaco, "E PossIvel uma Herrnenêutica Urbana?" e "A Cidade Moderna na França',
na mediação do tempo corn a rnensória das relaçoes sutis entre os grupos SãO exemplares20.

sociais e seu território'°. E ainda, mais do que nos levantamentos da psicoge- As questöes da atualidade historiografica - "regimes de historicidade

ografia, ele buscaria na antropologia dos objetos (a referéncia agora é a A. Apa- modelos de temporalidade", "micro-história e microssocial" e "o espaco püblico

durai, organizador de The Social Life of Things. Commodities in Cult'uralPers- e os lugares do politico" -, presentes corn maior ou menor enfase em quase

pective, Cambridge, 1986) as analogias para compreender, sern mecanicismo tcjdos os rextos desta coletãnea, reaparecem renovadas pelo enfoque baseado na

linearidade, o trinômio temporal dos lugares, das coisas e dos homensta. metáfora geográfica das escalas de análise próprias a cada disciplina em outro

AD observar que os modelos temporais tern o presente como centro de artigo, "Arquitetura, Geografia, História: Os Usos da Escala", de 1993, iriclul-

gravidade, Lepetit refere-se especialmente ao historiador alemão Reinhardt do como urn dos mais importantes capitulos da obra Jeuxd'échelles, coordenada

Koselleck, leitura obrigatoria sobre as relaçoes entre história e tempos, regimes por Jacques Revel em 1996, vista comb urn manifesto dos novos rurnos das

de historicidade ou temporalidades especIficas e mi1tip1as das situaçöes urba- CiCncias Sociais. Bernard Lepetit, mantendo al sua posicão relativista, ye no

nas vividas pela experiCncia humana, dos quais os dois textos já mencionados, princfpio de variação da escala urn recurso de excepcional fecundidade metodo-
lógica, pois torna possivel a configuracao de objetoa complexos levando-se em
conta a estrutura de camadas superpostas da realidade social, que vai variar
18.Sabre aquesrso, eu lembraria aqui cambm outro artigo. "Cappropriation de l'espace urbain: la formation de segundo a escala de observaçao escolhida. Ou seja: "fenôrnenos maciços que
a vakur dans Is yule moderne, XVI'-XDP siècles", publicado em Histoire. Economic, Sociéth, n. 3. em 1994,
estamos habjtuados a pensar em termos globais, como o crescimento do Esta-
em que Lepecic se ceferia S "cornplexidade temporal" dos cidadese Contra rodo e qualquer dererminismo entre
sociedade e espaço urbano: "a morfologia econSmica nao in decaique dos principios de fuhcionarner,to - -
do, a formacao da sociedade industrial, podern set lidos em terrnos completa-
imediaro do mercado, do Esrado, dat lucas de classe ou dos comporranrenros ancropologicos das familias. (E rnente diferentes se tentarmos apreendê-Ios atravs das estratgias individuais,
ningulm acredita mais que Os comporcamencos citadinos sejam produros do dererminismo da geogralia
as trajetórias biográficas, individuais ou familiares, dos homens confrontados a
urbana.) Pars compreender a cidade, deve-se separar analiricamence a sociedade fe seu espaço; des evoluem,
sabe-se, segundo cemporalidades diferentes. Per/rn convenience pensá_los juntos: coda arirude diference eles", conforme palavras de Jacques Revel na apmesentacão do livro2t. A postura
parecerf redurora. Do morfoldgico so social e vice-versa, Se aceicarmos a simplificagao d25 determinacOes
se alinha aquela que proclarna a volta do ator social,
direras, a med,acao do tempo se impoe. E enrSo, somenre, que Se pode cruzar asociedode ciradina en espaco
arbano e impedir que em cads uma dos duos esteras a explicaçSo cola na circularidade. E aqui rambdm que
devemos juncar as duos esferas, sicuadas numa errata conmmporaeseidade, pois a cidade esr4 roda, espaço
sociedade, sempre no presence". Cf. P. 559, Quasico S referfncia a M. Halbwachs, C. Topalov segui's Os 20 Areferencia I R mb rdr Koselle k LeFuturpassi. Contribution h lat mane qu des temps hsarormq tea rrad do
alemao deJnchen e Marie-Claire Hoock, Paris, Pdicions de l'EHESS, 1990. François Walter observou no
passos de Lepesic, so escrever "Maurice Halbwachs crIes villes (1908-1912). Une enquf cc d'hisroire sociale
des sciences sociales", Annales 1-ISS, n. 5, sec-our. 1997. Porrraitde Leprrir, jfcirado, a presencados conceicos de Koselleck, "espaco de experilncia" e "horizonce de
espera". Dc Koselleck, pode-se Icr cambim: L'ncpirieomrehistorique, Paris, Hauces Erudes/Gallimaed, 1997.
19.Todu o reecho vem do rexco "Le temps des villes", Villea. Msesire CC culture, n. 1. Strasbourg, dez. 1994, p. 16.
21. CE Jeusrd'Echellea. La micro-analysed l'expIrience. Textes rassem b/St etpreaen cit pas'J. Revel Paris, Haures Ludes/
Dois snot sores, vtmos, Lepecir coordenarajornadas cienrifica.s cam esse citulo, desracando a diversidade dos
tempos d0 cidade. Gallimard/Le Seuil, 1996, pp. 12-13. -

22 23
POR DMA NOVA HISTORJA URBANA
BERNARD LEPETIT

Porque a experiéncia dos atores sociais se reveste de novo significado, Os textos finais desta coletânea, "A Evoluçao da Noção de Cidade segundo
inclulmos aqui "A História Leva os Atores a Sério?", em que Lepetit situa o fim os Quadros Geográficos e Descriçöes da Franca (1650-1850)" e "Os Espelhos da
do "longo eclipse do ator" nas duas correntes de historiografia dominantes - de Cidade: Urn Debate sobre o Discurso dos Antigos Geógrafos", devem set vistos

urn lado, Labrousse e Braudel corn a estatIstica descritiva, os enfoques macroe- como urn momento retrospectivo da biografla intelectual de Bernard Lepetit,
Goff e Le Roy
conôrnicos e o estudo das estruturas espaciais; de outro, Le pois remontam ac, inicio de sua carreira, lernbrando a inclinação para o diálogo
Ladurie, corn o primado das representacöes cornuns ou de uma história das corn seus pares que caracterizaria sua ttajetOria. Jacques Revel destaca a lucidez do
mentalidades que nao consegue renovar seus ternas. Propóe a redefinição da jovern historiador Lepetit, urn dos primeiros a perceber a crise conjuntural dos
sociedade nao mais como urn decaique das relaçoes de produçao ou das represen- modelos do conhecirnento cientifico no final dos anos de 1970, levantando desde

taçdes generalizantes do rninsdo, mas como


uma caregoria daprdtica social. A seus primeiros textos sinais de alerta que se concretizariarn mais tarde, quando
conclusão desse artigo fundador de uma nova ordem hisroriografica articula-se esteve a frente do comité de redaçao dos Anna/es, corn a operaçEo editorial reno-
corn os posrulados exposlOs em "0 Presente da História", que leremos tambm vadora de conceitos e pthticas. As idêias de Lepetit, quando tinha 31 anos, beam
nesta coletâriea, destacando a experincia dinâmica dos atores nas coordenadas objeto do citado debate, que reuniu alguns dos rnaiores pensadores sobre a cida-
espaciais dos co ntextos e segundo seus horizontes temporais. A anJise de Lepe- de, procedentes de diferentes campos disciplinares. Arnbos os textos, apesar de
tit data de 1995 e registra algurnas dessas novas posturas em obras recentes terem vinte anos, afiguram-se como fundadores de questôes básicas, como a con-
sobre momentos históricos e relaçoes dos grupos diretamente envolvidos neles; ceituação das hierarquias citadinas - tema que, no Brasil, ainda nao foi suficiente-
a "outra história social" a que se referem afasta Os "recortes preconcebidos da
rnente elucidado por faka de uma pesquisa mais aprofundada das representacöes,
realidade social" que se lirnitavarn a "institucionalizar os atores" em categorias
atenta as várias categorias de definiç6es geográficas das cidades. Oscritrios do
sob "formulas p reguicosaS e côrnodas": "burguesia", "classe trabaihadora". urbano dependem nao so da politica administrativa ou da prosperidade econôrni-
que
Sao rnuitas as refiexóes a tirar dos textos de Por uma Nova História Urbana, ca, mas dos coriceitos de apteensão do lugar por parte de seus habitantes.
refletem o clirna i ntelectual vivenciado no Oltirno decnio: observe-se, por exemplo, Embora o texto de Lepetit e a discussão subseqOente tratern principal-
que urn modelo analitico pode encontrar sua coeréncia em torno de uma dada
merite da Franca, servem-nos como exemplo metodolOgico e sisternático de
situaçao, corno a construcão de uma cidade, evento que reOne por uma curta uma reflexão que não dissocia as representacOes das realidades reinterpretadas
duração e numa dinâmica especifica atores sociais cujas jdentidades e trajetOrias
gracas ao concurso de documentos de ordern diversa. Além disso, pontos co-
vm a tona pela açEO inscrita em categorias ternpOrais Iocais23. muns sobre a génese das representacOes ou as definiçOes do passado podem set

Lea former de l'expérience; ver a respeito E


detectados apesar das diferenças de funcionamento de cada cidade, de cada pals.
22. Essas fOrmulas e outras são criticadas pelos aurores do colerInea
Walter (artigo cirado), que analisacom clareza a merodologia que a dirccionou. No dialogo, que reOne historiadores e geografos, Marcel Roncayolo observa que
La Casaque di4rlequin. Belo Horizonte, one
23. Permito-me inscrever aqui as posiçöes tomadas em minha tear uma história comparativa das geografias nacionais ou dos pensamentos econ6-
rapicale ec1ectiqoeauXl)' siècle, Paris, Editions de L'EHESS, 1997 (o manuscrito 6 de 1992).

25
24
BERNARD LEPETIT PaR OMA NOVA HISTORIA URBANA

micos colocaria questöes mais pertinentes as definiçôes urbarias. Jean-Claude referèncias que se perpetuam) rião sejam acompanhadas de observaçöes so-
Perrot, pot sua vez, alerta sobre o risco de se conferir, hoje, "estatuto quase bre o contexto intelectual em que se inscreveram Ha origem, nern sobre
cientifico" aos conceitos operatorios, que "na real idade advèm, inteiramente, da seus limites, linhas de referência e fottuna crItica, que restituiriam sua
ideologia de seu tempo". Em rneio a discussão sobre a lugar das muraihas Has historicidade.
definiçoes tradicionais, Lepetit remete-nos a atualidade do problema da evolu- Resumindo, destaco alguris eixos do pensamento de Bernard Lepetit aqui
ção das formas citadinas em relaçao ao territ6rio, corn a desaparecimento do reunidos: a cidade como objeto complexo pedindo a confrontação das interro-
lirnire espacial e a emergência da cidade de contornos fluidos, a cidade semfim, gacöes das cièncias hurnanas afirmadas em sua identidade, on seja, a interdisci-
cuja referência é a megalópole americana. plinaridade coma urn processo controlado de empréstimos reciprocos; a fecun-
Abro urn parêntese, ainda sobre o texto do debate, Para reafirmar didade da articulaçao dos diferentes nIveis, do cruzamento das fontes, das m6ltiplas
que a discussão a respeiro da cidade cresceu na Franca corn a pratica do complementares escalas de observação; a dinâmica experimental dos atores
dialogo: lembremos que quase todos Os que discutirarn em 1979 a texto sociais e de silas trajetorias; a diferenciaçao das temporalidades, os processos de
de Lepetit ja haviarn se reunido dois anos antes em nota crftica publicada mudanças e as reurilizaçöes das forrnas passadas; as desnIveis que ocorrem entre
nos Anna/es, "Pour une nouvelle histoire des villes", sabre o livro de Jean- as dimensóes econômicas, sociais e culturais. São estimulantes, finalrnente, para
Claude Perrot que marcou época, Caen auXl/III' siècle, publicado em 1975. nossa história urbana, os enfoques que acentuarn a afdo na situafão concreta e
Observada a distância entre as enfoques dessas duas ocasiöes e as do nd- que dão a diacronia o lugar Perdido nas ciCncias sociais, os que destacarn as
mero dos Annales sobre História e Urbanismo, em 1970 — que se descontinuidades do espaco em que as indivIduos atuam simultaneamente numa
tornararn discutIveis cinco anos depois, sob crIticas que seriam ainda mais pluralidade de esferas diferentes, quase sempre contradit6rias. Ao recusar os
agudas no decênio seguinte24 —' ye-se que a reediçao de qualquer urn des- dogmatismos e a irnobilidade das tradiçoes, categorias e métodos apreendidos,
ses textos hoje pede atenção e ressalvas sobre o que se debateu a respeito Bernard Lepetit optou pela invenção intelectual, aberto as surpresas do trajeto,
deles. A proposito, 6 lamentável que, no Brasil, as traduçoes tardias de dando a mao ao pesquisador que busca outros cam inhos.
certas obras (não apenas da hisrórja urbana, area plena de lacunas e corn

24. AnMises e levancamencos da producso intelecrual consciruem urn passo imprescindivel para 0 avanço da
hisroriogralia; abstenho-me dos prerensoes de fazer aqui urn repertdrio, pois a lisra ratio muflo longa; 0 leitor
0 leitor perceberá que as notas dos textos contêm rica bibliografia de
encontrard, porim, algumas referincias nas norm e indicaçoes sobre trabaihos em vdrios poises em: Jean Louis
Biger e Jean-Claude Hervi, Panoramas Urbaino. Situation tie l7-Iioroire des nuts, FonrenaylSalrtr_Cloud. E. referência internacional, tanto da perspectiva rnetodológica historiografica quanto
N. S. Editions, 1995.A thulo indicativo, j at conracom ama sdecso de obras e arrigos referentes a hisroriograflo
do ponto de vista de urna renavação da história urbana, propósito de Bernard
francesa: L'J-Iiotoire urbaine en France (Mayen Age - XX5 siicle). Guide bibliogeaphique. 1965-1996, Paris,
1Harmarrm, 1998, Colecao Viler, histoire, culture, sod/ti. Lepetit que retomamos flesta coletânea. No final do volume, transcrevernos

26 27

j..
C
C
I
BERNARD LEPETIT POR DMA NOVA HI5TORIA UREANA

uma bibliografia de suas obras, estabelecida no ni'imero especial dos Cahiers du historiador tao pouco conhecido no Brasil como Bernard Lepetit, gesto que
Centre des Recherches Historiques dedicado a dc em outubro de 1996, gentil-. corresponde aos objetivos editoriais fundadores de abertura a renovação do
mente cedida pela secretária da redaçao Nicole Fouch6 e levantada por Caroline conhecirnento e de incenrivo a critics historiografica no pals.

) Varier, Nabila Oulebsir e Isabelle Backouche. Procuramos atualizá-la incluindo

) alguns textos publicados após sua Heliana Angotti Salgueiro


—j Ressaito e agradeco infinitarnente a traduçao irnpecável e atenta de Cely Sao Paulo, abril de 1999.
Arena, que soube imbuir-se corn profundidade da ironia inteligente e das metá-
bras próprias da linguagem por vexes tao complexa de Bernard Lepetit, respei-
tando-a mas procurando torná-la clara para o leitor brasileiro. Mm do cujdado
e rigor da tradutora em buscar as expressöes mats pertirientes nos casos dificeis,
destaco suas notas sobre termos da história urbana que nao constam dos dicio-
J nrios ou não tern traduçao, dadas as próprias diferenças poiftico-administrati-
vas das cidades de urn pals e outro. Optou-se por manter no original alguns
termos especfficos da reaiidade urbana francesa já incorporados aD repertório do
piibiico.
Alérn da revisão técnica feita por rnirn, outras düvidas da traducao foram
esciarecidas gracas aos contatos frequentes que estabelecernos na Franca corn
Nabila Oulebsir, Marie Vic Ozouf Marignier e em especial Caroline Varier, a
) quem registro meus rnelhores agradecirnentos. Estendo-os a Murillo Marx, pela
leitura dos originais da traduçao.

) Sou grata ainda as editoras que nos cederam os direitos de publicacao em

) portuguCs dos artigos de revistas c capItulos - Hautes Etudes, Le Seuil, Galli-


rnard, Albin Michel, École Normale Supérieure de Fontenay/Saint-Cloud, Cen-
)
tre des Recherches Historiques Belin Economica Association Espaces/Temps
Centre International de Synthese Armand Cohn
Agradeço finalmente a Editora da Universidade de Sao Paulo pelo apoio
dado desde o inlcio a esse projeto, acoihendo a publicaçao da obra de urn

28 29
1.PR0P0sIçOEs PARA UMA PRATICA RESTRITA
DA INTERDISCIPLINARIDADE*

1. Adotemos, numa abordagem inicial, esta definiçao: a interdiscipli-


naridade 6 a forma que assumem as relaçöes entre práricas cientIficas
especializadas'. Essa forma é variável, e podemos fornecer alguns elernentos de
sua história. Comecernos no final do s&ulo XIX, quando se fortalecia o mo-
vimento de delimitaçao e de afirmaçao das diferentes ciências sociais. Naquele
momento, Durkheim e a Escola francesa de sociologia ligada a revista L4nnée
sociologiquemilitavam pot urna prática unificada das cincias sociais. Urn m-
todo fundado num cornparatismo generalista e na delimitaçao sistemtica das
variaçöes concornitantes deveria assegurar a esrruturação do catispo. Essa pra- - ---
rica regulamentada, que Durkheirn define como o método sociologico, deve-
na permitir a reorganizaco das ciéncias sociais em torno da sociologia e
reduzir a história, a geografia, a estarfstica social ou a etnografia a condiçao de

— Propositions pour une prarique restreinte de I'interdisciplinarir", em Revue de Synthse. sub 4, n. 3, juL_set.
1990, pp. 331-338.
1. Esse rexto mi iniciaLnsente urns palescra. Tentei apenas, reromando minhas anoraçOes, set menos alusivo:
. - desenvolver exemplos, ilustrar algumas proposicOes intermedikiss, fornecer relerOncias para leiruras
cornpLensentares consriruiu o essential de meu trabaiiso. For ourro Lado, mantive voLunrariamente o caráter
esquemácico do conjunro de minhas proposras. Este, emborasó cornpromeca a nsirn, nasceu dos reflexóes que
desenvoLvemos arualmente nos .,4nnatn.

31
BERNARD LEPETIT
POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

disciplinas auxiliares, fornecedoras de fatos empIricos mas desprovidas de Ca- elevada. Depois, durante vários anos, os habitantes viram suceder-se as equipes
pacidades explicativas e portantO sem real autonornia2 Entretanto a sociolo de pesquisa Antropologos geneucistas gerontologos etnologos sociologos e
gia hoje n5o dornina nenhurn imperio a formidavel ambiçao do imperialis pswossociologos geografos multiplicam os ponros de vista Os habiros alimen
mo sociológico enfrenta a resistência das disciplinas estabelecidas que mantm tares e a mortalidade, as atividades econôrnicas e a fe, a delinquencia e a instru-
sua E tudo parece rnerecer uma revisbo. çbo, os comporrarnentos politicos e o comrcio varejisra, entre vários outros
A leitura de LAnnee sociologique teve grande importancia na formaçbo ternas constituem o objeto de uns trinta relatorios e pubhcacoes 1 nitido o
intelectual dos fundadores dos Annales que se encarregaram de retomar boa principio do projeto em vez de unificar as ciencias do homem de acordo corn
parte do projeto e sobretudo das ambiçBes dos sociologos durkheimianos3 uma metodologia preestabelecida trata se de provocar uma siruaçbo de inter
Marc Bloch e Lucien Febvte e depois deles Fernand Braudel deram prioridade disciplinaridade oferecendo a urn grande numero de disciplinas urn campo co
a descomparrtmentacbo do trabalho intelectual Os muros sao tao altos que
mum de dimensöes reduzidas que as obriga ao encontro e ao confronto 0
muitas yeses obstruem a visao lamentava em 1929 o editorial do primeiro relarorto conjunto da experiencla publicado dez anos mals tarde registra a esse
numero da revista que rncitaVa cada urn a tirar proveito das experienclas em respelto a consratação de urn fracasso a interdisciplinaridade tornou se urn
preendidas no jardim de seus vizinhos 0 projeto desenvolvia urn procedimen leitmotiv encantatorlo urn recurso irnaginario desuaado a dissirnular a
to que pretendia provar pelo exemplo e pelo fato sua capacidade dernonstrati m
compartientacao crescente das ciencias huanas
m e a crise do saber4
Acia
mde tudo o homem em sociedade constitula o ponto de convergencla Assim caminham as proposicBes sobre a interdisciplinaridade oscilando
das diversas cienclas socials Esse objeto cornum preexistente a todas as entre a valorizaçao de uma idade de ouro que se tentou fazer acontecer e o
metodologias e a todas as problematicas assegurava a unidade das disciplinas desencanto resultanre das experiencias passadas entre a consratação sempre re
que os historiadores almejavam estruturar. novada de uma fragrneritaçao das disciplinas e a ambiçao constante de sua unifi
A parte essa ukima ambiçao o grande trabaiho de pesquisa conjunta caçbo5 E dessa oscilaçao ciclica que nos gostariamos de escapar, corn as observa
iniciado em 1961 na comuna breta de Plozevet inscreve se perfeitamente nessa çBes seguinres
linha Em sua origem esta a escolha de urns comunidade hurnana cuja unidade -
senbo o fechameisro - era atesrada pot uma taxa de consanguinidade basrante 2 A interdisciplinaridade inscreve se num processo de evoluçao conti-
nuo do campo das cienclas sociais Esse processo e cornplexo na medida em que
2 Philippe Bernard (ed) The SociologicalDomain. The Durkh tnians and the Founding ofFren hSociology, remete a logicas e temporalidades que absolutamente nip coincidem E dificil
Cambridge,1984
3 Andre Brsrgurè Hi d n hit ire Ia narssance des Annaks Annals ESC 1979 pp 1347-1359.
4 A Bu gure e Bretons de P/az v t pref. deRobert G as In Paris, Flammarion, 1975
Jacques Revel "Histoire a Sciences so isles les p r digmes des Annaks Annales ESC 1979 pp 1360 5 Immanuel W llerstein Beyond Ann,alz em LesAnnales, bier etaoj u d/.srs coloq to intern cion d
1376 Moscou 3-8 our 1989 d rilogr I do

33
POE UMA NOVA HISTORIA URRANA
BERNARD LEE ETIT

avaliá-lo porque não garante a existéncia de nenhum ponto fixo que permitiria constante (a história dos Annales, por exemplo, poderia set escrira a partir dos

julgar os deslocarnentos relativos dos elementos da paisagem: tudo muda, inclu- dialogos que a história privilegiou sucessivamente corn a geografia, a dernografia
ou a antropologia). Isso significa que eta deperide tambm dos conreOdos pro-
sive o ponto de vista do observador. A geografia das ciências sociais, nesse
prios de cada uma das outras ciéncias humanas, que, como a história, mas em
aspecto, assemeiha-se a deriva dos continentes.
ritmos e segundo orientaç6es não necessariamente semeihantes, estão em cons-
Pode-se observar isso de rnaneira não aperias metafórica. Dc que resul-
tante evoluçao.
tam, nurn dado momento, as questoes históricas? Urna análise extrInseca reme-
Esses fenômenos são bern conhecidos, entretanto foram insufici-
terá as condiçöes do memento da producao do saber social. PoderIamos arrolar
enternente explorados em termos corn parativos. Mesmo retomados de
entre elas: o contexto ideologico global, o mais dificjl de iderstificar, uma vez
forma surnária, permitem sublinhar a muitiplicidade das conjunturas
que parece impregnar tanto a atmosfera e funcjonar corno as evidéncias periodi-
intelectuais em que se inscrevem a variedade das práticas disciplinares
camente esqisecidas; aquilo que a ordem oficial chama de "quest6es vivas", na
e os desnIveis dela decorrentes. Esses desnIveis permitem compreen-
maioria das vezes ditadas per uma atualidade de mais curro prazo; a organizacão
der-se meihor pot que a interdisciplinaridade 6 sempre urn projeto a
material da pesquisa, enfim, corn seus postos de poder, seus financiarnentos, o
retomar, por que o objetivo implIcito de seus promotores.mais volun-
funciorsamento de suas equipes. Complementar a prirneira, uma análise intri n-
taristas (unificar as ciéncias sociais, por redução de suas diferenças,
seca lernbrará que o historiador, corno os outros pesquisadores, dirige-se inicial-
conforrne urn rntodo ou urn objeto) não pode set mail do que urn
mente a seus pares e que, por isso, seus questionarnentos remetem a outros
horizonte. Mas permitem sublinhar também que todas as ciéncias so-
mecanismos e a outras temporalidades. Toda pesquisa histórica nasce no firn
ciais participam do mesmo tipo de conhecimento e que entre elas as
provisório de uma série de pesquisas sucessivas: dëfinêm-se suascaracterIsricas e
inter-relaçoes são mciltiplas, c os limites, jarnais estanques. No cod-
aprecia-se sua pertinéricia tambm de acordo corn as proposiçöes das preceden-
diano, independente de qualquer politica deliberada, realiza-se ulna
res. Na diacronia, cia Se inscreve, assim, numa rradiçao cuja origem Se desloca
interdisciplinaridade djfusa, mat percebida e ma! controlada. Talvcz
corn a evoluçao da disciplina6. Na sincronia, todo livro de história torna lugar
seja possivel, nurna espécie de programa interrnediário, ernprega-lade
na o rganizacão atual das constelaçöes disciplinares que dc, ao mesmo tempo,
man eira mais decisiva.
em sua escala, contribuj para definir e modificar. Isso significa que a pesquisa
histórica depende das delirnitaçoes das fronteiras disciplinares, mas sobretudo
3. As categorias oferecidas pela anáiise dos processos difusores da
das proxirnidades escolhidas ou impostas, que estão num processo de redefiniçao
inovação e os fenômenos de aculturaçao permitem seguir essa via7. Urna

7. Yvette Corsry, L'f,,croa'ucrjasn du dar,vinis,ne en France an XIX sjcIe, Paris, Vrin, 1974.
Michel Espagne
6. Han,G,rogGadamer, Wahr/aeitssndMethode,Tubingen, Mohr, 1955; trad. ft. VEritietrnithode. Lea gs-andes
Michael Werner, "La construction d'une rifirence cuirurelle allemande en France (1750-1914)", Annale,
jj,e,d'ehe,nsdneistiqphilassphiqne, Paris, Seuil, 1976.

34 35
BERNARD LEPETIT POP, UMA NOVA HI5TORIA URBANA

disciplina cientifica pode set defiriida como urn corijunto de regras teóri- abrade Labrousse9. Suas dua.s grandes teses— L'esquissedu mouvementdesprix etdes
cas e praticas que possibilitam a troca de experiências e conhecimentos revenus en France au XVIIP siècle (1933) e La crise ne l'économiefrançaise oi lafin de
enre as iridivIduos que as partilham. Toda disciplina irnplica permanência l4ncien Régime et au debut de La Revolution (1944) - são, sobretudo a prirneira,
dos elementos exteriores: fragmentos de saberes, prorocolos experirnen- trabalhos de econamistas inseridos nos debates e nas praticas da economia poiftica
tais, paradigmas interpretativos. Mas, precisamente par possuir sua pro- dos anos de 1930. Desenvolvern urn procedimenro experimental fundado numa
pria estrutura, uma disciplina jamais se expOe passivamente as influncias articulaçao cornplexa entre a rnodo de construção do fato histOrico e a produção do
externas. A interdisciplinaridade 6 urn caso particular de transferência cul- modelo explicativo. Ao longo de uma geracão, a histOria econômica francesa reduziu
tural. De sua análise, eu destacaria très pontas: o alcance dessas teses par vet nelas nada além de uma histOria descritiva, que estabelece
As trocas interdisciplinares nao se fazem aleatoriamente. So podern set uma série de equivalências simples entre a realidade passada, as fonres de arquivos, as
compreendidas a partir do papel de subversão ou de legitirnacão que represen- series numeradas e seu comentárjo.
tarn na disciplina receptora. Assim, a cronologia e as modalidades da transferên- A interdisciplinaridade C uma pratica arnbIgua. Baseia-se sempre em
cia dependern inicialmente da corijuntura do rneio receptor. Contra uma incompreensöes parciais. Não convCm, entretanto, larnentar que seja assim. As
sociografia da cultura que postula que as clivagens culturais se organizam segun- prOprias incompreensöes são criadoras, são produtoras de sentido. Urn anuária
do urn recarte social construIdo previarnente, Roger Chattier, por exernplo, recente recenseia cerca de 3000 series temporais construldas e publicadas par
defende uma mudança de perspecriva8. Para isso, ele mobiliza contra a hisrOria historiadores sobre a Franca do Amigo Regime: 641 series de precos, 243 de
sociocultural tradicional as fontes de disciplinas habitualrnente ignoradas e utili- producao, 310 de renda, 582 estatIsticas comerciais e monetárias, 224 series
za as técnicas da crItica textual, da histOria material do livro, da sociologia das fiscais, 348 financeiras, 328 dernograficas'°. Uma leitura mais acurada das crises
praticas e dos cOdigos de leitura. e da conjuntura, a reconhecimento da demografia coma variável legirima do
A acoihida da inovação depende da situaçOo do rneio receptor. Portanto universo econômjco foram os desdobrarnentos mais ricos desse acOrnulo de
toda transferència de conceitos, problemas ou métodos é acompanhada da saber ligado ao desenvolvimento da histOria serial posterior a Labrousse.
transformação desres. Coma a nduçao, a prática da interdisciplinaridade é sernpre
uma traição parcial. Tentei, cam Jean-Yves Grenier, dernonstiar issa na análise da

9. Jean-Yves Grenier e Bernard Leperir, 'I1exp6rience hisrorique. A propos dv C.-E. Labrousse". AnndeoESC, n.
ESC, 1987, pp. 969-992. Nathan Wachtel, "I2accsslrurarion", Faire tie 1/alatoire, sob a dirrcao de Jacques Le
6, 1989, pp. 1337-1360. Para urns denionsrraçao d0 mesmo tipo a respeiro de Michel Foucault, parriremos
offe Pierre Nora, Paris, Gallimard, 1974, t. 1, pp. 124-146. (N. da Org.: vote siltimo publicado no Brasil
deJ. Revel, "Foucault, Michel, 1926-1984", Dirtiovrnaire deaacierscrshistoriqscr, sob a direcao dnA. Burguibre,
cm 1976 peE editora Francisco Alves.)
Paris, PUP. 1986, pp. 290-292.
8. Roger Chartier, "Le monde commr reprisentorion", Ana1eo ESC. n. 6, 1989. pp. 1505-1520. (N. do Org.:
10.J.-YGrenier, SEries Eeouans iqsuofran çaioee)I/1_Xl/111 siEder), prefsicio dejean-Claude Perrot, Paris, Ed. de
psblicado em porruguéi no revisro &t,dasAsrançadoc, vol. 5, n. 11, jan.-abr. 1991.)
l'EHESS, 1985.
POR IjMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

corn a redu(;ão do nilmero e da cornplexidade dos comentários explicativos feitos


4. A coerincia das regras constitutivas de cada disciplina se desfaz e se
sobre elas. Defendo a arirude inversa.
reconstrói segundo lógicas internas e segundo a configuraçao das contigiiidades
Pot outro lado, uma disciplina nan é apenas uma forma de estruturação
disciplinares. Assim, as identidades disciplinares são historicamente datadas e
da realidade descrita (todas as categorias, todos os conceitos, alias, tim esse
são impelidas, a longo prazo, para uma redefInição radical. Mas, como essa
estatuto), é igualmente uma profissão, isto i, urn conjunto de procedimentos
evolução 6 o produto dificilmente previsIvel 4 cornbinação de urn conjunto de
tesrados que consriruem a garanria inicial de urn discurso coerente. Não esrou
práticas particulates e como se trabalha no curto prazo, prefiro defender a
certo de set urn born historidor, mas estou certo de não set urn born economis-
conservação das identidades disciplinares. Existern para isso dojs motivos prin-
ta. E no interior de uma prática disciplinar que, sern d6vida, são maiores as
cipals.
possibilidades de certificar-se da adequacao entre uma posição episternológica e
A difusIo de inovaçöes supoe, como acabo de dizer, diferenças de poten-
escolhas merodológicas, entre urn procedimento experimental e proposicöes
cial. Quarido a economia estuda o movirnenro dos precos no siculo XVIII ou
analiticas.
quando o filósofo estuda o nascirnento das estruturas de fechamento, quero que
cada urn aborde seu objeto como economista ou filósofo. Critith-los por rlão
serem bastante historiadores é causa perdida; creditá-los, ao contrário, por serem
5. Falarei, então, da posicão que ocupo - a de historiador - e de uma
completamente historiadores é uma postura redutora. Se eles se tornam historia-
prárica - a da história. Desse ponto de vista, vejo para a interdisciplinaridade
tris empregos principais:
dores e adotam todos os hábitos dos historiadores, a novidade radical de seu olhar
a) A designacão de objetos novos. Nenhum objeto de pesquisa se desraca
se extingue, sua capacidade de provocaçao se afro uxa". Inversamente, se o histo-
por sua evidincia: o olhar do pesquisador e sua abordagern é que Ihe delirnitam os
riador economista é urn economista do passado, a história e a economia já não
contornos. Ate o final dos anos de 1960, na Franca, por exemplo, a cjdade nan
tim grande coisa de fundamental a ensinar uma a outra. De certo modo, uma
constitui verdadeirarnente urn objeto de pesquisa histórica. Ainda C apenas urn
disciplina que morre 6 uma lingua que desaparece. Irnaginar seu desaparecirnento
cenário cômodo, urn palco em que se passa a história econômica, social ou politica
por anu!açao das diferenças é acreditar que a compreensão das sociedades progride
das sociedades que nela habitam, como se indiferentes a seu espaco. A ciincia
econômica que desenvolve a noção de economia de escala, a sociologia que estuda
os signos da distinçao e as modalidades da imitação, o urbanismo que destaca a
11. Encontram-se exemplos das rrês atitudes possiveis em relaçlo abrade M. Foucault eric PierreVilar, "Lea moss
plasticidade muito desigual das formas urbanas dizern todos a mesma coisa: a
es Jeschosesdaos lapensieéconomique", Lallour,elle Critique, maio 1976, pp. 27-34, recomado em id. Line
histo ire en tenor-union. Approchemarxisteetproblhnariques csnjoncnarel/es, Paris, GallimardlSeail, 1982. Paul cidade e, ern si rnesrna, urn objero complexo em que se manifesrarn todos os
Veyne, "Foucaulrrivo!urionae l'lsistoire", Co,nmenton écritl'histoire, Paris, Seuil, 2. ad., 1978, pp. 347-385.
fenômenos de interação, urn conjunto que C mais do que a soma de suas partes. A
(N. d0 Org.: erad. em porruguis: Coma Sc Ercrer,e a Historic, Brasilia, Editora do Univeesidade de Brasilia,
1982.)J. Revel, op. cit. oupran. 9.
complexidade do sistema urbano e a evoluçao das formas de sua organizacão fazern

39
38

k..
BERN A RD LEPET IT PoR UMA NOVA HISTORIA URBANA

da cidade urn objeto especIfico, a cornpreender-se historicarnente por si mesmo. c) Os elernentos para posturas meihor controladas. Esrar em outra parte,
Sua eniergêrtcia resulta menos do desenvolvimento da historiografia do que de entretanto, no é estar num lugar qualquer. E a interdisciplinaridade, scm dci-
urna confrontação cruzada das inrerrogaçöes das ciências humanas'2 . vida, ainda tern a virtude de permitir abordagens mais ponderadas. Em outro
b) 0 estabelecirnento de condiçoes para se produzir urn novo saber, isto texto, desenvolvo o exemplo do modelo que a história pode tomar empresrado
, para se ampliar a inteligibilidade do real. Como pensar de outra forma? a economerria. Sugiro que urn born livro de história, como urn modelo
Como escapar ao peso das tradiçoes acurnuladas? Como esquecer a evidncia ec000m6trico, é urn sisterna de explicacao solidarnente amarrado. Urn retorno
das categorias recebidas e dos mtodos aprendidos? Não 6 proibido inovar, mas as implicacoes do modelo econométrico permite ressaltar, pot analogia, as ca-
a invençâo intelectual nao é tao simples como parece. A prática da interdiscipli- racterIsticas dos livros de história: representacoes abstratas, construldas a partir
naridade pode assegurar o distanciarnento crItico de cada urn dos modos de de relaçöes hipotricas verificadas, que nao entrarn em contradiçao corn os da-
representacão do real e talvez permirir que nao se permaneça prisioneiro de dos empIricos disponIveis e respondern a princípios de coerêrscia interna, etc.' 5
nenhum. Como julgar os limites da história quantitativa descritiva senão a Seria exaustivo e iniStil, aqui, detaihar as consequências metodologicas dal de-
partir de urna sociologia mais habituada a lidar corn os modelos formais, de correntes.
urna demografia mais fundarnentada na análise das leis de distribuiçao, e mesmo
a partir das cincias do engenheiro mais habituadas a manejar os testes de hip6- 6. A posição adotada tarnbém obriga, pot outro lado, a especificar a con-
teses?13 Lembrernos as belas frases que encerrarn a introducao de L'archéologiedu tribuição da história para o diálogo pluridisciplinar. 0 papel do historiador cerra-
savoir: "Você já prepara a salda que Ihe perrnitirá, em seu próximo livro, ressur- merste não 6 oferecer as ciências sociais vizinhas urn repertiSrio de exemplos mais
gir ern outra parte e zombar como faz agora: nao, nao, eu nao estou al onde rico - gracas a diversidade do passado - do que aqueles que elas encontrariarn no
vocs me espreitam, mas aqui, de onde, rindo, eu os vejo"4. Michel Foucault presente. Seu papel tarnbrn não é, sobretudo, o de ensinar-ihes procedimentos de
define assim urn projeto. As ciências sociais, e com elas a história, para nao exumaçao, crIrica e utilizaçao das fortes antigas.
reproduzir dogrnatisrnos, devem seinpre estar em higar diferente daquele em AD contrário, a exploração dos mecanismos temporais pode consttuir
que se encontravam e onde se espera que estejarn. A interdisciplinaridade apare- a conrribuiçao particular da história. Contra o tempo linear das crônicas e da
Ce como urn ponto de apoio para esses deslocarnentos sucessivos. histiSria positivista, os historiadores dos Annales foram os primeiros a ressal-
tat a diferenciaçao das temporalidades e a privilegiar o longo prazo. Hoje, a

12.J.-C. Perroc, Ceo Redone vile modes-ne. Case,, an XVIII siècle, Paris, EHESS/Mouron, 1975,
13. Para algumas aplicacaes. B. Leprtir, "CEvolutiors de I'humaniri", Lea Villes darn L5 France modes-ne (1740- 15.8. Leperit, "CHisrolre quantitative: deux ou crois choses que je sais d'elIe". em Hi,roire etItdeoure, n. 3-4,
5840), Paris, Albin Michel, 1988. 1989. Mjnha anSlise Se baseia em Maurice Levy_Leboyer e François Bourguignon, L'Eronomiefran faise an
14.M. Foucault, LA s-s-his/ogle d0 savol,-, Paris, Gallimard, 1969, p. 28. XIX siècle. Analyse essssrro4r000mique, Paris, Ecorsomique, 1985.

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BERNARD LEPETIT POP, DMA NOVA HISTORIA URBANA

atenção dedicada ao fato e o desenvolvimento de certo historicismo sinali- ção mais limitada, tenho de convir, mas talvez mais acessIvel, mais produ-
jam que as irnplicacoes da intuição inicial esgotam seus efeitos. E preciso tiva e por isso menos frustrante. Gostaria de que se pudesse imaginar as
r etornar a questao dando mais atenção particularmente aos process os da mu- pedreiros de Babel felizes.
dança. Estes slIpöem que as cemporalidades humanas são rns'tltiplas, que a
coincidência cronológica nao basta para estabelecer a verdadeira coritempora-
neidade, que os desnIveis são criadores: desnIvel entre as dimensöes econô-
mica, social e cultural que todos os fenômenos comportam; desnIvel entre as
fenôrnenos objetivos e as representacôes que toda ação humana contm; des-
nlvel entre as estrutliras formais de urna socjedade e seu funcionamento real.
No dialogo interdisciplinar, a arnbição da história poderia set esta: anal isar
mais acuradarnente coma a evolução das sociedades humanas está contida em
seu passado e, ao mesmo tempo, é pouco previsIvel. Projeto arnbicioso, cvi-
dentemente.

7. Vou abandoná-lo aqui para falar urn pouco sobre o deslocarnento


parcial que tentei fazer. Como se VIU, Cu não definiria a interdisciplinarida-
de como urn movimento de unifIcação das cincias sociais por reduçao de - - -
suas diferenças, nem corno a cornbinaçao de abordagens diversas aplicadas a
urn objeto comurn previamente definido. A ambição é tanto vasta demais
q uanto contrária a conduta das ciricias sociais que não encontram, e sirn
constroem seus objetos. Dos fracassos reiterados nasce urna conscincia
desafortur'ada ou então a afirmação - encantatória? - de que a iriterdiscipli-
naridade est em toda parre (ou seja, possivelmenre em parte alguma, ja que
as compartirnentaçöes disciplinares parecem perdurar). ED proporia definir-
se a interdisciplinaridade apenas corno urn processo controlado de emprs-
timos reciprocos, entre as diferentes ciências do homem, de conceitos,
problemáticas e métodos para leituras renovadas da real jdade social. Ambi-

42 43
2. A CIDADE MODERNA NA FRANcA.
ENSAJO DE HISTORIA IMEDIATA*

In As descriçoes historiograficas e os guias de viagern tm tudo em comum.


Numa paisagem prirneira vista pouco difej-enciada e rica, indicam perspecti-
vas, desenham percursos, destacam monumentos ou curiosidades e ordenam o
mundo, utilizando, corn ponderaçöes diferentes de acordo corn optibiico visa-
do, os critérios do notávei e do L'ttil. Assim, historiadores e cicerones ocupam
uma posicão semeihante: desernpenhani o papel de intermediários culturais eritre
o visitante estrangeiro e uma socjedade local inicialmente pouco compreensivel.
Ern quinze anos, ja exerci muitas vezes essa funçao, descrevendo os lugares da
pesquisa urbana fraricesa para pesquisadores que cram estrangeiros a cia, por
pertencerern seja a outra disciplina, seja a outras tradiçöes historiograficas na-
cionais. A tarefa não envolve grande risco, e seus resultados podem set conside-
rados benignos: corno certos gnias, esses panoramas tern comb i.nica funço
incitar o leitor a viagem para adquirir urn conhecimento direto dos mooumen-
tos descritos.
A posição que ocupo hoje e diferente. Parece-me mais difIcil de sUstefltar, e
scm dilvida quase ridIcula, ja que, sendo historiador das cidades, suposramente

* "La vOle moderne en France. Essai d'Histoire immidiare", em Panoramas Urbaino. Situation dell-i iotoire des
viii,,, FontenaylSant-Cloud, École Normak Editions, 1995, pp. 173-206.

45

I
BERNARD LEPETIT POR DMA NOVA HISTORIA URBANA

me cabe explicar a outros historiadores das cidades, corn os quais partilbo a ONTEM. A CIDADE COMO SISTEMA
mesma linguagem e as mesmas referências, 0 que é a histórla urbana. Ease trabaiho
de traduço de uma coisa Para cia mesma corre o risco de asserneihar-se ao esforço Três livros me servirão Para caracterizar o mornento historiografico dos
da personagem Pierre Ménard, de Borges, ocupado a Vida inteira, corn urn resul- (iltimos anos da década passada. Escritos scm relaçao uns corn os outros ruas
tado adrnirável mas liini rado, em recriar o Quijote nos minirnos detaihes. Para me quase ao mesmo tempo, abordarn a questão urbana adotando procedimentos e
desincumbjr, pareceu-me que Cu so poderia adotar a postura inversa da que ado- grades anailticas cujo parentesco em tres campos tradicionalmente apartados
mu Ménard. Então renunciei a quaiquer abordagem exaustiva, mais que nunca tentarei demonstrar: a economia, a sociedade, a cultura. Em primeiro lugar,
ilusOria neste caso, optando por uma escoiha muito rigorosa de trabaihos de recordernos brevemente a tese dos trs livros2 .
pesquisa bern pouco numerosos: a bibiiografIa sobre o tema pode set considerada Ao estudar as corporaçOes de oficios em Turirn nos séculos XVII e
conhecida. Dois critérios guiararn minha escoiha. Por urn lado, selecionei esses XVIII, Simona Cerutti aborda urn terna aparentemente batido. 0 proble-

trabaihos meflOs por sua representatividade no universo da producao global do ma nasce de urn estranhamento diante do carárer tardio da "explosao
que por sua capacidade demonstrativa. Por outro, dci preferncia a pesquisas corporativa"3 na capital do Piemonte. Datada de aproxirnadamerite 1730,
marginais a uma histOria urbana moderna francesa estritarnentc definida, seja por essa explosâo inaugura urn perIodo de prosperidade social da instituição,
tratarem de locais estrangeirOs, seja por procederem de pesquisadores estrangeiros na contracorrente da corijuntura européia conhecida. Portanto, já que as
ou por terem sido elaboradas em outros campos disciplinares: forma de reatar, se coisas nao falam pot si e que as explicaçOes baseadas nas irnposiçOes das
preciso, corn us coriViteS a viagern. Enfim, (Iltima caracteristica da soiuçao que estruturas gerais da producao ou de uma atmosfera ideologica caracteristi-

estou tentando, eu me posicionarei bern prOxirno dos progressos historiograficos ca Antigo Regime estão desqualificads, a quesrão é saber em que con-

recentes, Para uma espécie de histOria imediata que começaria bern no fim dos texto os atores dfo Vida e sentido a agrupamentos e diferenciacOes antes
anos de 1980, encerrando-se corn trabaihos que estão sendo feitos agora. E claro latentes. "0 verdadeiro problema" é "compreender como indivIduos corn
que isso signifIca expor-me a todos Os perigos da faita de disrância interpreraIiva e histOrias e experincias difererites podem decidir unir-se e, mais que isso,
a todos os riscos de urn desmentido que pode vir já nos prxirnos meses pela
evoiução real da pesquisa. Sigriifica esperar, sobretudo, o questionamento de uma
parry, que descreve as caracrerisricas da hisrdria urbana de on rem (final dos anos de 1980), retoma algssns
análise que assume sua subjetividadel.
elemenros de urn rexto publicado em inglBs: B. Lepetir e J.-L Pinol, "France". em R. Rodger (ed.)

European Urban History. Prospect and Retrospect, Leicester/London, 1993, pp. 76-108.
1. As proposicIes qua Iazem paste da obra em que Se iisscreve esse rexto tiveram iniciolmenre a forma de 2. S. Cerutti, La vilket lea miners. Naissanced'un langage corporatif(Turin. XI./II'_XVIII' sthcle,), Paris, 1990;
,eminirO, opresenlado em marco de 1994. Preferi conservar o mesmo torn no rexto escrito. Ele corresponde A. FargeeJ. Revel, Lugiqraeodelafoule. L'affairederenlis'ernentod'enfants. Paris, 1750, Paris, 1988; B. Leperir,
bern Is escolhas que fir (subjetividade assomids, esquematismo dos hipóreses gerais) para mostrar que, Leo r,illcs dana laFranre moderne (1740-1840), Paris, 1988.
rrarando-se do bissoriografia francesa, 0 pintOr e as especradores esesvam junros no quadro. A primeira 3. S. Cerurti, op. cit., p. 195.

46 47
POP, IJMA NOVA HISTORIA URBANA
) BERNARD LEPETIT

reconhecer-se por meio de uma identidade social comum". Assim, corn a de oride cia extrai o essencial de sua subsistència, boa parte de sua populacao e

arriculaço da racionalidade individual e da identidade coletiva, o projeto seus proventos mais sólidos; tambrn, na econoniia fracamente progressiva da
poca0 toda reserva suplernentar que acornpanha esusrenta aqui urn crescirnento
) da aurora 6 esciarecer "a relaçao entre os modos de eclosão das alianças e
das solidatiedades e os rnodos de institucionalizaçao dos grupos urbanos"4 . particular, nas cidades vizinhas se paga corn recursos medidos mais
)
0 epis6dio que corsstitui o objeto da segunda obra considerada 6 rigo- parcirnoniosarnente do que antes. Mesmp q'ue as cidades nbo tivessern mantido
)
- rossmente circunscrito. No final do inverno e no inicio da primavera de 1750, nenhuma relaçao urnas corn as outras, não teriam sido menos interdependenres.
I
espaiha-se em Paris o rumor de que a policia näo se limita a livrar as ruas da Trata-se entbo de compreender corno evolui, em sua organizacbo e seu funciona-

capital dos vagabundos, mas que delas retira tarnbém crianças. Nos meios po- mento, uma forrnaçao econômica desse tipo. A aiocaçSo de novos recursos, corn

- pulares dos arresãos e dos lojistas, a defesa Se organiza: 6 a poca em que 0 a politica viária de organizaçbo do rerrirório, ou a realocaçbo de recursos anti-

jovem Jacques-Louis Méntra passa a it a escola sempre acompanhado pot al- gos, corn os efejtos sociais ou administrativos da Revoluçao, fornecem a opor-

gum robusto colega de seu pail. Em maio, explode a revolta, e durante dois dias tunidade para isso. A partida que Se joga entre as cidades envolve apostas que

vários confrontos graves atingern diversos bairros da cidade. Em razão da sus- aumençarn inexpressivamente: as posiçöes adquiridas antes, a natureza e a nova

peira de que o Chefe Geral de PolIcia di sumiço nos joverls parisienses para distribuição das vantageris mosrtam corno ral sisterna está na origern de seu
S
)
povoar as colônias ou para esvaziálos de seu sangue a fim de curar urn PH proptio devit.

- doenre, rompe-se o acordo tácito que unia 0 monarca e seus silditos. No cres- A hipótese que eu gostaria de defender aqui é a de que esses rrès traba-

cimento do rumor e no desenrolar da agitação, grande jogo social, ocorre uma Ihos, apcsat da divers jdade de sua temática e da diferenca de suas escalas, consti-

rnudanca da opiniâo piiblica: vence a desafeiçao pela Monarquia. Pot ttás das tuem urn prolongarnento de algurnas das sugestóes fundarnentais do Iivro de

logicas da revolta, trara-se de "reconhecer os contornos de urn saber social"' e Jean-Claude Perrot Genèse dune vile moa'erne. Caen auXlTIII' siècle e, de certo

) o processo de sua marerializaçao. modo, tentativas de contorriar as dificuldades nbo resolvidas que dc apresenta7 .

0 ithimo llro procura ambientar no periodo anterior a revolução da E necessário urn estudo mais preciso desse livro fundador do mornento

indiistria e dos rransporres ferroviários uma noção que inicialmente parece es- historiografico que descrevo, para esrabelecê-lo. -

trsnha s ele: a de sistema urbane. Manobta modesta: uma cidade, na época Consultando-se a longa lista dos titulos dos capItulos, a obta parece

modetna, nao pode conceber-se scm a existncia de urn espaco que a circunda e inscrever-se numa das correntes dominantes da história econflrnica e social que
influenciada pot Ernest Labrousse e que poe em pratica uma história quantita-
riva empenhada em depreender das estruturas de duraçao secular os rnovimen-
4. S. Crcuui, op. cit., p. 14 para as duos ciu.çors precodentes.
1' 5. J.-L. Mioira,Josonsldr ma r,r ed. R. Roche, Paris, 1982 (o espisddio rotS rejatado Oap.34).
7. J.-C. I'error, Gmesedlzmc viiomodrrnr. Caes, auXWI! siècle, Paris, 1975.
) 6. A. Forger). Reed, op. cit., p. 10.

48 49
POR UMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

tos alternados da conjuntura. Entretanto, ao contrário de todas as monografias arquivo são quesrionadas, em proveito da identificaçao e da construção de urn

de história urbana publicadas urn pouco antes, o livro não contém nenhum objeto.

estudo particular das estruturas sociais. A critica ao debate sobre a natureza das O livro, nesse sentido, é urn modelo, uma "cópia teórica", uma represen-

sociedades do Antigo Regime, que o autor publicara havia alguris anos, condu- tação simplificada e abstrata da realidade considerada, construlda a partir de urn

zia evidentemente a renunciar a isso. Mas a soluçao que Perrot adota em 1975 é siscerna de relaçOes que responde a princIpios de coeréncia interna e nao entra

diferente da que sugeria sete anos antes. Em 1968, considerando que a análise em contradiçao corn os dados empIricos disponIveis. 0 primeiro imperativo da

das estruturas era evidentemente plural e necessariarnente tautologica, ele preco- pesquisa é, portanto, estabelecer, a medida que se desenvolve, que seu objeto

nizava o estudo das relaçoes sociais. As cerimônias püblicas, as formas associativas, existe no mornento em que cIa o estuda. Caen, no século XVIII, torna-se uma

os pontos de encontro,-as manifestaçoes da violência constitulam as dimensöes cidade moderna, o que significa, de acordo corn uma definiçao do dicionário,

de uma sociabilidade citadina cuja descriçao permitia chegar ao conhecimento que cia pertence ao tempo daquele que fala, o historiador do século XX. Duas

das sociedades do passado. 0 bairro, a ma, o cabaré erarn os lugares onde se caracterIsticas definern aqui a modernidade urbana que constitui o princIpio

revelavam modos de estar junto'. unificador do livro: a passagem de uma economia estacionária a uma economia

Em 1975, Perrot considera redutora a atitude que consiste em crer que de movimerito e a invenção das praticas e da ideologia do funcionalismo. Uma e

se compreendeu uma sociedade depois de haver descrito os grupos que a corn- outra levam a desqualificar o do antes estabelecido entre a. industrializaçao e a

poem e suas relaç6es. "Uma leitura perspicaz deve sentir que os comportamen- urbanização, entre a proletarizaçao do século XIX e Os problernas urbanos: "A

tos da populacão, a prática médica, os processos que regulamentarn a produçao, invenção da quesrao urbana ultrapassa em urn século a da questao social"".

- as trocas, a organização dos báirros descrévem efIcazmeflte os fundarnentos da Os principios dessa renovação epistemoiógica da história urbana, entre-

histórja social"9. A cidade, assim, não tern natureza própria: ela resulta inteira- tanto, tiveram seu preco. Por urn lado, afirmar a rnodernidade da cidade do

mente do social, do qual e uma espécie de "resIduo" Dal decorre uma conse- século XVIII é instalar o pesquisador nurna considerável proxirnidade corn seu

qüncia merodológica. A simples jusraposicao de vários estudos (demografia, objeto. Ao que parece, trata-se de uma vantagern: se é relativamente fácil en-

economia, sociedade, cuirura) resuitaria no desmoronameriro do sujeito: "0 contrar na documentaçao do século XVIII as respostas as questoes que o pes-

primeiro passo consistja então em cruzar as fontes entre si, ji que se admite que quisador do século XX se coloca, é, em primeiro lugar, porque as questOes

falam da mesma coisa", ou seja, da cidade moderna. A prirnazia e a evidncia do sobre as cidades, nas duas épocas, são as rnesmas. Mas essa facilidade é uma
armadjlha. A proxirnidade torna difIcil, senão irnpossIvel, o questionamento
critico da análise funcionai, a qual pertence, por sua vez, a classe das ideologias
8. J.-C. Peero,, "Rappoers socioox cc vilks XVIII' siècle", A,rnale, ESC, 1968, pp. 241-268.
9. J.-C. Perror, Genè,c.., op. cit., p. 944.
10. Id., ,bid., p.947, ossim room a cirocao seguinte. 11.Id., ibid., p.9.

51
50
P0R UMA NOVA HI5TORIA URBANA
) BERNARD LEtETIT

)
) e continua impregnando boa parte da anise urbana atual. "Conhecer a impre- urn exernplo. Todas, inicialmente, sinalizarn uma dupla ruprura corn a história

labroussiana tat como foi praticada 005 arsos de 1950 e de 1960. Ern oposico
) ciso de nossos proprios enfoques", assegurar urn "vaivém continuo entre as
técnicas de hoje e o horizonte das Luzes"°, tjrar proveito da distância tempo- a urna abordagern objetivista que fazia dos grupos sociais ou dos organismos
)
urbanos categorias "naturais", reconhecIveis por series de indicadores estrutu-
ral que nos separa do século X\T11I: a abordagem hermenutica fornece as
soluçöes pars organizar uma rensão criadora de sentido entre a cidade de rais, os autores desenvoivem uma abordagern mais interessada nos processos
) do que nas situaçöes postuladas como estávejs. Pierre Goubert e Simona Cerutti,
tern e as categorias que a revelam hoje.
I Mas posrular, pot outro lado, que "todo o sentido est na relaçao entre os pot exeplo,
n-i não falarn a mesma linguagern cientifica, e a segunda dedica

diferentes nIveis"3 da organização social C propor sos pesquisadores ourras dill- pti5amente os paragrafos iniciais de seu livro a desqualificar o uso dos c6di-

3 culdades ternerárias. Se a apreenso isolada dos diferentes niveis da realidade gos socioprofissionais que formam a base da sociologia do prirneiro. Nem a

3 parece apresentar apenas problernas ttadicionais, con-to apreender as relaçoes irredutibilidade das situaçöes locais diversas a categorias excessivamente gerais,
nem a negligencia para corn os códigos dos citadinos do Antigo Regime cons-
3 entre esses nIveis? Como estudar esse fenôrneno sociocultural total em que
sobejam os riscos de encontrar causalidades circulates? 0 próprio patarnar de tituem para cia argumentos negativos decisivos. 0 essencial não está al, mas na

complexidade em que se situava a ambiçao cientIfca representava riscos para a recusa das histórias que engendram e modelam os agrupamentos: "Em vez de

empreitada. Mujto poucas coisas, inclusive na Cpoca prC-industrial, deixarn de considerar evidente o pertencimento dos indivIduos a grupos sociais, trata-se

relacioriar-se a cidade, por urn aspecto ou pot outro; a diversidade e a dilatação de inverter a perspectiva e interrogar-se sobre o modo como as relaçöes criarn
) sojjdariedades e aiianças, criarn, enfirn, grupos socials"14.
do campo de pesquisa tornam-se extremas. \o mesmo tempo, na falta de uma
reflexão acumulada sobre a natureza das relaçöes e sobre as mediaçoes que per- Contra análises que inscrevern as variaçöes conjunturaiS no invóiucro durá-

) n- passar de urn nfvel a outro da realidade, como acreditar que será fácil ye! e resistente das estruturas longevas das "sociedades de An tigo Regime" ou das
mem
) amarrar num conjunto controlável de definiçóes os fios que formam a teia econornias de titso antigo", as pesquisas dos anos de 1980 descrevem os movi-

I citadina? 0 controle de uma questão urbana recCm-inventada na disciplina his- - mentos de atualizaço social que modificarn o sentido e os usos de estruturas,

tórica parece escapar. antigas on novas, aparentemente imperiosas. Vide, na virada dos sCcuios XVIII e
)
Problernatizaçao, rnodelizaçao, construtivismo: a mesma grade analItica XIX, duas inovaçöes estruturadoras que se impöern no espaco econôrnico frances:
as estradas reais e o novo rnapa dos chefi-1ieu e das alçadas administrativas.
parece-me facilrnente aplicável as trés pesquisas consideradas. Para caracterizá-
) Equipamento novo, a estrada serve primeiramente, e de modo mais eficaz, as
las em conjunto, destacarei quarto caracteristicas, ilustrando cada urns corn
1
3 12.id., ibid., respCr.womente p. 11 ep. 13 pora os duasciioçResprecedenres. 14. S. Ceroiti, La ilkot1esrnitiero..., op. cit., p. 12.

) 13.Id., ibid., p. 947. * Centros odminiscrorivo, dos diversos circunscriçEes territoriais francesos. (N. daT.)

3
52 53

3
BERNARD LEPETIT
POE UMA NOVA HISTORIA URBANA

cidades mais importantes assim ela reforça as estruturas antigas do terrirorio


tos para a micro-história italiana, dos quais Jacques Revel é o principal iritrodutor
Mas ao mesmo tempo acelera as trocas facilita a difiisao das inovaçöes unifor na Franca16, on das Ciltimas proposiçöes de Marshall Sahlins'7 . 0 trabalho de
miza a area econômica, instaura um funcionarnento novo, mais moderno, d0
interpretação e de organização do mundo a que se entregam os atores opera-se
espaço 0 mapa administrativo revoluclonarto e imperial inscreve se ao Contra
no âmbito das categorias aprendidas e dessa forma atualiza o passado. Mas, em
rio em perfeita ruptura corn o precedente produz uma hierarquia menos contras
seu próprio desenrolar, esse trabalho não deixa incólumes nem o mundo nern as
tada urna distribuiçao espacial mats regular e garante que as cidades tenham
categorias que o configuravam e que permiriam capturá-lo. Modela, assim, urn
oportunidades bastante equilibradas quando Be trata de determinar a Iocalizaçao
foturo perpetuarnenre diferente e pouco previsfvel. A análise das agitaçóes de
dos chefi Ileux
Mas cia acarreta tambem a COflcentração nas pequenas capitals 1750, por exemplo, mostra-se atenta a cenografia d0 confliro. Cada urn parece
administrativas d05 proprietarlos de terra veihos ou novos que vivem de renda e A representar urn papel corno se irnprovisasse a partir de uma situação familiar.
desenvolvem localmente em menor escala modelos antigos de consumo aristo
A lógica da multidão tern a mesrna natureza que as regras da corn media dell'arte.
cratico Ela garante o predominio generalizado de urn modelo passado de functo
Cada urn (o agitador, o espiao da polIcia, o proprierário de imóvei, o comissá-
namento dos sistemas urbanos. Desse modo, urn pouco Bern saber e scm querer,
rio) permanece fiel aos códigos de cornportarnento que são os de sua persona-
as sociedades fazem algo veiho corn o novo e algo novo corn o velho E a esse
gem. A situação, entretanto, progride. As regras irnplfcitas do funcionamento
Jogo (termo que alias poderiamos compreender em cada uma delas corn urn politico e as figuras do jogo social, ao final do episódio tragico, não são mais as
sentido diferente) que as tres obras estlo atentas A historia nelas se encontra
rnesmas que cram na origem. A cenografia das agitaçöes devidas a liberalizaçao
definida menos como a analise das formas p,- -adas da organizaçao econornica ou
do cornércio dos grãos, a da Guerra das Farinhas ou a das jornadas de outubro
social d0 que como o estudo das modalidades de sua rnudança
de 17-89 atualizarão, de acordo corn figuras parcialmente inditas, cddigos de
Segunda caracteristica comum que deriva da primeira quer se trate da
cornportarnento renovados.
rede urbana da identidade citadina ou da opinião publica o objeto não e
A arenção pragmática não atinge somente o contei.'ido dos modelos propos-
admitido de irnediato Como uma evidencia mas resulta de urn duplo trabalho
tos. Ela 6 acompanhada de urn trabalho muito evidente de construçao da pesquisa.
de construção Os atores passados que atualizam sisternas de representação Os citadinos do alculo XVIII nao são os üfliCos a envolver-se nurna ação que basin-
dão Ihes sentido em sltuaçöes particulares por rneio das praticas que em
na esflrçar-se para. esboçar. 0 historiador também está em açbo, e o modelo que
conrraparrida modificam as interpretaçoes do mundo Mats que da antropolo
gia cultural desenvoJvida por Clifford Geerrz e adaptada a histària por Robert massacre ole, chats. Paris, 1985 (ed. original americana de 1984). (N. da Org.: crad. em portugues: 0 Grande
Darnton l5,
as análises aproximam-se aqui dos modelos de historicidade propos- Massacre do Gatos, São Paulo, GraaI, 1986.)
16.Versus inrroduçio a G. Levi, Lepouvoirau village. Hi.stoi,ed'u,, coo rciato 4am Ic P1lm000 duXWP
slIde, Paris,
1989.
15. C. Geerrz, Saoa,r local, sasoirglobal, Paris, 1986 (ed. original americana de 1983); R. Darnton, Legnsrsd
17.M. Sahlins, D05 lies dam i'histo ire, Paris, 1989 (ed. original americana de 1984).
BERNARD LEPETIT POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

propôe o produto de urna elaboraçao que se faa norar constantemente. As configu- XVIII, assisre-se a uma mutaça.o brutal dos rituais cIvicos: a municipalidade não
) raçoes narrarivas dos tres Iivros diferern Logiques de lafoule organiza se em circulos aparece mais senão como o primeiro dos corpos urbanos, e a populacao citadina é
1)
concêntricos para acompanhar as ondaa de urn levante desde o in(cio, descrito nos fracionada numa infinidade de pequenos grupos correspondentes a igual niSmero
Iimies de sua ocorrêncja, at6 a onda mais arnpla (que se refere as fisndaçoes da de corporacöes de offcio. Quern busca.sse no interior do espaco do trabaiho uma
monarquia). Cada urn dos cinco capItulos de La vile cc les métiers corresponde a explicaco para essa mutação ficaria desarmado. De fato, cia so adqiiire sentido
urna fase de urns pesquisa que, a cada etapa, renova suas fontes, seus métodos e suas corn a condiçao de se considerar o conjunto do espaco social da capital piemontesa
escajas de anJise e conduzo encarniniaamento narratjvo do texto. Lea vi/Yes clans /a e dos recursos, parnicularmenne institucionais, que dc oferece aos protagonistas. A
France moe abusando das menaforas do cam1ar, destaca as modalidades de guerra civil que dilaceraTurim entre 1637 e 1642 marca urns craps importante
J urns progressão: vencer unia etapa é esnabelecer urna hipótese e exarninar a maneira dessa história. A vitória final da regente Cristina e a da Come sobre os grandes
) como os dados ernpIricos a corroboram ou nBo; essas primeiras resposras orientam mercadores, que haviam tornado o partido oposto. A municipalidade, que era

) as lnterrogaçoes seguinnes e ditam a formulaçao de novas hipoteses cujo exame lugar de integracao das elites citadinas e órgão da regulacao social da cidade, torna-
forma urn novo patamar. 0 piano de cads urn dos Ilvros inapreensivel corn urns se urns etapa no cursus honorum dos nobres tuminenses e das elites cumiais. Seu

) leitura fragmennaria pretende se mwto harmonioso todos relatam alern de urn papel regulador (resoluçao dos conhlinos entre mercadores, promoção das medidas
episodio de hisnoria urbana a construção quase exf rimental de seu ob)eto A de policiamento urbãno) é confiado a instituiçôes novas, contmoiadas pela monar-
fiinçlo de tal elucidaçao dos procedimennos nao e perrrutir controla los toda cidade quia. 0 desafeto dos mercadores pela municipalidade resulta disso. Eles investem

sabia organiza se de acordo corn esse principlo Definir na escritura e na progressao então em instinuiçôes latentes, as corporacóes de ofIcio, que Ihes permitem garan-
5 narranlva os contornos de urn objero e manifestar que etc so existe ao fim da de - tin pot outras visa o controle dos circuitos econôrnicos, escapar as insrituiçóes do -
) rnonsrraçao Eatado central piemonts, cuja jurisdição não Sc estende as corporacöes de artesãos;

) Eases rreslivros tern ainda em cornum o fato de basearem numa concepção enfim, ao revelar urns estrutura de representação e de identificacBo, permitem-
sisnemica da cidade o estattito de histonia problen-ia que a analise urbana possut lhes dat investjdurs a cia.
Ease posnulado pode icr desenvoivido em duas escalas Pot urn lado cads cidade e A análise confirrna que as insticuiçöes e as formas do agrupamento social
urn elernento de urn sisterna que a engloba (nâo retornaremos esse ponto evocado tern apenas o sentido de que são - dotadas pelas práticas sociais dos stores. Os
acirns) Por ourro cada cidade forms urn sisterna cujos elemennos adquirem sean esforcos - evidenternente desiguais, de acordo corn os individuos e os grupos -
)
do una em relao sos outros Poderiamos demonstrar isso corn o caso das figuras para apropriarse dos recursos- de forte valor social fazem-se no âmago de urn
) Socials mobilizadas no levante parislense rnas o exemplo nurinense e mais rico e sistema topologico. Cads urn desses - tal ofIcio, tal associação jurarnentada, tal
) mais compleno Ate o fim do seculo XVII a municipalidade tern na cidade urn instituiçBo de Estado - extrai seu valor da posicão que ocupa relativarnente a
papel central e unificador na represenrao da populaçBo No iniclo do seculo todos os demais. Forms de traduzir numa outra linguagem, scm diivida mais

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POR UMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEI'ETIT

flexIvel, a proposiçao básica de Caen au XVIIJé siècle: o sentido nao está na (Para Mar a verdade, não se encontrou em parte algurna tad asserção). Podemos

relacao entre os diferentes nIveis, mas no arranjo das posicfles relativas ocupadas imaginá-la tarnbém como o esquecimento riáo o brigatoriarnente lamenrável (a
pelo conjunto dos recursos soclais. Nos dois casos, o sistema urbano encontra a sociologia urbana, por exemplo, só muito raramente progrediu graças a monografias
guardava uma reno-
origern de sua própria história nos efeitos de combinaçao que compreende. totalizantes), de u rn modelo historiogthfico dominante que a
Entretanto, a especificidade da história urbana mantém-se nos tres traba- vação da história da Franca corn uma série de estudos localizados (uma regiãO,

ihos analisados a custa de uma mudança de escala. Essa rnudança não se relaciona urn departamento, uma cidade...). Mas pode-se vet ajnda nesse retorno uma

as escalas geográfica ou cronologica, muico variáveis, como se viu, de urn livro conduta evasiva, destinada a reconduzir uma questão urbana complexa demais a

Para outro, mas sim a escala problemática. A modificação do estilo dos tItulos urn ou outro de seus componentes. 0 conhecimento histórico progride não
pode ser considerad.a como sincoma disso. Beauvais et le Beauvaisis, Amiens capitale tanto por resolver os problemas quanto pot modificar a forma de colocá-los.

provinci ale, Lyon et Les lyonnaia eis os dos anos de 1960m8; Logiques de lafoule,
HOJE. A COMUNIDADE EM QUESTAO
La yule et les métiers, mas também Iviorphologie sociale et lutte defactions, notabilité
et ethique sociale ou ainda Protestants et catholiques": eis os das gerac6es seguiri-
Para sugerir as caracteristicas do "momento historiográfico urbario" de
tes. Assim se manifesta o abandono de urn horizonte da pesquisa: aquele da
hoje, por que não partir de urn texto que nao pertence absolutarnente a produ-
histótia total da cidade nurna de suas manifestaçöes particulates (Amiens, Lyon,
çBo historiográfica, mas que pode set considerado como a expressão de urn
Caen...). Quer se trate da organizacão do território, da constituição das identi-
dades sociais ou da formaçao da opiniao páblica, renucia-se a considerar a misto de conhecimento comum e de inquietacão oficial? A história, corno se
sabe no mInirno desde Lucien Fehvre, é filha de seu tempo. Do debate realizado
cidade na totalidade de suas dirnensöes Para colocar, em suas dimensöes mrilti--
plas, questöes parciais. Poderlamos vet nessa estratégia de pcsquisa mais pruden- em 1993 sobre a poiltica da cidade na Assembléia Nacional, pode-se extrait
algurnas palavras pronunciadas pela ministra Simone Veil. Pot impulso da retó-
te o reconhecimento de que a quesrão urbana não emerge como tad - e porranto
rica, denunciando os rnodos de fazer de seus p redecessores é que CIa traçava o
não é urn objeto de estudo histórico pertinente - senão em certos momentos
campo das intervencöes necessárias. Dc acordo corn a ministra, a polftica da -
cidade "metgulhou numa abordagern categorial, parcialista, enquanto a vida de
18.Certaniente, reconhecem-se as obras seguinres: P. Gouberr, Bra swea is er/c Beauuaisis Ic 16001 1730, Paris, urn jovem na citédepende da harmonia de sua famlila, das condicöes de habita-
1960; P. Deyon, .4nsiens capitaleprovinciak itsde sue Ia sociEte ssrbai,se au XVL? siècle, Paris, 1967; M. azer'2O. Els
Garden, Lyon ct/cs lyonnais auXVIIP siècle. Paris, 1970.
çbo, do acesso à - assistncia, da educaçbo e das possibilidades de l
19.AI/m em obras precedenres,Iembro aqui W. Kayser, Ma,-seilie ass tempo des troubLes. Msrpholosgiesscialeeclssttes resumido urn saber social: tanto em termos de conhecimento como em termos
defaetisns, 1559-1596 Paris, 1992; P. Guigner, Lepsursirdans Is villeassXl/IIP siicle. Pratiqssespslisiques.
nstabiliciet Erhiqueoscialedcpareetd'autrede laJl-ontilrefrass ca-beige, Paris, 1990; E. François, Protestants et
catbsliqreo en A ilemagne. IdenririetpiuralismelAugsbs,srg. 1648-1806, Paris, 1993. 20. Citado en, Le Monde de 8 de novembro d0 1993.

