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Goiânia – GO
Maio/2018
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FOLHA DE AVALIAÇÃO
Goiânia – GO
Maio/2018
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Agradecimentos
Aos meus pais, pela escolha em me conceberem a vida. Tudo o que julgo original em
mim tem em vocês o seu princípio. Em especial, agradeço à minha mãe, por ser meu colo
Às mulheres da minha vida: Tânia, Sandra e Ângela, meus exemplos de fé, amor, força,
Ao meu namorado, Paulo José, com quem tenho a honra de construir uma história de
amor.
Às minhas amigas Caroline Chaveiro e Rafaela Teixeira, por todos os instantes que
vivemos juntas!
À minha amiga, Juliana Teixeira, o maior presente que eu levo do ITGT. Obrigada por
estar comigo.
À Denise Borella Sousa Costa pelo cuidado e respeito na orientação deste trabalho.
À Sandra Albernaz Saddi pelos ensinamentos que estão para além das fronteiras do
contato.
À Lara Danyla Freitas Garcia Santos, por amorosamente ser minha supervisora clínica e
Resumo
O presente artigo tem como objetivo principal demonstrar o uso do ciclo do contato como instrumento clínico no
manejo do processo psicoterapêutico na abordagem gestáltica. Para tanto, foi realizado um estudo de caso, no qual
as intervenções estavam ancoradas no modelo proposto por Ribeiro (2007). O instrumento demonstra ser útil para
diagnóstico e intervenção, permitindo que o gestalt-terapeuta faça uma leitura da forma como cliente estabelece
contato na busca pela satisfação de suas necessidades e como esse processo pode ser interrompido ou
descontinuado. Conclui-se que o instrumento é uma importante ferramenta de trabalho na elaboração de um
raciocínio clínico favorecedor do restabelecimento do desenvolvimento e do crescimento do indivíduo.
Palavras-chave: Diagnóstico Processual; Ciclo do contato; Gestalt-terapia
Abstract
This article has as main objective demonstrate the use of the contact cycle as a clinical tool in the management of
the psychotherapeutic process in the Gestalt-therapy. For this, a case study was carried out, in which the
interventions were anchored in the model proposed by Ribeiro (2007). The instrument demonstrates that it is useful
for diagnosis and intervention, allowing the gestalt-therapist to make a reading of how the client establishes contact
in the search for the satisfaction of his needs and how this process can be interrupted or discontinued. It is
concluded that the instrument is an important tool of work in the elaboration of a clinical reasoning conducive to
the reestablishment of the development and growth of the individual.
Keywords: Diagnosis; Contact Cycle; Gestalt-therapy
Resumen
El presente artículo tiene como objetivo principal demostrar el uso del ciclo del contacto como instrumento clínico
en el manejo del proceso psicoterapéutico en el abordaje gestáltico. Para ello, se realizó un estudio de caso, en el
cual las intervenciones estaban ancladas en el modelo propuesto por Ribeiro (2007). El instrumento demuestra ser
útil para diagnóstico e intervención, permitiendo que el gestalt-terapeuta haga una lectura de la forma como cliente
establece contacto en la búsqueda por la satisfacción de sus necesidades y cómo ese proceso puede ser interrumpido
o discontinuado. Se concluye que el instrumento es una importante herramienta de trabajo en la elaboración de un
raciocinio clínico favorecedor del restablecimiento del desarrollo y del crecimiento del individuo.
Palabras clave: Diagnóstico; Ciclo del contacto; Gestalt-terapia
1
Trabalho apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de especialista em Gestalt-terapia, do
Curso de Pós-graduação Latu-sensu do Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia
(ITGT).
2
Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Goiás (UFG), pós-graduanda em Gestalt-terapia pelo ITGT. E-
mail: maevyrn@gmail.com.
3
Psicóloga especialista em Gestalt-terapia pelo ITGT, professora-supervisora do ITGT. E-mail:
deniseborella@gmail.com.
2
1. Introdução
2. Fundamentação Teórica
de ser nutrida e ter suas necessidades satisfeitas pela relação com os demais, pois não se percebe
capaz de ser sua própria fonte de nutrição (Ribeiro, 2007; Pinto, 2015).
