Você está na página 1de 4

A anima de Beethoven

“A música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não
compreende”.
Arthur Schopenhauer

Biografia

Ludwig Van Beethoven (1770-1827) nasceu em Bonn, na Alemanha e foi um


famoso compositor. Sua família era de origem flamenga (região norte da Bélgica).
Herdou o nome de seu avô paterno, Lodewijk van Beethoven, que era músico
talentoso e descendia de artistas, pintores e escultores. A identificação com o avô
foi intensa e Beethoven apontava-o como: "o avô meritório, com quem me
pareço."
Johann, o pai de Beethoven, era o único filho de Lodewijk e de María Josefa Poll
(alcoolista). Foi tenor e também lecionava, apesar de pouco habilidoso, seguiu a
carreira imposta pelo pai, mas sem igual êxito. Lodewijk era autoritário e subjugou
o filho enquanto viveu. Depois de sua morte Johann entregou-se ao alcoolismo, o
que traria muitos problemas emocionais a Beethoven, o filho famoso. Quando
Johann percebeu que o pequeno Ludwig tinha talento incomum para música tratou
de encaminhá-lo à carreira de músico. Mas o fez de forma desastrosa. Obrigava o
filho a estudar música horas e horas por dia, e não raro o espancava. A educação
musical de Beethoven tinha aspectos de verdadeira tortura.
A mãe de Beethoven, Maria Magdalena Kewerich era filha de Frau Keverich e
Johann Heinrich Keverich, chefe das cozinhas do príncipe da Renânia. Casou-se
duas vezes. Depois da morte do primeiro marido, Magdalena, por imposição da
mãe, casou-se com Johann van Beethoven, músico alcoólatra. Tiveram sete filhos,
sendo o segundo Ludwig van Beethoven. Portanto, Beethoven – que foi o terceiro
filho da sua mãe e o segundo do seu pai – teve sete irmãos, cinco dos quais
morreram na infância. Para Maria Magdalena seu casamento com Johann foi uma
cadeia de sofrimentos. Sobre o matrimônio dizia: "Se quiser aceitar um bom
conselho, permaneça solteiro e assim viverá uma vida mais tranqüila, bonita e
agradável. O que é um casamento? Uma alegria breve e depois uma cadeia de
sofrimentos” (p.16).
O alcoolismo do pai levou Beethoven a se afastar de casa aos poucos e, com a
morte da mãe (por tuberculose), quando ainda tinha 17 anos, forçou-o a assumir
responsabilidade pelos irmãos.
Beethoven não estudou muito, mas sempre revelou um talento excepcional para a
música. Compôs as suas primeiras peças aos onze anos. Trabalhava como músico
de orquestra e professor, e assim precocemente assumiu a chefia da família. Era
um adolescente introspectivo, tímido e melancólico, freqüentemente imerso em
devaneios e distrações, como seus amigos testemunharam. Comentários
semelhantes eram feitos sobre o temperamento de sua mãe. Sobre ela apontavam
alguém de caráter temeroso e imaginativo.
Os seus progressos musicais são de tal forma notáveis que aos 14 anos já era o
segundo organista da capela do Eleitor. Pouco tempo depois foi violoncelista na
orquestra da corte. Aos 17 anos foi estudar com Joseph Haydn, em Viena, onde
este o apresentou a Wolfgang Amadeus Mozart, que reconheceu o talento
prodigioso de Beethoven. "Não o percam de vista, um dia há de dar o que falar" -
disse Mozart. Aos 22 anos mudou-se para Viena e com exceção a poucas viagens,
lá permaneceu pelo resto da vida.
Por volta dos 24 anos Beethoven sentiu os primeiros indícios de surdez. Consultou
vários médicos, inclusive o médico da corte de Viena, fez curativos, realizou
balneoterapia, usou cornetas acústicas, mudou de ares, mas os seus ouvidos
permaneciam enrolhados. Desesperado, entrou em profunda crise depressiva e
pensou em suicidar-se. Escreveu em uma carta: "Foi a arte, e apenas ela, que me
reteve. Ah, parecia-me impossível deixar o mundo antes de ter dado tudo o que
ainda germinava em mim!". Aos 32 anos escreve o seu testamento aos dois
irmãos vivos Karl e Johann, o Testamento de Heilingenstadt. Embora tenha feito
muitas tentativas para tratar a surdez durante os anos seguintes, a doença
continuou a progredir e, aos 46 anos estava praticamente surdo. Deste período até
o ano da sua morte, ainda compôs cerca de 44 obras musicais.
Beethoven nunca se casou, e sua vida amorosa foi uma coleção de insucessos e de
sentimentos não-correspondidos. Ao que se sabe teve apenas um amor
correspondido que, no entanto não conseguiu realizar. A intensidade desse
sentimento ficou registrada em uma carta, escrita em 1812. Nela, o compositor se
derrama em apaixonadíssimos sentimentos a uma "Bem-Amada Imortal".
Em 1815, seu irmão Karl morre, deixando um filho de oito anos para Beethoven e
a viúva cuidarem. Porém Beethoven nunca aprovou a conduta da mãe dessa
criança e lutou na justiça para ser seu único tutor. Foram meses de um
desgastante processo judicial que acabou com o ganho de causa dado ao
compositor. Agora Beethoven teria que cuidar de uma criança, ele que sempre fora
desajeitado com a vida doméstica.
A pneumonia, além de cirrose e infecção intestinal, levaram Beethoven á morte
em 26 de Março de 1827. Estava trabalhando em uma nova Sinfonia e planejava
escrever um requiem . Conta-se que cerca de dez mil pessoas compareceram ao
seu funeral. Entre os presentes, Franz Schubert. Sua influência na história da
música foi imensa.