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58
BE RNA RD LE PET IT POR OMA NOVA HI5TORIA URBANA

de ação, a cidade necessita não so das abordagens coordenadas, mas de uma


Dada conhecido: as sociedades urbanas são sociedades mistas. As eleva-
apreensão sint&ica; a cidade e a sociedade são duas realidades coextensivas: a das taxas da mortalidade citadina e as modalidades de funcionamento do mecca-
questão urbana e a questão social sucessivamente inventadas agora se sobrepoem do de trabalho são rais que a crescirnento ou ate a simples manutenção do nIvel
corn perfeiçao. A cidade 6 urn eufemismo Para todas as dificuldades do momen- de sua populaçao supOem a existência de fluxos migratOrios permanentes. A
ta romadas em conj unto. Alias, a polissemia da palavra citéempregada no dis- importância dos fluxos de novos imigrantes, os primeiros registrados pelos tra-
curso ministerial bern o indica: cia designa ao mesmo tempo o bairro balhos históricos corn base na docurnentacao disponivel, dependern durante
desfavorecido em termos de empregos, de salários, de habitaçao, de equipamen- toda a epoca moderna da dimensão da cidade e de suas atividades. Os fluxos de
tos coietjvos e a cornunidade social citadina inteira, em sua coesão e sua harmo- salda, cuja importância pode set calculada par comparacao, mas que não podem
nia (utópicas que sejam).
set captados em sua composicão e em seu sentido, parecem mais ligados a
Eu gostaria de sugerir aqui que a história das cidades da Franca moderna conjuntura econômica momentânea. No cruzarnento desses trajetos rntiltiplos,
faz a tnesmo recuo: teduz a questão urbana a questBo social. As interrogaçöes
a cidade moderna é uma encruzilhada em que Se agrupam populacoes mais
sobre a natureza do do social e da identidade (não a das cidades, que os coió-
estáveis e populacöes mail mOveis, corn percursos e projetos variados. Por sim-
quios e mesas tedondas dos anos de 1970 debaterarn copiosamente, mas a dos ples efeito demografico e por pura necessidade econômica, as sociedades urba-
indivfduos e dos grupos que nelas residem) ocupam as primeiras iinhas de seu nas são sociedades plurais em que a questão das identidades e das identificaçoes
prograrna de pesquisa. As interrogaçOes não são novas, é ciaro, mas acredito que se coloca de forma mais aguda do que nas sociedades rurais mail majoritaria-
invadirarn quase todo a carripo (coma 6 difIcil prova jue ha um deficit nos mente enraizadas. "Ha em Paris urns rnuitidão de estados indefinIveis", destaca,
outros setores, eu me contentarci em aguardar as objecoes a respeito desse no reinado de Luis XVI, a Tableau... de Louis-SCbastien Mercier. -
ponto) e que são colocadas em terrnos renovados que cransformam seu sentido. A historiografla abordou a questao de duas maneiras sucessivas. Proje-
Tentarei esrabeIec-lo corn um corpus novaniente muito seletivo, composto de
tando sobre as sociedades urbanas do passado categorias analIticas prederermi-
dojs livros, pubiicados respectivamenre em 1990 e 1993, e de dois colOquios riadas, ordens ou classes, a abordagem estruturai a resoivia de uma sO tacada.
realizados em Paris em marco de 1992 e outubro de 1993, em que nem as iocais
estudados nem as pesquisadores envoividos estão todos circunscritos as frontei-
ras da Franca moderna 21. Urbana. Os pronunciamencos mais represencacivos foram publicados em duas ecapas: "Jdencicls urbaines",
Anualcs ESC, jul-ago. 1993, pp. 819-933, e 'Lea sociabilitls urbaines as, Moycra-Age", Annale, ESC sec.-
organizado no Imbico do Centro dePesquisas
our. 193, pp. 1113-1143.0 coldquio deourubro dc1993
Hisrdricas da EHESS porS. Cerucri, R. Descimon eM. Prak inrirulava-se '0 Direiro de Burguesia nsa
21. P. Goignet, Lcpoeoirdaos Ia cult..., asp. cit.; E. Francois, Protestants cc catholiques..., op. cit., 1993.0 Cidades da Europa Ocidencal encre os Slc,alos XV eXVI1I". A publkacso d55 aras estI em projeto, e apenas
colóquio de marco de 1992 inrirulado ffA. Hiscoria Social das Cidades d0 Europa do SIculo XIII ao XVIII: o denso rexro do programs I de fdcil acesso: "Le droir de bourgeoisie dam l'Europe moderne", Cashiers I,,
NovasTendOncias" fol organizado por P. Clarke B. Leperirno 5nbir da Assorisçso Europia de Hisrdria Centre tic Rcchcrchcs Historiquca, n. 11, out. 1993. pp. 87-90.

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61
P0R UMA NOVA HISTORIA UREANA
BERNARD LEPETT

retensamente consti-
Abordagern objetivista, fazia d05 grupos sociais categorias naturais, reconhecI- mundo urbano22 . Qual pode set esra norma local que p
veis por uma série de indicadores facilmente acumuláveis porque concordantes: tul o horizonte de todo processo de aculturação, quando uma proporcbo
ter 0 mesmo nivel de fortuna e a mesma ocupação ou casar-se no mesmo mundo sempre considerável (e bs vezes majorithria) de novos migrantes vem agregar-

era, na nlajorja d05 casos (muiros fazerido as yeses de ni'irnero e de lei, ao se as populacoes citadinas? E qual é a unidade da cidade? 0 trabaiho, o
mesmo tempo), ter as mesmas crenças e os mesmos comportamenros. A arri- casamento, avizinhança, as instituiçöes de sociabilidade tambérn são canais

buiçlo de identidade era fácil, uma vez que bastava urn indivIduo possuir Os pelos quais o migrante se insere na cidade. Mas sua significacbo é arnbivalen-
requisir os prescriros para ser designado para urn grupo. Sendo a repuracão ou te: muiros deles em boa parte aurnentam as redes rnigratórias. Alérn disso,

entlo o esratuto socioprofissional os principios alternativos fundamenrais da enquanto normas citadinas, não seriam des capazes de veicular e reproduzir
dassificaçao, desaparecem da irnagem a mobilidade on o enraizamento local: comportarnentoS anteriores a migracão? Como, então, supor urn movirnen-

era-se oficial artesão ou negociante, e nao parisiense, picardo ou suIço, forastei- to de mao ilnica na difusão das normas (releologico em sua tendência a con-

ro ou narivo do lugar. fundir urbanização, urban jdade e progresso)? Pode-se, enfirn, supor uma "iden-

Nurn segundo momento, as variaçöes foram levadas em conta, rnas tidade rnigrante", quando diferem os sisrernas de referncia, as aspiraç6es e

levaram, quase espontaneamenr e a considerar as populaçöes estáveis como OS projetos, a rnemória familiar, a natureza do espaco urbano de inserçbo de

l'lnicas porradoras de uma "identidade ciradina". 0 postulado i-são estava cx- cada urn dos petcursos individuais e familiares? Em sua globalidade, o con-

pliciro, rnas pode set deduzido da orienraçbo dos questionários. No esrran- ceito de imigração é muito pouco operacional.

geiro mais amh'ide do que na Franca - talvez porque no reino esse tipo de A caracreristica do livro de Lienne François, que fora o iniciador do coló-
control e era realizado mais freqüenrernente pelo Estado do que pelas autori- quio que acabamos de analisar, é precisarnente defronrar-se, em sell percUrso, corn
os limites desse ripo de abordagern estrutural. Recordarei em algumas frases a
dades municipais -, faziam-se várias pesquisas sobre o controle dos fluxos de
Imigranres, sobre as polIticas restritivas de integração, sobre as modal idades problemática. Pelo dualismo religioso, de urn lado, e pela divisbo polItics extrema-
de obtençao de urn direito de burguesia ligado a identidade urbana. Na Fran- da, de ourro, os citadinos alembes do periodo moderno riveram uma experiência

ça mais arniride do que no estrangeiro, talvez pela irnportârsia dada eritre muito particular da akeridade, na ocasião: "0 outro era menos o estrangeiro desco-
nós a histórja das rnentaljdades a anise das variaçöes de comporramento nhecido, inacessIvel e fanrasmatico do que ovizinho próximo, frequenrado e igual

(demografica, frequenremenre, gracas as facjlidades oferecidas pelos registros apesar de difetente". Porranto a quesrão e saber o que, em todos os senridos do
paroquiais) era acompanhad a de urn estudo de sua reduçao conduzido em vetbo, fax a diferença entre os católicos e os lureranos que povoam, animarn e
rerm os de aculturaça o
, isro é, de assimilaçao dos valores e hábiros dos citadi-
nos pot parte das populaçôes imigradas. Urn encontro organizado em 1982 Paris, 1985.
22. E. François. Immigration usoclétiurbaine en Europe orcidentale (XW-Xt o,èdea.),
em Gottingen anunciava os prirneiros lirnites dessa concepcbo dicorômica do 23. E. François, Protestants cC catholiquej-. op. cit., P. 15.

F 62
63
BERNARD LEPETIT POP, UMA NOVA H1STORIA URBANA

)
governam Augsboui-gjuntos, No prolongamento da história social dos anos prece- originários de urn mesmo lugar), o bairro, a profissao, a ordem, as insrituiçöes do
dentes, critdrios objerivos de diferenciaçao são inicialmente pesquisados. Mas os poder citadino (civil, militar cm religioso), a religião, as corifrarias diversas... Urn
comportamen tos demograficos revelam, no que se refere aos ritmos sazonais dos
artigo pouco conhecjdo de Philippe Aries fornecia o esboço de uma hipótese pats
casamentos, as taxas de fecundidade ou aos nIveis atingidos pela ilegitimidade, abordar essa diversidade25. Nesse texto, as cidades de hoje, tao dominadas pela
) "trés exemplos de indiferenciaçao confessional'. A análise socioprofissional conduz segregação e pela atribuiçao de identjdade que "todo espaco intersticial desapare-
) aos mesmos resultados aparentemente decepcionantes: a distribuiçao das profis- ceu", op6e-se a cidade do Antigo Regime. Nesta, cads um possuiria não tanto urn
sóes exercidas pelos protestarstes e cato[jcoS mostra "difetenças sern oposiço", e "a lugar, e aim urn "domInio" em que o piiblico e o privado se sobrepóem, mas em
imbricaçao dos nIveis de fortuna" não reforça corn nenhuma variação de riqueza as torno do qual a cornunidade reconheceria a exisréncia de um espaco de liberdade
oposiçöes religiosas. Em sua própria diversidade, os dois grupos são mais acme- que petrnitiria aos individuos representar seu papel corn mais liberdade e a socie-
Ihantes que diferentes. Resumindo a sicuaçao, talvez, a observaçao da localizaçao dade berieficiar-se de uma regulação scm crise. Não 6 preciso partilhar corn o
geográfica dos contribuintes destaca "a reclisa dos guetos" e o predornInio das autor a nostalgia de urn mundo tradicional idealizado, para extrair de suas propo-
situaçöes de interpenetração. A necessidade de uma mudança de perspectiva, que siçöes urns hipótese getsl: a multiplicidade das identificaçöes possIveis coristitui
) "inverta a abordagem inicial", resulta disso. Ela conduz a pguntar-se "como para os atotes urn leque de recursos mobilizáveis segundo as circunstâncias
) católicos e protestanres viviarn juntos na e apesar da diferenca"24 . Colocar a ques- assegura a sociedade urn jogo que Ihe permite adaptar-se quase permanentemente,
) tao é passar de uma abordagem objetivarite a uma abordagem subjetivista, de uma scm fissuras, as variaçóes conj unrurais. Alias, vários estudos ja haviam elucidado a
) análise de tipo estrutural a tsrna análise fenomenologica. Mais do que buscar os variabilidade das formas de agregação possIveis. Por volta de 1400, em Florença,
critdrios que esrabelecem diferenças entre as doss cornunidades, convérn prestar os Ricordi de Morelli distinguiam segundo a conjuntura as esrratgias rnatrimo-
stenção as práticas e aos imaginários que fabricam e perperuam diferenciaçao.
niais: em situaçao favorável, convdrn dcsenvolver numa escala geográfica ampliada
0 encontro dedicado em 1992 a história social das cidades da Europa a politica de aliauças; ao contrário, em situação ptecária, os casamentos devent set
medieval e moderns usava as mesmas palavras - "inverter a perspecriva" - para realizados nas cetcanias. Em Turirn, em 1630, quando a peste rompe as redes
convocar urns renovação historiografica semeihante. 0 texto do programs do farniliares e profissionais de solidariedade e desmonta brutalmente as estratgias a
) coloquio, ainda indito, partia de uma consratação. Existe, na cidade do Antigo, elas atreladas, a vizinhança irnediatamente próxima constitui para os arresãos o
) Regime (como Os cidade de hoje, evidenternente, mesmo que Os itens diferissem
cspaco reduzido dos possIveis. 0 texto do progtama do coloquio, enfim, pro-
em parte), uma longs lista de referéncias possiveis para a constituição das idenri-
dades citadjnas: o sexo, a faixa etária, a famulia, a "terra" (pars os migrantes 25. P. Aries, "The Family and the City", Daedalrrr, 1977, pp. 227-235.
26. C. Klapisch.Zober, "Parents, amis et voisins" (1976), em La maicon et lenoen. Strate'gres et ritoeir dons I'Italie
de la Renaissance, Paris, 1990, pp. 59-80; S. Cerutti, "Matrimoni del Tempo di Peste. Torino nel 1630",
24. Id., ibid., p. 33. As cioçoes precedentes são interritulos do Iivro.
QaaderniSeorici, 1984. pp. 346-383.

)
L) . 64 65
BERNARD LEPETT
POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

punha urn método: interessar-se pelas redes, pelas estratégias, pelas situaçôes por
Esse forte vInculo identitário das duas comunidades face a face exprime-
rneio das quais as atores, forçosainente, ativam suas identidades rnt'iltiplas e Ihes
se na pujanca demonstrativa. As cerirnônias religiosas consriruemtarnbém cx-
dão urn signiflcado. Não ê preciso insisrir aqui no parentesco dessas proposiçôes
pressöes coletivas e exteriorizadas da fronteira entre os dojs grupos no espaco
corn as da sociologia das redes, da sociologia goffrnaniana dos papéis ou da prag-
p6b1ico. Nesse contexto, a forte tradiçao de ericeriação teatral dos confrontos
mática social27.
(que so degeneram em luta sangrenta urna vez, em 1718) perde progressivamen-
Encontra-se na conclusão do livro de Etienne François, intitulada
te scu significado religioso original e passa a ter como tinico sentido o da afir-
"L'érranger de l'intérieur" e elaborada independentemente do colóquio, urna das
mação identirária. A multiplicacao dos sinais distintivos não se limita a esfera
meihores respostas a seu programa de trabalho. Scm di'jvida de forma mais
sagrada; atinge - da disposicao das casas a decoraçao das fachadas, passando pelo
realista, suas análises são mais sensiveis as pressöes que pesam sobre os agentes
vestuário feminino - nurnerosos aspectos do cotidjano profano e atesta a
d0 que a gama dos possIveis que ihes é oferecida. E tidi retomar seus principais
interiorização, pela maioria dos católjcos e dos proresrantes, de sua identidade
elernentos. Em Augsbourg, urns identidade domina evidentemente todas as
especIfica. Retomando as palavras de urn viajante alemão dos anos de 1780, em
outras: é a de natureza religiosa. 0 motivo desse dommnio nBo esth no comando
Augsbourg se é papista ou luterano "a terceira pot6ncia"28. Apesar disso, as
que cia exerce sobre as verdades eternas ou os fins iuitimos do homern. Ao
guerras de religiao estão terminadas. Vários motives: ja foram sugeridos para
contrárjo, sua força vem do fato de que cia se duplica em duas esferas identitátias
isso. 0 vIncuio identitário religioso nao se encontra reproduzido em todas as
rnundanas: o espaco p6blico, de urn lado, e o espaco familiar, de ourro. Em
esferas da Vida social: nao existem nem profissoes nem bairros confessionals que
razão da paridade, particularidade institucional, que desde 1648 pöe carólicos e
reforçariam a fronteira acrescentando-Ihe exclus5es territoriais ou econômicas.
luteranos em pé de perfeita igualdade de direitos e poderes, a vInculo religioso é
Ao contrário, ha uma outra identidade que católicos e protesranres partilham,
o elernento essencial da identidade p6blica, isto é, da participacao nos negócios,
aquela que a paridade organiza e que a fraca diferenciação socioprofissional dos
de cada habjtante da cidade. Em razão da extrema raridade dos casamentos
dais grupos permite esperar na ordem dos interesses materials: a própria comu-
rnistos, que faz parte das praticas de grupo destinadas a perpetuar a diferença, e
nidade urbana. Uma forma de restabelecer, em oposicão aos graus de liberdade
em razão da separação nItida das redes farniliares (forremenre augsbourguesas e
das relaçoes sociais, a determinismo das estruturas instirucionais? Sern dOvida
endogarnas para os luteranos; de origem rural, mais iflsráveis e menos estreitas
alguma, nao. 0 princIpio paritário de reguiacao do espaco cIvico obriga as duas
para os catóiicos), identidade familial e identidade religiosa se fortalecem.
religioes a coabitar em equilIbrio e portanro a definir-se permanenremente urna
em relacao a outra: a paridade reforça as vínculos identirários. Mas so mesmo -

27. F. Barth, P,gc rndF,,rm in S.cialLf., Londres, 1980; J.-C. Michell, Socja1N,t,00,k 1,' (J,ba,, Sit,,.oth,,,,
Monchestr, 1969; E. Coffman, E,,r,,,,nte,'. T,,,, 5t;,dj,, in the Sociology of Iotora,rion, Indanápolis, 1961.
28. Cirado porE. Fraaçois, Protestant, etcarholiq,,eo..., op. r,r, p. 246. -

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67
BERNARD LEPETIT Poa IJMA NOVA HISTORIA URBANA

tempo assegura a jogo alternativo "de Iaços de interesses e de dependncia red- (o Individualismo burguês). Na verdade, a identidade ciradina, Para ele, não é
proca, de serviços prestados e de solidariedades de vizinhança, marcados por de natureza civil: seus elementos nao se encontram twa modelos de sociabilidade
geraçöes de prática paritária anteriores a instituição oficial da paridade"29. Ela adotados, a exemplo do West End londrino, pela elite dos proprietários agrico-
reconhece e perpetua a pluralidade dos mundos nos quais os citadinos agem 30. las, dos que vivem de renda e dos profissionais liberais das cidades interioranas
Isso desraca ainda mais a diferença das soluçöes propostas pelos partici- inglesas. A identidade urbana não resulta nem de uma atribuiçao de identidade
pantes do colóquio de 1992. Poucas estratégias individuais ou de grupos, poucas deterrnjnada por uma posicao no campo social, nem da difusão descendente de
redes de familia, devizinhança ou de profissao, poucos espaços de escoiha, apesar modelos de relaçöes sociais. Robert Descimon, por sua vez, sugere que a criaçao
dos incentivos dos organizadores do encontro: os pronunciamentos sinalizam o de urn sentirnento comunitário urbano não poderia resukar de práticas sociais
retorno das estruturas. Para demonstrá-lo, podemos recorrer aos rextos publica- cotidianas. Ele vai de encontro as análises sobre os bairros populates parisienses
dos nos Annales sob o tftulo: "Identités urbaines". Estas Se referem a Franca, da segunda metade do século XVIII feiras pot David Garrioch, que ye no senri-
corno também aos PaIses Baixos e a Inglaterra, e são representativas das princi- mento de vinculaçao coletiva a produto auto-sustentado das relaçóes
pais discussöes que se haviam realizado alguns meses antes. Os autores reconhe- interindividuais num espaco urbano muito densamente ocupado. Depois de
cern a mukiplicidade das configuraçoes sociais desde que existem citadinos corn citar o historiador americano ('Assim a comunidade local reproduz a si rnesma:
sexo, idade, posiçao familiar, meio, bairto, profissao, nivel, vInculo religioso ou através de palavras e atos, seus membros reforçam continuamente a autoridade
esratuto politico diferentes. Mas a urgéncia historiográfica ihes parece ser "definir dela e reafirrnam seus valores"), Descimon conclui corn uma litotes: "Poderla-
inicialmente os parâmetros flindamenrais da identidade urbana"31. mos reprovar, nessa análjse convincente, a espontaneidade que cia atribui a
Para definir essa identidade, partirernos, aqui, do que os autores recu- - ordmi. cossuini.tária7?2. A idéia de corn unidade não é familiar a vida parisiense
sam. AD cOntrário da historiografia britâriica dominance, Jonathan Barry recusa do Antigo Regime. Pior: a própria riecessidade dela talvez Seja duvidosa. Veja-se
ver al uma identidade de classe. A identidade urbana não remete nem a uma em Bois-le-Duc, a tItulo de sintoma, o regularnento municipal de combate
posição econômica (equivalence, na época moderna, ao "empreendedor indivi- contra as incCndios de 1739. A cidade era dividida em tres distritos de incêndio
rlualista masculino" do século XIX), oem a uma posicão social (que Se define na Para as quais as corporaçöes escolhiam 36 pessoas responsáveis pelas bombas
Inglaterra em relação a aristocracia fundiária), I nem a urn traço de mentalidade d'agua. 0 material das brigadas (baldes, escadas, lanternas) era forriecido, em
quantidade variável que a porraria especifica, par 38 diferentes órgaos constitul-
9. Id., ibid., p. 246.
W. A respeiro da pluralidode dos mundos em que coda aror social esti engajado, serd proveiroso ver L. Bolranski
L. Thdverror, Dr &zjnstsfiraoora. Lea Ccsrnonsiradr La g,sands'so-, Paris, 1991.
II. J. Barry, "Id0rre urbaine rE classes moyennes d05 l'Anglererrc moderne", Annales ESC, 1993, pp. 853- 32. R. Descimon, "Milice bourgeoise rr idenriri citadiric S Paris au temps de Ia Ligue", ,4nnalrs ESC, 1993, pp.
883 (ciracso no p.854). 885-906 (ciragSo nap. 906); D. Garrioch, Nighbourh0od and Communrly in Paris, Cambridge, 1986.

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BERNARD LRI'ETIT
POR UMA NOVA HI5TORIA URBANA

dos. A municipalidade garanria a contribuiçao mais importante, mas sua cob-


herdada. A ordem cronológica sugere aqui, mais que a logica de urns gênese, a
cação no meio da lista não reflete seu papel. Constatando que a cidade do século
import&ncia relativa dos fatores institucionais e dos fatores sociais.
XVIII se apresenta "como uma sociedade essencialmenre fragmentada" sem pun-
Em Paris, 6 a milIcia burguesa que exerce essa funçao integradora. Con-
cIpio de organização hierarquica entre suas partes, tambm Maarten Prak coloca
fiando sos burgueses a guarda das armas, a instituição "legitima o poder entre os
a questao da identidade urbana de maneira radical: "Então o que impedia a
habitantes" e os faz softer uma "propedutics" (note-se a força da palavra) tal
desintegraçao total da sociedade urbana do perlodo moderno?"33
que "a identidade burguesa se alimentava dessa aprendizagem"35. A irnportância
- As respostas dadas a essas quesröes, formuladas finalmente de forma an-
atribulda a esse papel leva Robert Descimon a propor urns cronologia inversa
gustiada, sobre a natureza da identidade citadina e sobre a existência do do
daquela que sugeria Garrioch. Longe de reforçar-secom o tempo nas mil bata-
social Edo todas do mesmo tipo. A comunidade urbana é uma comunidade clvi-
lhas cotidianas travadas pelos parisienses para serem reconhecidos e respeitados
ca. Nas cidades inglesas, "a idenridade civics e burguesa forjou-se na vontade de
por seus pares, o sentimento de vinculaçao cornunitária, no Antigo Regime, é
estabelecer urn dialogo no Bmago da burguesia, precisamente porque esta devia
"pele de onagro". 0 silBncio da insrituição, findo o século XVI, reduz a identi-
enfrenta r as ameaças decorrentes da instabilidade urbana e da fragmentaçao eco-
dade burguesa a sua expressao mais simples e conduz a alienação do povo citadi-
nômica e polItica". Somente o conjunto das estruturas associativas de forte to-
no: "Civicamente, se nao religiosamente, a história da Liga nao 6 a história de
nalidade institucional, a adminisrraçao local em seus vários escalöes, a igreja
urn povo alienado, história que será a do povo parisiense das Luzes". Em Bois-
paroquial, as corporaçöes de ofIcios drain capazes de transcender as divergncias
le-Duc, Maarten Prak vB encarnar-se na figura do burguês a especificidade urba-
de interesses, combater os efeitos dos fluxos de mob ilidade geográfica, "promo-
na da identidade social. 0 conjunto dos papéis, que ele represents dentro de
_yer uma srie de valores tjdos como fundamentais para a-sobrevivência da-socie-
urns série de instituiç6es, como as corporaçoes, as rnilfcias Jocais, as insrituiçöes --
dadeurbana". 0 renascimento dessas estruturas no s&ulo XVIII, após as crises
de assistência, remete a urn status, iriato ou adquirido, mas legal, de cidadBo
da Reforma e da Guerra Civil, results de uma lógica social interna; mas, empres-
urbano: "A força dessa personagem provinha em ijitima instãncia de seu caráter
tadas em bloco a organizaçoes mais antigas, elas "refletem a força da tradiçao
geral e legal, isto é, do fato de que ela englobava amplas categorias num quadro
clyica e de urn código estabelecido de formas associativas"34: em outros termos,
jurIdlco claramente definido"36 . 0 direito e a instituição asseguram a perfeita
o do social adquire sua força e encontra-se modelado numa rede instirucional
adequacao entre urn espaco (a cidade) e uma comunidade de vinculação (os
burgueses), que inauguram a divisBo entre "the established and the outsiders",
retornando uma expressao de Norbert Elias, e regulam as relaçöes interindividuais.
33. M. Prak, "Ident,ti urb,jnr, identitis sodaka. Les bourgeois de Bois-k-Dac auXVIII'siècle", An,'ales ESc,
1993, PP. 907-933 (citaçOes nsa PP. 923 e 924).
34.3. Barry, "Idrntjti urbajne....., op. cit., PP. 866 e 870, respec6vamrnre pars as rrs dtaçOes prrrrdentrs. 35. R. Desdmon, "Miker bourgeoise...", op. cit., p.906. assim cornea cirsçso srguinte.
36. M. Prak, ldentir6 urbainr...... op. cit., p.924.

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BERNARD LE PET IT Port UMA NOVA HISTORIA URBANA

Assirn, as normas (em sua definiçao jurIdica) e as instituiçöes (ainda em economia, de relaçbo social, de participaclo cornunitbria na esfera do religioso.

sua definiçao juridica, mais do que na de sociabilidade; em seus contei'idos for- As instituiçóes, isto é, os órgbos piiblicos, são "os princIpios unificadores de

mais, mais do que em pthticas informais) constituern para esse feixe de trabalhos todas as práticas"38. Em conseqiincia, a inscituição municipal nbo pode set
ao mesmo tempo a rnatriz das identidades e a argamassa que mantm unidas as compreendida independenteinente dos equilIbrios sociais especificos da cidade:

sociedades. PoderIarnos nos pergiintar sobre os motivos de tal retorno (sob uma eta é sua matriz, garantia e expresslo. Numa sociedade contrastada, eta assegura
forma nova que nao pretende contribuir corn a história administrativa, mas corn a nbo so a ordem, mas também a permanancia do do social e define urns identi-
história social) da análise das instituiçóes e das regras do direito. Scm di'tvida des dade citadina partilhada. Alias, o desenvolvirnento da luta de classes seguirb,

se inscrevern nurn movimento mais geral de atençbo das ciéncias humanas so segundo Philippe Guignet, a imploslo dessas instituiçOes no fim do século

direito e nos debates sobre a cidade de hoje. Nós nos restringiremos aqui a sugerir XV1II. Podemos nbo ficar totalrnente convencidos pela cot idilica corn que o
que 010 se trata, em hjstórja urbana moderna, de urn fato isolado. Dois exemplos autor pinta seu quadro: o essericial nao está al, mas no papel conferido tarnbém
bastarlo. 0 coloquio organizado em Paris em 1993 sobre o direito de burguesia ao sentido social das instituiçOes para resolver a incerteza das definiçöes comu-
era bssesdo em duas hipóteses. Pot urn lado, toda cidade forma uma entidade njtárias.
plural em que "a burguesia 6 uma cornunidade que reiine outras comunidades".
Pot outto, "a idéia de comunidade subjacente as práticas burguesas remete a AMANHA. 0 SENTIDO DO TERRITORIO

estratificaçöes que repousarn nas capacidades difetentes de certos grupos para pta-
ticar o direito comurn"37. A prática de urn direito localizado, a definiçao legal de Como toda problernbtica, a busca dos prindpios e das estrututas que gatantem

urn estatuto e a comunsdade constituem na cidade nivels superpostos de uma a coesbo da sociedade urbana pode set avaliada em termos de custos e beneficios. Entre

mesma realidade, fiindadora das distinçoes sociais e das vinculaçöes. cases Oltimos, certamente, está a renovaçbo da análise institucional. Desqualificando

Pode-se let a mesrna luz o livro de Philippe Guignet sobre as instituiçöes toda história autônoma, a pesquisa urbana procura estabelecer o sentido social das

municipais do século XVIII nas grandes cidades do forte. Etas nao são simples instituiçOes. Contra uma anblise funcional presres a cair na racionalizaclo aposteriori

engrenagens administrativas ou locais de ostenraçlo do cursus honorum ou da na tautologia, eta se rnostra atenta (em graus variáveis segundo os autores) Is

superioridade das elites: uma história adrninistrativa das municipalidades ou aptidOes das instituiç6es para rnodelar a sociedade e a capacid.ade dos atores engajados

uma sociografIa dos órglos piblicos passariarn ao largo do terna. As insrituiçöes nurn sistema social global pars ativb-las e dotá-las de sentido. No capItulo dos custos,

rnunicipais são o porito alto de uma forma particular (a regilo e a época) de inscreveremos o esquecimento dos lugares39. 0 direito, as instituiçOes e os grupos são

civilizaçao urbana, definida por modalidades de governo, de organizaclo da


38. P. Guignet, Lepoucoirdansla cull,..., op. cit., p.499.
39. Os estudos de R. Descimon, atencos a inscrever as priticas politicos e as identidades comuns na organizaçSo
37. Cohimdu CmtredRecherrbesHistoriquej, 1993, p 87. do espsco jarbano, conscituem exceçBo.

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BERNARD LE!' ETIT POR UMA NOVAHISTORIA URBANA

bern localizados, mas a operação de localização reduz a cidade a urn ponto, como se imigrantes provocou o acimulo dos corpos e a deterioração das condiçôes e dos

levar em coma o espaço significasse ampliar, na proporçao de suas dimensôes, a corn- tipos de vda. A fadiga, os desequilIbrios alimentares, a degradacao da sai'ide nao
plexidade do objeto. se originarn nem nas modalidades da organizacão do trabaiho, nem, em âmbito

Não estou certo de que essa reduçao anailtica possa subs istir e manter sua mais geral, no sistema de exploracao econômica. A história social tern funda-

validade, por motivos muito diversos mas concordances. A cidade, em primeiro mentos biológicos, e 6 o espaco das grandes rnetrópoles que secreta a miséria

lugar, é feita de pdras e de cimenro, ou seja, dispöe de uma materjaljdade, fIsica e moral. Os bairros de major mortal idade são rambérn os bairros de major

constitui uma forma que se estende no espaço. Assim, o que vale para a socieda- criminalidade: por uma breve cadeja de determinaçöes, os comportamentos

de (a cidade é urn lugar onde as diferenciaçoes se encontram ampliadas) vale sociais e as relaçöes entre os grupos encontram sua origem nurna ecologia. Do

tambm para o espaço: a cidade é umlocal de contraste e de disposiçao valorativa fluxo migratório aos comportamentos criminosos e ac, medo social, urn forte

dos homens e das coisas. Em segundo lugar, as questöes urbanas de hoje são determinismo assevera a co incidência entre a organização de urn território urba-

também questöes de organizacao do território social: mesmo se, por enquanto, no e as caracterIsticas da sociedade que nele habita. Eis al, em forma de manifes-
o problema d0 subemprego arrasra tudo to, urn dos pontos extremos atingidos pela hisroriografia em matéria de relação
consigo, a polftica da cidade esforça-se
para operar por seriação no interior do espaço intensamente diferenciado das entre a conflguracão das cjdades e a das sociedades citadinas.

aglomeracoes. Enfirn, por sua sólida formação parcial em geografla, os historia- O journal deJacques-Louis Ménétra permite traçar urn outro qua-

dotes franceses reservam ao espaço mais atenção do que a outras tradiçóes na- dro, reconstituindo os locais de enraizamento, Os pontos de referência e
cionais. Portanro os percursos de urn citadino comum. 0 espaco da infãncia e da adoles-
eu gostaria de sugerir, para encerrar, as modalidades e a utili-
dade de urn deslocame n ro das problematjca cencla limita se aos veihos bairros centrals da margem direita densamente
s espaciais da histórja urbana homologo
àquele que foj povoados e ativos, onde se pratica a atividade artesanal: naquele momen-
observado na ordem das análises das instituiçó es. Partir de exem-
pbs perrnitira, nurn prirneiro momento, compreender to, é por exceção que o jovem atravessa o Sena. Tudo muda depois que o
pot que uma história
puntiform e parece em princIpio possIvel. companheiro faa sua maratona pessoal, e a cidade de sua juventude tern

"Uma cidade é urns multidIo, e muitos aspectos da existência urbana se ares bern diversos: sete endereços em trCs anos, no ritmo dos empregos
explicam por aI": as violências sucessivos, e os percursos de lazer irradjam-se na escala da agbomeraçao
que Louis Chevalier considera corno a principal
caracterIsti ca inteira. Casado, Ménétra torna a estabelecer-se no centro, abre uma se-
de Paris durance a primeira metade do século XIX não tern, para
dc, outras causas além das fortes densidade gunda loja a duzentos metros da primeira, concentra nurn raio estreito
s hurnarias°. 0 afluxo dos novos
sua vida profissional e amoross: o espaco urbano da idade madura e da
40. L. Chevalier,
Classes labs unease, et classes dangereuse.r,0 Par/s Ian, /apremüre mo itU In XIX s/kit,
velh ice retrai-se novamente. Nas épocas sucessivas de sua existCncia, o
Paris,
1958.
artesão vjdreiro, por suas práticas, delimita os contornos e define os

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BERNARD LEPETIT P0R DMA NOVA HISTORIA URBANA
)•,

conteudos de urn espaço urbano pertlnente Na cidade como na nature As trés análises que acabamos de evocar brevemente partilham urn ponto
za segundo Lucien Febvre a unico problema e o da utilrzaçao de suas comum: estabelecein uma correspondCncia direta entre o espaco social e a orga-
possibilidades4 1 nizaçSo material da cidade. 0 sentido e as modal idades da relaçao diferern: as
Eis urn ultimo rnodelo referente a definiçao religiosa d0 territorio hones individuos e Os grupos podem softer os efeitos da ecologia urbana ou, ao con-
no sculo XVI. 0 espaco católico nao é homogéneo: locais sagrados constituem trário, saber mob ilizar os recursos que o meio Ihes oferece; podem penerrar na
pontos de referenda numa paisagem esrruturada rambm por grande nrmero de cidade comb numa concha ou então conferir ao espaco estruturas simbólicas
cerimonlas publicas De igreja em igreja deambulaçoes gerais marcam corn seus homologas as suas próprias. Mas, qualquer que seja o significado da palavra
percursos longos e complexos a unidade de uma cidade dividida pelo rio Saone território, uma sociedade (ou ao menos urn grupo) ode se inscreve perfeitamen-
Os protestanres, no mesi-no mornento, tern práticas diferentes de rnarcação do te. Essa idéja talvez pareca natural, tao dominanre d o paradigrna funcionalista
territorio urbano que não e preciso deraiharmos aqul42 Os católicos são majo que estabelece uma relação unilateral entre cada atividade e o espaco que a
ritarios meihor enraizados e encontram seem todo a especrro socioprofissional acolhe. Train-se, entretanto, de uma invenção que hoje sabernos datar aproxi-
Dessa diversidade e dessa esrruturaçao decorre que dao de si mesmos a imagem madarnente do sculo XVIII. Todo esse sCculo procura mostrar a influéncia da
de uma combinaçao organica de grupos diversos Essa imagern tern correspon configuracão espacial sobre a felicidade ou a infelicidade dos homens em socie-
dencia perfeira na maneira como os percursos das procissöes e a distribuiçao dos dade. Arquitetos, engenheiros, mdicos higienisras, pot exemplo, mostram-se
locals sagrados permit em Icr o espaco urbano A religlao modela e confere urn parricularmenre sensiveis aos encadeamentos que levarn da disposicao das
sentido sos valores citadinos e ao territoriO urbano ao mesmo tempo o catoli edificaçdes e da largura das ruas a circulaçao do at e desta ao estado dos habitan-
cismo e uma linguagern which among many uses could describe mark and - tes. 0 disciplinarnerito das classes inferiores - em que Michel Foucault e os
Interpret urban life and in particular urban space urban time and the urban pesquisadores que inspirou viram urn projeto que vem desde o grande
communi ty"*. 0 mundo é representacão, e, na ordern das rnetáforas, a questao confinamento dos pobres ate a invenção das prisdes panópticas - passa por urns
da artrculação das duas configurac6es a da sociedade citadina e a da cidade de intervenção no espaco urbano: a rnultiplicação dos equipamentos do controle
pedras resolve Se numa sobreposicão perfelta social (prisdes, hospIcios, casernas) e a clarifIcaçao do espaco püblico (nurnera-
ção das casas, difusão da iluminaçao das ruas) concorrem para uma sujeição
mais eficaz. Urna visão mais otimists, encarnada pela Revolução, destaca a vir-
41 J.-C.M n r J ra1 p cc tude educativa do espaco. Os percursos cerirnoniais, projetos de denominação
42. N. Z. Davis, The Sacred and the Social Body in Sixteenth CenruryLyon", Past and Present, n. 90, 1976,
PP. 40-70 (ciroclo nap. 41).
nova das ruas ou pianos de jardins que são metdforas da boa ordem cIvica
Em inglis no original: "pie, cone muitos 0503, poderia de,crevre, delimicar e inrerpretar a vida urbana pretendersi dotar a cidade de urn sentido renovado. Sua eficiCncia C tao pouco
parriculartnenre o espago urbano, o tempo urbano e a comunidade urbana'. (N. daT.) duvidosa, que mal se explicitam as mecanismos pelos quais o espaco poderá

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POR DMA NOVA HI5TORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

formar Os espIritos. Toda a gama das práticas reform istas afirma a coincidéncia mexicana. A funçao demonstrativa da praca não visa ao turista. Sua intençao

entre o territorio e a comunidade que o ocupa organizar urns colsa e ordenar a


so se revela totalmente para os moradores do grande conjunto de edifIcios de
outra pensar numa e pensar na Outra Tiatelolco que a rodeiam. Construldos no mesmo momento,-eles se destinarn
a acoiher a nova classe media em que o regime pretendia apoiarse e que assim
Hoje os Ilmires do funcionalismo encontrarn se tanto no carnpo da açao
encontrava a seus pes, inscrita na pedra, uma página da histOria oficial que ihe
quanto no d0 conhecirnento Pot urn lado fora dos periodos con)unturals pros
peros a capacidad e de uma intervenção no espaco para regular a questao social mostraria seu destiri043. Controlado, o projeto de urbanismo definia uma

torna se discutivel Por outro o movimenro da historia em suas descontsnui forma perfeitamente adequada a sua intençlo.
A continuação da histOria ralvez seja conhecjda. Em 1968, manifestaçoes
dades torna improvavel o suposto irnediatismo das relaçöes entre espaco C
socieciade de estudantes que ocorrem no Mexico, corno em váriqs outrospontos do mundo,
(Pode se vet per exemplo nos rnodelos de auto organização desen
são duramente reprimidas. 0 poder fax abrirem fogo contra esses jovens, quase
volvidos pela geografia urbana uma maneira de salvaguardar em geografia a ideia
de funçso distancia ndo todos das classes mCdias, e várias centenas de mortos caem precisamente us praca
se da a historicidade do funcionalisrno) Portanto a
de Tiatelolco. A esse prirneiro trauma se acrescenta urn segundo: em 1985, o
partir do postulado inverso - o de urn desacordo cronologico entre as funçöes
terremoto que abala a capital atinge duramente o bairro, provoca no mInimo mil
exercidas das mais materials as mais simbolicas e os espaços em que elas tern
lugar - e que se pode fazer urn deslocarnento das problematicas morres e torna provisoriarnente inabitável a rnetade dos imOveis. Os dois aconte-

Urn exemplo distante pode servir corno ponto de partida Seja a Praça cimentos derarn a praça urn sentido novo: destinada a simbolizar a inscrição da
das Tres grandeza nacional na perenidade, a Praça das Tths Culturas encontra-se assocjada
Culturas replanificada no Iniclo d05 anos de 1960 emTlatelolco no
an confronto, as rupturas, a morte. Nenhuma cornemoração pOblica, exceto o
Mexico A intençao do projeto era explicita justapondo as rulnas exumadas
cortejo de manifesrantes, a cada ano mais minguado, que a torna como ponto de
de urns pirarnide asteca uma igreja e urn convento do seculo XVI restaurados
partida de uma marcha rumo ao palácio presidencial, sob cujas janelas reclarnam a
e urn pequeno arranha cen de arquitetura moderna internacional erguido para
abrigar o Ministerjo das Relaç6es Exteriores tratava se de dernonstrar a con verdade sobre o n6rnero de vItirnas dos fuzilamentos de 1968, readaptando o
tinuidade espaco pot rneio de urn trabalho de luto. Dernorarn-se ali apenas alguns visitantes
da nação mexicana para alem das rupnlras da historia A praça mos
estrangeiros desorientados pot urn espaco que não foi concebido pars sua
tra urns imagem do passado em que as raIzes indIgenas, o perIodo colonial e o
dearnbulaçao.
Mexico rnoderno se inscrevem na continuidade A praca esta ern desnivel em
Dc tal projeto, dir-se-a que escapou as intençOes de seus ptornotores. Mas
relaçao so veiho centro histórico e é margeada de urn dos lados pot urns das
largas vias de circulaçao a cidade, construida pot fragmentos rnas inscrita na perenidade, pot quase tudo
rápida que quadriculam a capital. Do solo, é quase
impossive
l ter dela urns visao global, e não ha ponto p6blico elevado que
43. J. Manner, La ,,illtson a',,,,b1. Images t usages du cent— bpaaboL d,.Mexin,, Puns, 1993.
perrnira perceber so rnesrno tempo os tres elernentos sirnbólicos da identidade

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78

H;
BERNARD LEEETIT POE uMA NOVA HISTORIA URRANA

escapa as intençôes de seus promotores. Organizados inicialmente para carninhar mental do espaco produtivo. A muraiha, cuja manutenção já se deixara de fazer,
juntos (utilizo de propósito uma formula tambrn vaga), urn espaco e seu uso, torna-se obstáculo, e sãoenviados ao tel requerimentos solicitando que seja det-
no fim, desarmonizam-se: toda a história das muraihas que cercarn as cidades rubada: "Os votos comuns dos cidadãos da cidade e daqueles dos subtirbios os
poderia set escrita, na época moderna, desse ponto de vista, por exemp1044. A fazern desejar ha muito tempo ter a livre faculdade de poder comunicar-se tanto
análise cuidadosa das modalidades e das consequéncias desse desacordo, feita pot a noite quanto de dia, menos pela satisfaçao que isso Ihes dana do que pela uti-
urn grupo de sociOlogos influenciados pela herrnenêutica e pela fenornenologia, lidade pars suas fábricas... Tat habitante precisaria conferenciar corn operarios de
oferece urn ponto de apoio para irmos adiante. Eles propOern denorninar "tra- fora para a perfeicao de certas operacties de fabnico e para aceletar as expediçBes
ços" a esses pedaços descombinados de que as cidades são feitas45. que ele não pode providenciar, estando a cornunicação cortada, o que causa urn
0 traço, porranto, resulta de urn distanciarnento entre ritmos de evolu- prejuIzo considerável ao cornércio"45. A difetenciação espacial entre a cidade e
ção diferentes. Enquanto a praça de Tiatelolco mostra as classes médias que ha- os subtitbios e o muto que a marcava ate então continuam exist indo na mesma
biram no alto a ideologia de urn regime que elas apóiam, esse fragmento de ci- época. Mas de tepente, potque uma relaçao de comp!ernentatidade substituiu uma
dade nao é considerado como urn traço. Forma e fiinçao Ia evoluIram (brevernente) situação de exclusão, eles nSo tern mais a mesma id..ade: a prática econôrnica aca-
de acotdo corn cronologias semethantes. Mesrno que o construldo fosse amigo ba de telegat a rnuralha que circundava a cidade a urn passado de que o presente
(e é, em parte, nesse caso exemplar), ali não haveria passado, mas urn presente se desprendeu. A evoluçâo dos usos prolongs-se numa tedefiniçao ideolOgica
de formas e de usos. 0 traço corneça corn a desadaptaçlo, corn o fim das possi- nurna reorganizaçao do espaco.
bilidades de ajuste. Ern Nimes, pot exemplo, enquanto as mutaihas que cercam Reoxganizacão: o termo é votuntanamente impteciso, pois, no que se
a cidade são a marca de urns superioridade citadina sobre os cam pos e servem refete ao destino do traço, vários casos são passIveis de consideração. Pode-se
como ponto de apoio ao cdntiole militar do espaço, continuam em perfeita con- tomar a decisão de apagar do presente os objetos indexados no passado: em
formidade corn as práticas socjajs do momento, qualquer que seja a data em que 1785, os muros de Nimes, cuja tuina material não os impedia de restringir a
foram edificadas. Depois, as práticas mu dam. Pot urn lado, a consttução da ci- passagens estteitas demais as linhas da cadeja de producão, foram demolidos.
dadela e das casernas, no fim do século XVH, dá corpo a uma nova concepção da Mesrno nesse caso extremo, pode-se questionar o tad icalismo do apagarnento:
defesa. Pot outro, a dualidade cidade-subc'irbio apaga-se apos 1730, corn o de- quantos bulevares circulates vém inscrevet, pot rnuito tempo, o traço de antigas
senvolyjmen to da jndiistrja da seda, em benefIcio de uma otganização cornple- defesas no solo do tecido urbano? Inscrita nas coisas, a ordem espacial de on-
tern, entretanto, permanece despetcebida. Sua leitura tequer deciftaçao e uma

44. C. de Seca eJ. Le Goff (ed.), La Città e/cMu,a, Bari, 1989.


45. D. Colson, J. NizeyeJ. Roux,
(in quartin-ind,00icla Sainr-Etienne. Le Marais c,Urc 1,/eu/cc ccp/csfiration, 46. L.Toisseyrc-SuRmann, "U,bonsme cc soci/t I'cxcmple de Ni,nes uuxXVTI' et XVIII' siIcles", Anna/c, ESC
Ly0, 1993.
1980, pp. 965-986 (citacso na p. 980).

80 81
IF
I
BERNARD LEPETIT POR DMA NOVA HISTORIA URBANA

postura reflexiva: lembrar que as cidades cram muradas; localizar nas plantas de 0 que acontece, nesse movirnento perptuo, corn as formas antigas?
hoje as rupturas na continuidade do tecido urbano; compará-las corn as vistas e Precisamente no mornento de sua reativação, elas escaparn a sua condiçBo de
as plantas antigas. Essa leitura escapa ao imediatismo das práricas urbanas e joga traço para serem reiriseridas, numa nova coincidEricia entre uma forma, urn
numa relaçao antiquária corn a cidade a reativação presente da Iembrança das uso e urn valor, no circuito do sentido social. Essa reativação nao reroma
formas. Scm essa atenção particular, o traço, apagado em sua materialidade, terá senão uma parre das dimensöes do objeto: uma localização, uma forma, urn
sido objeto de uma negacão de realidade.
valor simbOlico, urn valor econôrnico... para faze-los atuar de outro modo, e
A reativação do traço no presente, porérn, pode operar-se segundo outras corn outros fins. Mas cia permite que a cidade, cujos elementos provEm quase
modalidades. Que fazer, por exemplo, corn urn antigo palacio desativado? Transfor- todos de passados corn profundidade diferente, seja sempre inteirarnente con-
mar suas dependEncias de serviço em manufatura de lanças, depois em oficina tax-
ternporânea a si mesma. 0 presente das cidades, portanto, resulta de urn
iii, antes de fazer delas urn hospital militar. Utiljzar os esrábulos como easel-na, depois trabaiho continuado de reinterpretação dos lugares. Nesse aspecto, a cidade é,
como depósito de arquivos on como espaço para aulas de uma escola de arquitetu- na expressão de Marcel Roncayolo, "uma categoria da pratica social"4 . Vários
ra. Fazer de uma das alas d0 castelo urn museu. Será que essas mutaçöes de uso de motivos fazem que ease processo seja ao mesrno tempo determinado e pouco
formas herdadas so atingem alguns locais histOricos? AD contrário, são Iegião. Dc-
previsivel. Por urn lado, dc inscreve-se nos conflitos de inrerpretação sobre a
saparecida a ameaça militar, as invasOes nos taludes, nas galerias de rondas ou nos valorização diferencial do espaco urbano e assirn registra as relaçoes sociais do
fossos do sisrema de defesa de Caen multiplicam-se: no inIcio do sécuio XVIII, mais
momenro49 . Pot outro, as caracterIsticas precedentes do objeto (nao apenas
de duzentos proprietários ocilparn sem docurnentaçao o dominio pOblico, de que de sua forma, mas de seu valor) desenham, corn as represenraçôes do mundo,
fizeram adegas, despensas, jardins ou terraços. Em Louviers, urn pouco mais tarde, a gama das reativaçöes possIveis: são necessárias circunstâncias bern excepcio-
sob a pressão da indOstria, antigos albergues ou edifIcjos de moradja são utilizados, nais para que urn palácio seja transformado em caserna quando suas depen-
scm mutação expressiva da organização do espaço, como manufaturas txteis. Em d&ncias de serviço se tornam museu. Enfirn, como o espaco urbano forma urn
Paris, nao 6 preciso esperar a Revoluçao para vet palácios aristocráticos inteirarnente sisrema do quai cada elernento adquire sentido de acordo corn a posicão que
ocupados corn escritOrjos, e nao foram necessárias mais que duas geraçOes, na vita- ocupa relativarnente aos dernais, a rnodificaçao de uso de urn lugar inscreve-se
da dos sculos X\TIII e XIX, para vet as modalidades de uso e os valores sociais do numa série de rnutaçöes anteriores que afetam outros lugares e contribui, pot
Sena, dc seus mis e de suas pontes radicalmente modificados4 .

48. M. P,oncayolo, La el/Ic etoes tn-rito/rca, Paris, 1990 (cirscso nap. 33)
47. J.-C. Perrot, Glsrioe.., op. cit.; J.-M. Chaplain,
La c/,amb,-edeo ticocuro. Lou,iers: citldrapière, 1680- 49.A an/use anrropoldgira da evoluçao da cidade de Rerhymnos corsstirui urn born exemplo: M. Herzfeld, A
1840, Seyssd, Ed. du Champ Vallon, 1984. E crabaihos em realizaç8o sic N. Coquery el Backourhe Place in History Social andMonu,nental Time in a Cretan Town, Princeton, 1991. Em hist/ria, ver osrrabslhoa
a respeito de Paris. (A rest de J. Backoucheji foi publicada: La trace dufleure. La Seine cc Paris, 1750- recenrrs de P.-Y. Saunier, a comecar Poe "Haut-lieu cc lieu ham: la construction du sens des lieux. Lyon cc
1850. Paris, Ed. de !'EHESS, 2000). Fourvièrrs au XIX' siècle". Revue d'HiatoireModerneet Contcmporaine, abr.-jun. 1993, pp. 207-227.

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BERNARD LEPETIT POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

) sua vez, para direcionar seu destino. Em Nantes, no final do século XVIII, tempo e da rnemória, rdaçoes sutis entre Os grupos sociais e seus terrir6rios51.
por exemplo, a mudança de valor da Praça do Comércio, outrora simples Enfim, buscar analogias anailticas corn a antropologia dos objetos, mais do que

) depósito cercado, tern a ver corn a reconstrução da Bolsa, a destruiçao da corn os rnapas mentais caros a psicogcografia52. Corn isso, a relaçao funcionalista
muraiha, o aterro dos fossos da cidadela próxima e a edificaçao da Praça Real; das sociedades corn o espaco, hoje paralisanre tanto na ordern da ação como na do
)
transformada em centro urbano principal, a Praça do Comércio contribui, no conhecimento, parecerá apenas aquilo que cia é: urn caso particular, histórica,
/
século seguinte, para a estruturação da rede comunal dos transportes p6bli- cultural e socialrnente situado, das operacoes sociais de atribuição de sentido aos
cos50. Assirn, a partir das condiçoes momentâneas de seus equilibrios e do lugares.
) conjuntos dos "valores adormecidos" (a expressão é de Fernand Braudel) que
) Os espaços citadinos contêm, as sociedades urbanas estão envoividas, no pre
) sente, nurn processo de reativação e de revalorizacao de seus espacos de on-

) tern, que envoive, em parte, o futuro das formas, das práticas, dos valores
citadirios.
)
Pode-se ver roessa grade analItica o esboço de urn prograrna de trabaiho.
)
Seria possivel levantar as sernelhariças que dc apresenta corn a história social das
instituiçöes tal como cia acaba de ocr descrita. Gostarlamos apenas de destacar que
isso obrigata a dar major atenção as ferrarnentas que os historiadores das cidades
) modernas francesas não tm necessariarnente o hábito de manejal-. Em vez de
- ) retomar as proposiçöes da semiologia urbana dos anos de 1970, prestar atenção s 51. P. Ricoeur, Eosaisd'hcrméneutiquc, Pads, 1969 e 1986,2 t. DeM. Halbwachs, registraremos os dois !ivros

) sugestóes da análise hermenêutica que Paul Ricoeur pratica quando se preocupa menos cicados: Leo escpropriariono et/cps-ix dec terrains a Paris, 1860-1900, Paris, 1909; La topographic
lEgs-ni/sure dec Eecsssgi/ec i/c Terre Saints-, Paris, 1941. Para urn prirneiro esboco de rradoçso desses teams
em defiriir os processos sic aproveitamento e de atribuição de sentido que toda
) visando S pesquisa urbana, pode-se reportar a B. Leperit, "La formation de Ia valeur dans la yule moderne
leitura - de urn texto, mas tarnbérn de urna ação - comporra e em tentar rranspô-. (XVI'-XlX' siecles)', Hiotoire, Es-anomie, SociEtE, 1994 (no prelo) e "Use herm/neutique urbaine est-elle
los para as sociedades citadinas e para os espacos urbanos. Prestar arerição tambérn possible?', em B. Lepetite D. Pumain, TemporalitEs ,srbai,oeo, Paris, 1993, pp 287-299 (N. da Org.: taonbim
publkado no original francEs no, ara.s do VCongre000 Brasileiro deHiotEria daArte. Cidade: Hiss-i na, Cultism
aos estudos de Maurice Halbwachs, quer dc procure acompanhar os fenômenos
cArte. CBF{A/Fapesp/ECA- US!', 1995.)
) de forrnaçao social do valor no espaço, quer dc estabeleça, pela mediação do 52.Dc uma far:, bibliografia, citacemos apenas, poe serem recences, durn pequenas obras sugescivas: P. Lemonniec,
Elements for an Anthropology a/Technology, Ann Arbor, 1992; "Les objets dans faction. Dr Is ensison a,
laboratoire". rextos reunidos poe B. Conein, N. Dodier eL. Thevenoc, Raisons Pratiqueo, 4. Paris, 1993. Ver
50. M. Darin, 0. Meillerais,P. Saudrais, Tranof sationdcopcsdl\Toanttodepois de,sx si/des, Eroled'Azchitecsure iamb/rn, osais amigo tens macro sentido: A. Appudutsi (ed.), The Social Lift of Thsngo. Commodities in
IT deNanres, 1991 (datilografado). CslsssralPeropeccive, Cambridge, 1986.

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H

3. DE ALEXANDRIA AO CAIRO. PRATICAS ERUDITAS E IDEN-


TIFICAçAO DOS ESPAOS NO FINAL DO SECULO XVTIP'

.4

I. No início de 1787, uma obra de Volney intitulada Voyage en Syrie et


en Egypte' foi publicada em Paris, cons aprovação e privilgio real. 0 livro foi
urn sucesso imediato2. Como quase sernpre, igrsora-se o ni:imero de exemplares
distribuldos, mas a edição de 1787 teve duas novas tiragens, em 1789 e 1790,
e uma reediço em 1792. Publicou-se uma terceira ediçao, revista e ampliada,
em 1799, pot ocasião da expedicao francesa ao Egito, e houve duas outras
ediçoes ainda em vida do autor, em 1808 e 1820. 0 ljvro foi traduzido Para o
• ingls em 1787, Para o alemão em 1788, Para o holandês em 1789, Para o ita-
liano em 1799.
A ediçao francesa de 1799 acrescentou peças novas ao texto revisado da
Voyage: a ri-adução de dois manuscritos árabes inéditos, urn quadro do comr-

* "D'Alexandrie au Caire. Praciques savantes cc identification des espzce.s 56 fin du )CVIII' siècle". 0 original em

&ancls foi enviado organizodoradesta tolet5nea ames que fosse publicado em italisno em 1995, sob o ritulo
In Presenza del Luogo Stesso... Pratiche Done e lden(ificazione degli Spazi ails Fine del XVIII Secolo", em
Q,,4d,—i Storici, 3, dcv. 1995.
1. M. C. F. Volney. Voyage en Sync Cr en Egypee pendant let annIe, 1783, 1784cr 1785, Paris, 1987,
2vo!,.
2.J. Gaulmier, L'idIrrlogue Volney. 1757-1820. Conrnib,riion 4 l'hiseoiredel'onientaft,meen France. Beirure, 1951
(reimpressSo em Genebro, 1980).

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BERNARD LEPETIT POE UMA NOVA HI5TORIA URBANA

cio oriental extraldo dos registros da câmata do comdrcio de Marseiha, as urn saber positivo sobre o mundo. Mesmo que a força heurIstica das descriçöes
Considerations sur la guerre entre les Runes et Its Turcs publicadas pot Volney em geográflcas hoje pareca esmaecida, o expediente da Voyage não se caracteriza pela
1788. Associando relato de viagem, filologia, estarIstica do comércio e reflexöes singularidade: conhecer o Oriente ainda é fornecer a respeito dde irnagens ye-
que hoje seriarn consideradas de natureza geopoiltica, esse livro apresenta urna rossImeis.
configuraçao editorial cuja estranheza nos chama a atenção. 0 conhecimento do DeverIarnos acreditar, por causa disso, que o livro de Volney nos rnos-
Oriente, na virada dos scuIos XVIII eXIX, organiza-se de acordo corn modali- tra a verdadeira condição do Egito e do Levante no fim do sdculo XVIII,
dades que não são as de agora3. Para o autor, o editor e os leitores que, segundo quando as potncias europdias se interrogavarn sobre a oportunidade de urna
o testernunho da Decade Philosophique, logo esgotaram a edição por sua atuali- intervenção militar? Rejeitanios o que ha muito tempo nos parece fraqueza ou
dade politica, esses textos voluntariamente reunidos fazem sentido juntos. ingenuidade. A desconfiança C tao veiha quanto o relato de viagem cuja vera-
A mesma proposição valeria para cada peca, isoladarnente, e em particu- cidade C relativa aos meios de informaçao, a sagacidade e ao interesse do
lar para a Voyage, que é a principal delas? Dc inIcio, nem parece necessário fazer viajante.
essa pergunta. Voltemos a ediçao de 1787. Guidi, o censor encarregado de Icr o Talvez se tenha na lernbrança o quadro que abre a Voyage en Egypte et en
manuscrito de Volney para conceder a autorização real para impressão, escreve- Syrie: dc pinta a cidade de Alexandria em que Volney acaba de desembarcar no
ra, em 1783, Lettres contenant Iejournala"un voyage a Rome. Na qualidade de inIcio de janeiro de 1783. A ernoção irnpera. Mal o viajante desce em terra, urna
entendido, assirn dc julga o livro de seu confrade: "o autor parece-me não haver "profusao de objetos desconhecidos o assalta por todos os seus sentidos... Nesse
nada negligenciado para conhecer bern o pals que descreve. Creio que essa obra turnulto... Seu espIrito está nulo para a reflexão". A reflexão analitica, a que dc
interessará tanto pelos detaihes curiosos que contdm quanto pelo torn de verda- - - se entrega quando já instalado, a respeito do "argeral de misCria que dc va nos
de corn que foi escrita". Conhecer bern é descrever; descrever é desenvolver urn homens e o rnistCrio que ronda as casas", tern curta duraçao: o vasto terreno
discurso verIdico em que as curiosidades, alérn de suscitarern interesse, coristi- todo coberto de rulnas que se percebe por trás da cidade moderna logo anal
tuem o conjunto do espaço exótjco. Dessa forma, o mérito do relato de viagem seus passos. F,ntão, de novo, o sentimento o artebata, e o viajante "experimenta
reside na força de evidncia que dc manifesra4. Sc obtdrn adesão, não ha mais urna emoção que frequenternente leva as lagrirnas, ou que dá lugar a reflexBes
nada a dizer. Organizado como quadro de fatos reais, desafia o comentário, cuja tristeza invade tanto o coração quanto sua majestade eleva a alma"5. Essas
convida a reproduçao, fornece todos os elementos necessários e suficientes para poucas linhas abrem para a crItica dojs caminhos iniciais. Urn deles, percorrido
sobretudo pela análise literária, sublinha os aspectos prC-romãnticos de uma
3. toque nSo percebe, apesor da utilidadc de sum aniliarn, H. Laurens,s Oñne, inte11ectue1a de l'erpidition
d'Egypte. L'0 rie,,tal,sme islamiaant en France, 1698-1 798, Isrambul e Paris, 1987.
4. B. Lepetit, "Voyages en France", em 0. Marce l (dir.), Composer !epayoage. Conarnceians et crise, Jr
l'eapace 5.Volney, Vpageen Egypre at en Syria, pablicado corn inrroduçio e notas dej. Gaulmier, Parts, 1959, pp. 25-26 (as
(1789-1992), Paris, 1989, PP. 111-130. ciracoes seguirues do Voyage foram friss a parrir dm,a eEçBo, que retoma otexto de 1799).

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P0R UMA NOVA HIsTORIA URBANA
BERNARD LEI'ETIT

parte que conjuga o pitoresco do bazar e a melancolia das ruInas. 0 outro, diferentes formas de memórias descritivas so são transparentes porque nao sabe-

desracando o princIpio de seleçao dos deraihes que fazem sent ido (trata-se d0 mos percebê-los. Buscarernos na descrição de Alexandria feita pot Volney os

animado debate que se trava na Europa sobre o despotismo oriental), conduz a elementos Para apoiar essa hiptitese. A segunda é que os procedirnentos nao sac,

dentincia da ideologia que susrenta urn texto por cia transformado nutria das hornogêneos e que sua heterogeneidade está na origern das caracterIsticas atri-
armas do imperialismo europeu6. Volney apresenta_se corno urn sábio inteira- buldas ao mundo. Tentaremos demonstrá-lo deslocando ligeiramente o lugar de

mente ocupado ern descrever o estado do mundo? Então ilude a si mesmo, ou observação (de Alexandria ao Cairo e da Voyage en Egypte et en Syrie a Description

engana seu leitor; alias, todos os Indices concorrem Para fazer dele urn agente de I'Egypte) e organizando a análise a partir da questao de que nos ocupamos
secreto d0 ministro frances das Relaçoes Exteriores7. aqui: a do espaco.
A apreciação oscila, assirn, entre dois extrernos. Ou a Voyage, em sua
irnpessoalidade quase opressora, é o lugar de registro puro e simples da evidên- 2. Da descriçao de Alexandria contida ern algumas poucas folhas (sete

cia do mundo - sobre o relato de viagem não ha nada a dizer -, ou então essa parágrafos, no total), pode-se retirar todas as indicaçties esperadas, em vários

evidência, sendo governada pelos cânones Iiterários ou pelas categorias da ideo- registros, de urn saber positivo sobre o rnundo9. A exrensa planicie de areia, as
logia, é Pura ilusão - sobre o Egito e a Siria, a Voyage não permite dizer nada palmeiras cornoguarda-sOis, o alinharnento dos tetos em plataforma, as setas

que seja verdadeiro. No primeiro caso, a verdade da representação reveste-se dos minaretes: cis os elementos de uma paisagem em que as horizontais domi-

corn a transparricia d0 rntodo; no segundo, ao contrário, o objeto desaparece nam. Ern terra, o viajante confrontado corn a multidão. Tipos humanos defi-
nas sinuosidades de sua descriçao. nidos por sua linguagern, seu traje e sua fisionomia, cenas de rua - os carnelos

A análjse que segue repousa em proposicties urn pouco diferentes. As - transportadores de água, os balcties do mercado, os cães errantes, esse "cavaleiro
representaçoes do mundo nao são projecties, mais ou menos boas ou mais ou de pantufas" montado num asno selado e esses "fantasmas ambulantes" que são

rnenos fIis, de realidades que se encontrariam por trás deias°. Isso é urn postu- as muiheres - comptiern urn quadro agressivo inscrito nos registros da estranhe-

lado. Ele implica que o problerna de saber o que era o verdadeiro Egito nos anos za, da feitira e da miséria. Ainda encontramos al, exceto pelos produtos envolvi-

de 1780 admite urn grande ntirnero de so!uçties: a Voyagede Volney 6 urna delas. dos nas transaçties, os elementos de urna geografia cornercial: a situaçBo da

Eis agora duas hipóteses. A prirneira é que os procedimentos de elaboracao das cidade nas correntes de troca de raio amplo, as caracteristicas e os perigos dos
sItios denominados Porto Novo, destinado aos cristãos e varrido por ternpesta-
des, e Porto Veiho, reservado aos muçulmanos e atuihado de destroços.
6. E. Said, Orieotali,m, New York, 1978. (N. d0 Org.: trod, port., Oricotalicmg.
Sao Paulo, Companhia dos
Letras, 1990).
7.J. Gaulmier, 1951.
8. M. MeekouPonry, Le visible rc l'innj,jb/e, Paris, 1964,
pp. 279-280. 9. Volney, 1959 (1799), pp. 25-28.