Tal característica não é observada quando a gestalt se fecha sem interrupções e o
indivíduo experimenta o contato final – subsistema cognitivo. Aqui o organismo é objeto da
própria satisfação, o que favorece um relacionamento claro e direto com o meio. Esse momento
é marcado pelo retorno da energia nas relações, sem medo da própria agressividade, de ferir ou
ser ferido. O oposto complementar é a retroflexão, movimento em que a energia é retornada à
personalidade ou ao próprio corpo, únicos objetos compreendidos como seguros. O retrofletor
rumina experiências passadas, as quais julga como inadequadas. Imagina como poderia ter feito
para agir conforme os outros desejavam ou conforme os outros são, direcionando para dentro
de si a energia que poderia ser utilizada na relação (Perls, Hefferline & Goodman 1951; Robine
2006; Ribeiro, 2007; Pinto, 2015).
Após o contato ser finalizado, é experimentada a satisfação. Essa requer da
espontaneidade, do relaxamento, da abdicação do controle, da abertura para o meio e para os
outros. Satisfeito, o indivíduo percebe o quanto o prazer e a vida podem ser compartilhados,
estando aberto às novas possibilidades, propiciadoras de crescimento. O egotismo é descrito
como oposto a esse processo, sendo marcado pelo controle excessivo de todas as possibilidades,
com o objetivo de afastar o perigo e a ameaça advindos do desconhecido. O egotista isola-se,
coloca-se como centro e exerce a manipulação de forma rígida. Tem muita dificuldade em dar
e receber, em vivenciar situações novas, em crescer e mudar, com isso acaba experimentando
uma existência solitária e, não raro, tediosa (Perls, Hefferline & Goodman 1951; Robine 2006;
Ribeiro, 2007).
Então satisfeita, a pessoa se retira da situação para que uma nova excitação emerja –
retirada. As fronteiras do organismo estão bem delineadas, propiciando o reconhecimento do
eu e do outro, bem como das diferenças entre eles. O mesmo não acontece na confluência, em
que há uma ansiedade relacionada à diferenciação e à individuação. A excitação é interrompida,
impedindo que uma nova figura emerja. O confluente está agarrando a figuras emergidas no
passado, compreendidas por ele como seguras, pois já são conhecidas. Se não há figura, não há
contato, consciência e/ou awareness. Não existe o “eu” e sim o “nós”, o esforço vem do outro
que, primitivamente, satisfez e trouxe segurança (Perls, Hefferline & Goodman 1951; Robine
2006; Ribeiro, 2007).
Os processos aqui destacados configuram uma visão didática acerca do funcionamento
humano face às necessidades emergentes. É evidente que nem todas as experiências são
completadas, nem todas as gestalten são fechadas. Ao longo da vida, o indivíduo interrompe
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sua energia em determinadas fases. O estudo de caso apresentado a seguir tem como objetivo a
elucidação de como as interrupções podem acontecer. O ciclo do contato é utilizado como
instrumento para a compreensão das descontinuidades da cliente, almejando o favorecimento
do resgate do crescimento e do desenvolvimento, com criatividade e espontaneidade (Ribeiro,
2007; Pinto, 2015).
3. Metodologia
4. Estudo de Caso4
4
Todos os participantes serão identificados com nomes fictícios.
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Será adotada a seguinte abreviação: T para terapeuta e C para cliente.
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C: [...] é parecido com o que acontecia antes... eu não podia descontar na outra pessoa,
mas eu descontava em mim, que era me cortando. Aquilo para mim era a melhor coisa [...], eu
ia para o colégio, as meninas ficavam me provocando, ai eu pegava aqueles negócios de estilete
de apontador, eu tirava, ia no banheiro, lavava, secava... e ficava no lá até a segunda aula.
T: se cortando?
C: me cortando... e aquele sangue escorrendo e eu: “ai que delícia...”
T: então, quando você fala isso, você está exatamente falando que esse era um jeito de
guardar, de não descontar no outro...
P: isso, de não descontar nas pessoas... ai eu me cortava.
T: pra que?
