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70 RELIOIÃO E IGREJA SOB O ESTADO ABSOLUTISTA •.

confrarias tantas forças livres de trabalho comunitário mutirão


artesanato:. gosto pe!a ,a~te e pela criação livre e espontii~ea, festa:r
e rec;eaçoes. A h!Siorza das confrarias é pois uma história de
co~fliftos e podem~s mesmo dizer que os conflitos do Brasil portu-
guesft·torar:;d as mafls ~as vezes vividos pelos contemporiineos como 3 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS
con 1 os e con raTias" st.

~or ~ssa r.azão, a ~nd~pendência inicial, uma vez detectada


pe10 sta o, fol num pnmetro momento vigiada e posteriormente
P0{ ele_ cont~olada.. Operou-se, desde então, intensa e constante fis- 3.1 A Igreja mineira no século XVlli
ca t~ça? so re as Irmandades, com o duplo objetivo de comprovar
a e~cácia de sua funçã~ neutralizadora das tensões sociais e de im-
pedir que sua autonomta as transformasse em entidades suficiente- 3.1.1 Padroado e tributação eclesiástica
me-?~e fortes, a ponto de virem a se constituir em peri 0 ara 0 mo
noht.lco Estado a~so~utista português. O vigor inici:l :assa a se; O estudo da ação da Igreja na Capitania de Minas Gerais não
mampulado e ~~pnmt~o em nome de uma ameaçada, mas não com- pode deixar de considerar como seus dois elementos básicos, o ins-
provada, estabilidade mstitucional do Estado. Aos poucos notada- tituto do Padroado e a tributação eclesiástica, como se procurará
I?~mte na se~~da metade do século XVIII, estabeleceu-se'uma o- demonstrar. Desde logo, há que se ter em conta que, no exercício
líttca de· dectdrda
b. rd d e explícita
~ .
interferência do Estado, f azend o sucum-
p
da administração e do Grão-Mestrado da Ordem de Cristo, ao reco-
tr a Vtta t a .e. orgaruca das associações leigas coloniais e, com
elas, um catolicrsmo peculiar. lher os dízimos eclesiásticos 1 , o rei de Portugal implicitamente se
comprometeu a prover e a sustentar o culto divino na Metrópole
e no Ultramar. Sem contar eventuais contribuições pecuniárias para
a construção ou para reparos dos templos, bem como para a compra
de alfaias e ornamentos ou para a decoração de altares, tal com-
promisso se materializou nas côngruas que a Coroa estipulava para
pagamento aos bispos, cabidos e ministros diocesanos, além dos
párocos das freguesias coladas. Se com relação às subvenções para
o culto elas foram esporádicas e casuísticas, não obedecendo a
política própria, o provimento do clero fez-se de forma regular e

1 O conceito e a tipologia de dízimos eclesiásticos são claramente explicitados


no texto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia que, em seu
Título 414 rezava: "Dízimos são a décima parte de todos os bens móveis
licitamente adquiridos, devida a Deus e a seus ministros por instituição Divina
c constituição humnnn.. E assim como são três fontes de bens móveis ou frutos,
prediais, pessoais e mistos, também são três as espécies de dízimos. Reais, ou
prediais, são a· d€c1ma parte devida dos frutos de todas as novidades coibidas
nos prédios (nas propriedades rurais) e terras ou nação per si sem trabalho,
ou cultura dos homens ou sendo trabalhados com sua indústria. Pessoais são
a décima parte dos frutos meramente industriais, que cada um adquire com
a indústria de sua pessoa. Mistos são a décima parte dos frutos que provêm
parte por indústria dos homens, parte dos prédios: como são os que se pagam
de animais, caça e aves, que se criam, e peixes que se pescam. Chamam-se
mistos, porque nestes frutos obra a indústria dos homens, e muito mais que
81 nos outros prediais meramente". In: OLIVEIRA, Dom Oscar de. Op. cit., p. 26-7.
Id., ibid., p. 385.
72 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS
A IGREJA MINEIRA NO SÉCULO XVUI 73

~istemática, embora, nem por isso, isenta de críticas restrições e português. Pelo primeiro erro pagou caro, devido às permanentes
Inflamados .pleitos judiciais. Obedecendo a valores fi~ados em ta- reclamações que lhe foram dirigidas; pelo segundo, tev~ diant~ de 2)
b_:las própnas - as chamadas folhas eclesiásticas - , essas subven- si um clero que, desamparado pelo Estado, se mostrou msubmtsso,
ç.oes, arre~adadas por particulares arrematantes de contratos especí- rebelde e simoníaco.
ficos.! de~tmavam.-se. ao pagamento dos gastos pessoais e à manu- A rigor, o meio e a inexistência de uma política religiosa niti-
te~ç?o dos eclestásttcos, em troca da prestação de seus serviços damente configurada transformavam os eclesiásticos mineiros em
relig~osos.
homens do século e faziam do sacerdócio uma atividade profissio-
_Entretanto, facilmente se percebe que esse expediente como nal dentre as outras. Questão de perspectiva e interesses! A Coroa
se nao bastassem as di~torções e. in)ustiças praticadas na fixação parecia acreditar que o ministério sacerdotal poderia se sustentar
d~s ~alores ta.belados, amda, e pnnctpalmente, incorria no erro de por conhecenças, benesses e pés-de-altar. Na verdade, mais do que
~tt~g~r um umv:rso restrito, d.e religiosos, não apenas pela política dar origem a toda sorte de desmandos, essa diretriz levou o apa-
hmttadora do nu~ero de c~en~os na Capitania, como também pelo relho religioso a implementar uma estrutura tributária própria, que
fato de que o numero de IgreJas não-coladas se revelava superior fez recair sobre a população em geral mais uma onerosa carga,
ao de coladas. Como afirma Dom Oscar de Oliveira pois o clero também se mostrou insaciável em tributar: cobravam-
' -se espórtulas e taxas para a celebração de cerimoniais de casa-
em geral, eram raras as paróquias de criação régia ou paróquias
coladas. O governo _tinha interesse em restringi-las, a fim de não
mentos, batismos, enterros, sepultamentos, acompanhamentos, en-
de~pender com as congruas delas os abundantes dízimos da O. de comendações, missas cantadas ou rezadas, festivas ou de defuntos,
C~tsto, que ar~ecadava. Vendo as necessidades de curas de almas, sem que houvesse sacramento, nem junção ou cerimônia da Igreja,
crlavam o~ Bl.fP,.os 011tras paróquias, cujos párocos efetivamente até os mesmos toques de sinos, sobre que não houvesse uma con-
n~~ recebtam congruas da Real Fazenda, e se sustentavam com tribuição taxada a arbítrio dos ditos párocos e a cargo dos habi-
diftculdades das conhecenças e do direito da estola denominado tantes de Minas 3 ,
pé-de-altar 2. •

sem falar nos emolumentos pagos para a tramitação de processos


A~emais, cumpre assinalar que essa situação dava orig_em a e recursos junto à câmara e chancelaria episcopais e ao juízo ecle-
outro tipo ~e abuso, praticado pelos párocos que inescrupulosa- siástico 4 •
mente, Rrov1am as capelas filiais ou delegavam poder para outros
Em resumo, tudo leva a crer que não é no estudo das côn-
p~dres com uso de ordens" para a assistência espiritual em locais gruas, mas sim no das conhecenças, pés-de-altar e outros emolu-
d~st~nte~ das sedes das fregue~ias, ou até mesmo subdividindo as mentos que se deve procurar explicação para o desempenho do
VIga.uanas coladas. Tudo isso mediante ajuste financeiro, com 0
clero mineiro no século do ouro. A taxação das conhecenças era
ratew. das con}le~enças, transformando as coisas espirituais em um
lucrativo comercto. um direito próprio dos párocos visando à sustentação de sua digni-
dade sacerdotal e se traduzia em tributo pecuniário cobrado aos
. Constara-se, assim, que err~va ~uplamente a Coroa: primeira- paroquianos por ocasião da desobriga quaresma!, sob a forma de
~ente, por supor que as quantias fixadas, ainda que fossem sufi- um "bilhete de confissão". As conhecenças eram um vestígio dos
Cientes para o sustento dos beneficiados, impediam-nos ou os dis- primitivos dízimos pessoais, variáveis de acordo com os templos e
pensavam de onerarem ainda mais o seu rebanho de fiéis com taxas as dioceses e incidiam sobre as pessoas que cumpriam o preceito
e emolumentos pela prestação de serviços religiosos· em segundo
l?gar, po~que não definia paralela ou complementarm~nte uma polí- 3 Instrucção para o Visconde de Barbacena, Luiz Antonio Furtado de Men-
tt~ salana! para o clero não contemplado nas folhas eclesiásticas donça, Governador e Capitão-General da Capitania de Minas Geraes. In:
a~t~s, o mrus nu11_1er~so, na medida em que as paróquias de criaçã~ Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Edição Câmara dos Deputados,
regta eram quantJtatJvamente pouco expressivas em relação ao total 1977. v. 8, p. 44.
4 Id., ibid., p. 50. Martinho de Melo e Castro, nesse particular, amparava-se
dos templos católicos disseminados pelo urbi et orbis do império em ofício de Gomes Freire de Andrade que, jã em 1743, apontava que "os
emolumentos de alguns ministros, como são os de missas e direitos paroquiais,
2
OLIVEIRA, Dom Oscar de. Op, cit., p. 148. levam de Minas tanto cabedal como a capitação" (Id., ibid.). Semelhante de-
núncia se encontra também na lnstrucção, de José João Teixeira Coelho, p. 450.
74 IGREJA, ESTADÓ E IRMANDADES EM MINAS GERAIS A IGREJA MINEIRA NO SÉCULO XVIII 75

d~ confissão ou ~a :omunhão anual da Páscoa~. Em Minas Ge- Em 1788, ao ser designado para o governo da Capitania, o
rais, des~e os p_nmeuos tempos, isto é, desde que a Pastoral de Visconde de Barbacena recebeu de Martinho de Melo e Castro pre-
Dom Frei F~anc1sco de São Jerônimo, Bispo do Rio de Janeiro, de cisas instruções para que entrasse imediatamente em contato com
17 de f~vereiro de 1719, fixou o valor per capita das conhecenças o Bispo de Mariana, a fim de que se elaborasse um novo regimento
esses tnbutos ora substituíram, ora complementaram as côngruas' extirpando os excessos das contribuições obtidas "debaixo do ocioso
ma~ sempre mer~ceram a mais veemente repulsa dos fiéis. A~ pretexto de direitos paroquiais" ~. pois,
r~zoes da populaça? eram ?bvi~s e irret~rquíveis; e seus argumentos ainda que seja certo que quem trabalha no altar é justo que viva
so P?dem ser rebatt~o.s se msendos na logica do mercantilismo por- do altar; que o operário deve tirar proveito do seu trabalho; que
~ugues. Estando SUJeita ao pagamento do dízimo, ela se julgava os povos devem contribuir para a cômoda e decente sustentação
Isenta de novos tributos para que lhe fossem assegurados gratuita- dos seus párocos; não é menos certo que eles não devem abusar,
~ente os sacramentos e ofícios religiosos. Sem considerar que pra- nem se lhes deve por modo algum permitir que abusem destes
ticamente arcava com os ônus da edificação e ornamentação dos inegáveis princípios para lhes servirem de pretexto aos seus parti-
templos. Portanto, n~o ~he caberia suplementar a manutenção do culares e reprovados interesses 9 .
clero com novas contnbmções. Tirante os dízimos, os demais encar- Com o passar dos anos, a questão se agravou; no final do
gos se lhe apresentavam como injustificáveis e inaceitáveis extorsões. século, tornou-se mesmo crítica. Na medida em que os diversos seg-
A seu modo, a Coroa p;ocurava dar uma solução. Em janeiro mentos sócio-econômicos se constituíam e se fortaleciam, a tendên-
de 1?35, o Coi?-d_e de Galveas, por determinação régia, convocou cia foi a de se consolidarem à volta de templos próprios; prolifera-
uma JUnta de m1mstros seculares e eclesiásticos com a finalidade de ram as capelas filiais, determinando o declínio do papel nuclear e
tratar , e determin~r uma reforma geral, assim dos emolumentos catalisador que as matrizes até então desfrutavam 10• Ora, na medi-
d?s f!arocos de Mmas, como dos oficiais de justiça secular e ecle- da em que essa tendência se acentuava, agravava-se também a ques-
scástcca s. tão das conhecenças e dos emolumentos eclesiásticos. Sentindo-se
Assumindo o trono episcopal marianense em outubro de 1748 exa- lesados em seus direitos paroquiais, os vigários das igrejas coladas
tamente um ano depois, D. Fr. Manuel da Cruz divulgava um' regi- de Minas Gerais fariam chegar a El-Rei detalhada representação na
mento contend~ Aos _valores dos emolumentos do ministério sacer- qual, sob a alegativa de denunciarem a perniciosidade e o espírito
dotal.. A_ exorb1tancia das taxações fixadas desagradou não apenas de autonomia das associações leigas da Capitania na celebração de 1
aos mme1ros como à CoT!e e, emb?ra em 1752 o mesmo prelado ofícios religiosos, no fundo retratavam as dificuldades financeiras
tet0a elaborado ~ovo reg1mento, amda assim, continuavam e gra- pelas quais eles passavam, finalizando por pleitear o fortalecimento
dativamente se acirravam as "vexações dos povos" com tais emo- das matrizes ~ 1 • Pela riqueza e ineditismo do documento, vale a pena
lumentos 7 •
Sfnstrucção para o Visconde de Barbacena ... p. 49.
~OLIVEIRA, Dom Oscar de. Op. cit., p. 167-8. 9Jnstrucção para o Visconde de Barbacena .. . p. 48. Sabe-se que a questão
~ns~rucção para_ o Visconde de Barbacena . .. I?· 45. Sobre as reclamações dos ficou sem solução, pois, em 26 de fevereiro de 1799, escrevendo para D.
ffil~eJrOS, VeJ~-se. AH(J_IMG- D~. Av. Ca1xa 8, doc. 52 (31/05/1730); Rodrigo de Souza Coutinho, o governador Bernardo José de Lorena relatava
~a~a. 15 (Mmas Gerais 1734); Caixa 6 (1745) e Caixa 21 (29/04/1747) explicitamente que, apesar da recomendação dada ao Visconde de Barbacena,
' V~r!os textos l~!fais e, a_dministrativos trataram do assunto (por ordem cro: "até agora não sei que haja, ou se tenha feito Regimento próprio" que regesse
nologt~a): Prov!sao Regta _de 2~/11/1751 (BGUC- Cód. 707, fi. 104); a matéria das· conhecenças. E, cético, Lorena confessa a sua incapacidade
Exposiçao da Camara d_e VIla R1ca, de 05/10/1753 (AHU/MG _Doc. Av. para também cumprir a tarefa. Após relatar os obstáculos a respeito, finaliza:
Cru.xa. 9, doc.. 81); Aviso. ~e 31112/1754 ao Bispo de Mariana (Colecção "penso que passariam anos sem que eu pudesse satisfazer ao que me deter-
sumana .. ·.TI!. 7 - Rehg10ens, RAPM - ano 1911 v. 16 p 401 d mina: portanto, parece-me que o único meio de se conseguir semelhante
41); E~posição da Câmara de !d_ariana, ~e 22105/1759, (AHUiMG _:o~: conhecimento será exigir-se por V. Exa. dos referidos diferentes prelados"
Av. Catxa 47, doc. 85); Exp?SIÇao da Camara de Vila Rica, de 15/03/1763 (AHU/MG - Doc. Av. Caixa 36, doc. 44, 26/02/1799).
(1HU/MG- D?c. Av. Ca1xa 47, doc. 114); Parecer do Governador Luís 1o VASCONCELLOS, Sylvio de. Mineiridade. p. 148 et seqs.
Dtogo_ ~obo da .silva, de 04!09/1766 (AHU!MG - Doc. Av. Caixa 46)· 11 AHUIMG- Doc. Av. Caixa 67. "Minas Gerais- 1800. Requerimen-
Exposiçao d~ Camara ,de São João del-Rei, de 06/10/1770 (AHU!MG ~ tos. VII". Cumpre notar que este rico documento não está datado; embora
Doc. Av. Ca1xa 21, doc. 186). inserido entre os "Requerimentos" do ano de 1800 deve ter sido encaminhado
76 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS A IGREJA MINEIRA NO SÉCULO XVIJI 77

transcrever algumas de suas passagens. A primeira acusação dos Como de praxe, a Metrópole não se precipitou na d~cis~o,
párocos era a de que as irmandades não se submetiam a eles mas procurando ouvir antes a opinião de ex_-governadores da Cap1tama.
sim a seus capelães (ou aos comissários no caso das orden~ ter- Por solicitação do Conselho Ultramanno, foram consu~tad?s Ro-
ceiras). Com isso, alegavam, esvaziava~-se as matrizes num fla- drigo José de Menezes e Luís da Cunha Menezes. O pnmeiro, em
grante desrespeito dos fregueses aos direitos paroquiais. 'Em segui- parecer datado de Lisboa a 30 de outubro de 1~95, ao reconhecer
da, apontavam os prejuízos que ao Estado causavam os membros
• dessas associações que que a discussão relativa às conhecenças pretemhdas pelos párocos
era questão
não buscão a Parrochia, não querem ouvir o Parrocho, e faltando
totalmente às obrigações de Parrochianos, possuídos de arrogancia, sobre que há muitos anos pendem litígios, e que ultimamente creio
e Orgulho, estão proximos a cahir no precipício da Libertinage 12. se acha afeta a Vossa Magestade,

Em seguida, denunciavam as razões pelas quais insistiam em de- informava que


monstrar que as irmandades mineiras eram prejudiciais à Real Fa- é certo que os Vigários tendo por outros meios. suficientes, e mais
zenda e ao Padroado Régio. A primeira, porque não davam mais decente subsistência, não dão provas de verdadetros Pastores, quan-
ajuda e não custeavam os ofícios religiosos das matrizes, empre- do exigem uma porção, que avulta incompreensivelmente e se faz
gando seus recursos nas suas próprias capelas e igrejas, justificando pesada pela multiplicidade de escravos 17 •
que a Real Fazenda, que até então nada dispendia com as matrizes, De Luís da Cunha Menezes, o Conselho recebeu opinião que não
iria precisar socorrê-las para que não sucumbissem. Ao Padroado
Régio, só se coadunava com a do Conde de Cavaleiros, como a comple-
mentava. Enfatizava o alto espírito de religiosidade, fé e devoção
porque os Benefícios, e Vigairarias das Igrejas Ultramarinas são da população, a par do descaso e da desassistência espiritual dos
da Apresentação de V. Mag.e e o detrimento e uzurpação dos' seus párocos. Por isso, julgava que a ereção d: irma?d~des e ordens
Direitos rezulta em prejuízo do mesmo Padr~ado1
terceiras e a contratação por elas de capelaes propnos eram uma
isto é, as irmandades celebravam suas festas e ofícios sem autori- solução plenamente aceitável e justificável, diant~ da vora:idade
dade e assistência dos párocos, subtraindo destes os emolumentos tributária dos vigários, insistindo ainda em denunciar a cessa~ dos
devidos e usurpando-lhes a jurisdição e as regalias inerentes à sua direitos paroquiais, por estes últimos a outros sacerd~tes, mediante
po~ição hierárquica 13. Diante do exposto requeriam, dentre outras 0 pagamento de uma terça ou uma quarta parte _do tnbuto cobra~o
coisas, pelo ofício religioso 18. Embora da documentaçao ~ompulsada nao
conste o despacho régio final, não é difícil_ conclmr que a. <?oroa ,
que as ordens terceiras não tenham comissários particulares e que desprezou as ponderações dos dois ex-admin1stra~ores colo?I.ais. As I
os seus co~i~sários sejam os seus respectivos párocos 14, (. . . ) que
as suas festtvtdades se façam no templo da paróquia, na qual para decisões a respeito da matéria testemunham o firme proyosito d?s \
este fim, terão altar próprio 15 ( . • . ) [e] (. . . ) que tanto as ordens órgãos metropolitanos em combater as alegadas ~re~ensoes ~as. ~~­
terceiras como as irmandades não façam mesa, nem intentem de- mandades e ordens terceiras em "esbulhar" os direitos terntonais
mandas, sem assistência e aprovação dos párocos, evitando assim dos párocos 111•
que a tttulo de Mesa façam conventículos nem continuem na in-
triga, movendo pleitos injustos 16_ '
11 Id., ibid. Parecer anexo à representação.
18 Jd., ibid. Parecer de D. Luís da Cunha Menezes, datado de 18/ 4/ 1796,
a Lisbo_a em 1794, pelo que se. depreende de sua leitura e também pela con- anexo à representação.
frontaçao com as datas dos d01s pareceres que lhe são anexos 19 A acusação de esbulhamento é, invariavelmente, detect_ada na documenta-
12 ld., ibid., fl 5v. ·
13 Id., ibid., fls. 6v-7v.
ção dos arquivos da Mesa da Consciência e Ordens, especialmente quando de
14 ld., ibid., fl. 9. sua instalação no Brasil, com a vinda da C?rte ( 1808). Cf. por ~xemplo,
l ~ ld., ibid.
ANRJ- Mesa da Consciência e Ordens. Catxa 292. Pacotes 1 e 2! AEAM
_ Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário, da freguesta de N.
16 ld., ibid., fi. 9v.• "
Sra. da Piedade da Vila de Barcelona (1809), fls. 4-4v.
A IGREJA MINEIRA NO SÉCULO XVIII 79
78 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS
clero não-colado, porque, desassistido pelo Estado, não se sentia
Por out:o lado, a Coroa não desconhecia os inconvenientes de no dever de prestar-lhe lealdade.
se oc~par.umcamente da preservação dos direitos paroquiais. Tinha Porém, a análise não termina nos dois elementos básicos ini-
consciencia de que não podia concentrar os parcos recursos da Fa- cialmente apontados. Há necessidade de se reportar ao estudo da
z~nda Real alocados_~ subven~ão ~o c~lto somente nas igrejas ma- atuação do clero em Minas Gerais, no período colonial, com o
tnzes, mas, a? contrano, dever,!~ cnar formulas apropriadas e esten- objetivo de se compreender a reação dos sacerdotes a tais postula-
der seu aten~tment~ or~amentano para a construção, ornamentação dos da política colonizadora para a região.
e conservaçao das. IgreJas não-coladas, bem como para o sustento
do clero a estas vmculado. Não se dispondo a dispender com as
folhas eclesiásti~as senão _aqueles recursos que até então estabele- 3.1.2 O clero mineiro
cera, sabend_? a 1mpopulandade (e daí a inadequação) de aumentar
a arrecada~ao dos dízimos eclesiásticos, a Coroa chega mesmo a O afluxo indiscriminado e indisciplinado de aventureiros, na
avent~r a hipÓtese de red~zir o valor per capita das côngruas pagas virada do século XVII para o XVIII, à região que posteriormente
aos parocos como a soluçao para o atendimento a um maior número veio a constituir a Capitania das Minas Gerais, trouxe em seu bojo
de c!érigos diretamente beneficiados pelo erário régio. Pelas ins- incontáveis religiosos. Não cabe aqui questionar as razões de sua
truçoes _que lhe foram pa~sadas no sentido de negociar com o Bispo vinda. Não cabe aqui apurar os móveis que determinaram o des-
de ~anana um novo regimento para os emolumentos eclesiásticos locamento de padres e frades para o novo território. Não é perti-
o VIsconde de Barbacena deveria instar com aquele prelado no sen~ nente, também, imputar-lhes exclusivamente a pecha_ ?e que sua
tido de desterrar razão única era a ambição em acumular bens matenats ou era a
as ~xc~ssivas
e intoleráveis contribuições com que até agora se têm exploração dos bons negócios que aquele espaço histórico propor-
opnm1~o. e vexado os povos debaixo do ocioso pretexto de direitos cionava a todos os adventícios. Seria incorrer em radicalismo afir-
paroqma1s, se reduzam estes a umas justas e moderadas prestações mar que, pelo menos, parte (m~nima que fosse) d~quele~ religiosos
dos povos com que os párocos tenham precisamente o necessário não tivesse propósitos evangelizadores nas suas mcursoes ou nas
para a sua c;ôm~da e decente sustentação e para poderem cumprir suas tentativas de fixação em terras mineiras. Assim, parece que a
cor:z as obrtgaçoes de seu ministério, sem que seja preciso contri- análise da presença da Igreja nessas paragens. ~6 se ex~lica à l~z
bmr a F~zenda Real COJ? duzentos mil réis por ano a cada pároco, da política colonizadora portuguesa para a regtao: ~m seJa! atr~~es
como ate agora tem fe1to, mas reduzindo-se a cinqüenta mil réis da análise da prática do Padroado e do mercantthsmo tnbutano-
p_or ano a cada u~ e ~icando o~ r~stantes 150$000 rs. para se con-
Signarem a outras JgreJaS e paroqUJas do Brasil, as quais, não tendo -fiscalista metropolitano. ~ o que se procurará demonstrar a se-
fre_gueses nem, paro~uianos em estado de poder contribuir com guir.
co1s~ ~lgun;_a,e, prectso que a real fazenda assista com todo o ne- Cronologicamente, a primeira manifestação dessa política foi
cessaru>: nao so para sust~nt? dos párocos das referidas igrejas e a Carta Régia de 9 de novembro de 1709 que, nomeando Antônio
par_6quws, mas para a fabnca, ornamentos e conservação delas de Albuquerque Coelho de Carvalho para o governo de _São Paulo
(grt/os nossos) 20. e todo o distrito das minas de ouro, recomendou que, JUntamente
. No ent~ntu, Barbacena, se teve consciência, não teve a ncccs- com u Arcebispo da Bahia e o Bispo do Rio de Janeiro, se faça
sána determmação em agir. E assim, mantendo os direitos paro- despejar a todos os Religiosos e Clérigos que se acharem nas Minas
21
quiais e não redimensionando as taxas das conhecenças e emolu- sem emprego necessário, que seja alheio ao seu Estado .
mentos, a Coroa conseguiu desagradar simultaneamente a todos.
Está-se diante das primeiras medidas concretas que viriam carac-
Aos povos, q~e continuaram amplamente tributados pelos dizimei- terizar a alteração radical que se processou na dimensão política
ros d_e. ~1-_R.e~ e pe~~s ~acerdotes. Ao clero paroquial, pois este, que a Coroa dava ao novo território. Se, até então, sua diretriz
com msJstencia, argma JUnto às autoridades que o valor das côn-
gruas não lhe era suficiente para os gastos de manutenção. Ao
2\ "Colecção Sumaria ... -Título 1.0 - Governadores (suas nomeações)."
\ In: RAPM, 1911, v. 16, p. 335.
20 lnstrucção para o Visconde de Barbacena . .. p. 49.
A IGREJA MINEIRA NO SÉCULO XVlll 81
80 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS