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BERNARD LEE ETIT POE DMA NOVA HIsTORIA URBANA

Mas o qisadro da cidade, explicitamente iniciado como uma cena a cons- preciso esperar que o primeiro tumulto seja acalmado, e é preciso voltar mais de
truir, inscrita no vocabulário do "espetáculo" (a palavra é empregada trés vezes), uma vez a observaçao para assegurar-se de sua justeza. Ver bern é uma arte que
do efetto (duas vezes) e do pitoresco (uma vez) cot-npleta se no registlo da requer mais exercIcio do que Se pensa." Vet bern e reportar o que Se viu: o
precisao requerida Então enurnera se (as perdas de navios ancorados pot causa rntodo de Volney é baseado na observação direta. As falsas imagens pintadas
das tempestades; os canhöes que defendem o farol; osjanIzaros que cornpöern a pelos relatos enganadores, etc opöe a experiéncia sensorial do rnundo°. Toda a
guarniçao) e mede se (a extensão do canal que abastece a cidade corn agua doce) descrição de Alexandria é conduzjda do ponto de vista do observador que Se
Como foram destacados os efeitos de estilo e as cenas de genero seria facil desloca, desembarcando, percorrendo as ruelas da cidade moderna, contornando
apontar os interesses que estruturarn essas abordagens. 0 primeiro 6 a debate as ruInas, deixando a cidade pelo canal. Poucos sons, nada de odores: a visão é,
teórico sobre a natureza e os efeitos do desporismo, em relaçao ao qua! se de longe, o sentido mais so! icitado, e o quadro de Alexandria é desenhado corn
Interpretarn tanto as cores sombrias da cidade - o at geral de miseria que dc ye base no ponto de vista do olho que observa (lirnite a impessoalidade - alias mal
nos homens e o mistério que ronda as casas ja o fazem suspeitar da rapacidade compreendida pela rnaioria dos comentaristas - da Voyage de Volney). Olho
da tirania 0
- quanto o mao estado dos equiparnentos porruarlos - e do pouco sensIvel as cores (encontram-se aqui apenas trés, que destoarn porque
espirito turco arrulnar os trabaihos do passado e a esperança no futuro porque estão concentradas em poucas palavras: povo "escuro", camisa azul, cinto ver-
na barbarie de urn despotismo ignorante não existe arnanhã A avaliaçao das melho), mas atento as formas, a individualização delas, a sua dimensão, a sua
possibilidades de urn desembarque 6 a segunda questão de que o texto constitul enumeração, a sua caracterização comparada. A lógica do quadro é a do inventa-
a resposra factt de invadir, a cidade seria dificil de dorninar. Mas e o vestiglo rio dos objetos que nele se agrupam, a de uma fIsica do rnundo.
dos modelos de conhecitnento utilizados que eu procuro e nao o das problema Em 1749, Etienne Bonnot de Condillac havia publicado o Traité des
ticas em que a irnagern de Alexandria Se Insere Pode se reconhecer at dots systèmes. Ele denomina sisterna a disposicao das djferentes partes de uma arte ou
rnodelos e dos mats bern estruturados entre Os que se apresentavam no final do de uma ciéncia, disposicao tal que todas as partes se sustentam mutuamente e
seculo XVIII que o valor das conc!usöes deperide do valor dos princIpios. Apologia do rnto-
do experimental, o Traité disringue trés tipos de princIpios: as abstraçöes, as
3 Sern o tempo não se pode rilgar sadiamente p0150 prirneiro aspecto hipóteses e Os fatos, e sustenta que as ünicos sistemas verdadeiros são os que se
dos objetos novos nos surpreende e lança a desordem em nosso espIrito; elaborarn corn base em fatos. No volume jotitulado "Art de raisonner" do Cours
d'études pour l'instruction du Prince de Parme, publicado em 1776, desenvolve a

lO. Aid, p.26. 12. S. Moravia, IlPn,ir,, Sthnza Filo,ofia ,i, Francia (1780-1815), Fiorcnca, 1974, esruda
ii. Ibid. p. 28. ugadamenre o m&odo volneisno do acesso S realidade (pp. 594 otsoqq.).

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BERNARD LEI'ETIT POE DMA NOVA HI1TORIA URBANA

mesma epistemologia e conclui: "a evidéncia de fato, Excelência, fornece todos exprime em 1754, quando, munido apenas da hipótese de domInjo dos sentidos,

os materials desta cincia que se denomina fIsica e cujo objeto é o tratamerito descreve a estrutura lógica das faculdades cognitivas. A reflexão, assim, ou "nao
dos corpos"13• em seu princIpio, mail do que a própria sensação", ou "é menos a foote das

Volney rem o mesmo objerivo: contribuir para a elaboraçao de urna esp- idéias do que o canal pelo qual elas decorrem dos sentidos"ti. Quanro a anáiise,

cie de fIsica d05 espaços sociopoifticos. Seu rn&odo, que dc explicitará nas no fim do século X\TIII, é urna chave universal de inteligibilidade (como serâo,
a l'usage des voyageurs, escritas em 1795 a pedido do
Questions de si-atistiques mail tarde, a evoiução, a dialética ou a estrutura). Mascarando diferençaa de
governo da Reptiblica, baseadas em sua experincia oriental, e indutivo. Ele concepcão e de apiicacao importantes (em seu sentido mail amplamente aceito,

conduz da acumulaçao das observaçoes precisas, reunidas a partir de urn ques- cia é definida como "a decomposicao inteira de urn objeto e a distribuiçao das
tionário que forma urn sistema, e de sua comparação, para um conhecimento parres na ordern em que a reprodução se torna fácil" 6), a análise permire reunir

verdadejro: "o minisrrio decjdju reunir urn nt.'imero de fatos bastante grande os saberes na ficçao de urn paradigma unificado. Espécie de caixa preta intelectual,

para retirar de sua cornparação, maduramenre meditada, sejam verdades novas, cia designa, na verdade, em aigurnas dessas aplicacóes, urn problems mat resoivido:

seja a confirmaçao de verdades conhecidas, seja enfim a refuraçao de erros come- o da relaçao ernie a estrutura do rnundo e a estrutura do conhecimento.
tidos"14. E preciso let a descnição de Alexandria que abre a Voyage como uma
Uma epistemologia sustenta esse m&odo para observar e descrever o
murido. Eta arribui qualidades particulares aos objetos por conhecer e aos sujei- aplicacao rigorosa do método. 0 conhecimento livresco de urn espaco exótico é

tos conhecedores. Os objetos são homogeneos, o que signif'ica que pertencem a inicialmente depreciado pela falta da contribuição dos sentidos ("sempre haverá

mesma realidade, unitária e material, mas são também fragmenros dessa realida- distância entre o efeito sobre o espIrito e o efeito dos objetos sobre os senti-
de, independent es uns-dos outros. Os sujeitos são privados de qualquer acesso - dos") e pela faita de urn apoio heurIstico para a reflexão anaiftica ("a irnagina-

intuitivo ou sintético ao mundo. Fora de toda metafIsica, sua abordagem dos ção... é obrigada a reunir os rnembros esparsos para corn des compor corpos

objetos e a eiaboraçao do conhecimento operarn-se unicamente por interrnédio novos; e corn esse trabaiho prescriro vagarnente e feito as pressas, é dificil que
dos sentidos. cia não confunda as caracterIsticas e não altere as formaa"). Voiney, por sua vex,

Disso resulta urn método fundado na descriçao da aparncia sensIvel das em quatro seqüências, faz o contrário: desembarcado em terra, irnita a totalida-

coisas e na decomposiçao anailtica da realidade. A obaervaçao sensivel encoorra de do processo cognitivo sensorialista. 0 pnimeiro momento da expeniência
suajusrificati va na fuiosofia sensorialista do conhecimento, tal com o sensIvel dissolve de imediato a representacão livresca sintética da cidade oriental
Condillac a

13. E. Bonnet de Condil!ar, Traité des jyitèrtie; 15. B. Bonnot de Condillar, Tnaite'drssen,atians(1754), Paris, 1821 (reimpresslo em Gessebra, 1970), riracso
(1749), Paris, 1821 (reimpressso em Genebra, 1970), Art de
raiaomsn'(1776) Paris, 1821 (reimpresslo em Genebra, 1970), ritaçso nap.57 desro 6lrima ediçlo. sse p. 10.
14.Qsmtiomd thtiqsrmiliarsgrrks rsrjegrss, Paris,asso III, reeditadas rem uma inrrodnçao, Paris, 1813. 16. Id., Antdepnrs(1776), Paris. 1821 (reirnpressso em Genebra, 1970), ciraçao nap. 162.

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BE R N A RD PET IT POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

de que o viajante dispunha. Disso resulta uma reavaliação instantânea da expe-. disposiçao local, particular, do corpo social. Pelo born m&odo indutivo, e ao
rincia sensivel: 6 pelos sentidos que o mundo irnpöe, agressivamente, suas firn da pesquisa que a lei deve aparecer (e o l'iltimo capitulo da Voyage, o mais
caracterIsricas. Realidade global? Não, pois é sob a forma de fragmentos consti- longo, "Dos Hábitos e do Caráter dos Habitantes da Siria', é totalrnente dedi-
tuldos de objetos individualizados que a realidade urbana Se apresenta e que a cado a isso). Entretanto, o despotismo aparece já nas primeiras páginas, a tItulo
audição e a visão a apreendern: a descriçao enumerativa dos elementos do qua-. de hipótese cxplicativa. E sua prápria presenca modifica a esratuto das observa-
dro que atingem o olhar forma o terceiro mornento clesse processo acelerado de çôes. Elas não se agenciam mais para format urn quadro exaustivo da realidade
aquisição do saber. Urn (iltirno do ye recornpor-se a total jdade ern sua unidade do mundo, mas como sintoma: o ar geral de miséria denuncia a tirarija, assim
('urn povo magro e escuro"); as formas espontâneas de sua decomposicao já como a negligencia corn que são tratadas as instalaçöes portuárias remete a
haviarn permitido a suspeita sobre sua gCnese: a violCncia, a escravidão, a tirania barbaric do despotismo. Dessa forms, se o mundo impöe aos sentidos a evidCn-
estão em sua fonte. cia dos objetos que o compöem, a descrição pode apoiar-se nam princIpio
Não possuimos Os cadernos corn as anotaçöes feitas pot Volney durante a seletivo: deve-se buscat menos a exaustividade do que a exemplaridade do traço
viagem. 0 texto que ternos sob os olhos o produto de urn longo trabaiho de que constitui indiclo. Nesse ponto, a urn método analItico acrescenta-se urn
escrituta. Antes de partir para o Oriente, Volney havia se aproximado, em Paris, procedimerito artIstico, porque e também o principio do pitoresco que retém -
d0 grupo de Holbach e havia frequentado os salôes de Madame He1vtius, dois de urns paisagem, de urns cena de rus ou de urn tipo humano - os detalhes que
focos de expressão naquele rnomento da filosofia racionalista e sensorialista fazem sentido no ãmago de uma irnagem.
Em seu retorno fot acoihido em Auteuil na casa de campo de Madame Helvenus Quando se trata de decidir sobre as possibilidades técnicas de urns
e dedicou dezoito meses a redaçao de seu livro. Neste não Sc encontram referCn- intervençao militar, as observaçoes são fornecidas de outro modo. A infor-
cias senãoaos pro tagonistasdo debate sobre o despotismo oriental e a alguns de mação é dada sob a forms muiro caracreristica da ponderacao. 0 Porto
seus predecessores na viagern so Oriente. 0 contetido das bibliotecas a disposi- Novo? Nele sempre se encontram navios, mas a invernada é perigosa. 0
ção de Volney, suas leituras, suas conyersas deveriam ser reconstituldos. N6s nos Porto Veiho? Não está sujeito a esse tipo de perigo, mas ha duzentos anos
limitaremos, pot necessidade, aos Indices formais. atulham corn o lastro das construçöes. A guarnicão? E formads de quinhen-
Estes perrnitem ainda apontar urn outro modelo cognitivo utilizado na tos janizaros, mas na verdade des não passam de "operários que 56 sabem
descriçao de Alexandria. As observaçoes (sobre a aparencia das muiheres ou fumar cachimbo". 0 saber positivo assim reunjdo visa a permitir a forma-
sobre a qualidade da guarniçao) tern dois estStutos diferenres. Dc fato, como ção d0 julgamento. Desenha urn espaço de deliberação prelirninar a ação.
dissemos, duas questöes se mesclarn: a natureza do regime turco e as possibili- Seus elementos nao aparecem como indices, mas como dados de urn proble-
dades de urna intervenção européia no Egito. 0 despotismo oriental é uma das ms que se pode apreciar de forma quantificativa (quatro canhöes defendem
chaves da descriçao da cidade: constitui a lei dessa fisica dos povos que explica a o porto) ou qualitativa (os canhoneiros não sabern mirsr) e para cuja solu-

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BERNARD LEE ETIT
POR uMA NOVA HlSTRIA URBANA

ço se pode conttibuir corn uma estatIstica descritiva (sabendo-se que o 4. 0 mesrno cuidado de observaçbo, o rnesmo agucarnento do olhar
canal de fornecimerito de água doce mede 12 1guas de extensBo, que efetivo sustenta, portanto, duas forrnas distintas de apresentacão do saber inscritas
será necessário Para conttolá-lo?) ou urn cálculo de probabilidade (saberido- nurn mesrno registro do mundo. 0 olho, que permanece na superfIcie das
se que, ha 16 ou 18 anos, 42 barcos ancorados no Porto Velho foram destru- coisas, individualiza, registra as qualidades sensiveis, enumera. São os proces-
Idos e que nos anos seguintes se perderarn 14, 8, 6, qual é a probabilidade, sos de abstraçao que diferern em suas modalidades. A seleçbo dos objetos que
no tempo t, de perder n barcos?). As observaçóes que constarn no texto nb a descriçbo retém resulta, no ptimeiro caso, de uma esp&ie de sondagem do
são apresentadas corno indices, mas como dados pertinentes da questbo a ser real. Ela se ajusta ao caminhar na cidade, já que a perambulaçIo aleatória ou
resolvida. 0 ideal da descriçao, aqui, não 6 mais a representatividade, e sirn planejada do viajante, faxendo no tecido urbano uma espécie de recorte que
a exaustividade corn vistas ao problema considerado: esqueca_se de mencio- permite a acurnulaçao de riurnerosos fatos, dá-lhe acesso aos princIpios regula-
nar o canal de abastecimento de água, e corre-se o risco de promover em dores do corpo social. No segundo caso, a escoiha das observaçoes resulta do
bases erradas urn desernbarque militar. Pois a decisão final resulta de uma inventário parcial: o mundo nba se mostra mais em sua unidade fundamental
arbitragem entre urn benefIcio (controlar Alexandria) e urn custo cujos ele- e em sua diversidade fenomenal, mas de acordo corn o principio de seleçao
mentos todos (uma fragata para "reduzir a cinzas" a guarnição, mais n navios consritufdo pelo problerna a ser resolvido. A primeira aritude inscreve-se numa
Para dominar a ancoradouro, mais n soldados pata conti-olar o canal...) logica da olhadela, a ser entendida no sentido literal", enquanto a segunda é a
precisarn set avaliados a partir das inforrnaçoes fornecidas. 0 rnodelo cogni- do ponto de vista, a set entendido metafori came nte.
tivo aqui é nitidamente diferente: associando problematizacao e cálculo nurn Cada urn desses dois fragrnentos de texto poderia ser traduzido em for-
processo de auxIlio a decisão, ele resulta de urn saber de engenheiro. Essa - mas geográficas diferentes. AD segundo correspondern as colunas de uma tabela,
"inteligência do fazer" torna forma, a partir do século XVI, nos tratados e apresentando a esquerda a lista dos objetos pertinentes e capazes de se desenvol-
relatórios Para a defesa das pracas militares e, a partir do s&ulo XVII, nas ver, rumo a direita, ate a estimativa das despesas necessárias a uma operacbo
previsöes de despesas e ttabalhos redigidas pata a forrificaçao, a construçbo rnilitar bem-sucedida. Reduzida a urn custo, a configuraçbo dos espacos desapa-
d05 navios de guerra, as canteiros de obtas das estradas e dos canals ou a rece. AD prirneiro corresponde urn mapa, registrando na superficie Plana do
exploraçbo das florestas reais'7. Ela é empi-egada secretamente nurn texto papel os deslocamentos do viajante nas ruas da cidade moderna e entre as tubas:
que talvez tenha acornpanhado urn telatório redigido Para o ministério fran- nao urn mapa mental, mas urn mapa da experincia individual de urn espaco.
cs das Relaçöes Exteriores.

18. M. Qoaini, "Appunci per una Arrheologia del 'Colpo d'Occhio'. Medici, Soldari e Pirrori alle Origini
dell'Osservazione ssdTrrreno in Liguria", emL. Coveri eD. Moreno (dir.). Studi di Etnogeafsa eDialetto/ogia
17. H. Veria, Lag/r'i-eder isgEaicrrs. L'inte1ligece terh,aiq,,eduXl/F ate XVII! si?cL, Paris 1993.
L,aa,re i,,Memo,-ia di Hugo PIo,esteue, Genova, 1983.

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BERNARD LEPETIT Poa UMA NOVA HI5TORIA URBANA

Essa representaçao grafIca, entretanto, não consta no livro. Nurna outra escala, tra. Dizer uma é dizer a outra, e o mapa e exatamente uma redundância da
apenas a ediçao de 1959 traz uma representação do trajeto percorrido em 28 descrição analitica da sociedade. Portanto dc não tern razão de set.

meses por Volney no Egito e na SIria - e por obra do editor de então, que
realizou uma reconstituiçao dificil e de resultados incertos (ha apenas dois ma- 5. Lembremos que o caderno de tarefas que me atribul comporta urn

pas na ediçao do sculo XV1II: o do paxalato de Alep e urn mapa rudimentar do segundo capitulo. Trata-se de uma aplicação particular do programa de análise

Baixo Egito). Dois motivos explicarn esse deficit figurativo. das tecnologias intelectuais outrora definido por Jack Goody e recenternente

Nessa metodologia do ver bern, por urn lado, os olhares sucessivos flão retomado por Jean-Claude Perrot a propósito dos dispositivos materiais em que
tern pot funçao dar acesso a particularidade dos locais, mas aos principios da se apóia a invenção da economia poiltica, do século )(V1 ao XV11120. Essa etapa

organização social. Bem-sucedjda, a viagem em tetras ja exploradas nCo tern supOe, para que se analisem seus efeitos, uma arriculação mais complexa das

de exibir as marcas de sua singularidade: o autor busca mais prinCIpios de modalidades diversas de representacão do mundo. 0 breve episódio da expedi-

generalização do que efeitos de realidade. Por outro, a epistemologia materia- ção francesa ao Egito fornece uma oportunidade quase experimental para isso.

lisra de Volney estabelece, entre a configuraçao sensIvel dos espaços e as regras 0 episódio é curto: a armada comandada por Bonaparte desembarcou

da fIsica do mundo social, uma correspondencia direta. "Assirn 6 para as ques- em Alexandria dia 2 de juiho de 1798 e capitulon em 31 de agosto de 1801,

toes sobre o estado fIsico de urn pals, sobre a natureza de suas producOes, após trinta e oito meses de presenca no pals21. Apesar das belas carreiras que
sobre os alirnentos de seu povo e sobre suas ocupacOes. Ha muito tempo, muitos participantes da campanha construIram depois, a experiência egfpcia

observadores profundos tiveram de reconhecer que todos esses objetos tinham surge menos como uma antecipação do governo imperial do que como o

uma forte influêncja sobre Os hábitos, os costumes, o caráter das naçöes, e por desenvolvimento, caracterlsrico das Luzes, de uma associação entre a ciCncia e

conseqiiencia sobre a natureza dos governos e sobre o tipo das leis" '9. Sendo a o poder. De fato, os militates nao partiram sozinhos. Foram acompanhados

legislaçlo politica uma expressao das leis naturais, a ordern dos determinantes por uma cornissão das CiCncias e das Artes, formada por 150 membros, sendo
conduz da configuraçao dos solos e dos climas a natureza dos governos. Sendo urn terço composto de engenheiros (geógrafos, ou das Ponts et Chaussées, ou

as leis naturais pervertidas, como acontece sob o regime do despotismo orien- da Marinha), urn terço de eruditos cujas disciplinas pertenciam a primeira

tal, a ordern das causalidades se inverte, e a organizacão sensivel do mundo classe do Instituto fundado em 1795 em Paris para o desenvolvimento do

torna-se urn vestigio do man governo. Nos dois casos, a organizacão do espa- saber (matemática, artes mecânicas, astronomia, fIsica experimental, quImica,

ço (qualquer que seja a definição que Ike seja dada: fisica, antropologica, ceo-
nômica ... ) e a organizaça o da socjedade são exatamente redutiveis uma a ou-
20j. Goody, The Domestication ofthe SavageMind, Cambridge, 1977.J.-C. Porroc, Unehiotoi,e intelleCtuClie de
l'economiopolitique.XV? -XVII? IIiC1CS, Pods, 1992.
19. Questions de5totooq,e,..., O/. Cit. 21. H. Laurens, L'expédition d'Egypte, 1798-1801, Paris, 1989.

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. ..............................
lfl
BERNARD LEPETT
POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

história natural e mineralogia, botânica, zoologia), distribuindo-se o Oltimo repetern o desenho, acompanhando-o de uma nornenclatura; os relatOrios rerne-
terço entre pintores, desenhistas, arquiretos, literatos, intérpretes etc. Em 22
tern as pranchas, geralmente em notas infra-espanholas. A complexidade atirige
de agosto de 1798, fundou-se no Cairo o Instituto do Egito, formado de
tarnbérn a elaboraçao do text023. Uma decisão de Kieber, ern novernbro de
quarto seçóes (rnatemática, flsica, economia poiftica, literatura e artes), corn-
1799, havia inaugurado o projeto, mas as dificuldades militares, as peripécias
preendendo doze i-riernbros cada uma. Como o modelo da instituição parisiense
para o repatriarnento dos eruditos e o peso editorial da operacão adiararn
irmI, ou o modelo anterior da Academia das Ciências, o Instituto do Egito
longamente a publicacao, cujos volumes são datados de 1809 a 1822. A produ-
realiza sessöes regulares, ao longo das quais relatórios sao lidos e discutidos;
ção dos textos que constituern a Description de I'Egypte é individual, mas a
publica urn jornal, o DécadeEgyptienne-, atribuj dois prmiDs anuais, urn para
formalidade para a aprovacão é coletiva. Uma pOrtaria de abril de 1802 havia
uma questão relativa ao progresso da civilizaçao do pals, outro para uma criado uma "cornissão do Egito", corn oito mernbros, encarregada de receber as
questbo reference ao avanço da indiistria. A expediçbo retine entbo, numa corstribuiçoes, julgar sua adequacao ao projeto geral e ajustá-las mutuamenre. 0
extremE proximidade, ligada ao exotismo e a hostilidade do pals, urn grupo secretário da cornissão - Lancret e, depois de sua morre, Jornard - representa o
de pessoas cujo objetivo principal, entre outros, relaciona-se as modalidades
papel principal no processo.
do controle, da organizacao ou do conhecimento de urn território. Pot isso,
Imbuldas do espirito enciclopédico do final do siculo XVIII, as pesqui-
em razbo de sua formaçao ou de sua prencupacao primordial, os meios inte- sas que fundarnentam o projeto respondern a urn método, a observaçao, e a dois
lectuais que elas mobilizarn corn essa finalidade diferem. A expedicbo ao Egito critérios, a fidelidade e a utilidade. 0 "Prefácio Histórico" que abre a Description
COriStitUl, assim, urn mornento inevitável de circulaçao e de confronto das
de I'Egypte especifica: "a Academia do Cairo propunha-se, corno as da Europa, a
técnicas acadêmicas de apreensbo do mundo. - - cultivar as ciências e as artes, aperfeicoa-las e buscar todas as suEs aplicacoes
A Description de l'Egypte constitui urn dos espacos privilegiados dessas
Oteis. Devja empenhar-se principalmente em distinguir as obras próprias ao
aproxirnaç6es22. Trata-se de urn conjunto cornplexo, forrnado de quatro dc-
Egito C OS rneios de obré-las; era necessário, portanto, observar, corn muito
rnentos: relatórios, figuras ou pranchas, comentários sobre as pranchas e enfirn cuidado, o pals que ia set submetido a uma nova administraçbo: tais foram os
- adiado durance muito tempo, por -razöes estratégicas - urn atlas desenhado rnotivos que levararn a ernpreender as pesquisas cujos resultados hoje se publi-
segundo o modelo do mapa de Cassini, 0 formato dos volumes, in-folio ou in-
cam"24. Por seu cuidado corn a objetivacao e pela contribuição que pretende dar
grande-fOlio, torna difIcil consultá-los concornitanternente. Entretanto, des or- a uma ciência empIrica do governo dos hornens, essa vasta publicacao rnostra a
ganizarn urn sistema de referéncias rniituas: os cornentários sobre as pranchas

23. M.W. Albin, "Napoleon's Description de I'Egypter Problems ofCorpororeAurhorship', .Pub1nhingHiatoy, -


22. Demspthn de l'Egypreoc r-ed d5, obo-reathn,s et des reshercher qui rntetefaitespessda,t 1'péditisn s/c I'arméc
n. 8, 1980, pp. 65-85.
Jançarre, 20 Volumes, Paris, 1809-1822. As referincisa remrrrrSo a essa primrirs ediçao.
24. Dercr,tiao... Preface H/ste riqsre, p. VI.

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D
BERNARD LEPETIT Poa UMA NOVA HISTORIA URBANA

mesma configuraçao intelectual que a Voyage en Egypte et en Sync. E num governo Para a direçao dos trabaihos de gravura e irnpressão desde o inicio da

quadro de pensamento identico que se pode estabelecer o sistema de diferenças publicacão, em 180926.

e semelhanças ligadas ao uso de dispositivos cognitivos distintos Dois termos permicern caracterizar as cidades orientais, segundo Jomard
c, de forma gets!, segundo os engenheiros que rcdigiram as re!atórios referen-

6. Para conduzir a análise a born termo, urna mudança de escala se im- tes a elas: a complexidade e a opacidade. A complexidade refere-se a antropo-

poe. Eritlo, assim como consjderamos a descriçao de Alexandria feita por Volney, logia urbana. Veja-se a minuciosa decomposicao da populacao do Cairo. Sen-

exarninemos apenas a descriçao do Cairo e as pranchas correspondenres25. Va- do a distinçao entre homens livres e escravos julgada "quase supérflua", ja que

rios motivos nos levam a essa escolha. 0 relatório está entre os mais longos e "o estado de escravidao no Egito 6 bern diferente do que era Para as antigos
detaihados. Seu tItulo extenso mostra que dc apresenta a caracteristica de corn- ou do que é ainda nas colônias", Jomard divide os 260000 habitantes que

posição que Se buscava: intitula-se precisamente "Descriçâo abreviada da cidade compOem, por projecão, a populaclo do Cairo "segundo quarto critdrios":

e cidadela do Cairo seguida da explicaçao da planta dessa cidade e de seus • A religiao - e enumera: 5 000 gregos ortodoxos, 10 000 cristãos jacobitas,

arredores conterido lnformaçoes sabre sua distribuiçao seus monumentos sua 5 000 gregos da Siria e maronitas, 2000 cristãos da Armenia, 3 000 judeus

populaçao, sell comdrcio e sua indOstria". Veremos que ele fornece as indicaçoes ("esse nt'imero me parece muito pequeno", acrescentajomard numa nota), 400

necessárias sobre a prática de aquisicão e organização do saber na qua) se baseja. cristãos francos canto católicos quanta protestantes, "o resto maometanas".

Enfim, seu autor perrence a uma forrnaçao acadmica diferente da de Volney. • A nação - egIpcios coptas 10 000; judeus 3000; sfrios 5000; armCnios

Este ultimo depois de fazer estudos de direito havia seguido por certo tempo 2000; gregos 5000; francos ou europeus 1000; marnelucos e odjaklis*10400;

em Paris cursos de medicina Edme François Jomard pot sua vez e engenhei turcos ou osmanlis 10000; africanos, negros, bdrberes, nilbios e etIopes dos

to. Nascido em 1777 em Versaihes, numa famIlia de comercianres duja atividade dais sexos 12000; egIpcios muçulmanos e árabes pot volta de 20000.
era ligada a presença da Corte, entra na École des Ponts et Chaussdes em feve- • 0 sexo e a jdade - distinguindo, de urn lado, homens e muiheres; de
reiro de 1794, na École Polytechnique em dezembro e na Ecole d'Application outro, adultos e crianças.
du Genie ens dezembro de 1796 Em abril de 1798 e iricorporado a expediçao • 'As condiçoes" - isto 6, a canj unto das dignidades, funçoes e profissOes

do Egito como engenheiro geografo Dc volta a Franca e envsado ao Alto entre as quais se pode disrribuir a parte ativa, essencialmente masculina, da

Palatinado Para supervisionar as operaçOes topográficas, antes de set nomeado


secretário da comissão editorial da Descnsption (1803), depois comissario do
26. E. Hourh, "Edrne Jomard gyprien', Bulletin tie l'Inatitut d'Egypte, 1933, pp. 259-266.
* Os termos em irálko, nests p5gina e nsa cinco seguinrea, n5o esrSo didonarizados. Segundo Nabila Oulebsir,
25. Desm,ioa... Etatmodeme, tomo II, 2' pane, pp. 579-778 pars o tmro; para as pranchas, tram-se de oansliteraçs5cs feitas pot Volney do árabeoa do oscco falados no ftm do siculo XVIII. remetersdo
Eest mode, vol.
I, pranchas 26 a 73. respectivameote a militates de airs patenre. insperores, guardas e notiveis civis. (N. da Org.)

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POR UMA NOVA HI5TORIP UREANA
BERNARD LEPETIT

população: "militates: cerca de 10400; ordem civil, assim dividida: ulemás, tanto no rosto como em todo o hábito do corpo do homem, assim como as

xeiques, homens da lei, efndis, etc., nijmero desconhecido, mas que Se pode diferentes morals que os climas, a educação e a religiao trazem a seu caráter, suas

somar aos proprietários e moultezims num total de 5 000; comerciantes ataca- opiniöes e sua exisr8ncia"28. A confusão das sociedades orientais, que se manifesta

distas 3500; comerciantes varejistas 4500; proprietários de cafes 1500; artesãos aos olhos do observador europeu, nao 6 irredutIvel. 0 quadro anailtico, a

esrabelecjdos 21 800 (incluindo os almocreves e cameleiros); operários, jornalei- enumeração estarIstica, a configuraçao observada do espaco social al se ratificam

ros e freteiros 4300; manufatureiros que tm dificuldade para viver de seu mutuarnente para descrever a diversidade urbana. -

trabalho 8 600; servidores homens, a saber, bastonários, says, valetes, carregado- A opacidade, per outro lado, caracteriza a morfologia das cidades. A

res 26400: ao todo 86000 indivIduos, além das crianças e das mulberes. Quan- auséncia de organizacao geral da rede viária 6 o que primeiro chama a atenção. .

to aos empregados domésticos do sexo feminino, grande nt'Imero compöe-se de No Cairo, a dificuldade para localizar as artrias principais vem do fato do que

negras e n6bias"27. - - "as ruas, mesmo as mais longas, em vez de terem urn nome dnico, mudam de
denominaçao a cada instante"29. Jomard acaba se restringindo a oito artérias, -
A complexidade da populacao da cidade, pie resulta da posição geográfica
do Egito e da complexidade da hisrória regional das ondas migrarórias, pode, ntimero que nao corresponde ao das portas monumentais, que são setenta e

portanto, set colocada numa ordem. Principios analiticos, uma decon-iposiçao uma, das quais algumas estão compreendidas no tecido urbano. A configuracão

em categorias, a quanrificacao de cada urn dos grupos assim isolados, uma geografica adotada para a planta geral do Cairo e de seus arredores sub! inha

totalizaçSo implicita fornecem os elementos para uma compreensão satisfatória retoricamente corn urn traço conrInuo e quase retilineo essas aberturas hipot6ti-

da sociedade urbana. Esse quadro corn diversas entradas sucessivas verifica-se cas30. A mesma incerteza vale para o conj unto das vias que o engenheiro classifi-

pela observaçao do murido; ele é portador do uma antropologia social que se ca numahierarquiade quatro nIveis:-as grandes comunicaçöes, as ruas, as tra-

confirms no local. A diversidade dos interesses e a variedade dos usos al vessas, as ruelas e becos que dc tenta errumerar.

manifestam a pluralidade das atribuiçoes de identidade analiticamenre construldas. A essa aparente falta de hierarquia dos espacos se acrescerita, por contraste
corn o ideal urbano dos engenheiros franceses, sua irregularidade e sua estreiteza.
Em Alexandria (mas a desci-ição vale tambim para o Cairo), "é a sombra d05
bazares ou bairros comerciais... que 6 curioso observar a reunião de tantos No Cairo, "a distribuiçao interior da cidade não se assemelha a das cidades da
indivIcluos de naçóes diversas, os quais o interesse das relaçöes comerciais agrupa Europa: não apenas suas ruas e pracas ptlblicas são extremamente irregulares, como

em paz e divide ruidosamente dez e vinte vezes num ünico dia. E Ia que, como • também a cjdade, exceto pot diversas grandes vias de comunicação, é quase toda

num quadro móvet, pode-se julgar as nuanças infinitas que a nanireza imprime

28. "Mmoire sur Ia vile d'Akxandre', Description... Etatmodersse. tomo 11,2' parte, p. 297.
29. 'Description... du Kaire", p. 581.
30. Plemchr,, Eratmodeme, vol. 1, prancha 15.
27. "Description... d0 Koire', Pp. 694-695.

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BERN A RD LEP ETIT Poit UMA NOVA HISTORIA URBANA

composta de ruas muito curtas e de passagens em ziguezague que terminam em sentadas em planta baixa e em elevaçao, como se fez corn a casa de Hassan
becos inurneráveis". Esse espaco labirIntico 4 akm djsso, urn território fracionado. Kâchef ocupada pelo Instituto do Egito35, elas criam o mesmo sentimento de
Trata-se menos de urn espaco em que é possIvel perder-se do que de urn espaco em desordem: "seria muito extenso e mesmo dificil descrever a disrribuição interior
que nâo se pode penetrar. "Cada uma dessas rarnificaçoes é fechacla por uma porta, das casas do Cairo; muito poucas delas são dispostas regularmente: os côrnodos
que os habitantes abrem quando ihes apraz; dal resulta que é muito dificil conhecer de urn mesmo aparcamento raramenre são nivelados; é sempre necessário descer
inteiramente o interior do Cairo"31 . A retórica grafica também acusa essa caracte- ou subir alguns degraus para ir de urn a ourro"36 .
rIstiça. A planra em escala 1:5 000, no volume das pranchas referente ao Cairo, Assim, em qualquer escala que seja, nem a indicação de elernentos
reproduz uma massa compacta e escura em que o pequeno tamanho dos aglomera- arquiteturais ou urbanIsticos simples, nem a identiflcaçao de combinaçoes regu-
d05 de casas - ilhotas que parecem mal penetradas pot estreitas galerias, scm equl- lates permite que os engenheiros acompanharstes de Bonaparte deem urn senti-
valente na realidade européia - contradiz o ideal de aberrura que caracteriza desde do a cidade. As atividades profissionais, imediatamente acessIveis a uma leitura
os anos de 1750 o urbanismo dos engenheiros das Ponts et Chausses 32,
t&nica, introduzem distinçoes claras: "no Cairo e nas principais cidades do
- 0 mesmo sentimento de confusão vale para a arquitetura domstica. As Egito, cada esp&ie de indistria esth concentrada nurn bairro especIfico, como
diferenças sociais nao geram, nas cidades orienrais, tipos arquiteturais de fácil acontecia outrora em nossas cidades da Europa: assim, ha ruas inteiras onde só
identificaçao, como as residências aristocráticas em Paris, por exemplo. Parece se encontram caldeireiros, outras em que so se encontram confeiteiros e outros
que as diferenças sociais inscritas na pedra não são de natureza, mas apenas de comerciantes de doces, outras que são ocupadas exciusivamente pot seleiros e
grau: "os palácios dos beis e dos kdchefi e as casas dos primeiros xeiques ou fabricantes de charretes; enfim, os ourives, os joalheiros, os lapidadores etc. tCm
chefes religiosos, do agá, do uale, do cádi e dos outros funcionários disringuern- suas oficinas nurn bairro especial que 6 vigiado e fechado corn mais precaucOes
se a primeira vista das casas dos habitantes comuns pot uma construção menos que os dernais"37. Eis que se fonda uma divisão do espaco, nada mail. Alêm
viciosa, urn aspecto mais ornado, uma major extensão"33. Espacos fechados, as disso, apenas a natureza constitili urn principio explicativo, capaz de dar senti-
casas so mostram ao passante fachadas nuas, em que todos os balcöes, as janelas do a morfologia urbana. As ruas estreitas e tortuosas e os rnucharabis, elementos
C as clarabóias são fechados por gradeados cerrados, feitos de madeira. Espacos caracterIsticos do urbanismo e da arquiretura da cidade egIpcia moderna, reme-
pouco penetrados, elas em geral nao oferecem ao visitante mais do que seu tern apenas a mesma necessidade de proteger as casas e os homens contra a luz
indefectIvel centro vazio, o patio central34. Quando podem ser medidas e repre- do sol e o calor extrerno. Mas essc princípio tern limites impostos por suas

31 "Description... du Kaire", p. 580, como a ciraçso precedence.


32. JSa,,ehc,, .Etat modn,,e, vol. I, prancha 26.
35. P/undue,, Erarmc'der,se, —1. 1, pranchas 54 e 55.
33. "Description... d0 Kaire", p.584. 36. "Description... d0 Kaire", p. 584.
34.Verasvisras d5 cuss de Osman Bey, do pslácio de Qasim Bay (Plan ches, Etatmodeme,vol. I, pranchas 50 e 51). 37. "Mlmoire sue l'agriculture, l'indusrrie erie commerce de l'Egypre", Description... .Etatmoderese, r. 11, p. 618.

108 109
POP, UMA NOVA HISTORIA URBANA
BE ENARD LEPETIT

que os dos bairtos e das ruas da cidade. Eu devia tarnbérn colhet informaçoes
próprias vanragens: assim corno Os raios solares, ele se aplica uniformemente.
sobre o comércio e a irrdt'isrria, a populaçao e os costumes dos habitantes. A
Perde toda capacidade ordenadora nurn espaco urbano cujas hierarquias e estru-
viagem que fiz no Cairo começou em 19 frimârio do ano VIII e durou dois
turas permanecern, no essencial, despercebidas. -
meses inteiros, scm nenhum dia de interrupção; eu estava acompanhado de urn
escrivão, de urn intérprete de odabdchy que conhecia perfeitamente a cidade e de
7. Faka compreender esse fracasso particular. Se supornos que ele não
trs ou quarto guias. Os cavalos seguiam atrás corn os empregados. A cada
pertence a natureza das coisas (por que o espaco da cidade muçuimana seria
indicação obtida, os nomes eram escritos em árabe na planta original pelo escri-
menos legIvel que o da cidade europia?), 6 preciso buscar sua razão no olhar
vao, copta, grego ou muçulmano, e pot mirn mesmo em tetras francesas. As
dirigido a alas, isto & nas práticas e nas caregorias empiegadas para observá-las e
descriçöes cram anotadas ao mesmo tempo e no próprio local, num caderno de
descrey&-las.
informaçoes. Aqui, não faço senão acrescentar a esses detalhes várias circunsrân-
A "Descriçao... do Cairo" origina-se numa iniciativa miiitar. Em serem-
cias históricas para quebrar a monotonia e a aridez da nomenclatura79 .
bro de 1897, os engenheiros geografos foram encarregados, para o serviço do
Essa prática sistemtica de agrimensura e de identificação dos lugates
exrciro, de rraçar, corn trena e pranchera, urn piano sumário para estabeiecer
ctia uma série de dispositivos. Alguns se relacionam a uma poiltica de conrro-
sistema de defesa contra os ataques internos e externos. Aproveitaram a oporru-
Ic: a planta do Cairo e sua explicação reproduzem a divisão da cidade em oito
nidade para dererminar 54 pontos (montes de escombros, torres e sobretudo
seçôes militates submeridas a iguai nümero de comandantes, e "essa divisão
minaretes) destinados a esrabelecer, por triangulaçao, a planta geomérrica dera-
corneçava a ititroduzir uma vigilância e urn policiamento salutar nos bairros
ihada da cidade. A escoiha da escala, 1:2000, resuira da parricularidade do obje-
insalubres einfecros"40. Mas o comentário não nos conduzirá para esselado: o
to: "nessa escala, p8dese exprimir os menores detaihes e todas asaracetisticas
objetivo dessas análises não é nos levat a Michel Foucault. Os outros são de
que se encontram a cada passo nas cjdades do Oriente"". Jomard é encarregado
riatureza cognitiva: tam por f'inalidade a comparrimentacão do espaco e to-
da verificaçao da planta que resuita dessas operacöes, antes de redigir o longo
mam a forma de quarro dispositivos gráficos que rernetem uns aos outros:
relatório descritivo sobre a cidade. "As noçöes que se pôde let sao, na maioria,
A planta. E a reduçao a escala 1:5000 da planta trigonométrica em
resultado de urn trabaiho de que fui encarregado pelo chefe dos engenheiros
1:2 000 em carorze foihas. Os lirnites das seçôes são indicados pot ponrilhados.
geógrafos, para completar a planta geornérrica do Cairo e ampliar sua utilidade.
Eta se inscreve num quadriculado forrnado pela inretseção de linhas nurneradas
Trata-se de inscrever em todas as parres dessa planta os nomes exatos dos esrabe-
de 1 a 16 e de colunas identificadas corn letras, de A a Z. Na planta, cada lugar
lecimentos páblicos e dos monumentos de todos os ripos, ac, mesmo tempo

39. "Descriprion... du Kaire". p. 658.


38. "Mémoire sur la construction de Is carte dc I'Egypte", Description... Et modes-ne, 1.11, 2' parse, pp. 1-118
40. Ibid., p. 585.
para todo ease pargrafo (citaçao flop. 63).

um
110
BERNARD LE PETIT POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

(quer se trate de praca, rita, mesquita ou objeto mais comum, como cisrerna, (em dois sistemas de denominação, urn frances e outro árabe), por uma local iza-
poço etc.) é designado pot urn nOmero (interno a cada uma das seçoes), e as ção (em dois espacos, urn geométrico e outro de adminisrraçao militar), pot
vezes (no caso dos lugares principais) por urn námero e urn home. uma descriçao (em duas modalidades, uma em linguagem natural e outra
A nomenclatura. Eta ocupa o centro (pp. 589-657) da"Descriçao... do icorsografica) it assirn conta corn uma identificação cornpleta. Entretanto, a
Cairo" it reproduz em colunas as rnençöes nominais do caderno de informaçóes cornpreensão do espaco urbano da capital egIpcia aparenremente fez poucos
de Jomard. A lisra dos nomes de lugares, ruas, pracas it rnonumentos, escrira em progressos. A realidade da cidade oriental pode set expressa segundo as rnesrnas
francs e árabe empareihados, é indexada de urn lado aos "rsiimeros gravados na categorias de objetos quit a realidade da cidade européia. Mas, uma yea decom-
pianta" e do outro aDs "quadrados". SID fornecidas listas sucessivas sobre cada posta em elementos de natureza idCntica (embora variem na forma ou 1a deno-
uma das oito seçöes que dividern a cidade, depois sobre a cidadela. minação), é impossivel recompo-la nuns sistema em que sit perceba a coerêsscia
• A descriçao dos lugares, pot sua Yea, ocupa em seguida quase quarenta original. A decornposicão do espaco urbano em elementos identificados é acorn-
páginas d0 reiatótio (pp. 658-61 3)(sic). A ordem é temtica (as pracas ptiblicas, panhada de uma consequência tripla. Em prirneiro lugar, eta apaga a especificidade
depois os portos, depois as niesquitas etc.), e o que prevalece, em cada rubrica, do espaco das ruas, das lojas, dos caminhos sernifechados dos espacos residencials.
uma iégica da enumeraçâo. E dado a n6mero total das portas, por exemplo, Ens segundo lugar, ao representar, pot exernplo, a nsesquita do sultão Hassan
depois algumas delas são nomeadas, pot fins as mais importantes são norneadas como se fosse uma catedral medieval e a ponte sabre o canal de derivação do
it descriras. Nito como o Pont Neufsobre a Sena, eta thea confere urn estatuto de monu-
• As pranchas. Como destaca uma nota de rodap do texto de Jornard41 , rnento idCntico ao que estes elementos possuem nas capitais do Ocidente. En-
elas repetem a fragrnenraçlo do relatório: "consultem as pranchas deste volume fim, extrajndo-os de seu espaco próxirno, eta dota sua arriculaçao ao -tecido
- para acompanhar a descriç6o do Cairo; a saber: para as pontes, a prañcha 27; urbano de urn caráter irnaginado. "Sua entrada na rita chamada Souk ci Selah é
para as mesquitas, as pranchas 27 a 38; para as praças pt'iblicas, as pranchas 39 a muito importante, embora irregular", observa a descrição do Cairo a propósito
43 etc.". da mesquita do sulrão Hassan, antes de acrescentar: "a efeito seria bern major se
A "Descriçao... do Cairo" e a descriçao de Alexandria pertencem a mes- houvesse uma praca deste lado". As pranchas a que etc remete em notas tern pot
ma fainIlia epistemologica: uma Yea quit a realidade 6 fejta de objetos distintos e resultado justamente produzir ease efejto42. Apesar de terem urn sistema co-
diferenciáveis, o conhecjmento do mundo passa pot sua decomposiçao em ele- mum de referCncias, a planra do Cairo em escala 1:5 000 e as vistas dos monu-
mentos indicávejs it jdentjficávejs. AD fim dessas disrribuiçöea retórjcas reitera- mentos da cidade publicadas no mesmo volume de pranchas da Description de
dat, cada lugar do Cairo, cada objero urbano esrá caracterizado por urn norne l'Egypte não poderiam set mais incoerentes. 0 processo pelo qual o engersheiro

41. Ibid., p. 663. 42. Ibid., p. 666, e Plav,vhvv, Etar drvoe. vol. 1, pranchas 32 a 38.

112 113
BERNARD LEPETIT POR UMA NOVA HIsTeRIA URBANA

geógrafo passa da real idade concreta do mundo Para sua representacão encontra nao está em causa apenas a retórica gráfica empregada nas diferentes tecnologi-
seu limite precisamente na forma que assume: trabalho de abstraçao, on seja, de as do saber. 0 valor atribuido a cada uma na formaçao do saber é igualmente
levantamento de partes sucessivas do real, corn objetivos de caracterização. 0 imporrante. A incapacidade Para dar sentido ao espaco da cidade árabe é, as-
procedimento esgota-se no ato de registrar, no quadriculado das plantas, nas sim, o sinai da desvalorizaçao relativa de que o mapa ainda sofre quando se
colunas dos quadros, nas rubricas de relatórios enumerativos ou em series de trata de uma abordagem sintética do mundo. 0 verbete "Reconhecer" da En-
irnagens, o que não deixa de set uma coleçao de objetos. cyclopédie dizia isso uma geracâo mais cedo: "Acreditamos, comurnenre, nada
haver omitido Para reconhecer bern urn pals quando obtivemos mapas, on
8. Urn breve retorno a descrição de Alexandria permitiria cornpreender quando mandamos elabora-los; mas, se nos apegarmos aos conhecimentos que
as razöes desse fracasso. Em seus desdobramentos finais, o mCtodo do topó-. eles podem dar, so conheceremos o pals muito imperfeitarnenre. Para terem
grafo combina a conduta deambulatória e o projero de exaustividade. Volney, verdadeira utilidade, é preciso que des sejam acompanhados de urn relatOrio
como virnos, conduzia separadamente os dois projetos. 0 percurso fornecia os particular que explique todas as circunstâncias do terreno cujo conhecimento é
Indices de uma descrição do espaco social organizada a parrir da questao do necessário as açOes e aos movimentos dos exércitos; trabalho que não pode ser
despotismo; a enumeração completa fornecia os elemerstos selecionados Para a feito senão pot urn homem inteligente, muito versado na teoria e na pratica da
soluçao de urn problerna enunciado (a intervenção militar européia). Dois guerra, e nao por urn simples ge6grafo"43.
pontos de vista sobre o mundo organizavam, de acordo corn duas rnodalidades Alias, no Egito, sábios, engenheiros e militates senrern em sua experiên_
distintas, a mesma arte de vet bern. AD contrário, no princIpio da descriçao da cia cotidiana essa incapacidade do desenho em reconsrituir a organizacao corn-
morfologia do Cairo, não ha nenhum ponto de vista unificador, que permiti- plexa do que nao é urn espaco, mas urn território. Os relat6rios que compOern a
na recompor o que o primeiro movimento da análise tinha dissociado. No que Description de l'Egypte ecoam isso fracarnente: "nao é permitido aos francos
se refere a composicao populacional, as totalizaç6es em colunas das diferentes entrar nas mesquitas; sO depois da ocupaçSo militar dos franceses nos foi perrni-
categorias analiticas asseguram a sIntese buscada segundo pontos de vista su- tido penetrar nelas, anotar sua disposicao e suas dimensOes, desenhar os princi-
cessivos: a religiao, a etnia, a designacao social.. No que se refere a cornposição pais ornamentos da arquitetura. E enquanro isso os rnuçulmarios reunidos nas
dos lugares, ao contrário, o mapa que apresenra ao olhar a disposico relativa mesquitas protestavam bern alto por ver os crisrãos calçados conspurcarern o
dos elementos, dissociados do espaco urbano, fracassa numa eventual função lugar santo, enquanto des são obrigados a tirat suas sandálias"44.
sintetizadora. Ele não fundarnenta a apresentacão racional dos resultados. Não
revela as contradiçoes mal resolvidas que constiruem obstáculo a cornpreensão
dos princIpios de organizacão da cidade. Ao leitor de hoje, na verdade, o 43. "Reconnnire", Enrydopidie on D ictionnaire raios,n,,é..., Neufchlte!, 1765, c. XIII, p. 862.
mesmo mapa fornece os elernentos Para uma critica do texto de onrem. E que 44. 'Description... duKaire', P. 665.

114 115
4. UMA LOGICA DO RACIOCINJO HISTORICO
NOTA CRITICA A0 LIVRO DE JEAN-CL'.UDE PASSERON. LE ,cAISONNLMENT

SOCIOLOGIQUE. L'ESPACE NQN-POPPEIiJEN DO JWSONNEMENT NATUREL'

História e sociologia consriluem projecos de conhecirnentos indiscernIveis.


Diferenças facilmente identificáveis separam a prática do ofIcio de historiador e -
a do ofIcio de sociólogo: o passado das disciplinas, as correntes de aprendiza-
gem, a posicao social dos pesquisadores talvez as expliquem. Os discursos de
uns e de outros se reconhecem corn facilidade, mesmo que ocorram mimetismos
cruzados. Mas tudo isso é securidário: história e sociologia são, corno dizia
Fernand Braudel, "não o avesso e o direito de urn mesmo tecido, mas o próprio
tecido, em toda a espessura de seus fibs". 0 terna não é novo, legitimou no
4. )
passado os emprésrimos tornados pela história a Durkheim ou a Sirniand, e
baseou o dialogo que Braudel mantinha, pot exemplo, corn Gurvith. Similari-
i1t •
dade dos instrumentos conceituais e metódicos, afiriidade de ambiçao explicativa
totalizante, iriterseção dos campos de estudo a panic do rnomento em que a
l-sistória abre para si o presente: os fundamentos de uma identidade cornum,

Uoe logique du raisonnement historique (note critique)', An,,aln ESC, n. 5, sec-out. 1993, pp. 1209-1219.
A obra deJ.-C. Passeron cicada no sabritulo foi publicoda em Paris em 1991 (408 p.).
1. F. Braudel. "Hiscoirretsociologie". em G. Curvitch (dir.). Traitédesariub,gie, Paris, 1958 (reromado emEcrits

,url'Hiuoire, Paris, 1969, pp. 97-122).

117
BERNARD LEPETIT P0R UMA NOVA HIsTORIA URBANA

alias mais freqUenrernente reivindicada pelos historiadores do que pelos sociólo- raciocinio experimental ou do formalismo das ciências nomolOgicas e das anili-
gos, foram enunciados mil vezes. ses Distingue-se do raciocInio experimental porque é impossIvel
A originalidade da proposição de Jean-Claude Passeron esni na renova- Para o pesquisador intervir nas condiçoes da experincia e porque as fenômenos
ção dos argumentos e nas conseqi1ncias de mtodo que acarreta. Entre as que dc considera nao apresentam nenhuma repeticão regular de configuracoes.
disciplinas, ressalta etc, a comunhão de projeto construiu-se numa troca desi- Distingue-se da hermenêutica porque possui uma visão empIrica e porque está
gual: a história renovou-se fazendo empréstimos a todas as ciências sociais, submetido a irnposicöes lOgicas capazes de definir uma metodologia eficaz e
mas não foi paga em troca. A sociologia ou a antropologia, pot exemplo, portanto urn uso cientIfico (o segundo ponto vem do fato de que a hermenutica
"moldadas pela comparação ao alcatice da mao, subestimam gerairnerite a di- nunca é definida no livro senão corn o sentido comum e pejorativo de "inter-
mensão histórica de seu objeto" (p. 27). Enttetanto, é nessa historicidade pretação livre" ou "intuição literária"). "0 limite da observabilidade que define
comum de seu objeto de estudo que reside sua unidade fundamental: todas as o mundo ernpIrico e o limite da historicidade, isto é, a impossibilidade, na
ciências sociais são ciências históricas. Como suas proposicöes expticativas denominaçao dos 'fatos', de desassociá-los completamenre de suas coordenadas
visam a trajetótia do mundo e são testadas em contato corn dc, como este so espaco-temporais" (p. 398) são constituintes do sentido das proposicôes analI-
ofetece seus dados Para a consrrução dos fatos sob a imposicão do desenvol- ticas anunciadas pelas cincias sociais que sao, assim, "cincias empIticas da
vimento temporal e da não reprodutibilidade dos fenOmenos e dos contex- interpretacao" (p. 13). 0 projeto do livro, sintetizado numa conclusão volunta-
tos, a sociologia e a história parrilham a mesma posicão epistemolOgica. riamente formalizada, consisre em definir o espaco logico em que adquire send-
Chegando a esse ponto, é bern possivel que o historiador sorria imaginando do o Valor demonstrarivo do raciocInio sociolOgico (ou histórico, como se
que tatvez não precise tëcorrer ac, sociologo pata descobrir que a histOria - preferir) tat como o utitizam todas as ciências sociais.-
pertence a ctasse das ciências histOricas. Serja errado, porérn, ignorar isso.
Seria privar-se das reflexôes em que Jean-Claude Passeron vem insistindo ha PODE-SE FALSIFICAR UM MODELO HISTORICO?

quinze anos, a respeito das consequências metodolOgicas que esse estatuto


comurn acarreta. Para compreender a utilidade do projeto, tomaremos como ponto de

0 caráter da trajetOria do mundo histOrico impöe as ciências socials uma partida urn exemplo, alias mencionado pot Jean-Claude Passeron (p. 14): o

linguagem e uma prática demoristrativa que as distanciam ao mesmo tempo do modelo da "economia-mundo" apresentado em 1974 par Immanuel Wailer-
stein. Podemos citá-lo aqui ac, mesmo tempo pot sua arnbiçao (etc pretende
explicat as caracteristicas do mundo moderno do século XVI ate nossos dias) e
* A numeraçao de pginas remete ao liveo deJ.-Cl. Passeron sue o autor est cornenrando. Ela aparece ens todss
pot sua repercussão, como também porque, cmbora o projeto permancca ins-
as versOes do original consulcsdas, embora n5o baja, ens nenhuma delas, irsdicaçEo cornplera sobre a edigBo
de que se erara. (N. da R.) cabado hoje, proporcionou urn abrandamento das controvérsias cientificas

119 119
POR DMA NOVA HISTcsRIA URBANA
BERNARD LEPETIT

Quai C o regime de cientifIcidade de tat modelo? Urn primeiro modo


que permite uma apreciacão mais distariciada2. Recordemos em poucas pala-
de diz-to C especificar a que tipo de crItica ete não sucumbe de modo ne-
vras suas principais articuiaçôes. Por mundo não Se deve necessariamente en-
tender a Terra inteira, mas uma porçBo de espaco que forma urn sistema, ou nhurn. Jean-Claude Passeron dedica grande parte de seus esforços, como mdi-
Ca 0 subtituio de seu Iivro, a dernonstrar que a administraçao da prova não
seja, que encontra em sua orgariizaçBo interna as fontes de sua unidade e de sua
pode revestir-se aqui da forma iogica da falsificaçao no sentido popperiano.
dinârnica. Ate o presente, a hurnanidade nao terja conhecido mais do que dois
tipos de sistemas muridiais: os imperios-mundos dominados por urn iinico Para que uma teoria seja passive1 de falsificaçao, C preciso que sua estrutura
Iógica permita definir-se, dedutivamente, urn falsificador virtual. Existern,
sistema politico e as economias-mundos, duráveis somente a partir da instau-
desse ponto de vista, dois tipos de enunciados que Popper distingue: os
ração, a partir do sCculo XVI, da economia-mundo européia. Vários traços a
caracterizarn: os fatores ecoriômicos nela se organizarn numa escala muito mais "enunciados a respeito de todos", que são afirmados como verdadeiros em
quatquer tugar e a quatquer momenta; os enunciados dotados de uma "uni-
anipla que os sisrernas politicos; a gama das incurnbncias ecbnômicas não C
igualmerite distribulda em todos os pontos do sistema; a divisão internacional versatidade numCrica", "que se referem a uma classe finita de elementos espe-

do trabaiho é sinai e yetor das forrnas de dornirsacao e das hierarquias espaciais. cificados numa regiao espaço-temporal, particular e limitada"3. Apenas as

A economia-mundo divide-se, de fato, em urn centro estreito e fortemente enunciados a respeiro de todos são passIveis de falsificaçao: ja que vaiem para
todos, urn rmnico enunciado existenciat os desmentirá. Nenhum enunciado
dorninador, periferias dominadas e zonas semiperifCricas. 0 centro acumula as
existenciai particular é capaz de desrnentir o modelo da economia-mundo.
vantagens: produtividade mxima, hegemoriia cornercial, controle financeiro.
Urn Estado forte e uma cultura nacional vigorosa garantem, em registros dife- Pode-se demonstrar, por exempto, que as graos do Báitico representam urns

renres, a-perpetuacao das disparidades no âmago do sistema. Por seupróprio parte Infirna do comCrcio europeu e quea provisão de trigo do centro não

funcionarnento, uma economia-mundo tende a acentuar a divisBo internacio- retorna a essas periferias. Pode-se calcular que as rendas per capita são, no

nat do trabaiho. Mas sua dinâmica the possibilita estender suas fronteiras (ten- inIcio d0 sCculo XVIII, pouco diferentes de urn canto a outro do mundo em

der a fazer-se muridial) e modificar sua geografia: o que estava no exterior que elas são caicutáveis. 0 modelo continua intacto: uma modificaçao de suas

torna-se zona perifCrica ou semiperifCrica no sCculo seguinte, e as próprios coordenadas espaço-temporais basta para preservá-lo da refutaçao.

Estados centrais se suplantam sucessivamente uns aos outros. Vejamos agora urn modelo aiternativo. De acordo corn ele, o desenvoivi-
mento da Europa encontra sua fonte não nos desnivelamentos da superfIcie
econômica mundial e na sujeicBo de periferias longinquas, rnas na especializacBo
2. 1. Wa Ile rssein, The Modern World System, IlCapitalistAgriculture and the Origins of the European World comptementar de regiöes vizinhas e na auto-exploracao domCstica dos campo-
Economy in the Sixteenth Censsoy. NewYook, 1974 (rraducso franresa, Paris, 1980); II/Mercantilism andthe
Consolidation ofthe European World Economy, 1600-1750,NewYork, 1980 (rraduçaofrancesa, Paris. 1984);
3. K. Popper. Irs logique deLa dlrouvertercientsfiqoe. Paris. 1973, pp. 59c ho.
JIll The Second Era of Great Erpansion of the Capitalist World Economy, 1730-1840, New York, 1989.

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P0R UMA NOVA HISTOREA URBANA
BERNARD LEPETIT

neses4. A divisão das tarefas, as complementaridades espaciais, a exploracao do - o modelo da economia-mundo. E próprio do problema conter no enunciado de
seus termos as condiçöes de possibilidade de sua resoluçao.
trabalho pelo capital constituem pontos comuns ao modelo proto-industrial e
A razão não reside apenas no procedimento analItico, depende tambm
ao da economia-mundo. Duas diferenças fundamentais os op6em: a escala do
das coisas. Levar a sério a historicidade dos fenômenos sociais é admirir que
sistema espacial explicarivo e o principio do desenvolvimenro da Europa,
duas situaçoes historkarnente situadas no tempo diferem sempre pot algum
autocentrado num caso, extensivo no outro. A natureza das variáveis a consjde-
lado. A história distingue-se não so da fIsica, pelo fato de que o pesquisador não
rat também difere, é claro: a organizacao local dos circuitos comerciais, dos
pode intervir nas condiçóes da experincia, mas rambém da astronomia, pelo
Indices da produção industrial, o comportamento demográfico doméstico, num
fato de que os fenômenos nao se spresentam a etc sob a forma de repeticöes
caso; a natureza do Estado, o imperialismo politico, o cornércio internacjonal,
regulates de configuracoes. Urna vez que os contextos históticos são singulares,
no outro. Destacar isso é uma forma de dizer que os dois modelos nao se
sua riqueza ultrapassa sempre as possibilidades de uma análise experimental. "0
comunicam e que cada uma das duas linguagens de descrição do mundo que des
contexto pertinente de uma mensuração ou de uma observaçao referenre ao
constituem compreende suas pr6prias referências empIricas. Em outras pala-
mundo histórico nao pode set esgotado por uma série fnita de enunciados" (p.
vras, "entre grupos que Islam do mundo numa linguagem diferente, a prova
65). Uma vez que o projeto de geografia descritiva do infinito é inviável, toda
empirica nao muda nada, nao é baseada em protocolos que definem identicamente
prática de pesquisa imp6e a necessidade de delimitar urn contexto. Trata-se,
as relaçôes semânticas entre observaçoes ou interpretaçöes conceitUaiS. Os pro-
alias, da conduta que Immanuel Wallerstein explicita no inIcio de seu livro.
tocolos supöem convençöes que façam corresponder estados de coisas e enun-
ciados. E sempre uma prática que define uma pertinncia" (p. 361). A identida- - "Que unjdade de estudo escoiher?", pergunta-se dc, se se deseja descrever e
compreender a rnudança social num ponto particular do globo - a Africa, pot
de entre regimes politicos de regiöes diferentemente especializadas e comple-
exemplo, no infcio dos anos de 1960. A tribo? Mas as regras que modelarn seu
mentares da Europa nao arrujna mais o modelo proto-industrial do que as
funcionamento são estreitamente dependentes das leis da colônia de que cia faz
diferenças de comportamentos demográficos das familias camponesas nas zonas
parte. 0 sjstema colonial? Mas corno explicar a situação similar das zonas que,
centrajs abalam o modelo da economia-mundo. Dessa incornunicabilidade lógi-
num momento ou outro de sua história, aliaram indepetidência politica formal
ca resulta que nenhurn enunciado pode "pretender set urna 'expressão da realida-
e sujeicao econôrnica real? A economia-mundo the parece, ao firn do raciocfnio,
de' que desqualificaria todos os outros 'enunciados de base' que descrevem a
o unicocontexto pertinente para uma comprecnsão do processo que etc chama
mesma realidade" (p. 361). A elaboraçao do modelo proto-indusrrial deixa inracro
-, de modernizaç0. Vê-se bern pot que as ciências sociais são qualifIcadas por

4. F. Mendel,, 'Proro.ndosttjolzatjon. the First Phase of the Industrialization Ptocess",JournalofEcono'nic


History, 1972, pp. 241-261. P. Kriedre, H. Medick e J. Shlumbohm, I,,du,tia1iierrng von o'er
5. I. Walerstein, Mercantilism and the Consolidation..., op. cit., pp. 7-18 (traducao francesa), 1980.
Inthatria1isie,una Goettingen, 1977.

123
122
BERNARD LEPETIT Poa UMA NOVA HIsTORIA URBANA

Jean-Claude Passeron corno "ciências empIricas da interpretacão" (p. 13). São gularidade dos desenvolvimentos históricos opoe-se a isso), pelo menos sufi-

ernpIricas no sentido de que visarn a realidade dos processos sociais e buscarn cientemente próximos para que sejarn ridos como uma coisa só quando se
neles os elementos de apreciacão de sua pertinncia. São iriterpretativas pelo trata de compreender o desenvolvirnento do capitalismo. Poderlarnos ate irna-

práprio faro de que o observador, quando deve determinar urn conrexto, dis- ginar medidas ou simplesmente indicaçoes da semelhança das variáveis estra-

poe, alm da tradiçao, de uma total "liberdade de recorte sernãntico" (p. 368). tégicas que essa aproximacão induz. AD mesmo tempo, e por construçlo, h

Portanto 6 preciso sustentar ao mesmo tempo que a real idade social 6 o objeto urn distanciamento entre os dois tipos de socjedade: China e Europa diferern

da pesquia histórica (ou sociologica etc.) e que o projeto da História não pode em sua atitude religiosa e filosófica diante da economia. Vê-se que em tal
logicamente limitar-se a descrever e a compreender objetos que preexistem a ela. formulaçao tudo é problemático: a China e a Europa como entidades e o fato
Notemos de passagem que a escala nao muda nada nisso tudo. A relaçao entre o de que a religiao constitui seu mais forte critério de distinção. Mas deduzire-
rnodelo teórico e o mundo empirico não muda corn a ambiçao explicativa do mos a suposicão de urn do entre a reforma protestante que a Europa

modelo: compreender em menor escala ainda é decidir sobre a pertinncia de conheceu no sicu!o XVI e o desenvolvirnento do capitalismo.

urn tecorte. - 0 fortalecimento da suposição passa pot uma mudança de escala. Serão
comparadas, por exemplo, desta vez no quadro europeu, as morais econômicas
BUSCAR 0 OPTIMUM METODOLOGICO protestante e católica, tais como as reve!arão Os sermOes conservados ou os
conte6dos das bibliotecas, os cornportarnentos d05 burgueses de uma religiao e
Neste ponto, é possIvel retomar a questão do regime de cientificidade da outra, os sucessos econômicos dos Estados cat6licos e protestantes, medidos
-- - - - dos modelos históricos pela outra vertente: a de sua elaboração. Partiremos pelos n6rneros do comércio on da produclo industrial. Sistemas de medidas
novamente de urn exemplo, canOnico: a maneira como Weber procura estabe- substituirão os indicadores mais qualitativos do inicio, e testes estatIsticos po-
lecer urn rnodelo que associe o desenvolvirnento do capitalismo de empresa deriam at6 substituir modalidades mais naturais de comparacão. Mas a conduta
corn a moral protestante, alias desenvolvido pot Jean-Claude Passeron (pp. 76 Continua a mesma: os contextos que caracterizam Os paIses europeus após 0

etseqq.). Sabe-se que, nurn trabaiho de história religiosa comparada, o méto- grande cisrna são considerados suficientemente aparentados para admitir uma
do seguido por Weber passa pelo estabelecimento de relaçOes entre duas situa- cláusula ceteris paribus que a historicidade de sua situação impede de respeitar
çOes: a da China confuciana e a da Europa do século XVI. As condiçOes corn rigor: a escoiha da hipótese, a do contexto e a das variáveis estão
econômicas que parecem prenunciar o desenvolvimento do capitalismo no indissociavelmente ligadas. Distinguir os Estados europeus de acordo corn seu
Ocidente existem no mesmo rnomento na China: a acumulaçao primitiva do regime politico, por exemplo, teria remetido a uma outra hipótese e a outras
capital, a exjstência de uma classe comerciante, hábitos e uma cultura compa- variáveis. "A generalizacão de uma asserção proveniente de uma srie de observa-
tiveis. Nesse aspecto, pode-se considerar os contextos, senão idénticos (a sin- çOes históricas não pode basear-se senão na decisäo de trarar como equivalentes

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Port DMA NOVA HI5TORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

163). Popper destacava a distinçbo entre dois tipos de conceitos: "urn concei-
ao menos dojs contextos não-jdêntjcos" (p. 369), e ela so vale "quanto vale a
to individual é urn conceito em cuja definiçbo os nomes prOprios (ou equiva-.
tipologia dos contextos e dos parentescos de contexto que definem sua
lentes) são indispensáveis. Quando se pode eliminar toda referência a nornes
perrinência hisrOrica" (p. 368). Assim, a conduta comparariva não 6 uma moda-
prOprios, o conceito é universal". Ressaltava ainda que "toda tentativa de
lidade particular da pesquisa histOrica, capaz de mob ilizat recursos ou métodos
definir nomes universais corn o auxiljo de Domes individuais está fadada ao
especificos. Calculada e argumentada ou nb, ela começa no exato momento em
fracasso"6. 0 que se consegue corn esse processo chamado de absrraçbo são
que se estabelece como meta enunciar uma proposicbo explicativa sobre o mun-
classes de indivIduos: os "generais de Napolebo" ou enrão o "povo de Paris",
do histOrico. E inseparável do projeto de conhecimento.
pot exernplo. Passeron reivindica e assume essa situação particular as ciências
Dal resultam duas consequências epistemolOgicas. Dc urn lado, encon-
sociais: os conceitos de "feudalismo", de "povo de Paris", de "generais de
tram-se desvalorizados os enquadramentos habituais em que se coloca e tenta-se
Napolebo" partilham a mesma natureza (como mostrarn as pthprias discussOes
resolver a questao da generalizaçao. Generalizar nbo pode consistir em alcançar a
sobre o que seria convenience, nurna lista de Domes extraidos de qualquer
histOria total pot urn processo de adiçbo (dos nIveis de análise da real idade:
texto de historiador, denorninar conceito ou não). Tanto uns como outros
economi a, sociedade, civilizaçao...) ou de multiplicaçao (de monografias). A
nbo podem set entendidos scm que se aplique urns espécie de indexaçao rnOvel
apreciaçao da representatividade, emprestada ao modelo estatIstico das ciências
sobre uma série de individualidades histOricas (dos indivIduos, das forrnaçoes
sociais como ideal, logicarnente nao pode dat certo. 0 historiador (o sociOlogo
sociais particulates) consideradas em sua singularidade. Qualificando como
etc.) nbo extrai uma amosrra, e sim designa urn coritexto. Nenhurn m&odo
"seminomes prOprios" ou "nomes comuns imperfeitos" (p. 60) as palavras da
formal pode corroborar ou desqualificar urn recorte d0 continuum histOrico que
análise do mundo histOrico, Passeron situa-se no prolongamento cxplIcito de
preexiste a etc e que sO pôde operar-se nurna linguagem natural. A busca da
Max Weber quando esre conclarnava o historiador a reconhecer o caráter ideal-
exaustividade, scm dOvjrja herdada como meta da histOria positivists, é igual-
rIpico de todos os conceitos que organizarn seu discurso. 0 termo "feudalis-
mente incerta. Nem a lista dos traços que caracterizam pertinentemente 0 mun-
mo", pot exernplo, nbo é separvel de uma série de inforrnaçOes sobre o Oci-
do, nem a dos pontos de vista que se pode adotar sobre etc sbo conjuntos
derite Medieval, a China ou o Japao do século XIII. 0 conceito, por sua vez,
finitos. Pot isso, a pesquisa histOrica é sempre retomada em novas bases, e
vale quanto vale o parentesco dos contextos que definern sua pertinncia his-
convém menos estabelecer para eta urn nIvel de generalidade (medida pelo crité-
tórica e the dbo sua força operarOria.
rio de uma universalidade que permanece inacessIvel nas ciências da observaçbo
E fácil exprirnir a circularidade de tat situação: 0 conceito histOrico ad-
histórica) do que delimitar seu espaco de validade.
quite sentido nurn recorte do mundo so qual dc dá sentido. Se a operacbo
POE outro lado (mas trata-se simplesmente de uma outra forma de dizer
a mesma coisa), o estatuto lOgico de toda definiçbo histOries (ou sociolOgica
6. K. Popper. op. dt.. PP. 64-65.
etc.) situa-a "no intermejo da observaçao singular e do conceito universal" (p.