P: pra eu me sentir aliviada e não descontar nas outras pessoas.
imediata dirigir contra si mesmo aquilo que deveria ser orientado ao outro. Isso acontece por se
supor que a agressão não será suportada pelo meio – que projeta um conteúdo genérico
relacionado à proibição da expressão do desejo – e precisa retornar ao corpo, único objeto
entendido como seguro. Porém, ainda que não se atinja o destinatário da agressividade de modo
direto, indiretamente ele pode ser alcançado (Polster & Polster, 2001; Perls, Hefferline &
Goodman, 1951; Robine, 2006).
Bia parece represar os sentimentos, as palavras e as ações em nome do respeito à família,
como ela mesma diz em outras ocasiões, remontando a um movimento de introjeção de padrões.
Segundo Ribeiro (2007), quando um desejo fica interrompido em uma etapa do ciclo do contato
sua energia se encontrará com outra de natureza diferente e, em dado momento, poderá ser
liberada de forma indesejada pela pessoa, tendo como alvo um objeto distinto daquele do qual
se originou. O autor salienta para a importância de o psicoterapeuta estar atento à necessidade
de se manejar os bloqueios e fatores de cura que são anteriores ao que o cliente habitualmente
se encontra para, então, avançar.
Assim, psicoterapeuta e cliente seguem em busca da compreensão do que poderia
subsidiar a retroflexão de Bia. Pouco a pouco, passam a ser evidenciados os processos de
introjeção de conteúdos agressivos e a proibição da projeção dos mesmos. Ao longo do
processo, o sentimento de raiva é recorrentemente ressaltado, até que em um dado momento da
investigação, a adolescente diz senti-lo pelo pai, Tom. O genitor, de acordo com o que lhe
disseram, desamparara a mãe grávida quando descobriu que seria uma menina e não um
menino.
No atendimento, os sentimentos de “raiva, ódio e mágoa” (sic) são acompanhados com
intenso choro. Bia evidencia a necessidade de compreender a sua própria história, que parece
apresentar lacunas deixadas pela ausência paterna. Segundo ela, essas foram sendo preenchidas
pelos comentários familiares, que inclusive colaboram para que ela sinta a gama de sentimentos
relatados à psicoterapeuta: “tudo o que eu sei do meu pai foi alguém que me falou, ou minha
mãe, ou minha vó” (sic).
O processo de introjeção é marcado pela tomada para si de aspectos que são oriundos
dos outros, é nessa etapa que se constroem os “deveria/não deveria” – os introjetos – que virão
a ser os conteúdos remoídos nas retroflexões. Os sentidos para as manifestações da realidade
não são arquitetados a partir da própria experiência, mas sim daquela oferecida pelos pares em
outrora. Os afetos, antes de serem assimilados ou vivenciados, são invertidos, com o introjetor
adotando aqueles em que se acredita serem os mais apropriados para a ocasião (Robine, 2006).
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BIA
PAI
PAI
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A partir do desenho, é investigado o que Bia pensa, sente e faz em relação ao pai. Ela
relata que nos seus pensamentos se indaga: “será que um dia eu vou conseguir perdoar ele?”
(sic). Tristeza, mágoa e raiva são descritas como os sentimentos que emergem em virtude do
que pensa. Questionada sobre suas atitudes diante disso, ela diz que chora, guarda o que sente
e tenta pensar em outras coisas, querendo esquecê-lo e conclui: “eu só sinto coisas ruins pelo
meu pai, eu sinto raiva, ódio e tristeza” (sic).
Observando a ilustração, a psicoterapeuta descreve o triangulo mãe-filha-pai e investiga:
“Bia, eu percebo que os sentimentos que você mostra em relação ao seu pai são muito parecidos
com os que você diz que a sua mãe sentiu ao ser abandonada grávida...”. Com isso, a cliente
apreende que “tristeza, a mágoa e o sofrimento” (sic), podem ter sido apropriados de Cléo,
sendo oriundos da experiência dela e não da sua própria.
Salienta-se que cada etapa do ciclo do contato contém as demais e vivenciá-las
profundamente é certamente curativo. Uma vez que o processo de introjeção está sendo
trabalhado, de modo complementar a mobilização também estará, pois são interdependentes.