foi a de permitir o livre aces t ~ . o clero ali existente pesava a acusação de ser revoltoso, ambicioso
de Antônio de Albuquer ue f~~ ~m ransito pel~ r~gião, a nomeação e simoníaco, além de refratário ao pagamento de impostos, atitude
com uma política vi "Jan~ e .bom prenuncto da preocupação esta que estaria transmitindo à população •
24

de todo o século X~III p possessiva que se estabeleceria ao longo No entanto, não se pode deixar de apontar a ineficácia de
· ara tanto a Coroa Jan - d
os seus instrumentos e veículos V i l b . çou mao e todos tais medidas restritivas, demonstradas pela própria longevidade e
ção de Albuquer u . · · . · a e em rar amda que a nomea- duração das determinações régias que se repetem até no fmal do
apaziguamento d~ :~~~~~~~~va pub~icamenle pela necessidade de século 25• Não se negue também que a sua maior ênfase deu-se até
Por isso mesmo, aquele ato ad~~r~~ ~s E~boabas (1707-1709). meados do século, quando a jurisdição eclesiástica sobre a região
lada. Complementarmente, pou~~~s ~f~~v~en~~s se fez de forma iso- mineradora transferiu-se do Rio de Janeiro para o novo Bispado de
I' bro, a Coroa ordenava aos bis os da Ba p ' em 1_7 de no!em-
Mariana.
1 que enviassem sacerdotes à regifo d . hia e_ do Rio de Janeiro

s~r aquilatada pela determin~ç~o


smcumbir pessoalmente da . -
d:
nar os ânimos e edificarem i re"as as mma~ a _fim de tentar~ere­
relevan~Ia dessa m~dida pode
que os bisp_os devenam se de-
missao ou, no seu Imped" t d 1
Por outro lado, também não se desconheça o fato de que tais
medidas não objetivaram exclusivamente a religiosos de ordens pri-
meiras. Se é verdade que estes foram os mais diretamente atingidos,
pois que se lhes vedou a instalação de ca~as próprias na Capitania
gar poderes a ministros eclesiásticos de sua inteira co I~en o, Ne e- e também porque eram os que mais abusos praticaram, não é menos
caso ou noutro, declarava o texto régio, eles deveriamnl~~~;a~ons~g~ verdade que a inobservância das medidas se devia à inoperância 26
das autoridades civis e eclesiásticas, especialmente dessas últimas •
alguns Messionarios de q."' tenhão melh . ·-
possão ajudar, or opmwo e de quem se Em favor dos bispos, no entanto, deve-se ressaltar que sua jurisdi-
ção sobre as ordens religiosas foi sempre questionada por estas. Os
a fim de tentarem apazigua d" ó d" regulares, assim como as ordens terceiras, insistiram em não se sub-
admoestando-os, e também rp~~a tsc r Ias entre paulistas e reinóis,
meter às autoridades locais, dizendo-se subordinados diretamente
aos Gerais do Carmo (em Roma) e de São Francisco (em Cas-
iiqueforem
nos Destrictos das mesmas M"
necessarias p a se d . ~nnas,
estabeleção as Parroquias, tela). Assim procedendo, evocavam sua tutela a autoridades estran-
sallos que vivem nel/~. a numstrarem os Sacram.tos aos Vas- geiras, num comportamento inadmissível para os interesses e a auto-
ridade do Estado absolutista português. Portanto, se a repressão
Por fim, ratificava-se a Carta R' . .
de expulsão dos reli .osos ~gta ant~nor sobre a necessidade foi maior e mais incisivamente voltada para os frades é que eles,
que praticassem atote ativ~d~~é:;g?s, resid~nt~s naqueles distritos,
eclesiástico 22. mcompahveis com o seu estado 24 CoELHO, José João Teixeira. Op. cit., p. 449.
25Id., ibid. Para o ex-ouvidor de Vila Rica, ainda à sua época, se bem que
Na realidade, essas duas med"d f se pudesse constatar a presença de sacerdotes de "boas letras, e que edificão
de uma longa série de cartas ord I as o~am ~p~nas as primeiras pela sua virtude", a maioria é composta de "ociozos e inuteis, que se occupão
primeira metade do século ~ Co:ns e a~Isos regtos que durante a em negociaçõens, e que escandalizão os povos, com as suas Licenciozas vidas,
d~ Capitania e para os bispos c o a envwuó ~ara os. g~vernadores e com as perturbaçõens com que inquietão o socego público." (id., ibid.).
ximo o número de rei" . . om o prop Sito de limitar ao má- 26 Cf. Ordem Régia de 28 de Abril de 1744. In: "Colecção Sumaria ... - Tí-
Jgtosos eXIstentes nas Minas Gerais 23. Sobre tulo 7 - Religiuens ... ".In: RAPM, 1911, v. 16, p. 339-400, doc. 33. Leia-se
também verdadeira profissão de fé do primeiro bispo de Mariana: "De
22 AHU!MG nenhuma sorte consentirei que a sábia e prudente Lei que proíbe aos religio-
23 D t I - D oc. Av. Caixa 57 (17/1111709) sos o subirem às Minas se relaxe nem a respeito de um só. Nem S. Mjde,
en re e as, podem-se apontar as se i . . -
de 9 de novembro de 1709 de 12 d gu ntes determmaçoes: Cartas Régias tão pio e tão cheio de veneração às sagradas Religiões, havia de concorrer
1711; Ordens Régias de 12' d o \ out~bro de 171 O, de 9 de junho de para um artigo tão contrário ao instituto religioso, o como era permitir que
1714, de 12 de novembro de 1~1~ ~em ro ~ 1713, de 12 de novembro de um religioso vivesse fóra da sua comunidade, principalmente em um país
de 1721, de 19 de maio de 1723 de e2i2d d': J~~ho de 1721, de 23 de outubro tão sensível como as Minas". D. Fr. Manuel da Cruz, dirigindo-se ao Con-
de_ 1723, de 10 de maio de 1725, d 16 de ~u o ~e 1723, de 9 de novembro selho Ultramarino, em documento não datado, ao emitir parecer sobre o
rc•ro de 1738 e de 28 de abril de f744· e e~r~•ro d,e _1732, de 21 de feve- pleito entre as Ordens Terceiras do Carmo, de Mariana versus de Vila Rica.
de 1739. Cf. "Colecção Sumaria - ',e o VISO Reg:o de 4 de dezembro Apud LIMA JÚNIOR, Augusto de. História de Nossa Senhora em Minas Gerais.
- Religioens ...", Jn: RAPM t9ii T~tulo 1.o- Governadores e Título 7 Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1956. p. 77.
' ' v. ' P· 335 e 393-400, respectivamente.
82 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS A IGREJA MINEIRA NO SÉCULO XVIJI 83

c~nqu_ant~ também vivendo sob o Padroado, invocavam a subor- o livre acesso e o fluxo migratório para a região; controlou-se o
. ~maçao direta a a?toridades que, se bem que legítimas, não pode- comércio abastecedor; controlaram-se, desestimulando, outras ativi-
nam. ~e~ reconhecidas como substitutas das autoridades ré ias e dades econômicas além da mineração; controlaram-se os caminhos
ecl~~tasticas. de ~o:tugal. Afora isso, embora a Coroa insistis~e em e passagens de acesso à Capitania, combateu-se o descaminho do
~~tiftcar a dtsposJçao leg::~l que subordinava os regulares aos bispos ouro. Enfim, Portugal manteve permanente controle sobre a popu-
.tdocesanos, es~es nunca se submeteram integralmente a outras auto- lação ali estabelecida.
n ades que .nao as de sua própria ordem 21.
Não se suponha também que tais restrições foram levadas às
. Ademats, não se deve ~arre~~r nas tintas desse quadro: a polí-
últimas conseqüências ou que não tenha havido significativas exce-
tica ~ortuguesa p~r~ce ter .stdo dmgida muito mais para a limitação
do nu~ero de clengos extstentes na Capitania, do que para a sua ções na política religiosa portuguesa para as Minas Gerais. Apesar
exclusao. Observava o Desembargador Teixeira Coelho: de as autoridades governamentais insistirem sempre em suas cor-
respondências e relatórios na inexistência de ordens religiosas na
Co'!'? era impossível que na Capitania de Minas deixassem de Capitania 29, conhecem-se alguns casos que, em parte, comprome-
7ztdzr Sacerdotes, para .a._administração dos Sacramentos, e mais
unçoens Sa'!tas da Rellgwo, e por isso não podião ser expulsos tem essas assertivas, como, por exemplo, a presença de esmoleres
33
l{
como o /orao os Frades, se determinou pelas Ordens de 19 d~ da Terra Santa 30, de capuchinhos 3 1, de jesuítas 32, de ursulinas ,
':fayo de 1!23, de 16 de fevereiro de 1732, passada em virtude sem falar de franciscanos • (V. notas 33 e 34 na p. seguinte.)
34

.a Rezoluçao. de 13 ,e.21 de fevereiro de 1738 que se não consen-


ttsse'!' nas Mmas Clengos desnecessários, e só aquelles que fossem
preczzos para o Serviço das Igrejas 28. ' 29 AHUI MG - Doc. Av. Caixa 60 - Ofício do Gov. Bernardo José de
Lorena ao Ministro D. Rodrigo de Souza Coutinho, em 517/1798. 1_
Nã? se_ trata, pois, ~e ~isp:nsar os serviços, mas sim de restringir 3o Nas suas "Memorias dos factos, que hão servido de motivos às intentadas, t 1 .._.1./f-

a ftxaçao. e permanencta tao-somente àqueles que demonstrassem ou supostas insurrefçoens da Amcrica Portuguesa", Alexandre de Gusmão l'
õestaca que"' 4Yfacto foz a ""Provisãõ que"-Er'Rey concedeu aos Padres Pro-
estar efettva e exclusivamente vinculados ao seu ministério sacer- curadores da Terra Santa no anno de 1715, para cobrarem as esmolas ver-
dotal. dadeiras, ou supostas por via executiva, como se fosse Fazenda Real". In:
E .ne~ se queir~ .ver na legislação proibitiva à ação religiosa Obras Várias. p. 253. Da presença de esmoleres dos Lugares Saotos também
informa a correspondência do Rei para o Governador da Capitania, D. Lou-
na CapJtama algo ~tlpt~o . ou e~pecial. Ao contrário, é mister não renço de Almeida, que, em carta de 26/ 5/1726, fala no total de "quatro
esque~er que a Cap1tama de Mmas Gerais foi sempre 0 palco ( or religiosos e seu comissário" (AHUI MG- Doc. Av. Caixa 4 - 2615/ 1726).
que ~ao dtzer ? cenário principal?) da manifestação do mais vo~az Augusto Viegas afirma que, em 1743, Fr. Manuel de Santana, com o auxílio
ft~cah~mo praticado pela monarquia portuguesa. A má uina admi- do síndico Sebastião Ferreira Leitão, instalou em São João Del Rei um hospí-
m.strattv~ e burocrá~ca ali instalada tinha como diret~z básica a cio da Terra Santa (Notícias de São João Del Rei. Belo Horizonte. Imprensa
Óficial, 1942. p. 109). Em 1749 foram doados terrenos em Vila Rica para
tnbutaçao e, ~ons~q~~ntemente, o espírito de cerceamento presidiu a construção de hospício e casa para religiosos da Terra Santa. (AHU I MG
toda a evoluçao htstonca da Capitania. Por isso não devem causar
estranh~za _suas ~edidas restritivas ao estabeleci:Uento de religiosos
n~ ~apttama, POIS que essas não são proibições unilaterais e espo-
- Doc. Av. Caixa 17 - 24/10/ 1749) e o recenseamento de 1804, se-
gundo Herculano Gomes Mathias, testemunha que "no distrito de Ouro
Preto ficava situada a única ordem religiosa de padres permitida em toda a
II
Capitania de Minas Uerais, a frmandade da Tt:rra Santa de Jerusalém
r.adJcas; elas s~ ~xplicam e se enquadram na mentalidade caracterís- que tinha o seu Hospício instalado onde residiam, em 1804, Frei Antônio de
tica do colomaltsJ~lO mercantilista-absolutista português. Simulta- São João Batista e os Donatos - Irmão Antônio de Pádua e Salvador da
ne~me~te a esse tipo de restrição, proibiu-se também a entrada e Sacra Família" (Um recenseamento na capitania de Minas Gerais. Vila Rica
- 1804. Rio de Janeiro, Arq. Nacional, 1969. p. XXVIU. Vide também
a ftxaçao de estrangeiros; controlou-se, a partir do início do século,
p. 73).
:nEm 8/ 3/1749, D. Fr. Manuel da Cruz dirigiu carta aos cardeais da
27 O d
rem R'egza.
. de 31 ~e maiO
· de 1780, ratificando a submissão dos pároco-
regu ares aos bzs~s dzocesanos. (Cf. ANRJ - Cód. 67 v. 8 p 136-7)•
Propaganda Fidei, solicitando-lhes o envio urgente de um capuchinho "para
a conveniente direção de um Recolhimento de donzelas" (Cf. TRINDADE, Rai-
Consulte-se tambem: SILVA, Antônio Delgado da. Op. dt., n63i1790 __: mundo, Côn. Arquidiocese de Mariana. p. 104-5). Sobre a existência de casa
Suplemento. p. 468 (Decreto de 5/3/ 1779), 1775/ 1790. p. 228-30 (Decreto de residência de missionários capuchinhos em Minas Gefãi:s.Víde Ordem
~; 21/7/1779), e 1!9111.80!. p. 152-4 (Alvará de 30/7/1793). Régiã âe- 20/0/ 1754.- AFAM- Livro de Registro de Cartas .. . p. 24-4v.
COELHO, Jose Joao Tezxezra. Op. cit., p. 499. :12 D. Fr. Manuel da Cruz, o primeiro Bispo de Mariana, era um entusiasta
84 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS A IGREJA MINEIRA NO SÉCULO XVIII 85

Ademais não cabe supor que, ainda que as proibições se des- pitania apenas os sacerdotes com funções e vínculos nitidamente
tinassem essencialmente aos regulares, os seculares estivessem isen- definidos. Mesmo neste caso, é possível verificar que a legislação
tos de controle e fiscalização. Não se deve esquecer que a legisla- não foi integralmente cumprida. Basta analisar o anexo 17 que
ção era bastante clara em explicitar que fossem mantidos na Ca- sintetiza o clero encontrado por D. Fr. Manuel da Cruz na juris-
dição eclesiástica do Bispado de Mariana, em 1748, ao tomar posse
como o primeiro dignitário do novo bispado. Por ali fica demons-
doo jesuítas. ~ famoso Padre Malagrida fora "o seu mais particular amigo,
seu companheirO e poderoso auxiliar nas visitas pastorais e missões do Ma- trada a presença de quase duas centenas, ou seja, de 43,91% do
ranhiío" (TRINDADE, Ra1mundo, Côn. Arquidiocese de Mariana. p. 126-7). clero existente na Capitania, que estava em disponibilidade, sem
J) ~or isso, empenhou-se vtvamente em trazer jesuítas para Minas Gerais, espe- vínculos deímidos tão-somente "com uso de ordens". Esses núme-
1{ ctalmente pens;mdo em confiar-lhes o seminário que fundara em Mariana. ros vêm confirma; as constantes denúncias e apreensões das autori-
Sobre este assunto, consulte-se: TRINDADE, Raimundo, Côn. Op. cít., p. 126-30
e 376-82. Da pre~ença de jesuítas em Minas Gerais "disfarçados em hábitos dades metropolitanas de que era grande o número de clérigos que
clericais, c de outras Religiões" dá notícia o Aviso de 29 de abril de 1767. vagavam pela Capitania. Por outro lado, mais do que vagar ao léu,
(Cr.Colecção Sumaria ... -Título 7 - Religioens ... - RAPM, 1911, é preciso destacar que esse clero parecia estar muito mal preparado
v. 16, p. 402, doc. 49.) para o desempenho da missão evangélica e sacerdotal. Se bem que
aa Sobre a ere~ão e mar.utenção de um convento, sob a invocação das Onze
~ Mil Yi~gens (Ursuhnas), em Vila Rica, consultem-se: AHUIMG - Doc. D. Fr. Manuel da Cruz tivesse se empenhado vivamente na prepara-
Av. Ca1xa 141 (20/7/1756) e AEAM - Livro de Registro de Cartas ... ção e no recrutamento do clero nativo 11\ ainda assim a falta de voca-
p. 29-29v. (Ordem Régi;o, pelo Conselho Ultramarino, ao Bispo de Mariana, ção para a cura das almas foi uma característica marCãnte do ~clero
em 5/ 2/1757). mineiro, notadamente nas últimas décadas do século. Os sucessores
3
~ Vários testemunho~ e documentos atestam a presença de franciscanos na
Capitania. Segundo Samuel Tetteroo, já em abril de 1712, Antônio de Albu- do primeiro bispo, especialmente os governadores do bispado que
querque, diante da situação religiosa que encontrara, sugeria a vinda de administraram a diocese nos longos exercícios da sede vacante, en-
franciscanos para Minas Gerais. (Subsídios para a história da Ordem Terceira carregaram-se de, sem o menor critério, promover v~deiras orde-
de São Franci~co em Minas. In: Revista Eclesiástica Brasileira, n.0 6, p. nações sacerdotais em massa 38•
350). Fr. Basilio Rówer afirma que, por volta de 1716, o Provincial dos
franciscanos no Rio de Janeiro "teve ordem do Rei para mandar todos os Por isso mesmo, a Coroa esteve sempre diligente, no sentido
anos dois religiosos de virtude e prudência a missionar nas comarcas de de, embora insuficientemente, apurar o número de religiosos exis-
S. João de F.l-Reí. Mar,ana e Ouro Preto" (A contribuição franciscana na tentes na Colônia 37• De qualquer forma, o importante para a Me-
formação religiosa da capitania de Minas Gerais. Revista Eclesiástica Bra-
~ileira, Petrópolis, dez./ 1943, v. 3, fase. 4, p. 974). Comportamento idêntico trópole era impedir que o clero se tornasse um elemento de desar- J.J
ao de Antônio de Albuquerque teve o Senado da Câmara de São João Del ticulação do sistema. Nessa medida, ao permitir a criação de um _,J:
Rei, pelo que se lê em carta de 24/ 5/1715 (Livro 1.0 de Registro de Corres- seminário na Capitania ou de assistir passivamente à ordenação in-
p01dência, n. 2. In: VIE.GAS, Augusto. Op. cit., p. 108). Em março de 1743,
a mesma Câmara solicitava à Corte autorização para a ida de seis prelados
discriminada de novos sacerdotes e não criando, ao mesmo tempo.
franciscanos domiciliados no Rio de Janeiro para prestarem serviços religiosos uma política de absorção dessa mão-de-obra, a Coroa acabou por
naquela localidade (AHUIMG - Doc. Av. Caixa 25 - 6/3/1743). Em
12/5/1751, a Venerável Ordem Terceira de São Francisco, da mesma vila de
São João del-Rei, representa à Câmara local sobre o pagamento de cÕnifUaS poeta Frei Francisco de S. Carlos, que em 1796 fêz a viage~ ~. M.in~ em
e recursos para ~ustemaç:lo de franciscanos que estavam a seu servi~u companhia de Dernardo José de Lorena, General de v.ta Rica . (ROWER,
(AHU/MG- Doc. Av. Caixa 6 - 12/5/1751). Tudo isso, sem deixar de Basílio, Fr. Op. cit., p. 981-2.) , .
considerar também que, em Minas Gerais, "se por via de regra o Comissário a~ AEAM - Livro de Registro de Cartas... fl. 5v. (Ordem regm de
das Ordens Terceiras da~ Minas era um Padre secular, não faltava a pre· 12/9/1748). Vide também CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e
sença, pelo menos temporária, de um religioso, designado pelo Provincial Escolas Mineiras Coloniais. p. 59, 70-2 e 102-15; HOORNAE.RT, Eduardo. His-
para visitá-Ias canônicarncntc, quer dizer, para vigiar sôbre a observância da tória da Igreja rzo Brasil. t. 2, p. 192-200; TRINDADE, Raimundo, Côn. Arqui-
regra, corrigir abu~os e presidir as eleições. Demoravam-se frequentemente diocese de Mariana. p. 102, 376-90.
alguns anos, exercendo ao mesmo tempo o múnus de missionário. Um do· 36 CARRATO, José Ferreira. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça.
cumento avulso de 1786, remetido de São João De EI-Rei ao Provinciado, p. 93-5, especialmente notas de rodapé.
menciona quatro desses visitadores missionários de 1751 a 67: Frei Boaven- 37 APM/SC - Cód. 266, doc. 9 (Carta de D. Rodrigo de Sousa Coutinho
tura de S. Salvador Cepeda (1751/53), Frei Manuel do Livramento (1756/ para o governador da capitania de Minas Gerais, de 21/11/1796); Afi!Rl-:-
/ 62) , Frei Fernando de S. José Menezes (1762/64) c, mais uma vez, Frei Cód. 67, v. 24, fl. 39 (Carta de D. Rodrigo de Sousa Coutinho ao V1ce-Re1,
Manuel do Livramento ( 1764/67). O último do século de ouro foi o célehre de 11/211799).
86 IGREJA, ESTADO E JRMANDADES EM MINAS GERAIS A IGREJA MINEIRA NO SÉCULO XVIII 87

criar e alimentar um elemento desintegrador do sistema colonial. trópole oportuna e contemporaneamente à consolidação da máquina
Sem paróquia para administrar, com o mercado de trabalho junto administrativo-fiscalista na nova Capitania. Em carta de 17 de
às irmandades relativamente limitado, sem poder tornar a iniciativa março de 1719, a Coroa dirigiu-se ao Governador de São Paulo
de erigir templo face às determinações do Padroado Régio, mesmo e Minas, pedindo-lhe informações sobre a conveniência de se criar
os espíritos mais vocacionados inexoravelmente acabaram por com- ali um bispado. No ano seguinte, ordem régia à mesma autoridade
bater e solapar a estrutura vigente. Entretanto, a análise que se cientificava-a de que idêntica consulta fora feita ao Arcebispo da
vem tentando empreender, ainda que identifique no Padroado e na Bahia e ao Bispo do Rio de Janeiro, a quem era solicitado o con-
tributação eclesiástica os elementos-chave, não pode prescindir do sentimento para a criação de dois bispados: um em São Paulo,
fato de que, do ponto de vista dogmático, durante todo o período, outro em Minas Gerais, com o objetivo de
esse clero esteve sujeito às orientações emanadas dos bispados a
evitar a gr.a• disolução e distram. 108 nos Eclesiásticos e outros pre-
cujas jurisdições eclesiásticas se subordinava. Essa a razão pela qual
juízos 39 •
compreender e questionar as formas de exercício do episcopado na
Capitania de Minas Gerais impõe-se como a mais próxima etapa Contudo, a proposta não evoluiu, e a missão pastoral em Minas
deste trabalho. continuou a ser confiada aos bispos do Rio de Janeiro. Evidente-
mente essa não foi a melhor solução, como se constata pela
realização de freqüentes visitas eclesiásticas e episcopais. A missão
3.1.3 O bispado marianense primordial dos Visitadores Eclesiásticos, emissários delegados do
Bispo às minas, era a de proceder à inspeção do clero e de orientar
Inicialmente, deve ser salientado que a instituição -episcopal a ação pastoral, e, com esse objetivo, desde 1703, o Bispado do
nas Minas Gerais colonial ressentiu-se, desde seus primórdios, do Rio de Janeiro se fez presente em Minas, através dos Visitadores
poder de jurisdição. Submissos ao Padroado Régio, os bispos colo-
Cônegos Manuel da Costa Escobar e Gaspar Ribeiro Pereira, aos
niais não desfrutaram livremente do direito de governar e de admi-
quais se deve creditar a instituição canônica das primeiras igrejas
nistrar suas dioceses. Sua faculdade de aplicar censuras e penas
canônicas ficou, em parte, inibida pelo recurso do efeito suspensivo mineiras 40•
que podia ser solicitado à Coroa. Seu poder de ordem, isto é, a Os "capítulos de visita" testemunham que aquelas missões to-
administração e celebração de sacramentos, embora exercido em maram foros muito mais de fiscalizar a atuação do clero, isto é,
plenitude, não condisse com o prestígio de seu cargo e não foi su- investiram-se na função coercitiva e afirmadora da autoridade dio-
ficiente, por si só, para impor a força de sua autoridade. Como cesana, do que na de orientar o exercício correto dos ofícios reli-
observa Carrato, giosos; muito mais os preocupava a condenação da licenciosidade e
dos abusos perpetrados pelo clero do que a orientação das almas
um bispo setecentista, pelo regime de rígida vinculação da Igreja para a prática sacramental do catolicismo. Ademais, não se eximi-
ao Estado absolutista de direito divino, tem aparentemente todos
os meios de cumprir sua missão pastoral; mas, tão logo ensaia um ram esses Visitadores Eclesiásticos de também cometerem seus ex-
passo, sente-se peado pelos imperativos regalistas desse mesmo cessos, contra os quais, por exemplo, em 13 de maio de 1725, D.
regime, que o confinam à condição de simpll!s funcionário de Sua Lourenço de Almeida representou ao Rei 41. Não tardou a resposta
Majestade as.
O exemplo mineiro é modelar quando se pretende demonstrar a 39 "Ordem de 6 de setembro de 1720, na qual se participa ao Gov. or de São
veracidade dessa caracterização. · Paulo e Minas, Conde de Assumar, que se incomendou ao Arcebispo da Bahia,
e Bispo de R. 0 de Janeiro dem os seus conseotim.to• para a creação de dous
Embora a criação de um bispado em Minas só se tenha efeti- Bispados hum de S. Paulo e outro em Minas para se evitar a grd.e disolução
vado em meados do Setecentos, a idéia já fora ventilada pela Me- e distram.tos nos Eclesiásticos e outros prejuízos" (In: "Colecção Sumaria ...
- Títu.lo 7 - Religioens . . . " - RAPM, ano 16, 1911, p. 395, doc. 13).
40 CARRATO, José Ferreira. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça.
38 CARRAro, José Perreira. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais. p. 105.
p. 63. 4lAHU/MG- Doc. Av. Caixa 2 (13/5/1725).
88 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS A IGREJA MINEIRA NO SF.CULO XVIII 89