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BERNARD LEPETIT POR UMA NOVA HI5TORIA URBANA

histórica pode set logicamente contraditória e entretanto operante, 6 porque 0 da Declaração dos Dire itos do Homem e do Cidadão está aI Para lembrar, se
modelo (isto é, a inteligibilidade his tórica do mundo) e a modelização (isto & o necessário, que as proposicöes universais que enunciarn o social não perren-
processo de pesquisa) não são separáveis. Todavja não ha regra epistemológica cern mais ao registro dos julgamentos assertOrios, que enunciam verdades de
de construção ou de validaçao conjunras dos contextos e dos conceitos. A iden- fato, e sirn ao registro das normas.
tificação do objeto histórico está compreendida sornente entre dois extremos, 0 apOlogo cientffico dos cisnes, extraido de Popper, permite ao mesmo
ambos inadrnissIveis. De urn lado, o singular, sobre o qual se sabe, pelo menos tempo que se compreenda o porquê e que se destaquem as virtudes (na falta de
desde Paul Veyne, que nada ha a set dito e que o projeto cieritifico nasce ao qualquer outra conduta possivel) da exemplificacão. Dc uma proposicão teOrica
distingui-lo do especIfico, em que começa o inreligIvel 7. Aaparente pertinncia, - todos os cisnes são brancos - é sempre possIvel deduzir urn enunciado de
em todos os sentjdos, de uma experiência singular so é capaz, eventualmente, de observação: se a teoria válida, em todo lugar e a todo momento ou ha urn
uma valorização extraordinária. Já que nada parece insignificante no singular cisne branco, ou não ha cisne nenhum. Esse tipo de enunciado explicativo não
(ou, sirnetricamente, ja que tudo nele 6 indiferente), a questão dos rraços perti permire de rnodo algum, indica Popper, testar eficientemente a validade da -
nentes da descriçao desaparece - "porque era ele, porque era eu" - e corn ela a teoria: como a major parte do mundo 6 desprovida de cisnes, o nOmero de
possibilidade de dotar a ariálise de uma inteligibilidade construIda8. Na meihor observaçOes que se ajustain a teoria (e que se ajustam igualmente a teoria inver-
das hipóteses, denominaremos sociografia a descriçao cuja validade está contjda sa, segundo a qual todos os cisnes são negros) é infinito9. Eis o observador
irnm contexto 6nico; mas ainda nao se trata de raciocInio sociológico. condenado a vagar, scm esperanca e sern fim, em busca de urn hipotético cisne
0 segundo polo de repulsão não ocupado pela generalidade de valor negro falsificador. Isso significa esquecer, retruca Passeron, que a pesquisa é uma
universal (inacessivel as ciencsas soctais) mas pela perda de sentido cientifi conduta e nao uma divagacão: todo o seu dispositivo tern por funçao reduzir o
co: "urn parentesco entre contextos torna-se mais longInquo e incerto a me- campo da exploracao e organizar a busca. Os catalogos dos jardins zoologicos
dida que conduz a formulaçao de gcneralizaçOes mais amplas, cujo valor as- onde se conservarn cisnes e a lista dos nichos ecoiógicos onde des foram obser-
sertOriO,concomitantement e, tende no lirnite a zero" (p. 369). Aforrnulacão vados constituem o corpus razoável ("que vale o que vale, mas é meihor do que
explicativa tende a perder em validade o que ganha em extensão. "Todos os nada", segundo a fOrmula scm ilusBes apreciada por Passeron), cuja exploracão
homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos": o artigo primeiro metOdica será conveniente organizsr. Se é possIvel verificar que todos os cisnes
presentes no corpus são brancos, estájustificada a pretensão da validade da teoria
7. P.Veyne, Comment on érritlhistoire, edigRo ompliada, Paris, 1978, P.72 etveqq. (cia nunca se torna certeza, claro: quem garante que urn nicho ecológico, esque-
8.0 texco dej.-Ci. Passeron, "Biographies, flux, icinéraires, reajecroires", pubiicado iniciaimence n Revue
françaisedesociologiee retomado nas pp. 185-206 do iivro que esramos anaiisando, corn urn rhuio ampliado
('ic scenario et le corpus"), detaiha mericulosamenre as conseqOOncias desse estado de coisas porno gOnero
biogrfico. 9. K. Popper, op. Cit., P. 100.

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BE RNARD LE PETIT POR UMA NOVA HI5TORIA URBANA

cido ou despercebido, não 6 todo povoado de cisnes negros?). Eis o valor da suplementar, qualquer observaçao ornitológica. Immanuel Wallerstein, na in-
pretensão indexada corn base na qualidade do protocolo de observaçao. rroduçao do livro que nos serviu corno ponto de partida, é sensivel a fraqueza
Limite é a paiavra de ordem da conduta: "o espIrito cientIfIco está corn- dos sisternas pan-explicativos. E interessante destacar os motivos que ele cita
prometido corn urn método de busca da veracidade que consisre em tornar a Para isso depois de ter observado que nunca houve senão uma ünica economia-
tarefa da exempiificaçao a mais difIcil possIvel' (p. 39). "A mais difIcil possIvel": mundo européia: "pode-se falar de leis que regem o que é iinico"? No sentido
a formulaçao mostra que a conduta das ciências sociais só pode tender a urn estrito do termo, e' impossfvel. 0 enunciado de uma causalidade ou de uma
optimum. Este não 6 passIvel de ciculo ou de formalizaçao; mas, num universo probabilidade faz-se em funçao de uma série de fen6rnenos ou de exemplos do
sem ilusôes, Passeron indica formas fortes e forrnas fracas da exemplificaçao. mesrno tipo (p. 13). 0 argumento é de narureza estatIstica, e se encontraria,
Formas fortes seriam as que perrnirem coordenar constataçöes empIricas main- por exemplo, na base da conduta experimental de laboratórlo ou ao longo dos
pias e nao repetitivas: "uma teoria sociológica, uma smntese histórica ou uma projetos de Sirniand ou de Durkheim. A diferença do argumenro de Passeron
comparaçBo antropológica são mais fecundas na producao de suas inteligibilidades assim se destaca ainda mais. Para dc, na reduçao a uma coisa so que toda
próprias na proporção em que obrigam a mais pesquisas empIricas, ligadas entre generalizaçao de tendncia universal reaiixa, é a rensão eotre o conhecimento
Si pot uma coerência interpretativa" (p. 390). No piano metodoiogico, significa pelas diferenças e o conhecimento pelas seme!hancas que desaparece. Ora, a
que a qualidade de urn livro de história rião se comprova apenas, como sustenta ilusão do "sempre igual" construlda pelo sisrema pan-expiicarivo e a do "ounca
o modeio beneditino de estabelecimento crItico dos fatos retomado pelo visto" de que se nutre o projeto antiquarista esterilizam sirnetricarnente a corn-
positivismo, corn cada uma das consrataç6es empIricas, mas também corn as preensão histOrica. Esta opera por parentesco e pot distanciarnento. Seria pos-
modalidades do agenciamento delas. No piano epistemologico, trat-a-se de reto- - sIvel igualmente icr essas sugestOes-corno urn elogio do inexplicado: a validade -
mar a idia, ja enunciada por Paul Veyne, de que o progresso da história está na de urn rnodeio histOrico rnede-se tambérn pelo que eie deliberadarnente deixa
arnpliaçao de seu questionário. fora de seu alcance.
Forrnas fracas seriam aquelas que tornam a tarefa de exempiificaçao fácii
demais. As generalizaçBes mais amplas pertencem a essa ciasse: ganhando em 0 PROLONGAMENTO DA CADEJA EXPLICATIVA
extensão, não deixam que nenhurna constatação empirica escape a seu aicance.
Todas a corroborarn, e é isso que, paradoxalmenre, faz sua fraqueza. Imagine- "Herrnenêurica: ver interpretacao livre, divagacão." Caso se pretendes-
mos uma teoria que visse na divisão dos cisnes negros e dos cisnes brancos a se urn pastiche da forma dada por Jean-Claude Passeron as Oltirnas defI-
origem da dinâmica ecológica da espécie e que susteotasse que em todo lugar e niçOes que fecham seu livro, haveria o risco de se inscrever igualmente o
a todo momento os cisnes ou são negros, ou são brancos, ou eotão que ainda terrno no dicionário das idéias prontas. 0 autor afirma não ver na prática
nBo se encontram cisnes. Ela se condenaria a anexar, scm gariho comprobarório hermenêutica seoão uma interpretacao livre de qualquer resrrição, cujos efei-

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POR UMA NOVA HISTORIA URBANA
BERN A RD LEPETIT

tos Se limitarn a repetir corn outras palavras o já sabido. Poderiamos icr, nesse agradavei: nós as pnivilegiaremos, não por otimismo voluntário, mas porque

desprezo, a preocupação de Passeron em distinguir a sociologia cientifica do se ajustam a pontos mais centrais do Iivro.

ensafsrno socioiógico. Entretanto, o desprezo parece-me ligado menos a uma Por urn lado, está claro, a interprenacão não tern relaçao corn o comen-

estratégia (nada perder para afirmar a cientificidade depois deter derrubado a tánio: eta intervém no prOpnio processo da pesquisa e constrói "uma organ1-

barreira - alias falaciosa - da falsificaçao popperiana) do que ao próprio raclo- zação nova da observaçao empIrica" (p. 391). Nurn terreno em que as possi-
cInio desenvolvido pelo autor. Denunciar a herrnenutica como uso autárquico bilidades interpretativas (entendarnos as modalidades de recorre d0 social)

da linguagem é uma imposicão a partir do mornenro em que se destaca que é são miiltiplas, a ausência de paradigma unifIcado priva o pesquisador de qua!-

possIvel "definir logicamente a compatibilidade de urn enunciado corn urn quer ponto de referência forte. Todavia dc nao se aventura scm b6ssola: "o

enunciado, jarnais a de urn enunciado corn uma realidade" (p. 360) e em que conhecirnento da diversidade dos papiis que foram representados por concei-

Se pretende fazer da realidade observável, concornitantemente, alvo e sanção tos e métodos nos procedirnentos de intervenção ou de argumentacão permi-

dos conhecimentos produzidos. A hermenutica assume de fato o primeiro te ao mesmo tempo ao pesquisador manter aberto o campo de recursos te6nl-
estado e renuncia a segunda arnbição: é em sua pretensão de dizer o mundo co.. e controlar a coer&ncia semântica da intenpretação que dc constrOi

histórico sern referência ao empirico que eta é inaceitável. trabaihando conceitualmente seu material de observação" (p. 47). A "memO-
Perrnaneçamos no universo da linguagem, ou seja, apenas no âmbto na teOrica" de uma ciência, sua reapropriacão critica pelo pesquisador em

d0 discurso cientIfico, e el-la requalificada. A inesgotabilidade do mundo ação fornecern os instrumentos de uma vigilãncia metodolOgica. Pretende-se

histórico e a liberdade de recorte semântico de que os pesquisadorcs dispoem, dar a impressao de descer o curso do tempo em vez de subi-lo? Novamente se

irnpedem que exista "uma linguagemprotocolar unificada da descricaoempi- enconrrarão os efeitos de sentido das teonias revisitadas. 0 valor das teorias

rica do mundo histórjco" (p. 363). Nenhurna prova ernpIrica jamais poderá, sociologicas e sua distância em relação ao optimum rnerodoiOgico são dols,

evidentemente, arbitrai- entre linguagens protocolares alternativas: isso já foi djz Passeron. "Nas ciências sociais, o 'valor' de urn resultado ou de uma obra

notado. Os protocolos de descriçao do mundo basejarn-se em convençöes. As cientIfica não é finalmente mensurável senão pelo rastro paradigmático que

modalidades de elaboraçao, de reestruturação, de esquecimento ou de reto- deixam na memOnia viva das cornunidades eruditas capazes de reutillzá-los"

mada dessas convençöes são marginais em reiaçao ao objetivo do livro: Passe- (p. 34). Ressaltar ainda o registro lexical scm dOvida não é 0th: riurna tensão
ron dedica-Ihesuma atenção repetida, mas passageira e bastante contraditó- entre a inovação e a tradição, a leitura ativa do discurso cientIfico é condição

na. De observaçoes esparsas é possIvei extrair uma constatação pessimista: e medida da eficiéncia da pesquisa. A atitude herrnenutica ressurge, -assirn,

relaçöes de dorninaçao social fundamentam a hierarquia dos valores paradig- em todo lugar, e so está ausente no momento em que a explicacão visa o
máticos; a sociologia so inova conquistando para suas práricas tetras virgens mundo hhstórico. Sobre este Oltimo ponto, qualquer outra soluçao tenia re-

ou ha tempos abandonadas. Outras passagens autorizarn uma leitura mais sultado numa contradição nos termos d0 projeto.

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BERNARD LEPETIT P0R IJMA NOVA HISTORIA URBANA

NO é irnpossIvel, porérn, que cia conduza a autor rumo a urn radicalis- primeiro: que é do tempo daquele que fala. Instalar o pesquisador nas proximi-

mo simplificador: "a sociólogo nunca esta na situação retótica em que a realida- dades de seu objeto apresenta vantagens: a afinidade dos questionamentos favo-

de empIrica se apresenta como urn texto", afirma-se (p. 53). Em socialogia, não rece a recuo das investigaçOes de hoje ate as de ontem e assegura a transparncia

se discutirá isso, mesmo que tal tipo de formulaçao permita não se colocar a das fontes. Ja que a espIrito dos urbanistas do século XVIII, por exemplo,

questao da relaçao entre 0 recorte erudito do mundo feito pelo pesquisador e as pertence a nossa famIlia, as materiais de pesquisas que nos legam ajustarn-se
categorias estarIstico-administrativas de que ele extrai boa parte de seus dados scm dificuldade a nossos protocalos. Mas essa facilidade C uma armadilha. Par

empiricos, ou a questao (que parece imporrante nas sociedades em que a apren- urn lado, cia torna penoso sacudir a poeira das análises antigas, tarna dificeis de

dizagem do texto 6 o elemento essencial do processo educativo) da capacidade detectar as artimanhas interpretativas e as contaminaçOes ideológicas. 0 funcio-

dos modelos textuais para configurar nâo apenas a maneira como os atores nalismo, que o sécula XVIII inventa e aplica na análise das cidads, ainda hoje

explicarn sua prática, mas tambm essa prática em si. Em história, ao contrário, dá ao carnpo conceitual urbana a essencial de seu aspecto. Princfpios de leirura

quase não seria exagerado poder-se adotar a proposicão inversa: a disciplina está idnticos organizam a mesmo discurso da evidência: a transparência transfor-

sempre numa situaçSo em que a realidade ernpirica passada se apresenta como ms-se em obstáculo. Mas, por outro lado, a proximidade não é total. A emer-

urn texto. Enquanto o antropóioga ou a socióiogo relatarn uma experincia de géncia das questOes relacionadas da industrialização e do desenvolvimento social

campo, o historiador exjbc documentos. Lembrando mais uma vez, corn Passeron, (ou de seu fracasso) conrribuiu, a partir do século XIX, para ocultar a questSo

que toda apreensao do mundo 6 baseada num recorte particular de sua diversi- urbana. Determinou outros recortes e deslocou parcialmente urn dominia de

dade, constataremos, entao, que a pesquisa histórica poe em jogo dojs recortes objeto anterior, que convCm recuperar porque constjtui uma forma de

do real, dos quais urn (o da história) 6, quarito aos elernmtos que 6 capaz de contextualizaçao elaborãda no sCcUlo XVIII.
incorporar, dependente do outro (o do arquivo). Trés mCtodos permitem que se resolva essa tensão entre a disrância e a

Desqualifiquernos imediatamerite as solucoes mais indolentes desse pro- proximidade na qual se canstrói o recorte pertinente do objeto histórico. A pri-

blema (confundir a realidade passada corn o recorte das series de arquivos; subs- meira aplica-se ao arquivo: cruxar as fontes entre si, retomá-las de Angulos diferen-

tituir a visão do mundo pelo comentário dos textos) e partarnos de urn exemplo tes para abordar empiricamente questOes distintas tern por funçSo questianar a

para perceber melhor o que está em jogo. Quando intitula "gênese de uma evidéricia dos recortes aceitas, sejarn des os das bases docurnentais de antem ou

cidade rnoderna" a monografia que dedica a cidade de Caen no século XVIII, as dos niveis de questionamento de hoje. A segunda aciona técnicas de análise.

Jean-Claude Perrot evidenternente não está pensando nas escançoes canOnicas Aplicadas ao vocabuiário this profissOes e ao recensearnenta da população, a análise

dos perlodos históricos'°. Moderno, aqui, deve set tornado em seu sentido semiolCgica, a crItica erudita e posteriarrnente estatIstica dos documentos, a usa
do multiplicador econOmico permitem que se vá das palavras as coisas do sCculo
10.1-C. Perrot, Car,, aX'/JJf ,jkk Grn,,d'on,ejfle mod,rne, Paris, 1975. XVIII, depois das caisas das Luzes as palavras de agora pars reconstituir, atravCs

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F
I 7

BERNARD LEE ETIT

das categorias da populaçao ativa, os dados dernográficos de uma evolução urbana


quantificada, caracteristjca do mundo histórico do Antigo Regime, mas desco-
nhecida de seus conternporâneos. V&se bern, de passagem, que a questao em
histótia nan retoma o problema, can6nico em sociologia, da relação entre o senti- 5. E P0SSVEL UMA HF.RMENEUTICA URBANA?°

do comuni e o sentido erudito. 0 que os vocabulários das profissoes OU OS ni'ime-


ros dos recenseamentos de populaçao antigos mostram não é apenas da mesma
natureza que o saber histórico (porque expresso, corno dc, numa linguagelTi flatU-
ral de descriçao do mundo, pra empregar a terminologia de Jean-Claude Passeron).
E tambdm do mesnio nivel, partilha a mesma visão empIrica, urn uso comum
ident0 de uma linguagem sistematizada e de controles metódicos numa prárica
Em contraste corn o tempo monótono da mecânica clássica e do urbanismo
regulamentada de contextuslização do observável. Pot isso, a análise das condiçoes
funcionalisra, o tempo das teorias da auto-organizaçdo caracreriza-se ranto pelo
sociais de produçao dos significados acadêrnicos antigos e dos dispositivos mate-
rurno inesperado de algumas de suas evoluçóes quanto pela complexidade'. Assim,
riais e cognitivos que os modelam e uma etapa necessária a abordagem do mundo
a hisroricidade d05 sisrensas que dde resukam pode set entendida de dua.s maneiras.
empIrico passado. Mas esse modo de apreensao critica não basta. A menos que se
adotasse urn racjocfnjo dicotômjco incômodo, que separaria o verdadeiro d0 falso
em nome da verdade do dia, os antigos censos de populaçao ou as teorias econô- 5 "Mmoire,Hjstoire.Une hermencutique urboine tsr-cUe possible?', em B. LepedreD. Pamoin (dir.), Tcmporaa/ités
urbajoes, Paris, Anthropos/Economica, 1993.
rnicas pr-c1assicas pertencem a memória da demografiahistórica ou da história
1. Pam saber mais sobre a transfertncia dos modelos de auto.organizaçto (procedentes da fisica, da quimica, do -
econômica, como as veihas teorias sociais pertencem a memória da sociologia. A biologia e da inreligbncio artificial) para os estudos urbanos, Icr os dernais capitulos da obra da qual fat porte
care ensaio, originacla de can rribuiçbes Jr arqueblogos, demdgrafos, ecologisrar, ec000misras, gedgrafos,
distâncja hermenutica, a densidade interpretativa que delas nos separarn, forne-
hisroriadores e estaristicos de diversos poises. Essa coleiSnea trata dos modelos de din5mico que fazem parre
cern o método que contribuirá para manter aberto o campo teórico, para contro- dos rrorias chomadas Jr auro.organizaçao, formuladas por Prigogine, Haken eThom, corn a finalidade de

- lar a coerncia semântica da interpretação, para assegurar uma meihor vigilância especificar as relacoes caste escalos de tempo e espaço na evoluçao das cidades. Conforme explicam seas
organizadorcs (pp. Ve VIII), a evoluçio dos sisremas urbassos é analisada a parrir dos interacOes curie a escala
I metodologica. 0 prolongamento da cadeia assertória é uma das condiçoes para
) rnicroscsipico dos comporrosrienros individuais Ca escalo macroscdpica dos cossfiguracSes ,arbanas, carte
aproximar a análise do optimum explicativo. Alias, quem nao sabe disso? 0 histo- din5micaveloz da conjunturo e adin5mico lenra dos esrrsansras (...). Os modelos de assto-orgonizaçao explicam

riador nunca lard nada além de ativar as dimensôes despercebidas do passado ao mesma tempo a generalidade dos principios de urbanizagSo to originalidadeirredurivel de coda desrino
urbano. Rernerem o conhecimersto do configuraçio de uma cidade (ou de sua posiçao nam sisremo urbano)
transmitjdo. A tarefa, evidentemente, interminável.
nEo a urn equilibria internporal OU 00 conhecimenro de qualquer uma de sum condiçSes possados que
permiricia deduzir codas as ourros, e sin-, act encodearnersto do conjunro dos configuragoes precedences,
trajetdria hlsrdrica que acidade seguiu". (N. do Org.)

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BERNARD LEPETIT POR UMA NOVA Ht5TORIA URBANA

Pot urn ]ado, ela significa uma trajetória temporal em que cada seqüêricia depende subrbjos tern urns, forte tendência a não continuar sendo subt'irbios. Lembrar
das precedenres, mas nao as reproduz de forma identica: cada ponto de bifurcaçao que a que se denominafaubourg encontrava-se do lado de fora da vigia. Lem-
V8 o sistema impelido para novas condiç6es pouco previsIveis, que abrem urn brat que urn boulevard, na origern, 6 urn passeio páblico arborizado que circun-
novo espaço de possIveis, dos quais apenas urn será arualizado na sequCucia da uma cidade, comumente ocupando o espaco onde estavam as antigas mura-
seguinte. Pot outro, podemos analisar a historicidade como urn processo temporal Ihas. Lembrar, a propósito, que era forrificado..." 0 inventário proposto pot
complexo, no sentido de que o sistema vC seus elernentos surgirem de uma Georges Prec corno preliminar necessária para a difIcil definição de cidade
pluralidade de tempos descompassados cujas modalidades de combinaçao geram quase inteiramente ditado pela história.
mudança a cada instante. As duas dirnensôes não estão IleCessariarnente ligadas 0 fato de que os elementos de uma cidade, em sua contemporaneidade,
no âmbito da análise, e os modelos urbanos de auto-organização em geral se tern idades diferentes acarretou consequencias metodologicas. Os estudos de
inscrevem na primeira rubrica. Eles permitem sirnular, num leque de evoluçôes morfologia genética abrirarn caminho, e surgiram as regras de transformaçao das
poterlciais, a partir de uma situação original, a efetiva evoluçao por que passou a formas urbanas. A rede viária é mais duradoura que a lotearnento. Os lotes, cuja
configuraçao de uma aglomeraçao dividida em bairros, ou a de urn sistema de
duraçao depende da forma e da dimensão (em geral, as maiores e os menores são
cidades. Permitem explorar as evoluçöes vindouras possIveis num futuro abcrro Os que se conservam rnelhor), resistem mais tempo do que os imóveis neles
e, coma as mode[c)s funcjonajs - ernbora corn mais incerteza, tambérn corn construidos. Os vazios resistem mais que os cheios, e as estruturas menos mate-
mais riqueza e sutileza - incorporam o previsionista na pessoa do organizador. riais duram mais que a construldo: reconhecern-se na planta os vestIgios dos
Aiguns lirnites, ja enfatjzados, corn que esses rnodelos deparam, encorajam-nos antigos vilarejos fagocitados pelo crescimento urbano ou as velhos bairros me-
-- a trocar par urn momento as bifurcacoes-pelos descompassos, - o rumo das dievais. Na escala das gran-des intervençdes do urbanImo, mas tamb6mnadas
rrajetórias pela pluralidade das temporalidades. E a uma reflexão
a margem da mil pequenas muraçöes renovadas que modificam o tecido urbano, os tempos
acadernica que eu gostaria de convidá-los. da cidade são fortemente demarcados. Nada indica que des se ajustam conti-
nuamente a conjuntura econômica, as variaçóes de populacão, as mudanças de
MUDANçAS DE FORMAS, MUDANçAS DE USOS hábitos dos citadinos.
A partir da constatação desses descompassos, 6 cornum a pensamento
0 que acontece se tentamos explorar a segunda vertente? As casas e os voltar-se para as soluçóes mais fáceis. Ocorrem-nos analogias para explicar a
espaços de trabalho, as edifIcios piiblicos e a rede viária, as maneiras de viver e processo: ao direito tomani-se emprestadas as noçóes de transmissão e de heran-
de morar, a organizaçao técnica da producao e da troca, as formas de diverti- ça; da iriformática yem a imagern da rnemória de computador da qual se apaga-
mento e a geografla dos espaços de lazer sempre provêrn, em sua major parte, do
riam progress ivarnente os elementos do programa das atividades passadas. To-
passado e resultarn, em sua evoluçao, de rjtmos djferentes. "Reconhecer que os
das as analogias são perigosas, pois conduzem as práticas mais pobres. Assim,

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0
)

0
BERNARD LEI'ETIT POE UMA NOVA HISTORIA URBANA

no âmbiro da organização, essas irnagens inauguram a ambição dos modelos de arciculaçao entre o espaco privado e o espaço püblico quanto a valorizaçao

culturalistas de urbanismo. Sirnétricos aos modelos funciorsalistas que pensam diferente de urn e de outro tern sua história. A habitação é signo social e suporte

organizar o futuro projetando as tendências presentes, eles pretendem retomar o de uma prática cultural que não são intangiveis: as maneiras de coabitar e a distri-

ideal Perdido da cornunidade urbana, dando corpo novamente as formas passa- buiçao dos papéis entre as membros da comunidade de moradores, coma mos-
das de organização da cidade. Os rnesmos princIpios de linearidade temporal trou a experiCncia recente, são capazes de evoluir em curto prazo. As formas de
de determinismo espacial presidem os dois modelos. No âmbito do conheci- inscrição do tecido industrial no tecido urbano riveram fases diferentes, ditadas
mento, as imagens fazem que a sociedade e seu território sejam colocados em tanta pelas representacöes sociais da fábrica e da cidade quanto pelas imposicöes
posicão de exterioridade: corno urn bernardo-eremjra, a sociedade citadina move- da producao: cada uma delas so tiriha força de evidCncia no momento em que era
se num construldo que não é o seu. Legado em quase todos os aspectos pelas dominante. 0 modelo da centralidade comercial foi desacreditado - parcial e

geracôes passadas, o espaço urbano parece então restringir seus novos ocupantes temporariamente - pelo desenvolvimento dos centros comerciais periféricos.
e modelar seus modos de fazer. A esse modelo corresponde uma certa tradição Coma erigir tipalogias nesse campo e estabelecer regras de composicãa compará-

de análise urbana. Prática de antiquário mais do que de historiador, eta conside- veis as que foram criadas no universo das formas? A noção de duraçao de Vida
ra a cidade como urn palimpsesto cuja compreensão se esgotaria no achado dos numa determinada condição, por vezes utilizada em dernografia para caracterizar
vestigios dos textos antigos sob a escrita mais recente. Atividade de gabinete: processos evolutivos, é aqui particularmente difIcil de se empregar. As variaçöes
para quem pretende planejar a cidade, recorrer a história - que é capaz, quando culturais, os pracessos de imitação social, a raridade dos mamentos de ruptura
muito, de contribujr para dcl inear as contornos de "urn espaço dos possIveis", que fazem dos usos da cidade, sempre, urn misto de reproducao de comportamen-
- entendido no sentido mais material do termo - é de interesse Infimo. - - tos e de inovação, complicam desmesuradamente a tarefa. Além do mais, a estudo
Mas a cidade não é urn palirnpsesto. A observaçao empIrica desmente as interno dos usos da cidade comparra urn risco serneihante ao que corre a análise
relaçôes excessivarnente simples que, num primeiro momenta, acredita-se passive1 interna das formas. Dissociar as estudos sobre a urban idade e as pesquisas sobre a
estabelecer entre a sociedade urbana e seu tefritório. Considerem-se as bajrros de morfologia urbana acarreta a perda da quesrãa urbana em sua especificidade. A
Nova York: as mudanças sociais de usa dererminam as modalidades de resistncia cidade nao dissocia: ao contrária, faz convergirem, num mesmo tempo, os frag-
e a duraçao de Vida do construido, rnuito mais do que o inverso. Ao contrário, em mentos de espaco e as hábitos vindos de diversos momentos do passado. Ela cruza
Paris, no Marais, a arquitetura antiga acomoda-se a usos sucessivos conrraditó- a mudança mais difusa e mais Continua dos comportamenros citadinas corn as
rios, e as veihas moradas podern tornar-se consecutivamente, por rneio de simples ritmos mais sincopados da evolução de certas formas produzidas. A cornplexidade
bricolagens internas, residências aristocráticas, ateliês, habitaçöes burguesas. Não é imensa.
se deu aos usos sociais da cidade a mesma atenção classificatória que se dedicou as A cidade é feita de cruzamentas. 0 difIcil, para compreender a mudança
formas urbanas. Mas sabe-se que são sujeitos a mudanças. Tanto as modalidades urbana, é percorrer junras as duasvias que conduzem a ela, emvez de privilegiar

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BERNARD LEP ETIT PaR DMA NOVA HISTORIA URBANA

uma ou ourra. E passivel escrever, par exemplo, que diversos territórios urba- decorre urn forta!ecirnento da segregação. 0 prolongarnento da jornada produ-
nos, dadas suas caracterIsticas peculiares, rião são igualmente capazes de absor- tiva dirninui a compatibi!idade entre atividades industriais e comercials que
vet modificaçöes de usa ou mutaçöes econômicas. Essa proposicão tern toda impöem uma circulaçao interrompida par menos tempo. Concomitantemente,
probabi!idade de estar correta: as tecidos complexos das rnerropoles, por exem- a reduçao e a concentração dos horários individuais de traba!ho ern blocos
plo, contrastam corn os tecidos monofuncionais, que se desestruturam corn tarnam mais aceitáveis as !angos trajetos domicIlio-trabalho e provocarn uma
mais faci!idade. Estabelecendo uma re!açao de mao inica entre as rnutaçöes das espécie de escalonarnento das periferias. As estruturas temporais constituem urn
pthticas e as dos espacos, porém, a proposicão é duplamente incornp!eta. Por fator que deve ser explicitarnente levado em canta no p!anejarnento ubano, e as
urn !ado, deixa de cons jderar os USOS sociais coma uma variável explicativa da moda!idades complexas de articu!ação do tempo e do espaco urbanos constitu-
evo!uçao dos tecidos urbanos - quando se sabe, par exemplo, que, em determi- em, por Si S6S, urn programa de trabalho. 0 pensamento sansimanista, em sua
nadas condiçöes sociais, as centros antigos das grandes cidades são tao Ira geis. tentativa de imaginar socjedades capazes de praticar a nomadismo urbana, já
quanto os terrenos baldios das veihas indtisttias. Par outro, deixa de cons iderar fornecia as prirneiras sugestöes para urn enfoque sistemático. -
as caracterIsticas dos territórios coma uma das fontes eficazes das mutaçöes
econôrnicas - quando a evaluçao recente de certas metrópoles rneridionais fran- MODALIDADES DE APROPRIAçAO DO ESPAO URBANO

cesas, par exemplo, mostra a contrário.


Tipo!ogias dinâmicas dos modos de articulaçao entre as formas e os usos 0 comparatisrno sugere outro carninho. Par anular a evidência de nossas

da cidade scm diivida constituem uma soluçao para essa dificuldade. Quais são, categorias, o exemplo japonês é urn porita de referência 11ti!. No Japão, a

em condiçöes históricas particulates, as formas que permitem usos iniiltiplos e centra!idade-parece caracteristica menos de urn lugar do que de urn uso. Não-há

as que naa perrnitem? Existem usas sociais da cidade, on de fragmentos de urn terrno frances correspondente a Sakariba, que se ttaduz habitualmente por

cidade, que implicarn uma forma i:inica, e outras que se adaptam a configura- "bairro frequentado". Mas Sakari nãa conora sornente energia ou abundância; a

çöes espaciais militiplas? Quais associaçöes aceitariam adaptacoes sucessivas e pa!avra remete tambérn ao tempo que passa. Os Sakaribas são cancentraçôes

quais induziriarn mutaçöes brutais? A resposra a essas questôes nãa é necessaria- eférneras da urbanidade, "coraçöes de cidades nôrnades" que temos dificuldade

mente simples. Por exemplo, segundo as conc!usöes de urn estudo a!emão recen- - para imaginar: em Paris au Londres, a City on La Defense não deixam de set a

te, a reduçao da jornada de traba!ho e a fim da sincronia entre a duraçao da centro dos negócias, quando ficarn desertas, a noite. As formas materiais que as

atividade individual e a das empresas inscreve-se num processo duplo. Por urn representacôes francesas de cidade tradiciona!rnente privilegiam, a mentalidade

lado, a ritmo urbano torna-se mais difuso e mais fortuito, e as picos de deman- nipônica apöe a plasticidade das formas tangIveis e, inversamente, a permann-

da das infra-esti-uturas são parcialmente corrigidos; em decorrncia disso, au- cia das formas intangIveis que são a savoir-faire e o ritual. Os Sakaribas garan-

menta a homogeneidade do espaco urbana. Mas, par outro lado, dai também tern a migracãa, no espaca, de uma forma estável no tempo. Roland Barthes

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) BERNARD LEPETIT POE UMA NOVA HESTORIA URBANA

ass malaya a mesma diferença quando opunha ao centro "repleto" das cidades tornam-se sinais intra muror, not bairros comerciais, as fachadas de andar térreo

- ociderttais- onde Se condensam os valores da espiritualidade, do poder, do esrao oum processo de consraote rransformaçao; as antigas estaçOes tornam-se

dinheiro, da mercadoria e dos atos de fala - o centro "vazio" de Tóquio, ocupa- museus, e as igrejas, salas de concerto. Desenvolvem-se sistemas suplementares:

) do pelo imperador invisIvel. a numeração das casas, o surgimento das placas corn as nomes das ruas, a sinali-

Talvez nos sentIssemos tentados a transpor esse breve exerriplo pam a area zação do trânsito. Enfim, o comenrário sobre o espaco urbano prolifera, e o
)
da semiologia urbana. Urn artigo de Frariçoise Choay, publicado em 1967, discurso urbanistico, linguagem sobre a cidade, substitui progressivamente a
)
impulsionou pesquisadores nessa direçao. A cidade, escrevia Choay, pode set linguagem da cidade. Sjtuar seu aparecimento comum apos uma idade de ouro

considerada coma urn sistema não-verbal de elementos significantes. Esse siste- encerrada leva a interpreta-las como uma distância intransponivel entre a cidade

ma revela-se em estado puro nas socjedades fechadas de evolução lenta (a cidade e seus habitantes. Mat se imaginarmos que as estruturas, mesmo semânticas,

grega, o burgo medieval). Nelas, o sistema urbano significa pelo simples jogo de nao escapam a história e que a imagem de urn paraiso urbano Perdido é, sobre-
) seus elemenros pthprios, scm o concurso de sistenias suplementares verbais ou tudo, urn efeito da documentaçao rernanescente, poderemos icr esses fenôme-

) gráficos (os nomes de ruas, as insignias). Tais elernentos adquirem sentido em not como modalidades historicamente datadas de apropriacão da cidade.

) relaçBo uris aos outros e remetem a ordem cosmológica e social a qual e por des E passive!, então, abordar corn urn enfoque urn pouco diferente a ques-
condicionada, envolvendo a conduta global dos citadinos. Nas sociedades de tao tins central idades comparando Paris eTOquio. V8-se como esse thpido exemplo
)
evoluçao rapida ao contrarlo pot causa da relativa rtgidez do construIdo o permite reduzir a dicotomia entre a morfologia utbana e os usos sociais: em vex

sistema urbano está parcialmente condenado ao anacronismo, ate mesmo amea- de colocar as format de urn lado e as comportamentos de outro (a nao set por
) - cornodidade de linguagern), cons idera os atores e as modalidades de apropria-
- çado em sua possibilidade de significar. Exceto nas margens das civilizaçöes
industriais ocidentass (nas bairros degradados das merropoles nas areas cuitu ção. Mais do que urn conceiro de análise, a cidade aparece como uma "categoria
da prática social", para retomarmos os termos de Marcel Roncayolo. Assim, a
rats exoticas ) a cidade padece de redução semantica e as ciradinos p6cm se
) a repreender as urbanistas pela nao-significancia do ambiente consrruido Mats questao das temporalidades urbanas C colocada de outro modo. A cidade, coma

ainda pelos detaihes d0 que pelo projeto o texto de Choay e datado Simplifica vimos, nut-rca é absolutamente sincrônica: a tecido urbano, a comportarnento
)
ao extrerno a questão das temporalidades urbanas numa evoluçBo linear, mostra dos citadinos, as poliricas de planificacao urbanisrica, econôrnica ou social de-

a hisrória de uma degradacao e faz do passado uma "pele de onagro" que se senvolvein-se segundo cranologias diferenres. Mas, ao mesmo tempo, a cidade
) está inteira no presente. Ou meihor, ela C inteiramente presentificada pot atores
encolhe corn a modernidade Reservando lugar aos fenomenos compensatórios
) sociais not quais se apóia toda a carga temporal.
de ressemantizaçao entretanto o texto conduz a reflexão a urn caminho malt
II)
produtivo, Para not. Os sinragmas ultrapassados encoorram-se englobados em Pars extrair as consequêocias analiricas disso, tomarei como base as Olrimas

novos sintagmas: as portas monumentais, que antes cram entradas de cidades, páginas dedicadas ao espaço econômico frances por Fernand Braudel. Dc acotdo

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POE IJMA NOVA HISTORIA UREANA
BERNARD LEPETT

aquelas que sua história ihes fornece. Al se inclui a Idéla de uma adaptação ativa,
corn dc esse espaco organ iza-se nurn triplo sisterna de formas: circiinscriçöes que se
realizada pelos atores sociais so sabot de seus equilIbrios e de suas capacidades,
encaixam (a localidade, a região, o mercado naciona!), uma rede de locais de povoa-
mento hierarquizados (da aldeia a capital) e conectados pot conjuntos de linhas de dos enquadramentos espaciais pot des herdados. Assim, essa leitura distingue-se

transporre de eficácia desigual e, enhim, zoneamencos m6ltiplos (interior oposto a daquela que é proposta pelos modelos de auto-organização, deslocando o centro

periferia, riorte oposro a sul, por exemplo). Todas essas formas espaciais, que se de gravidade da análise. Para me!hor destacar as diferenças, pode-se aprofundar a

comb inam de rnanejra vat jável conforme os lugares e os momentos, desenvolvem-se idéla precedence e acentuar seus contornos. Dadas a multiplicidade das formas

em duraçoes diferentes. Mas, como não é possivel irnaginar uma herança material antigas de organização do espaco e a divers jdade das temporalidades nas quais

que brotaria do nada, cada uma delas Se estende no tempo sern so!ução de continui- elas se inscrevem, a problema está menos em associar uma trajetória histórica e
urns evoluçao futura d0 que em estudat as modal idades de presentificaçao dos
dade. Numa analogia corn as camadas geológicas "presences" no relevo e na paisa-
gem, as formas espaciais antigas que Braudel designa como "teal idades sobrepostas passados. As sociedades urbanas nao se alojam em conchas vazias encontradas

umas as outras" constarn no presente. Acompanhando a metfora geomorfológica, pot acaso: procedem continuarnente a uma reatualizaçao e a uma mudança de

dirIarnos que o espaco braudeliano se apresenta como o resukado do rearranjo sentido das-formas antigas. Etas as reinterpretam. Tentemos dar a expressão urn

permanence de faihas rnCiltiplas. As formas antigas nele são constantemente recoma- sentido menos metafórico e dela extrair as consequncias.

das pelas sociedades em novas construçoes, tanto que, por exemplo, é necessária
LUGARES URBANOS E MEMORIA COLETIVA
uma geografia pr-histórica Para a compreensao dos desniveis da Franca atual.
Tat modelo me interessa por várias razôes, perfeitamente complementa-
Maurice Halbwacha estabelece, como sabemos, relaç6es dialéticas corn- --
res. Por urn lado, em seu centro estA o problema da construção do espaçO. Crejo
plexas entre os grupos sociais e o espaco que des ocupam. Quando urn gmpo
que não seria difIcil rnudarmos de escala Para abordar, de modo similar, ques-
coma posse de urn território, transforma-o a sua imagem - o espaco ratifica
toes relacionadas nao mais a organizacao regional, rnas ao urbanismo. Em Paris,
relaçOes sociais - e, ao mesmo tempo, é pressionado pela propria materialidade
a ocupação dos bulevares perifricos, das rnargens do Sena, dos Halles ou de
de sua criaçâo, a qual acaba obedecendo: "dc se fecha no interior do quadro que
antigos ate! iês do 10' arrondissement, por exemplo, decorre da mesma Iogica:
construiu". A concepcão é dinãmica, e o processo não pára no momento em que
antigas fornias espaciais assumem novas configuraçOes. Por outro, na teoria
esse fechamento se completa. 0 desenvolvimento moderno rompe a imediatez
braude!iana da mudança espacial encontramos as intuiçOes fundamentais que
da relaçao entre as divisOes sociais e a configuracão material de uma cidade. A
presidem os modelos de auto-organização. A todo momento, uma organizacão
proximidade petfeita s6 subsiste a margem das grandes correntes: nas pequenas
do tertitórjo origina-se do conj unto das configuracoes anteriores. No jogo das
cidades e nas periferias do mundo modernizado. Em todos os outros lugares, o
atualizacoes sucessivas das formas passadas em combinaçOes territoriais novas,
grupo evolui. Mas, se não o fax mais rápido e se manifesta "uma extraordinária
as sociedades usam menos as possibilidades fornecidas pot seu meio do que

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POR DMA NOVA HISTORJA URBANA
BE P, N A R r) LEPETIT

faculdade de inadaptaçao", 6 porque seus hábitos se apóiarn na configuraçao do por urn lado, a memória coletiva apóia-se em imagens espaciais; pot ourro,
desenhando sua forma no solo, os grupos sociais definem seu quadro espacial,
rneio exterior, cujo aspecto muda mais lentamente. Eis o território instalado
nele inserindo suas lernbranças. Em segundo lugar, essa relaçao dialética está na
junto corn as resistncjas, corn os pesos ternporais.
base de urn pensamento analógico: "Apenas a imagem do espaco, gracas a sua
Essa leitura habitual de urn texto canônico não me parece acm a i.inica
estabilidade, é que nos dá a ilusão de não mudar através do tempo e de reencon-
- possivel, nern talvez a mais dtil. De fato, urn comentário que considerasse ape-
trar o passado no presente; e é exatarnente assirn que se pode definir a memo-
nas a materialidade do espaco como vetor de sua inscrição no tempo simplifica-
na exageradarne nte a afirrnaçao. A forma de uma cidade pode mudar mais de- na". Se o espaco e a mernOria são definidos da mesma maneira, ambos eat-ao

pressa que o coração dos hornet-is. Renovern as casas, alit-them as ruas, transfor- sujeitos ao mesmo jiilgamento (des nos dão somente a ilusão de reencontrar o

mem as praças: "As pedras e os rnateriais nao Ihes oporão resistência. Mas os ontem no mornento present-c) e comportarn a mesma análise. 0 que é válido

grupos resistirão, e neles vocs enfrentarão a resistêricia, senão das pedras, ac, para a producao da rnernOria é válido para a producao do espaco e vice-versa. 0
lorigo estudo da mernOria ao qual se dedjca Halbwachs ressalta que o passado
rnenos de suas disposiçoes antigas". Reduzida a uma i'tnica sequência croflológi-
são posicionados não se conserva e não ressurge idntico. A cada et-spa de seu desenvolvirnento, a
ca, a evoluçao permanece simples: os habit-os sociais e os USOS

de modo que parecem durar mais d0 que as formas; a resistricia mudou de sociedade rernaneja suas lembranças de forma a adequa-las as condiçoes do

lugar. Ampliando-se a duraçao da observaçao, porém, a complexidade torna-se momento de seu funcionarnento. Assirn, num processo de reelaboraçao perma-

extrerna. Ja que todas as condutas de urn grupo social podern traduzir-se em nertte, de reconstrução perpétua, a mernória exprirne as verdades d0 passado
corn base nas do presente. Sendo rnemOria coletiva, é ut-il ao grupo social que
termos espaciais, cada lugar tern urn sentido que só 6 inteligivel para os rnem-
brosd0 grupo. Já que todas ascondutas do grupo são cristalizadas por hábjtos, dela se apodeta, é parte de sua prOpria definiçao, transforma-se a medida que o

elas registrarn configuraçoes espaciais passadas. As formas, pot sua vez, regis- grupo evolui.
0 mesmo acontece corn o espaco. Assim corno o Partenon da Roma impe-
tram antigas relaçoes sociais, veihas condutas, hábitos enraizados em territórios
aitida mais antigos. Assirn, o presente so tern sentido nas práticas que reatualizarn, rial abrigava todos as cult-os desde que fossem cultos, a sociedade admit-c todas as

coacomita n ternente, estruturas sociais e espaciais ultrapassadas e 6 não tanto formas (mesmo as mais antigas) desde que sejam formas, isto é, desde que possarn

na esfera dos pesos temporais quanto na da memória que convm inscrever o ocupar urn lugar em sets espaco, desde que interessern ainda aos homens de hoje,

espaço. AJérn disso, lernbremos que M. Halbwachs não é nern Henri Lefebvre, desde que eles as utilizern. 0 território é essencialmente uma rnemória, e seu
conteuldo é todo constituldo de formas passadas - isto é, de algumas dentre elas,
nern Raymond Ledrut, e suas frases sernpre cornentadas não constarn nurn tra-
tado de sociologia urbana, mas numa obra intitulada La mémoire collective. das quais 56 subsiste o que pode see compreendido pela sociedade que, em cada
época, trabaiha em seus quadros. Dois riscos decorrem de urns análise nesses
Nesse livro, o espaco possui, em relaçao a rnernória, urn duplo estatuto.
Primeiramente dc inscrevese na mesma relação dialética do social em geral: termos. A regressão ao infinito é o pnirneiro, pois a reapnopriaco presente do

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POR DMA NOVA HI5TORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

zação de uma das possibilidades semânricas de urn texto, conferindo-Ihe signifi-


espaco foi preparada por outras reaptoptiaçöes, que foram feitas em épocas prece-
cação no mundo do leiror. Porranro, assim corno a explicacão, a interpretacBo
dentes e das quais o espaço anterior já saira transformado. 0 segundo, simétrico,
do texto nEo tern urn fim ern si mesrna. Uma vez que a cornpreensão do eu passa
a explicaçao firsalisra, que leva a considerar necessária a evoluçBo do território em
pela compreensão dos mundos nos quais o eu se informa e se forma, eta se
vista de seu ültimo estágio. Arnbos os rjscos remerem a maneiras inadequadas de
romper a circularidade tautologica da explicaçBo, a qual insiste em afirmar que so completa na interpretacão do eu feita por urn sujeito que se compreende meihor
e de outra maneira. A compreensão do texto tern o caráter de uma apropriacão.
subsiste d0 passado, provisoriarnenre aqui!o de que o presente se reapropria. Para
Portanto inscreve-se nurna tensBo temporal. Atualizando a significacao de urn
rerminar, eu gostaria de sugerir que a análise herrnenêutica oferece métodos mais
texto, eta luta contra a distância que separa o leitor do sistema de valores em que
adequados para romper essa circular idade.
o texto se constrOi. Eta torna contemporneo e semelhante o que era diferente e

A HERMENEUTICA DAS CIDADES afastado no passado, "torna familiar o que era estrangeiro". Mas, ao mesmo
tempo, pot inscrever toda interpretaçâo no firn (provisOrio) de uma tradiçao

Aplicada aos textos enquanto discursos registrados pela escrita, a anMise interpretativa e pot reconhecer que é incapaz de restringir-se a urn objeto fecha-

herrnenêutica organiza-se corn base em dois pontos de rensão. 0 primeiro se do (a compreensão perfeita não é a reproducao literal do texto), a conduta

esrabelece entre a explicação e a interpretaçBo. A explicação é interna e pode hermenêurica explora a prOpria distância temporal. As caracterIsricas da inscri-

desenvolver-se segundo as regras da análise estrutural que a linguIstica aplica a ção temporal conjunta das forrnas urbanas e dos usos sociais da cidade, as mo-

lingua. A aná!ise estrutural não busca a intenção do autor, mas a do texto: dalidades de apropriacao do espaco urbano pelos grupos citadinos rais corno os

sentido deste está na organizaçao de seus elernenros, e o sentido de cada elernen- descrevi, permitem-.me supor que haveria interesse em desenvolver as conse-

to reside em sua capacidade de relacionar-se corn os outros e corn o todo da quências da analogia.

obra. Na tentativa de transpor para o urbanjsmo os métodos da linguIsrica, Urn apOlogo, corn que talvez eu me faça compreender rnelhor, substituirá

Françoise Clioay havia ressaltado de maneita convincente o sistema das corres- momentanearnente esse desenvolvimento. Imaginemos urn grupo de escritores

pondncias que se pode estabelecer entre a forma da cidade e a do discurso. ernpenhados, durante urn verâo chuvoso, numa espécie de jogo de salão: a

Mas, atendo-se ao que não passa de urn primeiro momento da análise redaçao coletiva de urn romance iinico, que seja o melhor possIvel. Estabelecern

hermenutica, sua tentativa não escapava a ilusão da existncia de usna objetiv- corno regra redigir, sucessivarnente, urn capIrulo cada urn, após inceirar-se do

dade textual fechada em si. Ora, o texto não é fechado. Não sO "abre urn que foi escrito ate chegar sua vez - diferentemente do que faziam os surrealisras

earninho de pensamenro" - para retornarmos uma express-ao de Paul Ricocur - corn a poesia aleatOria. 0 priIieiro romancista propOe uma situação, define as

eomo também convoca e espera a leitura, que fornece sua interpretacão. Esta personagens, escoihe os procedimentos literários que julga mais adequados. Os

deve set entendida como a execução de uma partitura musical: institui a atuali demais recebern uma narrariva ja iniciada. Logicarnente, dada a complexidade

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POR UMA NOVA HISTOIEIA URBANA
BERNARD LEP ETIT

crescente da intriga, o conjunto d0 que está redigido remete a uma pluralidade Por fim, destaca que essa ideologia do progresso hoje se tornou duvidosa e que

crescente de significaç6es, a medida que o romance progride. Cabe a cada escri- o resultado disso é a perda do sentido do presente, dividido entre urn passado

tor, na sua vez, determinar que nfo se deseja reproduzir e urn futuro indiscernIvel. Nesse contexto de "en-
0 que COflstjtuj a unjdade do romance naquele
momento, perceber uma lógica de progressao da narrativa, interpretar a mattia Se", Ricoeur propOe urn programa de ação. E preciso, por urn ]ado, "impedir
escrita para conferir-Ihe, quando vai escreve r, o sentido global mais conveniente que o horizonte de expectativa desapareca', isto é, munir-se de projetos deter-
A continuaçao do jogo. Entretanto, evidente que ele não ernprega apenas sua minados, acabados, modestos, escalonados corn precisão. Deve-se, pot outro

capacidade interpretativa. ApOs decidir a significaçao que convm, empenha o lado, "resistir a reduçao do espaço de expenincia", dejxando de considerar que o

que sabe a respeito da narração romanesca a firn de imaginar os elementos que passado está concluido para, ao contrário, dat vida a suas potencialidades não

contribuirão para tornar o romance rnelhor do que os outros. No final do realizadas. E eviderite que isso poe em questao nossos modos de pensar e de

capftulo escrito por ele, caracteres e situaçoes parecerBo diferentes. Nesse pro- fazer, pois trara-se, no limite, de considerar o futuro como fechado e necessário

cesso de escrita plural, cada romancista está, ao mesmo tempo, limitado pelo e o passado como aberto e contingente. Mas talvez esse seja, hoje, o rneio mais
que precede, mas tambm livre para dar-Ihe sentido, orientando a seu modo o seguro para a criação do sentido social.

curso da narrativa. A interpretação e a intervençao criadora constituern as duas "Tal a força do presente - equivalente a in iciativa no ârnbito da histO-
dirnensOes, inseparáveis, de sua atividade Se a cidade é urn texto, parece-me na: é eta que dá a nossas consideraç6es 6ticas e politicas sobre o futuro a força

mais pertinente e proveitoso analisa-la 1. luz de uma hermenêutica do que de necessánia para reativar as potencialidades nao realizadas do passado transmiti-

uma semiologia. 0 contei'ido do progransa de trabaiho que permitiria incorpo- do". Gostania de que urn adrninistradon tivesse a oporrunidade de let, ao
mesmo tempo, essa frase e uma outta, da lavra de urn engenheiro urbanista de
rar o hermeneuta no organizador ajnda naofoj estabelecido: creio que merece
uma reflexão coletjva. ontem: "Como a condiçao atUal de uma cidade não passa da conseqiiência de
todas as suas condiç6es anteriores, essa condiçBo representa todas as outras, e

Num texto publicado em 1986 e intitulado "L'initiarive", Paul Ricoeur, uma cidade construlda apenas corn vistas em seu presente exprirne virtual-

seguindo o historiador alernBo Reinhardt Koselleck, situa o presente histórico mente, de maneira transcendente, todo o seu passado". Ao justapor essas

na interseção de urn "espaço de experiéncj" corn urn "horizonte de expectati- duas frases, leio os fundarnentos de urn programa de açáo (e pot que nfo de
na interseção de urn passado corn urn futuro que o momento presente modelização?) inscnitos numa concepcão renovada do tempo.

atualiza. Ricoeur observa que o sentido desse momento nasce da variação do


valor respectivo atribuldo ao horizonte de expectativa e ao espaco de experiên- 2. Esso froso foi oscrira cm 1840 palo angenheiro sansimonisrajean Reynaad, no verbece Willes" da E,,cydapédie
cia no curso da histária, e que a filosofia das Luzes que devemos uma nova nauvdla se dietionnai,ephilosophiqur, ir-srifique. Iitré,aire at industrid offi-ant it tableau der aa,u,aissamvs

hun,aina, auXiX tilde, Paris, C. Gosselin, 1836-1841, r. VIII, pp. 676-687. (N. d0 Org.)
percepção de urn presente impulsionado por nosso horizonte de expectativa.

152
153
6. 0 PRESENTE DA HIsTORIA*

Pot efeito das modalidades atuais de circulação internacional das idéias,


dá-se uma atenção particular, alirnentada pot uma série de debates, ao "linguistic
turn" que teriam conhecido recentemenre as cincias sociais, muitas vezes aten-
tas em excesso a sua natureza discursiva1 . As pginas que seguem, entretanto,
tratarão de uma outra inflexão, telacionada nan mais a retóricademonstrativa, e
sim ao próprio contetido dos modelos éxplicativos - Se ainda se considera que
este pode ser dela destacado.
Reunamos indices, inicialmente, scm ordená-!os. Contra o paradigms
dominante da teoria econômica, que supôe a existéncia do equilIbrio dentro
de urn mercado concorrencial puro e perfeito e que postula a reversibilidade do
tempo, novas proposic6es foram elaboradas. Elas opöem a esse tempo lógico
urn tempo hjstórjco (o das inovaçöes técnicas, da dinâmica das organizacöes,
da formação das normas), socialmente produzido e marcado pot irreversibili-

"Le present de l'histoire", em B. Lepetit (dir.), Lesformei de l'exjsérienre. Oneautrehistoiresociak, Paris, Albin
Michel, 1995, pp. 273-298.
1. Para acompanhar, pot exemplo, urn dos ,iltimos debates: G. M. Spiegel, "History. Historicism and the Social
Logic of the Text its the Middle Ages", Spersdum. XV (1990), pp. 59-86. L. Stone, "History and Post-
Modernism", Past and Present, n. 131, mar. 1991, PP. 217-218. P. Joyce, C. Kelly, "History and Post-
Modernism". Past andPrrsent, n. 133, nov. 1991, pp. 204-213.

- 155 )
BERNARD LE PETIT POR uMA NOVA HISTORIA URBANA

)
dades A complexidade e a imprevisiblidade do tempo sup5ern a analise das curto das situaçóes de conflito ou. de dendncia ao tempo pouco maieávei das
) historias e das trajetorias jndividuais instituctonals socletarlas em que en atribuiçoes sociais. Trata-se tambm de contar uma hisrória para manifestar como,

) tram a forrnaçao da memória, Os prOCeSSOS de aprendizagem, as modal idades no encadearnento das cenas particulates de que a situação é feita, constró i-se uma

) de antecipaço que os instituem e os afetam, em contrapartida2. Diferindo dos ordetn social que permite o prosseguimento da interação entre Os homens. Uma
mtodos de modelizaçao clssica dos sistemas espaciais, modelos mais recentes ültirna viagem nos Ievará (como se esperava, taJvez) ao PacIfico do final do século
)
da dinâmica urbana apóiam-se em teorias da auto-organizacao. A partir de )(VIII. Marshall Sahiins al encontra, no contaro fatal para o Capitão Cook entre
- regras de comportarnento dos atores emprestadas a teoria urbana cissica e a os havaianos e as tripulacöes da marinha britânica, o acontecimento cuja análise
observaçao empIrica, simularn evoluçöes nao previstas. Em mornentos de ins- ihe permite deduzir a oposicão entre estrutura e hisrória: "0 que os antropólogos
) tabilidade, peqilenas flutuaçoes podem conduzir o sistema para longe de seu denominam estrutura", escreve dc, 'é urn objeto histórico". A dernonstraçâo é
) estado iriicial rumo a uma nova condiçao estavel provisorla que por sua vez suril e difIcil de resumir em poucas palavras. Notaremos somente que cia poe em

) abre a possibilidade de novas bifurcaçöes Nesse caso o processo de urbaniza discussão os pares conceituais (passado e presente, continuidade e mudança, aeon-

) ção e dependente de sua propria marcha a configuracao de uma cidade resulta tecimento e estrutura...) que Organizam o conhecimento histórico. Pot urn lado,
do encadearnento do conjunro das configuraçóes precedentes. Mas nem por as categorias culturais, cujo conjunto forma a estrutura, são atuantes: elas infor-
)
Isso o futuro e prcvisivei3 rnam a histOria e dão sentido aos fatos. Por outro, a realizaçao das categorias em
Desloquerno-nos uma terceira vez. Eis urn modelo recente de sociologia da ato as opOe aos desmentidos do mundo, e assim aos remanejamentos que dc
ação dc propöe ver as aç6es hurnanas como uma serie de sequenclas em que as impOe ao sistema cultural que o revela. Na ação, portanto, a estrutura se rep roduz
pessoas engajadas em momeritos sucessivos devern mobilizar em si competencias historicarnente, isto é, expOe-se e se transforma: "se as significac6es fazem os fatos,
diversas para realizar, na medida dos encontros corn as circunstanclas uma ade a situação faz as significaç6es"5.

5 quação a sltuacaopresente 0 destaque dado aqut as escançöes temporais Os trabalhos que acabam de set evocados confirmarn a atualidade do

) uma oposlçao visivel com os paradigmas sociologicos anteriores que acentuavarn ponto de vista histórico nas ciências sociais. Utilizando escalas cronoiogicas
a constaricla dos agentes relacionando a parricularmente as propriedades estrutu diferentes e modelos de temporalidade diversos, antropologia, economia, geo-
)
Ii rais de longa duraçao do campo social Não se trata somente de opor o tempo grafia, sociologia experirnentam urn "corstorno histórico" (Se elsa metáfora to-

2.R. Boyer, B.ChavancecO. Godard (dir) L sf d 1i cystb lit econom e Paris, 1991

) 3 B Lip c tireD P u m ain (di r.), Tempo alt bam ey, Pa ris 1993 5. M. Sahiins, Islands ofHiotoiy. Chicago, 1985 (toaducao francesu, Paris, 1989, ritaçlo nap. 7 dessa rradug5o).
4 L B h a kyeL Th6venor, De lajuiefi iaton Let iconomiad Ja grandmr, Paris, 1991 A t ç!o foi extraida Sobre ease Iivro, yri Fr. Harrog e C. Lenciud, "Rigimes dhisroriciti", em A. Doria eN. Dodille (orgs.), L'dtat
d0 exccientc andlise redigida por Nicolas Dodier, "gie dons piusieurs mondes", Critique. jun-juL 1991. pp. des lieux en scienria finales, Paris, 1993, Pp. 18-38 (ciracao t50P 36), e sobrerudo G. Lenclod, "Li monde
427-458 (rirocaonap.427;ossubiinhadossaoobraminha). scion Sablins", Gradira, n. 9, 1991, pp. 49-62.
) -

II

156 157
)
BERNARD LEPETT POP, UMA NOVA HI5TORIA URBANA

pogiafica jâ não estâ desgastada). Não so, como destaca Jean-Claude Passeron, burgueses, correspondncias administrativas e relatOrios de poilcia, memoriais e
porque rodas visam o mundo histOrico e pautam suas explicaçOes no recorte de brochuras fornecem a mesma explicaçao: a crise das subsistências resulta de uma
urn contexto no desenrolar nâo reprodutIvel dos fen6menos6. Mas porque esta- conspiraçao. As figuras sociais dos conspiradores, encarnados diferenrernente
belecem a diacronia como fator explicativo fundamental: os estados passados do em cada episOdio, são intercambiáveis: ministros, financistas, fornecedores, co-
sistema e as modalidades presentes de sua atualização na ação - on as vexes merciantes de graos, moleiros, padeiros... Nos anos de 1760, porém, uma mu-
apenas na situaçao - do momento ocuparn o centro dos rnodelos analIticos. dança afeta urn modelo explicativo que, alias, nem se havia configurado. No
Nesseponto, talvez se pense que you defender sua importacão direta para.a outono de 1768, quando duplicara a preco do pao, urn cartaz sedicioso fixado
histOria, conforrne práticas mil vezes adotadas pela disciplina. Meu ponto de nas Paredes de Paris proclamava que "no tempo presence, nao se podia atribuir 0
vista será urn pouco difererite. Ele sup6e que a troca de objecOes constitui uma alto preco do pão nem as guerras, nem a uma carência real de trigo; mas que não
das formas possiveis da colaboraçao interdisciplinar. Nesse caso, pode-se empre- havia Rei, porque o rei era comerciante de trigo". Diante da penetracao da
gar os modems da "explicaclo histórica" hoje elabotados pelas cjêncjas sociais, econornia de mercado (a liberalizaçao do comércio dos grãos data de 1763-
como por contagio, de duas maneiras. Por urn lado, urilizando-os pela opor- 1764), uma antiga aliança acabava de romper-se. Enquanto, antes, a fixação dos
tunidade que oferecem de apreciar as modalidades segundo as quais a hist6ria precos dos grãos era uma questão morale poiltica, e uma solidariedade de fato e
diz o tempo (a histOria é então colocada em posicao de fazer objecdes). Por de opiniao, em tempos de crise, unia a polIcia do rei e a povo consumidor de
outro, servindo-se deles para o remanejamento que, se levados em conta, eles cereais, um duplo processo de desencantamento se inicia: "Cada um para a seu
induzern a fazer no sistema das categorias temporais comumente utilizadas pela lado, a rei e o povo distanciarn-se dos eios e das obrigaçOes de tipo familiar que
história (esta é então colocada em posição de receber objeçoes). A aridez dessas os uniam are então". Uma crise dasconvençOes antigas(o rei é o pai dos pobres)
consideraçoes motiva-nos a iniciar comentando alguns dossis. organiza, de acordo corn novas modalidades, o cia social nas esferas econOmica e
polItica que essa crise tende a separar7. Em sua grande maioria, as proposicOes
ECONOMIA DAS CONVENçOES, SOCIOLOGIA DAS CIDADES da economia das convenç5es (ou da sociologia das cidades, a qual tenrarei mos-
trar que C outro desenvolvimento passIvel de urn mesmo modelo) procuram
0 scuIo )II, como se sabe, fol menos dramático que o precedente trazer uma resposta a quesrao sobre a que faz a sociedade manter-se coesa.
quanto a quesrao das subsistências. Várias carências, entretanto, ainda afetam, A amplitude da quesrao requer mais especificacOes. Podemos buscá-las
no reino, regiOes mais ou menos numerosas e extensas: a Guerra das Farinhas de seguindo, por exemplo, a análise dos mercados financeiros proposta par André
1775, por exemplo, resulta de uma delas. Jornais e cartas de aristocratas ou de

7. S. Kaplan. Lu cornplotdufanünu: hiutuire dune rumeurauXllll! ,ièrle, Paris, 1982 (ciracSo nap. 56; texto do
6.J..C. Passeron, LeRaisonnanenooc/afogique. L'espace nun puppei-ien u/u rajconnerne,,t,,aEure, Paris, 1991. cartaz,edicioso citado nap. 40).

158 159

0
)
BERNARD LEPETIT P0K DMA NOVA HISTORIA URBANA

Orléan. Nesses mercados, os valores sofrern variaçôes aleatórias. Mas teorica- encontram fazer frente a incerteza. "0 objeto teórico que tenta levar em conta -
rnente existem dois tipos de imprevistos e duas situaçöes correspondentes. No essa fraqueza.dos mercados firianceiros é a convenção [ ... ] que permite afastar,
primeiro caso, os imprevistos são conforunes a lei de funcionamento do merca- provisoriamente, as forças destruidoras da suspeita e da desconfiança"8.
do no rnornenro: cada urn encontra equivalentes na série dos valores passados; A disputa acadêrnica, o mercado dos graDs, as relaçoes diplomáticas e a

) em conjunto, des são conformes as eventual idades previstas, segundo uma lei sociedade como urn tudo podem set analisados em termos semeihantes. Os
de probabilidade conhecida. Não requerern resposra inovadota da paste dos atores. desastres do retraimento, ou então da desconfiança e da imitação generalizada
No segundo caso, quando os imprevistos são chamados estruturais, seu apare- são conrrolados pela existência de convençöes que delimitam antecipadarnente
cimento corresponde a uma modificaçao da lei de probabilidade original e a o campo dos possiveis, garantem no contexto a diversidade das opini6es e dos
uma mudança no funcionarnento do mercado. Os atores defrontarn-se corn uma comportameritos, permitem sua coordenaçao. Usando termos extraidos da psico-
sltuação de incerteza e são forçados a niodificar sua estratégia, cabendo-Ihes logia dos atores, nós os designaremos coma "sisremas de expectarivas recIpro-
decidir de que maneira. 0 problema nasce do fato de que não existe método cas sobre as cornpetências e os comportamentos concebidos como sendo natu-
que permita decidir corn certeza a natureza dos imprevistos do mornento. Diante rais e para serem naturais" '. Tenternos detalhar suas caracterIsticas:
d0 radicairnente novo, para cada urn dos agenres ha apenas duas condutas pos- 1.As convençöes são produto da interação social. A análise das situaçöes
sIvejs: o retrajrneflto (mas este ameaça, no firn, a própria existência do merca- de pânico tern aqui o mérito das dernonstraçoes pelos extrernos'°. A sociedade
do) ou a imiração. Nenhum dos atores, na certeza de nada saber, pode assumir pulveriza-se em átornos individuais, mas, ao mesrno tempo, uma nova forma
o risco de crer que os outros se encontram na mesma situação. A tinica conduta de totalizaçao social toma corpo numa convenção local (na rnaioria das vezes,
racional consiste em interpretar como Indices os comportamentosvizinhos. Por globalmente contraproducente) de comportamento.
polarização, as condutas generalizadas de imitação resultam flurna crença uflâni- 2. As convenç6es apresentam-se aos atores sob uma forma objetiva. Pot
me, que se expressa num novo valor de equilIbrio, imprevisIvel no inIciu, que urn lado, porque elas não são apenas "representaçöes coletivas": tornam forma
resulta de urn processo de objetivacao realizado ao longo da história singular da em coisas (os celeiros repietos; os boletins que registrarn os precos dos princi-
dinârnica mirnética. Valor frãgil, que o simples rumor da ocorrência possivel de pais cereais) e dão apoio a açöes que asseguram sua objetivacão (a presença fisica
urn desses eventos raros mas capazes de desorganizar o conjunto do mercado dosgrãos nos mercados, pronta a fracionar as entregas e arriscar-se ao apodreci-
(rnodificaçao de poiltica econômica, tensão internacional) basta para arrastar
bruscarnente para urn outro nfveL A falta do estabilização efkaz de qualquer 8. A. OMan, "Pour ,me approche cognitive des convention, &onomiques", Revue iconomique, vol. 40, n. 2, mar.
representaçao comurn submete o mercado, então; a urn novo ciclo de descon- 1989, pp. 241-277 (citacso nap. 265).
9. R. Salais, "lJanalyse konomique des conventions de travail", Revue économique, vol. 40, n. 2, mar. 1989, Pp.
fiança. Sern certo grau de coordenação a priori das previsoes, o mercado finan- 199-240 (citacso nap. 231).
ceiro é uma instituição que no permite aos agentes econômicos que nela se 50. 3.-P. Dupuy, Lapanique, Paris, 1991.