Da mesma forma, para que a energia interrompida na retroflexão possa ser utilizada no contato
com o outro e com o ambiente, faz-se necessário o retorno aos introjetos que podem estar
relacionados à inibição da expressão dos sentimentos e desejos (Ribeiro, 2007; Robine, 2006).
Ao longo do acompanhamento psicoterapêutico, outras introjeções também emergiram
e foram trabalhadas, como pode ser observado no fragmento a seguir, em que Bia relata sua
insegurança a respeito de conseguir realizar algo que para ela era importante naquele momento:
P: Eu acho que elas [mãe e avó] não acreditam que eu vou conseguir, por isso que elas
ficam falando isso. Até eu, eu não acredito na minha capacidade.
T: pra você, elas não acreditam na sua capacidade?
C: é... que eu não vou conseguir [...], elas dizem que essa é a verdade.
T: a verdade é: você não vai conseguir?
C: é, essa é a verdade.
T: e ai você pega a verdade e fala assim: essa é a verdade! E agarra, carrega... é assim?
P: é...
T: e essa verdade é sua?
C: Não. É delas!
T: e o que que você faz com ela?
C: eu pego! E guardo! E aceito.
T: igual um presentinho?
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desconhecido para ela e o seu conhecimento a respeito do mesmo advém dos comentários da
mãe, da avó, da madrinha e, mais recentemente, de uma tia paterna, que salienta a importância
da aproximação entre pai e filha.
É interessante notar o quanto Bia se apoia em intermediários para significar a
reaproximação de Tom, o que é característico do movimento de introjeção. O desfazer desse
processo pode ser penoso uma vez que exige, em algum nível, uma ruptura com o meio à medida
que começa a existir a identificação e escolha por desejos que não são oriundos dele. Para além
disso, ainda é necessário resistir às pressões externas, sem aceitar passivamente aquilo que é
imposto como verdade (Polster & Polster, 2001).
Retornando à sessão, a psicoterapeuta intervém: “Bia, eu gostaria de saber qual a sua
disponibilidade para conhecer verdadeiramente o seu pai...”. Como resposta, a adolescente diz:
“80%, que quer dizer que eu estou disponível” (sic). Assim, é iniciada a possibilidade de
realização de escolhas a partir do que está dado na realidade, o que permite a expansão do poder
de diferenciação entre o que é proveniente da experiência do “eu” e da que é do “outro” –
mobilização (Polster & Polster, 2001; Ribeiro, 2007).
Em outra sessão, Bia consegue dizer sobre o que espera que aconteça. Percebe que existe
o desejo de que ele ligue, venha visitá-la, diga que está com saudade e finalmente, que ela possa
chamá-lo, carinhosamente, de “papai” (sic). Em alguns momentos, diz acreditar nas
demonstrações de Tom, que requer sua atenção, inclusive solicitando-lhe um encontro, o que é
cogitado por ela. Sobre os seus sentimentos em relação ao pai naquele momento, afirma: “eu
gosto dele por um lado e por outro eu tenho raiva” (sic) e ressalta: “antes de começar o
tratamento eu odiava o meu pai, agora eu aceito, o meu pai é importante” (sic). Emocionada,
fala dos momentos com o genitor, que sempre duram poucos instantes e do seu medo de que
desta vez, como nas outras, ele desapareça rapidamente.
Testemunha-se então o despertar de um desejo que é próprio, que emerge nitidamente
como figura. A excitação é marcante e a energia proveniente dessa etapa é propulsora para o
estabelecimento de um contato direto, sem a interferência familiar. Aviva-se aquilo que se
almeja e age-se em virtude disso, sem o temor da diferença, do julgamento e da reprovação.
Aos poucos, é experimentado o reivindicar daquilo que é preciso para a integração da própria
história (Robine, 2006; Perls, Hefferline & Goodman, 1951; Ribeiro, 2006).