de Lisboa Pela ordem de 1O de setembro do mesmo ano, a Corte e pouco antes da ascensão ao trono do primeiro prelado maria-
participava ao Governador da Capitania, n'en~e, Minas Gerais recebia a visita de D. Antônio do Desterro e
Malheiros.
que vendo se as mas cartas sobre as excessivas condemnaçoens,
que fazem nas viziiias (<ir), P excessivos emo[um.'''' se manda en- Interesses de natureza geopolítica acrescidos à necessidade de
commendar ao Bispo do R. 0 de Janeiro, que averigue a injustiça tentar ~anar a fragilidade do exercício episcopal na Cap.itania leva-
com que se procedeo nas ~·iulias, e o que indevidamente se extor- ram a Metrópole a retomar a idéia de criação de um b1spado pró-
quio aos Vassalos de S. Mag.'1', fazendo-lhes restituir por competir prio para Minas Gerais. A esse propósito era clara a ~ntenção do
ao dito Sr. livra/os des.1as oppres.1ões, e reprimir a cobiça e abuzos, eminente ministro, o luso-brasileiro Alexandre de Gusmao, quando,
com que os MinistrO! Eclesiasticos procedem, e que com toda a em carta de 6 de junho de 1743, recomendara
vigilancia procure qut os seus Ministros não levem maiores sala-
rios, do que os taxados aos Seculares 42. a hum Ministro que hia para as Minas ... que nas suas viajens P.or
terra, e por agua . .. por qualquer parte que vm .." tra~7itar, quezra
Tais excessos resultaram em que o então Bispo do Rio de Janeiro, ter o trabalho de escrever e riscar 111do quanto vtr. e amda escrever
D. Fr. Antônio de Guadalupc, se preparasse para, pessoalmente, 0 mais ij souber por pessoas fidedignas, de Terrenos, Lagos Rios,
visitar a região das mina~. Sua permanência entre os mineiros, que Fonte<, fructos, e Povos, com seus governos, trajes, c.ostumes, e
se prolongou pelos anos de 1726 e 1727, foi coberta de êxito (" Religião . .. exceptuando-se deste trabalho, todo o. Pa~z~ que de-
serviu para reabilitar o combalido prestígio da instituição clerical corre do Rio de Janeiro ate a Cidade de Mariana (s;c) q tSto tenho
naquela desordenada sociedade. Porém, a presença física e moral eu já circunstanciado 44 •
do Bispo na Capitania de Minas Gerais não se podia fazer perma- Não há dúvida de que, assim como despachara o Pe. Diogo Soares,
nente e as reclamações contra as arbitrariedades de seus prc:postos o valido de D. João V procurava informar-se cada vez mais deta-
não cessavam. Em provisão de 16 de janeiro de 1729, endereçada lhadamente da geografia da Colônia, no firme propósito de, atr,a~és
ao Ouvidor-Geral da comarca do Rio das Mortes, o Conselho Ul- da religião, expandir os limites da colônia portuguesa na Amenca
tramarino solicitava suas providências no sentido de que ele tivesse e garantir a posse das terras conquistadas. ~o mesmo ~empo e~
particular vigilância quanto à usurpação da jurisdição régia por mi- que procurava determinar os limites geográficos dos b1spados Ja
nistros eclesiásticos, conforme denúncia recebida por aquele órgão. existentes, pleiteava o estabelecimento de novos outros. Como ana-
Em 20 de julho, Antônio da Cunha Silveira, então respondendo lisa Jaime Cortesão,
pelo cargo, prestava conta das medidas que adotara, permitindo-se a erecção das novas dioceses e prelazias, se obedecia a sinceros
sugerir a Lisboa que o sossego dos moradores e o remédio para as propósitos de piedade e de fé cristã, não deixava de representar
perturbações causadas por aquelas autoridades eclesiásticas só esta- uma medida de elevado alcance diplomático. Portugal obtinha do
riam assegurados em Papa 0 reconhecimento e uma sanção transcedente à sua expansão
para oeste, e, por conseguinte, às suas violaçcies do Tratado ~e
mandando V. Mag.d~ se assim for do Seu Real agrado, q o Gov. 0 ' Tordesilhas ... desta vez o ato revertia a favor de Portugal e nao
informado pelo ouv.'"', e Juiz da Coroa, ou este, não querendo os da Espanha e implicava uma antecipação, sob a espécie de uti
Min.'0 ' Ecclesiasticos dar cumprimento às Rogatorias i/ se lhes possidetis religioso 43.
passaram, nem contérem-se em proceder contra os ij tiverem recor-
rido p.a a Coroa, e não quizerem observar as Ordens de V. Mag.~·, Era flagrante o intuito da criação dos bispados de Mariana e
possão mandar exterminar p.a fora da Comarca aos Vezitadores, São Paulo e das prelazias de Goiás e Mato Grosso dentro da polí-
e Vigarios da Vara de/la •~. tica metropolitana de manutenção e ampliação da soberania de
suas possessões na América. Este fato, simultaneamente, caracteri-
Por isso, D. Fr. Antônio de Guadalupe acabou por repetir sua visita
za bem a necessidade da Metrópole em consolidar sua hegemonia
em 1733 e em 1735. Em 1741 era a vez de D. Fr. João da Cruz
sobre as terras mineiras. Por isso mesmo, não é pouco relevante
•2 "Colecção Sumaria, . . - Título 7 - Religioens ... " - RAPM, 1911.
v. 16, p. 397, doc. 22. H GusMXo, Alexandre de. Obras Várias. p. 374-5.
43 AHU/MG - Doc. Av. Caixa 7 (26/1/1729). •~ CoRTESXo, Jaime. Op. cit., parte 1, t. 2, p. 175.
90 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS A IGREJA MINEIRA NO SÉCULO XVII[ 91

~sinalar que, no rastro do Padroado Régio, a criação de bispados Trata-se de desautorizar os atos praticados por autoridades ecle-
e prelazias no Brasil se fazia sob as instâncias e por proposta de siásticas, a fim de permitir que a Coroa pudesse se impor sobre as
autoridades civis e não da Santa Sé. Como insiste Carrato, irmandades.
a colocação do regime regalista, em face da Igreja luso-brasileira, O Bispo de Mariana. ~ste é apenas um alto funcionário da Coroa,
/az-sa imprescindível puru qualquer estudo da sítuação religiosa sujeito aos caprichos da máquina emperrada du administração real:
colonial. A de Mina!>, principalmente. De outro modo, não se qualquer ato seu, qualquer censura ou cominação de P.ena contra
poderia compreender o espírito que preside a própria hierarquia os díscolos, dá recursos à Corte de Lisboa, com e/ello suspen-
eclesiástica, em suas relações com a Corte. Relações típicas de alto sivo . .. a autoridade do Bispo pouco vale, afora seu poder de or-
funcionalismo público para com o Monarca, como um respeitável dem, pois mesmo junto dos vigários, dos diversos. beneficiários
órgão de staff, que o assiste, em tudo o que diga respeito às coisas vitalícios, só vigora sua influência moral. E esta ex1ste, quando o
espirituais 4 6. Bispo está presente, com sua ação e sua virtude, o que nem sempre
vai acontecer na sede episcopal de Mariana 48 •
O espírito absolutista que presidiu a criação do Bispado de
Mariana deu mostras de sua força, prenunciando a política rega- A ação pastoral dos bispos marianenses fica assim condicio-
lista que se abateria sobre a vida religiosa da Capitania, mais dire- nada a dois fatores essenciais: as ordens de Lisboa e as desordens
tamente sobre as irmandades. El-Rei dava sinais de que não estava do cabido. Como funcionários de Sua Majestade, eles exerciam sua
disposto a ceder seu poder também no que respeita aos negócios ação pastoral menos preocupados com a incorporação de novos
espirituais. Não desobedeceu aos princípios jurídicos prescritos nas adeptos à sua comunidade de fiéis e discípulos do que com a su-
Ordenações, mas se reservava o direito de discutir a validade e a plementação da administração civil. Veja-se, a propósito, a posição ~
legitimidade dos atos praticados pelas autoridades eclesiásticas e, do primeiro Bispo de Mariana, D. Fr. Manuel da Cruz, que,. em \
nessa medida, tentar abrigar sob as asas do poder secular um maior Pastoral declarou em pecado todo aquele que fraudasse o qumto
número de irmandades. Em princípios de janeiro de 1751, remeteu '
estabelecido pela Lei de 3 de dezembro d e 1750 49. _ c orno s~ nao
-
uma Provisão para D. Fr. Manuel da Cruz, nos seguintes termos: bastasse ainda ficava sujeito a ser chamado a atençao por nao ter
tido certo cuidado na estipulação da penalidade aos infratores 50•
sou servido declararvos, como tãbem que não basta que os Vigarios Por outro lado, os bispos do período colonial mineiro sofria~ a
do Bispo do Rio de Janeiro, que assistião nessas Minas antes da ação nefasta de seu Cabido Diocesano. Segundo Carrato, o Cabtdo,
criação do vosso Bispado, authorizassem na sua Erecção algüas
Irmandades para estas re dizerem Eccleziasticas, porque os ditos instituído com extremos de carinho e de esperança por D. Frei
Vigarios erão foraneos, que nunca se consideram, nem tem autho- Manuel da Cruz, para o seu mister de assistir o Bispo na gerência
ridade dos Ordinarios; E inda que fossem Vigarios Geraes podia espiritual e administrativa da Diocese, não esteve, em um s~ mo-
ser duvidozo se não monstrando especial Comissão porque lhe era mento, à altura de sua responsabilidade: foi um capítulo, s1m, 1e
concedido este acto de Jurisdição graciosa, e voluntaria, e quando mesquinharias e quizílias, que jamais se acabaram, em toda a hzs-
vós, e o Ouvidor entreis em duvida no tempo, e forma da Autho- tória colonial de Minas Gerais. Os bispos dessa época, ... , ~olhe:
ridade Eccleziastica em qualquer das Irmandades, vos recomendo ram só amarguras dessa súcia de cônegos desocupados. Nao ha
(o que tão bem faço ao Ouvidor), me deis conta instruido com os
Documentos 47 •
4SCARRATo, José Ferreira. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça.
A questão para a Coroa passava a não ser mais condenar a p. 77. - de Leg1slaçao
. - Portuguesa. L'1sb oa,
40 SILVA, Antônio Delgado da. Co/lecçao
exorbitância dos emolumentos e tributos cobrados pelos Visitadores 1825/56. v. 1 (1750-1762) Suplemento, p. 125. .. .
Eclesiásticos na primeira metade da centúria. Agora o que importa 50 AEAM - Livro de Registro de Cartas. . . p. 20-20v. - Reg1s~o de
é a sua hegemonia tota' sobre a sociedade civil e sobre a Igreja. outra carta pela Secretaria de Estado do Ultr_am~r sobre a rezervaçao d?
peccado de furto, que comettem, os que descammhao ~uro para fora da ca~I­
tania destas Minas Geraes por quintar", datada de Lisboa, em 27 de_ ~aJO
46 CARRATO, José Ferreira. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. de 1753 assinada por Diogo de Mendonça Corte Real, na qual o Mm1st~o
p. 103. expõe a~ Bispo a estranheza de El-Rei pelo fato de. que "Vossa ~cellencJa
47 Provisão Régia datad11 'de 4 de janeiro de 1751. AEAM- Livro de Regis- não fes este peccado reservado", finalizando por sohc1tar que o B1spo pense
tro de Cartas ... p. lOv-1. melhor sobre a matéria e dê-lhe nova diretriz.
92 IGREJA, ESTADO E lRMANDADES EM MINAS GERAIS
A IGREJA MINEIRA NO SÉCULO XVIll 93
símbolo mais eloqüente da absoluta esterilidade moral e espiritual
dos cônegos marianenses coloniais do que o desgoverno da era Gradativamente, foi-se criando o entendimento de que era di-
vacante do Bispado, o período que vai da morte de D. Frei Manuel fícil escapar à ação governamental. Aos poucos, a Mesa da Cons-
da Cruz (janeiro de 1764) até a entrada de D. Frei Domingos da ciência e Ordens passava a ocupar espaço anteriormente o~upa~o
Encarnação Pontevel (fevereiro de 1780): nesses dezesseis anos, pelos visitadores eclesiásticos. A partir de então, a sobrevtvenct.a
em que não hou1•e pastor de fato na Sé marianense, o chamado das irmandades ficaria sujeita às diretrizes emanadas daquel,e Tn-
"período dos procuradores" - cônegos do cabido designados pelos bunal. Mesmo as poucas que não chegaram a se submeter aquela
bispos titulares para admini:rtrarem a Diocese em seu nome - a instituição, sent~m e sofrem sua presença. Como reconhecera.m os
vida religiosa das Minas conheceu a estagnação 5 1•
confrades da Irmandade de São Miguel e Almas, da freguesta ?e
Desacreditados, desautorizados, desprestigiados e descrentes de sua Antônio Dias, de Vila Rica, sua aprovação é indispensável, pots,
verdadeira missão, os bispos marianenses deixam-se acomodar à nas terras do Padroado Real sem ella nada pode ter realidade 53.
condição de funcionário régio. Dessa forma, a Coroa sente-se livre
para agir também nas coisas espirituais. D. Frei Manuel da Cruz, o piedoso bemardo que epical?7nte
Nesse quadro, não restava dúvida de que o peso do Estado se deslocou da diocese de Maranhão para inaugurar e presidir a
Absolutista rondava as portas das associações e das instituições re- recém-criada de Mariana, mais do que seus sucessores sentiu o
ligiosas da Capitania. Faltava definir como entrar porta adentro. peso dessa política. Sem fala~ do~ ?~s~abores que tev~ c~m o .ca-
Para tanto, a Coroa procurou fixar e especializar as funções de seus bido - o que, aliás, não sera pnv1~e~o seu - , o pnmetro b1~o
marianense, por um lado, esteve su)etto a co.n~t~tes reclamaçoes
órgãos. Neste sentido, é significativa a Carta Régia que o mesmo
Bispo, poucas semanas depois, recebe de El-Rei, na qual se insiste 54
das Câmaras sob a acusação de praticar exorbttanctas ; por outro, /
na competência do Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens nos teve cerceado até mesmo o seu direito de escolha de auxiliares ~ais
assuntos religiosos, em detrimento do Conselho Ultramarino. Dizia: diretos, numa evidente demonstração de que a Coroa não ced1a o
controle absoluto da política colonial, mesmo quando se tratasse da
Sou servido dizervos, que para todos os negocios de materias Eccle- nomeação de cargos eclesiásticos de segundo plano 55• .
ziasticas, como são ... Hey p.' bem ordenarvos, que todas as repre-
sentações ou qualquer requerimento, que me fizeres sobre as refe- De sua parte, ao lado de inúmeras realizações que. v~s~vam a
ridas materias, as remetaes ao dito meo Tribunal, como privativo, fortalecer o novo bispado, como a criação de um semmano, deu
e competente, para o Governo Eccleziastico, que em todo o Ultra-
mar me pertence, como Governador, e perpetuo Administrador 53 AEAM - Compromisso desta irmandade (1765), fi. 1, da petição de
que sou da Ordem de Christo, sem que o Conselho Ultramarino, confirmação do compromisso.
possa tomar conhecimento de Semelhantes dependencias, pela falta 114 AHUIMG - Doc. Av. Caixa 42, doc. 12 (6/5/1755). " ,
de Jurisdicção que tem para o fazer como lhe tenho ordenado ~2. 55 AEAM - Livro de Registro de Cartas . . . fls. 2-2v.. e 43-3v. . Alvara,
porque Vossa Magestade há por bem fazer merce ao B1spo do B1spado de
51 CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais.
Mariana Dom Frei Manuel da Cruz, de lhe conc_e<_Icr facul~ade para poder
p. 58-9. nomear as Dignidades, conezias, Vigararias, Benef1~10S, e mms <:;argo~ Eccle-
52AEAM- Livro de Registro de Cartas ... p. 10-IOv. Também publicada ziasticos da dita Sé, e Bispado, que vagarem deJ?OIS da sua rez1denc1: nelle,
no Anuário do Museu da lllconfidência. 1955/7, v. 4, p. 51 e pelo Côn. Rai- excepto a Dignidade de Arcediago como prime1ra em lugar d~ I?,eao, que
Vossa Magestade rezerva a sy para a prover em quem for serv1do (Alvará
mundo Trindade nas Instituições de Igrejas no Bi.rpado de Mariana. p. 17-8. datado de 12 de abril de 1747). É extensa e var!ada.!. quanto. aos assuntos
Carta também dirigida ao CCapitão-General c Governador do Rio de Janeiro
e Minas gerais (Cf. APM/SC - Cód. 93, fls. 132-132v.). Assim mesmo, tratados, a documentação existente sobre a su~ordmaçao .dos b1spos de Ma-
foram constantes as disputas de jurisdição sobre as irmandades entre os dois riana às autoridades civis coloniais e metropolitanas. V~Ja-~e, por exempl?,
órgãos. O Conselho Ultramarino parece nunca ter-se conformado com a oõanâo de 11/2/1755, do governador interino da Capltama, Jo~é. Antomo I
cessão de direitos de jurisdi~ão em assuntos coloniais para outro órgão, mes- Freire de Andrade. Cumprindo a ordem régia de ~/2/ 1754, pro1~1~ o pre-
mo que, no caso, fossem de caráter religioso. Um bom exemplo dé seu
arrazoado é o que se encontra na resposta à Consulta por ele emitida a um
lado marianense a aceitação dos Breves de Sua Sanhdade sem a prev1a _apro-
vação régia (In: RAPM, v. 17, ano 1912, p. 352-3). Ou a desaprovaçao.de \
atos eminentemente episcopais de D. Fr. Manuel da Cruz, como o ocorndo
r_e querimento da Irmandade do Santíssimo Sacramento, da freguesia de N.
Sra. da Conceição do arraial de Prados, em junho de 1804, na qual enumera com o desmembramento da freguesia de Sa~ta Bár~ara do Mato Dentro !?ara
os textos legais que respaldavam sua atitude de também examinar matéria a criação do curato de São Gonçalo do Rw Aba1xo, em que o ~1spo f1~u
religiosa (AHU - Cód. 244, fls. 217-Sv). desautorizado pela Coroa na medida tomada (Cf. CARRATO, Jose Ferre1ra.
As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. p. 113).
94 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS A IGREJA MINEIRA NO SÉCULO XVlll 95

provas de sua l~aldade para com a Coroa, apresentando ine uívo- ferir rigidamente para que os prelados nomeados não confiassem o
cas demon,s!raço.es d.e colaborar para o efetivo sucesso da ~alba­ governo do seu rebanho a procuradores, fazendo-o pessoalmente M.
ratad~ yolítJc~ !1s~alista ~ re~r~ssora .da Metrópole. Lembre-se, a Por fim, saliente-se ainda que a autoridade episcopal não foi
propos1to, descurada e desacatada apenas pelas autoridades civis ou pelos seus
l - o silenciO. e a 1mphc1ta omtssão do Bispado de Manana·
(in)subordinados prebendados e clérigos em geral. Também os fiéis
e~ re açao ~ao mov1mento conjuratório mineiro de 17R9. Como
af1rma o Conego Trindade, parecem não lhes ter dedicado o respeito devido e a confiança inc::-
rente à sua dignidade. Leia-se, a propósito, a quase patética res-
sem en:zbarg_o de nele (referindo-se à conjuração) - se haverem posta de D. Fr. Cipriano de São José ao Governador da Capitania,
envolv1do cmco sacerdotes do seu clero um dele~ ' Bernardo José de Lorena, contrapondo-se a uma representação
d b· • ·• - · · · - conego
e seu ca 1do e professor do Seminário Episcopal não mereceu contra ele interposta pelos confrades da Irmandade do Senhor
uma palavra do Bispo Diocesano 56. '
Bom Jesus de Matosinhos, de Congonhas do Campo:
Afora seu .múnus pastoral que incluía a exaustiva e arestosa Se há quem pense ou quem diga que um Bispo, que por Deus
tarefa de ~rgamzar toda a hierarquia e as instituições eclesiásticas mesmo é constituído guarda vigilante de sua casa, que deve zelar
da nov~ ?wces.e, procurou colaborar estreitamente com as autori- com fidelidade e honra de seu Deus e administrar santamente os
dades c1v1s no mtuito de aumentar o volume dos tributos auferidos sacramentos que deixou na sua Igreja; que deve promover os meios
p~la Coroa, através do combate à incontrolável prática do desca- de salvação e remover os obstáculos dela a respeito de todas as
mmho do ouro. D. Fr. Manuel da Cruz, almas de que está encarregado; que deve vigiar com desvelo sobre
o respeito e acatamento, sobre a decência e devoção externa com
em várias pas_torais procurou convencer os mineiros da obrigação que os fiéis, principalmellte nas igrejas, devem render a Deus o
de. pagar o f1sco. Declarou pecado mortal o não pagamento do culto público e a adoração que lhe é devida; se há quem se atreva
qumt? ou qualquer fraude que levasse o contribuinte a não pagar a proferir ou ainda a conceber que um bispo e os que de jurisdição
esse 1mposto ou pagar menos que o devido por lei. Em 1753 fez ordinária, posto que subordinada, fazem as suas vezes, nem têm
esse pecado reservado ao Bispo 57. para impedir estas desordens, nem autoridade para por ou dar
remédio a tão graves males; os que assim falam ou assim pensam,
As~im ~rocedendo, o primeiro como os demais bispos maria- tratem de tirar de todo a máscara da aparência e deixem-se conhe-
nenses, Jamais, no período colonial, deixaram de ser meros instru- cer pela realidade do seu caráter 59.
me~tos d~s ?ete~minações. políticas metropolitanas. E esse sentido Lamentavelmente, essa é mais uma proclamação ineficaz de
d~ 1mpotencra nao lhes fo1 estranho. .e
sabido que apenas três dos autoconfirmação do que mensagem pastoral que fosse assimilada
brspos nomeados assumiram efetivamente o trono em Mariana (v. pelos diocesanos, um arroubo de zelo apostólico que não espelha
i\ anexo 16). De !~45 até a independência política, quase a metade o real desempenho da instituição episcopal nas Minas Gerais. An-
do tempo .a adm1~1stração do Bispado ficou sob a responsabilidade tes, reforça a tese de sua total falta de identidade e de seu distan-
do anárqurco Cab1do Diocesano, a ponto de a Coroa precisar inter- ciamento para com a religião praticada na capitania do ouro.
56
TRINnAnE,. Raim~ndo, Côn. Arquidiocese de Mariana. p. 152. Difícil supor 58 A história do C::~hido nioce~::~no de Mariana é por demais conhecida e
que. D. Fret Dommgos da En~arnação Pontevel, então ocupante do sólio divulgada. A respeito, consulte-se, dentre outros: CARRATO, José Ferreira.
mananense,. desconh~cesse prev1amente o movimento e que dele só tivesse As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. p. 115-8 e 125-6; id., Igreja,
.1. acesso por t~te.r!fléd10 do Visconde de Barbacena, que 0 preveniu sobre a Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais. p. 58-61; TRINDADE, Raimundo,
eyentual posstb!lt?ade de sua ascensão à governança da Capitania, no impe- Côn. Arquidiocese de Mariana. p. 103-6, 153, 160, 292-5 e 312-6; id., Insti-
dtmento do seu titular (Cf. Anuário do Museu da Inconfidência 1953 v 2 tuições de Igrejas no Bispado de Mariana. p. 30-3. Quanto à intervenção
p. 46-7). . . . ' régia no sentido dos bispos nomeados assumirem seus postos, veja.se: AHU
5 - Cód. 243, fls. 210-IOv e 217v-8. Complete-se ainda afirmando que, ante-
: TRr.NOADE, Raimundo, CÕJ?-. Arquidi'?cese de Mariana. p. 119. Segundo 0
h1stonador dos fastos da dtocese mananense, as referidas pastorais datam riormente, o Cabido fora advertido e ameaçado com medidas punitivas enér- U
d7 12/5/ 1752 e 9/911?53 (op. cit., p. 130-1) . Vide também: SILVA, Antô- gica~ MariíiiliOOê Melo e -castro, diante de seus ..desconcerfados _proce-
01.0 Delgado ~a. Op. ctt., v. 1 (1750/1762). Suplemento, p. 125; AEAM _ dimentos", "espírito revoltozo" e "criminosa a1tivez"":
~tvro de Regtstro ~ Cartas . .. p. 20-20v. (Carta de Diogo de Mendonça 59 TRrNDADE;-Raimundo, Côn. Arquidiocese de Mariana. p. 168. A corres-
orte Real, em 25/5/1753. para o Bispo de Mariana). pondência é datada de Mariana, a 16 de fevereiro de 1802.
96 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS O ESTATUTO POLÍTICO-IDEOLÓGICO E A PRÁTlC A. . . 97