Obras Cinematográficas

No filme Copying Beethoven (2003) foi feito um relato ficcional do último ano de
vida do compositor. A personagem Anna Holtz (Diane Kruger) é uma jovem de 23
anos que sonha em se tornar uma compositora. Como estudante do Conservatório
de Música, ela é escolhida para trabalhar junto a Ludwig van Beethoven (Ed
Harris), o mais notável artista vivo da época. Inicialmente descrente, Beethoven
faz a Anna um desafio de improvisação, no qual ela demonstra sua sensibilidade
musical. Beethoven a aceita como escriba, dando início a um forte relacionamento
entre os dois, no qual a jovem passa a ocupar um lugar fundamental na obra do
compositor. Entre outras coisas, o filme mostra Anna guiando o artista, já surdo,
na regência de sua grande obra, a 9ª Sinfonia.
Beloved Immortal (1994) leva o espectador a Viena, 1827. Ludwig Von Beethoven
(Gary Oldman) morre e um grande amigo do compositor, Anton Felix Schindler
(Jeroen Krabbé), decide cumprir o último desejo do maestro, que deixava em
testamento tudo para a sua "Amada Imortal", sem especificar o nome desta
mulher. Assim, o amigo empreende uma jornada tentando encontrá-la,
deparando-se com uma faceta desconhecida de Beethoven.
Os dois filmes retratam Beethoven como um homem rude, grosseiro e com pouca
preocupação com a cordialidade. Não tem muitos amigos e, os poucos que possui,
trata-os com rudeza. O compositor é apontado como alguém totalmente inábil nas
relações afetivas. Beethoven tem um sobrinho, que vem a ficar sob a sua tutela
após a morte do irmão. Apesar de sua boa intenção, de munir o menino de muitas
regalias materiais e de instruí-lo pessoalmente para a música, não percebe que o
sobrinho não tem vocação musical e que sofre com sua insistência. Mais tarde, na
vida adulta o sobrinho passa a odiá-lo. Quanto às mulheres Beethoven não agiu de
maneira diferente. Apesar do amor que sente por sua amada imortal, nunca
conseguiu realizar esse amor. Há um mistério em torno da identidade dessa
mulher, porém em função de um desencontro que gerou um mal-entendido, não
lhes foi possível viver o que pretendiam. Ele morre com esse segredo e o mal-
entendido somente se desfaz após a sua morte com a ajuda do amigo. Anna Holtz
(a figura da anima) não recebe maior consideração do compositor, não obstante a
sua dedicação. É somente com muito esforço e depois de muito tempo que
Beethoven a leva a sério, então sua obra adquire um refinamento.
Discussão