Bia questiona o pai sobre os motivos que o fizeram ir pela primeira vez, deixando a mãe
grávida, pergunta feita tantas vezes a si mesma. Como resposta, Tom escreve: “eu não sei, eu
não sei explicar. É melhor a gente se afastar” (sic). Posteriormente, ele a bloqueia no aplicativo
de mensagens, impedindo o único contato que estavam estabelecendo até então. Ao dizer isso,
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Bia chora durante todo o atendimento e na maior parte do tempo instaura-se o silêncio. Na
investigação, fica evidente que a resposta dada pelo pai não foi a que ela gostaria de ouvir; no
entanto, é a resposta dele, dada a partir da experiência e do contato, ainda que breve,
estabelecido entre os dois, sem intermédio dos demais.
Do ponto de vista teórico, Bia mobiliza-se, age e interage com o Tom, sendo estes –
mobilização, ação e interação – os fatores de cura dos mecanismos anteriores à etapa de
retroflexão. Tecnicamente, o ciclo do contato pode ser utilizado ora avançando ora recuando, a
depender da maior ou menor fluidez do cliente, respectivamente. Caso a psicoterapeuta
percebesse aspectos de maior flexibilidade e disponibilidade para o novo, poderia ter manejado
intervenções que possibilitassem o contato final, a satisfação e a retirada. Todavia, no desdobrar
dos atendimentos, a adolescente parecia remontar às sensações, sentimentos, pensamentos e
comportamentos antigos, fixados e enrijecidos, que careciam de ser revisitados, para então
seguir em frente (Ribeiro, 2007).
Posteriormente ao relato do afastamento, a cliente não comparece e às sessões
subsequentes elege como figura conteúdos diversos, pelos quais se problematizam a relação
com a mãe e com o padrasto, sua autoestima, autoimagem e seus relacionamentos interpessoais.
Em determinado momento, é feito um apanhado do processo psicoterapêutico até então
realizado. A jovem traz como ganho o fato de conseguir se expressar melhor: “minha mãe até
fala: ‘Bia, o que está acontecendo com você?’. ‘Está diferente, mais calma’”. Pouco a pouco,
vai se ausentando, o que fica mais comum após as férias, em julho de 2017.
Durante um mês consecutivo não comparece aos atendimentos e ao retornar inicia a
sessão dizendo: “estou grávida, casada e não aguento mais a vida de dona de casa” (sic).
Surpresa, a psicoterapeuta investiga. Bia relacionava-se com Téo, seu vizinho – um jovem de
dezoito anos, trabalhador autônomo – há dois meses, quando descobriu a gravidez. Essa não
foi inicialmente bem-vinda por todos os membros da família: “minha avó falou, você vai tirar,
minha mãe concordou” (sic). Em meio ao conflito instaurado, Bia decide ir morar com o rapaz
e ressalta o medo de que a sua história seja repetida, salientando: “eu não quero que o meu filho
tenha pais separados” (sic). A partir de então, nota-se um retorno às vivências antigas, que serão
utilizadas para a interpretação da nova realidade, em um processo de ruminação das introjeções
(Polster & Polster, 2001).
Em poucas semanas, a cliente retorna à casa da mãe e logo se finda o relacionamento
com Téo. Ele, de início, é descrito como um possível “bom pai” (sic), por aparentar maturidade
e firmeza, o que passa a ser contestado posteriormente. Segundo ela, após a notícia de que a
criança esperada é do sexo feminino, o rapaz a abandona, não atendendo às ligações, não
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respondendo as mensagens dela de celular, cessando, então, o contato entre eles. Esta sessão é
marcada pelo choro intenso de Bia e não são realizadas intervenções – além do suporte
emocional – pela psicoterapeuta.
É interessante notar que a cliente atribui ao abandono atual a mesma causa do vivenciado
em outrora: o fato de se conceber/ter sido concebida uma menina. Parece existir uma repetição
do conteúdo introjetado, que mesmo atualizado em outra relação, ainda é utilizado como se
fosse a única alternativa para a compreensão da dinâmica de afastamento, antes de seu pai,
agora do pai de sua filha. Tal movimento é característico da introjeção, em que a pessoa gasta
sua própria energia para manter os padrões introjetados, abdicando de escolhas livres e de novas
identificações (Polster & Polster, 2001).