3.2 O estatuto político-ideol6gico e a prática colonial n~gligencia-se tudo que não uja percepção de tributos; e a ganân-
cia da Coroa, tão crua e cinicamente afirmada, a mercantilização
brutal dos objetivos da colonização, contaminará todo mundo 63 •
A descoberta do ouro na região mediterrânea da Colônia pos-
sibilitou a Portugal não apenas a ocupação de espaço físico antes Transferiu-se para Minas Gerais a determinação mercantilista do
inexplorado, como também a ocupação de espaço político, assina- recolhimento de impostos in natura, aplicada à Colônia desde seus
lando a definitiva "imposição do Estado no Brasil" 60• Até então, pnmórdios, sob a justificativa de que se tratava da
o exercício da política na Colônia se fizera através da participação mais inteligente e fecunda das formas de arrecadação, não apenas
ativa e decisiva de seus próprios habitantes, mais explicitamente dos pelos seus efeitos financeiros, mas principalmente pelos seus resul·
senhores rurais. As leis e as instituições lusitanas para cá transplan- tados econômicos '".
tadas, além de não terem sido adaptadas à nova realidade, não im- Todavia, insiste Dorival Teixeira Vieira,
plicavam comando direto da Coroa: não se contestava a Monar-
quia, não se contestava a figura do Rei, enquanto ainda que aceitas como razoáveis as disC141Íveis idéias sobre a exce-
lência da arrecadação in natura, faltava à Coroa uma organização
cabeça, chefe, pai, representante de Deus na Terra, supremo dis- mercantil que lhe permitisse negociar diretamente a produção colo-
pensador de todas as graças e regulador nato de todas as ativi- nial recolhida sob forma de tributos. Na verdade, o argumento era
dades 61 • usado apenas para justificar certas práticas e adorrrrecer consciên-
cias, porque para os mercantilistas portugueses e, portanto, P_.Ora o
Porém, o efetivo exercício da dominação era transferido e confiado governo, a verdadeira riqueza não era formada pela produçao em
aos proprietários rurais. A estrutura do poder e a burocracia con- si e sim pela renda que a mesma proporcionaria à Coroa 6~.
fundiam-se, assim, com os interesses dos potentados. Com o ouro, Por conseguinte, o fiscalismo e a tributação tornam-se os parâ-
o panorama se altera. O Estado, que sempre estivera presente, metros para a compreensão da realidade histórica mineira no Sete-
agora tratará de impor-se ostensivamente, tarefa que é facilitada centos. A nova diretriz política esboçou-se com a interveniênc:a no
pelo fato de que a realiza em área virgem, que episódio dos Emboabas e se consolidou com a instalação da Capi-
nunca foi de donatário, coisa particular, mas sempre entidade pú-
tania, em 1720. A ação governamental na nova Capitania passou
blica. E é para dirigi-la que se organiza com severidade o poder a ser ideologicamente norteada pelo princípio do dever "conservar
português, fortalecendo o Estado no Brasi/62. os povos em sossego 66, isto é, solidificar o poder no Estado com
o objetivo básico de tributar. Para tanto, a primeira providência I:.:.
A centralização chega ao seu paroxismo, se consagrando, a partir concreta e efetiva se traduziu em minimizar o poder dos potenta- ~L= -
de então, como diretriz política da colonização portuguesa. dos locais, retirando-lhes competências e autoridade. No fundo, a
A nova estrutura de poder assentou-se sobre a potencialidade velha máxima do dividir para governar e para centralizar. Para o
e a fisionomia econômica do novo território. A orientação político- caso específico, também nesse aspecto a tarefa foi suavizada pelas
-administrativa foi traçada tendo como referencial a riqueza que a
região apresentava. Instalou-se nas Minas Gerais um Estado es- '" PRADO JÚNIOR, Caio. Op. cit., p. 335. . .
' sencialmente fiscalista, no qual 6• VIEIRA, Dorival Teixeira. A política financeira. In: HOLAND/., Sergto
Buarque de, dir. História Gua/ da Civilização Brasileira. São Paulo, DIFEL,
1960. t. 1, v. 2, p. 343.
80 Expre.'iSão utilizada por Francisco Iglésias para intitu!ar penetrante artigo, 65 Id., ibid., p. 344.
cujo texto norteou a redaç!lo deste capítulo e cujas afirmativas encampamos 65 A consagrada expressão, aqui utilizada entre aspas, é do Desembargador
.Da integridade. Cf. IcLÉSIA'l, Francisco. Minas e a imposição do Estado no José João Teixeira Coelho no Discurso Preliminar da lnstrucção para o Go-
Brasil. In: Revista de História, São Paulo, out./dez. 1974. n.0 100 (jubilar), ~erno da Capitania de Minas Gerais (p. 403). Neste notável documento,
t. 1, p. 257-73. em outra pa55agem, à mesma página, referindo-se aos encargos do Gov~rna­
61 PilADo JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Conumporâneo. São Paulo, Bra- dor da Capitania, enfatiza: "o objecto de similhantes Empregos he o por os
siliense, 1942. p. 297..., Subditos na preciza necessidade de cumprirem as suas obrigações mutuas para
62 lcLÉSIAS, Francisco. Op. cit., p. 270. que deste modo se promova a felicidade commum".
98 IGREJA, ESTADO E IRI.!ANDADES EM MINAS GERAIS O ESTATUTO POLÍTICQ-IDEOLÓG!CO E A PRÁTICA. • • 99

condições históricas da região. Na Capitania de Minas Gerais, a de criar legislação de circunstâncias, ocasional e casuística, ao sabor
atuação dos potentados não chegava a abalar as estruturas do Es- dos acontecimentos, o que contribuiu para o caos administrativoA q~e q
tado. Os potentados não se chocaram com o Estado, não o desa- caracterizou o processo colonizador em Minas e em toda a Coloma.
fiaram. Ao contrário, o mais correto seria dizer que, cooptados, Portanto, não se estranha que o regime fiscalis.ta introduzido
colaboraram diretamente com e no aparelho burocrático 67. Como tenha gerado permanente repulsa por parte dos mmeradores. O
afirma Laura de Mello e Souza, quadro é visivelmente claro: a primeira metade do século mostra
a Coroa se articulando e negociando com os mineiros as formas de
extremamente forte tm muitos pontos da colônia, o papel desem-
penhado pelos potentados e pelos oligarcas foi, nas Minas, tênue.
tributação; a segunda metade, com uma opção aparentemente de-
A presença marcante do Estado, os olhos vigilantes do fisco, a finida , o acirramento da reação dos mineradores.
... . Os. levantes. em
violência da justiça colocaram, de certa forma, os poderosos num Minas Gerais, no século XVIII, na sua essencta, ttveram ongem
respeitoso segundo plano. Na História ficaram os nomes de Ma- na tributação quase sempre aleatória e discricion~ri~. ~altou à. Me-
nuel Nunes Viana, Pascoal da Silva Guimarães, Domingos Rodri- trópole sensibilidade para perceber, como bem dtstmgum Sylv10 de
gues do Prado, Francisco Amaral Gurgel, Maria da Cruz, todos Vasconcellos, que
eles pertencendo ao momento que antecedeu a instalação dos apa-
relhos de poder, ou sendo seus contemporâneos, habitando o sertão não era propriamente contra o quinto, a que tinha direito a Coroa
longínquo onde raramente chegavam os homens do governo as. por seu domínio sobre as terras, que se rebelava!~ os povos, mas
sim contra a forma de sua cobrança, que nunca pode ser estabele-
Dessa forma, o Estado, sem entraves, se impõe sobre todo o corpo cida de modo acertado e definido 69 •
social. Ao mesmo tempo, cuidou de estabelecer legislação especí-
Mais do que a forma e a instabilidade da cobrança do quinto,
fica que viesse regulamentar a atividade mineratória.
também a multiplicidade de impostos e taxas deve ser mencionada.
Na realidade, a Metrópole delineara, com alguma antecedên- Sobre a Capitania das Minas Gerais pesavam os ônus de tributos
cia, o regime juódico para a exploração da nova riqueza. Desde sobre os direitos de passagem, os direitos de entrada, os dízimos,
os primórdios do século XVII, quando enganosamente o planalto para não falar dos subsídios voluntários e literários e, até mesmo,
sulista prenunciara a existência de ricos veios auríferos na Colônia, de contribuições exigidas para a celebração de bodas reais. Para
procurou-se legislar a respeito. Os princípios esboçados nas Orde- não mencionar também a forma inescrupulosa e, na maioria das
nações consubstanciam-se nos dois primeiros regimentos das terras vezes, violenta, com que a cobrança era realizada, já que a Coroa
mineiras, datados, respectivamente, de 15 de agosto de 1603 e 8 transferira, mediante contrato, esse encargo a particulares, os famo-
de agosto de 1618, e preparam o "Regimento dos Superintendentes, sos contratadores. Em Minas, nunca se estabeleceu uma política
Guardas-Mores e Oficiais Deputados para as Minas de Ouro", ex- tributário-fiscal regular e definida. Ao contrário. Também nesse
pedido em 1702 e que, praticamente, traçou a vida jurídica da ati- aspecto faltou originalidade e bom senso à Metrópole, chegando ao
vidade mineratória durante todo o século. Ressalva-se, no entanto, extremo de, à queda de receita de tributos não lhe ocorrer outra
que a legislação fixada não excluiu a tendência secular portuguesa reação senão a de multiplicar os impostos e taxas 70• O temor
entre seus habitantes se justificava não apenas pelos gravames que
67 "Não há duvidar que do Reino vinham os principais governantes, mas à acarretava mas também pelo casuísmo com que era adotado. Era
verdade inteir~ é que a administração em geral, e as autoridades subalternas impossível' planejar qualquer atividade econômica, sem estar sujeito
saíam dos naturais, nossos avós. O despotismo régio, pois, se aqui não
achasse cúmplices, nada ou pouco poderia ter feito". VASCONCELLOS, Diogo à permanente e insaciável voracidade da tributação.
de. História Média de Minas Gerais. 3. ed. Belo Horizonte, Itatiaia, 1974. Por outro lado se lhe faltou acuidade para sentir a inadequa-
p. 306.
68 MELLO E SouZA, Laura de. Desclassificados do ouro; a pobreza mineira
ção do regime fisc~l imposto, atitude oposta ~ a que se veri~ca
no século XVIII. Rio de Janeiro, Graal, 1982. p. 137-8. Na segunda metade quando se analisam os aparelhos superestrutura1s que o Estado ms-
do século, vários membros da chamada "plutocracia colonial" foram chama-
dos a participar de órgãos administrativos e fiscais. Consulte-se a respeito:
MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa. Rio de Janeiro, Paz e Terra,. 69 VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica. p. 70.
1977, especialmente p. 64, 91-2 e 114. 70 CASTllO, Antônio Barros de. Op. cit., p. 36.
100 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS
O ESTATUTO POLÍTICO-IDEOLÓGICO E A PRÁTICA... lQJ
talou na Capitania. O fisco não se separava da vigpância. Como
os próprios habitantes da Colônia parte dos onerosos encargos com
se viu, a legislação, embora casuística, precedera mesmo ~ p~ópria
a defesa e a ordem pública. As tropas de auxiliares e as de orde-
criação do estatuto político da Capitania. Quando se IniCIO~ a
nanças, recrutadas dentro da própria Colônia, não somente presta-
exploração, o corpo legal já estava fixado. Junto com o fisco
instalou-se também a justiça, embora os atingidos por ela nem
ram relevantes serviços na administração e na manutenção da ordem
pública, como também se constituíram em importante força de
sempre tenham sido os verdadeiros culpados. A manutenção da
guerra, haja vista sua participação nas Campanhas do Sul. Como
ordem impunha-se como premis,sa básica da domina!ão política;
reconheceu Martinho de Mello e Castro, Portugal não dispunha de
por isso, o sossego dos povos so se alca~ç~~a na razao dtr~ta da forças nem meios para a sua própria defesa que, ao mesmo tempo,
segurança, defesa e conservação do terntono. Neste sentido, o
assegurassem e preservassem a integridade dos vastos domínios ul-
bom cuidado para com a disciplina da tropa paga, a regulamenta-
tramarinos. Por isso, dizia o Ministro,
ção e arregimentação dos corpos auxiliares e das milícias destacam-
[\ -se como metas fundamentais dos governadores enviados para a o único meio, que até hoje se tem descoberto e praticado, para
Capitania das Minas, especi<~lmente na segunda metade da centú- ocorrer à sobredita impossibilidade, foi o de fazer servir as mesmas
ria 71• Como salienta Carrato, colônias para a própria e natural defensa (sic) d'ellas ... as prin-
cipaes forças que hão de defendc:r o Brasil são as do mesmo- Brasil
nos anos que se seguiram à Guerra dos Sete Anos, Portugal conhe- (grilos nossos) 7S.
cera o agravamento de sua situação econômica e política e o Mar-
;.;'juês de Pombal fora obrigado a estreit~~ ca~a vez mais os arro~~os
Com essa estratégia, a Coroa via-se reforçada junto à população
~ / a; seu governo forte dando-lhe u~ fezr:o asP_ero de Estado mzllf~­ colonial, pois, ao mesmo tempo que esta aliança lhe facilitava o
nsta e fiscal. Os reflexos desta sztuaçao terwm de fazer-se sentzr funcionamento do aparelho fiscal 74, isentava-a por completo do
na Colônia e, principalmente, em sua mais rica Capitania, as Min~ pagamento de grande parte das tropas aqui sediadas. Isto sem con-
Gerais, traduzindo-se em medidas específicas de reforço do poderto siderar o evidente benefício político auferido com o controle social
policial e do aparato fazendário. Essas medidas haveriam de in- exercido por estas últimas ao agruparem indivíduos de camadas
cluir o reaparelhamento de segurança da Capitania, mediante a inferiores sob a subordinação e comando dos potentaJos locais.
criação de novas tropas de pedestres, aptas a correr com os régulos,
os fascínoras, os vadios, e os quilombos, que então infestavam_ Há que se considerar também que o exercício do mando pela I
todo o território; mas, haveriam antes de tudo e contra tudo (ate Metrópole não poderia ser feito de forma opressiva e despótica.
contra as justiças da Capitania), de fazer funcionar a máquina Prudência e moderação eram atributos indispensáveis exigidos dos \
fiscal da Coroa, de 1al forma que voltassem a ser pagos os impos- administradores enviados para a Colônia, mormente para Minas.
tôSe fõssem coibidos os contrabandos; que se recolhessem exata-
mente os subsídios voluntários e os dos mulatos e crioulos entrados Havia, pois, que jazer sentir a presença do Estado e, ao mesmo
nas Minas; que se controlassem melhor os contratos das passagens tempo, evitar que ela se tornasse importuna e odiosa, . . . tudo
e das entradas dos dízimos; que se pagassem os direitos das crias 12• devia ser feito de modo a que o mando SP revestisse de brandura,
passando quase despercebido e, se possível, introjetando-se nas
Deve-se enfatizar ademais, que as despesas com a defesa da consciências a ponto de se tornar uma necessidade profunda 1G.
terra çulunial, isto é, as despesas militares visando a resguardar e
manter a Colônia integraram as normas de conduta dos governantes 73 Instrução para D. Antônio de Noronha. p. 216. Sobre o papel e a função
mercantilistas, a par de seu ônus financeiro, pelo que se lê nos re- social e política das milícias em Minas Gerais, consulte-se: LIMA JÚNIOR,
gistros sobre despesas militares nos documentos da Fazenda de Augusto de. A Formação Militar. In: - . A Capitania de Minas Gerais.
3. ed. Belo Horizonte, Instituto de História, Letras e Artes, 1965. p. 167-8.
Minas. Nesse particular, Portugal foi mais além, transferindo para 4
7 Veja-se, a propósito, a relação entre o sistema administrativo militar,
implantado em Portugal pela missão Bohm, e a estrutura tributária desen-
\A 71 Consulte-se, em particular, as Instruções para D. Antô!li~ de Noronha volvida a partir de 1761, com a instalação da Real Fazenda, em Lisboa
~ em 1775 (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Braszletro, 1844, t. 6, (Cf. MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa. p. 62-4).
J..:::.-,.r. 215-21) e para o Visconde de Barbacena em 1788. 75 MELLO B SouZA, Laura de. Op. cit., p. 97-8. Em reforço à sua análise,
a autora transcreve trecho da carta do Governador da Capitania de Minas
12 CARRATO, José Pe'rteira. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça.
p. 280. Gerais, D. Rodrigo José de Menezes, sobre a administração de justiça, na
qual se lê: "uma bem calculada e dirigida prudência seria· suficiente em
O ESTATUTO POLfTICO·IDEOLÓOICO E A PRÁTICA. • • 103
102 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS

O quadro esboçado permite que se perceba que o Estado Abso-


O gênio político do administrador ficava, assim, condicionado lutista português não podia prescindir de aliados no processo colo-
a arrecadar os tributos sem comprometer a dominação política. nizador. Desde o início, tornou-se imperativo obter, nos quadros
Mas, como percebeu Laura de Mello e Souza, não é sociais da Colônia, agentes mediadores dos conflitos de interes.~es
arriscado dizer que a adminislruçíiu nas Minas funcionava de modo que, com o passar dos anos, se avolumavam, na medida em que
contradit6rio: para cobrar o imposto, o Estado deveria ser firme também crescia a voracidade do Erário Régio. Porém, essa vora-
e incisivo; mostrando-se presente demais, provocava descontenta- cidade se situava na razão inversa da arrecadação dos impostos e
mentos, e conseqüentemente atrapalhava as cobranças 16• taxas. Como ficou dito, a reação da Metrópole era multiplicar a
Difícil encontrar o equiliôrio, especialmente quando a voracidade tributação quando identificava queda nos seus proventos. Defini-
do Erário Régio aumentava, o que, cronologicamente, coincidiu tivamente, não se amoldava às novas realidades, não se ajustava
com a queda da produção aurífera e diamantífera. Por isso, não aos novos tempos. Ao contrário, mostrava-se cada vez mais insaciá-
é de se surpreender que, além da hostilidade ostensiva, a reação vel. Se a essa atitude acrescentar-se uma política econômica essen-
dos mineiros ao fiscalismo também se tenha feito de forma sub- cialmente restritiva e proibitiva, elevados índices de custo de vida,
-reptícia. O contrabando e a burla na Colônia constituíram-se na um abastecimento deficiente ao lado de um aparelho administrativo
contrapartida da rigidez neomercantilista da Metrópole. A reinci- corrupto e venal, de uma justiça cara e ineficaz, ter-se-á compreen-
dência da legislação que tentou infrutiferamente coibir o contra- dido as razões do espírito de inconformismo e rebeldia que grassava
bando praticado nas Minas Gerais por si" só já é um sintoma da na Colônia, especialmente na Capitania de que se ocupa.
sua inobservância. Para falar apenas no combate ao contrabando A Coroa estava, assim, na delicada situação de manter sua
de ouro, sem desconhecer o que também era praticado com dia- política centralizadora e fiscalista, evitando, porém, que a anarquia
mantes, gado e outros gêneros alimentícios. Com tudo isso, não se e a desordem se generalizassem. Em decorrência, era imprescindível
chegou ao ponto nevrálgico da questão, ou seja, às razões da dis- reforçar o poder do Estado sem, contudo, acirrar os ânimos dos
seminação do contrabando. Eschwege, ao correlacionar o contra- colonos. Paradoxalmente, fortalecia-se o fiscalismo, ao mesmo
bando com a decadência das lavras, ao sugerir formas de combate tempo em que se tentava conter os ventos contestatórios. Alguns
àquela atividade, constata com clarividência que espíritos lúcidos, atentos às contradições e à inviabilidade do pró-
várias foram as tentativas feitas para obstar o contrabando do prio sistema colonial, perceberam o dilema e dificuldade de sua
ouro e do diamante; porém, ao invés de ir às causas e de dar-lhe solução.
remédio, sempre se pretendeu opor um dique à sua ação, apare-
cendo, para isso, muitos planos singulares 77.
Exemplo de administradores reformistas foram o ministro Luís
Pinto de Souza Coutinho, na Metrópole, e o governador D. Ro-
drigo José de Menezes, na Capitania de Minas Gerais. O primeiro
quem governa, para ganhar os corações dos homens e obrigá-los com uma
força voluntária a cumprirem as suas obrigações, sem que parecessem condu- foi considerado, por Kenneth Maxwell,
zidos mais pela própria vontade, e sem que percebessem mão Superior e
estranha que desse os movimentos às suas ações". p. 98, nota 16. de todos os integrantes do governo português . . . o mais cônscio
76 MELLO E SouZA, Laura de. Op. cit., p. 99. Idêntica observação fora ante- do fracasso da política colonial e da necessidade de reformas ime-
riormente apontada por Sylvio de Vasconcellos, que em seu rico ensaio sobre diatas e conciliadoras 78.
a Mineiridade (p. 44) afirma que: "A situação não é, de fato, fácil para a
Coroa, da qual depende, antagonicamente, o estímulo e a contenção.. Precisa
favorecer as minerações, embora medrosa dos mineiros. Sabe perfeitamente
' ouro para fora da Capitania destas Minnas Geraes por quintar". Data: 27
que seu estímulo formula poderosos, imediatamente inimigos na desobediên- de maio de 1753. AEAM- Livro de Registro de Cartas .. . p. 20. Nessa
cia. Contudo, não os pode combater ou eliminar, porque sem eles decaem carta, o secretário, Diogo de Mendonça Corte Real, solicitava um maior
as arrecadações". empenho e ênfase do Bispo marianense nas disposições da Pastoral. Vide
77 EscHwEGE, W. L. Von. Pluro Brasiliensis. São Paulo, Nacional, s. d. v. 1, também o Aviso Régio de 18 de fevereiro de 1752, que aprovava a referida
p. 240. Um dos instrumentos utilizados pela Coroa no combate ao desca- Pastoral, a qual declarava em pecado quem fraudasse o quinto (SILvA, Antô-
minho do ouro fora'm as Pastorais dos bispos. A respeito, consulte-se: "Carta nio Delgado da. Op. cit., v. 1, 1750-1762. Suplemento, p. 125).
(ao Bispo D. Fr. Manuel da Cruz) pela Secretaria de Estado de Ultr_am!'r 78 MAxWELL, Kenneth. Op. cit., p. 233.
sobre a rezervação do peccado de furto, que comettem os que descanunhao
104 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS O ESTATUTO POLÍTICQ-IDEOLÓGICO E A PRÁTICA... 105