160 161
BERNARD LE PET IT POR DMA NOVA HISTORIA URBANA

menro; a pilhagem das padarias). Por outro, precisathente porque, a partir do Quando define a noção de "ação que convérn", Laurent Thé'enot consi-
rnornento em que elas não sâo mais naturais, em que são discutidas e pensadas, dera trés níveis de especificacao das açOes: a gesto Intirno que responde a cxi-
enfim, quando se questiona sua objetividade, elas não são mais convençôes e gências de conveniéncia pessoal, a ação convenienre que assegura a coordenaçao
não permitem mais que se contenha a desconfiauça. local corn outrem, a ação justificável, enfim, que depende de princfpios gerais
3. As convençöes são militiplas porque a sociedade é complexa e seus de legitimacao. Essa mini'icia analItica não é acompanha da, por oposicão, de
membros são convocados para "agir em vários mundos". 0 modelo de sociolo- nenhurna graduaçao na escala temporal da ação. 0 ajuste entre a vontade indivi-
gia da ação proposto por Luc Boltanski e Laurent Thévenor mostra assirn a dual e a norma coletiva, entre o objeto do projero e as caracterIsticas da siruação
preselsça, nas sociedades ocidenrais, de logical e comporramentos diférentes, do momento opera-se num present&2.
cada uma incluindo princIpios de legitimidade particulates". A exigéncia da A noção de ajuste é central para se compreender a natureza desse presen--
coordenaçao social supOe que possa ser justificada, a partir de cada uma das cites te. A sociologia das cjdades irnagina a ação coma uma sequéncia de momentos
que eles identificam (mundo domésrico, mundo cIvico, mundo comercial ... ), a pelos quais as atores devem passar: momentos de disputa "najustiça" durante os
ação que convém. A pluralidade das convençOes, que guiam Os comportarnentos quais a recurso a convençOes contraditOrias ameaça desfzer a elo social (em
e permitem sua legitimação, obriga a justificaçao e ao compromisso quegaran- qualquer escala em que ele esteja ameaçado), momentos de paz "na justeza"
tern o prosseguimento do jogo social. caracterizados pela auséncia de interrogacoes sobre as modalidades do cia e
sobre a convenção que o rege. Sabre as segundos, não ha muito a dizer. Consti-
A CIDADE IMOVEL tuem esrados duráveis ao longa dos quais nenhurn ator envolvido se apOia num
princIpiodelegitimaçao-alternativo para- denunciar o-caráter "convencional",
Não ha certeza de que a economia das convençOes e a sociologia das isto é, arbitrário da convenção existente. A formaçao social considerada e cada
cidades comportam dimensOes temporais idénticas. Foram elaboradas como
urn de seus membros persistem em esrar num presente que dura: as pessoas
alternativas para modelos dissemjnáveis demais (análise estrarégica e determina-
felizes não tern histOria. Os primeiros constituem a objeto eleiro da sociologia.
ção pelo ha bitus em sociologia; equilIbrio mercadologico aremporal e previsOes
Os pesquisadores privilegiarn situaçoes de crise (urn conflito numa ofici-
racionajs em economia), para que possam destacar as mesmas coisas corn a
na, tensOes numa instiruiçãa) ou de denOncia (as carras de proresra enviadas aos
rnesma intensidade, 0 ponto de vista completamente exterior que adoro e a jarnais, queixas examinadas no imbito da medicina do trabalho) pot varias
uso que pretendo fazer da proposicão delas permitern que as rrare de maneira razfles. Inicialrnente, par postulado epistemológico. 0 projeto da sociologia das
Curnulatjva

12. LThvenor. "L'aaion qai convinr", em P Pharo e L. Qudré (dir.). Lrrfar-mesdrl'actian (Rzisaarpmtiqurs 1),
11. BoIrarskj aThtvenot, rp. cit., 1991. Paris, 1990, pp. 39-69.

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BERNARD LEP ET IT POE UMA NOVA HI5TORIA URBANA

cidades é baseado numa dupia recusa: nem os grupos sociais nem os indivfduos nao estava mais na posição, caracteristica dos estados de paz, de aderir perfeita-
sem qualidade são consjderados como personagens pertinentes; a opç habi- mente a cia mesma. Sempre se produz alga novo na ação, mas a sociedade está
tual entre o julgamento comum (aquele de que as pessoas são capazes) e a permanentemente engajada num processo de reduçao pot ajuste da novidade. 0
qualificação cientifica 6 recusada. Para respeitar essas duas condiçoes, a i1nica interminável trabalho interpretativo dos atores tern apenas uma funçao: realizar,
soluçao é consjderar o trabalho interpretativo das pessoas e as cornpetências que em seqüências tao breves quanto possIvei, uma adequação a urns situação pre-
elas são capazes de mob jljzar no jnstante das situaçóes. Depois, por comodidade sente sempre adulterada. A trajetoria social tern algo a ver corn a flecha de
metodologica: o compromisso que se COflStróI locairnente revela as tensoes que Zenão: a decomposição de seu movimento comprova sua irnobilidade°.
existern entr e vários modelos possiveis de legitimacão das posicöes individuais Duas caracterfsticas reforçarn o caráter aparenternente eterno do presente
(porexemplo, nurn confljto de oficina: defender as leis do mercado ou as condi- da sociologia das cidades. Urna lei tura sintomática do dossiê nao pode deixar de
çöes de trabalho ou a democracja sindical) e obriga a expiicit-las. apontar a prirneira: a frequncia do emprego da palavra e da rnetáfora da oscila-
Em cada situação, i urn sentido do tempo que esrá em jogo. Cada prin- ção. Se Os stores passarn de urn estado de justica a uma situação de crise ou
cipio de legitimaçao compreende urns dimensão temporal: "as dispositivos in- inversamente, se mudam de regime de Iegitimaçao, des "oscilam". Nenhurn
dustriais sustentam a possibilidade de uma projecão sobre o futuro e de urn processo, aqui, rnas a instanraneidade de uma mudança que vern romper, assim
deslocarnento espacial, os dispositivos domésticos perrnitefli estabelecer cbs como Se passa da obscuridade a luz ou inversamente acionando urn interrupror,
corn o passado e urn enraizamento local dos recursos especIficos"3 - é do senso o presente durávei dos estados ou o presente constantemente ajustado das situ-
comurn. Para julgar o presente, e nele tomar posicao, as atores recorrem a esses açoes. 'As pessoas devern, de fato, para enfrentar o mundo, proceder a urn
modelos temporais. Acrescentarn-ihes uma lernbrança das sititaç6espassadas, continua vaivérn entre a reflexãc e a açBo, oscilando sern cessar entre rnornentoS -
organizada segundo a profuridiclade cronoi6gica que julgam pertinente, em rela- de controle consciente e mornentos em que o apelo do presente as embarca no
tos sign ificativosla 0 tempo da sociologia das cidades & portanto, exatamente curso das coisas" IG . A segunda caracteristica foi observada diversas vezes'7. En-
o Conttário de uma duraçao: é no instante de p6-lo a prova que se efetua a

evocação legitimadora dos esquernas temporais e das histórias que convêm.


Meihor: a recusa da sucessão cronológica termifla al. 0 que se faz no compro- 15. IdInrico cuidado em nao destacar a futuro dos inrençBes dos contornos da ado num presente sempre
conrinuado ens Thivenot, op. cit., 1990, pp. 48-50.
misso que se constrój na situação é preencher urn distanciamento, é anular urn
16. Essa frsse urns d05 ,iLtimas d0 conclusao de Bokanski eThivenor, op. cit., 1991 (p. 438). Ma,
momento em que a formaçao social considerada (quaiquer que seja sua escala) poderiamos muItiplicarosexemplosThavenot. op. cit., 1990, p.56; L. Bolrarnki, L'amorretlajusticc
comme cornpdtences. Trois coca is tie sociologic tie l'action, Paris, 1990. p. 143 (duas ocorrErscias) etc.
13.Boltonaki eThvenor, op. cit.,
1991. 17.S. Cerutri, "Pragmarique cc histoire cc dent Irs sociologues soar capables", AsrnaL's ESC nov.-dez. 1991, pp.
14.N. Dodier, L'expe,thtmidjcalo Eaaaideoociologiedtl'ncercictdujugement. Paris, 1993 (parriculirrnente pp. 1437-1445. B. Lepetit, "La sociiti cornrne on rout. Sur rrois formes d'analyse de La toraltti sociale".
43.45) Congresso Incernacional 4 historia a debate' Santiago de Composrela, jul. 1993 (no prelo).

164 165
Poe UMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

volvidos nutna atividade de "bricolagem", os atores sociais dos modelos de em primeiro lugar, do próprio ternpo"19. Os limites de uma explicacBo basea-
sociologia das cidades tentarn ajustar dana imitaçBo recorrente nao precisam ser longamente explicados: a impossi-
as circunstâiicjas do momento os priricI-
pios de açöes legitimadas que convêm. Fazendo isso, acionam convençôes, mas, bilidade de conceber a mudança soma-se, entre as contradiçóes iógicas, a cir-

na sequência de seus encontros localizados, não parriciparn de sua elaboraçao. cuiaridade das definiçoes ja notada. Portanto são os suportes e as modaiidades

As convencoes legitimadoras, que servem ao meSmo tempo aos sociologos como dessa reireraçBo que irnportam.
base Para Dma CasuIsti ca e aos atores como recursos, provêrn, nesses modelos, A convençBo, como dissemos, nao pertence apenas ao universo das re-
de uma fliosofi a politica elaborada aIttigamerste (alias desligada de suas condi- presentacöes. Ela subentende regras que dão uma formajuridica on administra-
çöes históricas de produçao): elas parecem inquebrantáveis para sempre. 0 pas- tiva as reiaçóes sociais, informa as categorias que permitem icr a experiCncia dos
sado d inacessIvel atores e que a estruturam, apóia-se em objetos que constituem o âmbito ou o
Deve-se a Robert Saiais uma reflexffo mais detaihada sobre a gênese das meio da açBo. Quem desejasse ser menos abstrato poderia aplicar a grade prece-
convencö es e sobre sua forma de ser no tempo dente ao nascimento da psiquiatria (definicão da loucura, instituição dos ezra-
8. Sobre as geneses, ha pouco a
dizer. Uma Convenção nasce de uma coordenação bern-sucedida no bojo de belecimentos de confmnameriro, criaçBo de urn apareiho administrativo e
pOpuiaçö es terapêutico de tratarnento, desenvoivirnento dos grupos profissionais corres-
que agem nurna seqüencia de situaçôes que apresentam aflalOgiaS
umas corn as outras Se nBc, ha nenhuma forte razBo Para fazer ou pensar pondentes) ou então a invenção do desemprego. Cada urn desses objetos, cada
diferencemente do que farBo os outros, cada urn repetirá seu comportamento uma dessas instituiçöes on dessas regras se eiabora num contexto particular (o
anterior, assim crjando uma convençao pela regularidade das repetiçoes, sern da reforma social tai como se define nos rneios da assistencia piibiica, das admi-
-- que seja necessBr ja - - - nisrraç6es do- trabaiho e da ciCncia social na Europa e nos Estados Unidos no - -
uma hairnoiiizaço. A exp!icacao 6 curta, pois a circulari-
dade demonstrativa é semeihant a coordenaçao bem-sucedida fabrica a con- firn do s&ulo XIX, no caso do desemprego). Mas cada urn deles dura mais
vençBo pot reiteraçao , maE a convençBo designa a posteriori oS cornpromissos tempo que o contexto que o engendrou: Pot seu intermddio, permanenternen-

sólidos (para faiar a verdade, é dif1ii imaginar como uma coorderiação pode te, "le mort saisit Ic vif"20. Eles nao impöem apenas aos uses a força do hábito:

ser consjderada bem-sucedida Iota de urn quadro convencional preexistente a ja que sua substituiçao supöe urn custo (econôrnico, social, simbólico), a Socie-
cia). Sea dificuidade dade manifesta uma extraordinária resistência a mudança.
mal resoiyjda, é porque 0 essenCial esta em outra parte,
na arençao dada a
duraçao das convençöes. 0 fenômeno de autofortalecirnen-
to, que estB na origem do surgimento das convençôes, exphca deste modo a
19. Ibid., p. 215.
- estabilidade
delas: pot repetição, Pot rotina, elas "extraern sua estabjljdade, 20. ExpressSo da linguagem juridica: o herdeiro adquire imediaramenre os hens do defunco. No cexco, tram-se
de uma refe,Encia figurada S incocporacSo, auto ,,ovo contexto, de convencOes, insrieuicSes e regras
18. R. S,I,is, up. dr, 1989. supostamenre ulrrapassadas. (N. daT.)

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BERNARD LEPETT Port DMA NOVA HISTORIA URBANA

Na evoluçao social, portanto, os objeto "carregam sua imobilidade e sua particulatmente o estabelecimento de uma nova ordem industrial oferecem a
invariância [ ... ]. Transportam no tempo e dão urn testemunho sobre 0 comum oportunidade para isso. 0 episódio ainda apresenta a vantagern de ter sido
acordo" original2l . 0 recurso a noçao de testemunho, entretanto, poderia enga- objeto de vários estudos tecentes, conduzidos segundo problemáticas pr6xi
nar. Pois as restemunhas rapidamente emudecern. 0 desprendimento dos obje- mas daquela que acabamos de evocar, tanto que as operacöes de traduçao de
tos em relaçao ao mornento de sua elaboraçao não tern corno dnico resultado, urn universo analItico para o oucro não serão muito arriscadas 52.
por urn efeito quase mecânico, ampliar a estabjljdade das normas. Uma vez que Solicitado a fornecer uma apreciação sobre a indi:istria da fiaçao de Lille
elas resistern ao desaparecimento e a renovaç5o das circunsrâncias e das pessoas que estava em crise, o subprefeito da cidade explicava, no ano IX, que sua
que as instjtufram perdem sua significaçao iniciat e contribuem para tornar a repuracao, antigamente, "talvez se devesse menos a superioridade de suas pro-
onvençao opaca para aquelas que dela participam. 0 peso do passado torna-se duçoes do que a segurança inspirada pelos regulamentos de vigilancia a que cia
tanto mais extrernado quanto mais extrai sua força de seu esquecimento. estava sujeira; esses regulamentos produziam no espirito dos compradores mais
ou menos o mesmo efeito que aquele produzido pelo teste e o controle no
CRIsE DAS CONYENçOES, ELAB0RAcA0 DA CIDADE comél-cio dos oficios de ouro e prata". A arsálise aponta ao mesmo tempo urna
desordem e uma maneira de remediá-la: restaurar a confiança restabelecendo o
A economia das convençöes e a sociologia das cidades organizam-se, respeito aos regulamentos. 0 fim do Diretório e o inIcio do Consulado de
ssim, segundo duas temporalidades disjuntas. Normas ou recursos, Os prin- fato são marcados pela multiplicacao das dencincias que manifestam que ne-
cfpios Iegitirnador05 vrn de urn passado que se prolonga: constituldos pot nhuma ordem nova veio substituir a aritiga ordem corporativa. DaI resulta a
acumulaçao (de objetos, instituiçôes, condutas), des dcvem perpetuar-se pela guerra de todos contra todos que se traduz pela irnitação dos produtos, as
força da evidêncja (isto 6, por não se definirern como otiundos do passado).
rupturas de contrato, os roubos de matéria-prima etc. A boa-f6 não existe mais
Os atores, scm mernória, recordam num continuo presente, reproduzindo
nas relaçoes de producao e de troca.
normas ou legitima ndo posiçôes, uma herança aqiial permanecern cegos. Apa-
Uma série de medidas tenta sanar isso. Contra o princfpio da livre tela-
nhado entre o imedjatismo dos ajustes e a monotonia dos princIpios de ção entre agentes econômicos, elas criam urna nova rede institucional. A porta-
Iegitirna o o aisrema deve set
testado em contaro corn as situaçöes de crise e
22. Organizei urn dossiO que abro agora corn: A. Cotrereau, "Justice cc injustice ordinaire sur lea lieux de
de reelaboraçao das convençöes, quando o questionamento dos princIpios
travail d'aprOs Les audiences prud'hornrnaks (1806-1866)", Le mou,,cmcnt racial, n. 141, out-dec.
antigos de legitin-
jaçao e a falta (ou a multiplicidade) das referências possIveis 1987, pp. 25-59; C. Bossenga, "La Revolution française cties corporations: crois exemples [illois",
se opöem ao ajuste duráyel das condutas. Os desdobramentos da Revoluçao e Anna/er ESC, mar.-abr. 1988, pp. 405-426J.-P. Hirsch, Lea dour ,Area na crmmerce. Entreprire et lintinciOn
,Ja,,, to rIgiots lilt,, joe (1780-1860), Paris, 1991; A. Conereau, "Esprir public cc capucirl de jugrr. La
stabilisation d'un espace public en France aux lendemains de la Rivolurion", cm Cotrcreau (dir.), Pouvoir
21. I/.'id., p. 216
et légitimialo (Rairvnoprariqueo 3), Paris, 1992, pp. 239-273.

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BERNARD LEPETIT POR DMA NOVA Hc5TORIA URBANA

na do dia 3 do njvoso do ano XI (26 de dezembro de 1802) restabetece as julgamento pot demanda de uma fiandeira. Tendo se despedido e recusando-se
câmaras de comcircio suprimidas em outubro de 1791. A grande lei "nelativa as a limpar sna máquina de fiat n-iecânica ao partir, pois ja o havia feito na chega-
manufaturas, fábrjcas c oficinas" do dia 22 do germinal do ano XI (12 dc abnil da, eta teve seu pagamento retido e foi privada da caderneta scm a qual não
de 1803) institui novas assemblciias profissionais, as "câmaras consuttivas das poderia apresentar-se em outro emprego. 0 veredito do julgamento (a conde-
manufaturas, fábrjcas, artcs e ofIcios". Em 1806, atendendo aos pedidos da naçâo do manufaturador) importa menos, aqui, do que a argumentacão das
câmara de comdrcjo local, o imperador cria em Lyon, em caráter experimental, partes. Segundo o parrão, uma regra exisre: as máquinas devem ser timpas pe!os
o primeiro Conseil de Prud'hommes23. A nova jurisdicao, cujas competéncias operários na salda, quatquer que seja o estado em que as tenham encontrado na
são definidas por uma lei de marco de 1806 e urn decrero de junho de 1809, chegada. Recusando a regra, a fiandeira introduz uma desordem geral que con-
implants-se rapidamente nas cidades fabris: contam-se duas em 1806, 4 em vém reprimir ("essa medida the foi aplicada [ ... } pela necessidade de dat aos
1807, 11 em 1808, 14 em 1809, 33 em 1814. Todas essas criaçöes apresentam outros operários o exempto da sitbordinaçao") e ameaça criar uma nova ordem,
dois pontos comuns. Inicialmente respondem a uma fortissirna demanda da nociva ("ter-se-ia introduzido em seu estabelecimento uma esp&ie de ordem
parte dos agentes econômicos. 0 conselho dos prud'hommes de Lyon registra, contrária, da qual os operários nao deixariam de tirar partido, por mais abusiva
em 1807, 852 casos, c o de Rouen registra 1701 em seu primeiro ano de que fosse"). A fiandeira sustenta o contrário: na chegada, cia não assumiu a
funcionaniento e mais de 3000 em 1818. Em Lute, a criação da câmara das obrigação de limpar a máquina na saida; "cia não foi instruida" - peto patrao
manufaturas permite aos iridustriais da fiaçao locais obter o reconhecimento da "dos costumes que etc invoc'. Aldm do mais, tres outros operários haviam
associaçao Voluntária que desejavam criar ha vários anos para regutamentar c anteriormente deixado a mesma máquina scm limpá-la, nao sofrendo nenhuma
fiscatizar a profissao. Pojs todas essas instituiçöes participam —segundo ponto - sançlo pot isso24. - - - - -
da elaboraçao de novas normas de conduta industrial. Todas respondern a ambi- Esse episódio envolve formação dc costumes: não se trata, para as duas
ção, expressa pot Chaptal na concluslo do relatório apresentado aos cônsules partes, de aplicar rcgras, mas de criá-tas. Tal operação se reatiza primeiramente
- em marco de 1802, de substituir "por negulamentos sensatos, por leis proteto- por meio dc uma reescritura do passado, destinada a dar sentido a ocorrência
nas, a anarquia e a arbitrariedade que devorarn as oficinas". E ao estisdo das em questão. Para o dono da fábrica, o episódio intervm como uma ruptura,
modatidades de restabelecjmenro das convençöcs que ci preciso agora dedicar-se. interrompendo costumes estabelecidos, para inaugurar outros. Para a fiandeira,
Partamos de urn exemplo, minuciosaniente analisado por Main Cotte- ao contrário, dc prolonga uma send inaugurada peta prática dos tths operanDs
teats. A 15 de feverejro de 1816,0 conselho dosprud'homrnes de Amiens faa urn precedentes: o episódio ci interpretado como uma rccorrência, genadora de cos-
tume. Entre os dois re!atos, o julgamento dos prud'hommes dividiu-se, mas, no

23. Tribunal de exceçio compusco por nsagiscradua eleiroa e encarregado dejulgar diverg8ncias rrabalhisras encre
purrara eemprrgadou. (N. daT.) 24.A. Correreau, op. cit., 1987, pp. 26-32.

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P0R UMA NOVA HI5TORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

de maneira muito ativa ate meados do século XIX, arbitragens piiblicas entre
caso mais frequente de uma conciliaçao bem-sucedida, os conseiheiros conse-
empresas comerciais ou manufatureiras em litigio. Dal resultam certificados,
guem fazer que Se elabore urn passado comum, aceitável pelas duas partes. Ne-
pareceres, que se apresentam sob uma forma mais ou menos constante: urns
nhuma submissão, nessa escala, a urn passado vivido, mas uma atitude ativa de
exposicão do caso muito precisamente circunstanciada, em que se omite apenas
interpretaclo da seqBência cronológica pertinente (logo examinaremos a ques-
a identidade dos protagonistas, precede urn veredito motivado pela iegislacao
tao numa outra escala). Tambm nenhuma "bricolagem" das normas, que se
mas tarnbCm, e sobretudo, pelas praticas comuns e pelos valores Cticos da pro-
limitaria a aplicar a uma situação particular, por arbitragern, principios gerais
fissão, 0 anonimato das pessoas e das empresas, a divulgacao dos vereditos, o
predefinidos, mas urn processo de construção social que assegura uma amplia-
registro dos pareceres sucessivos que formam uma memória jurisprudencial da
ção da generalidade do acordo. Na origem está uma questão que nasce da pratica
câmara asseguram que se generalizern como normas comuns essas regras de
cotidiana do trabaiho e que é tornada pelos prud'hommes ern sua dimensao mais
direiro comercial construldas por interpreracão das leis gerais e codificação dos
singular. Eta se faz e é encenada como uma relação entre indivIduos: a obrigação
usos localizados.
de comparecer pessoalrnente (o patrao não pode set representado por urn dire-
Quase todas as análises da constituiçlo de urns ordem industrial e co-
tor ou urn chefe de oficina) e a proibiçao deter assistncia de entendidos em lets
mercial, no inIcio do sCculo XIX, destacam as miltriplas maneiras como eta se
fizeram parse, por muito tempo, das regras de funcionamento dos conselhos. 0
prende so Antigo Regime. Já mencionamos acirna a associação voluntária, fun-
procedimento residsa its definiçao de urn uso estritamente localizado (a empresa
dada em 1809, por 85 manufatureiros da indsistria do linho de Lille. Destaque-
em causa). Mas a sanção juridica que a nova convençâo recebe, garante sua
mos agora que todos os seus membros, como nos boos tempos das corporacöes,
generaltzacao: eta constitui uma ordem legitirná na alçada da jurisdicao, isto é,
pagavarn uma taxa e prestavam o jurarnento de respeitar os regulamentos de
da fábrica local (a 5cr entendida corno centro industrial so-mesmo tempo urba- --
producão de 1733 e 1744 e os regulamentos de mercado postos novamente em
no e rural, em que a produçao se realiza sirnultaneamente em fábricas, oficinas e
vigor por decreto municipal de 1801. Noternos que a associação nomeou, inter-
domicilios). As jurisprudncias dos prud'hommesdefinem assim, nos termos de
namente, insperores corn poder de infligir multas - tudo isso perfeitamente
Akin Cottereau, "quase-legislaçoes locais do trabatho".
inconstitucional, mas aprovado pela câmara de comCrcio reinstitulda. Desta-
A dimensão coletiva dos casos julgados e a participação dos conselhos de
quemos ainda que dois dos fundadores haviam sido, em 1790, membros da
prud'hommes na definiçao de uma ordem legitima generalizada (no ambito da
câmara de comCrcio anterior e que dois dos comissários da associação haviam
fábrica) explica melhor a importante participacão dos patroes, na primeira me-
sjdo, em 1788 e 1790, deöes da corporacão dos fiadores26. Análises do mesmo
rade do século XIX, nos recursos sos conselhos. E espantosa, alias, a semelhança
tipo, mas menos anedóricas, podem set aplicadas as câmaras de comCrcio
entre os processos movidos nas cârnaras de comrcio25. Estas de fato real izam,

26. G. Bosseags, op. cit., 1998, pp. 416-417.


25. J.-1'. Hirsch, op. cit., 1991, pp. 104-105 449451.

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BERNARD LEE ETIT PoE UMA NOVA HISTORA URBANA

reinstituldas. Contra os princIpios da lei Le Chapelier, reafirmados nas consti- sutis e complexas, sugerem que nao ha certeza quanto a iss028. Reromando, para
tuiçóes e no Código Pena[, elas garanrem a rep resentação dos interesses particu- reforça-las e generaliza-las, as conclusOes de seu esrudo sobre as práticas dos
lares de uma mesma profissao. No prolongamento das praticas do s&ulo )('/1II prud'hommes, ele ressalta a exisrência de duas diferenças no funcionamento social
e dos séculos precedentes, elas permanecem, sob o controle e corn o aval do após a Revoluçao. A primeira manifesta-se em cornparaçao corn o Antigo Regime.
poder do Esrado, nas mãos de uma pequena minoria de "notávejs eleitores". A Muito poucos casos, observa Cottereau, chegam a julgamento nos conseihos.
mesma continuidade reivindicada pelos conseihos de prud'hommes. Sua cria- Na imensa rnaioria deles, intervm uma conciliaçao. Não se enconrra vesrigio
ção, como dissemos, responde a uma demarida dos agentes ecoriômicos. Várias serial desses processos, que correm diante de cornits forrnad9s na proporcão de
petiçöes propöern, a parrir do ano IX, que os conflitos profissionais sejam urn eleito patronal para urn eleito operário. Mas rodos os testemuhhos conheci-
julgados pot jüris formados de patröes e operários. A maioria, como aquele dos descrevern a mesma dinâmIca: "Acornpanhei o esperáculo desses debates que
redigido pelo conseiho do comércjo de Meurthe, estabelece a ligação corn o nascem quase todo dia enrre o fabricante e seu operário. Vi o fabricante e o

Anrigo Regime (squi, corn grande prudência retórica): osjuIzes de paz, alega-se operário, inflamados ac, telatar suas queixas mI'lruas, logo se acairnarem a voz
em Nancy, "não conhecem os usos de cada fábrica" e devem recorrer a especialis- dos chefes de familia, ouvir respeitosarnente suas represenracOes, confessar erros,
tas em caso de contestaçã o. Esse "circulo de insrrução" desaparece se os casos são abandonar direiros, encerrar sua querela numa teconciliaçao sincera e voltar
expostos a jurados egressos de cada profissão. '0 conselho, portanro, precisa amigos a f6btica"29. Pode-se rejeitar a natureza idilica desse quadro (embora
decidir se votatá a favor do restabelecjmento das jurandas, cujos antigos abusos rodos os testemunhos que tenhamos desse perlodo apresentem a mesma carac-
seria fácil afastar, rnas que traria de volta o princfpio tao respeitável de set teristica). Mas deve-se estar arento a imagem social que dc pinta. A conciliaçao
julgado pot seus pares. Posra a rnatria em deliberação, o conseiho decide que Se uma diriâmica interativa. Resulta de uma discussão de indviduo para indivi-
limitará a solicitar que as conresraçoes sejarn submetidas ao julgamento dos duo, de cidadão para cidadão (exceto em momentos de desigualdade das condi-
jurados scm pronunciar a palavia juranda"27. çoes). A discussão acontece na presenca de terceiros pt5blicos, os conselheiros
A submissão das sociedades a seu passado parece, assim, incofltestável: prud'hommes, mas não termina gracas ac, julgamento deles ou a sua arbitragem.
quer o proclan-lem, quer o calem, os grupos sociais so esrabelecem uma nova Essa imagem diferencia-se das situaçOes do Antigo Regime tais como Nicole
ordem esgueirandose nos bolsOes insritucjonais e regulamentares que herda- Casran em particular as revela30. Então, urn grande nOmero de conflitos cram
ram. A conrradiçao nos termos, que marca a operacão social que corisiste em

"estabelecer urn uso", parece inicialmenre sO poder resolver-se pela restauração 28.A. Cottereau, op. cit., 1992.

29. A. Mollot, De la 10mpeten cc des Cnseib do Prud'hommeo etde lout organisation, Paris, 1842 -(ritsdo por A.
de urn uso antigo. Caso encerrado? As recentes análises de Alain Cottereau,
Co(trre,u, op. cit., 1987, p.44).
30. N. Casrao, Leo criminel, do Languedoc, its exigence, &ordre cc leo Icier do rer,entimenr dan, one SOCiEtE
27. Cindo pot- A. Cotter,,,,, op. cit., pricE rolutionnaire (1750-1790), Toulouse, 1980.
1987, p. 34.

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C
POR jiMA NOVA HISTORIA URBANA
B ERNARO LEPETT

SoluCionados recorrendo-se a urn tercejro. Mas tratava-se de uma arbitragem, teira, de leis universalmenue válidas resultantes de debate em assemblias nacio-
nais, a deliberação pi.iblica desenvolve-se agora na escala local. Constituem-se
feita pot urna personagem em situação social superior: o julgamento envolvia
uma "superiorid ade de apreciação" e ativava as hierarquias sociais. Ao contrárjo, assirn "piiblicos interrnediários", "espacos p6blicos de proximidade em que a

o procedi 0 de conciliaçao desenha urn espaco piiblico no qual a decisão ação coletiva, realizada aIrn do interconhecimento, possa set posta a prova

resulta, formalme nte da deliberaçao de indivIduos iguais. segundo procedimentos de interaçao face a face, recorrendo, se necessário, a

Urns segunda diferença manjfesta-se corn relação aos anos revolucioná- auroridades acessIveis". Esses espacos permanecem, de hábito, pouco visIveis,

rio5. Partsmos, seguindo Alain Cottereau, de urn episodio concernente a fábrica uma vez que 6 muito cornum a história parrilhar, como se fosse espontanearnen-

de seda lioness. Em 1795, ocorrern em Lyon discussöes entre as notáveis do te, o ponto de vista do Estado central jzado que organiza a massa de arquivos

tribunal de comrcio e representantes eleitos dos operários. Essas discussöes, a mais utilizada. Mas des são percebidos logo que se exarninam as formatos

que Se tern acesso potque as autoridades municipais haviam considerado a no- sociopoliricos traçados, localmente, pela prática das instituiçöes comunais, das

meaçao dos delegados operários como a reCOnstituição de uma sociedade popu- justicas de paz ou dos prud'hommes. Formatos novos, mesrno que o recurso a

lar, constituem apenas uma das mi'iltiplas reuni6es paritárias sucessivas que tiVe- quadros institucionais ou a princIpios de funcionamento antigos faça crer nurna
subrnissão a urn passado próxirno ou longInquo. Tudo se passa nas modalidades
ram lugar na fbrjca. Resultaram num acordo, em que o prefeito yin em 1801
urn triunfo do espirito pi'iblico, que foi parcialmente recuperado corn os regula- particulates do acionamento desses quadros e desses principios, nas formas de

mentos de fábrjca e corn a crisção do conseiho dos prud'hommes. E desnecessá- sua apropriacão pela sociedade envolvida. Dela a des, a relaçao é a de "uma

rio sublinhar novamente a ruptura corn o Antigo Regime: não se trata mais de gestao de herança, de urn rearranjo das formas passadas, de uma cornprovacão
- uma !ógica corporativa, mas de uma lógica de deliberaçao, que ao- mesmo tern- das formas de vidä recebidas"32 .
0 reconhece o outro e a existncia de urn espaco comum que invoca a elabora-

ção coletiva de regras de furicionarnento. E precisamente na escala em que se UMA SOCIEDADE FEITA DE REUTILIZAOES

constrói e se regula esse espaço piThlico que reside a diferença em relaço ao


Notaremos, fechando a dossi6 socioeconômico, as emendas que ele
period0 revolucionário 3 l Ao contrário da elaboraçao, no âmbito da nação irk-
sugere ao modelo temporal tornado como ponto de partida. 0 futuro?
Trata-se de reduzir sua incerteza— retomaremos isso adiante. 0 passado?
31 Os trabsjhos dejochen Hook M muito tempo chamam a accnç5o para o inreresse da análise das formas d0
As referncias justificadoras que os grupos ou individuos fazem a ele, a
terrlrorualtuçèo d0 exrrcfcio do Direico. 5fer pareicularmence: "Riunions de mériers cc marché regional. Lea

marchands risn de ha yule de Room au debut du XVIII' siScle", A,rnales ESc, mar-abc. 1988, pp. 301

322, c Zur Enrwicl'Jungder franzosischen Handdsgerichtbarkeit zwischen dem 16 and 18 Jarhundcrr",


cm N. BIastj P Genre (dir.), La Vile, la bourgeoisie Ia
CC gcnisc del'Eeat moderne, XJF-XVJI! salsIc, Paris,
1988, PP• 229241. 32. A. Couereau, sap. cit., 1992, p. 269 (pars as duas sitrimas ciraçoes).

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BEISNSRD L E P E T I T Pots U M A NOVA HISTORIA URBANA

evidência dos sinais e das caregorias de pensamento e de ação que ele ihes de ontem, mas o uso regulador que fazem djsso não é nem o do Antigo
oferece parecem inicialmente inscrevef-se, como antes, entre as tradiçóes Regime nem o da Revolução. 0 espaco social está repleto das formas pas-

sempre conrinuadas. Destacar a pluralidade e a desigual profundidade sadas (normas, instituiçôes, objetos), cujo sentjdo é renovado pelo uso no
temporal dos precedenres (a eatrurura das corporacóes e o espiriro ptibli- presente.
co, no caso considerado) tarnbm riao acrescenta diferença: entre duas Resta fazer urn esforço para pensar em tal processo de rnaneira
oscilaçoes sucessivas de uma rradiçao a outra (numa seqüência de revolu- desmecanizada, scm se deixar enredar nos riscos simétricos da tirania das heran-
çöes e de restauraçöes mais ou menos espaçadas), poderia continuar Va- ças e da liberdade dos usos (on de sua determinaçao no instante). Para tentá-lo,
lendo o modelo da "cidade imóvel". varnos abrir urn ültirno dossiê, o da evoluçao das cidades: a materialidade e a
E na transformaçao do valor do presente que Se encontra a origem durabitidade das formas, nesse caso mais que em outros, talvez, levaram a uma
da mudança de situação do passado. Após a Revoluçao fraricesa, o presente reflexão sobre as modal jdades da apropriacao do passado". 0 abastecimento e a
não uma seqüência de ajuste, desrinada a reduzir a nada a diferença em configuraçao das casas e dos cspaços de trabaiho, as catacteristicas e a reparticão
reiaçao a principios de legitimação anreriores. 0 interesse daquele momen- dos edificios p(sblicos, a ordenaçao da rede viária, a distribuiçao Ca organização

to para uma demonstraçao reside na impossibilidade dessa operação: o dos espacos de produçao, de troca e de lazer provrn quase todos de passados

nmero d05 princIpios de regulaçao possIveis, suas dessemelhanças e as cuja profundidade difere e apresentam rirmos de evolução diversos. A
dilvidas radicals que os atirtgern inspedern que se possa prender ao passado, materialidade de uma cidade é marcada pela ação continua do tempo, e invert-
ao ja conhecido, urn presente que escapa. Alias, não se trata de reproduzir, tario urbana inscreve-se quase inteiro na história. Os modelos arqueologicos de
mas de construjr. Em cada escala social, a dinâmica da inreração das pes- análise, entretanto, são de pouco interesse: a cidade atual não é constitufda
soss edos grupos abre-se para urn projeto de renovação duradoura: "abrir "sobre" a cidade do século XIX, e esta nao se sobrepóe as cidades clássica e
urn precedente", isto é, inaugut-ar uma série e modelar assim os contornos medieval. As catedrais góticas, as praças reais, as aberturas de ruas haussmanianas

do fururo. Mas corno construir a partir do nada? Nesse processo, o passa- pertencern a nosso espaco e a nosso tempo. Na cidade, elementos oriundos dc
do surge corno fonte, âmbito de ação, reserva de sentjdo: acionar formas diferentes épocas se acumulam. Como pot contágio, mesmo se não tarn relaçoes
instirucionais antigas segundo práticas novas, aplicar numa escala inédita entre si na origem, encontram-se pràximos uns dos outros, rium mesmo pre-
principios de regulação já comprovados significa, para a sociedade envolvi- sente que os rnantém coesos. Sao rnodalidades dessa "coesão", no presente, o
da, fazer a mesma coisa. Mas significa também fazer de outro modo. 0 que precisamos tentar analisar.
presente dos fiadores de Lille ou dos fabrjcantes de seda lioneses esrá saturado,

sob o Consulado e o Império, dos quadros corporarivos e dos regulamen- 33. Retomo aqui uma reulexEo esboçada em B. Leperir, 'Une hcrmneucique urbaine est-elle possible?', em B.
Lepetir e D. P—ain (dir.), Temporalith urbaineo, 1993, pp 287-293.
tos de anteonrem, do estatuto das pessoas e dos principios de deliberaçao

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•1
BERNARD LEPETIT Poe VMS NOVA HISTORIA URBANA

Denorninemos traços, seguindo urn grupo de pesquisadores de Saint- Eis os Halles parisienses devolvidos a urn passado do quo o presente se desligou.

Etienne", o conj Unto desses fragmentos herdados dissonantes, de que as cidades Generalizando, pode-se escrever quo a pratica social do mornento que constrói

são feitas, e imaginernos que uma i'inica categoria de atores, quo chamaremos O limite entre o passado e o presente e que realiza nesse quadro a redistribuiçao
urbanistas, possa interfe r jr para modelar o espaco urbano Ia existente. Nesse dos objetos em quo so apOia.
quadro siroplificado, quais são a natureza do traço e a das intervençöes capazes de Os Halles do Baltard foram destruidos, e existern projetos em Billancourt
afetá-lo? 0 traço results do urn distanciarnerito entre rmos de evolução diferen- Para dat o mesmo ftm as fábricas Renault. Exiate a possibilidade de apagar do
teE. Enquanto os ediflcjos das fibricas Renault em Billancourt abrigam cadelas de presente os objetos indexados no passado (logo discutirernos o radicalismo des-

producao industrial, enquanto os pavilhöes dos Halles de Baltard acolhem 0 se apagamento), mas a questão do traço encontra na organização das cidades

com&cio alimentar atacadisra da capital, esses fragrnentos de cidade não so outras soluçoes além de sua negacão. Exceto destrul-la, quo fazer de uma antiga

traços de nada (podese fazer deles uma análise em termos simbólicos, mas essa é estação desativada? Scm dOvida se poderia deixá-la corno está, mas inacessIvel,
outra questan). Existe assim uma adequação, mesmo quo sua otimiZaçaO seja seja porque so especula sobre o valor futuro dos terrenos que ocupa, seja porque

variável, entre o construldo e as atividades que note so desenvolvem. Forma e nenhurn uso altetnativo valha o investirnento. Tambérn se poderia, precisarnen-
funçao evoluiram segundo cronologias semeihantes, ou meihor, a evoluçao conti- to, encontrar outros usos Para cia: tugar de esrocagem do material ao longo de
nua das atividades consegui u acomodar-se pot meio de uma série de ajustes uma linha em atividade, residncia secundária ao longo do uma via fCrrea rural

parciais do construldo Mesmo que este seja antigo, note não ha passado, mas urn agora fechada, musou no contro do Paris. 0 quo está em jogo, quando o urba-
presente continuado de formas e do usos. 0 traço corneça corn a desadapcacão, nista confete, pot sua inrervonção (ou pot sua abstençao), urn novo destino a

corn o fim das possibilidades de ajuste. A producao moderna-não se adapta mais - urn fragmeno passado do espaço urbano, são as modalidades de sua reaplicacao
a locais exIguos, dispersos e heterogneos; a acentuada valorizaçao dos centros de no presente, a lOgica do sua contemporaneidade corn seu contexto. Assim, n
cidade nun-i a aglomeraçao traço assume significaçOes diferentes, conforme seja reaplicado corn urn outro
consjderayetmente extensa llãO permite mais que notes
sejam roleradas atividades fortemento consumidoras de espaco e fracarnente pro- uso, museificado, mantido cnmo está ou então totalmente destruIdo 5. Reabili-
duroras de mais-valia. So ha traço se ha conscincia de uma defasagem entre urn tados ou reaplicados, uma construção ou urn bairro antigos são reinseridos,

contexto antigo de uso e as condiçoes de utilizaçao de hoje. 0 comrciO alimen corn uma nova significacão, no circuito da opiniao pOblica (escrevor, por oxem-
tar atacadista e os pavilhOes do centro de Paris, quo ate eritão o abrigavam, plo, a história do bairro do Marais em Paris dessa porspectiva seria fácil). Doixa-
existem ainda no mesmo tempo, mas, de repente, nan tm mais a mesma idade. - dos como estão, uma construçq ou urn equipamento perdern o valor social dos
usos, mas consorvam, pot urn lado, urns presenca material (sobre a qual sons
34. D. Colson,J. Nize 0
j. Roux, U,, qi irtiacindus,,idiSaiat-.Edenn,. L,Maraia'atrehi,toiretp1a"ificatios,
Lyon, 1993 35. Sigo aqui as proposiçOcs dejacques Roux em Colson, Nizey e Roux. op. cit

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BERNARD LE PETIT POR LIMA NOVA HISTORIA URBANA

preciso verificar - no caso das indiistrjas urbanas abandonadas, pot exemplo - Maurice Halbwachs estabelece reiaçoes dialéticas complexas entre os

de que carga sirnbóljca esrá imbuida) e constituesn, por outro lado, uma reserva grupos sociais e Os territórios que des ocuparn; vale a pena rel-las aqui37.

de senrido e de ação para o futuro. DestruIdos, des sucumbem an golpe de uma Eis uma prirneira seqiiência: quando urn grupo toma posse de urn espaco,

enunciação piThlica de negação de real idade: não são mais interprerveis ho)e e, cransforma-o a sua imagem. 0 espaco ratifica, desse modo, relaçöes sociais,

portanto, não serão nunca mais, lia ordem do real (mas: essa altirna proposicão e num presente perfeito a sociedade é, em todas as suas dirnensöes, irnediata

não vale para sen traço no solo, que se pode ajnda let no vazio: vejarn-se precisa- a si mesma. Imobilizado nesse dnico momento, o processo valida todas as
mente os Hailes de Paris). análises funcionalistas, mas basta acrescentar urna segunda seqüência para
A lógica da conremporaneidade do rraço corn o contexto, corn o qual dc que o erscadeamento causal se reverra em favor de urn determinismo ecológi-

a princfpio parecia em ruptura, nunca retorna mais que uma patre das dimensöes co. A marerialidade c a durabilidade dos objetos que o grupo criou o opri-

do objeto (uma localização, uma forma; urn valor simbolico, urn valor econômi- mern, em contraparrida: "Ele se fecha no quadro que construiu". A socieda-
Co ... ). Mas repousa sernpre numa nova atribuiçao de senti do, nurna reinterpretação de adere novamente, nessa segunda imagern, aos objetos que edifIcou e entre
da significação social d0 lugar (e dos lugares vizinhos, como poderIamos de- os quais sen funcionamento torna lugar, mas de acordo corn uma nova
monsrrar3 ). Disso sernpre resulta, por algum tempo, essa "coeso" de fragmen- temporalidade: o tempo que passa so faz aumenrar o peso de urn passado
tos de cidades que tam, concornitanterne nte outra idade e a nossa e que encon- recomeçado. Mas o processo nao pára quando o fecharnento se completa. 0

tram sen princIpio unifIcador nas práticas sociais do momento. Caracterizemos "desenvolvimento moderno", diz Halbwachs, vern romper a proximidade

em poucas palavras o modelo temporal que estrutura essa análise: passado perfeita entre as relaçOes sociais e a organizacão material do espaco, que sO

presente são disrintos; sua distinçao se faz no presente; cia conduz, por apropria- subsistirá inalterada, a partir de então, se apartada das grandes correnres, nas

ção ou negação de perrinncia, a dotar o passado de urn novo sentido. História pequenas cidades esquecidas do interior ou nas periferias do mundo ociden-

e planificação urbana escrevem-se no presente. Exata inversão do modelo das tal. Se considerarmos as configuracoes do territOrio como uma rnetáfora dos

convençöes, em que o presente se esmerava em reproduzir meio inconscienre- objetos mOltiplos que a sociedade edifica para e em sen funcionamento,

mente, e assim em reforçar, os priricIpios estabelecidos no passado? Basta let as notaremos que ha nesse "desenvolvirnento moderno" uma dificuldade logica:

análises proposras outrora por Maurice Halbwachs ou os trabaihos de sociologia como a sociedade encontraria em ourra parte que não em seu funcionamento

empIrica sobre operaçöes de renovação urbana para perceber que a relaçao das on nas estruturas formais de que é dotada as fontes de sua renovação? Mas

sociedades citadinas corn os objetos herdados não 6 tao simples on tao livre.

37. M. Halbwachs, La mémoirerdlccriur, Paris. 1950 (parricularmersre o cap(rulo IV, ao qual seris preciso
36. B. Lepetir, 'L'ppcopririon acrescenrar urns passagem do manuscrito dedicado ao espaço dos geBmerras, ornirida nessa ediçso. assim
de l'espaee rrrbin: la lormacior, de Is valeur dans Ia vile moderne (XVI'-XIX'
siScle)",,4,,,jajnHES n. 3, 1994, como nade 1968).

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BERNARD LEPETIT P08 DMA NOVA H1STORIA URBANA

pouco Importa: ele nos interessa aqui nio pot suas causas, mas pot suas fotmas organizadas do espaco nba são spenas urn quadro ou urn supotte da
COnsequncias lembrança ou mesmo a meio de sua ctistalizaçbo. 2. 0 grupo mantérn corn
0 desequjlibtj0, quando se manifests, inauguta urn tempo de evoluc&s dessin- seu espaco a rnesmo tipo de telaçbo que mantérn corn seu passado. "E apenas
cronizaclas, tanto que, sucessivamente os usos e as formas veiculam mais longamente a imagern do espaco que, em tazão de sua estabilidade, dá-nos a ilusbo de nba
o peso do passado Pot urn lado, "Se Os mudar ao longo d0 tempo e de teencontrar a passado no ptesente; mas
grupos não se adaptarn mais depressa, se em
muitas circunstancias eles rnostratn uma extraordinátia faculdade de desadaptaçao, exatamente assirn que se pode definit a mem6ria"39. 3. 0 que vale pata a
porque Outtora Itacatain seus limites e determinaram suas relaçoes de acordo corn uma produçao da rnernória vale pata a produçao do espaco e teciprocarnente. As-
dada configutao do rneio extetno". Mas, pot outro lado, quando urn grupo vive sirn como ha tantas memótias quanto gtupos, ha tantas maneiras de Se repre-
muito tempo flum lugar, a forma desse lugat pode mudar mais rapido que o coracão sentar a espaco quanto ha gtupos. Assirn coma, em cads etapa de seu desen-
dos homens. Renovem as casas, aliphern as ruas, transfotmem asp tacas: 'As pedras e os volvirnento, a sociedade temaneja suas lembranças a fim de adequa-lss as
materisis rtao Ihes opotlo resistancja. Mas os gtupos tesistitão, e mica vocês enftenta condiçoes mornentâneas de seu funcionamento, eta exprime, num ptacesso
tao a tes!staricja senão das pedras, so menos de suas disposicöes antiga00. Basta de reelabotaçao petmanente, seu tertitótio de ontern a partir de hoje. A cons-
encadear duas defasagens surnssivas pars inausrar urns regressão temporal infinita. truçao histories de urns topografia legendátia, a da Terra Santa e em particu-
Coma as priticas do grupo são moldadas pelo habit0, registrant fotmas espaciais lar de Jerusalem, demonstra empiricarnente as rnodalidades desse ttabaiho
passadas. As fotmas, por am vex, tegisttarn antigas relaçoes sociajs, veihas práticas, social e de sua eficbcia material. ApOs a tomada de Jerusalem pelas ctuzados,
hábiros enraizado5 em tettitótjos mais antigos ainda. A busca das origens é, pOrtaflta, mudando 0 sspecto e a significacbo dos antigas vestIgios, absorvendo-os num
va.
Sabem-no Oshistorjadotca que em geral, por urns manobta calculada, ptocutam - novo canjunta de rnonumentas carnernorativos e de lugares sagra dos, "C a
dotat-se de uma teferêncja inicial, na inaugutaclo de urn rnornento novo. comunidade ctistb universal que toma posse dos lugares santos e deseja que
Maurice Halbwachs adota uma soluçao difetente. Estabelecendo urns estes reproduzsm a irnagem que eta deles coflstruiu a distbncia"45. Dessa for-
analogia entre o territotjo do grupo e sua rnemórja, dc impede o tempo de ms, o tempo que passa, em seu simples escoar (qualquer que sejsrn sua duts-
escapat nao prendendoo a urn ponto de otigem, mas ancorando-o no pre- çbo e suas escansOes), nba é ditetamente criadot de difetencisçbo. 0 tertitó-
sente. A compatacao entte as duas noçoes se estabelece em tts pontos: 1 As rio é feito de teutilizsçBes, e sus histOria se faz no presente.

38. M. Halbwachs, op. cit.,


1950, citaçEes reSpectivarnente nas Pp. 139 e 138. Eu poderia ter reforcado esce
dossil corn d0d05 ernpiricrn.
Quern p6 sec faz8-lo, paderi reporcar-se, pot exernplo, a H. Coing, Ebiopeition
Ssrbarnerrdrnogcrntaoci L'1tn. 4
(Paris, J), Paris, 1966, eaJ.-M. Chaplain, La Charnbrc des thseu's. .39. M. Halbwachs, op. rid., 1950, P. 167.
Lot, en c ted
0 1680-1840, S y se! 1984 40. M. Halbwachs, Lea topo rap/oicligondainc Ito Evae, i1s'o etc Teyrt Soiooc, Paris. 1941 (cicacso isa P. 163).

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BERNARD LEPETIT
POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

0 PRESENTE DA HISTORIA
te, de maneira transcendente, todo o seu passado"43. Significa que toda a carga
temporal reside no presente. No que se refere a operação de conhecimento
Resta agrupa t em algurnas proposiç6es esquemáticas as observaçoes que
histórico, a proposicao talvez seja considetada como urn lugar-comurn: sabe-
else percurso por linhas tortas esperava rnostrar. Todas resultarn da natureza
mos bern, finalmente, que toda linha cronológica é organizada em funçao da
social do temp o da história.
extremidade da seta que aponta para nós. Retornados pot Paul Ricoeut, os
Nenhum ponto de vista exterior pode set sustentado corn base no tem-
trabaihos de sernântica do tempo de Reinhart Koselleck propóem uma articu-
po histórico Os modelos construIdos a moda das linhas do tempo, que todos
lação mais sutil dessa idia cornurn e arnpliarn seu campo social e cronologico
os alunos das turmas
de colégio conhecem, são inadequados a sua representa_
de aplicacao. Ontem como hoje, o presente de urn indivlduo ou de urn grupo
çBo. Eles estabelecem
urna dupla ficçao: a de urna evolucao da humanidade
define-se como urna modalidade particular de agenciarnento entre urn "espaco
(ou de algum de seus fragmentos) estabelecida de msneira positiva, ao fim de
de experiência" e urn "horizonte de expeccativa", entre urn passado e urn futu-
urns exploraçao sisternática do passado; a de uma sucessão objetivada, scm
ro que des atualizam sob as formas da reconfIguracBo e do projeto44.
ponto de vista, sobre o conjunto dessa evoluçao (ou sobre seus fragmentos).
0 passado, assirn, 6 urn presente em movimento. Ocupar-se do tempo no
Fazem crer que d sustentável urns postura "cOnstarativa" e "desengajada", to-
presente envolve uma dinrnica dupla. A primeira afeta as estruturas gerais da expe-
talmente voltad a
para o estabelecjrnento de coordenadas temporais e para a
riência temporal: as variaçöes do valor respectivo atribuido ao horizonte de expec-
descriçao dos verdadei ros fatos. Ao contrário, o "tempo supoe uma V55O
do
tativa e ao espaco de experiéncia definem regimes de historicidade que possuern não
tempo".41 E
por terem esquecido isso que os modelos que aplicarn as cincias
somente urna história, mat tambérn uma geografia cultural e social. A segunda é
sociais formalizaçoes emprestadas as aplicac6es fisicas das teorias da auto-
aquela pot meio da qual os grupos requalificarn, pars novos emptegos, os objetos,
organizaçao encontram dificuldades difIceis de transpor42.
as instituiçöes e as regras que juntos cornpöem o espaco de experincia de que eles
I 0 tempo hist60 realiza-se no presente. Poderiamos escrever que nes-
disp6ern45. E testringir dernais o campo da analise das formas de reapropriacão do
te esta seu centro
de gravidade, se a metáfora não insinuasse que o tempo
passado lirnitá-la ao desenvolvimento das rnemótias coletivas. E restringir demais o
possul uma extensão. Urn engenheiro sansimonista disse-o corn major êXito.
Ii

em meados do scu10 XIX, a respeito das temporalidades urbanas: "A condi-


çao atual de urna cidade representa todas as outras, e [...j exprime virtualrnen- 43. B. Leperir, "Passd, pr/sent er avenir des modtles urbains d'auro_organisariod, em Leperir e Pumain, op. cit.,
1993. pp. 113-134.
44.J. Reynsud, "Ville", ern P. LerouxeJ. Reynaud (dir.), Enrydopediessoutsrlleossdirtionnairrphilotophiqssr.
srientrfique, littEraire cc induotriel ojfrant /t tab/ca,, dci connajusances hun,ajncsau XLk5 siècle, r. VIII, Paris,
41.1.Qu6rd, Ev6 nementerremps dC Ihistoire", emJ.-L. Petit (dir.), L'éeenes,esrenpe,spertiee(&jjrn,,s Js-arsjq,,e,2),
1841, p. 684.
Paris. 1991, pp. 263.281 (cirisçto nap. 277). Eu meaproximo desse texto, aqui. em diversos pantos.
45. P. Rieoeur, Tempo ccrécit, rrtsvolumvs, Paris, 1983, 1984 e 1985. R. Koselleck, LcJi.tssrpasoE. Contribution
42. M. Mer!eau..Pony, Phénomenolsg
i,. s/r /aperceprisn, Paris, 1945 (ciracso Cia p. 470). a La stsnantsqssc des temps historisjsscs, Paris, 1990 (edict0 stemS, 1979).

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POR UMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNA RD LEPETIT

indiscernivel. Se se imagina que ease o caso de nosso presente46 , duas aticudes


campo de aplicação da hermenutica Iimitá-lo as modalidades de interpretacão das
historiográfIcas são possIveis.
tradiçoes textuais, orais ou escrirs. Os objetos, as instituiçöes e as regras nãO
A primeira é a mais resignada. Parrindo da ruprura do presente corn o passa-
transportam impetiosamente através do tempo os quadros antigos da ação e os
do e da incapacidade das sociedades para estabelecer corn ele outras relaçoes que nao
modes de fazer tradicionais. A respeito deles, as metáforas do dote ou da heranca
a recapitulação celebrariva, a disciplina histOrica deixa de pretender-se "estabeleci-
que vm esporitanearnente a cabeça conduzem a soluçSes analiticas preguiçOsas: seu
mento crftico de urns memOria verdadeira". Torna-se hisrOria para uso escolar,
estudo depende de uma problemática da recepcao ou, se preferern, da hermenêutica
dedicada aos lugares nos quais urn sentimenro residual da continuidade rena acaba-
social dos objetos, das instituiçSes e das regras. Ambas sup5ern a conscincia de
do por se recolher: cenirnOnias comemorativas, monumentos de toda natureza, ar-
uma distância, uma prática de apropriação, uma reinterpretação imperfeita funda-
quivos. HistOria especular, não atenta a restituir o passado, mat que enconrra seu
dora de um novo sentido. Operacoes duplamente inscriras na experi&ncia social, já
fim no estabelecimento de uma distância crItica corn as modalidades sociais da
que, por um lado, os objetos, as institiiiçSes e as regras sO existem na medida em
museificaçao47 . Encontra-se em texto de Ricoeur a indicação de urns segurida atitu-
que postos em uso e, per outro, nao compoem um simples enquadramento para a
de possivel, que requer uma moral da ação'. Convém, diz ele, evitar que a tensao
aço, e sim configuram os recursos, alterados pela prática, de que os atores dis-
entre o polo da expectativa e o da experiência se tome urn cisma. Para isso, 0
p5cm. 0 passado, reconfigurado no presente, nele adquire urn estatuto hipotético,
necesthrio, por urn lado, "impedir o horizonte de expectativa de escapar", isto 0,
poisperpetuamente revisável. 0 futuro, projetado a imagem do hoje, nele perma-
munir-se de projetos deterrninados, acabados, modesros, precisarnente escalonados.
nece imprevisivel: urn presente que virá então dotará de urn sentido e de urn
1 necessário, por outro lado, "resistir so retraimento do cspaco de expenincia",
dispositivo novos o espaco social de agora.
cessando de considerar o passado come, encerrado pars, ac, conrránio, reavivar suas
Gostaria de ver nesse modelo temporal esbôçado urn objeto de pesquisa -
potencialidades nao realizadas. "Contrariando o adagio que pretende que o fisturo
para a histOria. Sua fecundidade epistemolOgica precisa set testada corn cuidado,
seja, em todos os aspectos, aberto e contingente, e o passado univocamente fechado
mas parece-me, ja, que ele poderia set proveitoso pars a hermeriêutica da cons-
e necessário, 0 preciso tornar nossas expectarivas mais determinadas e nossa expe-
ciência histOrica de hoje - pois, se dc tern alguma validade, 0 exatamente aI que
rincia mais indeterminada"49. Essa proposição evidenternente se aplica a ordern da
cabe verificar. Mais do que Koselleck, Ricoeur desraca as arestas vivas da lOgica
evolutiva dos regimes de historicidade desde a filosofia das Luzes ate riossos dias.
A crença em novos tempos repousa cada vez mais em expectativas que se distan- 46. Vr, sobreo Djrrjto. J. t-Ioock, "Pour tine hisioicr di, droir", A,rnalc, ESC, nov.-dez. 1989, pp. 1479-1490, q""
descaca a imporc5nciae a orilidade da to pica para se corn preerider a mudança urIdica. -
ciam de todas as experiências anteriores. No ponto de ruptura, quando o projeto hipOtrseque fedas o texco d Francois 1-larrogeGirard Lenclad, emA. Duru N. Dodilk, op. cit., 1993.
47. E

e a experiência nao Se comunicam mais, a idCia de progresso, que liga an passado 48. P. Nora, "Entre Min-ioire et Hiutoire. La problimatiqoe des linux", Lea lieo.,nde rnErnoiec nomo 1, Paris, 1984,
pp. XV-XLI1 (citacSo nap. XX).
um futuro meihor, torna-se quescionavel. DaI resulta uma perda de sentido do
49. P. Ricoeur, op. cit., 1985, pp. 310-313.
presente, dividd0 ernie urn passado que nao se deseja reproduzir e urn futuro

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7. ARQUITETURA, GEOGRAFIA, HISTORIA:
USOS DA ESCALA*

A história 6 urna boa menina, urn pouco indolente mas sempre pronta a
seguir, sem muita discussão, quern acaba de seduzi-la. Atualmente, a micro-
história está na moda. As proposicoes anunciadas pelo grupo de historiadores
italianos reunidos em tomb da revista Quaa'erni Storicie da coleçáo das Microstorie
oferecem uma referência e urn modelo. Práticas invocam-nas em seu favor, orga-
nizarn-se algumas discussöes (cujo eco exato, alias, deveria set calculado), e, na
incerteza que neste mornento caracreriza a hisrória e as outras ciências do ho-
mem, elas constituern urn ponto de referência'. Invocá-las parece fácil: aescoiha --
de urn epiaódio minüsculo ou de urn horizonte lirnitado parece gararitir, por si
so, a obtençao de urn breve de micro-historiador. Mas os rntodos da microstoria

° Not rexco foi apresentado primeiromente no colóquio 'An uopologia conremporinea e onrropologia hisrdricr/'.
Paris e Marselha, 1992; em segssida foi publicado no revisra Genisco 13, no outono de 1993, sob o titalo
original que adotamos aqtai; consrirniu ainda, corn peqoe005 rnodificacem, urn dos copliulos deJess.ed'ichdlcs.
La micro-analyse a l'expirience, obra coleriva sob a direçao de Jacques Revel, ediçao de Haures Erudesf
GrsllirnarcI/Seoil, ens 1996.
1. A respeiro desse conrexro inrelecrual e d25 proposiçSes que dc induz: "Hisroire ci sciences sociales. Un
toarrsantcririque?", Anna/n ESC, 43 (2), 1988, pp. 291-293; "Tencons l'expirience", Anna/es ESC, 44 (6),
1989. pp. 1317-1323; B. Lepetir eJ. Revel, 'L'experirnenmrion contre l'arbitraire', Anna/es ESC, 47(1),
1992, pp. 261-265.

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U
U
Poit UMA NOVA HISTORIA URBANA
B ERN A R D LE I' E T I T

opera a construção do sisterna feudal"' e porque "o geral nao é apreensIvel


são diversos, suas irnplicaçoes teóricas são analisadas por seus promotores de
por simples adiçao ou justaposicão de situaçôes particulates". 0 terceiro
maneira mais prolixa do que exata, e a referéncia que a cia se faz (quantos livros,
motivo vern do papel da observaçao localizada relativamente a teoria: por
quantos artigos efetivamente citados?) é as vezes mais encantatória que efetiva.
urn lado, cia representa urn papel de anteparo frente aos riscos da
Além disso, o esratuto que se atribui a micro-hisrória e o papel heurIstico que se
esquematizacão teórica abusiva; pot outro, obriga a modificar os modelos
pretende ye-la representar ainda nao estão muito ciaros. Urn estudo de caso nos
interpretativos e a recompor diferenternente a matéria histórica, opondo-
data uma idéia dessa quesrao.
ihes a. variedade do real.
0 t'ilrimo Iivro que Guy Bois dedicou a rnuração da cristandade
Deve-se ter notado que essas razöes, todás expliciradas no livro, inscrevem-se
ocidental por volta do ano mil d urn livro arnbicioso 2. Inrenta propor urn
em tradiçoes e irnpiicam praticas que não se ajustam bern. No que concerne aos
modelo que possa explicar a passagern, na Europa, de urn sisterna social
mérodos, a observaçao intensiva, em ciéncias sociais, remete menos a biologia celu-
herdado da Antigiiidade a urn outro, nascido da revolução feudal e
bar que aos rnodos de validaçao da ciência interpretativa e da thick description anrro-
gradarivamente resultante dos efeitos do trabalho das famlijas camponesas
pológica; ao contrário, a comprovação das hipóteses teóricas pela observaçao empIrica
das comunidades aldeãs. Essa rnutação principal de toda uma "economia-
particular leva ao positivismo logico. No que concerne ao objeto, o local aparece
mundo", entretanto, corresponde, na ordem empirica, a uma cabeça de
como uma espécie de modelo reduzIdo de uma dinârnica gerai: uma arnostra, que Se
alfInete. Argumentando a partir de u ma (mica aldeja de Macon, Lournand
dirá as vexes aleatória e as vezes calculada. Mac eie também é apresentado, de mane1-
—350 pessoas que vivem a urn pulo da abadja de Cluny—, Guy Bois optou
ra compietamente diferente, como o eiemento constitutivo de urn processo de
conscientemente pela micro-história e explica por quC. Enumera vários
corsj unto que se origina na interação eficaz das situaçöes locals. PoderIamos ainda
argurnentos para justificar essa opçao metodológica. 0 prirneiro é da or-
acrescentar a essas tradiçoes diferentes vestIgios de realismo histdrico: o local é
dern da necessidade: a observação intensiva de uma célula elementar é tao
a assirnilado ao real e impede qualquer tentação reorizante demais. 0 iivro foi lido
indispensavel a análise do hisroriador quanto do biólogo. 0 segundo
discutido, mac raramente se ievantou a questão do método: se os historiadores
motivo é o cuidado de inverter o ponto de vista sobre a socjedade, apon-
puderarn entender, expressas na mesma obra corn poucas iinhas de intervalo, propo-
rarido a luz do refletor de baixo para cima, a partir das propriedades cam-
siçöes tao pouco compatIveis, d porque estão numa siruação de grande incerteza
ponesas e das aideias, e não do Estado e das cjdades. A mudança de pers- -
pectiva explica-se ao mesmo tempo pelo fato de que é "de baixo que se
quanto a abordagem monográfica. 0 risco, então, estâ em ver o estudo de caso
ocupar uma posicão simétrica a da eSratIstica descritiva nurna hisróriã serial tradi-
cional: como os quadros e graficos, a apresentacão dos dados locais d reduzida a urn
2. G. Bois, La m,,tatio, dClan mil Lo,rnand, villagerndconnair rkl'AntiquitEarrfEodalismr. Paris, Foyard, 1989.
Sobre os primeiros rnomenros di fortuna critics do llvro: "L' An Mu. Rythrnes cc acrcurs dune croissance,
3.Ibid.,p. 239.
Médénr&c, 21, ootono 1991.

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BERNARD LEPETIT Pos UMA NOVA HSTORIA URBANA

uso sirnbálico, a uma esp&ie de convençao cuja ftinçao é prodarnar a validade da o nIvel em que a operação deve situar-se (salvo, corno virnos, que dc é abstrato),

pesquisa. Aposrarernos, ao conrrário, que as virtudes heurIsricas da micro-história nails sobre a natureza on a exrensão das classes que cia prercnde caracterizar4. Essas

são mais fortes e que uma prática mais produriva do ofIcio de historiador nascerá de definiçoes c as observaçoes que etas induzern servirão, na seqüéncia, como grade

urn conhecirnento mais explIcito das modalidades diversas do raciocInio hjstórjco e anaiftica.

de suas implicaçöes. Tenraremos aqui fazer urn acréscirno a esse dossiê, a propósito
das quesróes da escala e da generalizaço, que se relacionarn. 0 IDEAL DA TOTALIZAçAO

A ülrima noço é equivocada. Urn dicionário filosófico cornurn define de rrês

maneiras a passagem do particular para o geral que cia aponta. A prirneira rnarca a Em 1941, nurria conferência aos alurios da École Norrnale Supérieure,

passagern d0 objeto singular ao conceito. A seguoda transforms-a na operação pela Lucien Febvre explicava os motivos do ernprego do adjetivo "social" no tItulo

qual se esrende a toda uma classe o que foi observado num nlimero lirnitado de da revista que ele fundara doze anos antes corn Marc Bloch:

individuos ou de casos pertencentes a essa classe: a generalizacão é, portanto, uma Sablamos que social, particularmenre, i urn desses adjetivos a que se fez dicer tantas
forma de indução. Quando Pierre Deyon, por exemplo, via na análise da sociedade coisas, ao longo do tempo, que finalmente nSo quer dizer mais qusse nada [ ... J Esrávamos de
de urns capital provincial francesa uma contribuiçao para o estudo das promocôes acordo quanto a pensar que, precissmente, uma pslavra rIo stags parecia ter sido criada [ ... ]
das diferenciaçoes burguesas e, mais genericamente, do funcionamento social no por urn decrero nominative, da providência histórics para servir coma insignia para uma revis-
século XVII, era nesse tipo de operaçBo que se inscrevia seu trabaiho. A t'iltirna ta que pretendia n90 cercar-se de muralhas [.1 Nba existe história econômica e social. Existe
operação, enfirn, aproxima a generalizaçao da analogia: corn base em sernelhanças a história, ponro final, ern sua unidade. A história que i inreiramente social pot delinic5o5.
entre classes, esrende-sea uma a que foi reconhecido corno verdadeiro era outra. A
0 projeto é rnenos caracterIsrico da disciplina do que fez sopor aos historiado-
obra de Carlo Ginzburg Sto rise Notturnapasecc-me urn born exemplo disso. Dessas
res, por urn momento, urns retIlrica para uso inrerno: corno as outras cincias do
definiçöes, das quais nSo escolherernos nenhurna, reteremos várias indicaçoes, ba-
homern, a história busca estabelecer, segundo o ponto dc vista que the é peculiar,
nais. Ageneralizaçao é procedirnento abstrato e processo de absrraçao: seu resultado
princlpios gerais do ftincionamenro social. Mas, talvez par defender a originalidade do
inscreve-se inreirarnenre na ordem das represencaçes. Ela opera por selecâo dos
projeto dos Annals's, Lucien Febvre resume o problems ao da geografia das fronteiras
terrnos comuns e por perda da singularidade, do detalhe, da diferenca considerada

secundária. Os cartógrafos, em sua prárica cotidiana, sabern disto: generalizar para

potter desenhar urn maps é sacrificar detaihes do traçado de urn rio ou de urn 4.A. Lalande, Vorabulnire terhnique et critique cit Ia philosophi6 Paris, PUP. 1991 (1' ed. 1926);P. Deyon,
Amirns capita/c proeinciale. Etsrde sue/a sociEte urbaine aer XVII' siicle, Paris/La Hoyt, Moaron, 1967; C.
conrorno Iirorineo conforrne a escala da representaçao escolhjda, é dirninuir o nIl-
Cinzbrrrg, Le sabbar des sorciirr,, Paris, Ga!Iim,rd, 1992 (1' ed. Turim, 1989); R. Bruner, La carte, mode
mero das variaçIles reconhecidas como perrinentes. 0 trabalho carcografico destaca d'rmploi, Montpellier/Paris, Redus/Foyard, 1987.

o que a definiçao filosófica irnplicava: a definiçao da generalização nada indica sobre 5. L. Febvre, "Vivre Ihisroire. Propos d'ini;iation", Combats pourl'histoirr', Paris, A. Cohn, 1953, pp. 19-20.