Levando em consideração a biografia de Beethoven e o que foi escrito a seu


respeito enfocarei a partir de agora alguns aspectos referentes à sua anima.
A primeira imago do feminino tem origem na mãe, que influencia a anima no
homem. Desta forma, a relação com a imago materna influenciará a expressão de
sua anima. Franz (2000) argumenta que se a influência da mãe sobre o homem
revela-se negativa, sua anima se expressa, muitas vezes, de maneira irritada,
depressiva, incerta, insegura e susceptível. E, se a influência é positiva a
expressão da anima poderá levar o homem ao sentimentalismo e ao melindre.
No caso particular de Beethoven temos uma mãe inconformada com o casamento,
convicta de que um relacionamento a dois seria sinônimo de sofrimento. Seu
temperamento foi descrito como vivaz e argumentativo e que, ao mesmo tempo,
tinha um caráter medroso e imaginativo. Solomon (1987) ressalta a semelhança
com o humor de Beethoven. Ao morrer a mãe abandona o filho adolescente, que
sofre pela perda, pelo jugo paterno e pelas responsabilidades que lhe são
impostas. Esses fatos, certamente, foram decisivos na vida emocional do
compositor. A influência da experiência com a mãe em sua anima revelaram-se
marcantes no decorrer de sua obra e vida afetiva. Aliado a isso, apesar de ter o
avô como herói, Beethoven vem de uma linhagem de pais autoritários. Herdou o
talento do avô, com quem se identificou, entretanto recebeu como estímulo à
capacidade musical os maus-tratos do pai alcoolista. Percebem-se no
comportamento e na trajetória de vida de Beethoven os fortes efeitos da
experiência com o meio familiar. As influências afetivas herdadas foram a rispidez
no contato, o distanciamento e a frustração nas relações, mescladas à uma
extrema sensibilidade, que foi totalmente depositada na música.
Em sua experiência clínica Jung (O.C. 1991) constatou que “tudo o que
normalmente deveria estar na atitude externa, mas que ali falta, ostensivamente,
encontra-se com certeza, na atitude interna”. Num exame rápido a impressão que
o compositor causava nas pessoas era a de alguém frio e rude - sua persona.
Entretanto, sua musicalidade foi apaixonada e abundante em vida e emoção - sua
anima. Apesar da má impressão que causava às pessoas, Beethoven era
considerado um compositor-poeta, um romântico apaixonado pelo lirismo
dramático e pela liberdade de expressão. Parece contraditório, mas na verdade
são atitudes complementares. Beethoven desenvolveu uma persona fria, ríspida e
afetivamente distante. Esta era a sua atitude externa, uma proteção da qual se
munia para adaptar-se a sua realidade e como reflexo do aprendizado que sofreu
no convívio familiar. Já em sua atitude interna, revelou-se extremamente sensível
e apaixonado. Em sua vida amorosa não pode dar expressão ao que sentia, mas
sua composição revelou o arrebatamento de sua alma. Esse é o propósito da
anima: conectar a mente masculina com os seus valores interiores mais
profundos.
Em suas cartas (2002) Jung escreveu que “a música expressa o movimento dos
sentimentos (ou valores emocionais) que acompanham os processos
inconscientes...a música representa o movimento, o desenvolvimento e a
transformação de motivos do inconsciente coletivo. Isto está muito claro em
Wagner e também em Beethoven” (p. 158). Ou seja, a música é uma expressão
da anima, é um veículo profundo de comunicação das emoções. Para entendermos
a força da anima é útil imaginarmos alguém surdo compondo tão magnificamente
como Beethoven o fez. Sua obra não teve o auxílio da sensação, mas da emoção
que é dada pela anima. Ao mesmo tempo a anima é porta-voz do Self, que por
sua vez rege o processo de individuação. Beethoven foi o que estava destinado a
ser.