O segundo, D. Rodrigo José de Menezes, na sua famosa Exposição manter o domínio político em uma região na qual o espírito de
sobre o estado de decadência da Capitania de Minas Gerais, aler- rebeldia era permanente e, agora, temeroso? Para o caso em tela,
tava para a necessidade de se proteger o minerador, através de um a Coroa encontrou nas irmandades parte da resposta a tais _perple-
fundo especial de empréstimo. Para ele, sem capital para o trabalho
exploratório e para o aperfeiçoamento técnico da extração, seria
~~~
Através delas e com elas, desenvolveu mecanismos de amor-
'
impossível soerguer a atividade mineratória. Demonstrou também tecimento das manifestações sociais que lhe eram hostis. A reli-
a transitoriedade da riqueza de uma nação baseada no ouro, cha- gião nas Minas coloniais, encarnada nas irmandades, não foi fator
mando a atenção para a lucratividade das outras formas de explo- de contestação do Antigo Regime. Ao contrário, o que se verifica
ração econômica. Mas, assim como Luís de Sousa Coutinho, as pro- é que, por intermédio das irmandades, a religião em Minas Gerais
postas de D. Rodrigo José de Menezes não foram levadas adiante; permaneceu sendo um de seus sustentáculos, isto é, para além de
a visão neomercantilista continuava a orientar o cenário político- ser uma forma de consolação dada por Deus aos homens, também
-econômico de Portugal. ali deveria funcionar como
O momento estava a exigir reformas, na vã tentativa de per-
o melhor ou mais seguro meio para conservar a tranqüilidade e
petuação dos laços coloniais. Pensava-se ser possível manter a Co- a subordinação necessária para os povos 8<J.
lônia mediante a prática de certos expedientes administrativos e de
reformas de superfície. Não se compreendia que o próprio sistema As irmandades receberam do Estado o encargo de certas atri-
colonial continha em si os elementos que o contradiziam. Não era buições essenciais do convívio social, particularmente aquelas rela-
a prática do sistema que o condenava, mas sím ele próprio, em tivas ao assistencialismo. Embora se admitisse como norma de bom
sua essência. Além disso, as propostas reformistas, quando apre- governo que
sentadas, não traíam suas raízes absolutistas. Falcon, ao analisar a amparar os pobres é obrigação dos governadores 81,
tendência reformista de certos administradores da época, esclarece
que a verdade é que esse encargo sempre foi confiado às próprias co-
munidades, tanto na Metrópole, como nas demais partes do Im-
tal reformismo, embora se apresente sob uma fachada modemiza- pério lusitano. As irmandades, já se disse, nasceram como forma
dora favorável aos interesses das burguesias mercantil e industrial,
nem por isso deixa de ser fundamentalmente absolutista. Em sua de expressão local, em virtude de consciente omissão do Estado,
essência esse reformismo continua pretendendo, de fato, aumentar cumprindo função social extremamente importante na mutualidade.
os recursos financeiros do Estado através do enriquecimento do Ao subvencioná-las, o Estado detinha o controle de suas ações.
pais, dentro do comportamento tradicional já descrito que é o de Tomem-se, como primeiro exemplo, as agremiações que constituí-
transferir sempre mais recursos para os setores decadentes ou para- ram as Santas Casas de Misericórdia. De início, deve-se constatar
sitários da sociedade. Ao mesmo tempo, porém, esse reformismo a disseminação desse tipo de confraria, e também que o seu fun-
ajuda a prolongar o próprio sistema, embora, a longo prazo, possa
determinar a irrupção da revolução burguesa, ao desencadear cer- cionamento e o seu atendimento variaram enormemente. Enquanto
tos processos de transformação que tendem a fugir cedo ou /urde se exaltam e se conhecem os fastos e benefícios das Misericórdias
ao seu controle, UnuJ reedição da clássica situação do aprendiz de metropolitanas ou mesmo de outras regiões coloniais, como as de
feiticeiro 79 • Salvador, Goa, Macau, Luanda, Rio de Janeiro ou São Paulo, em
Todavia, certas questões permaneciam sem resposta: como Minas Gerais, pelo menos para o século XVIII, o seu papel é pouco
neutralizar as revoltas causadas pelo fisco e pela presença ostensiva
das tropas? Como minimizar as tensões sociais que desequilibra-
' expressivo, no que diz respeito à própria essência de sua atuação,

vam o cotidiano e o próprio sistema colonial? Como continuar a 8Q "Instrucção para D. Fernando José de Portugal, Vice-Rei e Capitão-Gene-
ral de Mar e Terra do Estado do Brasil (1800)". AHU- Cód. 515, fls. 96-8.
81 "Instrucção e Norma que deu o IlJ.mo e Ex.mo Sr. Conde de Bobadella a
79 FALCON, FrancisC() José C. Op. cit., p. 42-3. Sobre o reformismo em Por- seu irmão o preclarissimo Snr. José Antonio Freire de Andrade para o go-
tugal e nas suas possessões ultramarinas, leia-se: NovAIS, Fernando A. Op. verno de Minas, a quem veio succeder pela ausencia de seu irmão, quando
cit., especialmente o cap. 4 - "Política Colonial", p. 213-98. passou ao sul." In: RAPM, ano 1899. v. 4, p. 729.
106 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS O ESTATUTO POLITICO-IDEOLÓOICO E A PRÁTICA... 107

ou seja, o atendimento a enfermos carentes, a enjeitados, a presos, sobre elas arremessava a Metrópole. Ao vislumbrar nas irmandades
assim como o sepultamento de pobres e indigentes. Repare-se ~e um importante aliado, o Estado lançou mão de vários estratagemas
somente nos últimos anos do século XVIII, mais precisamente em para obter o seu apoio, um dos quais, o essencial, o auxílio finan-
fevereiro de 1795, é que se instituiu uma roda dos expostos na ceiro. Se antes o Estado já as reconhecia e legitimava, agora ele
Santa Casa de Misericórdia de Vila Rica 82• Não é difícil imagínar servirá de êmulo para o seu desenvolvimento. Só que um desen-
a lacuna até então existente se se atenta para a especificidade das volvimento sob controle, debaixo de vigilância constante.
relações sociais da região, onde o número de crianças desampara- Na ilusão de que o Estado finalmente corria em seu socorro
das certamente era elevado 83• E isto para se ficar restrito à capital por ver nelas a sua contribuição para a propagação da fé, para a
da Capitania. De lá Critilo lamentava a sorte dos desassistidos: manutenção do culto cristão e para o assistencialismo social, as ir-
" ... , sem um remédio, mandades, na sociedade mineradora que se consolidava, tomaram-
sem fazerem despesa em um só caldo, -se presa dos tentáculos do Estado Absolutista, o qual, mediante o
sem sábio director, sem sacramentos, repasse de recursos financeiros e ajudas esporádicas, garantiu um
sem a vela na mão, na dura terra, aliado que lhe era indispensável. Todavia, esses auxílios não podem
estes pobres acabam seus trabalhos" 84 • ser vistos como excepcionalidade. Ao invés, eles se explicam no
mesmo quadro político-tributário que vem sendo delineado. A
Pouco mais tarde, Saint-Hilaire foi mais explícito na constata-
ção de que questão se relaciona com os chamados dízimos eclesiásticos 86, os
quais, os reis portugueses, na qualidade de Grão-Mestres da Ordem
existe em Vila Rica um hospital civil mantido pela irmandade da de Cristo, se julgaram no direito e com o encargo de arrecadar,
Misericórdia; mas esle estabelecimento apenas atesta a mais deplo- com o propósito de utilizá-los na subvenção do culto. Mas, como
rável das negligências. Não é para lamentar que na capital de- uma
região que se diz cristã, e onde tantas somas se despendem para
já se apontou, na prática, nunca houve distinção entre as rendas
construir igrejas inúteis, não se tenha ainda pensado em oferecer auferidas pela Coroa, isto é, rendas do Estado e aquelas referentes
um asilo conveniente à pobreza sofredora? E se os particulares aos aludidos dízimos. Como se tal já não bastasse, utilizou-se de
são tão indiferentes ao cumprimento desse dever, não é para es- outra prática que trouxe para a Colônia maiores desvantagens ainda.
pantar que os governos não tenham tomado a menor disposição Ocorreu que, ao contrário da Metrópole, onde as contribuições do
para suprir o seu pouco zelo? 85
dízimo eclesiástico se faziam diretamente junto às instituições reli- f (
Por isso, repita-se, nas Minas Gerais, pertencer a uma irmandade giosas, na Colônia, era o Rei, através de contratadores, que recolhia
era condição indispensável, mesmo depois da morte, pois nem todos o tributo, responsabilizando-se para com ele prover o sustento do
possuíam sepultamento garantido. Daí, a sua grande relevância culto e do clero. Em conseqüência, o clero colonial podia ser con-
histórica e social na região. Daí os olhares atentos e diligentes que siderado integrante dos quadros do funcionalismo público. Como
diz Gorender,
82 LoPES, Francisco Antônio. Palácios de Vila Rica. p. 188. se esta circunstância já era suficiente para conferir ao dízimo um
83 "S importante lembrar que o número de crianças desamparadas no decor-
rer do século XVIII deveria ter sido muito grande, considerando-se as seguin- caráter fiscal, acresce ainda que, atingindo sua cobrança avultadas
tes determinantes: promiscuidade da população; feição aventureira da mine- somas, não teve a Coroa escrúpulo em empregar parte dela, talvez
ração; alto número de uniões livres; abuso sexual constante dos senhores a maior, em finalidades diversas das eclesiásticas, como qualquer
sobre as escravas pretas e mulatas; distinção infamante entre 'filho legítimo receita que devesse cobrir despesas do Estado 87 •
e ilegítimo' - o que só muito recentemente foi abolido pela Constituição
Brasileira e, conseqüentemente, pelos cartórios de registro civil do Brasil -
além de várias outras causas." SALLES, Fritz Teixeira de. Associações reli- 86 Na Colônia, os dízimos eclesiásticos incidiam basicamente sobre produtos
giosas no ciclo do ouro. p. 85. agrícolas e sobre o gado vacum e cavalar, devendo ser utilizados no paga-
84 GONZAGA, Tomás Antônio. Poesias. Cartas Chilenas. 4a. Carta. Versos mento de côngruas aos vigários, na construção e/ou reparo de templos e na
179/83. Ed. Rodrigues Lapa p. 227. compra de ornamentos e alfaias. Para estudo mais exaustivo, consulte-se a
85 SATNT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e erudita tese de Dom Oscar de Oliveira, Os Dízimos Eclesiásticos do Brasil.
Minas Gerais. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia/EDUSP, 1975. p. 72. 87 GoRENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo, Atica, 1978. p. 371.
108 IGREJA, ESTADO E IRM.o\NDADES EM MINAS GERAIS O ESTATUTO POLÍTICO-IDEOLÓGICO E A PRÁTICA... 109
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Assim, o que se coloca não é tanto a cobrança em si, mas a apli- gime, como, por exemplo, a escravidão. ~ verdade que se encon-
cação do tributo arrecadado. Importante tirar duas ilações=_2!i- tram irmandades preocupadas em suavizar os maus tratos recebidos
meiramente que, na realidade, as ajudas dadas pela Cõroaas Irman- pelos seus membros, preocupadas em cooperar ou se responsabilizar
dades não a desfalcavam de recursos destinados a outros setores, diretamente pela alforria de seus integrantes. Mas, não se encon-
mas sim que provinham de fonte própria. Em segundo lugar, notar tram irmandades que tenham contestado a instituição escravidão ou \
que na Colônia, especialmente em Minas Gerais, onde inexistiam que tenham propugnado pela abolição da escravatura, embora elas
ordens religiosas, o dízimo eclesiástico adquiriu caráter fiscal, pois tenham sido foro privilegiado - talvez o único - para reuniões e
era tributo cobrado nos mesmos moldes dos demais. debates no período colonial 90• Assim, quando as contradições do
Por essa razão, quando o Estado procurou aumentar sua ação sistema colonial levaram ao seu esboroamento, não se identifica, em
junto às irmandades, ele o fez com justificadas reservas. Tinham momento algum, a participação daquelas comunidades. Presas ao
claro as autoridade~ metropolitanas que Estado, as irmandades passaram ao largo dos movimentos separa-
tistas.
a história do absolutismo não é apenas o registro duma infinda Aliás, de há muito, também as irmandades apresentavam sin-
liberdade do governante, mas também uma série de conquistas das
formações políticas espontâneas que se defrontavam, e niío raro
tomas de decadência. Longe iam os tempos em que o luxo, a
vantajosamente, com os senhores supremos pompa e o aparato caracterizavam seus templos e atos religiosos.
Pouco a pouco, o ideal religioso identificado com o Concílio de
e que, se na Europa, tal fato se deu em relação às corporações de Trento declinava como forma de consolação e conforto espirituais.
ofício e às comunas, entre nós, tal se verificava com as irmanda- Distante estava aquela época em que os irmãos negros paroquianos
des 88• Cumpria, pois, mantê-las sob vigilância e controle, na sus- de Ouro Preto,
peita de que elas viessem a representar, ao invés de aliados, focos
de rebeldia, especialmente quando se evidenciava em Minas Gerais não só pelo Catholico zelo, e excessivos dispendios, com que (para
um maior número de irmandades de negros. mayor culto, e veneração do verdadeiro Deos, e exaltação de sua
Santa Fé) edificão sumptuosos Templos, e erigem Altares, guar-
Essas associações, na Colônia, sofriam, assim, uma fiscalização necendo-os de custosas fabricas, e adornando-os de primorosos, e
mais rigorosa por parte da Metrópole. A propósito, Julita Scarano riquíssimos ornamentos 91.
declara que,
Agora o que se via eram as constantes suspensões de festas e ceri-
aqui no Brasil, sobretudo na região das Minas, o peso do regalismo mônias litúrgicas face às dificuldades financeiras. Alguns exemplos -~
se faz sentir com grande intensidade. Em Portugal a situação é podem ser assinalados, como o da Ordem Terceira de Nossa Se-
diversa, não havendo aparentemente o perigo de as irmandades se nhora do Carmo, de Vila Rica, que, nos últimos anos do século ,
transformarem em focos de rebelião. Além de acarretar ameaças
de sedição, poderiam as confrarias representar perigo para a Fa- XVIII e início do seguinte, segundo Curt Lange, extinguiu ou se
zenda Real e o fisco 89. eximiu de participar de ofícios religiosos devido a dificuldades fi-
nanceiras 92 • O mesmo problema enfrentava sua homônima da Vila
Embora a sua incidência fosse maior exatamente quando as idéias de Sabará, pelo que se depreende da leitura de seus livros de termos
de autonomia política foram mais fortes e acentuadas, o temor das de mesa 93• Ora, se nas ordens terceiras, que abrigavam as prin-
autoridades era infundado, pois que essas associações nunca che-
gavam a colocar em xeque as instituições básicas do Antigo Re-
90 ScARANo, Julita. Op. cit., p. 83. Em certa passagem, a autora chega mesmo
a ser categórica: "pelo que nos é dado conhecer as confrarias de pretos de
88 MACHADO, Lourival Gomes. O barroco e o despotismo. In: - . Barroco Minas Gerais nunca tomavam posição contrária ao princípio da escravidão"
Mineiro. 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 1973. p. 134. (ld., ibid.).
89 ScARANO, Julita. Op. cit., p. 21. Consulte-se também: ACL - Co!. de 91 A referência diz respeito às célebres comemorações do Triunfo Eucarístico.
Legislação Portuguesa, de Francisco M. Trigoso de Aragão Morato. v. 26, Cf. ÁVILA, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas. v. I, p. 279-80.
doc. 186 (Aviso de Martínho de Melo e Castro para a Mesa da Consciência 92 I.ANGE, F. Curt. História da música nas irmandades de Vila Rica. v. 1,
e Ordens, em 7/3/1794); AHU - C6d. 243, fls. 59v-60 (Carta do Con- p. 210-1.
selho Ultramarino para o Bispo de Mariana, em 4/5/1807). 93 PASSOS, Zoroastro Vianna. Em torno da história do Sabará. v. 1, p. 55-6.
110 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS O ESTATUTO POLÍTICü-lDEOLÓGICO E A PRÁTICA... 111

cipais fortunas da Capitania a situ~ç~o er~ essa, .o que não diz:r nas associações mais proeminentes 97• Manifestava-se em Minas
das irmandades dos segmentos soctats mats humtldes? A propo- fenômeno que, desde meados do século, atingia as irmandades lito-
sito, sejam lembradas também as providências tomadas por uman- râneas 98• Assim, medidas casuísticas eram tomadas na busca do
dades como a do Rosário, de Sabará, que chega ao extremo de equilíbrio orçamentário das instituições. Contudo, tais medidas ge-
suspe~der a festa de sua padroeira devido à sua confessada deca- ravam, ao mesmo tempo, soluções paliativas e aguçavam os confli-
dência 94• tos. E o que ocorreu, por exemplo, quando as irmandades, na de-
Os tempos agora eram outros. Os ventos da decadência tam- sesperada tentativa de diminuir e conter suas õespesas, partiram de
bém açoitavam as irmandades. Diminuía a vida artístico-cultural, um lado, em certos casos, para uma prática de paulatina substitui-
ção dos párocos por capelães, e, de outro, para a redução do número
com a restrição à contratação de músicos, artistas e artífice~, ~os
de capelães 99. Atingidos em seus interesses, os vigários colados de
quais terão dificuldades financeiras até me~~o para, sua so~revtven­ todo o bispado revidaram, representando ao Príncipe Regente para
cia. .e, o caso ilustrativo do importante mustco Jose Joaqmm Eme- denunciar o
rico Lobo de Mesquita que, em 1790, uma vez dispensado de ~uas
funções na Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, do Ar- estado de relaxação a que tem chegado a grande quantidade de
raial do Tejuco tem dificuldades até para o pagamento de aluguel, Ordens Terceiras, Irmandades e Confrarias
e, não tendo e~contrado outras ofertas de emprego, é forç~do a estabelecidas na Capitania, apontando-as como corpos prejudiciais
emigrar 9 5 • Nesta ocasião, à Igreja, ao Estado, ao Erário Régio, ao Padroado e aos povos 100•
as atividades artísticas em toda a região mineira não passavam de Mas não se pense que o declínio das irmandades era fenômeno
uma pálida lembrança dos tempos áureos das const:~ções.. Cessava próprio das Minas Gerais. Na realidade, ele se estendia ao além-
0 ciclo artístico mineiro. Não pela morte dos gemms artrstas, mas
porque o poder econômico das instituições patrocinadoras da arte
97 Pelos termos das mesas de 11/10 e 20/11/1803, a Ordem Terceira de
estava definitivamente abalado 96 • Nossa Senhora do Carmo, de Sabará, reduz consideravelmente as esmolas
exigidas para profissão em suas fileiras, bem como para os cargos de mesa
A produção artística que viria a se constituir na glória da .região (Cf. PASSOS, Zoroastro Vianna. Em torno da história do Sabará. v. 1, p.
mineradora vivia seu estertor, provocado pelo ocaso das uman- 50·2). A bem da verdade, é possível encontrar, muito antes, casos isolados
dades. de irmandades que propuseram reforma nos valores das suas taxas e contri-
buições, como acontece com a Irmandade de São Miguel e Almas, da matriz
Por outro lado, internamente, tornava-se cada vez mais difícil de Nossa Senhora de Nazaré, da freguesia do Inficionado, em mesa de 28
manter a estabilidade do quadro de associados. O falecimento dos de agosto de 1765, que toma essa medida, "attendendo a decadencia, e
irmãos, paralelamente às deficiências de novas admissões, ~oqoía mizeria da terra, ao q muitos Irmaons Repugnão aceitar Seus cargos p.r
conta do excesso" (Cf. AEAM - Compromisso da Irmandade, fl. 1).
os quadros dos sodalícios. O desinteresse, a falta de en~ustasmo, 98 A Santa Casa de Misericórdia, de Salvador (Bahia), teve enorme dificul-
aliados ao ônus do pagamento de taxas de entradas, anuats e men- dade para preencher o cargo de Provedor, no ano de 1754, devido ao ônus
salidades contribuíam para o estado de franco desprestígio que se financeiro que acarretava, sendo necessária a interveniência do Vice-Rei
para resolver o impasse (Cf. RussELL-Wooo, A. J. R. Mobilidade Social na
acercou das irmandades. Na virada do século, um verdadeiro tour Bahia Colonial. In: Revi.ftu Brusileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte,
de force se fez notar com vistas ao soerguimento das irmandades, jul. 1969. n.0 27, p. 182).
99 AEAM - Livro de Termos de Eleições da Irmandade de São Miguel e
como, por exemplo, o estabelecimento da redução das t~xações e Almas, da freguesia de N. Sra. da Piedade de Campolide (Borda do Campo)
contribuições internas, seja para os cargos de mesa, seJa para a 1753/1863. Termo de 812/1777. A Mesa dispensou o Pároco face ao
simples filiação. Com isso, procurava-se tornar. atr~:n.tes o,s postos ônus resultante do pagamento de missas e assentou contratar um capelão por
de direção, cujo preenchimento era cada vez mats diftctl, ate mesmo um ano para ''dizer as Missas", pagando-se por missa celebrada, bem como
pelo acompanhamento de defuntos e pela visita a moribundos e enfermos.
Cf. também AEAM - Livro ( 1.0 ) de Atas da Irmandade de N. Sra. do
94 PASSOS, Zoroastro Vianna. Em torno da história do Sabará; ~· 2, p. 306. Rosário, de Mariana (1747/ 1856). Termo de 20/1/1807, fls. 101v-2.
95 BARBOSA, Elmer Corrêa. O Ciclo do Ouro. O tempo e a muszca do barroco too ACL - Coleção de Legislação Portuguesa, de Francisco M. Trigoso de
católico. Rio de Janéiro, PUC/Xerox, 1978. p. 54. Aragão Morato. v. 26, doc. 186. Aviso do Ministro Martinho de Melo e
96 BARBOSA, Elmer Corrêa. Op. cit., p. 54. Castro para a Mesa da Consciência e Ordens, em 7 de março de 1794.
112 IGREJA, ESTAbo E IRMANDADES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 113

-mar. Consultem-se as incontáveis provisões régias passadas às ir- Apesar de tudo, o que cumpre assinalar é que a Coroa não
mandades da Metrópole e constatar-se-á que as dificuldades finan- transigiu em sua jurisdição e em seu poder de interveniência nos
ceiras também ali se faziam presentes e de forma bem marcante, assuntos religiosos. A prática colonial demonstrou, em demasia,
gerando, como solução mais freqüente, a anexação e a fusão ~om como tal se realizava, tomando fonna mais incisiva no momento em
outra confraria existente na mesma igreja ou na mesma locahda- que o regime absolutista se fortaleceu e se tornou onipresente. Tam-
de -ro1. Não só em Portugal. Também na França, sobretudo após bém nessa matéria o Regalismo se fez sentir. Inexoravelmente. Vigi-
1750, a instituição declinava, face ao combate sistemático do~ en?i- lantemente. Por isso, as irmandades estiveram sob a tutela do
clopedistas e dos jansenistas. Em fevereiro de 1776, um edtto m- Estado, pois
terditou as confrarias de gentes de ofício. Em 14 de junho de 1791, q assim como he da Real Authoridade Conceder estas Associaçoens
uma lei proposta por Le Chapelier, em nome do liberalismo econô- licitas, caritativas, e benemeritas, he tambem da mesma Suprema
mico e da liberdade de trabalho, proibia a reunião e a associação Authoridade extingui/as nos cazos de degeneração ou de ordem con-
de profissionais do mesmo ofício, vale dizer, punha fim às. c~rpo­ traria ao fim da sua admissão 104.
rações de ofício. O Decreto de 18 de agosto de 1792 supnmm as
confrarias e outras associações de caridade. Por último, em 1809, A análise de como essa tutela foi exercida, isto é, o estudo das
os bens não-alienáveis dessas associações foram atribuídos às fá- formas e dos instrumentos utilizados pelo Estado para se impor às
irmandades é o que se pretende demonstrar a seguir:
bricas das igrejas. Desse modo, tudo levava a crer que a queda. do
Estado Absolutista levava consigo as innandades e as confranas, O Compromisso de hua Irmandade não hé outra algua couza
instituições com as quais se identificara tão integralmente. mais do que estatutos ou Ley inviolavel, a que se subgeitão os
que a buscão, e Se alistão por Irmãons nos L. 08 de/la 10~.
Por isso, a leitura desses Compromissos torna-se a fonte mais rica . . J.
3.3 As formas e os mecanismos de controle 11
para o estudo das formas e mecanismos de controle exercidos pela 1~::J.. f
Coroa e pelos Bispados sobre as innandades • Como foi men-
106
O texto das Ordenações do Reino que tratava da j~sdi,ção .e cionado, a constituição formal e organizada de uma irmandade se
da competência de foro sobre as irmandades e confranas, a pn-
dava no momento em que seus associados, normalmente, por inter-
meira leitura, parecia não dar margem a dúvidas. Com efeito,. re-
médio da mesa diretora, solicitavam à autoridade competente o