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BERNARD LEE ETIT POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

disciplinarcs. Dois pressupostos parecem suficientes pa[a permitir o acesso a totalida- A totalidade social constitula a finalidade iSitima da pesquisa. Uma conduta
de hlstórica: a questionamento dos recortes tradicionais conforme os quais a cincia anaiftica francamenre cartesiana dava acesso a eta, empenhando-se em dividir
históricn arsalisava o passado (o econômico e o social separadamenre, por exemplo) e a cada objeto complexo em conjuntos de dimensão intermediária, Para poder
descomparrirnenraço intelectual dos saberes. 0 essencial da reflexão metodológica depois praticar a quantificacao. 0 estudo da Franca do Antigo Regime passava
dos histonadores engajados no movimento seria em seguida mobilizado pot esse pela análise de suas provInciasi o conhecimento da sociedade campesina resultava
esforço de recomposiçao dos territórios. Eles encontravam at o ftindamento de seu da descriçao dos grupos que a compunham, dos manufatureiros aos lavradores;
dinainjsmo e de sua fortuna, e parecia que o resto vinha por aCréSCimo. a análise da conjuntura baseava-se na individualizaçao de movimentos de duraçao
Disso resultou umdéficit anailtico no que range as questöes de que nos ocupa- diferente. 0 conhecimersto do todo supostamente nasceria da medida, mail
mos aqui. A distinçao entre os nIveis micro e macroarcailticos remetem, nat ciênCiaS acessivel, de suas parses. As novas rnaneiras de fazer elaboram-se hoje corn base
sociais, a opcoes concejtuais muito distintas, geralmente herdadas da história das no questionamento desse modelo historiográfico. Os motivos por que fracassava
disciplinas.Adiferença dos métodos (pesquisas estatIsticas contra pesquisas monográficas, a prática da história quantitativa que então se adotava foram descritos diversas
par exemplo) iniporta menos do que a oposição dos quadros de referncia (a sociedade vezes: na ordem episrernológica, seu limite essencial residia na fraqueza do eio
ou a econornia em sua totalidade, num caso, a situação em sua singularidade, no analItico entre as descriçöes estatIsticas e as hipóteses explicativas. Deu-se menos
ourro), dos seres pertinentes (as agregaçöes, ou entSo as pessoas, mesmo que abstra- atençao as inodalidades de acesso ac, nivet tnais geral visado. 0 tratamerito dado
tas), das formas de sojidariedade entre os atores (pressao nBo necessariamente cons- a conjuntura servirá aqui como ponto de apoio para que o façamos.
ciente, on então negociação e interação) cuja escoiha apriorinao resulta de proposicöes Para a "história historicizante" que os fundadores dos Annales denun-
testáveis, mas de preferências lii ndamentais não mensuráveis6. Contra tail oposiçöes, ciavam, o fato canstitula a unidade temporal elementar que a exploracão dos
que estrururam as querelas da sociologia ou os programas de ensino da economia, a arquivos permitia reconstituir. A crônica narrativa, par sua vez, constitula a
disciplina histórica encontrou-se, pot faita de analise, quase totalmente imunizada. totalidade cuja construção, pot concatenação dos fatos tjdos como verdadei-
Coma cc fosse de forma espontariea, isto 6, scm reflexão crItics, a profissao praticava a ros, esgorava a construçEo histórica. Inversamente, depois dos trabaihos de
macro-h jstória. Labrousse e deBraudel, a historiografia francesa concebe, no pós-guerra, cada
momento histórico como a combinaçao de vários tempos que correm em
ritmo e em escala espacial próprios a cada urn deles. A explicaçBo resulta de
6. R. Guesnecie, "Microéconomie et macro&onomie", e L. Bolranski, "Micro-analyse cc macro-analyse en
sociologie", em Problèmes etobjcto etc La recherche en sdrnces,ociales, jornadas dos diss 5, 6,12 e 13 dejunho de u rn processo que consiste em identificar essas mtiltiplas temporalidades e
1987 orgonizadas pria École des Hauces Etudes en Sciences Sociales; C. Brombeeger, "Du grand an petit. desencaixá-las umas das outras. 0 procedirnento nao postula nada quanta a
Variations des &hclles et des objets d'onslyse dons Ihisroire récence d5 l'erhnoiogie des France". em I. Chiva
eli. Jeggle (eds.), Etlenslogies en mirrsic La France cc lea pays de Lassgrse allemande, Paris, Ed. de Is MSH, 1987,
duração da seqiiência cronologica a set explicada: a época de Filipe II e a breve
pp. 67-94. crise revolucionária da ptimavera de 1789 comportam o mesmo tipo de aoáli-

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POR UMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT -

Se. A mudança não afeta apenas a conduta do historiador, mas tambérn o fornece os meios para urns decornposicao da complexidade do mornenito histó-

estatuto dos objetos temporais envolvidos. 0 fato (no sentido de objeto his- rico, ele rambém impede que se pense na reconsnituição da globalidade de

rórico, sern se postular nada sobre sua duraçao) constitui agora a totalidade, e outra forma que não seja a do empithamento. 0 caráter alternativo dos progra-

as mültiplas crônicas em que dc está inSCritO compBern as partes cuja explica- mas da histónia conjuntural, de urn lado, e da "história imóvel", de outro,

ção é dada pelas modal idades de sua combinação. revela a dificuldade intelectual em que o projeto tropeca. Ela ressalta uma

Na pluralidade dos tempos, duas dimensBes geralmente foram privilegiadas incapacidade para reconstituir em sua complexidade a total jdade histOrica con-

pela his toriografia: as tendências duradouras e as oscilaçBes ciclicas. 0 acopla- siderada, após a operaçio de decomposicão analItica que deveria esciarecé-la.

mento dessas categorias temporais pot muito tempo baseou a ordern de exposi- A demonstração senia ainda mais fácil se tivéssemos analisado as modali-

ção dos resultad os das pesquisas: de urn lado a estrutura, "realidade que o tem- dades previstas para a organização dos resultados das monografias locais, que,

po usa male Veicula muito longamente", e de outro o recitativo da conjuntura. durante uma geracão, constituiram a circunscrição mais frequente da pesquisa

A tarefa de reduzit- a complexidade do mornento histórico isolando seus corn- histOnica, on o modo como a histOria social então inseria seus dados em tipos

ponentes temporais cabe a tcnica estaristica. As etapas dos métodos tradicio- de quadros cruzados que propiciavarn ao mesmo tempo totalizaç5es horizontais

nais de decomposiçao das series cronológicas pertencem a bagagem de qualquer (a sociedade em 1789 cram os camponeses, mais o povo das cidades, mais a

historiador. Mais frequentemente, trata-se de pot em evidéncia o movirnento burguesia, mais a nobreza - cada urn desses grupos, pot sua vez, tambérn

mais longo, eljmjná4o jsolar o movirnento de duraçao imediatamente inferior seccionável segundo o mesrno princIpio) e em colunas (a burguesia é uma posi-

an precedente, eliminá-lo por sua yea, e assim pot diante. Uma representacão ção econOmica, mais uma posicão social, mais urn nIvel de cultura). A história

gráflca em geral ilustra o discuro: cada movimentO se enrola numae5piralso- - total não inscreve sua prática sob a insignia da generalizaoo, mas da-totalizaçao.

breo eixo formado pelo movjrnento de duraço imediatamente superior. A preocupacão corn o realismo histónico, a primazia do corpus arquivIstico que

Esse procedim ento estabelece, na verdade, uma hierarquia entre Os fornece a evidéncia de suas series e a falta generalizada de farnilianidade corn

moylmentos de duraçao djferente Cada urn deles tern, em relação ao movi- qualquer forma de raciocIrlio probabilista talvez explique uma atitude

memo imediatamente mais longo, urn caráter de resto. 0 estatuto do fato epistemolOgica que ye na pesquisa da exaustividade o meio de preencher o
(aqiii no seatido tradicional), simples revelador de estruturas on de conjuntu- programa da histOria tota17.

ras das quais ele é apenas a rnanifestaçao visIvel dos efeitos, sinaliza que 0

7. Sobre as categoeias sociais:J.-C. Perrot, Caen auX1,II! ,ièdr. Gc,,èacd'une vi/lc nzodeme, Paris/L, Hsye, Mouton,
fundamental está no ârnbjto da duraçao major. Mas a técnica estatIstica e a
1975. Sobreas sries remporais:J.-Y. Gcenier, 'Qnesrionssur I'hisroire konomique: Irs socieas pr.4industridles
ordern em que cia isola os movirnentos justificam uma hierarquia que na maio- rrleurs ryrhmes", Reerdeayarh5sr', 116. 1984, pp.451-48l. Sobre as divisSes do cspaço: B. Leperir, "Deux
na das vezes, numa descriçao fenomenologica ou numa análise teónica dos silcies de croissance régionale en France: regard sur 'historiographic", em L. Bergeron (ed.), La CrC monet

processos, so encont ra uma expiicacao ad hoc. Disso resuka que, Se o rnétodo regionalcdana 1'EoprmEditcrranérnnr. XVIII -.)Cc ,iklea, Paris, Ed. de I'EHESS, 1992, PP. 21-42.

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BE RNA RD LE PETIT POE UMA NOVA HISTORIA UI&EANA

Uma maneira de colocar os problernas e uma incapacidade de resolv-los rIsticas iniciais. As primeiras justificativas epistemológicas da microstoria ates-
são os resultados djsso. Caso a questão seja se as economias pr-irsdustriais são tarn a pregnância do modelo macroanaiftico. Por urn lado, os micro-historiado-

suficienternente complexas para apresentar regulacöes conjunrurais, a resposta será res prerendem penetrar nos interstIcios da análise serial, alcançando o vivido e a

a descriçao dos movimenros sucessivos de alta e queda dos precos num espaco e experiencia individual inacessIveis aos estudos seriais. Pot outro lado, des pie-

pot urn perfodo dados - movithentos cuja identificação repousa inteiramente nas tendem, de inIcio, dar aos problemas de validação da análise respostas da mesma

escoihas estatisticas realizadas. 0 raciocInio nao envolve o problema da existência natureza daquelas que a história quantitativa pretensatnente encontrava na ma-
de ciclos conjunturais, mas as modalidades de descriçao e a configuração de urn nipulacao dos rn'srneos. As definiçöes variáveis dadas a noção de "excepcional
encadeamento de ciclos que caracterizam uma situação particular. Quando che- normal", forjada para fazer frente a questão da representarividade do caso, são
gam a ser examinadas, as quesröes da escala cronológica da observaçao e da de- marcadas pot isso, quando se tiara de defender seja a capacidade reveladora, seja
cornposição do movimento conjuntural nao tern solução, nem virtude heuristica: a normalidade da exceção nas socjedades antigas°. A generalização parecia poder
a curva . 6 divisive] ern varios elernenros ciclicos cujo nümero e cuja duraçao tern Operar_se a esse preco.
sua pertinéncia estabelecida unicarnenre pela manipulaçao estatIstica. Uma vez Mas, colocado assirn, o problema não comporrava soluçao. Em meados

que a missão explicativa se apóia nas técnicas da decomposiçao, o princIpio da do século XIX, como alternativa a estarfstica social que então se desenvolvia,
segrnentaçao inicial e o significado da reconsrrução conjuntural não são realmente Frdric Le Play propunha, para o estudo das familias operárias, urn m&odo
posros a prova. Uma vez que nao existe adequacao entre a problemática, de urn em tiCs erapas, que convrn recordar9 . Inicialmente, durante o trabaiho de
lado, e os pressuposcos episternologicos e o mCrodo, de outro, o prograrna de campo, era preciso observar fatos particulates relativos a uma tinica familia (ou
pesquisa não pode dar certo. A existência de uma regulação ciclica do Antigo a urn námero bern pequeno delas). Concluido esse microcstudo, tentava-se
Regime continua sendo fundarnentalmente uma questão de opiniao. extrair dele, pot induçao, proposicöes gerais. Enfim, submetiam-se essas con-
clusöes ao julgarnento de entendidos, no mais das vezes notáveis locals: prefei-
0 SISTEMA DOS CONTEXTOS tos, tabeliães, mdicos... A particularidade desses entendidos era pertencerern
tanto ao universo observado (eles viviam na mesma comunidade humana que
Praticando o estirdo intensivo de objetos muito lirnitados (urn episádio,
urn processo, urn ritual, urn indivIduo quase comurn), a microstoria propöe ha
vários anos outras maneiras de faze-b. A influCncia da hisroriografia francesa e a 8. J. Revel, 'J1hisroire auras du sol", prefScio a C. Levi, Lepouvoirau village. Hi,teire dun exorci,tedans Ic

irnpossibilidade habitual de encontrar na universidade italiana as estrututas ne- PiimontduXT/TFsi?dv, Paris, Gallimard, 1989, pp. I-XXXIII, fornece as referIncias dos primeiros rexros
programdricos d0 grupo.
cessárias para bevar a born termo as pesquisas coletivas seriais corn que se pode-
9F. le Play, La mithodesorialc. Abrégédrr "Ouvs-iers eurrrpdrnr', apresentaç5o de A. Savoye, Paris, Mdridier,sI
na complerar o prograrna explicam ao mesmo tempo a condura e suas caracte- Klincksieck, 1989.

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POR UMA NOVA HSTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

to. Define a cultura como urn mundo de sImbolos partilhados, assirn como as
as famulias que cram objetos de pesquisas) quanto ao do observador erudito
palavras e as estruturas de uma lingua são o horizonte de possibilidade de todo
(assim como ele, mantinham, embora apenas pot razöes sociais, uma distância
ato de fala. Chegar a urn conhecimento geral, nesse caso, consiste em reconsti-
critics em relação as maneiras de set das familias operárias). 0 lugar que ocu-
pam no dispositivo de pesquisa 6 importante porque des constituem a instân- tuir a linguagem que esti a disposição de atores que se limitam, nas situaçöes
particulates em que estão envolvidos, a articulá-la. Urn postulado implicito
cia de vatidacao que permite romper a circularidade de uma análise que, a
partir de observaçoes particulares, induz conclusöes gerais que não podem set fundador do projeto a ntropológico: a estabilidade da relaçao que associa o "tex-

confrontadas corn outros dados que nãó os mesmos que permitiram forjá-Ias. to" da ação social localiz.ada a "lingua" da cultura de que eta 6 a expressão. "Os
siscemas de signos e de sImbolos são partilhados como o ar que respiramos", es-
Mas quem representará o papel de entendido erltre o moleiro herético do
creve Robert Darnton, depois de Clifford Geertz; ou ainda: "Gramáticas cultu-
s&ulo XVI e o historiador de hoje? 0 método de Le Play d interessance aqui
como indice. A resposta que ele dá a questao da validaçao mostra, ao contra- rais realrnente existiram" . E claro que cada pratica social e cada ato de fala são
capazes de rnodificar a cornposicão da atmosfera ou as estruturas grarnaticais, mass
rio, que o problerna da representatividade, preliminar a qualquer forma de
na escala da ação hurnana, tais alteraçöes são negligenciáveis. No universo dos
generalizacIo nesse quadro analitico, não encontra soluçao fora de urn racioci-
textos, aos olhos de Darnton em particular, a equalizaçao das caracterIsticas con-
nio probabilista e de métodos de amostragem.
rextuais do momento (as maneiras francesas de pensar o mundo após o sculo
Na antropologia anglo-saxã 6 que a microstoria iria encontrar os procedi-
XVIII, por exemplo) 6 uma garantia contra a interpretacão Iivre e 6 a condição
mentos interpretativos diferentes que ihe permitiriam escapar ao fascinio do pa-
da generalizacão, fora da qual as possibilidades de saber sea análise histórica to-
radigma quantitativo. Contra um primeiro modelo que, inspirado nas proposi-
con uma nota de idiossincrasia individual ou a caracteristica fundamental que
çflesde Clifford Geertz, oferecia os recursos de urnaciência interpretaciva, OS
percorre uma cultura devern ser consideradas rnin,tsculas.
hisroriadores italianos logo erigiram uma muratha de crIticas'°. A antropologia
A falta de autonomia dos atores sociais e a saturação interpretativa dos
cultural, como se sabe, pretende considerar como urn texto significativo o con-
esquernas analIticos são as duas caracteristicas que resultam desse postulado e que
junto das açöes, dos comportamentos, dos riros e das crenças que forrnam o te-
que o contexto
cido social, e atribui as cincias humanas a tarefa de decifrar o sentido desse tex- justificam a rejeicão do modelo pela rnicrostoria. Uma vez
que confere sentido ao "texto" é, na escala da observaçao, urn invariante, a análise
dá mais atenção ao sentido fixado pelo "texto" do que aos processos sociais, e
particularrnente aos conflitos de lnterpretacão que resultarn em sua fixação Urna
10. parágralos segumres rernerem a C. Geertz, Savoirsociaz aa,aji,giobal. Lea Iier,x do carol,, Paris, PUF, 1986
(l'ed. New York. 1983); R. Darnton, La grand enaaaaare lea chats. Attitudes atcroyanraa dana l'andennc
France, Paris, R. Laffont, 1985 (1' ed. New York, 1984) [Ed. em porruguis 0 GrandaMassacra Ia Gatos
OacmEp:sidwada H,atdr,a CulsuralFranceaa, Rio dejaneiro, CrocI, 1986(N. d5 Org.)]; C. Levi, "1 Pericoli
del Geertzismo", Quadarnistarjcl 58, 1985, pp. 269-277. 11. R. Darnton. La grand masaacra lea chats, p. 300.

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BERNARD LEt ETIT P0R UMA NOVA HESTORIA URBANA

vez que o texto revela o contexto e que o contexto dá sentido ao texto, a análise interpretativas "locals", seleçao das fontes, métodos de tratamento) que cornan-
inrerpretativa fecha-se na circularidade: "e insomma un processo circolare in cui i dam seu desenvolvirnento.
criteri di yenta e di rilevanza, tutti chiusi nell'atuvità ermeneutica costitutiva, Explicitarnente organizados segundo protocolos racionais de estudo, des
appaiono [ ... ] troppo arbitrari"12, A inversão analItica implicada nessas objecoes é respondem a definição do que poderia set uma histónia experimental. A anãlise
dupla. Leva a negar a permanncia em proveito da mudança; traz para a frente da da mudança neles refenida não porque o tempo consnituiria a preocupacão
cena, antes ocupada pela atividade inter,retativa do pesquisador, as capacidades e particular da histónia no quadro das ciências do homern, e sim porque a socie-
Os esforços de deciftaçao do mundo dos atones do passado. dade dinâmica por natureza (retornaremos a isso) e porque a capacidade de
Histoire An exorciste, Itinéraires ouvriers, Naissance dun langage corporatif explicar a evoluçao 6 urn instrumento de validaçao dos modelos. Se, no conjun-
quem não perceheu que os subtltulos dados a esses livros, que cabe inscrever sob - to de uma hisrória experimental (ou de uma histónia-problema, se se prefere),
a insignia da micro-hisrória, desenham a mesma estrutura anailtica? Mudança objeto histórico e construldo, e nao dado de antemão, é o encarninharnento da
do mtsndo cam pons e das relaçöes de poder no século XVII, dinâmicas famili- pesquisa que o dá a luz e o explicita. Mas, ao mesmo tempo, os dois processos,
ares e individuais na lntegração operária na cidade, modificaçao dos aspectos e o da evoluçâo do funcionamcnto social e o de sua elucidaçao, não são separáveis.
dos âmbitos da solidariedade coletiva numa capital do Anrigo Regime: é urn o modelo histónico encontra-se submenido a dois nIveis de validação. Cada urn
quadro em movimento que se reconstitisi a cada vez°. Nenhum desses livros de seus elos explicativos 6 localmente posto a prova das observaçoes empinicas
justapóe recortes temporais regularmente espaçados para fazer o inventrio dc correspondentes. Em seguida ele 6 confrontado, em seu conjunto, corn o des-
suas semelhanças e de suas diferen ças a firn de deduzir delas os processos atuan- mentido eventual da dinâmica social: os processos teóricos que explicita extra-
tes. Por outro lado, tambim nenhum deles é construIdo como uma ônica: em sua validade de sua nao-contradicao corn a rnudança social oservafla Pro-
nem a exaustividade da reconsnituiçao, nern a lineanidade da narração estão cesso e expeniência: dc certo modo, a generalização opera-se pot analogia. A
entre suas ambiçoes. Não é o encadeamento dos fatos, e aim o dos pontos de conrespondencia entre as evoluçoes previstas pelo modelo e os processos obser-
vista analIticos e das modalidades sucessiyas da observação (escoiha das grades vados permite aplicar ao funcionamcnto social passado os pnincIpios explicativos
(localmente testados dc forma empInica) cuja reunião constitui o modelo.
A micro-histónia social opöe-se ao geernzisrno e a seus avanares historio-
12.C. Levi, '1 Pericolj del Geertzismo", p.273.
IN. daT.: 'cern sintese urn processo circular em que os crirdrios
de verdade e de relevEncia, complerarnenre fechados flu atiyjdade hermenEurjca constitutiva, parecern graficos nurn segundo ponto, como foi dito: a atençao dada as capacidades
...
aebirrlaios demais"I. interpretativas dos atones. Os modelos altetnativos Inc. são então fonnecidos pot
13.C. Levi, Lepsuraivau village..; M. Grib5d,
Itinévaire,oue,j,,., .Espare, etgroupessodauxa Turin an debut
d0 XX' ,,ide, Paris, Ed. de l'EHESS, 1987; S. Cerurci,
uma antropologia social menos aterita aos recortes estrutunais da sociedade do
La rule CC des mCtier,. Na issa,s cc d'ur, langage
rn,poratf(Tudn, 17-1& si?cic), Paris, Ed. de lEHESS, 1990.Tenrej pot empruricaas idlias desenvolvidas que as representaçöes e aos papis sociais, bern como aos processos de estruturação
aqui: ci. Lea miles dan, Ia France mademe (1740-1840), Paris, A. Michel, 1988,
da sociedade a que a intenação de ambos induz. Eu gostania de sugenir, seguindo

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POR UMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

Paul-André Rosental, que a microstoria se instala corn seus modelos em posicöes da micro-história provém apenas da força de evidéncia que os grandes painéis

pouco conformes àquelas que cerras leituras de seu programa Ihe atribuIram'4. haviarn conquistado. Eta tern por funçao identificar os sistemas de contextos

Urn instrument0 de analise e uma grade teórica fornecem a microstoria os rneios em que se inscrevem os jogos sociais. A ambição dessa cartografia dinâmica é

para valorizar os atores. Os rnétodos da network analysis permitern reconstruir reconhecer e desenhar, em sua variedade, urn conjunto de mapas que correspondem

as redes de relaçoes dos indivIduos e das famIlias. Essas redes resultam do espaco a igual niirnero de territónios soclais. Quanto ao princIpio do funcionatnento

de experiéncia social de cada urn e traçam sen horizonte. A identificacao delas social, por sua yea, é isnico e privilegia uma 6nica escala: a do microscópico, em

permite reconstjr ujr as formas do agrupamento social a partir da multiplicidade que operam os processos causais de que dependem todos os outros.

das práticas indjvjduais Os elementos teóricos mais importantes encontram-se Assitn, nos trabaihos de micro-hist&ia, organiza-se, se não uma contra-

no afltropólogo norueguês Fredrik Barth. A micro-história fornece-ihe o mode- diçao, ao menos uma tensão entre uma conduta muito atenta aos procedimen-

lo de urn individuo atjyo e racional, que faz escolhas nurn universo caracteriza- tos de pesquisa que fazem surgir objetos hist6ricos inéditos e o papel de sanção

do por incertezas e restriçoes dependentes particularmente da disrribuicao desi- final que atribuem a experiência individual dos atores do passado. 0 sistema
gual das capacidad es jndivjduais de acesso a iriformaçâo. Do conj unto das esco- dos contextos, reconstituldo pela série das variaçöes do ângulo de visão e da

Ihas individuais resultam processos macroscópicos, como, por exemplo, a pene- acomodaçao da optica, possui duplo estatuto: resulta da combinacao de milba-

tcação da ideologia fascista nos xneios operanDs turjnenses no século XX, on a res de situaçóes particulates e ao mesmo tempo dá sentido a todas elas. Por

consolidaçao vatiável das corporacöes de offcjos e a formaçao do Estado moder- exemplo, a evolução do Estado rnoderno no século XVII ocorreu em milhares

no trés siculos antes. dc aldeias como a de Santena, no Piemonte, mas, ao mesmo tempo, o modelo
- que se fornece dessa evolução assegura que não será-necessário reproduzir_milha-- - - - - --
Então, a consideraçao das variaçôes de escala sitiia-se inicialmente do-
res de vezes a expeniéncia de Santena Para garantir o valor geral do caso. 0
lado do objeto. A importância diferente dos recursos de que os atones dispoem
conjunto dos contextos construido ao longo da experimentacão histoniográfica
e a diversidade da extensão dos campos em que des sic, capazes de agir estão
entre as caracterIstjcas essenciais do panorama social e colistituem as fontes é ao mesmo tempo o quadro mais abrangente e o nIvel de generalização. Mas a
quesrão de se saber se o conjunto que foi reconstituido está completo, ou
principais de sua modificaçao. Avariação de escala não é o apanágio do pesqui-
mesmo se é 0 L'tnico considerável, niio tern soluço. Invocar a experiência dos
sador nem sobretudo o produto do processo de consrrução da pesquisa. E antes
atores parece urn rneio de romper tal incerteza. Urn relativismo metodológico
a parre que cabe aos atores. Também a manipulacao deliberada do jogo das
escalas não tern por finalidade sugenir outro espaço social: a virtude migratória vern acabar numa forma de realismo epistemológico.
"Tudo que é importante é rnacroeconômico, tudo que é fundamental é

microeconômico": talvez a microstoria pudesse adotar a formula prezada pelo


14. Cl. P-A. Rosentol 'Construire le 'mucro' par Ic 'micro'. Fredrik Barth era n,icrcatcs'ia", iisj. Re-1, J--d'
economista Serge Christophe Kolm Os micro historiadores contnibuiriam en-
echdler, Paris, Hautes Etudes(GoIIjmord(Le Seujl, 1996,p. 141.

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Ba RNARD LEI'ETIT P0R UMA NOVA HISTORIA URBANA

tao para fazer emergir a figura, inédjta em história, da oposicâo entre dois entre a real jdade e sua imagem, e em cada uma dessas duas esferas uma relação de
modelos conceituajs alternatjvos do social, corn objetivos e esquemas proporçloo entre as partes.
interpretarivos divergentes. Alguns dos bloqueios denunciados em economia e Uma aplicacao mecnica do conceito explica so rnesrno tempo o descré-
em sociologia encorajam a explorar-se outra via, esforçando-se pot manter reso- dito em que caiu a noção de escala isa geografia conternporânea e o pouco de
lutamente do lado d0 rnétodo a variação de escala. Dessas explanacaes que se atenção teórica que ihe é dado. Paradoxalmente, somente uma escala cronologi-
acaba de let, deduzir-se-á que não Se deve buscar principalmente os meios, nas Ca, a escala secular, consta no indice dos "terrnos principais üteis para a análise
ties disciplinas citadas. Uma caminhada nurn raio mais amplo se impôe. Mas, dos espaços e dos sistemas espaciais" que fecha o volume geografico da Nouvelle
de urn campo a outro do saber, as transferencias de modelo são coisas delicadas encyclopedic des sciences e des techniques". 0 registro em escala pertence aos
- ainda mais quando concernem a proposiçöes ecléticas. Convenharnos que será procedirnentos do instrumentaçloo, e seu corihecirnento inclui-se nos modos de
feito aqui urn emprego metafórico dessas proposicöes, corn funçao de desloca- ussr. "E preciso lembrar sempre que urn maps i urns redução de urn territário.
mento e de exploraçao. A escala é a relação entre uma extensloo medida no rnapa e a medida real no
terreno"7. Pot trás da operacloo carrográfica está urn realismo. A escala do ge6-
A ESCALA F. A CONsTRUçA0 DO OBJETO grafo associa urn representante, o mapa, e urn refetente, o território clija Con-
figuracao é dada e precede a operacloo intelectual quo é a realizaçloo do rnapa.
"Em geograf'ia ou em arquitetura, uma escala é uma linha dividida em partes Portanto é possIvel imaginar duas hierarquias paralelas, a das "escalas", que per-
iguais c colocada ao pé do urn rnapa, de urn desenho ou de urn projeto, para servir
tence so dorninlo da cartografia, e a dos "niveis" dos fenôrnenos e das organiza-
de medida cornum a todas as partes de urn edifIcio ou então a codas as distâncias e a
çes espaciais, quo pertence a natureza das coisas c-a esrruturação do mundo. A
- todosos lugares de urn mapa"15, A definiçao dada pela Encyclop édie permite orientar
dificuldade do msnejo da escala provérn dessa dualidade: "segundo a escala,
a pesquisa. Ela designa duas disciplinas que constituirão seu campo (notemos que
seu enraizamento nos saberes práticos 6 considerável, no século XVIII: o conheci-
mento do rnundo e a teoria da arquitetura tCrn uma finalidade utjlitária que se
16. F. Auriac eR. Brunet (eds.), NouvelleEsscyclopCdiedes sciences etc/es techniques. Espaces,jeu.r etenjeux. Paris,
completa nas Geografias comerciais e nas Arles de construir) e duas quesröes princi- Fondarioo Diderot/Fayard, 1986. A respcito do noçso de escala en, geografia. pode-se poetic de P. Haggett,

pais: a da medida; ada dupla visao potencial da escala, que estabelece urns hotuologia "Scale Components in Geographical Problems", em R. J. Chorleye P. Haggett (eds.). Frons'iersi,, Geographical
Teaching. Londres, E. Arnold, 1965, pp. 148-163;J.'B. Racine, C. Raffesrin rY. Ruff "Echelketaction.
Contributions une inrerpelcasion du m&anisme de l'ichrlle dans Iapratiqsscde Ia geographic", Geographica
helvetica, 5,1980, pp. 87-94;J.-C. Boyce, "Echelleort ucreurs", em Collecesffrancaisdegeographieaos.ialeet
urbaine. Delagiogsezphie urbaine S lagiographiesaciale. Sens et,,s,s-ses'ssde l'eapace, Caen, Paradigme, 1984, pp.
15. Encyclopedic ou Diceionnaire ra honni 4,, sciences, des arts et des rn/tiers, Paris, Lebreton, 1755, vol. 5,p. 248 81-86.
(vrrbrte "Echrlle").
17. R. Brunet, La carte, snoded'ernplosc ,.45.

208 209
BERNARD LEPETIT
PoE UMA NOVA HisTORIA URBANA

muda-se também a 'óptica' e o Dive1 de informaçao", mas "nada indica que os organização de urn espaço, mas de práticas de atores que se desenvolvem de acordo

fenômenos e as estrututas mudam se o olhar que se projeta sobre eles se modif'i- corn lógicas pouco mensuráveis. Como a variação de escala pode dar conta da corn-

C' n• Escoiher uma escala cons isle então em selecionar urn nIvel de informação plexiclade do real e de sua inscrição em universos de medida dIspares? ConvCm bus-

que seja adequado act nIvel de organizacão a set estudado. A uma geografia que car em outra parte proposicöes menos redutoras. Pars isso, faremos uma distinçao

desejasse interrogar-se sobre a configuracao de uma rede viria regional, urn entre as noçóes de proporcao e reduçao e a noção de escal20.

mapa na escala 1:25 000 não acrescentaria nada, enquanto seria precioso para Viollet-le-Duc scm düvida foi o primeiro a dedicar urn verbete especial

quem desejasse compreender a relação entre a disrribuiçao do habitat e o traça- num dicionário de arquitetura a uma noção de escala diversa da noção de pro-

do das estradas rurais. porcão21. A proporcão não estabelece relação entre universos distintos, situa-se

Tres dificuldades resukam dessa posição epistemológica. A primeira, mais inteiramente na esfera do objeto: "Deve-se entender por proporcóes as relaçôes

propriamente geografica, refere-se a questao da corstinuidade. Como conciliar a con- entre o todo e as partes"22. Elas são estabelecidas segundo duas modalidades

tinuidade fundamental do espaço real (passa-se, scm corre, da aldeia para o mundo) geradoras: uma, aritmCtica, não possui outra referencia alCrti do universo dos

corn o caráter discrero das escalas em pthtica? Como, simetricamente, conciliar a n(imeros e de sua combinação (caracterizaria a arquitetura da GrCcia e de Roma);

continuidade inerente a representação cartografica corn sisremas de relaçöes que nem a outra, geomCtrica, encontra na dimensão do homem o módulo elementar do

sempre tern rraduço espacial continua? As duas outras dificuldades são mais gerais. sistema harmônico (seria a da arquitetura da Idade Media ocidental). Mas a

Trata-se inicialmente do risco de tautologia: como assegurar-se da existência de uma referencia a altura do homem não basta pars estabelecer uma diferença entre

realidade geográfica scm fazer previamente a escoiha da escala que fornecerá sua irna- práticas matemáticas. "Nesses dois sistemas, encontra-se o mesmo elemenro:

gem? Quem conhece, por exemplo, o grau de completude e as caracterIsticas cia rede relaçöes entre ntimeros, relaçoes entre aagulos e dimensöes dadas por triângulos

viária nacional, possuindo apenas, como era o caso da Franca ate o fim do Primeiro semelhantes"23. A escala aritmCtica ou geomCtrica produz harmonia, mas esta se

Imperio, mapas regionais ou departamentais? A passagem da noção de território a torna xipso facto uma propriedade exclusiva do objeto construldo.

de terreno, na proposiçao de Roger Brunet, C o sintoma da segunda. 0 terreno, A escala arquitetônica é urn operador mais complexo. Designa a interação

aqui, remete a uma configuracao do relevo e a operacöes de triangulação e agrimen- (e rlão mais a relação) entre urn edifIcio e o que não C dc (e não mais entre

sura, e a questao da escala coloca-se sornente num universo de medida - o topográ-


fico. 0 território, ao contthrio, C uma formaçao espacial que não depende apenas da 20. Eu acompanharia aqui P. Boudon, "line architecture mesurie", Critique, jan-fey. 1987, pp. 121, 133, e id.
a
(ed.), Dc l'architecture l'épiscémologie. La question de l'bchelle, Paris, PUF, 1991.
21. E. Violler-le-Duc, Dictionnairede l'archicccturefrançaiseduXt auXVF siècle, Paris, A. Morel, 1861, vol. 5,
verhere 'Echelle", pp. 143-153 1864, vol.7, verbete Proportion", pp. 532-561.
18. Ibid., p.47.
22. E. Violler-1r-Duc, op. cit., 'Proportion", p. 532.
19.R. Brunet (ed.), Giographieuniverselle, I Mondes nouzseaute, ParislMonrpellier, HachercelReclus, 1990,
p. 127. 23. Ibid., p. 560.

210 211
BERNARD LEPETIT Pois UMA NOVA HISTORIA URBANA

suas diferentes partes). Num raciocInio as vezes ainda hesitante (o estatuto da de madeira do palácio Farnese é urn modelo reduzido, mesmo que a reducao
arquitetura medieval muda de urn verbete a outro, ao sabor do destaque dado nao afete a dimensão que cIa atinge habitualmente.
a escala humana), Viollet-le-Duc uriliza inicialmente a noção de dimensão 0 mérito que se atribui a reducao é conhecido26 . 0 processo cattesiano
para introduzir o construldo no universo dos usos. A arquitetura grega, djz de conhecimento, já se disse, ultrapassa a resistência ligada a complexidade do
ele, estabelece uma proporção entre o diâmetro das colunas de urn portico e a objeto, dividindo-o previamerite em elernentos que são submetidos, em separa-
altura dos degraus do soco sobre o qual elas se apOiam, mas não se preocupa do, a uma análise particular: o saber sobre o todo passa por urn saber prévio
corn a relaçao entre a altura desses degraus e a das pernas dos cidadãos que sobre suas partes. A prática em que se inscreve a fabricacão (material ou metafó-
terão de sub i-los: ela nao tern escala propriamente djta. A arquitetura ociden- rica) de modelos reduzidos é inversa. Não faz uma distinção entre as diferentes
tal está nurna posicão diferente: "doravante, uma porta não crescerá mais na partes do objeto, mas entre as diferentes dimensOcs em que dc se manifesta. Ela
proporção do edificlo, pois a porta e feita para o homern; cIa conservará a nao pretende estabelecer uma imagem semeihanre ao objeto, mas apenas
escala de sua finalldade"24. Em seguida ele nota a diversidade dos elementos hornologa a dc. Nesse caso, mesmo se nao passa de ilusão —Cu seja, se o saber é
que determinam a dimensão do construIdo: o uso, como acabamos de ver, incompleto -, o conhecimento do todo precede o das partes. 0 modelo reduzi-
mas também a função do edifIcio (e sobretudo sua função simbólica) e a do tern ainda urn atributo: constrOi e rnanifesta sua artificialidade. Pot isso, não
natureza dos materials empregados. A unicidade da escala do cartografo, o é urn hornOlogo passivo do objeto, mas o resultado de uma experimentacao,
arquiteto opOe a pluralidade das escalas de referência. controlavel, renovável, rnodificavel em função dos parâmetros escoihidos e de
Philippe Boudon relata também que Michelangelo instalou, no lugar des- pontos de vista particulates. Ele exp5e ao mesmo tempo seu Caráter calculado,
tinado a cornija do palácio Farnese, que estava construindo, uma cornija de seu poder de inteligibilidade e sua natureza artificial.
madeira nas dimensóes do edifIcio25. Essa cornija, na escala 1: 1, também nao Desenhar urn projeto em escala nao significa fundamentalmente esrabe-
foi reduzjda. Tecnicamente, o modelo nSo esta de acordo corn a realidade: é lecer, entre o real e sua representacão, relaçóes que comportem uma aplicacão
evidente que a madejra nao era o material definitivo a set utilizado. Mas, nesse do teorerna de Tales. Desenhar urn projeto é construir urn modelo reduzido
momento da concepcão, essa é uma dirnensão do objeto que nao interessa ao da realidade depois de haver selecionado uma dimensão dela (no caso, sua
arquiteto. No conjunto dos universos possíveis em que dc deve atribuir medi- disposicao no solo) e de haver renunciado as outras. Poderlarnos destacar a
das a cornija, sua seleçao é diferente: descartando a escala técnica, dc faz urn perda (de detalhes, de complexidade, de informaçao) que tal operacão envol-
julgamento sobre o elemento arquitetônico do ponto de vista óptico. A cornija ye. E mais justo destacar a escolha e a intençao que cia supóe, pois a opinião

24. Id., "Echdle", P. 145.


25. P. Boudon, 'line architecture rnesurk'. 26. C. Lvi-Strauss, LaprnsIesauvage, Paris. 1962, cap. 1, "La science d0 concert'

212 213
P0k LIMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

arquitetônica nbo visa urn objeto preexistente, mas procura conceber as diferen-
precedente repousaria idéia preguiçosa de que o real se desvenda espontanea-
tes dimensóes (espaciais, como também socioculturais ou técnicas, por exem-
mente, em sua riqueza, antes de qualquer atividade de análise (necessariamen-
plo) nas quais se inscreve urn objeto futuro. Uma dnica reduçbo a uma escala
te em deficit, por sua vez). A quesrão de Se saber quanto mede a costa da
escoihida corn exclusbo das outras nbo basta para esgo tar sua complexidade. Se
Bretanha admite uma infinidade de respostas. "Quando uma bala ou uma
urn modelo reduzido é pertinente em relaçao a uma dimensbo particular da
peninsula que se havia registrado nurn mapa em escala 1:100000 6 redesenhada
realidade, para o arquiteto existem várias modelizaçóes desejáveis de urn edifI-
num mapa em 1:10000, percebern-se em seu contorno inumeráveis sub-balas
cio futuro. A pluralidade das pertinéncias legitima a multiplicidade das redu-
e sub-sub-penInsulas e assim par diante." No limite, "nas escalas extrernamen-
çöes. Por isso, a projeto, em arquitetura, é uma dinâmica e uma arbitragem. E
re pequenas, a conceiro de Costa deixa de pertencer a geografia727. Assim, não
uma dinâmica na medida em que o modelo invoca outros, que correspondern a
so é sensato escoiher uma escala, como tambCm é irnpossIvel apreender o real
outras pertinéncias. E uma arbitragem namedida em que resulta na coexistência
sem essa escoiha. Entretanto, a militar, o fiscal aduaneiro ou o pescador que
de diferentes escalas e diferentes pertinências, e em que o jogo entre as escalas
estlo a pé, por exemplo, nio mantêrn relacao jdêntica corn a costa da Bretanha,
permite dominar a imagem global e coererite do projeto. Retomaremos, para
e a diferença de seus poritos de vista sobre o território suscitaria uma carto-
encerrar, as sugestOes episternolOgicas dessa prática. Antes, porCm, como a visbo
grafia em escalas diferentes. Assim, mais que uma relaçbo de similaridade corn
da reduçbo de escala, alérn de descritiva, é também explicativa, nOs nos detere-
o real, a escala designa uma reduçao dele. Ela exprime uma intençbo delibera-
mos numa (iltima análise.
da de visar urn objeto e indjca o campo de refethncia em que a objeto está
sendo pensado. A adoçao de uma escala e inicialmente a escoiha de urn ponto ESCALA ECAUSALIDADE
de Vista de conhecimento.
0 caráter virtual dos objetos aos quais se apega o arquiteto (dos edificios 0 mapa nbo é o territOrio: duas imagens, uma em escala 1:25 000 e
ou das cidades vindouros) talvez explique o fato de dc dar a noçbo de escala urn outra em escala 1: 500 000, nbo perrnitem que se leia da mesrna maneira a
sentido mais complexo do que aquele dado pelo cartOgrafo. Comentou-se que a organizacbo do espaco. Omitindo as variaçöes que se revelariam em outras
escala cartográfica liga urn representante, a mapa, e seu refetente, o terreno.
escalas e que dariam uma outra imagem do mundo, ambas se situam, a partir
Diversamente, a escala do arquiteto liga urn representante, o projeto ou o mo-
de urn ponto de vista de conhecimento especIfico e corn a preocupaçbo de
delo reduzido, a urn representado, a ediflcio projetado. Par ainda nbo existir, a responder a urn uso particular, nurn nivel deliberado de generalizacbo. Mas
realidade constitui apenas a horizonte do trabalho de representacbo. A reduçbo uma nbo é mais verdadeira que a outra. Urn colOquio internacional organiza-
do em 1985 sabre a relaçbo entre a evoluçâo agthria co crescimento demográfico
27. B. Mndelbrot, Ls objetcfraaa4 2. ed. revisad, Paris, F1ammrion, 1984, cap. 2, "Combien mesure La cóte - permite encontrar situaçöes equivalentes em história e especificar suas conse-
de a Bretagne?", pp. 25 e 32.

215
214
BERNARD LEPETT P0R UMA NOVA HIsTORIA URBANA

qii8ncias28 . Na ocasião, opunhamse riurn debate o econornista Ester Boserup, realidade, que so são exciudentes, e pot isso passIveis de se oporem mutua-
que considerava a pressão demografica como o principal motor do desenvol- mente, quando se cré que valem na mesma escala.
virnento agrIcola, e urn grupo de historiador es. Estes viam no crescimento da Pot defrontar corn escalas cronolOgicas e espaciais desmesuradamente Va-

populaçao, no rnáximo, urna entre várias causas do progresso agrIcola: os riáveis, a geomorfologia está mais acosturnada a manejar esquemas explicativos

avanços técnicos, a abertura dos mercados, o investjmento urbano, a diversi- corn causalidades rnOltiplas e não necessariamente coincidentes29. No ponto de

ficaço do consumo tinham, segundo eles, efeitos desencadeadores pelo me- partida de urn de seus projetos rnetodolOgicos mais sistemáticos, encontra-se uma

nos igualmente importantes. Mas, na maioria das vexes, os debatedores in- reflexão sobre o domino de validade das leis fisico-qulmicas (não se julgará sua
verriarn a relaçao e viam no desenvolvjmento agricola a causa do aurnento do pertinéncia factual, por falta de competéncia, mas consideta-se urna vantagem ela
nImero de homens. Concltisóes contradjtó r jas e debate scm saIda. Obser- relacionar-se corn as ciéncias ditas exatas). Essa reflexão apóia-se, de urn lado, na

vando de perto, porém, vemos que as diferenças não concernem apenas aos contradição entre a verificaçao experimental cornum da lei de Lavoisier sobre
mecanismos explicativos. Elas tambm resultam do contexto em que eases conservação da mate'ria e, de outro, no emprego que se faz do princIpio oposro,
mecanismos foram estabelecidos, Boserup trabalha corn espacos amplos (a isto 4 de sua degradaçao progressiva e da desintegracao atôrnica, sobre o qual se

China, ocontinente africano) e duracoes muito longas, no mInimo milenares flindarnentam os rneios de dataçao da histOria da Terra. Uma das maneiras de

(a Antiguidade, a Idade Media em sua totalidade), ou então corn grupos resolver a contradicao é a que acabamos de evocar; consiste em adrnitir que os
muito pequenos, isolados nurn territó rio bern pouco densamente povoado dois principios são concorrentemerite válidos ern escalas diferentes: a da experi-

(os indigenas do deserto do Kalahari, cerras trjbos arnazônicas). Os historia- rnentação, para o primeiro, os tempos geolOgicos para o segundo. Da dupla
dores, ao contrário, baseiam suas conclusö es na escala maxima deurnaregião constatação da descontinuidade dos principios explicativos e do papel das varia.-
(o Sul da Inglaterra, a Provence, a Flandres) e em duraçoes compreendidas çOes de escala para compreendé-la decorre urn projeto taxionOmico. As forrnas do
entre algurnas decadas e dois a trés sCculos. E porque os interlocutores não se relevo que o geornorfologo tern de conhecer são divididas em classes de extensão e
situarn no mesmo nlvel que não podern se entender. Assirn como o mapa em de duraçao decrescentes. As primeiras, os continentes, desenvolvem-se na escala
escala 1:25000 não d mais verdadei ro que o mapa em escala 1:500000, as de vatios rnilhOes de quilômettos quadrados e de vários bilhOes de anos. Na outra
conclusóes dos historiadores (embora extrernidade da classificaçao, microformas tern o tarnanho aproxirnado de urn
mais próximas da escala hurnana e da
experiência dos atores, capazes de conhecer nas poucas décadas de sua vida o metro e urna duração de Vida da ordem do sCculo.
punhado de aldelas ou de cantöes submetidos a observaçao) não são mais

verdadejras que as de Boserup. Elas fornecem explicacoes diferentes sobre a 29. J. Tricart. "La giomorphologie et la notion d'ichelle", Rcvucdc gEomorpho logic dynamiquc, III, 1952, pp.
213-218; A. Caillrux eJ. Tricart, "Le probleme de la classification des Fain giomorphologiqaes", Annalcsde
geographic. LXV, 349, 1956, pp. 162-186; J. Tricart, Pri,c:pco cc mdihodrs de la gComorphologie, Paris,
28. A. Fuve-Chmowt (ed.), L"Yolution ag7tire e.t crojisance Jémegraphi Masson, 1965.
que Liege, Ordina, 1987

216 217
BERNARD LEP ETIT POP, UMA NOVA HISTORIA URBANA

Terfamos af nada mais que a combinaçao de duas escalas de grandeza, se particular, que reorganiza o sisrema das causas em novas bases. A decomposicao
essa taxionornia não se pretendesse genética e explicativa. Urna vez que a ripológica do universo das formas não produz urn conjunto de conhecimentos
geomorfologia se dá por objeto a superfIcie de conrato entre a parte sólida do parciais disjuntos. Em cada escala, é a capacidade explicativa da disciplina que se
globo tetrestre e a carnada atrnosf&ica que a envolve, cada uma das classes encontra engajada. A questão nao é saber como articular formas parciais de
criadas associa uma unidade morfologica e uma unidade climática, e define urn explicacao, mas como fornecer uma explicacao total da forma parcial considera-
princIpio de evoluçao. 0 interesse desse esquema metodológico está no fato de da. E possIvel objetar que se trata de urn efeiro da forte evidéncia individual dos
que ele busca a explicaçã o da djnâmjca das formas na combinação de fenômenos relevos que a geomorfologia analisa? Seria esquecer que as próprias formas de
que, para uns, residem na lirosfeta e, para outros, na atmosfera, e nao na combi- relevo so têni a existêiicia que o observador Ihes dá, e que as noçóes de placa
nação de mecanismos causais eflcazes nas diferentes esferas. No âmbito dos continental, bacia sedimentar ou fenda também decorrem de uma histOria da
grandes conjuntos estruturais, a pesquisa geomorfologica ye nos movimentos inovaçao intelectual.
da crosta terrescre o princfpio fundamental da evolucao do relevo. Nas escalas Os progressos recentes do estudo das series cronologicas confirmarn e
intermedjárjas das unjdades tectônjcas e dos acidenres elementares (uma vala, reforçarn a leitura que acabamos de fazer do esquema geomorfolOgico de análise.
urn vale, urn monte), a atenção volta-se sobretudo para a ação conjugada das 0 realismo possIvel das categorias espaciais nao tern contrapattida na ordem
oscilaçóes climáticas e dos dados estrururais (disposicao das camadas, natureza temporal. Aparenternente, a materialidade dos lugares ofetece as operacöes de
dos rnateriais). A litologi a, enfim, col-istitu i-se corno variveI explicativa princi- recorte do espaco pontos de apoio e linhas de diferenciaçao mais sólidas do que
pal das formas menores (solos poligonais, erosão fluvial, descamaçao) das quais aquelas oferecidas aos recortes cronologicos pela passagern linear do tempo.
depende o feitio das vettenres. Nessa escala, a geomorfologia distancia-se da Alguns economistas insistem nisso rnuito mais do que os historiadores: os mo-
geologia para aproxima rse de outras disciplinas: a fIsica, a qulmica, a biologia. vimentos seculares ou cIclicos em que se pode decompor as series ternporais nao
Isso não significa, evjdenternente que cada uma das causas consideradas
tern realidade°. Sao movimentos abstratos, idealizados, construfdos para fins
cessa de represenrar urn papel quando se deixa o nIvel em que sua eficácia de pesquisa, que permitem deduzir a opacidade da evoluçao das grandezas eco-
particular 6 evidenciada: a natureza das rochas, por exemplo, 6 urn dado que nômicas observadas pot rneio da introduçao de regularidades e de princIpios
deve levar em conta a análise das microformas tanto quanto a dos relevos de explicativos de cada uma. PrincIpios de senrido contrário podem surgir dal (por
dimensöes intermediárias, e a tectônica e uma variável importante ao mesmo exernp!o, o salário e a produtividade in natura evoluem em sentjdo inverso a
tempo nos nIveis mdio e superior. Entre as classes morfológicas, os limites curto prazo, mas em sentjdo idêntico a longo prazo), porém a hipótese de
nunca são estanques. Mas a natureza dos fenômenos, as relaçöes de causalidade e aditividade permiria reduzir essas oposic6es de escala numa espécie de totalizacão
os mitodos de observaçao variam segundo a dimensão temporal e espacial dos

objeros considerados. Em cada escala deve set imaginado urn modelo genético 30. H. Guirton, Sraost,que ,téconomEtrk, Puns, DaIIoz, 1959.

218 219
BERNARD LEPETIT POR UMA NOVA HI3TORIA URBANA

a1g6rica. Como a história, que alias Ihe empresrara todos os seus métodos privilegiado. Em qualquer escala que seja, elas são idénricas [ ... ]. Diz-se que as

nesse domlnio, a análiae econmica esperava alcançar a totalidade ao firn de urn propriedades do passeio aleatório são invariantes em relação a escala utilizada na

processo de decomposição seguido de uma combinacao de escalas imbricadas. observação e em relação as referCncias temporais"32. Essa invariabilidade em rela-

Urn argumenro de irrealismo e a denüncia do caráter mednico dos proce- ção a escala temporal tern várias consequCncias: para o econornista voltado para

dimenros esratIsticos adotados conduziram a análise das sries temporais, a custa futuro, a impossibilidade de uma previsão que não seja aleatória; para o historia-

de inovaçöes rápidas, a uma renovaçao profunda do instrumental disponIvel. Este, dor, voltado para o passado, a impossibilidade de desenvolver, a guisa de análise

em particular, inverte a conduta para tentar empregar mtodos de explicacao da série, algo mais que uma descriçao - ou uma racionalização adhoc, para todos,

integral e técnicas de decomposiçao simultânea que não posrulam a priori urn a inutilidade da busca de urn sisterna causal interno e totalizante para explicar o

esquerna de esrruturaçao temporal, e sim, ao conrrárjo, procurarn depreender da conjunto da série. A série é uma sequência de estados independentes.

série uma classificaçao dos acasos segundo sua periodicidade e localizar os fenôrne- Modifiqucmos o modelo. A operacão, ao menos em economia, não é

nos de dependéncia ao longo do tempo31 . Embora nenhuma atenção sistemática urna pura hipdtese acadCmica: entre outras grandezas, o volume dos capitais, as -

tenha sido dada a isso, tais mérodos tern conseqüências importantes para o estatu- condiçoes da producão on do emprego são estoques rnodificados a cada mo-

to da escala temporal de observaçao. Na expecrariva de urn verdadeiro estudo, que mento por fluxos de entrada e de salda dependentes das condiç6es econômicas

contribuiria para enriquecer a noção hisrorial do tempo, nós nos limitaremos aqui anteriores. Nesse caso, ao contrário do esquerna precedente, a existência reco-

a algumas observaçoes elemenrares, para uso local. Utilizaremos o mndice Dow nhecida (pela análise espectral, pot exemplo - rnas o exame dos modelos "Arima"

Jones como ponto de partida. A trajetória descrita por esse Iridice da Bolsa ha urn levaria a colocar, embora de maneira urn pouco diferente, a questão da escoiha

século é urn "passeio ao acaso", a random walk. A rnarcha aleatória tern várias da escala)13 de ciclos privilegiados nurna série cronologica implica, na orderndo

propriedades matematicas que explicam as caracterIsticas de seu comportamento conhecirnento, a elaboraçao possivel de urn sistema explicativo causal e so mes-

temporal: os retornos da série a seu ponto de partida são uma certeza; os interva- mo tempo, na ordem dos dererminantes, a irnportância das referências tempo-

los enrre duas passagens pelo ponto de partida não tern valor rnédio, isto é, o rais e da escala cronológica adotada. Na hipótese de que se possam considerar

movimento não apreaenta ciclo privilegiado; uma marcha ao acaso corn expectati- series cada vez mais longas, o prolongarnento do periodo de observaçao, em

vanula não apresenta tendéncia (oscila em torno da horizontal), mas a amplitude


de suas flutuaçoes vai aumentando corn o tempo. Enfirn, e esta é a caracrerIstica 32. D. Zajdersweber, "Chronique duo randonneur cenrenaire: Ic Dow Jones", I-Ilstoire etmesure, 1-2, 1991, pp.

que destacaremos aqui, "todas essas propriedades não estão ligadas a urn perIodo 132-133.
33. Segundo informaçao de Carolie Varier e P. A. Rosenral, 'Arima' 6 urn m&odo pars andise e previsSo das series
remporais que modeliza a maneira corno urn fenEmeno depende de unsa comiainaçlo linear de seiss prdprios

31. Sérieatempsreiea, utimero saplemenror de Histsi,e ca valores passados, de fluruaçBes prccedentes (choques, inovaçdes) edo valor passado de ourras series reniporais.
srov(1-2, 1991), coordensdo porJ.-Y. Gre,sier,
con,tirui pam os histori adores ama introduçso sugesriva. Mais deraihes podem ocr obridos em Logidelatatiatique s'reconsamCrriqu SAS, verbete "Arima". (11. do Org.)

220 221
P0R UMA NOVA HISTORIA URBANA

BERNARD LEPETIT

formula de Lucien Febvre frequentemente cicada, "a


1. Pode-se atribuir a
particular, produz dois efeitos. 0 primeiro a mudança da duraçao dos ciclos
nificacão fraca: a fonte documental, herdada
história 6 filha de seu tempo", urna sig
S que a análise espectral isola, ou seja, a ausência de periodicidade absoluta da
do passado, não irnpOe sua evjdêncja, e C a partir das questOes do presente que a
cronica: a periodicidade (e portanto o sjsrerna das causas capazes de explicá-lo)
S

pesquisa histOrica recoflstiiui os objetos passados.


E meihor entendê-la de uma
S relativa a duraçao da seqüncia temporal estudada. Essa aperiodicidade absoluta
passado não se conserva, mas constitui o objeto de urna
rnaneira mais forte: o
das crônicas signifies, em termos de processo, que as variáveis dependem de
reconstrucãO sempre recornecada. A histOria não pode desejar, ac, mesmo tempo,
• S fenômenos de muito longo prazo ou ainda de choques aleatórios muitO antigos,
inventar problemas e recortstituir objetos: cia constrOi conjuntamente uns e outros.
cuja lista so terminaria corn corneço no mundo. Assirn, de urn lado, "urn
teligibilidade histórica do mundo) e a modelizacão
0
2. 0 modelo (isto C, a i n
processo econômico que transcorre no tempo não pode ser analisado indepen-
(isto C, o processo de pesquisa histórica) não são sepaalveis. 0 modelo não C de
dentemente de seu passado" e, de outro, a cada instante, o estado presente de
inicio o resultado de urn movimento de concepcão. Ele próprio C urn processo,
uma cronies não resume todo o seu passado: as series curtas são cegas aos efejtos questionamefltO5 mate-
que adquire sua forma t ra nsforrnando urn saber inicial,
• de longo prazo34 . Existent técnicas que permitem distinguir entre as series de nstruldo. Encontra em seu próprio transcurso
riais documentais em objeto co
memória curia e as se'ries marcadas pot uma rnemOria multo longa. Mas essas on não do oficlo
Os procedimentos e os instrumentos de controle (especificos
técnlcas não poderiam nem especificar sua dinsensão, nem esgotar a lista dos roposicOes que
de historiador) que permitem apreciar a validade do sistema de p
abalos antigos cujo efeito desliza a todo instante do passado para o presente. A
constitui. Todo modelo C uma reducão, que sO retCm certas dirnensOes do obje-
necessidade de recompor para cada escala de observação u rn esquerna explicativo,
to. Mas estas não são em nOmero lirnitado, e cada redução evoca outras: a
S
Os Oltimos métodos de anflise das series cronolOgicas acresceiltam outra dimen-
pesquisa C uma dinâmica sem fim.
são: a impossibiidade de qualquer explicação jamais alcançar o real e esgotar sua
3. Nesse processo, a escoiha de uma escala particular tern pot efejto mo-
complexidade.
onformacão e a organizacão dos objetos. Entretanto, nenhuma escala

dificar a c
crofenômenos não são menos reals, os
goza de urn privilCgio particular. Os ma
DE LONGE, UMA CIDADE, UMA CAMPINA...
ofcnômenos não são mais reals (ou inversamerite): não ha hierarquia entre
m icr
realidades que
eles. As representacOes em diferentes escalas não são projecOes de
Imagino que seria possfvel atribuir vários sentidos a SucCssão de pontos vistas' [.1. 0
contrariam por rrás delas. "Por trás delas, ha apenas outras '
de vista que acabarnos de perceber. Dc minha parte, eu proporia a seguinte se en
multiplicacâo controlada das escalas
real esra entre elas, aquCm delas"-15 . Assim, a
rransposicão para a prática d0 ofIclo de historiador:

Paris, 1964 (flora de trabaiho de 20 jan. 1960. pp. 279-281,


35. M. Mrrleau-Ponty, Le visible et 1 wirible,

ciraçSo nap. 280).


34. D. Zajdenweber, Hasard etpré,isian. Paris, PUF, 1976, p. 86.

223
222
BERNARD LEPET!T - POE DMA NOVA HISTORIA URBANA
)

da observaçao e capaz de produzir urn ganho de conhecimento a partir do diferentes da realidade visada, o rnáximo que se pode esperar são regras de
) mometito em que se postula a complexidade do real (os princIpios da dinâmica correspondêricia (ou simplesmente tipologias de associaçöes) entre hipóteses e

) social são plurals e revelam-se segundo configuracoes causais diferentes) e sua escalas de análise. A apreciacão dos efeitos de redução anailtica sobre o saber

) inacessibilidade (a palavra final nunca é dada e a modelizaçao precisa sempre set produzido depende de uma ciencia prática.
retomada). 6. As conclusdes que resultam de uma análise conduzida numa escala
4. A questão da generalizaçao deve set colocada menos em termos de particular não podem set opostas as conclus6es obtidas numa outra escala. Elas
representatividade do que de campo de validade. 0 processo de generalizacao sac, cumuláveis apenas corn a condiçao de que se levem em Conta Os niveis
nâo consiste em chegar a totaildade pot adição ou por multiplicacao. A busca de diversos em que foram estabelecidas. Deus não refaz o mundo a cada dia, mas,

uma inacessIvel exaustividade (herdada da histórja positivism) ou a apreciação de cerra maneira, os historiadores o fazem. Escrever urn livro de sintese, por

freqflentemente impossIvel da represenratividade (emprestada do modelo esta- exemplo, é sempre, em relaçao aos estudos particulates que existern, mudar de
tIstico das ciêncjas socials) não constituem, em história, as meihores maneiras escala, portanco de objeto e de problemática. A menos que esteja inscrita num
de colocar a questão da generalização (e sem düvida menos ainda de resolve-la). improvável piano de conj unto predeterminado (que definiria a escala do proje-

Como todas as ciCncias sociais, a história procura estabelecer, a partir do ponto to), a pesquisa histórica deve ser retoniada a cada vez em novas bases. Disso

de vista que Ihe 6 próprio e empenhando a totalidade da capacidade explicativa resulta que, contrariamente a opinião positivista comum, a cornparabilidade c a

da disciplina, os principios gerais do funcionamento social numa escala sempre curnulatividade, em histdrla, scm drivida concernem menos fundamentalmente

particular. Esta não induz somenre a configuração d0 objeto, mas tambm o aos resultados da pesquisa do que aos procedirnentos e aos m&odos de análise.

doniInio de extensão da análise (pois scm d6vida 6 iniitil crer, por exempio,que - Mas talvez este seja urn dos elementos definidores de uma atividade cientifica.

o estudo da combinaçao de interesses locals basta para esgotar a compreensão da Banalidades? Não ha dlvida, em todo caso, de que tudo isso já foi dito,
consrrução do Esrado). de forma mais concisa e elegante. Louis Mann dedicou a dojs pensamentos de
5. A quesrâo de se saber em que campo de validade a explicaçao pode Pascal sobre a questao da infinita diversidade do inundo uma bela meditação,

situar-se, em função da escala de observação escoihida, talvez so tenha solução cujos elementos merecem set retomados. No sisrema de variação infinita dos

prática. Sc existem escalas mais per tinentes que outras para desenvolver certas objetos, flora ele, o observador acomoda interminavelmente seu oihat. Esse

problemáticas e testar certas hipóteses, é preciso tentar estabelecer, para cada movimento, de aproximacão ou de distariciamento regular, scm soluçao de

tema particular, tao sistematicamente quanto possIvel, as conseqüências que as continuldade, não tern por efeito apenas fazer passar do grande ao pequeno ou

variaç5es de escala do terreno escoihido provocam no conte6do das grades vice-versa numa série continua. A acomodação progressiva da dptica revela
explicarivas. Da determinaçao empIrica dos umbrais que separam nIveis de ob- elementos que não são homologos, mas cuja natureza difere: o jardim sucessi-

servação significativos, os quais propiciam imagens e esquernas de compreensão varnente, a medjda que dde fibs aproximamos, parreiral, cacho, bago de uva

224 225
i. BERNARD LEPETT

11

etc. "0 olho continuamente ultrapassou


Os limites das classes, dos géneros, das
especles'36.
0 saber, numa tal configuraçao, esbarra em dois obstáculos consi-
deráveis. Dc urn lado, o observador, para descrever o mundo, está incapacitado
para reconhecer e adotar o born ponto de vista e a justa distância: sua condição 8. A HISTORIA LEVA OS ATORES A SERIO?*

humana opöe-se a isso. De outro, a escoiha da escala de observaçao jamais


resulta verdadeiramenre numa reduçao da diversidade do mundo e da singulari-

dade das coisas: urn cacho de uvas nao tern dois bagos serneihantes. A renincia
ao conhecimento, entretanto, nio 6 o desfecho dessa constataçbo scm ilusöes. A
reflexbo pascaliana sobre a unidade da natureza nbo rejeita urna representaçbo
0 ato e a açdo por muito tempoforampreteridos em beneflcio das estruturas
da heterogeneidade do mundo - ao contrário, baseia-se nisso (lembremos 0
de longa duraçao. 0 eclipse do atorparece chegar aofim. A sociedade e agora vista
grande fragmento "Desproporçao do hornem"). E a linguagem, pelo uso regula-
comoproduto da interaçäo, como uma categoria daprdtica social. Assistimos a urna
mentado de convençoes, vem interromper, na escala escoihida para urn mo-
verdadeira reviravoltapragmdtica. A postura do historiador modifica-se quando etc
mento, urna regressao scm fim.
1:
considera, no processo histórico, umpresente em andamento.

"Uma cidade, urna campina, de longe são urna cidade e urna campina;
Partarnos da superficie das coisas. Eis dois dicionários, cada urn desti-
mas, a
medida que nos aproximamos são casas, árvores, teihas, foihas, grarna,
nado a desenhar os contornos e a especificar a organizacão de urn campo
formigas, pernas de formigas, ao infinito. Tudo isso se reveste corn o nome de
disciplinar, ambos editados na mesrna série. 0 primeiro, o Dictionnaire criti-
campo"37.
que de la sociologic, publicado em 1982, contérn relativamente poucos verbe-
tes (menos de urna centena), que podem set qualifIcados, ern sua maioria,
como conceitos anailticos'. Nele se encontra urna definiçbo de sociologia
baseada na definiçbo dos fatos sociais: "os fatos sociais devem ser interpreta-
dos como relaçôes entre urna pluralidade de atores ou de agentes" (p. )UII);

* "Ehiscoire prend-elle Ics acteurs an sieieux", em Espacec Temps, les cahiers, 1995, n. 59-60.61 (Le tempo
reflichi, l'hhtoire act risque des hiscort ens), pp. 112-122.
36.L. Macis,, 'Uneyille, line campagne de loin...: paycages pa.scaliens". Littdrature, 61, fey. 1986. P. 10. 1. R. Boudon eF. Bourricaud, Dictionnaire critique de la sociologic. Paris, PUF, 1982. [Ed. em porruguts:
37.8. Pascal, Pen,tes, n.65-i 15, em Diciondrio Critico de Sociologia, São Paulo, Atica, 1993. (N. do Org.)]
Oeuvre; camp/ice,, ed. por L. Lafuma, Paris, Seuil, 1963, P. 508.

226 227
Pon UMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

os dois primeiros verbetes intitulam-se respectivamente "ação" e "ação Coleti- Dessa breve cornparação Se concluirá, eufemisticamente, que a

va". 0 segundo, o D ictionnaire des sciences historiques, publicado quarto anos historiografla francesa dedica a ação uma aterição lirnitada. Arendo-me apenas a

mais tarde, i o produto do trabalbo de urn contingente muito numeroso esfera dos esquemas explicarivos que ela urilizou nas duas ou três iiltimas gera-

(quase uma centena de pesquisadores); é bastante representativo, portanto, çöes, tentarei indicar os motivos do longo eclipse do ator, antes de buscar as

de uma prática modal da histdria da qual constituj a expressão consensual2. implicacoes de sua possIvel reconsideração pela disciplina. Para isso, negligcn-

Verbetes em quantidade (mais de duzentos e vinte) aproximam, ao acaso da ciarel voluntariamente a dimensão social das práticas intelectuais dos pesquisa-

ordem alfabética, concejtos analIticos, areas de civilizaclo, subcampos disci- dores: alianças disciplinares, organizacão da pesquisa, locais e modalidades de

plinares ou metodologicos, escolas históricas, autores (de Aries a Wölfflin). comparacão dos modelos hisroriograficos.

Poderiamos deduzir daf que se lana urna abordagern naturalmerite menos A análise inrerna de uma producâo diversificada corre vários riscos, dos

conceptualista e modelizadora da história, mas as diferenças que eu gostaria quais os mais imporrantes são estabelecer apenas posicöes relativas ou então

de destacar estão em outra parte. criar, de modo impliciro, uma hierarquia normativa. Para fugir a isso, a postura

Percorranlos as entradas dos verbetes. Encontra-se, por exemplo, em constatativa que escolho obriga-me a adotar, de inlcio, urn ponto de referência

hisrória, "estrurura" (no dicionário de sociologia também) e "conjuntura" exterior. Eu o romarei emprestado, como Vincent Descornbes, de Kant'. Em

(ausente nos soció!ogos), mas não se encontra "am" ou "ação". Sens substi- 1798, idoso demais para lecionar, Kant publica o texto de seus cursos dos anos

tutos possIveis também faltam: nem "prática", nem "comportarnento", no anteriores. 0 pequeno livro que conrém as aulas do semestre de inverno, reeditado

singular ou no plural. "Fato", Se é que se pode considerá-lo produto de a partir de 1800, intitula-se Anthropologie do point de vuepraginatique. Nele se

uma açlo (inrencional ou não, coletiva ou não), também nao consta, mas encontra uma defInição fundadora das ciéncias do homem distintas das ciências

consta "história factual", que d urn gnero e, desse modo, não define o da natureza: "0 conhecimento fisiológico do homem tende a exploraçâo daqul-

objeto, e sim a operação de conhecimento. Enfirn, observaremos, para lo que a narureza faz do homem; o conhecimento pragmático, daquilo que o

retomar adiante, que urn importante verbete "mentalidades" está presente homern, enquanto set de livre atividade, faa on pode on deve fazer de si mes-

e que o verbete "mernórja coletiva" não conduz as práticas (a que uma mo". Baseada num postulado (o hornem é urn "set de livre atividade"), essa

leitura de Halbwachs, alias ausente do sumánjo, poderia ter conduzido): definiçao Confere urn objeto as ciências antropologicas: as modalidades práticas
do ponto de vista do objeto, conduz a questao da identidade (correlato: da instituição do homem por dc mesmo. Ela tambdm prope, em poucas pala-
"história nacional"), e do ponto de vista dos mitodos, a especificidade da vms, as declinaç6es dessas capacidades auto-institutivas: os atos ("fato"), os

documentaçao (correlato: "história oral"). poderes e os saberes ("pode fazer"), as normas e os valores ("deve fazer"). Não

2. A. BourguiEr(dir.), Dktionnai,des sciences historiques, Puns, PUP. 1986. 3. V. Descombres. 'Sciences socialcs, sciences prugmaniques". Critique, 529-530, jun-jul. 1991, pp. 419-426.