Franz (2002) enfatiza que a anima assume um papel de guia entre o mundo
interno e o Self. Isso ocorre quando o homem consegue levar a sério seus
sentimentos, humores, e fantasias que estão ligadas à sua anima e quando ele os
expressa de alguma forma, como na música por exemplo.
A anima compõe todos os aspectos femininos na psique masculina. Seus humores,
sua sensibilidade, suas emoções e a relação com o Self é intermediada pela anima.
Jung (O.C. 2000) afirma que:
“a anima é sempre o a priori de humores, reações, impulsos e de todas as
espontaneidades psíquicas. Ela é algo que vive por si mesma e que nos faz viver;
é uma vida por detrás da consciência, que nela não pode ser completamente
integrada, mas da qual pelo contrário esta última emerge” (p. 37).
Esta afirmação do autor ilustra com muita coerência a passagem da vida de
Beethoven, na qual o compositor deprime-se ao se deparar com a surdez e diz que
só não põe fim à própria vida em função de parecer-lhe “impossível deixar o
mundo antes de ter dado tudo o que ainda germinava” nele. A força da anima o
faz viver e rege sua vida através da música. No filme Copyng Beethoven, ele disse
a Anna Holtz que sua composição “revelava Deus não na mente, mas nas
entranhas”. E acrescentava que “só terá a cabeça nas nuvens quem antes pisar na
lama”, que sua obra “não era para ser entendida, mas vivenciada... é uma nova
linguagem para falar da experiência humana de Deus”. Nesse mesmo filme
chamou Anna Holtz de “secretária de Deus e o anjo de sua alma”. Esta é uma
ótima descrição para a anima já que tem como incumbência ampliar a voz do Self.
Beethoven tinha a música como algo vivo que fluía através dele. Disse: “É preciso
ouvir a voz que vem de dentro de você”. Esses pequenos trechos nos mostram o
intenso envolvimento e a perfeita integração entre Beethoven e sua anima, bem
como um processo de individuação que pôde acontecer. Ele deu-se conta no final
da vida que a surdez foi-lhe uma necessidade: “Só consegui ouvir depois que
fiquei surdo”, confidenciou a Anna.
Beethoven viveu e vibrou sua criação. Sua arte brotava de suas “entranhas” e ele
nunca demonstrou a preocupação de respeitar as regras que eram seguidas pelos
músicos daquela época. Foi um compositor livre que escreveu sua música através
das regras ditadas pelo Self através da anima, sem ficar preso às necessidades
que a nobreza impunha. Historicamente Beethoven inaugura o período romântico
na música. A partir dele a música jamais foi a mesma e é tido como o maior
compositor do século XIX.
Doente, no fim da vida compõe um hino de Ação de Graças que dedica a Deus por
permitir-lhe concluir seu trabalho.

Bibliografia:
Beloved Immortal. Direção Bernard Rose. Produção Bruce Davey, 1994. 1 DVD
(123 min.) color.
Copying Beethoven. Direção Agnieszka Holland. Produção Sidney Kimmel, Stephen
J. Rivele, Michael Taylor e Christopher Wilkinson, 2006. 1 DVD (104 min.) color.
Franz, Marie-Louise Von. (2002) “Anima”: o elemento feminino. O Processo de
individuação in JUNG, C. G. (et al) "O Homem e seus Símbolos". Tradução de
Maria Lúcia Pinho, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 177-188.
Jung, Carl G. (1921/1991). Tipos Psicológicos. vol. VI. Petrópolis: Vozes.
___________. (1934/2000). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. vol. IX/I.
Petrópolis: Vozes.
___________. (2002). Cartas de de C. G. Jung. Vol. 2. Tradução de Edgard Orth;
editado por Aniela Jaffé. Petrópolis: Vozes.
Solomon, Maynard. Beethoven, Vida e Obra. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1987.

Instituto Junguiano do Rio Grande do Sul


filiado a AJB - Associação Junguiana do Brasil
e à IAAP - International Association for Analytical Psychology

Você também pode gostar