zava o referido documento que aquelas associações fundadas e ms- alvará de confirmação de seu compromisso. Segundo recomenda-
tituídas por autoridades e consentimento de prelados somente a
estes deveriam estar sujeitas, ao pas3o que aquelas que se mos-
e temporal, e assim dentro destes Reynos, como f6ra delles, nas lndias Orien-
trassem fundadas por leigos submeter-se-iam às autoridades secula- taes, Estado do Brazil, e mais partes Ultramarinas do Senhorio desta Co-
res 102. g bem verdade que o texto legal fora pensado e se aplicava rôa ..." (Regimento do Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens. Pará-
mais especificamente às capelas, hospitais e albergarias. As confra- grafo 16. 23/8/1608). In: MoRAro, Francisco M. Trigoso de Aragão. Op.
cit., v. 5, doc. 17, parágrafo 16.
rias vinham em segundo plano. O mesmo acontece quando se re- 4
10 AHUIMG - Doc. Av. Caixa 92 - Parecer do Conselho Ultramarino
corre ao Regimento do Tribunal da Mesa da Consciência e Or- datado de 14/6/1805, aprovando e confirmando o Compromisso !la Oruem
dens; embora o alcance da sua jurisdição incluísse essas últimas Terceira de São Francisco de Paula, de Vila Rica. Vide também: AHU -
Cód. 243, fls. 59v-60.
associações, nele não se fazia referência explícita a elas 103•
105 ANTT - Casa Forte. Compromisso da Irmandade de N. Senhora da
Boa Morte dos Homens Pardos, da freguesia de N. Sra. da Conceição de
101 ANTT - Chancelaria Real de D. Maria I - Comuns; Livro 55, fi. 222; Antonio Dias, Vila Rica. s. d. (Preâmbulo).
Livro 38, fi. 1; Livro 56, fi. 301; Livro 37, fi. 325; Livro 71, fi. 274v. e !06 Do que foi possível consultar em arquivos brasileiros e portugueses em ,· '~· 1_
Livro 63, fi. 238v. Curiosamente, a maior parte das irmandades requerentes termos de Compromissos, Caio C. Boschi elaborou um Quadro Geral, a ser ~i""'
desse tipo de licença eram da invocação do Sa_ntíssimo Sacramento. publicado no primeiro número da Revista do Arquivo Nacional, do Rio de
102 Ordenação do Reino. Livro I, Título 62, Paragrafo 39, p. 237 da ed: 1850. Janei:-o (no prelo). (Cf. "os históricos compromissos mineiros: riqueza e
103 "A este tribunal pertence conforme as ditas Bulias todos os negoc10s das potencialidade de uma espécie documental".) .1:: mesmo impossível ter-se uma
Tres Ordens Milital'CS do Nosso Jesus Christo, Santiago da Espada, e S.. ~ento boa compreensão das irmandades sem que se processe antes a análise dos
de Avis e ... tudo o que convem ao seu bom estado, e governo no espmtual, compromissos, tarefa essa que ainda está para ser efetuada.
114 IGREJA, EST~ E IRMANDADES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 115

varo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, dentro jeição das irmandades se fizesse junto ao Ordinário, se bem que
do melhor estilo tridentino de entender as irmandades a serviço do l tal atitude implicasse muito mais em estabelecer normas de com-
culto divino e da veneração dos santos, a importância e a necessi- portamento para a vida espiritual das irmandades. Assim, dos alva-
dade dos compromissos se justificavam no sentido de coibir abusos rás de confirmação de compromissos emitidos pelos bispos do Rio
e "juramentos indiscretos" perpetrados pelos irmãos e que, por isso, de Janeiro para as irmandades mineiras na primeira metade do
se obrigavam século, as poucas restrições, via de regra, dizem respeito à obriga-
t toriedade das eleições das mesas diretoras serem assistidas pelos
a pensões onerosas, e talvez indecentes, de que .(Jeos nosso Senhor
e os Santos não são servidos 101. vigários, na qualidade de "testemunha qualificada", ao impedimento
do capelão praticar ofícios religiosos sem a licença do vigário, à
Para tanto, conforme estabelecia o texto das Ordenações, as mesas preservação da supremacia do vigário sobre os capelães, à necessi-
diretoras deveriam submeter seus estatutos à' aprovação das auto- dade de licença prévia para a realização de festas religiosas, à atri-
ridades religiosas (quando a irmandade era de natureza eclesiás- buição aos padres visitadores de se encarregarem de "observar" as
tica) ou das autoridades civis (quando era de natureza secular). contas das irmandades, à distinção entre as esmolas recolhidas du-
Para o caso específico da Capitania de Minas Gerais, a adoção rante as missas das demais coletadas pelas irmandades, ao resguardo
dessa providência variou de acordo com a própria evolução da da competência jurídica dos bispos sobre a regulamentação das
política religiosa metropolitana. Assim, até a criação do Bispado covas e sepulturas das igrejas e, last but not least, à obrigatoriedade
de Mariana, não se determinava uma política de efetiva dependên- de lhes serem submetidos os pedidos de acréscimo ou modificações
no texto dos compromissos.
6_/I
cia das associações a uma autoridade, seja eclesiástica, seja secular.
Em sua maior parte, pela documentação hoje conhecida a esse res- Ademais, enquanto as autoridades metropolitanas se omitiam,
peito, na primeira metade do século XVIII, a subordinação se fazia as eclesiásticas, ao contrário, não se descuidavam em conquistar
junto às autoridades eclesiásticas, especialmente junto aos Visita- novas subordinações. Quando se criou o Bispado de Mariana, antes
dores Eclesiásticos enviados à Capitania das Minas pelo Bispado mesmo que o titular do trono episcopal tomasse assento, seu inte-
do Rio de Janeiro. Em toda a documentação consultada, tanto nos rino, o Proviso r e Vigário Geral Lourenço José de Queirós Coimbra,
arquivos nacionais, como nos portugueses, não se encontraram pe- no afã de organizar a Câmara Eclesiástica, criou livro próprio para
didos de ereção dirigidos a autoridades régias. Não se deparou com o lançamento de
confirmações expedidas por autoridades leigas. Contudo, essa cons-
termos de Sulgeiçam, e obrigaçam de todas e quaisquer irmandades
tatação não deve implicar enquadrá-las como irmandades eclesiás- que por authoridade ordinaria se erigirem, e Confirmarem. Como
ticas, como no texto legal, pois que r"i'J eram essas as únicas a também de alguas Capelas que pela mesma authoridade se edifi-
sofrerem a intervenção de Visitadores Eclesiásticos. Também as carem ou Criarem de novo com algua obrigaçam a mesma Juris-
irmandades seculares, quando dos atos de visita, deveriam sujeitar- diçam ... 109•
-se a elas, porquanto aos Visitadores era delegado o poder de fazer Medida cautelosa e preventiva, de relativo sucesso. :E: bem
emendas no que respeitasse ao espiritual 1os. verdade que se adotaram expedientes, no mínimo, coercitivos e
Porém, a explicação fund11mental talvez esteja muito mais na constrangedores, mas de qualquer forma sintomáticos de que a
inexistência de uma política religiosa claramente delineada por parte Igreja procurou ocupar espaço com o novo Bispado. Verifica-se
da Metrópole. Era natural, naqueles primeiros tempos, que a su- que, nos primeiros anos, os termos eram feitos nas próprias locali-

107 VIDE, O. Sebastião Monteiro da. Op. cit., Título


LX, Parágrafo 867. p. 304.
' dades onde estavam constituídas as irmandades, durante visita epis-
copal ou de seus emissários, que se deslocavam de povoado em
108 " ..• ordenamos, que os nossos Visitadores, nas
Igrejas, em que estão fun- povoado, acompanhados do escrivão da Câmara Eclesiástica, res-
dadas (as irmandades seculares), e em acto de Visita possão ver seus Esta- ponsável pelo lançamento dos termos que, em certos casos, che-
tutos, e Compromissos, para que tendo na sobredita forma alguns abusos,
ou obrigações menos decentes, e pouco convenientes ao serviço de Deos, e
dos Santos, as fação emendar, (dando-nos disso conta, sendo necessário) ... " AEAM - Câmara Eclesiástica. Livro de licenças para fundação de ir-
l09
Constituições Primwas do Arcebispado da Bahia. parágrafo 868, p. 304-5. mandades e algumas capelas (7/5/1748)- 2/6/1795).
116 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 117

gava mesmo a assinar não só o termo, como era seu dever. mas a trópole, para sua apreciação, ainda que, e especialmente se, se tra-
própria solicitação de sujeição, em nome dos interessados 110• Com ! tasse de documento anteriormente aprovado pelo Ordinário m.
a adesão, as irmandades passam a gozar Ao mesmo tempo, com a estratificação da sociedade registrada
das graças e privilégios que tem as Irmandades que São Canonica- nessa ocasião e a conseqüente difusão das ordens terceiras, perce-
mente erectas não, obstante Serem Pessoas Leygas, e Siculares ... be-se a utilização de expediente paralelo, cujos resultados também
Se obrigam a dar contas da receyta e despeza, que nella ouver, implicavam na diminuição do poder de influência e da atuação da
parante os Ex."',. ER."',. Perlados deste Bispado, e seus Vizitado- autoridade episcopal. Trata-se da já assinalada prática, pelas ordens
res; e a comprir todas as Couzas que nas vezitas lhes for mandado terceiras, de submeterem seus estatutos diretamente aos superiores
p ... bem da dictta sua lrmand.• ... perante os Seus Ministros divi-
dir, todas e quaisquer comtorvesias, ou dependencias que em qual-
da ordem religiosa a que se filiavam, existindo casos até mesmo de
quer tempo possa ter . .. que renunciava o Juizo do seu foro 111• pedido de aprovação fora da própria Colônia, num claro desprezo
pelas autoridades eclesiásticas coloniais. É o que se deu, por exem-
Por isso mesmo, dezenove anos após o seu termo de abertura, 114 plo, com a Ordem Terceira de São Francisco de Assis, de Vila Rica,
irmandades tinham seus nomes registrados nesse livro e, pelo menos que recorreu diretamente a Madri, através de seus procuradores nas
em tese, passado a se submeter à autoridade ordinária. Somente até capitais européias 113•
1751, cerca de 48% delas já tinham sido registradas.
Mas, incorreria em ledo engano quem supusesse que essa ade- Apesar de tudo, um ponto não se colocava em dúvida: a im-
são era feita com fé. Ao contrário, à medida que a Coroa passou posição da autoridade e da jurisdição reais sobre as irmandades,
a exercer uma presença mais direta sobre a Capitania, as irmanda- independente de suas conotações tipológicas. Cumpre notar, final-
des não ficariam de fora dessa ação. Por isso, diante da presença mente, que esse comportamento não era peculiar à região minera-
e da fiscalização cada vez maior da Metrópole, mormente após a dora. ~ sempre oportuno salientar que a tão propalada singulari-
divulgação, em 8 de março de 1765, da provisão expedida pela dade da história mineira não deve ser exacerbada, sob pena de se
Mesa da Consciência e Ordens, notificando-as sobre a obrigatorie- incorrer em graves erros de interpretação. Se se lançar os olhos
dade de elas confirmarem seus compromissos naquele tribunal, as sobre a vida interna das irmandades metropolitanas coevas consta-
irmandades se definiram claramente por subordinarem-se à real tar-se-á que outro não era o tratamento dispensado. Também as ir-
jurisdição, renegando a filiação anterior, quando era o caso. Sob mandades de Portugal se sujeitavam a idênticas restrições compro-
'LU o pretexto de reformar seus compromissos, elas iam se submetendo missais. Também lá, quando se pretendia fazer reforma em seu
ao poder régio, passando a dar conta de seus atos ao juíw secular. compromisso apenas na presença das
A partir de meados do século, raras eram as irmandades que se
sujeitaram ao poder do Ordinário. Quando tal acontecia, não era
112 Exemplo é o que se encontra no Compromisso da Irmandade de São José
incomum as autoridades régias argüirem a nulidaãe e a incompe- dos Homens Pardos, de Vila Rica, intimada pela Provisão de 8/ 3/ 1756 a
tência das autoridades eclesiásticas. Dessa forma, a Mesa da Cons- apresentá-lo à Mesa da Consciência e Ordens, embora tivesse sido aprovado
ciência e Ordens passou a exercer efetivo controle sobre as irmanda- pelo Bispo do Rio de Janeiro em 1730. Cf. TluNOADE, R., Côn. A Igreja
des. Na década de 50, foram incontáveis as provisões emanadas de São José, em Ouro Preto. In: Revista do Patrimônio Histórico e .Artístico
daquele tribunal, exigindo a remessa de compromissos para a Me- Nacional, Rio de Janeiro, 1956, n.0 13, p. 125-8.
113 Sobre a existência e a ação dos chamados Procuradores de irmandades
mineiras na Europa, especialmente em Lisboa, consulte-se: AHUIMG -
no Livro de licenças citado, p. 7, termo referente à Irmandade de São Bene- Doc. Avulsos Caixa 85 (1807); idem, Caixa 71 (6/ 4/1805); idem,
dito dos Pretos, da freguesia do Sumidouro. Requerimentos 1802 (490) - (23/7/ 1802). Quanto à referida solicitação,
m Idem, ibidem, p. 2. A propósito, lembre-se aqui episódio de disputa de esta tinha o claro sentido de manter a autonomia da ordem terceira em
jurisdição entre o primeiro Bispo de Mariana, D. Fr. Manuel da Cruz, e o relação não somente ao Provincial da Ordem no Rio de Janeiro, como tam-
Ouvidor Geral da Comarca de Vila Rica, Caetano da Costa Matoso, no qual bém da própria autcridade do Ordinário. O expediente teve excelente resul- )
foi solicitada a intervenção régia, a fim de que este último "deixe ver os tado, pois o célebre Fr. Pedro Juan de Molina, então a autoridade máxima
Livros das Irmandades aos R.doe Ministros Eccleziasticos para delles se tira- dos franciscanos, além de ter atendido ao que lhe fora solicitado, ainda
rem as clarezas necessárias para o conhecimento da natureza dellas" (Ordem concedeu privilégios e favores espirituais à Ordem Terceira vilarriquense.
régia ao Bispo de Mariana: de 10/ 5/ 1753) . .A.E.AM- Livro de Registro de Cf. TluNoADE, Raimundo, Côn. São Francisco dt .Assis de Ouro Preto. p.
Cartas ... p. 18v. 26-39 e 45.
118 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 119

pessoas mais principaes da irmandade, e as que tiverem servido seus pareceres 116• Além do mais, quando ocorria de se fazerem
na Mesa, restrições ao texto dos capítulos compromissais, a proximidade
dessas autoridades velava pelo fiel e pronto cumprimento dos repa-
a provisão era taxativa em afirmar que tais inovações não teriaJ? ros recomendados nos alvarás de confirmação. Neste primeiro mo-
validade sem a confirmação régia ll4. Mas, em todas as oportum- mento, o processo era sumário e, por isso mesmo, restringia-se à
dades, El-Rei aparentava magnanimidade e compreensão. Invaria- possibilidade de burla ou desobediência por parte das irmandades.
velmente, fazia constar das provisões de confirmação dos compro-
missos a sua repreensão pela anterior sujeição à autoridade in- Com a governação pombalina, instalou-se um caminho mais
competente do Ordinário, mas, ao mesmo tempo, reconhecia a tortuoso e que trouxe inúmeros inconvenientes, tanto para as ir-
ignorância que os irmãos diziam ter da .real jurisdiç.ão sobre seus mandades, como para a própria Coroa. Primeiramente, a distância
grêmios e, por isso, perdoava-lhes o deshze. Na realidade, a .cava- que separava a Capitania da Metrópole já fazia antever a morosi-
leiro da situação, a Coroa, com essa atitude, procurava evitar a dade do processo. Por isso, o normal era que, uma vez remetido o
esterilidade da discussão em torno de seu direito de Padroado. compromisso para Lisboa, as irmandades já o tomassem como texto
Mesmo quando, mais tarde, a Corte se transferiu para a Colônia definitivo, fazendo cumpri-lo de imediato, sem prejuízo das restri-
brasileira, manteve-se a postura de não se reconhecer a validade ções que eventualmente - como na maior parte dos casos - a
do texto compromissal sem que este fosse submetido à Mesa da Coroa pudesse vir a fazer. Em segundo lugar, na medida em que
Consciência e Ordens aqui instalada m. a remessa se fazia, o compromisso punha-se sub judice, compro-
Aliás, a análise da tramitação burocrática do processo de apro- metendo, assim, uma ação mais eficaz e efetiva das autoridades me-
vação dos compromissos espelha muito bem o cuidado que a <:oroa tropolitanas sediadas na Capitania. Isto sem omitir o fato de que,
tinha para com as irmandades. Enquanto que durante o remado uma vez chegado a Lisboa, invariavelmente eram solicitados os pa-
de D. João V a aprovação daqueles documentos ficou fundamen- receres do Capitão-General e Governador da Capitania, do Bispo
talmente submetida às autoridades episcopais, com D. José I, D. de Mariana e, algumas vezes, também do Ouvidor da Comarca a
Maria I e D. João VI, os compromissos passaram pelos meandros que pertencesse a irmandade requerente. Sem falar nos casos em
da burocracia portuguesa. Na primeira fase, o exame pelo Bispo, que o Governador, julgando-se sem conhecimento de causa, solici-
pelo Vigário ou pelos Visitadores Eclesiásticos agilizava enorme- tava opinião dos vigários das matrizes para melhor fundamentar seu
mente o processo, pois o contato era direto. Quando muito, o pro- parecer 117• Assim, o processo voltava, praticamente, a seu ponto
cesso era despachado para o Vigário da freguesia a que irmandade de partida. Uma vez cumprida a diligência, que nem sempre se
se subordinasse e/ou para o Procurador da Mitra, solicitando-se os
completava, ele retornava à Mesa da Consciência e Ordens ou ao
Conselho Ultramarino, que, por sua vez, o remetia ao Procurador
114 ACL - Col. de Legislação Portuguesa, de Francisco M. Trigoso d.e da Coroa ou ao Procurador da Fazenda para opinar. Somente após
Aragão Morato. v. 18, doc. 74, p. 15. Curioso notar també~ que as .provi-
sões de confirmação de compromisso, expedidas nessa ocas1ao para lfma_n- esse pronunciamento é que o parecer final era exarado, preparan-
dades portuguesas, tinham como justificativa o fato de que a documentaçao do-se, assim, o despacho final de El-Rei e os respectivos assentos
anterior se extraviara ou fora destruída em decorrência do terremoto que nos livros da Chancelaria do Tribunal da Mesa da Consciência e
assolou Lisboa, em 1755. Cf. v. g. ANTT- Chancelaria Real de D. José I.
Comuns. Livro 49, fls. 116v. e 385. . Ordens. Após esses registros, o compromisso e o alvará de confir-
115Por Alvará de 22 de abril de 1808, foi criada, no Rio de Janeiro, a Mesa mação eram enviados à Capitania para que, depois do "cumpra-se"
da Consciência e Ordens, ao mesmo tempo d~ do Desembargo do Paço. aposto pelo ouvidor da Comarca, pudessem ser "aceitos" e "jura-
Outro Alvará de 12/5/1809, estabeleceu o regimento dos emolumentos da
referida Mes;. Cf. SILVA, Antônio Delgado da. Coleção de Legislação !'or- dos" pelas mesas diretoras, em nome de todos os irmãos.
tuguesa. (1802/1810) p. 489-91 e 736-40. Suas decisões orientavam-se amda
pelo Regimento daquele tribunal português, data~o de 2~/8/1608, ~ sua
116 AEAM- Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos,
documentação pode hoje ser consultada no Arqmvo NaciOnal do Rio de
Janeiro· nela merecem destaque especial os despachos e pareceres do famoso da freguesia de Santo Antônio de Itaverava (1743), p. 1; AEAM - Com-
promisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos, da Capela de São
Monserilior José d.e Souza Azevedo Pizarro no exercício das funções de
Brás do Suaçuí, freguesia de Congonhas ( 1753), p. 1.
Procurador Geral das Ordens Militares e, posteriormente, de deputado do 117 APM!SC - Cód. 279, fls. 4 e 6.
Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens.
120 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 121

Ora, o bom senso mostra que essa tramitação beirava ao O governador, compreendendo com clarividência a inquietação dos
absurdo. Pode-se imaginar facilmente o volume de compromissos confrades, informa a D. Rodrigo que,
remetidos a Portugal que sequer obtiveram resposta. Pode-se ima- como não achei inconvenientes do Real Serviço, permiti a dita
ginar também como as autoridades sediadas na Capitania tiveram Confraria os seus exercícios públicos de caridade, e humanidade,
que adaptar soluções para evitar que as irmandades fugissem· ao que procurava exercitar 120.
controle governamental, como se procurará apontar em outra parte. A criação e instalação no Brasil dos órgãos metropolitanos
Essa tramitação gerava, na Capitania de Minas, situação às vezes competentes, a partir de 1808, não trouxe nenhuma alteração subs-
esdrúxula, como a de irmandades que tinham seus compromissos tancial ao fluxo descrito. Desse modo, o processo de legitimação
já apreciados e aprovados pelos órgãos metropolitanos, mas não dos compromissos das irmandades coloniais mineiras entra para
cientificadas do fato 118. Gerava, ainda, o desânimo das irmandades nossa história como mais um exemplo da morosa e desarticulada
em ver o seu compromisso aprovado, pois que a remessa fora feita máquina administrativa portuguesa sediada em Minas Gerais.
há vários anos e não se obtivera nenhuma palavra da Corte a res- No âmbito dos compromissos, pode-se ainda analisar outra
peito 119, o que também as impedia de participar legalmente das ceri- ~orm~ clara de. c~mtrole e dominação das irmandades pela Coroa,
mônias e de atos públicos. f: o que aconteceu com a Ordem Ter- rst_o ~· as restnçoes exaradas nos alvarás de confirmação. Como
ceira de São Francisco de Paula, de Vila Rica, pelo que se depreen- for drto, a remessa de compromisso para Lisboa não implicava a
de da leitura dos documentos anexos ao ofício do Governador da sua aceitação integral pelas autoridades metropolitanas. Ao contrá-
Capitania, Bernardo José de Lorena, ao Ministro D. Rodrigo de rio, o qu~ se percebe é que foram raros os casos desses documen- 1
Sousa Coutinho, datado de 17 de fevereiro de 1800. Alegavam os tos que nao sofreram reparos das autoridades. Na primeira metade ,
terceiros seculares que, em face de seus estatutos não terem ainda do século, quando a ação fiscalizadora junto às irmandades minei-
sido confirmados, viam-se impossibilitados de participar de procis- ras foi exercida predominantemente pelos bispos do Rio de Janeiro
a en' f ase estava nas restrições de caráter espiritual e religioso, vindo'
sões e de fazer o acompanhamento dos irmãos mortos, o que deter-
minava o esfriamento da devoção. Por essa razão, solicitavam à em ~e~ndo plano as de ordem administrativa. Nas primeiras, as
provrsoes declaravam que o capelão da irmandade ficava impedido
Coroa que enviasse aviso ao Ouvidor da comarca para que este
~e ministrar ofícios religiosos sem a prévia licença do vigário, insis-
não embaraçasse aS' funções e atos públicos que os suplicantes tmdo em resguardar a supremacia do pároco sobre os capelães;
pretendessem fazer. ressalvavam a exclusiva competência e jurisdição dos bispos na re-
gulamentação das covas e sepulturas das igrejas e na necessidade
de obtenção de licença episcopal para a realização de festas reli-
118 É o caso, por exemplo, da Ordem Terceira de São Francisco de Paula.
de Vila Rica, cujos estatutos foram confirmados em 17/7I 1805, decisão essa giosas. Secundariamente, recomendavam que as eleições das mesas
que somente dois anos depois, por Alvará de 4 / 5/ 1807, lhe foi comunicada. diretoras se realizassem sob a assistência do Ordinário ou dos páro-
Sem contar o tempo de demora da chegada da notícia à Capitania. Cf. cos; credenciavam os Visitadores Eclesiásticos como encarregados
AHU - Cód. 243, fL 59v.
H9 A Irmandade de N. Sra. da Boa Morte, da freguesia de Antônio Dias,
dt: "observarem" as contas das irmandades e insistentemente apon-
de Vila Rica, em 1805, através de seu Procurador em Lisboa, Antônio Trin- tavam a obrigatoriedade de lhes serem apresentados, para aprova-
fão Barbosa, requereu a devolução do seu livro de Compromisso, sob a ale- ção, os acréscimos e modificações dos textos compromissais.
gativa de que há vários anos fora remetido à Rainha para sua confirmação.
A Coroa, melindrada, desautorizou o Procurador, despachando a petição com Com o fortalecimento da política regalista, a natureza das res-
a ordem de que os suplicantes assinasst:m o requerimento, despacho este que, trições passou a privilegiar os aspectos econômicos e sociais, sem

1
além de não resolver o problema, protelava c assunto. Cf. AHUIMG - esquecer, obviamente, os de caráter administrativo. Dessa forma,
Caixa 71. Doc. avulsos datados de 6/ 4/1805. Curiosamente, nas pesql!isas
r ealizadas pelo autor deste trabalho, encontrou-se na Casa Forte do Arquivo durante o reinado de D. José I, o elenco das restrições estipulava
Nacional da Torre do Tombo um compromisso desta irmandade sem data. ' acentuadamente, dentre outras, a abolição da pureza de sangue para