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228

L \
BERNARD LEPETT P0R UMA NOVA HI5TORIA URBANA

utilizarei essa definicao da cincia pragmática nem como emblema (ela figuraria nascem as Revoluçóes?": "as Revolucoes se fazem apesar dos revolucionários"6.

então como exergo), nem como ponto de encontro (eu fingiria entâo descobri- Esse mesmo artigo permite que se estabeleçarn, de maneira empfrica, os moti-

la ao fim de minha explanacão), mas apenas, por sua feiçao sistemática, como vos de uma declaraçao propositalmente tao provocadora. 0 primeiro deve-se

grade destinada a situar meihor, uns em relaçao aos outros, os diferentes dc- buscar do lado do modelo de cientificidade escoihido. Contra uma hjstória

mentos da palsagem historiografica de ho)e historicizante que limitava seu programa a reconstituição dos fatos tais como
tinham "efetivamente acontecido" e dos motivos das personagens que estavam
EXPLICAR SEM ATORES em sua origem, este toma o essencial emprestado a Dutkheim por intermédio
de Simiand. Trata-se de indicar variaç6es concomifantes e regularidades estrutu-
Esboçada em gtandes linhas, essa paisagem organiza-se, desde o segundo rais, isto é, de submeter dados agrupados a tratamentos estatIsticos adequados.
pós-guerra, em duas grandes cotrentes. Urn segundo motivo deve-se buscar do lado do esquema causal adotado.
A primeira, dorninada pelos trabaihos de Ernest Labrousse e de o artigo de Labrousse conte'm dois modelos explicativos não-contradirórios.
Fernand Braudel, propóe a história urn programa: estabelecer como, con- Urn resulta de uma explicacaopelo prirneiro motor. Trata-se do rirmo da econo-
forme quals ritmos e corn pie consequencias para os grupos cujo conjunto mia, que o autor, para efeito retórico e por referência a atualidade da 6poca,
formava a sociedade o desenvolvimento moderno se produzira ou em cer personifica e eleva a condiçao de personagern central: "Falou-se, a respeiro de
tos momentos e em certos locals fracassara em produzir se A história problemas recentes, de urn misterioso 'maestro'. 0 maestro, em 1848 e quando
COfl)ufltural da qual os volumes da Histoire economique etsociale de la France das duas revoluçoes precedentes, não e senão o ritmo anônimo da ptoduçao
consutuem a apllcaçlo completa4 e o modelo da economla mundo extra! capitalista". 0 outro modelo 6 construfdo sobre a concordância das sries. A
d0 dos trabaihos de Wallerstein e retornado na sumula braudeliana Revoluçao inscreve-se então coma a efeito de uma conjunclo de causas mdc-
(Civilisation materielle eccnomzeetcapitalisme5 ) constituem respectivamen pendentes que se desenvolvem segundo suas temporalidades próprias: tempo
te suas vertentes temporal e espacla! A abordagem macroeconornica e longo "quase desde sempre" das oposicôes sociais, tempo cklico das evoluçdes
estudo das estruturas espaclals instrumentalizados pela estatistica descriti econômicas, tempo curro das estratégias e das irnputacöes poilticas. Desde que
Va, constituent seus embasamentos. o tempo, como causa primeira ou como conjuncão, é portador da explicacao de
Nenhum apelo ao ator, aqui Recordemos somente a guisa de sintoma a suas próprias rupturas, torna-se possIvel concomitantemente construir urn mo-
primeira frase de urn artigo emblernatico de Labrousse "1848-1830-1789. Como delo dinârnico e esquecer a ator. Poderlamos reler La Mediterranéc de Braudel

4. E Braudel e E. Labrouse, Hütuire Economique Ct sec/a/c d.c /a France, ci, Paris, PUF, 1970. 6. E. Labrousse, 'Comment naissenr es R/volurions?", em Acm du cangris h/ace riqrae dc/a Revolution it 1848,
5. F. Braudel, Cwilrsasianmatérje//c lonomieetcapitakme, X ?-XVII/sièr1c, Paris, Armand Colin, 1979. pp. 1-20.

230 231

(
BERNARD LEPETIT PoE UMA NOVA HISTORIA URBANA

da mesma maneira: no fim d0 livro, a morte do rei, ator derrisório, assume motivos do esquecimento do ator. Ela "privilegia o coletivo em yes do individual,

valor emblemátjc07. os processos culturais impessoais em yes da cukura dos atores e das obras, o

psicologico em vez do intelectual, o automático em yes do refletido"8. A questão

REPRESENTAçOES COMUNS dos atores dissolve-se no postulado da indiferenciaçao de identidades culturais


partilbadas de que apenas a escala (ou seja, a identificaçao dos limites dos grupos
A segunda cotrente hisroriografica, cuja descriço poderia set orieritada que a partilham) está por determinar. A natureza das relaçôes entre a representacâo
pelo conj unto da obra de Jacques Le Goffe pelos trabaihos da segunda fase de e a ação, embora não explicitada, esta contida nessa definiço. Representacão e
Emmanuel Le Roy Ladurie, caracreriza-se inicialmente pela predominância de ação pertencem a esferas separadas: de um lado ha normas, valores, categorias que
novos objetos. 0 corpo (e nBo mais a mortalidade), a vida arnorosa (e não mais dão sentido an mundo; e, de outro, comportamentos e atos que os instruments-
a fecundidade legItima), as maneiras a mesa (e nao mais as raçöes alimentares), lizam. Talvez porque a representacão e a ação se estendern em temporalidades
as estrururas de parenresco e os ritos de passagem (e nao mais as categorias .muito diferentes (a longa duração das mentalidades opóe-se a brevidade descontfnua
sociais, ordens ou classes), as linguas, as imagens, os mitos (e não mais as das intervençöes ativas), a primeira precede a segunda, motiva-a e ihe dá sentido.
tcnicas de producao, as condiçoes das forças produrivas ou o produto) dese- Mais abrangente, a represeritação possui, assim, uma dignidacle major que justifi-
nham agora o verdadeiro estado desra ou daquela socjedade antiga. Dessa mu- ca o law de ]he darem urns atençao preferencial. Por simetria, nessas condiçöes, a
dança de objeta results uma desquahficaçao do m&odo quantitativo em favor ação possui, em relaçao a represenração, o estaruto de sinai ou de indice: quando
da atividade interpretativa (para a qual a historiografIa francesa, por tradição, são repetidos, e por sua própria repetição, os comportamentos revelam represen-
nãoestava muito equipada). Dal results ainda urns modiflcaçao dos esquernas raçöes do mundo que os sustentam (e, dessa forma, o niimero de missas que
temporais de referncia: a inétcia das categorias fundarnentais das culturas leva a devern set rezadas para o repouso da alma dos defuntos ou o das velas que devem
prestar menos atenção a variabilidade dos tempos sociais ou as rupturas de ser acesas são tornados como indicadores pertinentes nao da prática religiosa, mas
ritmos do que a eficácia duradoura de fenômenos extraIdos de uma história do grau e dos contes'idos da crença9).
quase imóvel. Braudel ja escrevera: "as representacöes mentais são prisöes de E possIvel registrar as conseqü&scias que essas definiçöes acarretam em
longa duraçao". termos da contribuição dos atores pars os processos históricos. Seja o grande
Um rermo caracterlstko da historiografia francesa encabeça o catálogo dos iivro de Albert Soboul, Les sans-culottes parisi ens en Ian II, publicado em 1958.
objetos particulares cujo estudo se totnou então perrinente: as "mentalidades". E Aqui dc tern valor emblemático na medida em que pretende relacionar urn
em sua definiçao, compleramenre empIrica, que se encontram scm düvida os

8. Dictionnairedes sciences historiques, op.cit. n. 2, p. 456.


7.J. Rncire, Les no,,,, de lètht, ire. Essai dep,ltiqoedu savoir, Paris. Srui!, 1992. 9. M. Vovrlle, Piece baroqae ecdErhriseianisacion en Pro cc,, cc auXVIl! siècle, Paris, Pion, 1973.

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BERNARD LEPETIT POP, UMA NOVA HIsTORIA URBANA

sisterna de açöes a urn conjunto de representaçoes sociais'°. Na verdade, trata- A SOCIEDADE? UM DECALQUE

Se, para Soboul, de "indicar o verdadeiro lugar dos sans-culottes parisienses, [...1
(de) recuperar seu papel nos acontecimentos da Revoluçao" e, para isso, de Uma hipótese generalizante permitirá que se unarn os dois momentos de

examinar como se conciliaram, no decorrer das seqüências revolucionárias, "o uma historiografia que nós separamos, mas que tern em comum o esquecimen-

comportamento" e "as aspiraçöes" próprias aos sans-culottes corn as necessidades to do ator. As relaçôes de producao e a referência ao produto constitulam os
da ditadura revolucioná ria e as exigncias da burguesia. 0 fracasso (nesse ponto) elemenros pertinentes de urn quadro histórico no primeiro caso, e a referencia
do projeto evidencia-se no âmbito mais geral, o do piano do livro. Duas partes a si, aos outros e ao mundo no segundo: a uma abordagem econômica do social
inteiramente ded icadas a açao poiltica e minuciosamente divididas em capitulos sucedia uma abordagem cultural. Assirn, as duas historiografias ocupavam p0-

cronologicos emolduram uma parre central toda dedicada a men ralidade sans- siç6es simétricas. Nas duas figuras, a reduçao da opacidade do social resultava

culotte e tao bern desindexada do processo revolucionário, que pode set objeto, de uma estratégia de contornarnento, depois de reduçao ao idCntico. Em ou-

em 1968, de uma publicaçao independente. De urn lado, uma iógica do aconte- tros termos, a deflniçao de qualquer sociedade antiga era obtida por deduçao,

cirnento, e de outro urn comportamento cotidiano arribuldo a uma mentalida- expilcira ou impilcita: as caracterIsticas de sua economia ou as de suas menrali-

de São distanciada dos registros dos valores familiares quanto normas econ6mi- dades forneciam, como por decalque, todos os seus elementos. A questão,
cas ou legItirnas de intervenção poll tica podem aparecer separadas. A portanto - plagiando voluntariamente a definiçao kantiana da pragmática -,
posicao historiografica do projeto autoriza esta soluçao: ressaltar a "especificidade" não era saber o que a sociedade, sendo formada de seres de livre ativjdade, faz

da "corrente popular" é urn rnodo de resolver as quest6es de escala que evocava- ou pode ou deve fazer de Si mesma. A questão é saber o que a economia (em

mos acima para definir a posição e a extensão de urn grupo unificado em torno Labrousse on em Braudel) ou as representaçes do mundo (em Le Goff ou em

de urn sistema de representaçöes partilhadas. 0 quadro teórico em que o traba- Le Roy Ladurie) fazem da sociedade e, concomitantemenre, dizem a respeito

Iho 6 pensado permite-o igualmente: posicóes de classe explicarn o conte6do dela. 0 desapàrecirnenro do ator e a desqualificacao de fato dos modelos de

dos dois nIveis de anáiise ao mesmo tempo. Mas isso significa resolver de fora a auto-instituição do social caminham juntos.
questao da contribuiça o rnütua das mentalidades, da ação edo processo revolu-
cionários". - 0 RESTABELECIMENTO DA C0NFIANA

A análise, para set completa, deve agora percorrer a vertente inversa para
apresenrar, pelo exemplo e pelo fato, as caracterIsticas e as implicacóes
10. A. Soboul, Le, sans-culottes ,00risien, en Ian IL Mouveeneatpopuksireergouvernement re'uolucjgnnajre (1793-
metodológicas de urns historiografia pragmatica. 0 fato revolucionário poderá,
1794), Paris, SeuiI, 1958.
11.). Guilhaumou, Marsrille ,-épub/icaine (1 791-1793), Paris, Presses de Ia FNSP, 1992. corn essa finalidade, continuar servindo como fib condutor. 0 Diretório e o

234 235

L
BERNARD LEPETIT POP, uMA NOVA HISTORIA URBANA

inIcio do Consulado aparecem então como urn periodo de crise: as desordens sua dimensão mais singular: urn tecelão que sofreu uma rcduçao de salário por
poilticas e financeiras, a desorganizaçao dos circuitos da economia, a gerseraliza- haver realizado urn ate que nao considera contrário aos tegulamenros ou aos
ção da pilhagem são scus aspectos descritos corn mais frequncia. Juntos, des hábitos locais do trabaiho apresenta queixa diante dos prud'hommes. 0 caso se
atestarn o enfraquecimento das normas, impostas on interiorizadas, que regula- desenvolve corno uma reiacao direta entre indivIduos, que não podem fazer-se
yam as diferentes formas d0 jogo social. No dominic da producão industrial, representar ou set secundados por conhecedores da lei. As pessoas envolvidas
pot exemplo, a falsificaçao dos produtos, as rupturas de contrato, os furtos de confrontam seus pontos de Vista sobre o case; cada uma reescreve, dotando-o
matéria-prima que se multiplicam, mostram que a Revoluçao fracassou em subs- de urn sentido particular, o fato que as opöe. Na rnaioria das vezes, elas
tituir pot urn novo conjunto de regras e de comportamentos aceitos a antiga chegam a conciliar seus pontos de Vista e concordam em dar ao episódio uma
referência corporativa. A boa-M desapareceu das relacoes sociais de producão. significacao idêntica, isto C, em interpret-lo corn base na mesma regra de
Em dois artigos, publicados em 1987 e em 1992, Alain Cottereau, cujas relação de trabaiho (em funçao da qual o comportamento de uma será julgado
análises sociologicas são sempre aplicadas a história, procurou analisar minucio- desviante, e o da outra, adequado). A acomodaçao opera-se, assim, no só em
samente as modalidades de restabelecirnento da conflança na esfera ecors6mi- benefIcio de uma so1ucão do conflito, mas tambCm (e sobretudo, por reitera-
ca12. Na origem disso estão os atores sociais, que negociam e experimentarn ção) em benefIcio do princIpio reconhecido de regularnentacão social. Nos
localmente antes de obter a sanção do Estado. Instaura-se uma srie de disposi- casos - menos numerosos - de divetgências irredutiveis, a intervenção dos
tivos novos que são ao mesmo tempo o contexto de e!aboraçao, o ponto de conselheirosprud'hommesque deliberam conduz a urn resultado semeihante.
ancoragem e uma das condiçoes da eficincia das novas normas. Dentre des, Os 0 procedimento recai, potranto, num use localizado (a empresa em causa).
conselhos deprssd'hommes, destjnados a regulamenrar as relaçóes entre patröes e Mas, seja porque a conciliaçao reforça seu caráter de use reconhecido, seja
operários, que Se instalaram primeiro em Lyon, em caráter experimental, em porque a decisão do conseiho ihe confere uma sançBo jurIdica, pot generaliza-
1806, e depois se generalizaram progressivamente nas cidades fabris ate o fIm ção, o usc torna-se uma ordern legitima, nascida da interação social, no âmbi-
do lmpério, fornecern urn material particularmente rico para anáiise. to da jurisdicao local.
Na origem de qualquer caso apresenrado aos prud'hommes, situa-se uma Uma mudança de escala e de tipo de análise desqualificaria, se necessário,
questão particular, que nasce da prática cotidiana da producao, tomada em qualquer idCla de uma geração espontânea desse dispositivo socioinstitucional.
A instituição reativa uma forma institucional do Antigo Regime. Vários memo-
randos propöem, a partir do ano V11I, que os conflitos do trabaiho sejam arbi-
12. A. Couttereau, "justice cc injustice acdinaice suites lieux de travail d'après les audiences prad'hornmales
trados pot j6ris forrnados de patroes e empregados: embora corn grande pru-
(1806-1866)", LeMonre,ue,,t Soc,a, out.-drz. 1987, pp. 25-59, e "Espace public cc capacicé de juger. La
srabihsation dun espace public en France aux [endemains de La Revolution", Raison, Prariquesn. 3, Paris, déncia retórica, des estabeiecern urn die entre eases jsiris e as jurandas de outrora.
1992, pp. 239-273.
Entretanto, o funcionatnento dos conseihos deprud'hommes, ao rnesmo tempo,

236 237
POP, DMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

Em primeiro lugar, a sociedade volta a set o objeto p rivilegiado da histó-


afasta a instituição das práticas do Antigo Regime. Poucos casos, como disse-
na. Ela não é mais definida como uma das dimens6es particulates das relaçoes
mos, chegam a julgamento. A conciliaço é feita na presenca de terceiros (urn
de producão ou das representacöes do mundo, mas corno o produto da inreração,
conseiheiro patronal e urn conseiheiro operário), mas não apela para sua arbitra-
como uma categoria da prática social. Para organizar suas estruturas ou regular
gem. Diferentemente do Anrigo Regime, em que numerosos conflitos se resol-
suas dinâjnicas, a sociedade não dispóe de nenhum ponto fixo (de natureza
viam corn recurso a uma terceira pessoa em situação social superior a dos prota-
econômica ou cultural) que ihe seja exterior e que a transcenda. No jogo entre
gonistas, a soluçao apóia-se numa dinâmica igualitaria, em vez de reativar, e
os atores que a fotmam c a insninuern, ela encontra suas própnias referências.
desse modo reforçar, a hicrarquia social. Trata-se, pois, da duplicação de princi-
Estas podern set de natureza econôrnica ou cultural - é outra questão: a recons-
pios revolucionários? PoderIamos crer que sim, ja que essa prática organiza urn
trução de unia dada otdern manufatureira passa pela ativação social, na esfera
espaco pIblico onde a decisão resulta da deliberação de individuos cujas condi-
econômica, de princIpios e esfetas de açBo de natureza poiltica e cultural. A
çóes a insricuição tern pot funcao exatamente igualar pot urn momento. Mas a
sociedade constitui para si mesrna (ou seja) para todos eks) seu próprio motor e
escala em que se edifica e se regulamenta esse espaco püblico introduz uma
suas ptópnias fontea.
diferença decisiva: não mais a Naçao, e sim o escalão local; não mais a delegacao
A coerncia do modelo anailtico leva a tranferir para todas as escalas o
eletiva, e sim o frente-a-frente dos protagonistas; nao mais a lei universal, e sim
mesmo princIpio pragmático fundamental. Os atores sociais inscrevem-se nurn
a regra local. A reativaçâo na ação, a custa de uma espécie de bricolagem inter-
sistema de posicöes e de relaçóes estabelecida.s e definidas na siruação, na interação
pretariva de experiências indexadas em passados diferentes, encontra-se assim
que os une pot urn momento. Também as identidades sociais (o tecelão, o
inserida no princIpio de urn do social cujas condiçoes de estabelecimento e
manufaturador) ou os elos sociais (institudos, pot exemplo, pela organizacão
modalidades estão historicamente situadas.
técnica da produço ou pot uma disciplina de ateliê) no tern mais natureza,
apenas usos. Isso significa que, dentro dos limites impostos pela situação, eles
A SOCIEDADE? UMA CATEGORIA DA PRATICA
eferivamente ocorrem de maneita não mon6tona' 3 .
Definida desse modo, a sociedade encontra-se pnivada de principios de
Vé-se que ha interesse em recordar mais longamente esse episódio analItico.
coerCncia a priori. Nenhurna determinacão exdgena, nenhurna estrutura
De urn lado, trata-se desta vez "daquilo que o homem, enquanto set de livre
atividade, faz ou pode ou deve fazer de si mesmo": eis a diferença construlda em macroscópica essencial (o Estado, a empresa ou a familia; a nobreza ou a bur-
guesia) assegura sua estabilidade, já que, a cada momento, elas se tornam aquilo
relaçBo aos modelos historiográflcos precedentes. Dc outro, gracas a seu
detaihamento, esse modelo parece muito propicio ao ajuste dos efeitos provocados
pela inclusão da ação e do ator nas proposicBes interprerativas. Destacarei os prin-
13. B. tapetk (dir.), L.sformes de 1erpérienre, Paris, Albin Michel, 1995.
cipais efeitos disso sobre duas questöes: a do objeto e a do modelo interpretativo.

239
POE DMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

problcma da anrerioridade francesa no dominio do controle da natalidade). As


que, provisoriamente, Os homens e as muiheres engajados na ação fazem que
mudanças de paradigmas são reconhccidas pot sua capacidade para esse tipo de
elas sejarn. Ao mesmo tempo, o que faz uma sociedade manter-se coesa (scm o
reorganizacão de conjunto.
que cia perderia, na anomia, seu caráter de sociedade) torna-se urn mist6rio'4 . A
hierarquia das questöes importantes e dignas de interesse encontra-se reorgani-
0 PRESENTE DA AçAO
zada em função disso: o acordo que sustenta o elo social, e não mais o desenvol-
vimento e sua partilha ou então as modalidades de uma relaçao coletiva corn o
Seguindo Alain Cottcrcau, narrci a história do restabelecimento das nor-
mundo, encontra-se çado ao primeiro piano das interrogacöes'5. As declina-
mas de relação na manufatura utilizando tres cronologias. A primeira conta-se
çöes da questão são numerosas, pois trata-se de saber como se chega a urn
cm dias: vai da queixa, manifestaçáo de urn desacordo, ao cstabelecimento corn-
acordo entre sujeitos, sobre sujeitos (pot exemplo, o que e' urn desemprega-
binado ou imposto de urn acordo. A segunda conta-se em anos e desenvolve-se
do?'6) ou sobre coisas (o que e urn ateli& de caridade?); como o acordo se faz
em duas escalas gcograficas - cia dcscreve, de urn lado, o processo de reiteração
(vejsrn-se os conseihos de prud'hommes), fracassa em fazer-se, ou se desfaz (as
das soluçöes de conflitos que rcsulta, pot acumulação, na forrnação de uma
belas análises de Steven Kaplan sobre os pretensos complôs da forne mostrarn,
quase-legislacão regional d0 trabalho; de outro lado, o movimento de difusão
por exemplo, como, antes da Revoluçao, a adesão popular a monarquia foi
que, pot imitação de experiências bem-sucedidas, leva a Se criar uma instituição
abalada e como o acordo sobre o papel eminente do monarca fol desfeito pot
serneihante no centro das principals rcgiöes industriais. A tiltima cronologia,
causa disso'7). Alista das ocorrncias históricas Ilgadas a questão interrninável
enfim, 6 rnenos precisa (seria mais dificil traduzi-la num sistema de datas, a
em razão da multipiicidade dos objetos a que cia se aplica (dcsde a organização
menos que cspacadas) e concerne a várias decadas: nela são c-vocados tanto o
da rroca econômica at6 a natureza do regime politico, passando pelas formas da
mornento revolucionárlo quanto umAntigo Regime corn fronteiras n/so defini-
estratificaçao social e os canais da mobilidade, ou pelo teor dos questionários
das. Tat disposição analftica n/so 6 exclusiva para Os conselhos de prud'hommes.
em determinado dominio do saber") e em razio da diversidade das escaias em
Eu poderia ter adotado o mesmo esquema para relatar o esrabelecimento
que cia ocorre (desde o caso de rapto de crianças na Paris de 175019 ate o
concornitante de uma ordem comercial (as câmaras de comércio) ou civil (as
justicas de Paz). Podetia narrar da mesma maricira o esrabelecimento, hoje, de

14. J.-P. Dupuy, Lapanique, Paris, Synthi-Laho, cot. Los empicheurs do penseren rond", 1991. uma nova ordern territorial na Europa central.
15. L. Boltanski e L. Thivenot, D0 lajuotification. Los iconomies do La grandeur, Paris, Gallimard, 1991. Esses modelos temporais diferern dos modelos hisroriográficos preceden-
16. C. Topalov, Naissance dis chsimeur, 1880-1910, Paris, Albin Michel, 1994.
tes em vários ponros. Todas as cronologias que acabo dc expor brcvemente
17. S. Kaplan, Le romp/sc defamine. Histoire dune rumour auXVIJF siècle, Paris, Armand Cohn, 1982.
18. A. DesoosiEres, Lsapolitiquedesgrando nomisres. Hiss'oirea'e Ia raison oraristique, Paris. La Dicouverte, 1993; rcvalorizam o curto prazo, o do acontecimento entendido como ac/so situada
E. Brian, La mesa so do 1'.Etas'. Adminiscrateurs eegéomitres auXVJIP siècle, Paris, Albin Michel, 1994.
(tal atitude diante dos prud'hommes, em Lyon, cm 1807; o "restabelecirnento"
19. A. Fargo eJ. Revel, Logiquesde lafoule. Lsffiairedrs en/i ssementsd'enfanss, Paris. 1750, Paris, Hachette, 1988.

241
240
BERNARD LEPETET POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

das câmaras de comércio nas principais praças comerciais da Repciblica em 1802), A postura analItica do historiador é responsável por 1550. Ver no processo
o da experiência hurnana, direta ou indireta. Elas não desqualificam o longo histórico urn presente em andamenro, entender a história, em razEo da interaçEo
prazo-(as jurandas dos protagonisras dos episódios da restauração de uma or- social e da irreversibilidade do tempo, como "evoluçEo criadora" (a expressEo
dem econômica dutante o Consulado são, em parte, desejadas, e suas virtudes de Bergson) coloca-o em posicEo constatativa. Como tern sua foote na sequCn-
remetem a urn antigo passado elaborado para as necessidades da causa: naquele cia das situaçöes que instituem, os estados sucessiVos da sociedade aparente-
momento, e ainda quando de sua supressão no inIcio da Revoluçao, e ainda mente não encontram sua razEo de set em nenhuma outra parte que nEo em seu
depois, quando das medidas tomadas porTurgot em 1776 edo debate feroz que próprio desenrolar. Como explicar, entEo? A explicacao pela correlaçao perde a
etas suscitaram ... ), mas um recorte feiro do exterior, e apriori, das duraçöes e de forca a partir do momento em que a história é analisada em sua dinâmica. A
sua articulaçlo. Assim, essas cronologias fazem do presente da açEo o tempo da explicacao pelos fins esbarra no postulado da diversidade social e do caráter
hist6ria20. criador da interaçEo. A explicacao pelas causas flea desqualificada, por ser
Reinhardt Koselleck chamou a arenção, na anrologia publicada em taurologica, quando os processos se mostram dependentes de sua própria mar-
frances com o tItulo Lefutur passé, para a variação hisrórica dos modelos cha e das seguidas bifurcaçöes que experimentam. Parece, entao, que só resta
temporais empregados na ação e para a pluralidade das formas de articula- dizer como as coisas aconteceram sucessivamente, e assim renunciar a vrias
cEo, no presente, do passado e do fururo 2l. Levar suas análises a srio d&adas de elaboraçEo metodologica e de reivindicaçEo de cientificidade, em
esforçar-se por reconstituir o caráter dos horizontes temporais dos arores nome de uma vantagem pouco significativa para urn regime interpretativo par-
da história. Estes pöem a prova, na açEo presente, formas passadas e valo- ticularmente fraco.
res recebidos segundo modalidades que nEo são necessariamente as nossas, A proposiçEo, entretanto, so é exara na esfera do modelo explicativo das
porque nEo são nem de aempre nem de qualquer lugar. Eles arbitram, no ciências sociais. Para fazer frente a objeçao, uma solucao consiste em explorar
presente, entre o interesse vindouro e o do momento; antecipam e tentam outras. 0 modelo descritivo, para o qual o sociOlogo Louis Queré, em especial,
reduzir a incerteza do fururo de maneira diferente (a reconduçao do passa- vem chamando a ateriçEo ha vários anos, é desse ripo22. Modelo mais fraco de
do e o projeto constituem duas imagens possiveis disso). Assim, num apreensEo do mundo? A questao rnerece aprofundamento coletivo. Notaremos
modelo pragmático de análise do social, a determinaçao das escalas crono- apenas, aqui, que esse modelo de inreligibilidade é mais precisamente
lógicas perrinenres passa pela reconstituição das categorias temporais au- especiflcável, ja que permite ao mesmo tempo responder a questEo "como?"
tóctofles. (então se falará em descriçEo processual, que apreende a açEo segundo suas coor-

denadas espacial e temporal) e a questEo "pot quê?" (então se falará que a descri-
20. B. Lepetit, "It prisent de I'histoire", em Ltcfwrn et de1'pedenrc, ,p. cit., n. 13, pp. 273-298.

21. R. Koselkck, Ltfitturpascé. Contribution a laoémantiquedes tetnpohistoriques, Pont, Ed. de I'EHESS, 1990. 22. Louis Qu5tet, " tounnsnndescripufensociologie, Current Sociology, voL4O.n. 1,1992, pp. 139-165.

242 243

C
LI
BERNARD LEPETIT

) ção é semantics, uma vez que cia relaciona a ação a seus contextos de sentido). A
análise que apresentei dos conseihos de prud'hommes resuitou sucessivarnente
desses dois registros (em cuja articuiaçBo ainda é preciso pensar). Destaque-se

) tambm, pois e preciso rerminar, que suas capacidades heurIsticas estão histori- 9. A EvoLucAo DA NocAo DE CIDADE SEGUNDO
Os QUADROS GEOGRAFICOS E DESCRIçOES
camente atestadas: cia constituju no sécuio XVIII uma das bases do projeto dos
) DA FRANCA (16501850)*
Enciciopedistas2 e suscita, nos confins da observaçao cientIfica e das considera-

çóes sobre as iinguagens, uma reflexão cujo dossiê hoje valeria a pena reabrir.
)

)
"Scala preciso então convencionar e saber precisamente quais so os
lugares a que se deve dar o nome de cidades e quais são aqueles que não o
)
rnerecem"t. Ha três skuios, não faltam tentativas de definir urn concejto
)
urbano, inapreensIvel na medida em que envolve mi.ultiplos niveis de reali-
1,
dade - estatIstico, administrativo, econmico, social, arquiretônico... -
que nao podem ser sobrepostos. 0 que é uma cidade? Pode-se, deve-se
novamente tentar elucidar essa noção e especificar sua evoluçao na Franca
pré-industrial? A iniciativa não é nova. Tratados de direito e dicionários
de jurisprudéncia, tratados de geografia geral e dicionários linguIsticos ja
exibiram suas listas de definiçöes, excelentemente exploradas2. Por que,
então, uma pedra suplementar nessa construção? Pot que contribuir corn a
)
história de uma representacão, quando e a história da cidade do Antigo

I ) Regime que sel gostaria de tentar fazer? Vemos al várias razóes, scm buscar
inicialmenre uma hierarquia entre elas.

it.

* " Ijiyolution de la notion de yule d'uprls lea tabLeaux et descriptions giographiques de fa France (1650-
3 I 1850)". em URBIZL dez. 1979, pp. xcix-.cvu.
1. Lubin, LeMercuregéographiqueou Guide der curicuccdes carteagdographiques, Paris, 1678.
ç 23. DenlsReynaud, Pour une thiorie de la description auXWII'silcIy", Dix-Huitiime Siicle, n. 22, 1990, pp.
347.366. 2. F. de Dainville. Lelangagcdrugéographcu, Paris, 1964.

245
244

I I-
BERNARD LEPETIT POR DMA NOVA HISTORIA URBANA

No centro do debate, uma qucstao: pode existir uma relaçao entre o de urbana cambiantc c os progressos conceptuais daquelcs que tentam aprecndê-
eruprego que uma época faz de uma palavra e o conceiro operatório que Ia, e valerá a pena tcntar a empreitada5.
deve set forjado e rnanipulado pot uma disciplina que procura constituir-
se como cincia? Rgine Robin, num texto que continua fundamental, Os quadros geográficos e as descriçoes da Franca parecem trazer-nos
mesmo que se contestem seus resulrados3, da urn salto epistemológico muito
uma boa luz sobre a evoluçao da noção de cidade. Dc meados do sécuto
claro, concluindo em termos de exclusão rccIproca. Acontece que ela no
XVII a mcados do XIX, esses trabaihos de geografos são muito numerosos;
pode propor o conceito de "burguês-do-Antigo Regime" scm fazer pesqui-
aproxirnadamenre 200 tIn los— e mais 40, caso acrescerstemos aqucles que
sa historiografica e scm intcgrar certos dados dos estudos e definiçoes
se alinharn sob a rubrica "estatistica" - foram recenseados pelo Catalogue
antigos. Tambdm o concciro de "cidade do Antigo Regime" não pode dis-
Ic l'Histoire Ic France da Bibliothèque Nationale. Dois guias seguros per-
pensar estudos retrospcctivos. Tanto mais porque o século XVIII, "no bet-
mitem que nos orientemos em meio a essa abundante producao: François
§o das ciências humanas"4 , tentava manifestamente encerrar a rcalidade ur-
de Dainville, inicialmente, dcpois Numa Broc6. A evoluçao da producao é
bana nurna rede de definiçocs cada vez mais prccisas. DeFiniçoes taccantes,
conhecida: recuo da geografia histórica em bcnefIcio da geografia moder-
pré-cicritificas, scm di'ivida, mas que prefiguram tao amplamente as nossas,
na; a margem desta, progresso - considerávcl no extremo final do século
que nos obrigam a siruar esras lltirnas e a cornpreend-las também como
XVIII e no início do XIX' - dos trabaihos estatisticos. So conhecidas
objetos culturais. Reflexo salutar.
tambérn suas continuidades: de urn sécuio ao outro, a geografia permancce
Acrescentemos que, estudadas nurn longo perlodo, as evoluçoes
essencialmente descritiva enumerativa Dai provem a abundancia dos qua
tornam-se manifestas. Entretanto, o movirnento só diz respeito a irna-
dros", "descriçoes", "dicionários" c outras "sinopses". Significa que os au-
gcns. Como Magritte, teremos de dizer, diantc de nosso corpus de défini-
torcs em geral pouco se prcocupam corn gcneralizacao ou abstraçao e que
çóes, isto nflo e uma cidade, mas sua apreensão. Em outras palavras, as as Geografias da Franca fornecern muito exccpcionalmentc as definiçoes
rransformaçoes das dcfiniçoes correspondc uma modificaçao das real ida-
que nos interessam.
des urbanas? A cidade do século XIX nascente é a do século XVII? Ha
permanencia on não dos quadros, dos papéis, dos modos de funciona-
5. Este taco I aversOo acualizada de uma comunicacBo apresentada numa reuniBo do Grupo de trabalho
mcnto? Prcssuponhamos somcnte que, em dois séculos, a evoluçao das incernaciona! sobrr os problernas de hinória urbana. Foi ampliado corn base na discussBo que se seguiu e nas
definiçoes é o reflexo das idas c vindas complexas que unem uma realida- sintesrs que foram feitas pot J.-C. Perror e D. Roche, de que sou drvedor.
6. Ede Daioville. La Giagraphiedes Humanistes, Paris, 1940;N. Broc, La GiographiedesPhil.osophes. Gdagraphes

3. R. Robin, LasocicJfrançaiseen 1789: SemurenAuxois, Paris, 1970, incrodsxcao. cc esyageursfrancais auXVIl! siècle, Paris, Ophrys, 1975.

4. J.-C. Perrot, Genised'une vilI.e modes-ne. Caen auXVIIF siècle, Paris, 1975, p. 15. (N. doT.: Republicado rm 7. J.-C. Perrot, 'Tage d'or de la sraristique rIgionale". Annales Hiseoriques de Lx Rérolutisn Fran caise, abr.-jun.

2001 pela Editions de I'EHESS) 1976, pp. 215-276.

246 247
P0R JMA NOVA HISTORIA UtIEANA
BERNARD LEPETIT

Por aproximacão corn as qualificaç6es, efetivos de populacao e sobretudo


Scu interesse 6 ourro: através da realidade geográf'ica descrita, transparece
a delmniçao impilcita da cidade que fazia parte da bagagem conceitual de seus elementos de deacrição fornecem uma lista dos traços constitutivos da represen-
tação geografica da cidade, de maneira basrante semeihante 'a pesquisa imperial
autores. Corn os quadros e as descricöes da Franca, dispomos de urn tipo de
sobre a populacão aglomerada, por exemplo Assim, pode-se tentar acompa-
fonte mais substancial do que as listas de "cidades", os catalogos fornecidos por
nhar a evolucão desses elementos da representacão urbana e de sua importância
alguns levantamentoss e a infinidade de airnanaques - material que pode propi-
ciar estudos de hierarquias on de redes —; mais substancjal ajnda do que as relativa ao longo de dols s&ulos. Pode-se tentar especifIcar, num enquadramento

definiçoes fornecjdas pelos dicionários IinguIsticos ou os tratados de direito — menos rIgido que o dos dicionários, o aparecimento on o apagamento progres-

que são o resuirado de urn desejo de codificaçao, fixando o sentido e tendendo a sivo desta on daquela caracterfstica.

corlservá-lo: de urn dicionário Para outro, a deriva das paiavras e', muitas vezes, Pode-se detectar as contradiçöes, as vezes insoliveis para o autor, entre uma

bern lenra9. Para cada uma das localidades consideradas, quadros e descriçôes definiçLao antiga impiIcita e uma realidade nova, ou cmxc elementos de definiçao

fornecern: divergentes. E essa imagem da cidade talvez nao seja simples elaboraçao de especi-

• Urna qualificaçãu, no mais das vezes. 0 conjunto organiza-se numa alistas. Submetidos as pressfies das estruturas econômicas, sociais on poilticas de
sua 6poca, engajados em correntes de pensamento mail amplas — a "geografia dos
escala grosseira, da cidade 'a aldeia, passando pela vila, 0 grande burgo, o burgo e
a grancie cidade, fulósofos" sucede a "geografia dos humanistas" —. e desejosos de realizar obra

• Urn efetivo de popuiacão, as vezes. Gerairnente dc é dado em óbitos at educativa (quer se irate de educar o Deifun, o Homers Mundano, o CidadEo on

O a Juventude), as geografos que redigiram quadros e descriçóes geograficas da Fran-


iniclo d0 século XVIII, depois ern niirnero de individuos.
ca sem dilvida são bons reflexos da consciência — esciarecida — de seu tempo.
Uma monografia sempre. História, funçoes administrativas, ativlda-
des econôi-nicas, aspecros arquitetônicos constjtuern seus paaigrafos essenciais, E prudente, entretanto, saber o que se pode esperar deles. 0 estudo da
evoiução da estrutura urbana francesa é necessariamente decepcionante: o ins-
cuja Importância absoluta e relativa, varia em função da localidade estudada e
do auror. trumento e rudimentar demais, e a parte que cabe aos dados quantificados é
fraca demais. A classificaçao é feita no piano da généralité, da province, do

8.Saugrain, DCnombremencti,, Royaume, Paris, 1709; DCnombremenrde Ian II, Archives Nationales, F. 20, pp. deartemené', ou seguindo a ordem aifabética; apenas excepcionaimente se faz
298 a394.
9. Era impossivel tendo em vista Santa informaçlo, let cudo. Guiado por Daineille, Broc ou as numerosas

lmitaçoes e reediçoes, consideramos: P. Labbi, La geographic royale, Paris, 1646; P. Duval, La geographic 10. L. Bergeron eM. Roncayolo. "La notion de yule en France d'aptès 1'enqia0re sur Ia population agglom&ie",
comunicaçlo no IV Cohsquio da Associsçso Francesa dos Flisroriadores Economisras, jan. 1977, no prelo.
françajse contenanrkodeocp,ptions lea can't, et Ic bisison des Provinces tie France, Paris, 1667; Piganiol de la
circunscriclo f'jnanceira dirigida
Force, Description a', La France, Paris, 1718, 6 volt.; R. de Hesseln, Dictionnaire universel tie la France, 11. Termos refecentes a circunscricOes vdlidas no Antigo Regime. GinCralieci
province. circunscriclo militate fiscal; de'partemenc divisSo administrariva
Paris, 1771,6 vols.; P. d0 Couidic, Giageaphie tic Ia France d'après La n000elle division, Paris, 1791, 2 vols.; pot um general das Finanças;

P TeuliEres, Nauvellegiographie tie la France, Paris, 1830. do território sob aauroridade de urn prefei to assisrido pot urn Conseiho Geral (incendlncia). (N. daT.)

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248
POR UMA NOVA HISTORLA URBANA
BERNARD LEPETIT

urna lisra das cidades mais importantes do pals. No rnáximo pode-se comparar organização urbana, em que a instabilidade do estatuto tern a probabilidade
mais forte, não são sistematicamerire representados de urn autor Para outro.
o capItulo "des célèbres vjlles de France" de Labbé (1646, 148 etseqq.), cuja
Quanto as indicaçoes estatIsticas, mostram-se rnuito pouco numerosas ate o
ordem de apresentaçao não hierarquica, ao verbete "France, les villes" de
Hesseln (1771, t. III, 130 etseqq.). Labbé, em 1646, cira 35 cidades e esquece inIcio do século )UX. Nora-se, no máximo, urn aumento da populacao media
de cada nIvel de habitat. Na regiãO parisiense, as aldeias arialisadas por Piganiol
Lyon. Hessein, em 1771, registra 28. Dezessete nomes são cornuris as duas
somarn em media 178 obitos; os burgos, 271; e as vilas, 323. Urn século mais
listas, 18 so aparecem em Labbé, 11 unicamente em Hessein. Entre Os desapa-
recimenros, notam-se cidades da Bourgogne (Autun, Beaune, Macon), do Centro tarde, os mesmos nOrneros, calculados corn base nas indicaçoes fornecidas por

e da regiao do Loire (Angers, Tours, Blois, Poitiers). Entre as prornocOes Teulières, elevam-se respectivamente para 1305, 1992 e 4 362 habitantes. Qual-
quer que seja o valor do Obito suposto, a progressão C nitida. E a conclusão,
constam cidades novas (Versailles, Rochefort), metrópoles de provinces anexa-
das (Lille, Nancy ou Metz) e duas cidades manufatureiras (Abbeville e Carcas- limitada: as bases estaristicas são estreitas; as comparac6es regionais, quase im-

sonne). Conclusöes sumárias, como se ye. E o mesmo acontece quando o possIveis. Para se fazer urn estudo mais aprimorado, que levasse em conta even-
tuais variaçOes regionais ou funcionais, as fontes existem, mas são outras: Saugrain
rrabajho é realizado no ârnbito regional. Piganiol de la Force, em 1718, regis-
em 1709, o levanramento do ano II no fim do sCculo XVIII, a pesquisa sobre a
tra 50 cidades e burgos da Provence; ties quartos de século mais tarde, Du
população aglomerada urn pouco mais tarde... Já se disse que o interesse dos
Couedic inscreve num territOrio semelhante 46 nomes, todos chefs-Iieux12 de
disrrjtos e de cantOes. Trinta e cinco nornes são cornuns as duas listas, dentre quadros geográficos não está al; reside nos elementos constitutivos da represen-

Os quais todas as antigas sedes episcopais e todos os novos chefs-Iieux de distri- -- ração urbana.

ros. PerrnanCncja provençal das func6es de enquadramento... Trabaihos acme-


Pelo jogo dos movimentos conrrários - enfraquecirnerito de irnagens anti-
Ihantes poderiam ser feitos Para conduzir a conclusOes tao rápidas e insuficien-
tes em outras provinces ou regiOes econônuicas (Languedoc ou costas atlânticas, gas, ernergCncia de noçOes novas—, C Para uma renOvação radical da represenração

por exempt0). geografica da cidade que nOs somos impelidos. Nas origens esra a cidade imóvel.
Paralisada na escala do tempo e do espaço, tern sua existência presidida pot dois
Mesmos limites, e encontrados corn a mesma rapidez, quando se ques-
mitos fundadores: a muraiha e a antiguidade. E ao estremecimento desses mitos
tlona o grau de permanencia da qualificaçao urbana: quantas cidades regressam
ao paramar dos burgos? Quantos burgos progridem? Err' tal nivel de povoarnen- que os geOgrafos do sCculo XVIII nos fazem assistir.
Barbesieux, em Saintonge (1718, IV, 355), "era outrora rodeada de mu-
to, quantas cidades em tal data, quantas em tal ourra? Os niveis inferiores da
ralhas, o que faz que ostenre o tItulo de cidade". A relaçao C direta; não haveria
meihor modo de dizer que a muraiha foi por rnuito tempo o elernento
12. Ceneos adn,jnjsrotjyos de circuncriçSes trritoriis. (N. dsT.) determinante da representaçãO coleriva da cidade. Conhece-se a definição do

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BERNARD LE PET IT POP, UMA NOVA HIST6111A URBANA

Dictionnaire da Academia: Cidade, "casas agrupadas no interior de uma cercadura mais precoce: o eXernplo de Poitiers permite que se date o recuo. No ponto de
de muros e de fossos". Elemento de tal importância, que é citado em primeiro parrida, as vastas proporcóes fazern a grande cidade. Poitiers "é uma das maiores
lugar, mesmo que seu papel seja explicitamente limitado na explicaçao do vigor cidades do reino pois so perde para Paris pot sua grandeza" (1667, 145). No
do fto urbano. 0 mesmo se dá corn Saint-Etienne, descrita por Pigariiol: "era início do século XVIII, a diivida se insinua, e as prudências de estilo se impöern:
apenas urn burgo quando os habitantes obtiverarn do rei Carlos V11 perrnissâo "Se se julgasse o rnériro de uma cidade por seu espaço murado, Poitiers talvez
de se cercar de muraihas; e depois disso as manufaturas e o cornrcio atraIram fosse a primeira cidade do reino depois de Paris" (1718, IV 412). No fim do
tanta gente para Ia que hoje se contam mais de 18 000 almas" (1718, V, 457). 0 Antigo Regime, esth decidido, tamanho nao 6 mais sinônimo de importância, e
prirneiro acontecimento, o fato constitutivo, é o muro. 0 resro e supiernentar. O tom pode tornar a set o da constataçao: "Poitiers e uma das maiores cidades
Mejo s&ulo mais tarde, a perspectiva foi inteiramente aiterada: Saint-Etienne da Franca pot sua extensBo; mas eta não 6 povoada na proporcão de seu tama-
"deve ao comércio seu prodigioso crescimento; pois nao era seno urn burgo no nho" (1771, V, 384). Inserida nessa evoluçâo, a tentativa de Dc Fourcroy, que
reinado de Carlos VII. Sua extensão ultrapassa hoje dez vezes o espaco contido nos propoe em 1782, em seu E.csai dune table polecmetrique'4, uma classificaçao das
muros corn que os habitantes o fechararn em 1444, e deles quase so restam vesrI- cidades baseada em sua superficie, parece voltada bern mais para o passado do
gios" (1771, VI, 60). E se Barbesieux ainda merece ciraçâo no patamar de cidade, é que para o futuro.
graças a sua mariufatura de tecidos (1771, I, 353). A imagem da cidade murada 0 enraizamento no tempo acompanhava o entaizamento espacial, e é
desaparece, mesmo se as vezes a muraiha subsiste. Esrabelecida a segurança, eta se scm surpresa que constatamos a derrota paralela do segundo mito fundador.
tornara fardo, e as imposiç6es arquiteturais, econômicas, fiscais acabaram pot eliminá- Releiamos Labbé. Ele cita em seu paine1 "des clèbres viiles de France" (1646,
la. Mas os muros antigos nao garanriam apenas a segurança material. A segurança 148 etseqq.) 35 cidades e dedica a 27 delas urn comentário de no mInirno uma
conceirual tambm era grande. 0 muro deserihava o espaco da cidade, mas definia frase justificando sua seleçao; a antigiiidade ou a ptesenca de vesrigios arqueoló-
iguaLrnenre, se no mais, seu pr6prio ser. Agora scm muro, onde estava a cidade? gicos é invocada oito vezes. Em quase urn terço dos casos, portanto, naqueles
Começa a era dos tateamentos, que nao parece terrninada. meados do aiculo XVII, a antiguidade confere a cidade a superioridade de opi-
Por muito tempo a muraiha rivera urn peso tao grande na representacão nião de que seus habitantes podem orgulhar-se. 0 valor cornprobatório do
coletiva da cidade, que se havia chegado - quase sempre irnplicitamente, as argumenro não é discutido meio aiculo mais tarde. Se Capdenac é qualificada
vezes de modo expilcito - a uma hierarquizacao das cidades baseada no espaco como cidade apesar de seus 400 habitantes, deve isso nao so a seus privikgios,
que as muraihas continharn. 0 questionamento desse critrio, enrretanto, fora mas a sua antiguidade: "eta é de uma antiguidade tao grande que seus habitantes

13. Cidades fechadas "cujas muraihas delimitarn mais aindao see do que o dominio", observa F. Braude[, em
Civili,atjo,, materiel/crt rap italisme, Paris. 1967, p. 397. 14. F. de Dainville, 'Grandeur ci population des villes au XVIII' siiclr", Popularian, 1958, p.461 etseqq.

252 253
BERNARD LEP ETIT POR DMA NOVA HISTORIA URBANA

acreditam que 6 o Uxeiodunum de que César só se assenhoreou depois de urn corn a superfIcie cercada e a antiguidade é que fazem a cidade. Depois tudo se
longo sItio" (1718, IV, 300). 0 argumento é tao decisivo que não se hesita em desfaz. As muraihas, derrubadas ou negligenciadas, deixam de set sinai de urba-
recorrer a histária: Nimes teria sido fundada 590 anos antes de Roma, Nantes nizaçâo. A superfIcie não é mais sinOnirno de grandeza. A antiguidade é posta
"no ano do mundo 2715" (1718, IV, 139), e Chartres bate scm contestaçao em questão, vista do espetáculo de alguns decilnios e de crescimentos notó-
todas as outras: "a se crer na tradicao local, sua antiguidade remonta a tempos rios. A velha irnagem apagou-se, uma outra deve tomar o seu lugar.
bern próximos do dil6vio" (1718, V, 299). Piganiol poe em d6vida a legitimi- Corn a nova irnagem da cidade, elaborada no século XVIII corn pincela-
dade desse passado mItico, mas em nenhum mornento questiona a autoridade das sucessivas, o quadro se anima. Concepçao duplamente dinârnica, já que a
d0 argumento. Urna etapa é vencida corn Hessein, que constata frequentemente cidade é agora dotada de funç6es e suas arividades, sua importancia, o nOmero
que antiguidade e urbanizaçao podern set dais vocábulos dissociados e que a de seus homens estao sujeitos a variaçao. Corn o movimento introduz-se a
decadência existe: Arques, na região de Caux, "embora antiga é pouco conside- medida, absoluta necessidade caso sc deseje levar em conta evoluçOes de senrido
ravel, eja não se parece senão corn urn burgo" (1771, I, 228). No inIcio do e de intensjdade variáveis.
século XIX, a movimento Sc completa; o argumento perdeu o valor, e a pers- Contar as homens, para o pao, a guerra ou a imposto, certarnente não
pectiva as vexes chega a set inteiramente invertida, como atesta o quadro da é novidade. Nova rnesmo é fazer do niimero de homens a Indice cada vex
Gália cm 481 feito pot Teulières (1830, 167): "a fabricaçao das armas era o mais sistemático da irnportancia das cidades. Começa-se par observar que
principal ramo da indüstria; citavam-se Strasbourg, Macon, Autun por suas cumpre fazer uma distinção entre superfIcie das cidades e povoarnento, e scm
manufaturas consideráveis de flechas, espadas, couraças, escudos e outras ar- dOvida trara-se de uma operaçao que vai além da simples descoberta, ccológi- -
mas". Os tipos de atividade presentes (na época, a indiistria) supostamente ca, de densidade; mais fundamentalmente, trata-se do questionamento de
fundamentariarn a grandexa no passado. Antes, ao contrário, a antigilidade con- antigos esquemas de pensarnento. Assim, BCziers "tern grande espaço mura-
tribufa para determinar a importância num presente sempre renovado mas sem- do, mas não C povoada na proporcao de seu tarnanho" (1718, IV, 127); ao
pre semeihante. cantrário, Agde C "pequena mas bern povoada' (1718, IV, 130). Depois se
No firnprovisório do trajeto, retomemos os livros, retomemos as datas. fornece cada vex mais sistematicamente a ntimero dos habitantes, agora jut-
Na sucessão das obras analisadas, o corte mais profundo separa a Nouvelle gando que a precisão C iltil para a conhecimento da cidade. Enfim, o ndrnero
description de la France de Piganiol de la Force, publicada em 1718, e o de papulaçao acaba baseando tentativas de classificaçao. As proposiçOes de
Dictionnaire universel de la France de Robert de Hessein, datado de 1771. Hesseln (1771, III, 130) inscrevem-se nessa corrente, em que dc não está
Corte ainda mais perceptivel porque o segundo nem sempre hesita em extrair nem urn pouco isolado, pois nela se encantram tanto Law15 quanto La
uma parte de sua informaçao, e ate algumas de suas explanaçOes, da obra do
primeiro. Esquematizernos ao extremo. No jnIcio do século XVIII, a muraiha 15. Law, Oc,wre;, edicao Harsn, tomo III, p. 33

255
BERNARD LErETIT POR UMA NOVA HI5TRIA URBANA

)
- Michodièr&6. No verbete "Franca", Hessein distingue: 1) as cidades "da pri- urn comércio bastante grande" (1718, IV, 385). Chaillot, apesar da indtistria do

meira ordem", que tern 100 000 habitantes; 2) as cidades "da segunda or- vidro e do sabão, não é mais que uma aldeia. Elbeuf "é urn burgo cons iderável

dem", que tern "cerca de 40 000 ou 50 000 habitantes"; 3) "as boas cidades por suas manufaturas" (1718, V, 99). Depois a atividade econ6mica passa a

) da terceira ordem que não passam de 20 000 habitantes"; 4) "urn grande justifIcar a rnenção no quadro (como para Ambert, 1771, 1, 114), antes que se

nümero de cidades corn 8, 10 e 12 000 habitantes"; 5) "uma infinidade de chegue a dar a cidade sua importância. Assjrn é para Saint-Quentin: "suas ma-
)
vilas". Não ha continuum urbano, portanto, e sim a superposicão de niveis nufaturas, suas fábricas, a atividade do cornércio e da indüstria dos habitantes

individualizados corn muita nitidez, tanto em termos estatIsticos quanto tornam-na uma das meihores cidades de Franca" (1791, I, 31); ou para

pela utilizaçao de urn vocabulário honorIfico antigo. Montauban, "notável pot sua belezae importante por suas manufaturas" (1830,

No ponto inferior da escala, a precisao estatistica desaparece. E porque 27). Mas nos niveis inferiores, da mesma maneira que o mercado não faa a

nesse nIvel o nümero de habitantes nâo basta para fazer a cidade. Ainda em 1 830 cidade mas apenas o burgo, a atividade industrial lirnitada não permite alcançar

existem burgos corn mais de 4000 habitantes (Sèvres, Seine-et-Oise, 4200 habi- a qualificaçao urbana. Nem Saint-Gobain, apesar de sua manufatura de vidros,

tantes) e cidades corn menos de 1 000 (Boussac, Creuse, "inacessIvel aos carros, o nem Le Creusot, apesar de suas usinas e de sua manufatura real de crisrais, irern

menos povoado de todos os chefs-lieuxde Franca", 757 habitantes). Azona consi- Creil, apesar de sua manufatura de faiança inglesa, nem mesmo Anzin, apesar de
)
derada 6 vasta e, salvo por necessidades práticas, não se pode fixar limite demográfico seus 4 200 habitantes, suas vidrarias, suas usinas e suas huiheiras, "as mais

inferior do fenôrneno urbano. Outras variáveis tCm igual ou major peso: a estru- consideráveis de Franca" (1830, 116), são qualificadas como cidades nesse pri-
)
rura da populaçao, o papel da localidade, osdados econôrnicos ou culturais regio- meiro terço do século XIX.

- - - riajs. E também, sobretudo, a função. - E se a cidade, assirn como na época em que a rnuralha a instituia,ainda

Na época em que o uso sistemático do nilmero se difunde, a descoberta vai se definir em termos de exclusão, a significaçao dessa ilitima será de nato-
) da existCncia de funçöes urbanas parece estreitarnente ligada a inclusão da e- reza totalmente diferente. A oposicão, aqui, será entre urn meio rural átono,

conomia na constituiçlo do fato urbano. Descoberra progressiva, a atividade arnorfo, e a cidade que o estrutura e o anima; a oposicão será entre a imobili-

ecOnômjca faz a cidade. No infcio do século XVIII, nem as atividades corner- dade e o movirnento. Descobre-se, de fato, que mesmo a menor cidadezinha

ciais nern as atividades industriais parecem suficjentes a Piganiol para funda- representa urn papel em relaçao a seu campo, e esse papel ao mesmo tempo a
)
mentar o urbano. Em Charente, LaTremblade "não passa de uma aide Ia muito distingue de sua hinterlândia e a aproxima dos niveis urbanos superiores. Essa
)
povoada e bern construIda... Presentemente, ha A apenas rnercadores que fazern funcao é inicialmente funcão cornercial. A cidade pequena negocia a produção
de sua area agricola (como Ribérac ou Mussidan na Dordogne, Châteauneuf-

16..Etatgenera/d villa duci-dantroyaume, diüé,,, dnq ck5sesd'aprèLaMichadierc,ArchivsNtiona!es, F.


en-Thirnerais em Eure-et-Loir, Lesneven no Finistère, 1791, I) e nela distri-
) 20; p. 442 (2). bui, em troca, os produtos vindos de fora. "Corita-se uma infinidade de cida-

256 257
)

ii
UMA NOVA HISTORIA URBANA
POE
BERNARD LEPETIT

e "comercial e bastante povoad' (1718, IV, 159). 0 exemplo de Sees fornece a


des pequenas que podem ser postas em paralelo corn outras maiores, pela opor-
contraprova "embora esta cidade seja episcopal, é derta e não tern nenhurn
run idade que elas tern de fornecer provisôes de varejo as aldeias numerosas comércio" (1718, V. 166)19. Depois, será claramente estabelecida na literatura
d correspondern para elas as vantagens
dos arredores, de modo que essas venas
geográfica a relação entre atividade econômica e desenvolvimenrO urbano. Entre
que a venda no aracado proporciona a cidades mais povoadas" (1771,111, 130). cern outros exemplos, Saint-Etienne "deve ao comCrcio seu prodigioso cresci-
Concepcão clara, ja, de urn conj unto de praças de cornCrcio e de zonas de sua indstria sua prosperidade sempre
-, mento" (1771, VI, 60), Nevers "deve a
mercado organizadas hierarquicamente - Christaller não está tao ionge'7 crescente" (1830, 43). E sempre, para conduir, o crescimento.
mas sobretudo justificariva renovada de todas as dorninaçóes.
Não se discute: no f m do sCculo XVIII, o que faz a cidade C o nümero
Resultando assirn nurna estruturaçao complexa do espaço, o funcionalis-
dos homens (salvo nos niveis mais baixos da escala urbana), as atividades
mo leva iguaenre a estruturação do tempo e a articuIao causal dos diferentes
econmicas - sempre comercials mais do que industriais -, a estrururacão de
domInios da atividade humana. Conceber a exisrência de funçöes urbanas e imo bilizada no espaco e no
urn espaco dependente. A cidade do sCculo
rambe'rn conceber urns possibilidade de rnutação de funçáo e inrerrogar-se sokre
tempo pot suas muraihas e sua antiguidade quase diluviana, opöe-se a cidade
eventuais conseqüncias. "Destruida a hjdra da chican', escreve Du CouCdic nova, ariva, dotada de dinamismo e exercendo funçöes que são as suas.
no inIcio da Revoluçao, "Rennes deve sofrer nos primeiros tempos, e arC que
***
urna nova ordem de coisas venha substituir pelos nobres produtos da indristria
A função administrativa, entretanto, C mais raramente apresentada como
os frutos amargos da contestação" (1791, I, 219). Para alCm da retórica e do
do
urn motor do crescimenro urbano, embora se perceba que tambCm nesse domi
desejo industrialista do autor, essa postura indica que esrá estabelecido o
nio a reflexão progride. Entretanto, cia se impöe por sua permanencia de urn
entre funo, atividade, riqueza, povoarnento. 0 sCculo )III inventa, no do-
extremo a ourro do periodo. Talvez seja porque a p re ponderância que eta propi-
rnInio urbano, a variação concomirante18 .
Ja no inIcio do século, portanro, Piganiol evocara a existCncia de arivida- cia ainda C geralmente considerada de outro nIvel, e o poder adrninistrativo, de
urna essCncia diferente daquela do poder econômico; os ha rrnônicos, aqui, serão
des povoadoras; enrendarnos, num rnundo em que a popuiacâo C percebida ao
mesmo tempo corno condiçao e sinai de potCncia, de atividades motoras. Em- culturais e sociais20 .
dc 00 grau do desenvolvimento. 0 casO
bora nem sempre estabeieça no ârnbito da linguagern urns relaçao causal, 19. E s votes o rio soestabelece entre a atitude dos possuidores de capitais
deToulouse d euchre: "Embora n5o baja no reino cidade mais vantajosamente sisuada pars o comdtcio do
frequentemente associa atividade comercial e populacao nurnerosa; a cidade bai- leva a preierit gOzar
queToulouse. ole quase nSo d feito 16. Afndole dos habitantes nio sevolta para isso eos
xa de Carcassone "C rnuiro comercial e bern povoada" (1718, IV, 121), Maejols Ihes d o Capitulado ou a dedicar-se I toga... 0 que 1z q ueToulouse. urn, das maiores
da nobreza pie
(1718, IV, 106).
cidades do reino, seja uma das menos ricas enao seja nern mesmo muito povoada"
rn atributo quo os gedgrafos pouro so preocupam em creditar a cidade,
20. Edo rnodo a]gam juridkos. Se h6 u
1?. W Christaller, Die Zent,alen 0,-to in Sud-Deutschland, lena, 1933. do de priviliglo. Bourges (1646. 150), cidade "
recomendivel para ... os privildgios do seas habitantes.

18. J.- C. Perrot, Cam..., op. cir,p. 12.

259
258

IlL
POR UMA NOVA HI5TORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

Perfeita função valorizadora ci o exercIcio do poder administrativo, come, ruptura entre isolamento e comunicaclo, entre natureza e cultura, entre campo
sublinha belarnente Piganiol descrevendo Pont-Audemer: "esta cidade ci briiida- e cidade. Sornente a presenca justaposta de várias adrninistracôes permitirá o

da corn urn bailio, urn viscondado, uma eleiçâo°', urn celeiro de sal e urn órgáo salto qualitativo.
de controle das águas e florestas" (1718, V, 98). A estrutura urbana ci inicial- Conferindo uma prirnazia de honra, o critcirio administrativo serve, as-

mente sentida como estrutura administrariva. Administraçao religiosa em pri- Sim, como ref6gio a veiha visão culturalista da cidade - palco privilegiado onde
meiro lugar, muito benéfica, já que faz a cidade, qualquer que seja a populacão desfila a gente culta -, tao vivaz no sciculo XVI e no inIcio do XV1122. A cidade,
do lugar: Vabres, em Rouergue, "so encontra espaco nesse local por causa de local de concentração da riqueza, ci local de residência de uma elite e cenário
uma sede episcopal corn que foi honrada em 1317, pois quanto ao resto não ha privilegiado de sociabilidade. Elaci sinai exterior de dese nvolvirnento, não nurn
cidadezinha menor na região que não seja mais povoada do que esta pobre sentido econtmico, mao nurn sentido cultural. "Se alguns autores fizeram o

cidade" (1718, IV, 305). Situação rnenos nitida no que se refere a administraçao Egito set visto como uma quarta parte de nosso continente, e outros fizerarn a

civil. Aqui, o nIvel modesto do equipamento administrativo nao basta para mestna coisa corn a Grcicia, em razão do grande n6meto de cidades que ha nessa,s

fazer a cidade. Abe juan, no Languedoc (1771, 1, 31), sede de uma justica real; regiOes, por uma consideração serneihante nOs podernos fazer o mesmo corn a

Ablis, na regiIo de Chartres (1771, 1, 32), sede de uma reparticao para os Franca" (1667, 68). Egito, Grcicia, guardemos os referenciais: são modelos de

direitos do rei; Aigre, em Angournois (1771,1, 51), agraciada corn urn posto de civilizacão. Uma fdrrnula, ritual, sobreviveu ate o fi m do sciculo XVIII corn
correio, que conra corn cavalos e urn diretor, so merecern a qualificacão de algurnas pequenas variantes: a cidade ci "grande, bela, rica e bern povoada". -A
burgos. No patarnar imediatamente superior, a "vila" ci sede de várias adminis- infinita multiplicacão de uma definicão tao direta indica muito claramente seu
rraçöes. Aigties-Mortes (1771, I, 53), pot exemplo, possui urna justiça real, urn - - sentido: arqucitipo cultural que não morre. Referncia suficiente para todo espI

airnirantado, uma repartição das gabelas e outra para as cinco grandes fazendas; rito esciarecido, scm dOvida cia explica a brevidade dos trabalhos dedicados pela

Airvault, em Poitou (1771, I, 61), ci sede de urn bajljo, uma justica real e urn literatura geográfica tanto ao urbanismo quanto a sociabiidade.
depOsito de sal. E porque o equiparnento administrativo supOe, ao mesmo Evidentemente, o urbanismo sempre valoriza a cidade "grande, bonita e

tempo como sinai e condiçao necessária, a existncia de urn nOcleo sociocultural bern construtdZ, mas fora disso as descriçOes são bern curtas. E Paris ci rnodelo

suficiente e de estruturas de relaçao bastante densas para que seja consumada a permanente, mesmo que faltem adjetivos para esboços precisos, substituldos
ci
pot substantivos acurnulados; se a capital ci "rainha das cidades" (1667, 91),
maim e lchevinP [Antes da Revolucao Francesa, ease, cermos designavam, respectivasnente, odirigerste do gracas a "suas ruas, seus edifIcios pOblicos, suas pracas, seus cais, suas pontes"
rorpo municipal e ojuiz municipal. (N. daT.)]; Abbeville (1667,76), que "ar6 o presence conserva seus (1791, II, 119). Jamais saberernos muito rnais do que isso. Quatro palavras
priviRgios'; Capdenac (1718, IV. 300), que possui vários belos priviRgios", pertencem a uma listu muito
CU,ta. Visa0 de gedgrafo? Cu, ao conrrdrio, o restemunho de juristas nOo foi solicitado corn muira frequência?
21 NoAntigo Regime, circunscriç5o financeira administrada poe ekito,. (N. daT) 22)-C. Perrot, Cam _, up. Cit., pp. 15-17.

261
260
POE UMA NOVA HIsTORIA URBANA
B ERNA RD LEPETIT

haviam bastado para compor urn cenário, alias contido na bagagem cultural do davam ainda a essa cidade uma primazia de opiniao e de realidade". Coloca-se

leitor. Iirbanidade, civilidade, sociabilidade nao são mais critérios a que os muito clararnente - e encoraja-se a reestudar nesse nfvel - o problerna da

geografos recorrern para definir o urbano. Alérn de Paris, centro de civilizacao, reorganizacão administrativa revolucionária e das lutas de influncia a que eta

só se pode citar Moulins (1667, 152), "célebre pelo born humor, a polidez e o deu lugar e de que as arquivos do Comit8 de Divisão da Constituinte conser-

espIrito de seus habitantes", e duas cidades meridionais, Aix (1718, III, 463), yarn vestigios abundantes.

"uma das cjdades do reino que meihor imita Paris pela polidez de seus habiran- Em meio a essa aparente permanência, portanto, as transformaçöes pre-

tes", e Montpellier (1718, 1V 135), onde "o povo é hurnano e ama a sociedade". valecem, e decididarnente a cidade irnóvel, a cidade esracionária - embora as

A lista 6 logo encerrada, corno se v, e termiria no inIcio do sculo XVIII. A duas palavras nao sejarn sin6nimas23 - vai tornar-se, ao longo do sculo XVIII,

precocidade dessa interrupcao merece ser questionada. Pode-se ainda creditá-la capaz de crescer. Porque os geografos, ao mesmo tempo que traçavam uma nova

a urn modelo que engloba tao necessariamente a urbanidade no urbano, a ponto imagem da cidade, corneçavarn a manejar uma nova ferramenta conceitual, rica

de qualquer aprofl.indarnento parecer in6til? Ou, ao contrário, deve-se ver aI a em harrnônicos: a da funçao urbana.

indIcio de uma evoluçao ideologica que, no par cultural cidade-carnpo, desvalo- A emergncia dessa representacão nova coloca inümeras questóes.

riza o primeiro terrno ern beneflcio do segundo? Limite da análise do não-dito Eta está ligada apenas a urn progresso conceitual da ciência geograflca?

para quem se restringe ao estudo de urn 6nico tipo de fonte, que nos obriga a Corresponde a urn movimento mais amplo de redefinição do urbano? E

silenciar a ease respeito. quais são as relaçöes, necessariamente cornplexas, feitas de interaçôes miii-

Da mesrna forma, não se deve supervalorizar as herancas. E claro que a tiplas, que se estabelecem entre uma visão renovada da cidade e uma reali-

administraçao, sernpre, acima do nivel mais modesto, faz a cidade. Mas a dade que se transforma? Eta nos convida tambm a rniltiplas indagacoes.

imobilidade conceitiial é apenas aparente, pois mesrno nesse dornlnio a refle- A definição da cidade se rnodifica? Qual é o grau de permanência da atri-

xão avança. Já dissernos que, no início do s&ulo XVIII, sente-se que a funçao buiçao do carárer urbano segundo as regiôes, as atividades, o nIvel de

administrativa confere uma primazia de opinião ou de honra. No fim do sku- desenvolvimento anterior? A função 6 o elernento principal de defmniçao

lo, reconhece-se que eta proporciona vantagens mais palpáveis no âmbito do da importância urbana? Quais são as conseqüências econôrnicas,

poder, da econornia ou da demografia. Montpellier (1791, I, 218) 6 "uma das demográflcas das rnutaçöes funcionais ligadas a modificação de dados eco-

cjdades da Franca que, tendo mais perdido na Revoluçao, mais desprendimen- nôrnicos - construção de uma rede de estradas reais, supressão dos pedá-

to mostrou. Era a sede dos Estados do Languedoc, cujo encontro anual para Ia gios e fronteiras aduaneiras inter iores - ou polItico-administrativos - re-

atraIa uma grande populaçao e fazia circular o ouro da região. Tinha uma formas revolucionárias e imperiais - do pals? A cidade é centro de ativida-

Câmara das Contas Püblicas e uma Corte de Assistncja cuja instância se


23. M. LutfaIt, LEtt,tation,,aire, Paris, 1964
estendia num grande território. A sede de urn bispado e a de uma intendência

263
262

I
j

) BERNARD LEP ETIT

)
) des povoadoras? Não Se pode niedir o grau de e&cia, de incitaçâo ao
) crescimento, dessas atividades? Não se pode especificar assim a originali_
dade do papel e do funcionament o da cjdade do Antigo Regime?
Não tenharnos a ingenuidad e de nos espantar corn a quantidade das ques- 10. OS ESPELHOS DA CIDADE: UM DEBATE SOBRE
)
toes que formularnos: elas tern como premissas as representaçoes do século 0 DISCURSO DOS ANTIGOS GEOGRAFOS*

X\TIII. Os quadros geograficos da Franca contribuem para nos fazer assistir ao


nascirnento de urna problemática que ainda é a nossa. Ligada ao funcionalismo
)
aparece a reflexão sobre o espaço de exercIcio da funçao; no fim do percurso, os
concejios de area de influència, de centraljdade e Os trabaihos de Chr.crsller24
Em torno do texto de Bernard Lepetit, Urbi organizou em 15 dejunho de
J Ainda ligada ao funcionalis mo, a interrogação sobre o caráter "povoador"das
corn o auxulio de Marcel Roncayolo, geografo, uma mesa-redonda de que
atividades urbanas; no firn do caminho, a teorja da base25. Observar isso 6
participaram, a/em dearnbos,Jean-PierreBardet, Jean-Claude Perrot eDanielRoche,
também nos convidara interrogar-nos sobre a neutralidade cien tIfica do funcio-
historiadores da Franca do Antigo Regime; Maurice Aymard, historiador da ltd/ia
nalismo e a refletir sobre os unites de nossas próprias questoes.
do Sul e do Sicilia,Louis Bergeron, historiador do século XIX, e Denys Lombard,
historiador do Indonesia e do mundo insulindiano. Jean-Claude Perrot concordou
em presidir a discussao e TeneT o texto definitivo. -

Jean-Claude Perrot- Se voces concordam, deixemo-nos guiar pelo movi-


mento que Bernard Lepetit percebe nessa literatura geografica. Do século XVII
ao XJX operam-se mudanças de definicao. Os textos antigos caracterizam as
-ft
cidadespor sua antiguidade e suas muraihas. Trata-se de noçOes simbólicas que
os geógrafos teriarn tornado de empréstimo a cultura erudita do século XVII ou
I - de observaçoes baseadas na experiCncia? 0 conteüdo semântico desse vocabulá-
rio merece ser aprofundado. Dc outro lado, definiçoes urbanas mais "modernas"

24. W Clsristaller, op. Cit.


25.
M.Aur05500, The Distribution of Population: A ConstracriveProblees" Geographic Review, 1921, * miroirs de javjlle: un dibatsur Ic discours des anciens gftographes'. em URBIJI, rim 1979, pp- CVII-
p. 574 eCIeqq.
) CXVIII. 0 rema do debate foi o texto que constitui o capirolo 9 desra coletSnea.