Em uma sessão recente, Bia descreve sucessivas aproximações e distanciamentos de
Téo, sendo então indagada: “isso se parece com algo que você já viveu?”. Positivamente, a
jovem reconhece a semelhança com a sua história em relação ao pai. Novamente, traz à tona a
questão do gênero, sendo possível intervir. A psicoterapeuta propõe que a adolescente averigue,
com base naquilo que ela pode observar, outras situações que levariam esses dois homens a
optarem pelo distanciamento. Bia percebe que, ambos, poderiam simplesmente escolher por
estabelecer outras relações e/ou não serem capazes de assumir o papel imposto pela paternidade,
ainda que esses não sejam compreendidos como motivos justificáveis para o desamparo.
Ao se propor que a cliente experimente olhar para as características da sua realidade
atual, a psicoterapeuta favorece a discriminação daquilo que está posto com aquilo que em
outros momentos lhe fora dado. A novidade pode ser assimilada, com a possibilidade de
rompimento da dinâmica de retroalimentação de estereótipos, adquiridos ao longo da vida. É o
início do desfazer de um movimento automatizado de compreensão das experiências sem que
haja um suficiente investimento de energia para atualizá-las, o que leva a pessoa a recorrer aos
padrões já estabelecidos para a interpretação (Polster & Polster, 2001).
Bia retorna à dor do abandono de Tom, único fato ao qual ela verdadeiramente tem
acesso. Acredita que fez tudo o que estava ao seu alcance para ser percebida pelo pai, exaurindo-
se:
C: uma vez o meu pai disse para alguém que se eu engravidasse ele faria eu perder o
bebê igual ele fez com a minha irmã.
T: você engravidou!
C: pois é, eu desafiei ele!
T: o que você esperava, Bia?
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C: eu acho que foi para ver se ele me via, não sei, para chamar a atenção mesmo... Mas
agora chega, acabou, eu cheguei no meu limite, eu não vou fazer mais nada, eu não vou me
cortar, eu não vou engravidar... É como se eu tivesse tirado um peso! Eu não sinto mais raiva,
eu não sinto mágoa, mas já chega, agora eu vou cuidar do meu bebê.
Observa-se que mesmo com a intenção de alcançar o pai, Bia retorna a energia para ela
mesma, interrompendo o contato. Tal movimento é pontuado pela psicoterapeuta e a cliente
pode ampliar a consciência de como, habitualmente, resolve seus conflitos: “eu fico remoendo
as coisas”, “volto tudo pra dentro” (sic), “engulo” (sic). Essas são características marcantes da
retroflexão e, com Bia aware do seu processo de interrupção, a psicoterapeuta pode intervir,
propondo uma abertura para o contato direto com o outro:
T: como seria um jeito de descobrir se elas [mãe e avós] estão preocupadas e com medo
de você não conseguir ganhar a sua filha de parto normal?
C: perguntar?
T: é?
C: acho que é.
T: que pergunta você poderia, eu não estou dizendo que você vai fazer, mas que você
poderia fazer para saber?
C: perguntar porque elas estão dizendo que eu não vou conseguir ganhar a nenê de parto
normal, [...] mas ai eu também fico com um pouquinho de medo de saber a resposta... ai eu...
eu não sei se eu faço ou não faço.
T: nesse não sei se eu faço ou não faço, o que que acaba acontecendo?
C: não acontece nada, fica tudo parado.
T: igual aquele poste que você disse se sentir, no começo da sessão?
C: é.
T: engole?
C: é... guardo aqui [aponta para o coração] ...
T: e se você começasse a experimentar... perguntar... assim, como quem não quer nada...
C: talvez ia fazer bem [...], mas eu tenho medo vai que minha vó responde... igual
quando eu falei que estava grávida.
T: o que?
C: tira!
T: agora o que seria equivalente a isso?
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C: ah, “não tenho medo não” [...] algo assim... ou sei lá, “tomara que você morra!”.
T: você imagina o que levou a sua avó a te dar aquela resposta? Você chegou a conversar
com ela?
C: não [choro intenso]. Eu fiquei muito magoada com ela, então eu não quis conversar.
E essa mágoa ainda está aqui, não sei se vai passar...