Seria aquele o ob~o do pedido? Por outro lado, quando a Corte se trans-
feriu para o Brasil esta irmandade obteve sua aprovação (1810). Cf. ANRJ
120 AHUIMG- Doc. Av. Caixa 64 (17/211800).
- Cód. 820.
122 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS J I AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 123
A

a admissão, a redução das esmolas dos juízes e demais oficiais de Autoridades eclesiásticas e seculares se digladiaram durante todo
mesa, a proibição de eleição e coroação de reis e rainhas em irman- o período em estudo, tentando impor sua jurisdição sobre a con-
dades de negros, a proibição de auxiliares para a cobrança de anuais duta das associações leigas. Porém, às autoridades religiosas cum-
e outros haveres das irmandades, a proibição de alterações nos com- pria zelar e fiscalizar a vida espiritual das irmandades seculares, en-
promissos e a insistente condenação da incompetência dos bispos
• e d~ Ordinário sobre os sodalícios leigos. A governação de D.
quanto que as irmandades eclesiásticas, por serem eretas em terras
pertencentes à Ordem de Cristo, não se eximiam de, periodicamente,
receberem a visita de autoridades seculares. Na prática, é desne- j
j
Mana I não mudou o sentido das restrições. Antes, enriqueceu-as.
Para além daquelas já mencionadas, do reinado anterior, estabele- cessário dizer que os limites de competência nunca foram clara-
ceu-se a proibição de aplicação, pelos irmãos administradores, de mente definidos, o que gerou incontáveis desavenças entre as auto-
multas pecuniárias, de castigos, penitências e penas; a regulamen- ridades. A simples verificação da existência de numerosos expe-
tação das taxas de juros cobradas pelas irmandades em seus em- dientes burocráticos no decorrer do século XVIII demonstra que o
préstimos em dinheiro; a proibição de poderem pedir esmolas e texto das Ordenações do Reino não bastava para dirimir essas
construir capelas sem prévia licença régia; a proibição de fixarem questões 121•
editais em lugares públicos; a proibição de estabelecerem prazos No estudo das tomadas de contas das irmandades mineiras
para os irmãos fazerem testamento e o não reconhecimento das coloniais, não se pode estabelecer com precisão uma cronologia,
certidões dos escrivães das irmandades terem fé pública. pois que, embora na primeira metade do século a ação dos Visi-
Finalmente, com D. João, especialmente quando a Corte se tadores Eclesiásticos tenha sido exercida com maior desenvoltura, /
transferiu para o Brasil, retomou-se a preocupação essencialmente nem por isso deixou de ser contestada, especialmente porque esses
religiosa na apreciação dos compromissos. Dentre as restrições mais emissários episcopais parecem ter sido useiros e vezeiros na co-
freqüen~es deste período destacam-se: a proibição de sepultamentos brança exorbitante de suas custas e emolumentos. Por exemplo,
no mtenor dos templos, pela sua nocividade à saúde pública; a pre- em fevereiro de 1802, o Bispo de Mariana, D. Fr. Cipriano de
s:r~ação dos. direit~s paroquiais e da fábrica das matrizes; a proi- São José, denunciava o pesado ônus de
b~çao de pedtdos pubhcos de esmolas; a obrigatoriedade de presta- mais cento e sessenta e três ou quatro oitavas
çao de contas ao Provedor das Capelas e a permanente declaração
de que as alterações dos compromissos só teriam validade com a de ouro, como pagamento feito pela confraria de Nossa Senhora
aprovação régia. do Bom Jesus de Matosinhos ao ouvidor, a título de tomada de
Além dos compromissos, as irmandades também estavam su- "ajustamento das contas" da mesma confraria 122 •
jeitas a apresentar às autoridades os seus livros internos, especial-
12 1 Nas Ordenações do Reino, o assunto é tratado no Livro 1.0 , Título 62,
ment: os de receita e despesas. Quando isso acontecia, tanto nas
assoctações seculares como nas eclesiásticas, lavrava-se o respec- Capítulo 39. Os outros expedientes citados, pelo levantamento feito na legis-
lação portuguesa, são os seguintes: 1) Provisão de 5/211693 sobre o proce-
- tivo auto de visita ou auto de tomada de contas. Nele a autoridade dimento contra os visitadores que tomam contas às confrarias leigas (Cit. por:
fiscalizadora lançava suas observações não somente sobre o estado PonTo, Manoel José de Campos. Op. eit., p. 236); 2) Provisão de 20/1/1740
de conservação dos próprios livros ou dos móveis e utensílios, como sobre o procedimento contra os visitadores que tomam contas às confrarias lei-
gas (id., ibid., p. 235); 3) Provisão de 21/6/1752 acerca da prestação das
também apontava as irregularidades existentes nas finanças e nos contas das confrarias (SILVA, Antônio Delgado da. Op. cit., v. 1, 1750/1762.
bens, enfim na rotina econômica e administrativa dos sodalícios. Suplemento, p. 143); 4) Provisão de 20/7/1752, declarando as irmandades
Por isso mesmo, aliás, o sentido da expressão tomada de contas já que têm obrigação de prestar contas perante o Juízo Civil (SILVA, Antônio
demonstra que a preocupação maior era com o balanço da receita Delgado da. Op. cit., p. 144); 5) Provisão de 22/3 I 1793 para os provedores
tomarem contas às Ordens Terceiras (SILVA, Antônio Delgado da. Op. cit.,
e das despesas efetivadas pelas irmandades durante os anos com- 179111820. Suplemento, p. 31).
promissais. Esses documentos são peças privilegiadas para a aná- 122 TRINDADE, Raimundo, Côn. Arquidiocese de Mariana. p. 171. Vide tam-

lise do controle exercido sobre aquelas agremiações. bém: AEAM - Livro de Receita e Despesas da Irmandade de N. Sra. da
Conceição, da freguesia de Mariana (1747-1832), verso da folha de rosto,
Também nesse' aspecto, como em muitos outros da adminis- onde demonstra que não só as autoridades eclesiásticas foram acusadas de
tração portuguesa, os conflitos de jurisdição logo vieram à baila. extorsão.
124 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 125

Neste sentido, a ~etrópole sempre se mostrou aplicada, pro- turbios, entendo .será só aquelle, com·eniente remedio, de ij me
curando impedir esses excessos nas cobranças e, acima de tudo, im- pareceo dar esta conta a V. MagP q mandará o ij for servido 123.
pondo sua autoridade sobre uma questão que poderia gerar graves Ora, mesmo não se aceitando o excesso de cores escuras com
manifestações sociais. :f: ilustrativa a provisão régia remetida ao que o ouvidor apresenta o quadro acima, ainda assim não se pode
Ouvidor da comarca do Rio das Mortes, em 26 de janeiro de 1729, desconhecer que, nesse jogo de poder, as irmandades eram as gran-
através do Conselho Ultramarino, na qual se solicita a sua parti- des atingidas, pois não tinham como se furtar a qualquer uma das
cular vigilância no sentido de não permitir a usurpação da juris- duas instituições. Houve perfodos e casos específicos em que a lei-
dição real que os ministros eclesiásticos estariam praticando junto tura dos autos de tomadas de contas raiava os limites do absurdo,
a irmandades daquela comarca, contrariando as disposições das Or- dada a superposição e a simultaneidade com que autoridades civis
denações do Reino e cobrando excessivos salários pelas tomadas e eclesiásticas se lançavam sobre os livros internos das irmanda-
de contas. O ouvidor Antônio da Cunha Silveira logo desincum- des 124 •
biu-se da missão, pelo que relatou seis meses depois à Metrópole, A partir destes e de outros exemplos, anteriormente apresenta-
afirmando que, às exorbitâncias denunciadas, ainda se somavam dos, uma conclusão parece ser plausível de se retirar: a de que,
estando sujeitas a essas visitas periódicas das autoridades - sejam
a insubordinação e a insuflação da população contra as determina-
eclesiásticas, sejam seculares - , as irmandades tinham os seus
ções régias. Embora longo, vale a pena transcrever algumas partes
passos seguidos de perto pelo Estado, inviabilizando, com isso,
de seu relato:
qualquer tentativa de autonomia e vida própria. Tanto assim
em observancia da d. 4 Provizão Mandei notificar as Mesas das que, com o avanço do século, sobretudo nas últimas décadas do
Confrarias desta Comarca trouxessem à minha presença todos os século XVIII, as autoridades seculares se impuseram soberana-
livros, e me dessem parte de toda, e qualq.r vexação das que com-
múmente lhe faz o Eccleziastico, principalmente nestas Minas, 12!1 AHUIMG- Doc. Av. Caixa 7 (26/1/1729). Ressalte-se que esse não
usando logo do recurso q tem p.a este Juizo da Coroa; de ij tendo
é documento único. No ano anterior, em carta ao Rei, O. João V, o
noticia o Vig.'0 da Vara desta Comarca as mandou notificar com ouvidor da comarca de Vila Ri~a sugeria-lhe escrever ao Bispo do Rio de
pena de excomunhão o não fizessem, nem me obedecessem, insi- Janeiro a fim de orientar seus ministros eclesiásticos "que indevidarn,t~ levam
nuando lhes não ser obrigado a dar cumprimento às ordens de selarios das contas q tomão as Confrarias não lhe sendo por direito licito
V. Mag.dr e quiça pelo inveterado custume em ij estão, pois haverem selaria algum", finalizando por insistir que se deva também ordenar
havendo ordem de V. Mag.dt para ij interposto o recurso p.a a aos ouvidores das demais comarcas da Capitania para a vigilância quanto à
Coroa, não procedam contra os recurrentes mio só o custumão usurpação da jurisdição real (AHUIMG- Doc. Av. Caixa 5, 1617/1728).
Jazer pendente o recurso, mas ainda depois de passadas as Roga- Outros exemplos são a conmlta do Conselho Ultramarino de 12/511744, diri-
tórias, as não cumprem. . . ij tudo só se poderá evitar, mandando gida ao Bispo do Rio de Janeiro, através do ouvidor da comarca de Vila
V. Mag.dr se assim for do seu real agrado, ij o Gov. 0 ' informado Rica, "sobre mandar dizer ao Bispo que somente lhe pertence tomar contas
àquelas Confrarias a cuja ereção precedeu a jurisdição eclesiástica" (AHU
pelo Ouv.or, e juiz da Coroa, ou este, não querendo os Min.r~ - Cód. 241, fls. 279/9v. ) e a consulta do mesmo Conselho sobre a represen-
Ecclesiasticos dar cumprimento às rogatórias ij se lhes passarem, tação do Reverendo Bispo de Mariana a respeito da ~dúvida que ocorre enu·e
nnn ('flnterem em proceder contra os ij tiverem recorridos p.n a a jurisdição eclc5iástica e ~ecular no tomar as contas das confranas daquele
Coroa, e não quizerem observar as Ordens de V. Mag.4e, possão bispado e ..." (Documtntos Históricos. v. 94, p. 172-7).
mandar exterminar p.a fora da Comarca aos Veziradores, e Viga- 12 4 Bastaria citar dois exemplos. O primeiro, da Irmandade do Santíssimo
Sacramento, da freguesia de N. Sra. do Pilar, de Vila Rica, que, entre 1741
rios da Vura della; ij de outra sorte não tercio socego os seos mo- e 1755, sofreu, alternada e simultaneamente, tomadas de contas do Bispo e
radores, nem os Min.'00 de V. Mag.d• lhe poderão por remedio do ouvidor da comarca, às vezes com um auto de cada autoridade num mes-
sem htla perturbação grande de todos, e inda do mesmo Min.'", mo ano compromissal (AEPNSPIOP - Livro de Receita da Irmandade do
contra q'" procedem com excomunhoens ttio iníquas, e dezorde- Santíssimo Sacramento, 1729/1755, fls. 32171). O segundo exemplo é o da
nadas como o seu procedimento, como já nesta Comarca se vio Irmandade do Senhor dos Passos, da mesma vila, cujo livro de Receita e
Despesas, abrangendo o período de 1737 a 1778, é um notável repositório
sendo Otn'. 0 ' o D.0 ' Valeria da Costa Gouvea, com tanto excesso para o estudo desse tipo de conflito jurisdicional, especialmente para o perío-
ij chegou a tlividirse o po~·o em parcialid.<• conforme a paixão de do de 1751 a 1757 ({ls. 48vl72v), quando o B1spo de Mariana, D. Fr. Ma-
cada hum, tomando armas huns contra os outros com evideme nuel da Cruz, cioso de sua autoridade, entrou em constantes litígios com os
perigo das vidas; e p.a ij não tornem a socceder semelhantes dis- ouvidores da capitania (AEPNSPIOP - Livro citado).
J

126 IGREJA, ESTADO E IJlMANDAOES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 127

mente. Já então, pelo menos na Capitania de Minas Gerais, as to- o Escr.a.. deste Juizo lhe não formalizará daqui em diante conta
algua sem que venhão observados os Provim.'<» pena de suspensão
madas de contas se deveram aos ouvidores das comarcas, os quais, de seo of.o,
tendo se livrado dos conflitos com as autoridades eclesiásticas,
concentrllrllm todas as suas forças e seu rigor contra as irman- e terminava pór ampliar a medida a outras irmandades inadimplen-
dades. tes ao declarar
A análise dos autos dessa última fase do período colonial mi- que deverá observar igualmente o mesm. 0 Escr!"'' em todos os
neiro resulta num quadro perfeito de como se exercia permanente Livros de lrmand." que thiverem Provim.'"" p.a lhe não Extender
fiscalização do Estado sobre os atos praticados por aquelas asso- as contas e sem ij venhão com a formalid.c recomendada nos
mesmos Provim.'•• e castigarse a rebeldia dos q não obedecem 129.
ciações leigas. Tomás Antônio Gonzaga, ouvidor geral e correge-
dor da comarca de Vila Rica, é um exemplo bastante expressivo Outro mecanismo de controle utilizado pelo Estado Absolutista
dessa ação. Tendo examinado, em 1782, o livro "das contas" ( sic) ~ortuguês so?re a vida das irmandades diz respeito à obtenção de
da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, da fregue- hcença a~tonzando a construçã~ ?e templos próprios. A legislação
sia de Santo Antônio da Itatiaia, e verificada a inexistência de livro metropohtana era bastante exphcita na proibição de se reedificar
próprio para o lançamento de receita e despesas, advertiu formal- ampliar ou ~onstruir igrejas sem a prévia autorização das autorida~
mente a irmandade para que providenciasse o referido livro 120• No des, as qu_ats, p~r sua ~ez, deveriam analisar a proporcionalidade
d~ plant~ as reats necessidades do local, evitando superfluidades uw.
ano seguinte, constatando o desrespeito à sua determinação, ordena
que o escrivão da ouvidoria intime a irmandade a cumpri-la, o que Smtomáttco notar que na documentação consultada todos os pedi-
dos datavam da segunda metade do século XVIII e início do século
é feito na pessoa de seu Procurador, em fevereiro de 1748 126• Dois
seguinte, o que. v~:O reforçar a tese de que é dessa época o efetivo
anos mais tarde, enfurecido pela continuidade da atitude desrespei- co~trole da rehg~ao pelo Estado na Capitania de Minas. Signifi-
tosa, Gonzaga ameaçava: ~nvo, por outro lado,. que as sol.icitações, em sua maioria, pro-
Esta Irmandade he mais que renitente em observar os Provi- Vlessem de ordens terceiras, as qua1s, relembre-se, foram instituídas
mentos, que se encaminhão a declarar o estado da sua administra- nessa mesma ocasião. Com isso também se reforça a idéia de que
ção: o que mostra o seu dolo. O Excrivão lhos intime e não os a _ação d.o ~stado se exerc~ mais forte e acentuadamente nas povoa-
observando procederei contra e/la como merece a sua renitencia 121. çoes mais IDlportantes, pots esse tipo de fraternidade só era encon-
trado, praticamente, nas cabeças de comarca e/ ou aglomerados
Mas, apesar de tudo, a ordem parece não ter sido cumprida; pois urbanos onde a so~iedade já se estratificara. 11 o que se nota quan-
o novo ouvidor, Pedro José Araújo de Saldanha, em fins de 1788, do se percorre a listagem das capelas e dos templos isolados exis-
reitera a ameaça de Gonzaga, face à tentes em lugares ermos, registradas em livro próprio do Bispado
rebeldia, contumacia, e falta de resp. 10 e de obed.<> ao ij os Magis· de Mariana 131• Por conseguinte, as irmandades propriamente ditas
Irados lhe mandão 12s.
129 Alvarás régios de 214/1739 e de 11110/1786, publicados, respectiva-
Esta última intimidação acabou resultando em medidas punitivas mente, por: XAVIER DA. YEIGA, J. P. Eplremérides Mineiras; (1564/1897).
concretas, apesar de, três anos mais tarde, o mesmo ouvidor Araújo Ouro Preto, Impr. OffJcJal, 1897. v. 2, p. 8; SILVA Antônio Delgado da.
Coleção de .Legislação Portuguesa. (177 5I 1190), p. '419-23. O texto legal
de Saldanha ainda estipular que parece ter Sido cumprido n~ Capitania das minas, pelo que se percebe dos
despachos exarados aos pedidos da Irmandade de São Elesbão e Senhora do
125 AEAM- Livro de Receita e Despesas da Irmandade de N. Sra. do Rosá- ~osário, do arraial do Onça, freguesia do Pitangui (Cf. AHU/MG- Reque-
rio dos Pretos, da freguesia de Santo Antônio da Itatiaia (1773/1831), fi. 12v. nmentos 1803/489 - 20/6/1803) e da Irmandade de Santana do arraial
126 AEAM - Livro cit., r.. 16. de Prados, freguesia de São José del-Rei (Cf. AIJUIMG - Re~uerímentos
1802/490-- 23/7/1802).
12T AEAM - Livro de Receita e Despesas da Irmandade de N. Sra. do
Rosário dos Pretos, da freguesia de Santo Antônio da Itatiaia (1773 / 1831), ~:~Alvará régio ~e 2/4/1739:Jn.: XAvm~ DA VEIGA, J. P. Op. cit., v. 2, p. 8.
fi. 20. AEAM - Camara EclesJastJca - L1vro de Licenças para Fundação de
Irmandades e Algumas Capelas (1748/1785).
128 ld., ibid., fi. 37. Termo datado de Vila Rica, 15 de fevereiro de 1791.
128 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 129

não pleiteavam esse tipo de licença. Talvez porque, na sua maioria, de seus templos. A documentação examinada a respeito pratica-
elas, com seus parcos recursos, não se dispusessem a erigir templos mente restringe-se aos pedidos feitos por ordens terceiras na se-
próprios, optando por obter capelas em altares laterais dos templos gunda metade da centúria e na primeira década do século XIX.
já edificados, ou construir templos de constituição material precária, Outra forma de controle liga-se intimamente à anterior e diz
para o que não era necessário recorrer à Coroa. Além do mais, respeito aos auxílios régios para construção de templos. Já foi dito .--
quando o fizeram, foi com recursos próprios, reservando-se, por- que a Coroa, em Minas Gerais, transferiu para a população em
tanto, o direito de não solicitar tal licença, especialmente nas pri- geral os dispendiosos encargos com o estabelecimento e a manuten-
meiras décadas, quando a estrutura social urbana encontrava-se ção do culto religioso. Na ausência de ordens religiosas, esses ônus
em seu primeiro estádio, e quando o Estado não tinha imposto recaíram sobre as irmandades, as quais, de uma maneira geral, "só
ainda uma política específica para as irmandades. casua!mente recorriam à Coroa", e quando o faziam, seus pedidos
sugenam
Os pedidos de licença em pauta retratam bem a fase da his-
tória religiosa e social da Capitania em que apenas o desejo de obter um recurso a mais, uma complementação
para obras de vulto 184.
a religiosidade cristaliza-se e, da mesma forma que a sociedade,
polariza-se 132, Por isso, a Coroa não só reconhecia como também estimulava o
surgimento daquelas associações, pois quanto mais numerosas elas
e os diversos segmentos sociais se recolhem a templos próprios, fossem, maior abrangência e penetração teriam os ofícios e cerimô-
abandonando as matrizes, que, até então, serviam como aglutina- nia~ religiosas. Por ou.tro lado, o Estado ganhava duplamente: pri-
doras de fiéis. Como afirma Sylvio de Vasconcellos, me~ro, p.or9ue conseguia exercer um controle mais efetivo da popu-

o movimento sócio-religioso é agora centrífugo. O povo afasta-se laçao, v1a mnandades; segundo, porque se eximia de empregar na
das povoações em direção aos campo:;, e das Matrizes, em direção construção dos templos o dízimo eclesiástico que recolhia com a
das capelas filiais. Das antigas, meio esquecidas, ou de novas que teórica finalidade de destiná-lo àquele fim e à implementação do
se constroem. Os grupos sociais mais categorizados reúnem-se nas culto cristão. Criou-se, inclusive, uma mística de que as ajudas des-
Ordens Terceiras de São Francisco e de N. Sra. do Carmo, que tinadas pelo Erário Régio à fatura de igrejas ou à compra de orna-
gozam de maiores regalias 13 3, mentos, mesmo que esporádicas, representavam um pesado ônus
para a Fazenda Real. Consulte-se, a propósito, interessante cor-
os quais, diga-se, en passant, são os que invariavelmente peticio- respondência do Govemaãor da Capitania, o Conde de Valadares,
nam à Coroa a concessão de licenças especiais para a construção que, dirigindo-se ao Marquês de Pombal, em setembro de 1771,
denunciou o que denominava como "despesas consideráveis", isto
132 VASCONCELLOS, Sylvio de. Mi11eiridade. p. 144. é, os pedidos de subvenção feitos pelos vigários e pelas irmandades
lll3 ld., ibid., p. 148. A p ropósito do desassombro
dessas ordens terceiras, do Santíssimo Sacramento de diversas freguesias da Capitania. Para
o Cônego Raimundo Trindade, em sua obra São Fra11cisco de Assis de Ouro
Preto, historin n dificuldade de obtenção da licença régia para a construção fundamentar sua perplexidacie, solicitava vistas aos livros contábeis
de sua monumental igreja. Dificuldade manifestada pela própria demora: das fábricas das igrejas e terminava sua carta insistindo nos graves
19 anos, isto é, desde 1752, quando foi feito o pedido, até agosto de 1771, prejuízos que a Real Fazenda tinha com esse expediente 135.
quando, com base em parecer favorável do Governador da Capitanill., o
Conde de Valadares, a construção foi implementada. "O interessante, porém, :f: bem verdade que denúncias dessa ordem se davam numa
- comenta o prelado marianense - interessante e perfeitamente estranhável, época em que a crise da produção aurífera se acentuava. Não se
é que a Ordem, que contara os anos esperando resignadamente a licença mil
vezes impetrada, de um momento para o outro despreza essa licença e, sem pode esquecer também de que é exatamente nesta ocasião que sur-
ela, inicia abertamente a construção de sua igreja. De certo, a esta altura de gem os templos qualitativamente mais expressivos. Mas não se pode
sua história, a Ordem, com um número de irmãos professos superior a mil, inferir apressadamente que esse nível de qualidade gerasse a neces-
angariados todos na melhor sociedade, e por isso mesmo em lisonjeira situa-
ção econômica, estaria gozando de excepcional prestígio e se ampararia em
alguma poderosa influência contra os melindres ofendidos do Padroado e do 134 ScARANo, Julita. Op. cit., p. 66.
13
poder absoluto." (TRINDADE, Raimundo, Côn. Op. cit., p. 267. v. tb. p. 254-67.) ~ APM/SC - Cód. 157, fls. 124/4v.
130 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 131

sidade de um volume maior de recursos financeiros para as obras. dos, povoações já consolidadas, em última análise, sociedades sob
Tal característica, que fará a glória do barroco mineiro, pode muito vigilância e controle 1 as.
bem ser atribuída a uma maior disponibilidade de profissionais Apesar disso, não se deve pensar que as demais irmandades
competentes e de artistas primorosos; em outros termos, pode ser ficaram entregues à sua própria sorte e contando exclusivamente
atribuída à existência da oferta de uma mão-de-obra mais qualifi- com seus próprios recursos. Neste sentido, a Coroa abria-lhes uma
cada, que ampliava o leque de opções para as irmandades contra- alternativa: a da obtenção de licença especial para as irmandades !)
tantes das obras e ensejava apuro e esmero nas produções artísticas designarem ermitães, ou melhor, esmoleres para _Qedirem auxílios lt
e intelectuais 136. para construção ou reforma dos templos. A propósito, cumpre
. Retom~~do-se o raciocínio, poder-se-ia afirmar que ainda que notar, desde logo, que a Coroa era extremamente rigorosa tanto
as aJudas reg1as fossem onerosas, elas não atingiam a ampla gama na concessão dessas licenças, como na fiscalização da ação dos
de agremiações. Com efeito, os pedidos de auxílio partem de algu- esmoleres 139 • Em segundo lugar, cabe observar, em função da pes-
mas poucas. Aliás, praticamente de uma única: as irmandades do quisa documental realizada, que ao passo que <!__quase totalidade
San~ssimo Sacramento, responsáveis pela construção das igrejas das concessões de licença datam dos fins do século 140, as petições
matnzes. Na documentação analisada, essas irmandades foram as de meados do século foram invariavelmente recusadas 14 \ onde se
únicas a pleitear ajuda da Coroa para tal finalidade e o faziam
138 A respeito da íntima relação existente entre a construção de templos em
com sólido amparo legal 137• Por seu turno, interessava em muito