264 265
BERNARD LEPETIT
POP, UMA NOVA HISTORIA URBANA

anunciam-se nos skulos XVII-XIX, mas levantam novas dificuldades. As cida- real da cidade do Antigo Regime que se tenta alcançar é - como para qualquer
des mudaram; os geógrafos da 6poca perceberam aigumas dessas mudanças, suas outra cidade - uma prática desse real, uma prática da cidade. E essa pratica, por
idêias parecem diversificar-se, des arribuem menos importância ao estaturo ad- sua vez, integra urn certo niimero de representacöes. Dai a necessidade de defi-
ministrativo como crlcerio d0 urbano esboçam scm empregar a palavra uma
ni-las. A meu ver, é o que essencialmente interessa no estudo delas. -
análise das cidades em termos de fitncoes. Sentimos nossas próprias posturas
despontando nas deles. -
Danie1Roche 0 que me parece interessante, caso se pretenda responder a
Entretanto, não se pode esquecer que os mtodos atuais da dernografia, questao e caminhar no sentido que Lepetit acaba de definir, é que a hist6ria de
da economia ou da geografia dão a idia de funçao urbana urn conteüdo bern
uma noção 6 urn meio de perceber as diferentes representaçóes dos grupos so-
estranho aos espIritos do século XVIII. Se a análise "funcional" dos tempos ciais. No estudo da noção de cidade, encontra-se a prática dos historiadores das
antigos se presta a aproximaçoes, seth mesrno corn a dos urban isras de agora?
idéias, mas em confronto com urn objeto mais circunscrito do que os grandes
Não seria, na verdade, corn a d05 homens de ciências, dos economjstas ou dos temas habituais: Natureza, Felicidade, Amor. Nessa perspectiva, a hist6ria na
politicos do tempo das Luzes?
noção de cidade deve perrnitir que se descubra como os diferentes circulos
De resto o próprio B Lepetit nos alerta estudamos a hist6ria de uma culturais e as diferentes classes sociais a utilizaram para justificar sua ação. En-
4 s-epresentação, nao a hist6ria das cidades. Eu ihe perguntaria então como falar
tao 6 preciso buscar essas definiçoes diferentes, verificar como algumas foram
nisso legitimamente - alias, é Citil?
excluldas, e por quern, e quando. Assirn, no corpus proposto por Lepetit, a
noçao de sociabilidade - a funçao de civilidade - aparece pouco; ora, cia
- AS PRATICAS E SEU EFEITO
fundamental— ao menos no pensamento das elites eruditas - para caracterizar a
hierarquia urbana. Seria interessante verificar onde cia aparece e como.
Bernard Lepetth Eu gosraria de dizer apenas urna palavra a respeito do
interesse daspesquisas sobre as definiçoes anrigas da cidade. Dc certo modo,
H
Jean-Claude Perrot Pode-se acrescentar a essa sociologia das irnagens urn
justificar meu próprio trabaiho... Para qualificar a cidade da 6poca moderna,
ponto de vista mais epistemológico? 0 estudo das noçöes parece-me tambérn
por muito tempo nos contentamos corn uma simples gradação de vocabulario a
rnuito proveitoso para quem deseja estabelecer hoje suas próprias quest6es de
cidade pre industrial precedia a cidade industrial A definiçao irnplicita era bern
hist6ria urbana. As representacôes da cidade no século XVII nao nos revelam os
negativa e excessivamente carregada de pressupostos. Portanto parece necessário
conceitos que os contemporâneos consideravarn eficazes para apreender sua ci-
substitui-la pot urn conceito de "cidade do Antigo Regime", mais ou menos
dade? Então é interessante confrontá-ios corn aqueles pelos quais os substituI-
como Rgine Robin tentou elaborar o conceiro de "burguesia do Antigo Regi-
mos hoje; é dtil avaliar pot quais etapas se operou a passagem de uns para os
me Para isso e preciso integrar as representaçöes antigas da cidade Dc fato o
outros. 0 observador de hoje está disrante da restemunha de onrem, mas am-

266
267
) BERNARD LEPETIT 1 P0R UMA NOVA HISTORIA URBANA

)
bos vivem na história: cia não tern cortes (nem na epistemologia, nem nas como deveria existir. Não Se vai diretamente do econômico e do social a
) realidades), apenas gera djstâncjas. intervenção no espaco; passa-se pelo desvjo das representacöes: através
) da cidade, mobiliza-se o conjunto dos dados cientfficos, paracientIficos,

) Daniel Roche- Ha uma distância que 6 seletiva, tanto maisporque certos mágicos, imaginativos e outros, que formam o equipamento mental de

) meios nunca interVêrn na definiçao das formas como a cidade representada. A uma poca. Impressiona-me particularmente a continuidade da racionali-
partir dos documentos acessiveis, seria preciso conseguir que esses excluIdos dade, o cartesianismo urbano sensIvel a partir do século XVII. Certos

dissessem como representam para si a cidade, como a praticarn, como a so- pesquisadores italianos que trabalharn corn o barroco apontam, eritre as
nham. As noçöes sobre as quais reflerimos - é o defeito habitual da história das cidades barrocas de estilo aiemão e as cidades barrocas francesas, uma

idéias - são sempre aquelas da cultura erudita, de urns cultura esciarecida, e oposição entre filosofia Ieibniziana e filosofia cartesiana. Ignoro Se essa
I Ignora-se tudo sobre as representaçöes da massa das pessoas que tern acesso análise tern fundamento, rnas pelo menos rompe corn uma história das
) apenas indireto a essa cultura erudita ou que não a acejtam. 0 trabalho do - idéias entendida como simples reflexo: o equipamento mental comarsda -
historiador que reflete sobre as jdéias e a realjdade talvez seja medir esse os conceitos e models a ação sobre o real. A situação da medicina, pot

)
distanciamento, operar sobre as diferenças... exemplo, nas representaçoes da cidade no século XVIII, e a passagem a
cidade medical jzada parecern-me explicar-se menos pot objetivos de en-
IviarceiRoncayelo: Essaantropologiaretrospectjvaparece_meprecjsamen_ quadramento e de socializaçao forçada do que pelo fato de a medicina
)
te urn dos grandes problemas da história: como, no que se refere a cidade, constituir precisamente uma disciplina cientIfica utilizável para se tepre-
) teconstituir somente a partir dos docuinentos deixados pelos hornens de letras sentar o mundo. Assirn atrelada a esse veiho conceito de equipamento
) as representaçóes do homem comum dos séculos XVII e XVIII? Dc alguns mental, a noção de representacao parece-me ganhar toda a sua força.
) vestIgios concreros, das representaçöes dos letrados - materiais tao pouco

j confiáveis quanto na arqueologia mais iongInqua -, fazern-se inferencias sohre a Louis Bergeron: Uma observaçao que scm dilvida se relacionaria a história
sociabilidade a percepção do espaco etc. E se nao se deseja confiar cegamente do equipamento mental: nas representacóes da cidade antiga feitas pelos con-
nos romancistas, é urn problems que se coloca ainda para o século XIM temporâneos dos séculos XVII e )(VIII, chamam-me a atenção os atrasos oU as
)
A outra questão é a da noção de representaçao, que nao é urn puro insuficiCncias de que padecem suas observaçoes. Pois urn dos pontos que Lepetit
)
reflexo do substrato econômico e social. A representação é ativa: ela n1c, levantou foi o fato de que no fim do século XVTII começa a interferir o interesse
apenas "diz" a cidade, cia "faa" a cidade. 0 essericjai na cidade moderna, a pelas mudancas de tamanho, pelo crescimento. Ora, os fenômenos de cresci-

paint do século XVII, é que cia é projetada. Não é mais a cidade existeD- mento urbano, e rnesmo na forma de irnpulsos bastante potentes, são bern
) te que irnporra, mas os conceitos empregados para defmnir a cidade tal anteriores ao século X\'III - o qual, de resto, nBo foi urn século de crescimento

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Ii -. -
BERNARD LEPETIT POR UMA NOVA HISTORLA URBANA

urbano hornogeneo No que concerne a Paris por exemplo cuja observaçao I dos viajanteS OU Os dos geografos urn pouco exploradores concretizando se
sempre subjaz as reflexöes desses geografos administradores ou filósofos da reunam elementos movadores
adrninistraçao francesa ha uma fase de crescimento multo lrnportante nos s&u
los XVI eXVII entao corno se explica o apego a definiçoes que parecem basear I Marcel Roncayo& So uma palavra na linha de Bardet a gulsa de iiustração
se na observaçao de corpos irnóVeis? 0 verbete "cidade" da Encyclopédie 6 retrógrado ao rnxirno: dc a define como
-
- uma muraiha que cerca urn certo dispositivo topográfico de ruas, pracas etc. Não
Daniel Roche: Quando se estuda a noção de cidade e sua evoiuçao, se se trata de crescimento, mas de forma de uma cidade projetada, coristrulda
apenas urn certo tipo de corpuse considerado capta se so urn tipo de evoiuçao idealmente Sobre o mesmo ano 1757 disponho de urn documento dos magis
correspondente a urna certa logica, jurIdica, administrativa, econôrnica. A difi- trados de Marseille, criticando urn projeto - abertamente especulativo - de am-
culdade principal da tarefa é tentar uma inrerrogacão global. Nada contra que- pliacao do espaco cercado pela muraiha. Aqui, o debate sobre o cresclmentO é
rer-se constituir o equiparnento mental, mas nao se pode contentar-se corn o fundamental, sendo a questão, no fundo: uma cidade deve crescer? Sobre esse
raciocInio metafórico - pot exemplo, corn a vaga lembrança do racionalismo ou terna, as conrradiçöes são abundantes. 0 rnedo do crescimento é dominante
do cartesianismo - para caracterizar urn momento da evoluçao. 0 expediente 6 pois o aumento de tamariho faz pesar sobre a cidade a arneaça de uma "escassez de
valido para que se retina, ao rnenos para urn mornento especifico o conjunro subsistencia e de uma escassez de disciplina7. Entretanto se o crescimento
dos dados controiáveis e para que se tente captar a reiaçao realidade/ rep resenta- artificial parece temerário, o crescimento urbanIstico nascido de urn desejo de
ção, e reciprocarnente, se possivel. criar novas rnuralhas inquieta; depreende-se desse texto, ao mesmo tempo, a
ideia implicita de urn crescimento natural inscriro na ordem das coisas que
Jean-Pierre Bardet Vou interferir urn pouco no rnesrno sentido que Daniel convem regulamentar, corno na fisica de certo rnodo por mecanismos de ação e
Roche, não para discutir a escoiha exclusiva da fonte descritiva, escoiha lirnitante de reação. Trata-se de uma postura infinitamente mais pertinerire, em sua oposi-
porém inevirável, e sirn para tentar arnpliar urn pouco suas dirnensóes. Se se ção entre crescimento artificial e natural, do que o texto da Encyclopedic.
recorre a rnesrna docurnentaçao, desta vez nao mais no piano gerai, mas naqueie,
monográfico, de cidades especIficas, as perspectivas mudam urn pouco. Aqui o Jean-Claude Perrot. 0 texto ou as series de textos podem set mais ou
-interesse pelos nIveis de populacao torna-se mais precoce do que nas descriçoes menos significativos, mais ou menôs precoces; nós o decidirnos, mas essa arbi-
globais. Nos verbetes "Rouen" ou "Lyon" dos dicionários, desde o sCcuio Xvii trariedade nao me perrurba dernais. Não é proibido confrontar vários tipos de
ha uma preodupação corn probiemas de crescimento. Na apreciacão da rnudan- docurnentos, e além disso todo corpus bern analisado torna-se loquaz. Anaiisar
ça, alias, 6 preciso saber a partir de que mornento nós conternplarnos urn plágio bern 6 corifrontar nossas definiçôes urbanas e as do passado, discernir identida-
e quando deparamos corn urn novo ângulo de visao. E possIvel que os relatos des, diferenças, oposiçöes.

270 271

0
BERNARD LEPETIT POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

Mas posso resumir o que toda poca espera de seus instrumentos de Nãoseria dificil, creio, mosuar que as veihas definiçöes da cidade baseadas
trabaiho de seus conceltos operatorlos como alguns dizem agora? Observernos nas muraihas e na antiguidade deveram seu sucesso, sua longevidade, a seu
as pesqulsas atuals esperamos tnicialrnente que elas nos forneçam urn proto-
proto- quadrupio poder explicativo. Daf se depreende mais que urn conj unto de
colode descriçao urbana é o estaglo elernentar do saber. Depois desejamos
col idéias sobre as cidades ciássicas, eu diria uma ideobogia. Nessa via, sugiro que
compreendet como funciona a cidade quais são as trocas de pessoas bens ou os famosos "conceitos operatórios" a que se atribul hoje urn estatuto quase
serviços corn o exterior. Permirarn-me uma metafora, a da cidade-maquina. cientIfico advm inteiramente, na realidade, da ideologia de seu tempo.
Existe em seguida urn terceiro nIvel de exigncia: explicar o surgimento, o
crescimento ou a sobrevivencia da cidade o vocabularto anaiógico das maquinas Marcel Roncayolo: Uma palavra sobre esses empréstimos, tao numerosos
não tern mais interesse, rnas foi historicamente substituido pot aumerosos em- nos séculos XVII e )(VIII, tornados pela ciência urbana ao mundo dos seres
prestimos tornados a clencia dos seres animados As aiusöes ao mundo vivo vivos: essas anabogias são colocadas em termos de fisiologia e anatomia descriti-
consolidarn se nos textos urbanos franceses desde meados do seculo XVIII Cabe va, e não ainda em termos de reproducao e crescimento; isso significa que elas se
deduzir dai que a reflexão acabava de atingir, então pela prirneira vez essas situam no piano do funcionamento, e não no da gnese...
anáiises do terceiro nIvel? Eu o aceitarla sem hesitar de uma e'poca que soube
igualmente dar a iuz a demografia, a economia poiltica ou a etnografia. Em Jean-Claude Perrot: Sim, pois a reproducao, em bioiogia, permaneceu
srntese nos ternos muitas direrrizes cornuns corn os geografos que Lepetit acaba urn problema nao resoivido ate uma data tardia; basta lembrar a querela dos
de estudar. - germes...
Entretanto parece que ainda e preciso acrescentar uma quarta preocu-
pacao as intervençöes por meio das quais voces sublinharn a importancia das Marcel Roncayolo: curioso, alias, que o século XIX tenha absorvido
tomadas de consciencia urbana o confIrmam para mirn Nesse estaglo varnos apenas muito tardiarnente essas analogias cOrn o crescimento dos seres vivos; as
nos perguntar como se produz e se desenvolve o conhecimento da cidade, isto ciências naturais não constituem urn modeio em matCria de transformaçao das
a percepcão dos três nIvels de análise precedentes. Vocés notatarn o papel cidades antes do fim do sécubo...
reciproco desses dados de opiniao no funcionamento e no crescimento das
cidades, uma vez que eles constroem poilticas e pthticas urbanas. Então esta- Daniel Roche: Scm drivida porque esse século transfere seus inreresses
riamos a procura de noçöes unificadoras que descrevessem não apenas a genese para as manifestaçoes exageradas do crescimento - criminalidade, delinquên-
das cidades, mas o conhecimento do modo como elas funcionam. cia - e interroga-se primeiro sobre a constituição de uma ciência social de
Parece me que cada seculo corn suas inflexôes particulates, cria repre conjunto...
sentaçöes urbanas que possam explicar esses quarto domInios fundamentals.

272 - -. 273

I
I
- POR UMA NOVA HISTORIA URBANA
BERNARD LEPETIT

Jean-Pierre Bardet: Sinto-me urn pouco propenso a contornar a difi-


Marcel Roncayolo: 0 s&ulo )(IX socializa antes de naturalizar... E, de
culdade da questão proposta abordando urn exemplo concreto de mudan-
outro lado, no que concerne as cincias, tenho a impresslo de que ha urn retor-
ça. Estava pensando na cartografia urbana. Todos nós manipularnos mapas
no a fisica, que no fundo tern a ver corn o fato de que, desde o século )VIII, os
medicos se repecem. Estou completamente convencido da idéia de que não ha e vistas detaihadas ou gerais; por menos que tenharnos tentado criar urn

nada mais fundamental para compreender a cidade do que a medicina, mas não catalogo aproximativamente exaustivo das representacOes subsistentes, fo-

ha nada mais redundance. Os medicos representam urn papel social enorme, mos surpreendidos pelo crescimento cronologico do ntimero de documen-

mas não renovam seu discurso; e apenas quando de fato são descobercas as tos. Não C apenas resultado de uma meihor conservação dos arquivos; C
armasmCdicaspropriamente ditas e que sesaide uma top0gra fia malter indiscutIvel que ao longo do tempo o exercIcio gráfico se tornou

desde 1780. As pessoas que renovam o discurso, que o aperfeiçoam, são os concomitantemente mais familiar e mais "cientIfico". Enquanto os tabeliães
do sCculo XVII, por exemplo, negligenciam o recurso aos rnapas, os notá-
engenheiros da École Polytechnique.
rios do sCculo )(VllI nao hesitam em inseri-los em seus registros. Os ma-
pas geometrais talvez tenham surgido no reinado de Luis XIV; são mais
Jean-Claude Perrot: Exatarnente. E o pènsamento econômico permite
constataçöes análogas. Na descoberra do equilIbrio econômico, em Auxiron, - exatos e mais numerosos no de Luis XV. Pode-se relacionar esse impulso

por exemplo, ou em Turgot, os enunciados mais perspicazes não tomarn nada corn o vigoroso progresso do urbanisrno das Luzes; mais precisamente, af

emprestado ao modelo biologico; este não seth utilizado antes do tempo presen- I está a prova de uma racionalizaçlo intencional do espaco, servida pot uma

te. Entre o fIm do sCculo )(VIII e o do XIX, a ferramenta analógica fecunda ferrarnenta efcaz. AD mesmo tempo, essa evoluçao das visualizaçöes
corresponde bern a dos conceiros.
provCm da hidrostática, depois da termodinâmica.

Jean-Claude Perrot: Deve-se admitir que no sCculo XVII o mapa do ar-


Marcel Roncayolo: E Michel Serres, alias, quern declara que o que ha de
qUiteto é urn documento profissional interno, ilegivel para o profano não mi-
mals fundamental no sCculo XIX é a termodinâmica.
ciado? No sCculo seguinte, sua vulgarizaclo junto aos norários, tesoureiros das
CO MO MO R REM AS REP RES EN TA O ES? finanças, grandes proprietários, sua utilizaçao na justica significariam urn novo
acesso a representacão figurada - mais profundarnente, uma outra apreensão do
Jean-Claude Perrot: Vocês aceitariam considerar agora como ocorreram 0 espaco. Na trilogia Ecriture et iconographie, Pour une théorie gene'rale deformes,
advento de descriçóes urbanas mais ernpIricas e o abandono da cradição clássica Une eistémologie de l'espace concret, F Dagognet fornece muitos argumentos
tao fortemente marcada pot referências históricas? Coma passamos da geografia sugestivos a favor dessa hipótese.

heráldica a geografia concreta?

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274

I -

- --
BERNARD LEPETIT PoE DMA NOVA HIsTrRIA URBANA

Daniel Roche: A história da cartografia urbana destaca uma ruptura ca- Marcel Roncayolo: Afinal de contas, portanto, dispoe-se dos meios de
pital. Ao que parece, passa-se da utilização simbólica da representacão urbana representar concretarnente a cidade em todas as suas dirnensöes. Então pOt que
- imago urbi no sentido pleno -, de urn uso utopico scm finalidade imediata- a planta geornetral, tao empobrecedora? Corn a introduçao do enigenheiro ern
mente pratica, scm significacão imediatamente realizável, a uma representação vex do arquiteto, o mapa torna-se uma abstraçao: de certa forma anônirno, ele é
prática, djretarnente utilizável, determinada pelo objetivo de organizacão, ex- legIvel para todo mundo. Dc outro lado, não rnostra toda a cidade, mas unica-
tensBo, adaptacao ao crescirnento. Se cons iderarmos a série dos mapas de Paris mente a infra-esrrutura. A palavra não aparece, mas passa-se então, no meu
de dois s&ulos, veremos que se mantm representacóes "aberrantes", ficcóes - entender, da noção de cidade construIda, matenializada pot construçôes, a rede
os arquitetos introduzem edifIcios que não existern -, mas esses mapas são que sustenta o construldo: ha urn descolamento em relaçao ao monumentalismo...
comprados, afixados. Sua função sem diivida não 6 testemunhar uma racionalidade
arquitetural; 6 antes figurativizar a importância de uma cidade, a grandeza Jean-Claude Perrot: Em consequência, o aperfeicoamento da cartografia
pcilItica e cultural de uma capital. Mann' rnostrou bern isso e destacou o valor nao introduz jamais urn "realismo" suplernentar. Ele apenas modifica o tipo de
representative, das legendas, das personagens, dos edifIcios. Quando, no sculo conhecimento que o desenhista quer transmitir. Atualmente, o mapa dos trans-
XVIII, descobrem-se os mapas de organizacao urbana, já se está em outro portes panisienses não representa a distância entre as estaçöes no espaco, mas seu
universo. t preciso levar em conta tarnbrn o fato de que ralvez haja menos desenrolar no tempo. Dos traçados do século XVII aos do )(VIII, não ha ne-
mapas porque ha menos vistas de cidades. Nos relatos de viagens, reais ou nhurn progresso da representacao, e sim uma transferéncia de informaçoes.
irnaginários, na descrição de palses, nãO se encontram mapas, mas vistas ópticas,
pois elas simbolizam melhora cidade. Senia preciso estudar esse tipo de ilus- - -Bernard-Lepetit:-Isso evidencia, certarnente, uma modificaçao da concep-
tração, que muitas vezes é o mesmo para cidades difenentes. Lavedan esboçou çãO do espaco. No momento em que se pensa na cidade antiga, pensa-se no
isso antes... Notem, alias, que na mesma época se viam os engenheiros de espaco em termos de terniórios, em termos de superfIcies cartograficas justa-
Vauban entregar-se a urn exercIcio notável, pois nâo se trata mais de uma postas. Concepcao dominada pelo fundiário e pelo jurIdico. Quando se passa
cartografia Plana, mas também de uma representacão em trés dimensöes. Corn para o funcionalismo, pensa-se no espaco muiro mais como urn carnpo de for-
os mapas em relevo, des provavarn que dispunham de todos os dados técnicos ças, e portanto como urn campo em cujo interior deve set possI's'el modificar a
necessánios, o que entretanto não correspondia a todos os nIveis da realidade... Organizacão, a direçao das linhas de força.

Marcel Roncayolo: Mas é o mapa geometral que, mais do que todo o


1. Ccrtumenre, faz-se rcferência, aqui, a obra dr Louis Murin, Utopiqura, frsor d'spacrs. Paris. Ed. de Minuir, resto, enfirn, ja é funcionalista: dc nao anuncia, pela pnionidade atnibulda a
1973, que se rornou bibliografia obrigardria na area. (N. da Org.)
circulaçao, a rua de tipo haussmanniano, a rua-corredor? 0 sdculo XVIII admira

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BERNARD LEPETIT Poit UMA NOVA HISTORIA URBANA

menos os monumenros, as grandes edificaçoes, do que as ruas riscadas a régua, urn foral cornunal, tudo era claro e, pot assim dizer, normativo. 0 novo geografo

as perspectivas... aprecia o ntimero dos habitantes, o volume das relaçoes comerciais, encorstra a
exceção, a singularidade. Sua conduta torna-se empIrica, portanto esratIstica.

Daniel Roche: As visöes diferentes podem coexistir. Ainda em Paris, no Assim, quando a estatistica aparece na Franca no século XVIII, é para

momento em que acabaram de fazer o levantarnento dos limites da cidade corn responder a dispersao dos objetos das "ciências humanas" que não tern mais

uma série extraordinária de mapas de subt'irbios, v8-se o preboste dos cornercian- contornos juridicos. Seu advento é mais precoce na Inglarerra; mas, em vez de

tes Turgot patrocinar o ilirirno mapa em perspectiva, e este é sem diivida a mais arribul-lo preguiçosamente ac, empirisrno "inato" dos insulates, seria necessário

conhecida de todas as representacóes da capital no século )(VIII. indagar por que Graunt ou Petty manipulam quantidades concretas, e nio mais
seres de direito.

Jean-Claude Perrot: Imediatarnente o mapa de Turgot surge como o ideal Contraprova: a Alemanha. A ciCncia camera le2 , de Conring a d'Achenwall

do homem de bern, o objeto de deleite bibliofulico em seu marroquim corn as ou Schloezer, inclui muitas descriçoes, mas elas continuam normalizadas num

armas da cidade de Paris. A posse desse atlas identifica urn nIvel social, pelo âmbiro institucional; seus protocolos de exposicäo emanam de urn pensarnento

menos alguns querem crer nisso. 0 fetiche cultural não é, como os mapas aristorélico, classificador, des garantem a exaustiviclade do saber como a ordern

geornerrais, urn instrurnento de trabalho. das matérias a realiza num código de leis; alias os objetos se prestam a isso: a

Mas retornemos ac, essencial. A alteraçao das imagens urbanas manifesta cidade alemb conserva sua definiçbo jurfdica ate o século XIX. A nova geografia

mais do que a renovaçao do sentido do espaco: a evoluçao da própria geografia. alemb aparecerá corn Humboldt, e sua nova economia em Von Thunem, mas

Em sua forma antiga, essa disciplina ancora-se, no século XVII, na história nósjá ulrrapassamos as incursöes napoleônicas. Isso nos sugere- que -uma historia

institucional, na diplomacia; eJa trata da força e da ilustração dos Estados. Em comparativa das geografias nacionais (ou d05 pensarnentos econômicos) coloca-

sua versIo moderna, atém-se aos homens que compóem uma sociedade territorial, na questhes pertinentes as definiç6es urbanas de nossos autores.

cidade, região, espacos "naturais".


No mesmo momento, o pensamento econômico registra urn desloca- Jean-Pierre Bardet: Em surna, nos assistimos a uma rnutaçbo dos con-

mento analogo. No século XVII o mercantilismo se ocupa do Estado; o libera- ceitos dos geografos. Mas será que as modificaçoes das própnias cidades nbo

lismo encontra seu tema, no século XVIII, nos agentes individuais isolados ou contribuem para essa rnudança? A multiplicacao dos canteiros de obras nbo

agrupados em rarnos. Em geografia, como em economia polftica, perderam-se teria urn efeito impulsionador? Nas cidades do século XVIII, na Franca, as

objetos de estudos que possufam, de algurna maneira, limites nItidos, forjados


pelas definiçoes jurIdicas. Em seu lugar, enridades mais imprecisas. Quando o 2. Termo usual oaAlemaoha, como qualificarivo do que se relaciona Ss finangas pdblicas, draignando as ciência.s
que rem o Esrudo por objeco. (N.da Org.)
geógrafo antigo definia uma cidade pela presenca de rnuralhas, a existência de

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279

C
) BERNARD LEPETIT POE UMA NOVA HI5TORIA URBANA

I
operacôes de utbanismo multiplicam-se. Todos esses ttabalhos podem fustigar que chega, o viajante depara corn esse rnuro flariqueado de fossos e de torres. 0
) a imaginacao de nossos ge6grafos. A mudança motor de idéias novas, por- fechamento das portas escande as horas do citadino. Quarido, no inkio do

) que torna necessário modifIcar as descriçoes e enfim os próprios conceitos. século XVIII, a barreira perde toda a eficiencia militar, ainda protege os burgue-
sea contra a agitacao dos subdrbios. As muraihas, enfim, exprimem simbolica-
)
Jean-Claude Perrot: A construçIo de Richelieu ou de Versaihes suscita no mente o poder politico do Terceiro Estado: o rico cerimonial da guarda e da
)
século XVII grandes textos de reflexão urbana? Não sei exatamente, mas posso entrega das chaves da cidade o djz hem. Assim, o critérlo das fortificaçôes
)
imaginar as páginas inumeráveis que o século XVIII terja preenchido em tais continua pertinente em todos os nIveis de analise: descriçao, funcionamento,
circunstâncias.- gnese e sobrevivncia da yule, consciência polItica da cite.

JVlarcelRoncayolo: 0 que é admirável é a força das representacöes antigas. Maurice Aymard: Mas essa situação tranquilizadora nunca é contestada
) Vejam, em pleno século XIX, uma revista corno a Revue générale d'architecture por uma intervenço dos poderes superiores - o Rei, por exemplo?

) dirigida por Daly, faurierista, utopista, urn hornem da modern jdade: a vinheta
que ilustra sua primeira página representa uma cidade cercada de muraihas com Marcel Roncayolo: Sim. Em Marselha, pot exernplo, o crescimento ope-
)
duas ou tres torres sineiras que sobressaem. Isso em 1842. ra-se pot substituição da muraiha da cidade, dotada de privilégios, de franquias,
)
pela rnuralha do rci, muito mais exterior. A muralha real, que de certo modo
Jean-Claude Perrot: Esse arcaIsrno nos remete as definiçoes do século precede a projecao da nova cidade, aboliu a muraiha interior.
) XVII: a qualidade da cidade é medida por sua antiguidade e seus muros.
) Maurice Aymard: Num conrexto geográfico completamente diferen-
) Jean-Pierre Bardet: No fundo, seriarn essas representacoes tao distantes te, o da Itálja meridional e da Sicilia entre os séculos XVI e XVIII, ye-se a
das realidades dos séculos XVI-XVII? Naquela época, ainda, uma cidade perma- autoridade central, porém fraca, intervir para desmantelar sistematicamen-
nece engolida por suas muralhas e, no interior, rodeada de subtirbios mal traça- te as muraihas fortificadas das cidades do interior - que escapam ao perigo
dos que são destruidos em tempo de guerra para concentrar o urbano num bárbaro. Esse desejo de enfraquecer preventivamente qualquer tentativa de
)
espaco seguro. As evoluçôes, Se não são medlocres, no mInimo sio pouco visf- rebelião faz da hinterlândia urn espaco scm muraihas - fora dos castelos
veis, encobertas pot uma preocupacão corn a defesa. senhorlais ou reals. Entretanto, nem por isso as cidades são engolidas pelo
campo. Resistem muito bern a essa destruiçao de seu limite ao mesmo
) Jean-Claude Perrot: Sim, os muros constituern eferivamente uma caracte- tempo fIsico e simbólico.
rfstica decisiva da cidade. Etes ocupam na paisagem urn lugar emincnte; logo

)
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)
)
-\
BERNARD LEPETIT

POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

Jean-Claude Perrot:
Em muitas cidades rndjas francesas, as muralhas
foram edificadas ou reconstruldas circundte sucedeu, escreve ele, a aglomerao de CofltOros fluidos, a aglomeraçao
r
, sobretudo no século X corn o dinheiro
dos citadinos. Seus descendentes extraern disso de margens incer, em que o urbano e o rural Be mesciam sem que se possa dizer
urn vivo sent imento de pro-
priedade. onde acaba a cidade e onde começa o campo (a megalopole arnerina see-lhe de
referncia, creio). Duas pinas adiante, dc constata a crise atual das definiçoes

Bardet: Entretanto, ajnda no século )II, frequentemente urbanas... Desaparecido o limite espacial, temos a major dificuldade d0 mundo para.

_ n
as muraihas permanecem as definir a cidade. Mais uma vez, a discussão dos limites provoca mal-estar e discussão
vezes são conseadas, quase sempre substituldas,
conceim al. Cronologicamente, o problema dos limites vai bern
em caso de dilataçao do espaço. Barrejra fiscal, dirian-i. Parece-me que, mais do mais longe do que o
que isso, é urna espécie de consciência problerna jsolado da muralha3.
urbana: muros de substituiçao e porras
ornamentajs sao, antes de tudo, simbóljcos.
Jean-Pierre Bardt: Eu gostaria de retomar pot urn instante o conceito -

Jean-Claude Perrot: As fortificac6es quantitativo da cidade. Lepetit observa que, nas descriç6es de tipo anti
exercem no século XVIH nçöes
concretas cadayez mais fracas, mas seu lugar mantém se noção de extensão espacial é, de certo modo, mais importante do que a realida-
efetivamente no imagi-
nário dos citadinos de demográfica. E urna pista muito interessante. Seria preciso, entretanto, ate-
Os sociólogos - R. Ledrut, por exemplo - observarn hoje o
mesmo apego afetivo aos centros histórjcos das cidades. nuar sua significaçao, lembrando que, nos artigos monograficos do século )I,
os autores insistem no nmero de casas ou mesmo no de habitantes. Pode-se ver
IVlarcelRoncayolo: af urna contradiçao entre o discurso local e o discurso mais geral?
Uma vez as cidades desfortificadas, e enquanto se con-
tinua a perguntar, pot razöes purarnente fiscais, se conyérn - on nao - reerguer
as muraihas, encontrase este outro argum - Bernard Lepetit: Pergunro-me apenas Be, tomando exemplos pontuais,
ento, rnuito mais important e: de
qualquer maneira, corn on sern rnuro, é necessárja urna linha divisória, nern que rnesmo sabendo que o caso de Rouen não é ünico, não nos expornos a
seja de bulevares, para fixar limites a especulação. Essa idéia de cidade fin jta problemas. Porque, pot exemplo, nos anos de 1780, o famoso De Fourcroy

dura muiro mais tempo do que a própria idéia de muraiha. A muraiha estava
dessacraljzada; a cidade fin ita, nao.

3. Do reflex6es oasis recenres, no Franca, sobre a qusesOo de limires, ver Jean-Louis Cohen eAndrt Lottie, Desfrsmji
B7rdLepeti aupfrifParii Lea seuils de Ia nil/c, Paris, Picard, 1992. Sobre a cidade conrempoth "sen flea", ver a conclusBo
Sim, e tenho a irnpressão de que cia ajnda nao se dessacralj-
daencrestn dejacqum Le GoffaJs Lobrun, Pour/amour dee n/ks,
zou... Eu tbérn estivelendo Ledrutout ro P,Texel. 1997 (ed. bras. PorAmoe
dia. Ele constataa rvoluo recente das as C/dadec, S50 Paulo, Uncap, 1998). Sobre a cidade contemporBnea, Pierre Veltz,
Mondialiaatjon, ui/lea et
formas urbanas. A cidade nitidamente '/c&l
t itoir Loflemje h e pnajs PUP, l996,e Antoine Piton, avi& t toi
individual izada em relaçao ao meio rural org Bcaancan, Los
Editions del'Imprimeur, 1998 —scm mencionn a vas ta bibliografia americana a reapeico. (N. da Org.)

282

283
POR UMA NOVA HIsTORIA URBANA
BERNARD LE PETIT

cria uma tipologia urbana baseada no critério "superfIcie". Então, se vamos Jean-Claude Perrot: As fortificacoes fundamentam o poder urbano no

encontrar muito cedo, mas de maneira isolada, observaçBes sobre a densida- espaco, a antiguidade fundarnenta-o no piano hisrórico. Esse iiltirno critério

de que fundamenta a importância da cidade, vanlos encontrar muito tarde ocupa urn lugar estratégico no Antigo Regime. 0 poder real, a nobreza, os usos

reflexôes antiquadas sobre a superfIcie. E mais ou menos esse o limite de tat e costumes, a majestade da religião e das devoçöes populates referem-se a isso

gênero de abordagem. De outro lado, a insistncia no nlsmero de casas não constanternente. Os laços entre o antigo e o sagrado são claros. Eis, ainda, uma

vern tanto da visao culturaljsta da cidade (as casas como elernento do cená- definicão polissernica que remete a perenidade do lugar habitado, ao poder
rio do grande teatro urbano) quanto de urn interesse pelas dens idades popu municipal, a urbanidade.

laciorsais?
IvlarcelRoncayolo: Sim, mas esse j não é o firn dela? São dados caracte-

Jean-Claude Perrot: 0 crirério defensivo, visual e simbólico ao mesrno rIsticos da idade clássica, ou ja ultrapassados no s&ulo XVII? Ou seja, essa

tempo, muitas vezes comporta uma referncia ao território. Isso se exprime por definição desenha perspectivas de futuro ou j não passa de urn panegIrico

adjerivos. Urna cidade murada "populosa" ou "apertada" implica a densidade; Mnebre?

uma cidade murada "espaçosa" evoca Os jardins, os cercados e os gramados que


nela se entremejam. Quando a cidade 6 definida por suas funçoes, desde o fim Louis Bergeron: Eu diria que as novas representacöes parecem eliminar

do s&uIo XVIII, eta se encontra desespacializada, como observa Lepetit; torna- lentamente certos elementos das antigas, a começar pela muralha. Embora

se sistema de reiaçöes, o corte material que separa dentro e fora não tern mais esta desapareca em seu aspecto concreto e construIdo, o conceito prolonga-

sentido. se nas diferentes formas de limite, isto é, na persistência da preocupacão


em definir-se rigorosamente em relação ao resto do espaco e da sociedade, em

Daniel Roche: 0 que parece interessante nas definiçBes tradicionais 6 a manter sob aspectos tangiveis o princIpio de hierarquização social e de orga-

referéncia a muralha, sImbolo do poder das burguesias urbanas, exatamente nização poiltica e econôrnica que é essencial a sociedade urbana e que não

no momento em que a história das cjdades busca a antiga justificativa de seus destruldo pelas rnedidas revolucionárias, tais como a abolição dos privik-

poderes. 0 problema é que o grande momento de producao das histórias gios, a "democratização" de todas as agiomeracöes seguindo o rnolde da co-

urbanas coincide corn a perda real do poder urbano pelas oligarquias locais. E muna, da municipalidade. E, por exemplo, o limite fiscal, a definição admi-

na segunda metade d0 s&ulo XVII, no momento em que os intendentes in- nistrativa da cidade como zona de aglorneracão contInua, homogênea e solidária;

tensificam seu controle das finanças citadinas, que se v8 nascer o interesse por é tambérn todo o problerna da parte da aglomeraçao que permanece cuidado-

uma visão arqueológica e monumental da hist6ria da cidade. sarnente construIda, conservada, provida de equipamentos e de infra-estru-
turas que vão continuar a defini-la ern relaçao aos novos subiirbios que não

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284
BERNARD LEPETIT 1 POR UMA NOVA HISTORIA URBANA

sac, a cidade propriamente dita e dos quais a cidade continua a querer inten- Jean-Claude Perrot: Os geógrafos dos séculos XVHI-XIX esforçam-se pot
samente distinguir-se. A cidade que sucedeu a "cidade do Ancigo Regime", e multiplicar as pontos de vista; encontram então aglomeracôes que não apresen-
que alias não é necessariamente uma cidade industrial, continua querendo tarn todas as caracterIsticas esperadas. Dal o problema dos graus de urbanizaçao;
definir-se a qualquer preco como urn espaco privilegiado, em cujo interior não se deve falar da cidade, mas das classes de cidades.
vive uma sociedade superior.
Bernard Lepetit: Torna-se imperativo falar das cidades na med ida em
Jean-Claude Perrot: Quer dizer que se trataria de coriservar ou de reinventar que o funcionalismo significa a relaçao, a integracão numa série de relaçôes
imagens? hierarquizadas. Necessariarnente, a furiçao é exercida em niveis e em graus
diversos. As definiçöes antigas funcionavam, por assim dizer, em termos de
Marcel Roncayolo: A reinvenção de uma divisão entre parte urbanizada e exclusão recIproca: de urn lado havja a cidade, de outro o campo, e a muraiha
não-urbanizada é constante. A partir do momento em que, no interior de uma entre des para materializar a cesura. A partir do momenta em que o funciona-
dada comuna, encontrarn-se ao mesmo tempo a cidade e a area agrIcola - o que lismo aparece, não ha mais a cidade, mas uma série de reJaçoes encaixadas, da
ocorre em muitas comunas meridionais, por exemplo -' a idéia de uma finitude cidade corn sua hinterlândia, da cidade corn outras cidades. E é nessa medida
necessária irnpóe-se forçosamente. Assirn, haverá a zona em que a conservação que se deve cons iderar o conjunto das cidades, e nao mais a cidade.
das ruas está a cargo da municipalidade, e depois a parre exterior, nit Idamente
distinra. Daniel Roche: Não se estaria privilegiando urn fenômeno que, en-
fim, pouco aparece nas definiçôes propostas, que é a relação econôrnica,
Louis Bergeron: Pelos textos de Lepetit, nao vejo contradiçao ou oposicão as trocas, enquanto a tradiçao, a permanência ressaltam as funçoes admi-
-aocontrario_ entre adefinicaofuncionalistada cidade eas antigas definicoes. nistrativas, religiosas, culturais? Essa insistência não se deve ao fato de
- PoisasdefinicoesfuncionaIistas,emseuconjinto,parecemcapazesdesobrepor_ que a fator econômico levanta problernas infinitamente mais complexos
se perfeitarnente, afinal de contas: elas não são definiçoes de comando e de sobre o piano espacial? A passagem de uma definiçao a outra engloba a
organizacaode uma sociedadeemvariosniveis, dos quaisa cidade sempreocupa questao do crescimento edo desenvolvirnento urbano, tal como é perce-
a estrato superior? Tarito que, de uma marieira ou de outra, através das funçoes, bida pela elite dirigente.
assirn como através dos sinais distintivos mais antigos, ou através das referências
cuiturais e históricas - sempre fabricadas depois -' a idéia de uma zona privile- Jean-Claude Perrot A pássagem das antigas definiç6es urbanas, articu-
giada parece-me persistir. ladas corn base no poder, para as novas noçóes, baseadas nos papéis, lernbra
de modo signifIcativo a história semântica da palavra "função". Esse terrno

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... . .. Q
................
B ERNARD LEPETIT
POR DMA NOVA HISTORIA URBANA

designa de inIcio, no s&ulo XVII, a atividade real, portanto o exercfcio do fundo, num modelo bern especIfico, o da cidade francesa, considerada num
poder. No fIm do grande reinado, sn.j emprego Se diversifica, ganha facilmen- perfodo muito curto, do sCculo XVII ao )O(; convjdar medievalistas, que levan-
te a matemática; depois, no século XVIII, muitos outros dorninios, tariam a quesrao da origem da cidade, teria nos incitado a distinguir diferentes
noradamente a medicina. tipos, a iniciar uma tipologia da cidade... Os oriental istas mostram urn extremo
atraso nessa area - a história urbana começa a emergir - e atêrn-se a história das
Marcel Roncayolo: Em geografia, nunca Se soube o que significava uma sociedades e das economias, sem abordar ainda a das mentalidades. Inversamen-
funçao - embora the seja destinado urn espaco irnenso. Em sua acepcao estrita, te, a especificidade de nosso terreno dá-nos uma latitude cronologica que os
o termo refere-se as trocas exteriores: como a cidade "ganha a vida"? E uma ocidentalistas perdetam: somos ao mesmo tempo - sern entrar no mérito dos
questão de compatibilidade urbana, enfim. Mas quando Se opôem funçao in- tetmos - antiquaristas, medievalistas e modernistas, e trabaihamos corn esse
dustrial e funçao residencial, ou quando se evoca ainda a funçao social da cidade, titmo milenar aqui abatidonado.
parece-me que o termo perde totalmente a clareza. Vou dat urn exemplo extraldo da Indonesia, onde se observarn dois tipos
de aglorneracoes. De urn lado, a cidade murada que, em linhas muito gerais,
Jean-Claude Perrot: Mas todas as acepcöes da palavra "funçao" nao i nclu- corresponde rnais ou menos ao modelo da cidade do século XVII frances. 0
em, no fundo, os elementos de sua definiçao matemátka: uma variável indepen- termo indonésio é kota, que designa precisamente a muralha. Essa cidade fortificada
dente, parâmetros, uma variável conseqüente? aparece corn o islã, nos séculosXV-XVI, nas costas do forte de Java; é uma cidade
cornercial, dotada de fiinçoes que podem fazer pensar naquelas das cidades que se
MarcelRoncayolo: Sim, a noçao permite abordar o problema do cres- desenvolverarn na Europa na mesma época. Mas ha urn outto modelo, anterior,
cimento. E os outros sentidos da palavra ajustam-se muito mat a essa deli- modelo de tipo angkoriano, em que a aglorneracao não se distingue do espaco
nição primeira: opor, por exemplo, a divisão funcional a divisão social do circundanre: C uma cidade nao "finita". A cidade C orientada, tern urn valor
espaco e depois confundi-las parece-me resultar de uma espécie de mitolo- cosrnológico indubitável, e passa-se pot urn decrescirnento regular do centro,
giadafunçao. onde residem os deuses e seu representanre na terra - o rei -, rumo a floresta. Em
contraste corn a cidade ocidental perfeitamente circunscrita no espaco, cercada
A FIGURA ESPACIAL DOS PODERES pot uma rnuralha, ternos aqui uma espCcie de continuum escalonando-se dos tern-
pbs e da extraordinária rede de irrigacão, petfeitarnente georn&rica, que os cir-
Denys Lombard: Como oriental ista, interessado na história das cidades
cunda, para a floresta. No piano das mentalidades, é a idCja de urn feixe lurninoso
do Sudeste Asiático e da Indonesia, lamento urn pouco que não se tenha fixado
intenso, denso, no centro onde reside o rei corn sua corte, que vai se atenuando
a discua0 num questionamento da noção de cidade. Concentramo-nos, no
pouco a pouco ate os limites da barbátie, para enfirn petder-se na floresta.

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Poa UMA NOVA H1STORA URBANA
BERNARD LEPETIT
I
-1
Jean-Claude Perrot: Entre a sociedade equipada corn cidades muradas e a I Marcel Roncayolo: Sim, at porque essa idia nao está ausente no s&ulo

sociedade das cidades-jardins, se p0550 chamar assim, existem diferenças de -I XJ)(. A invenção da centralidade é urn fenômeno relativamente tardio: marcada

organização politica? por monumentos que trazem as insignias desse ou daquele poder, ela ajnda nao
esse lugar que irradia e atrai. Sao os engenheiros utopistas do inIcio do s&ulo

Denys Lombard: Cidades-jardins 6 uma boa expressão. Sao cidades agrá- XIX que, a margem desses projetos de "anticidades" que SãO OS falaristérios,

rias, situadas em grandes planicies distantes do mar, enquanto a cidade murada pensam na grande cidade em termos novos, alias ligados a circulaçao, e desig-

ao mesmo tempo cidade-porto. nam seu centro como o ponto mais denso de urn campo de forças, fora do qual
nao se estende nada mais que uma não-cidade. Aqui, a idia de crescimento

Jean-Claude Perrot: Do perIodo de Angkor at6 a 6poca js!âmica, a fi!oso- supera compleramente a de finitude. Vejam Paris; o debate, no início do sécu!o
I
fia do poder politico mudou muito? XIX e o seguinte: deve-se aceirar o deslocamento do centro de Paris para
noroeste ou, como sustentam os engenheiros mais fourieristas e mais uropisras,

Denys Lombard: Completamente. A concepção do tempo e a do espaço organizar urn centro estável, ativo, animando o conjunto do desenvo!vimento?

transformam-se. A idéia de urn tempo imóvel - é a influência da India—, corn a Como 6 o momento em que se constroem as fortificaçóes, eles anulam comple-.

chegada do islã, 6 sucedida pe!a de urn tempo orientado, corn uma criaçãO e urn tamente o efeito de!as e rornpem corn a noção de contorno. Essa passagem

fim do mundo. A noção de pessoa - sendo todos os homens iguais diante do importante e demonstra duas concepcöes da cidade: a do limite, pouco interes-

além - substitui a do homo hierarchicus, na qual o indivfduo nao existe, so vale sada no tema da centra!idade, indiferente a oposicão entre cidade e nao-cidade,

pelas redes que o ligam a seus ascendentes, seus descendentes, seus superiores e e outra, mais dinâmica, de urn centro a partir do qual as coisas se dispoern

seus inferiores. No piano dos rituajs, a rnudança é considerável: no sistema do I numa ordem nao determinada aPriori.

tipo angkoriano, tudo gira em torno da pessoa d0 rei; e!e é o eixo do mundo -
Isso é muito nIrido na antroponirnia, na titulatura -, a garantia de urn contrato Jean-Claude Perrot: A noção de centro é tenaz, mas renova-se por oposi-

firmado entre os homens e o cOsmico. Corn o su!tão muçulmano, inversamen- ção a periferia. Scu conteOdo pode alterar-se. Consideremos o aspecto visual:

te, aparece urn soberano de ripo moderno: Os rituais nao giram mais em rorno nas cidades do sécu!o XIX, o coração da cidade é o das casas mais alias, e o nIve!

- de!e, ele sevolta para Meca ao mesmo tempo que os outros. Estou esquernatizando dos cetos diminui gradativamente ate os subi'irbios. 0 sécu!o XX inverte o

coisas complicadas, mas parece-me que, para o que nos interessa aqui, a idéia de contraste, os regulamentos conge!am os centros, mas autorizam os edificios na

uma cidade cuja densidade Se degrada a partir de urn centro C acompanhada de periferia. Continua possivel, entreranto, definir os centros urbanos pela combi-

uma concepção interessatite do espaco. nação de caracterIsticas que Lepetit levanra junto sos geOgrafos: a pressão
dernográfica e a forca das atividades comerciais, reunidas, gerarn ao mesmo

29
290
BERNARD LEPTIT P0R UMA NOVA H!STORA URBANA
)

P )
)
)
tempo uma irnpressionante divisão do trabaiho e a solidariedade orgnica de
que fala Durltheim. Mas Para que os centros de cidades sejam pensados dessa
maneira 6 necessário, scm dvida, esperar que as mesmas noçöes sejam
I
uma nova Lut&ja, foco intelectual de uma cidade tornada capital do mundo.
Esse esquema 6 pensado em terrnos de irradiaçao: deve haver coincidncia entre
o berço da cidade o centro hist6rico -, o centro topográfico e o espaço da
depreendidas na análise econômica. Isso foi feito pot Adam Smith em 1776, e a modernidade; esse equilibrio, além do mais, deve set estável, fixado uma vez
)
idéia de medir o desenvolvimento pela divisão do trabaiho esboçou-se a partir pot todas. 0 fenômeno novo, devido aos politécnicos, pensar nas cidades em
)
de Boisguilbert (1695). termos de tedes e de nos em escala nacional - Peyremond conhecia, pot exern-
plo, Les inte'rlts matériels de Michel Chevailier, que expóe esse sistema de nós - e
) MarcelRoncayolo: Corn certeza! A segmentação e a hierarquia do trabaiho reintroduzir esse tipo de pensamento no interior da estrutura urbana, como
) destinam ao centro a localizaçao das funçoes nobres. Mas essa centraiidade é de estrururaçao interna da cidade.
) lnIcio "geonômic', mais determinada pelo lugar que cia ocupa num campo de -
) forças do que pela derençao de certas funçôes. Não só económica, mas cultural e Jean-Claude Perrot: A perspithcia do século )UX consiste em ligar as redes
simbólica. Para urn utopista como Peyremond, o centro, Para representar esse de troca e a estrutura interna da cidade. No século XVIIL os dois dornInios são
)
papel irradiador, deve ser antes de tudo o lugar de modern jdade: num texto de abordacios de maneira airernativa on sucessiva. Isnard, engenheiro das Ponts et
)
1844 sobre a renovação de Paris, publicado na Revue génerale d'architecture, nós Chaussées, irnagina rnuito bern, pot exemplo, em seu Traité des Richesses, como
o vemos prever Para a lie Saint-Louis, ligada naturalmenre a macgem pot diver- maximizar os benefIcios, aumentar a circulaçao eos transportes pesados por uma
SOS trabaihos técnicos, uma espécie de bazar, local de exposiçao permanente. maiha triangular de estradas intra-regionais e uma rede de canais inter-regionais.
) Tanto que o lugar da jndstrja na cidade não é mais determinado por sua estrita A econornia espacial alemã, corn August Losch, dá continuidade a essa reflexão.
) funçao de produçao - da qual se escarnece loucamenre e que alias se gostaria de Mas Isnard não aborda as dificuldades próprias aos nós do sisterna: as cidades. Em
) deslocar Para o campo -, mas pot esse papel de exposicão permanente dos contrapartida, urn economista como Goyon de la Plombanie traçara alguns anos
produtos industriais. antes, em La France agricole et marchande, o projeto de uma cidade manufatureira
)
Para a formacao de apreridizes; os edificios, a Vida dos residentes fornecem mate-
)
Jean-Claude Perrot: Os valores comerciais tornam-se então transparentes; cia1 Para textos copiosos; no entanto, a cidade flutua num entorno impreciso e,
ofertas e demandas confrontam-se instantaneamente, o centro das cidades con- digamos, indiferente a seu desenvolvimento. 0 ericontro das duas reflexes não se
I
) cretiza plenamente o mercado dos economistas clássicos.
H produziu.

Marcel Roncayolo: Seri tambem o espaço da cultura. Na rnargem esquer- Marcel Roncayclo: Talvez Boulée, em arquitetura, apoiando-se numa
) da, desembaraçada de seus amontoados de casas, da ruina da Cite, será erguida fIsica newton iana, tenha tido uma concepcBo desses encaixes, desses mundos

292 293
)

Iii
POR DMA NOVA HISTORIA URBANA

BERNARD LEPETIT

Maurice Aymard: Nas análises dos autores que, desde o século )(VII,
fechados uns nos ourros e ao mesmo tempo reunidos a parrir de urn foco
trataram do caso frances, é surpreendente o fato de ernpregarem critérios de
central... dassificação que valem para todas as cidades, na totalidade do espaco do reino:
as muraihas, a antiguidade inicialmente, depois critérios mais funcionais, como
Jean-Claude Perrot: 0 poder e as classes dorninantes nunca perdern o a densidade, o desenvolvimento econ6rnico etc. Como
se, para citar só urn
dominio dos problemas urbanos. Como explicar que os ge6grafos dos séculos exemplo, a cidade da Franca mediterrânea não tivesse uma definição e uma
XVIII-XIX levern menos em conta do que seus antecessores o critrio adminis- importância muito diferentes do resto do pals, porérn mais próximas do que se
trativo? Seria urn saldo das velhas definiçöes? observava na Itália. Pode-se falar de urn desejo coerente de apagar essas difereri-

ças i n ter-regionais e de já tratar a Franca como urn espaco nacional representãvel


Bernard Lepetit: Os geógrafos modificam sua abordagem. Nurn primei- num rnapa corn os mesmos sinais convencioflais? Se é esse o caso, não existe al,
to momento, no âmbito da definição antiga da cidade, a funçao administrati- ac, menos ainda no século XVIII, uma boa dose de utopia?
Va confere uma dignidade de honra, urn poder cultural, social. Num segundo
mornento, conserva-se a importhncia da administração, mas exprime-se isso ô discurso
Bernard Lepetit: Pode set que os geografos de fato assumam
no vocabulário novo. 0 equipamenro administrativo fornecerá a cidade urn do poder. Mas, Se não fazern intervir as diferenças regionais em suas descricôes,
meio de se desenvolver, urn meio de aumentar sua riqueza, de se povoar. Mais ustaposicóes de
isso talvez se deva a forma de seus trabaihos, que nao passarn de j
do que de uma passagem para urn segundo piano, tenho a impressão de que se
monograflas locais. D escrevern-se, no máxirno em ordem alfabética, cidades ou
rrata da retomada de urn tema antigo numa linguagem nova.
burgos uns depois dos outros. Essa fragrnentacão local esvazia cornpletarnente a
questão da diferenciação eventual dos espaços regionais; o esquema formal das
Jean-Claude Perrot: 0 nivel dos equipamentos adrnjnjstrativos continua obras nao é adequado a tal problernática.
sendo urn motor de crescirnento?

Maurice Ay#nard: Parece-me que o fenômeno principal do perlodo, no


Bernard Lepetit: Acredito que sim. Ele 6 considerado como motor do
caso frances, são a unificacao e a h ornogeneizacão progressivas do espaço, resul-
crescimento urbano, e antes era tido como fundamento da potência eterna da tantes de urn corijunto de transformaçöes econôrnicas, sociais e pollticas. Ora, a
cidade. evoluçao é de certa forma apagada pela escolha dos critérios utilizados. Pot
oposição, da perspectiva de uma Sicilia que na época estava a margem dessa
Jean-Claude Perrot: Isso explica as cornpetiçöes urbanas quando aAssem- evoluçao, o fato principal torna-se a ordem arquitetural ou urbanIstica: nota-se
bIia Constituinte estabelece o mapa departarnenral. isso por ocasião das fundaç6es de cidades no século XVTI, ou da reconstrucão de

295

294
BERNARD LECETIT Poa LIMA NOVA HIsTORIA URBANA

todo o sudeste após o terremoto de 1693. A organização arquirerural (e social) nicas ou levantinas, alias, são o laborarório de experiências urbanas antecipadoras.
do espaco seth então aptesentada na Itália como o fator essencial de distinção, A. Demangeon e B. Fortier relatam-nas em Les vaisseaux et les villes. A1m disso,
bern mais do que as atividades económicas, que so estarão em pauta na segunda como a capital, Os porros servem de banco de ensaio as instituiçöes do poder:
metade do sacuio XIX. Como sempre, nesse espaco homogêneo, encontra-se seguranca militar, prevencIo das epidemias, recebimento dos impostos aduanei-
urn ilnico modelo urbano, e as cidades são classjfjcadas de acordo corn critatios ros, policiamento dos bares de marinheiros, vigilância dos viajantes etc.
idnticos. A partir de quando Se encontram na Franca vários tipos? Cidade Esse despotismo urbano advoga em causa própria, atribuindo-se opi-
vermeiha/cidade branca4, povoação agrIcola/cidade industrial etc. nióes esciarecidas. Mas percebo uma dificuldade: como conciliar os desejos
tntervenciornstas que se afirmarn no saculo XVIII em todas as elites (Os mdi-
Jean-Claude Perrot: Os geógrafos observam alguns traços originais, uma COS, Os administradores, os proprietários as vezes) e as análises funcionais dos
indi'ssrria dominance aqui ou au, em Saint-Etienne, crejo. fatos urbanos que implicam uma espécie de regulacao espontâriea da sociedade,
ou aindao liberalismo nascence, cuja filosofia inclui urn laissez-faire? Essa incoe-
Bernard Lepetit: Corn certeza, mas isso não basta para estabelecer uma rência existe? E interessante?
tipologia. Enquanto a superfIcie urbana, diganios no século XVII, para simplifi-
car, e o n6mero de habitantes no século XVIII servem debase de classificaçao, a Marcel Roncayolo: Corn certeza. E muiro nitida a contradição entre a
função nunca chega a esse nIvel, rnesmo quando se criam modelos de crescjmen- visão de urn crescimento urbano submetido a leis naturais e o aspecto urbanIsti-
to diversos. co, encomendado, da cidade nova corno cidade projetada, racional, limitada e
predererminada.
Marcel Roncayolo: 0 que chama a arenção, na Encyclopedic, por exem-
plo, C o desejo de constituir a cidade-porto praticamente como urn território lvlauriceAymard: A cidade realizará cerro n6rnero de trabalhos de infra-
exterior... estrutura, sobre os quais se dará esse desenvolvirnento aparentemente espontâ-
neo: e o limite clássico do libcralisrno.
Jean-Claude Perrot: No Anrigo Regime, numerosos aspectos da adminis-
tração pOrtuária dependem do secretário de Estado da Marinha, que gerencia Louis Bergeron: Mesmo no sCculo XIX, as regras de urban ismo e as inter-
tambCm as colônias. Disso resulta uma espCcie de extraterritorialjdade das cida- vençöes nas cidades não fazem senão definir o quadro desejável (ou ao rnenos
des marItimas, bern ajusrada as inrençöes do mercantilisrno. Essas portas oceâ- desejado) em cujo interior se espera que todo o resto seja feito pela iniciativa
privada. De modo que nao ha oposicão, mas divisão dos papéis. Scm falar dos
4. Essaoposiço remete ,omter1 utiIizdonsconscnçoes rijolos ou pedrac crio. (N. dOrg.)
- casos em que a regulamentaçao intervCrn depois para legalizar o que foi feito

296 297

I' -
BERNARD LEPETT POR DMA NOVA HISTORIA URBANA

scm aurorização, para aberturas de vias ou de loreamentos (ver a tese de Gerard propriamente universitário antes do fim do 56u10 )(V111 e permanece atC então

Jacquement sobre Belleville). -


matéria de colégio. A partir do sécuio XVII, os engenheiros geografos do rei
ocupam-se de uma parte do campo disciplinar, notadamente da cartografia, mas

Jean-Claude Perrot: Mais ou menos no Fim do Antigo Regime, os gran- -


várias outras geografias subsistem em liberdade: administrativa, eclesiástica, his-

des loteamentos de Paris, de Bordeaux (bairro MCrladeck) e de Nantes (especu- tórica, comercial, em que os amadores esctarecidos encontrarn a estrada livre.

laç6es das sociedades Delorme ou Duparc e Mellinet) ja ilustram esse tipo de Nao é de espantar que sua prosa reflita, na falta de formas canônicas precisas, a

acordo. Personagens ilustres como o arcebispo de Bordeaux, companhias pode- marcha das jdCias. Vernos meihor então a passagem da "geografia dos hurnanistas"

rosas em Nantes tiraram urn born proveito das municipal idades. Estas tiltimas para a geografia dos naruralista.s, Se posso dizer assirn. A primeira, corn sua

inauguram então urn liberalismo adrninistrativo que anula todos os obstáculos erudição histórica (os anaïs e as crônicas constitueln seu primeiro hámus),
-
ao enriquecimento privado. Mas nos centros urbanos muito fragmentados, a permanece diacrônica e didática. A segunda viaja, pesquisa. Corno seu confrade

cidade freqilentemente opera em derrirnento de pequenos proprietários mat botânico ou entomologista, o geógrafo vai deparar corn os problemas de fun -

indenizados, as vezes realmente espoliados. A harmonja entre os interesses pd- ç6es, classificacöes, limites. Ele substitui as normas pelas di'ividas.

blicos e privados se apaga. Dc urn século a outro, a noção de cidade desagregou-se, foi obscurecida.
Mas o mesmo acontecia na Franca urbana, ja que a modernidade nela se anun-

Jean-Pierre Bardet: E preciso imaginar, scm d(ivlda, uma grande vane- cia, de todas as panes, no final do século XVIII. 0 trabaiho do espIrito, dessa

dade de casos. Em Rouen, por volta de 1750, a municipalidade se esfalfa para vex, apresentou menos atraso em relação a realidade do que dizia Hegel, precisa-

indenizar os proprietários quando das tentativas de reforma do Veiho-Merca- mente naqueles tempos.
do. Pot essa razão, em parte, cia acaba renunciando a urn projeto grandioso.

Jean-Claude Perrot: De fato as polIticas urbanas nao são univocas, benefi-


clam desigualmente os diversos meios sociais, induzem imagens mt'ilriplas de
acordo corn as expectativas dos citadinos. Assim se justificaria essa profusão de
levantamentos suplementares que Daniel Roche desejava em suas primeiras in-
tervençöes. BuscarIamos nelas o ponto de vista dos clérigos, dos medicos, do
artesão, do mascare, do mendigo.
Mas hoje tratvamos dos geógrafos. Permitam que eu encerre esse debate
evocando justamente seu lugar na cidade. A disciplina não adquire estatuto -

299
298
BIBLIOGRAFIA DAS OBRAS DE BERNARD LEPETIT

Esta bibliografia, gentilrnente cedida Para esta edicão por Nicole Fouch, foi

publicada no ntrnero especial dos Cahiers du CR1-I, em homenagern a Bernard Lepetic,


fasciculo 17, out. 1996, ISSN: 0990-9141.
Foi estabelecida por Caroline Varlet, Nabila Oulebsir e Isabelle Backouche,

corn a colaboraçao de Cristina Accornero, Gàbor Czoch, Claudia Damasceno-Fonse-

ca, Claire Fredj, Annick Foucrier, Martina Grecenková e Nicolas Verdict.

Como primeira tentativa de bibliogrsfia, não poderia 5cr exaustiva. Nela não
constain, por exemplo, os ritulos dss direçöes de coleçâo nem a rotalidade das rese-
nhas e dos textos traduzidos em ediçoes póstumas. Algumas delas foram srroladas nas

consideraçêes finais pela organizadora desta coletânes. - --

I - LIVROS E DIREçA0 DE OBRAS

1984. Chemins de terre et voics d'eau: réseaux tie transport et organisation do l'espace

en France, 1740-1840. Paris. EHESS, 148 p.

1985. Paroisses et communes de France. Dictionnaire d'histoire administrative et

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301
BERNARD LEPETIT PeR UMA NOVA HcSTRIA UREANA

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302 303

0
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"Urbanization in Eighteenth Century France. A Comment". Journal of "Pratiche dello Spazio e Identit'a Sociali:Temi e Problemi di una Riflessione
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BERNARD LEPETIT PoE UMA NOVA HISTORIA URBANA

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Néohelkniques/F.N.R.S., 1999]. de História Urbana que organizei em abril de 1996 em Belo Horizonte e em São
Paulo, foi o tiltimo trabaiho do autor; ainda indito em frances, está publicado
"Spolecnost jako celek: o trech formach analyzy socialni totality", em portuguCs em Cidades Capitais do Século XIX: Racionalidade, Cossnopolitheno
Sociologic/cy Casopis (trad. P. Horska). e Transfcrência deModelos, coletnea também organizada por mirn (Edusp, 2001).

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scientifique de La Méditerranée: Egypte, More, Algérie". Paris, EHESS. tes trabalhos:
[0 texto de Bernard Lepetit foi publicado como "Missions scientifiques et
"La vile: cadre, objet, sujet. Vingt ans de recherches françaises en histoire
expeditions militaires: remarques sur !eurs modalités d'articulation". In:
BOURGUET, M.-N.; LEPETIT, B.; NORDMAN, D. & SlNnaLls, M. (eds.).
urbaine", Enquéte: anthropologic, histoire, sociologic (sobre La oil/c des sciences sociales).
Marseille, Ed. Parentheses, n. 4, 1997 (trata-se de artigo originalmente publicado em
L'invcntion scientij'Ique de la Méditerranée, Egypte, Morée, A/gene. Paris,
Editions de l'EHESS, 1998.1 espanho! em 1992, cit. supra).

c0NsIDERAcOEs FINMS DA ORGANIZADORA 'La societe comme no tout: sur trois formes d'analyse de la rCaiité sociale",
Cahiers du Centre de Recherches Histoniques. Réflexions Historiographiques, EHESS,
0 livro Carnet de croquis: sur la connaissance histonique - urn projeto de n. 22, avril 1999.
Bernard Lepetit que ficara suspenso corn seu desaparecimento - foi lançado na
Franca em setembro de 1999, incluindo, coincidentemente, cinco textos da LEPETIT, B. & ToPAlov, C. (eds.). La oil/c des Sciences Sociales. Coil. "Histoire

coletânea que organizamos. No prefácio, Jean-Claude Perrot, so cornentar as et sociitC: Modernités". Paris, Editions Belin, 2001.
direçoes ternáticas mais recentes da reflexão de B. Lepetit (tarnbém explicitas no
texto sobre a expedicao do Egito que publicamos aqui), traz referência especial
a "Une herméneutique urbaine est-elle possible?" e a "Des capitales aux places
centrales. Mobilité et centralité dans la pensée économique française". Registre-
Se que o prirneiro, lido per mim no VCongresso do ComitêBrasileiro deHistória
daArte sobre "Cidade, Cultura eArte" (ao qua! Lepetit não pbde comparecer)
em 1993, foi publicado em 1995 nos anais desse congresso e está traduzido

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