T: [...] eu não consigo imaginar o que pode ter levado a sua avó ter falado isso [...] e ai
mais uma vez, não é falado, não é conversado... você pega mais uma coisa...
C: sem sentido...
T: mas que te machuca...
C: demais. Isso para mim foi pior que um tapa.
T: foi muito marcante...
C: Foi.
É evidente a necessidade de que primeiro se abra o espaço para que a luta interna
aconteça, o que é almejado em psicoterapia, para então possibilitar a recuperação do contato
final, com aquilo que é externo. Observa-se que a cliente se volta para suas introjeções, podendo
aceitar a si mesma e com isso se prepara para fazer o mesmo no mundo. Assim, desfeita a
imobilização e a rigidez, a pessoa se energiza e pode – conscientemente – retornar sua energia
para o objeto da ação necessária, encontrando o caminho e a direção na busca daquilo que lhe
é apropriado. São etapas que foram desenvolvidas com a adolescente, processualmente (Polster
& Polster, 2001; Ribeiro, 2007).
Estando aware da forma como mais caracteristicamente se interrompe, é aberta a
possibilidade de, se necessário, interromper o contato conscientemente e/ou observar quando o
está impedindo de modo anacrônico, em um movimento de retroflexão (Ribeiro, 2006; Pinto,
2015). Com isso, Bia alcança a compreensão de que reter os conteúdos para si ou retorná-los
ao ambiente é algo passível do seu controle e, desse modo, ela é responsável pelo que diz ou
não e pelo que guarda ou devolve, tal como pode ser observado no fragmento seguinte.
T: Bia, parece que tem coisas que você guarda demais... e tem coisas que você fala
demais...
C: isso.
T: você consegue fazer a diferença desses dois tipos de coisa?
C: consigo.
T: qual que é?
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C: tem umas coisas que tipo, me magoam, me machucam e ai eu guardo... mas outras
não, as que não fazem diferença eu falo.
T: tipo?
C: quando eu estou muita com raiva da pessoa, eu falo: “olha, não me enche não porque
se não eu vou te xingar”. Ai a pessoa entende, tudo bem... mas falam: “nossa, você está muito
diferente, Bia”. Ai eu estou percebendo que as pessoas estão se afastando...
T: o que faz essas pessoas se afastarem?
C: acho que é por causa do choque, porque hoje eu já dou umas más respostas...
T: como que seria o ideal? Para você...
C: não sei...
T: qual que seria assim, a medida perfeita para a Bia? Porque o falar nada não é né...
C: não.
T: o falar demais, não é né...
C: também não.
T: o guardar demais coisas tão pesadas...
C: não! [...] eu não sei... É uma balança assim, de um lado as vezes pesa demais, as
vezes do outro pesa demais... e eu não sei.
T: Bia, mas parece que você está procurando a sua medida...
C: é. Estou tentando.
T: o que você já percebeu?
C: que guardar não faz bem. Algumas coisas você tem que guardar, você não fala
assim... outras coisas não, outras coisas você pode falar.
T: então, a gente vai trocar esse “você” por “eu”... repete a frase agora.
C: algumas coisas eu tenho que guardar e outras coisas não.
T: e você pode escolher o que você quer guardar e o que você não quer.
C: é. [espanto].
T: parece que é meio novo isso...
C: é, para mim é.
T: parece que você está ouvindo pela primeira vez: “eu posso escolher o que eu vou
guardar e o que eu não vou guardar”. Ai sua carinha foi tipo assim: “ué, eu posso?”
C: é... [risos]. Eu posso? Eu posso guardar e eu posso falar?
T: sim, você pode!
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5. Conclusão
6. Referências
Ginger, S. & Ginger, A. (1995). Gestalt: uma terapia do contato. São Paulo: Summus.
Perls, F. S., Hefferline R., & Goodman, P. (1951). (F. R. Ribeiro trad.). São Paulo: Summus.
Polster, E., & Polster, M. (2001). Gestalt Terapia Integrada. (S. Augusto trad.). São Paulo:
Summus.
Ribeiro, J. P. (2007). O ciclo do contato: temas básicos na abordagem gestáltica. São Paulo:
Summus.