Minas Gerais, no período colonial, e os contextos sociais aos quais servem, )J
à Coroa o auxilio às irmandades do Santíssimo, pois que as matri- consulte-se toda a obra de Sylvio de Vasconcellos, especialmente o capítulo V
zes expressavam agrupamentos sociais estratificados e hierarquiza- "Igreja e Sociedade" de seu ensaio Mineiridade (p. 141-50).
139
"Ordem de 19 de fevereiro de 1756 para o Governador advertir aos Ouvi-
dores dos Districtos de Minas, que devem observar a lei e castigar com as
136
VASCONCELLOS, Sylvio de. Vida e obra de Antônio Francisco Lisboa o penas della aos que pedem esmola sem provisão de S. Magestade" (Colecção
Aleijadinho. São Paulo, Nacional, 1979. p. 7-8. Importante salientar q~e. Sumaria ... In: RAPM, Ano 16, 1911. p. 357, doc. 27).
em razão das despesas com a construção de igrejas terem ficado sob a res- 140 Os pedidos de provisões para designação de ermítães e/ou esmoleres
ponsabilidade dos leigos, a Coroa entra com auxílio, mas o substancial origi- encontrados durante a pesquisa foram os: da Ordem Terceira de Nossa
na-se da própria população. Com isso, leigos mineiros puderam estabelecer Senhora do Carmo, de Vila Rica- 1784/ 5 (AHUI MG - Do:. Av. Caixa
uma arte original, fora dos padrões estéticos que orientavam a arquitetura 141 - set./1784 e 1785); das Irmandades dos Sacratíssimos Corações de
e a arte. do lit?ral e. da Metrópole. Mas, na medida em que, de alguma Jesus, Maria e José, Senhor de Matosinhos, São Miguel e Almas, do Alto
forma, aJudou fmancetramente na ereção dos templos em Minas Gerais con- do Passa-Dez, Vila Rica - 1789 (AHU/ MG - Doc. Av. Caixa 36 -
traditoriamente, subvencionava manifestações artísticas antiabsolutistas 'como 2218/ 1789); da Ordem Terceira de N. Sra. do Monte do Carmo, de Ma-
defende Lourival Gomes Machado no artigo Despotismo e Cultura n~no de riana- 1791 (AHUIMG - Doc. Av. Caixa 84- 27/ 8/ 1791); Ordem Ter-
uma série de estudos sobre o "Barroco e Absolutismo", publicado e~ "O Es- ceira de São Francisco de Paula, da Vila de São José- 1798 (AHUIMG
tado de São Paulo", em 1949, e republicado na 2.a edição de Barroco Mineiro -Doc. Av. Caixa 59- 17/1111798); Irmandade de N. Sra. das Dores,
(1973) p. 79-150. da freguesia de Antônio Dias, Vila Rica- 1801 (AHUI MG -Doc. Av.
187 As solicitações de au:xílio para construção de templos pelas irmandades Caixa 66 - 15/4/1801). Como se vê, todas datam dos fins do século
do Santí~simo encontradas no decorrer da pesquiso foram: da freguesia de XVIII e início do seguinte. Uma única exceção encontrada foi a do pedido
N. Sra. do Pilar, de Vila Rica - 1732 (AHUI MG -Doc. Av. Caixa 11 feito em 6/ 10/1755 pela Confraria de Nossa Senhora da Glória, do arraial
- 1/211732); da Vila de São José - 1733 (AHU/MG - Doc. Av. da Passagem, filial da Sé de Mariana (AHUI MG - Doc. Av. Caixa 25
Caixa 13 - 27/8/1733); da Sé, de Mariana - 1736 (AHUIMG -Doc. - 6/10/1755). Ainda assim, parece não haver erro na afirmativa feita, pois,
Av. Caixa 83 - 28/10/1736); da Vila de São João del-Rei - 1738 L para este caso específico conhece-se outro documento, bem posterior, datado
(AHUIMG - Doc. Av. Caixa 12, doc. 7 - 25/211738); da freguesia de 1786, através do qual a referida irmandade solicitava confirmação da
de Curral dei Rei- 1761 (AHUIMG - Doc. Av. Caixa 38, doc. 20 - licença provisória dada pelo Governador da Capitania para um pedidor de
1212/ 1761 e também Caixa 79 - 23/7/1761); da freguesia de São João esmolas, o que demonstra que o problema tivera solução dentro dos limite>
Batista do Morro Grande - 1769 (AHUIMG - Doc. Av. Caixa 90 - da própria Colônia (AHUIMG- Doc. Av. Caixa 127/1786).
1769/16-6) ; da freguesia de N. Sra. da Conceição do Arraial de Prados - 141 Os pedidos de licença para esmoleres recusados pela Coroa, consultados
1804 (AHUIMG - Doc. Av. Caixa 91 - 19/6/1804 e Cód. 244, fls.
217/ 8v.). Sobre o "amparo legal" a essas solicitações, consulte-se: MONTEIRO • durante a pesquisa, foram os: da Irmandade de São José, da freguesia
do Pilar, de Vila Rica - 1752 (AHUI MG - Doc. Av. Caixa 23 -
Antônio Xavier de Souza. Código das Confrarias. p. 59-62 e 194-200, ond~ 2/3/ 1752); da Irmandade de São Gonçalo, de Catas Altas de Itaverava -
são listados os privilégios conferidos a estas irmandades. 1755 (AHU!HG - Doc. Av. Caixa 120- 18/ 10/ 1755); da Irmandade
132 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 133

percebe ·claramente o cuidado e o acompanhamento que a Metró- que diz respeito à confirmação das doações de terras que lhes eram
pole tinha com a situação financeira dos sodalícios mineiros. destinadas, seja pelos oficiais das Câmaras, seja por particulares.
Não resta dúvida de que a expedição dessas licenças tinha Foram freqüentes, em Minas Gerais, os requerimentos das irman-
um alto significado de barganha política, na medida em que, sem dades de Nossa Senhora do Rosário dirigidos a El-Rei, através do
comprometer em nada o sistema colonial, atendia aos interesses Conselho Ultramarino, solicitando a expedição de provisões de con-
mais imediatos de um poderoso aliado. Sem falar que, com esse firmação de doações de terras, a fim de que essas áreas pudessem
artifício, mais uma vez, a Coroa transferia à população colonial se incorporar formal e legalmente ao patrimônio delas.
os ônus do culto religioso, e, ao fazê-lo, habilidosamente, alimen- Do pouco que hoje se conhece da vida econômica interna das
tava nessas associações um forte espírito de rivalidade e competi- irmandades, algumas formas de administração de seus bens podem
ção que, se por um lado gerou o surgimento de templos majestosos, ser identificadas e também se constituem numa clara demonstração
exuberantes e imponentes, por outro, mantinha as irmandades anes- dos mecanismos utilizados pela Metrópole para exercer o controle
tesiadas, isto é, impedidas de procederem a uma análise crítica de sobre aqueles grêmios.
sua função social e de seu peso político, o que, em suma, só resul-
Cada irmandade era proprietária, com direitos civis reconhecidos,
tava em reforço do Estado Absolutista. das igrejas ou capelas que construía; do cemitério onde eram
Uma última observação a respeito da documentação compul- sepultados seus irmãos falecidos; animais de sela, imagens, uten-
sada é a de que, embora como se viu, as irmandades de Nossa sílios e mobiliário dos seus respectivos templos e dos seus escravos,
Senhora do Rosário sejam as mais numerosas na Capitania, prati- quando os possuía 142.
camente não pleiteiam esse tipo de licença, ao contrário das ordens Além disso, acrescente-se que muitas delas também possuíam pro-
terceiras. Curioso notar que, enquanto estas últimas se compu- priedades, que lhes eram destinadas, via de regra, pelos irmãos em
nham de comerciantes, burocratas, militares, artistas e intelectuais, seus testamentos. O cuidado e o zelo com os bens era um dos re-
aquelas se constituíam de negros, em sua maioria de escravos. Aten- quisitos exigidos daqueles que se habilitavam a compor a mesa dire-
te-se, assim, para o fato de que são as camadas mais elevadas da tora. Os livros internos das irmandades invariavelmente contêm
sociedade que mantêm vivas as relações econômicas da Capitania, termos de entrega dos bens, isto é, assentamentos que se faziam por
aquelas que, embora dispondo de recursos humanos e financeiros ocasião das reuniões de posse das novas mesas diretoras, quando
próprios, socorrem-se junto à Coroa. inventariavam os bens recebidos da mesa anterior e adquiridos du-
Lamentavelmente, ainda está por se fazer a análise da vida rante o ano compromissal que se extinguia, e que naquela oportu-
econômica das irmandades mineiras, particularmente no tocante à nidade passavam à guarda dos dirigentes que se empossavam. Por
origem e às fontes dos recursos para a construção e a ornamenta- outro lado, é importante salientar que a legislação portuguesa, proi-
ção dos templos dos negros. Entretanto, pelo menos num aspecto, bindo que as irmandades possuíssem bens de raiz sem a licença
as irmandades de negros não dispensavam o apoio da Coroa: aquele régia, permitiu-lhes, no entanto, o expediente de hipotecar ou mesmo
vender, como na maioria dos casos, utilizando o dinheiro obtido
de N. Sra. do Rosário, das minas de Pirapetinga, arraial do Bacalhau, filial para a compra de paramentos, para complementação de obras ou
de Guarapiranga- 175S (AHUI MG- Doc. Av. Caixa 120- 27/ 11 / 1755) até mesmo para empréstimo a juros. Essa prática parece ter sido
e da Irmandade de N. Sra. das Mercês, da capela do Senhor Bom Jesus
dos Perdões, freguesia de Antônio Dias, de Vila Rica - 1758 (AHUIMG freqüente e feita às claras durante o período colonial. Segundo Ju-
- Doc. Av. Caixa 120 - 1758). Além desses, encontrou-se um outro lita Scarano,
único pedido: da Irmandade de N. Sra. das Dores, da freguesia de N. Sra.
de Nazaré de Cachoeira do Campo, datado de 2219/ 1801. mas que não tanto as Miseric6rdias, quanto inúmeras irmandades funcionavam
se torna e;ceção face à recusa das autoridades em o examinar sob a alegativa como uma espécie de banco para a população, fornecendo dinheiro
de insuficiência de documentos na instrução do requerimento. Independen- a juros, inclusive a elementos estranhos ao seu quadro. . . Esse
temente disso, é interessante notar que, no despacho régio declara-se textual- mister era praticado sobretudo pelas irmandades que contavam
mente: "f: de menos inconveniente que se não faça o acrescentamento da
capela, do que pode haver em se permitir um ermitão com caixinha". (A.HU/
I MG - Doc. Av. Caixa 66 - 2219/ 1801.) 142 SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas do ciclo do ouro. p. 18.
AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 135
134 IOREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS

Dessas relações, a serem providenciadas pelas mesas administrati-


com indivíduos de posses, como as do Santíssimo Sacramento, do vas, deveriam constar todos os detalhes quanto a local, época de
Carmo e de S. Francisco. Representflva um empréstimo legal, feito
às claras, e não apenas a particulare.1, mas até a organismos admi- aquisição, procedência, rendimentos e a licença régia. Poucos meses
nistrativos . .. 143. depois, precisamente em 14 de maio de 1770, nova provisão é ex-
pedida; por ela as irmandades ficavam proibidas de ser legatárias
Na realidade, estabelecia uma política que, ao mesmo tempo de bens de raiz 146• No ano seguinte, outra provisão estabelecia os
que impedia as irmandades de acumularem ri4uezas, dava-lhes as
mínimas condições de se sustentarem e, no limite de se autobas- procedimentos acerca da arrecaaação dos bens seqüestrados às
tarem economicamente. Por isso, foi freqüente a exigência metro- confrarias 1 4i. Não satisfeito, Sebastião José de Carvalho e Mello
politana de que irmandades tivessem "patrimônio competente" para teria se empenhado, junto ao Rei, para promulgar, em abril desse
edificar e conservar seus templos, para ornamentá-los ou para man- mesmo ano (1771 ),
ter o culto 144 • Com o advento da governação pombalina, fica afas- hüa ley que supprimia todas as confrarias, e Irmandades, à excep-
tada, em definitivo, qualquer possibilidade de autonomia econômico- ção das do Sm.mo Sacramento, e de Nossa Senhora do Monte do
-financeira para as irmandades. Temeroso de que elas viessem a Carmo, e da Mizericordia. As rendas destas companhias, que erão
criar dificuldades para a ação governamental na medida em que muito ricas devião ser repartidas pelas pobres famílias portugue-
constituíssem sólidos patrimônios, Pombal baixaria alguns atos que zas 148.
visavam claramente a reduzir a renda dessas corporações e impedir Essa série de medidas adotadas ou propostas demonstra com
de vez que elas ficassem de posse de seus eventuais bens imóveis.
nitidez o espírito e a concepção pombalina a respeito dos bens das
Em 22 de agosto de 1769, através de provisão, a Mesa do irmandades. Entretanto, não se deve atribuir exclusivamente a
Desembargo do Paço notificava às corporações de mão morta para Pombal uma política de sistemático controle da administração dos
que lhes apresentassem uma relação bens das irmandades. Muito depois ·de seu afastamento e de sua
exacta e individual dos bens, que actualmente possuem, dos títulos morte, as atitudes tomadas pelos seus sucessores no poder nada
por onde os adquirirão, e do tempo da sua adquizição.
Quanto às irmandades, sejam eclesiásticas ou leigas, determi- Setúbal, de 2218/ 1769 (ACL - Col. Legislação Portuguesa, de F. M. Tri-
nava a provisão que caso não exibissem às autoridades judiciárias goso de Aragão Morato. v. 19, doc. 26). Posteriormente, foi aberta uma
exceção para as irmandades do Santíssimo Sacramento. A esse respeito, su-
locais as respectivas licenças, deveriam ter seus bens seqüestrados, gere-se a leitura do estudo de F. B. Marques Pinheiro sobre A Irmandade do
sendo que as relações deles deveriam ser remetidas àqueles órgão 145• Santíssimo Sacramento da Freguesia de N. Sra. da Candelária, do Rio de
Janeiro. Nesse artigo, o autor discute longamente a luta travada pelos irmãos
do Santíssimo no sentido de isentar sua associação dos rigores daquelas deter-
143 SCARANO, Julita. Op. cit., p. 69-70. Por outro lado, deve-se ressaltar que minações legais, o que foi conseguido inicialmente pela provisão de 13/2/
essa prática não se restringia às irmandades mineiras, sendo amplamente di- / 1770, da Mesa do Desembargo do Paço, e definitivamente consagrado por
vulgada também pelas irmandades da Metrópole, à mesma época (Cf. ANTT dois atos legislativos datados, respectivamente, de 3 e 20 de julho de 1793.
- Chancelaria de D. Maria I. Comuns. Livro 22, fi. 107; Livro 34, fi. O primeiro era o "Decreto facultando às Irmandades do Santíssimo a reten-
127v; Livro 40, fi. 261; GoNÇALVES, Gabriel. A Capela do Senhor do Cru- ção e administração .de bens immóvcis" (SILVA, Antônio Delgado da. Op. cit.,
zeiro de Lanheses. p 169). Que as autoridades conheciam a prática e, pelo 179111820. Suplemento, p. 35). O segundo, intitulava-se "Alvará, porque
menos, faziam vistas grossas, não resta a menor dúvida. A propósito, é sinto- Vossa Magestade ha por bem Ordenar, que não se admittão Denúncias dos
mático que se tenha publ•cado em 17/1 / 1757, um "Alvarã proibindo dar-se bens das Confrarias do Santíssimo Sacramento; e as que se tiverem dado, e
\}dinheiro a juros senão a cinco por cento". SILVA, Antôruo Delgado da. Coleção os Alvarás, que dellas se tiverem expedido, fiquem sem effeito; na forma
de Legislação Portuguesa. v. I, (1750/ 62), p. 486-8. assim declarada" (Museu Paulista. Coleção de Leis, Decretos e Alvarás. D.
144 AHUIMG - Doc. Av. Caixa 127 - 215/1783. Irmandade de N. Sra. Maria I, 1782/1792. p. 319-20).
do Rosário, do arraial de N. Sra. da Conceição, freguesia da Vila de São 148 Apud PORTO, Manoel J. Campos. Op. cit., p. 395.
João del-Rei. AEAM - Compromisso da Irmandade de N. Sra. da Boa 147 Provisão de 6 de março de 1771. In: SILVA, Antônio Delgado da. Op.
Morte, da matriz do arraial e freguesia de N. Sra. da Conceição de Guarapi- cit., 1763/1790. Suplemento, p. 260.
ranga. Alvará de provisão de confirmação, emenda ao Capítulo 7. 148 "Administração/ de Sebastião José de Carvalho e Mello, Conde de Oeyras,
145 Provisão pela qual "mandou-se proceder a sequestro nos bens que ellas Marquez de Pombal, Secretario d'Estado, Primeiro Ministro de Dom José
(confrarias leigas) possuião sem licença régia" (PORTO, Manoel José Cam- 1.0 Rei de Portugal/1786." ANRJ- Cód. 1129. p. 265/Sv.
pos. Op. cit., p. 236). V. também carta régia ao Corregedor da Comarca de
136 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 137

lhe ficam a dever. Certos espíritos lúcidos e ilustrados, como faziam em associações plenamente compatíveis com o status social
Vilhena, endossavam abertamente a política de sujeição do'> bens f dos candidatos. Não causa estranheza também que, uma vez admi-
das irmandades ricas a uma boa administração 149• Em 27 de julho tidas, essas autoridades tenham sido escolhidas para integrar as
de 1793, expediu-se uma mesas diretoras, quando mais não seja pela sua própria posição
social e pelo prestígio que tais investiduras conferiam aos sodalí-
circular acerca dos dinheiros das Irmandades e Corpos de mão
morta 1 :10. cios 152•
O que se deve enfatizar é a presença e a atuação das autori-
Em 20 de maio de 1796, era a vez de um dades nas irmandades de negros e de pardos, quase sempre em de-
alvará ordenando a venda de todas as propriedades das Misericór- corrência de solicitações partidas das próprias irmandades. Veja-se
dias, Irmandades e Confrarias e o recolhimento do dinheiro arre- o caso da Irmandade de São Gonçalo Garcia, da Vila de São João
cadado entregue aor cofres do Empréstimo Real, a fim de financiar del-Rei, que, em representação à Mesa da Consciência e Ordens,
as despesas das guerras peninsulares 151, comunicava à Rainha ter sido ela escolhida Protetora da Irmandade
Por último, restaria considerar duas formas através das quais, no ano de 1779 11!3 • A intenção e o objetivo dessa medida ficam
sem que o Estado interviesse diretamente, nem por isso deixariam transparentes com a leitura de outro requerimento que aquela agre-
de ser relevantes na análise dos instrumentos de controle exercido miação encaminhou pouco depois à Coroa, pedindo a conce&são
sobre as irmandades. A primeira delas é a presença, nos seus qua- de privilégio à irmandade para libertar os seus irmãos escravos,
dros sociais, de autoridades administrativas e militares. Evidente- mediante indenização aos seus respectivos senhores, ent:egando-se
mente que não deve causar estranheza a filiação dessas autoridades a estes o seu justo preço. Tal reivindicação era calcada em seme-
às associações religiosas da Capitania, na medida em que também lhante privilégio conferido à Irmandade de Nossa Senhora do Ro-
na Metrópole e nas outras partes do ultramar português era comum sário, de Lisboa.
fazê-lo, não havendo nenhum impedimento de ordem legal nesse
sentido. Ao contrário, a Coroa sabia muito bem o quanto era im- Pode-se argumentar, no entanto, que o conferir o título de
portante para a manutenção da dominação política a participação "Protetor'' a alguém não significa que a irmandade ficasse sujeita
efetiva de seus funcionários nos quadros das irmandades. A pró-
pria família real dava o exemplo. Ademais, aquelas adesões se 152 D. Lourenço de Almeida foi "Provedor por devoção" da Irmandade do
Santíssimo Sacramento, da matriz de N. Sra. do Pilar, de Vila Rica, entre
1727 e 1729 (Cf. AEPNSPIOP- Livro de Eleições e Termos de Ajustes da
14~ "Hé a Santa Caza de Misericordia nesta cidade, huma das mais ricas de Mesa da referida irmandade. 1718174. p. 28 e 32). Gomes Freire de An-
que eu tenho noúcia e por esta cauza se obrão todos os annos para a elleição drada foi provedor da Irmandade do Senhor dos Passos. da matriz de N. Sra.
dos seus Provedores, Escrivães, Thesoureiros e outros membros da sua gover· do Pilar, de Vila Rica, entre 1741 e 1744 (Cf. AEPNSP/OP- Livro d:
nança ... pelo que seria hum grande rasgo de política o sujeitar os seus bens Termos de Entradas de Irmãos, Eleições e Inventários da referida irmandade.
a huma administração." (VILHENA, Luiz dos Santos. Op. cit., p. 125.) 1737/91. p. IOlv/3). D. Rodrigo José de Menezes ocupou idêntico cargo,
t~o Sn..vA, Antônio Delgado da. Op. cit., 1791/1820. Suplemento, p. 36. Sobre de 1781 até sua saída do governo da Capitania, na mesma Irmandade do
o mesmo assunto, existe outra circular, datada de 27 de setembro do mesmo Senhor dos Passos (Cf. AEPNSP!OP- Livro de Termos cit., p. 131v/3v).
ano (ld, ibid., p. 39). O mesmo D. Rodrigo também intej!rava a Ordem T erceira de N. Sra. do
1 6 1 Apuu Mt.SGKAVIS, 1~'\ima. Op. cit., p. 104. l>ara a Capitania de Minas Gerais, Carmo, de Vila Rica, tendo sido seu Prior em 1783 (Cf. LoPES, Francisco
infelizmente, não se conseguiu apurar a repercussão e a aplicação desse alvará. Antônio. Hist6ria da Construção da /gr~ja do Carmo de Ouro Prelo. p. 74-5).
No entanto, podem·Se conhecer tais fatos em outros locais da Colônia, como O Tenente-Coronel Francisco de Paula Freire de Andrade foi provedor, no
Rio de Janeiro e Pernambuco. Para o caso do Rio de Janeiro, a correspon- ano compromissal de 1786/1787, da referida irmandade do Senhor dos Passos
dência do Vice-Rei com a Corte nos anos de 1799 e 1800 é extremamente (Cf. AEPNSPIOP - Livro de Termos de Entrada de Irmãos desta irman-
elucidativa a respeito e mostra a enorme dificuldade na venda dos imóveis dade. 1737/91. p. 134v) e Irmão de Mesa, no ano compromissal de 1783/
pertencentes às corporações religiosas (Cf. ANRJ - Cód. 67, v. 24, fi. 197; /1784, da Irmandade do San1issimo Sacramento, da paróquia de N. Sra. do
Cód. 67, v. 25, fi. 23v; Cód. 68, v. 15. fls. 199-200; Cód. 68, v. 16, fls. Pilar, de Vila Rica (AEPNSP/OP - Livro de Eleições e Termos de Ajustes
102-3). Para Pernambuco. consulte-se: CA1l00zo, Manoel da Silveira. Aze- de Mesa, desta irmandade. 1718174. p. 95v).
redo Coutinho e o fermento intelectual de sua época. lo: KEITH, Hcnry H. 158AHUIMG- Doc. Av. Caixa 90 (1786). Curioso notar que aquele Tri-
& EDWARDS, S. F. orgs. Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira. Rio bunal despachou a representação em 30/8/1786, mandando que a irmandade
de Janeiro, Civiliza9âo Brasileira, 1970, especialmente p. 99. requeresse diretamente à Rainha.
138 IGREJA, ESTADO E IRMANDADES EM MINAS GERAIS AS FORMAS E OS MECANISMOS DE CONTROLE 139

à ingerência do indicado nos seus negócios internos, pois é patente um meio de controle, que acabava por tirar dos irmãos muito de
o caráter de honorabilidade do título. Mas, quando nada, demonstra sua independência 1~6.
o grau de subserviência e de dependência que as próprias irmanda- S transparente a ideologização que integra essas atitudes. A pre-
des reconheciam ter diante da Coroa. sença de brancos nos cargos de de<:taque da administração das ir-
Esta, porém, é apenas uma face da moeda; a menus conside- mandades ~e. negtos demonstra a dominação ideológica a que estes '/
rável, por sinal. Essencial é o estudo da participação de elementos estavam SUJeitos.
brancos naquelas associações de negros, especialmente nas mesas
diretoras. Como se tentou demonstrar, na medida em que irman-
dades estavam sujeitas a visitas eclesiásticas ou a tomadas de contas
pelos ouvidores das comarcas, na medida em que a sua própria
rotina administrativa impunha a necessidade de escrituração per-
manente de seus livros internos, elas não podiam prescindir de
pessoas alfabetizadas para redigir os termos de mesa e as petições,
bem como fazer os lançamentos contábeis nos livros de receita e
despesas. Por outro lado, como lembrou Julita Scarano,

não tendo personalidade jurídica, o escravo não as poderia exer-


cer. . . tratando-se de cargos que exigiam maior nível cultural, era
normal que se reservassem aos que tivessem melhores requisitos
para ocupá-los 1M.

Daí, a maciça presença de brancos nos cargos e funções adminis-


trativas das irmandades mineiras.

Não quer isso diur, entretanto, que todos os brancos pertencentes


a irmandades de pretos eram irmãos de Mesa. A maioria não
passava de membros como os outros que se sujeitavam, ao menos
teoricamente, às leis da organização IGs.

E, retomando seu pensamento, questiona a historiadora paulista,


que- motivos levariam os brancos a ingressar numa confraria de
homens de cor? Embora não deixassem de invocar para tanto
razões piedosas, parece inegável que a sua presença valia ali por

1M ScARANo, Julita. Op. cit., p. 130.


I5~ Id., ibid., p. 130. Além disso, cc.nforme insiste Curt Lange, nas irmanda-
des de negros, ..houve também benfeitores, homens de significação pública, de
cor branca, atraídos ou convidados para entrar na Irmandade, pois repre-
sentavam urn certo prestígio e facilitavam, em caso de conflito com as auto-
ridades civis e eclesiásticas, a solução destes ou de outros problemas" (LANGE,
F. Curt. Os compositores na capitania-geral das Minas Gerais - segunda
metade do século XVIII. In: Estudo.; Históricos, Marüia, dez. 1965, n.0 3
e 4, p. 68).

IC.6 ScARANO, Julita. Op. cit., p. 131.

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