Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Adriana Zierer1
Universidade Estadual do Maranhão
adrianazierer@gmail.com
Resumo: O objetivo deste artigo é salientar Abstract: The purpose of this article is to
a importância da figura feminina por meio emphasize the importance of the female
da imagem de Margaret de York (1446- figure through the image of Margaret of
1503), duquesa da Borgonha, casada com York (1446-1503), Duchess of Burgundy,
Carlos, o Temerário e irmã dos reis married to Charles the Bold and sister of
Eduardo IV e Ricardo III, da Inglaterra. Kings Edward IV and Richard III, of
Margaret foi uma mulher ativa que se England. Margaret was an active woman
envolveu nas questões políticas de seu who became involved in the political issues
tempo e procurou defender o ducado frente of her time and sought to defend the duchy
às investidas do rei da França, Luís XI. Era in the face of the actions of the King of
uma mulher religiosa e ao longo de sua vida France, Louis XI. She was a religious
fez várias doações às ordens religiosas. woman and throughout her life she made
Teve uma importante biblioteca com cerca several donations to religious orders. She
de duas dúzias de livros e tinha grande had an important library with about two
apreço pela cultura e por livros iluminados. dozen books and had a great appreciation
Um elemento importante é que ela é for culture and enlightened books. An
representada em várias iluminuras como important element is that she is depicted in
uma mulher piedosa, rezando e fazendo various illuminations as a pious woman,
ações de caridade. Essas atitudes, além de praying and doing charitable deeds. These
reforçar a sua religiosidade, pretendiam a attitudes, in addition to strengthening their
afirmação política do ducado da Borgonha. intended religiosity in the political
Dentre os manuscritos que encomendou o strenghth of the Duchy of Burgundy.
mais famoso é a obra Les Visions du Among the manuscripts she commissioned,
Chevalier Tondal, viagem imaginária ao the most famous is Les Visions du Chevalier
Além, redigida por David Aubert e Tondal (Visions of the Knight Tondal), an
iluminada por Simon Marmion. Nesta obra imaginary journey to the Beyond, written
é possível observar os elementos do Além- by David Aubert and illuminated by Simon
Túmulo e as concepções sobre Inferno e Marmion. In this work it is possible to
Paraíso. A obra foi feita como manual de observe the elements of Beyond the Grave
comportamento para o marido da duquesa, and the conceptions about Hell and
Carlos, o Temerário e nos auxilia a Paradise. The work was made as a manual
compreender elementos da religiosidade of behavior for the husband of the duchess,
166
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
medieval. Por meio de suas ações Charles, the Bold, and helps us to
religiosas, culturais e políticas, Margaret de understand elements of medieval
York conseguiu ter destaque numa época religiosity. Through her religious, cultural,
dominada pelos homens. and political actions, Margaret of York rose
Palavras-Chave: Margaret de York, to prominence in a male-dominated age.
religiosidade, biblioteca, política, Les Keywords: Margaret of York, religiosity,
Visions du Chevalier Tondal. library, politics, Visions of the Knight Tondal
Introdução
Este artigo tenciona mostrar a importância de Margaret de York, sua relação
com a religiosidade e com livros iluminados, em especial Les Visions du Chevalier
Tondal. Margaret, irmã de reis ingleses e casada com um duque, nos mostra a
importância do feminino no século XV. Busco compreender as relações entre
mulheres e homens nesse período por meio da História de Gênero.2 Também é
importante a História do Imaginário para compreendermos as concepções de
Margaret e de seus pares com relação à religiosidade medieval e o pós-morte.
No período em que foi duquesa, Margaret se destacou pela sua ação na
encomenda de livros e preocupação em auxiliar estudantes pobres, lhes dando
bolsas de estudo e também no papel de auxiliar instituições religiosas. Era irmã dos
reis da Inglaterra Eduardo IV (1461-1483) e Ricardo III (1483-1485); seu
casamento com Carlos, o Temerário, em 1468 se constituiu em uma aliança anglo-
borgonhesa contra o rei da França. Na ocasião, o duque estava no seu terceiro
casamento e possuía apenas uma filha, Maria da Borgonha, onze anos mais nova que
Margaret.
O objetivo central da aliança era garantir descendência masculina ao duque.
No entanto, Margaret e Carlos não tiveram filhos. Por este motivo, segundo
Blockmans, o marido a negligenciava e a via pouquíssimas vezes por ano.3 Talvez
este fato tenha intensificado a sua devoção religiosa. Margaret teve um papel político
importante, realizando viagens para ampliar os territórios do ducado e várias vezes
2 Ver sobre o conceito de Gênero, entre outros estudos, SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de
análise histórica”. Educação e Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
Silva, Andreia Frazão da. Reflexões sobre o uso da categoria Gênero nos Estudos de História Medieval
no Brasil. In: Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, jan./ jul 2004, p. 87-107.
3 BLOCKMANS, Wim. The Devotion of a Lonely Duchess. In: Kren, Thomas (Ed.). Margaret of York,
Simon Marmion and the Visions of Tondal. Malibu, California: The Paul Getty Museum, 1992, p. 29-46.
167
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
4 MOURON, Anne. The Heart of a Princess: De Doctrina Cordis and two Texts for Margaret of York.
Medium AEvum, Vol. 89, No. 1 (2020), p. 2.
5 SCHNITKER, Harry. Margaret of York, Princess of England and Duchess of Burgundy, 1446-1503:
female power, influence and authority in later fiftenth-century North-Western Europe. PhD Doctor
of Philosophy. Edinburgh: University of Edinburgh, 2007, p. 288, nt. 189.
168
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
Holanda e Espanha. Essa época é ainda marcada pelo movimento artístico e cultural
conhecido como Renascimento e pelas Grandes Navegações.
Havia, por fim, nesse período, manifestações artísticas relacionadas ao medo
da Peste e do falecimento súbito, como a Dança Macabra, com representações
imagéticas e literárias da morte que vem inesperadamente buscar os vivos de todas
as camadas sociais.6 É ainda o momento de florescimento da chamada Ars Moriendi
(Arte do Bem Morrer), livros inicialmente voltados aos religiosos, ensinando ações
corretas para realizar, visando uma boa morte cristã. Uma versão mais curta foi
dedicada aos leigos com xilogravuras, mostrando as dez tentações e em
contrapartida os dez conselhos para que as almas se salvassem e fossem ao Paraíso.7
Sobre a religiosidade medieval, desde a Idade Média Central se acreditava
que havia dois julgamentos após a morte: o primeiro, o Julgamento da Alma,
individual, ocorrido após o trespasse. Dependendo de suas ações, o ser humano
poderia ser conduzido ao Purgatório para “pagar” as penitências não cumpridas em
vida, em virtude dos pecados leves cometidos (os que podiam ser perdoados).8
Neste caso as almas seriam castigadas, com sofrimentos infligidos pelos diabos,
principalmente em locais gelados e ferventes. Este local era compreendido no
imaginário medieval como um “Inferno Temporário”9.
Já os que não haviam sido bons cristãos (isto é, não haviam cumprido os ritos
da Igreja, missa, confissão, penitência) e que tinham cometido os sete pecados
capitais, poderiam ser conduzidos eternamente ao Inferno. Por fim, um grupo
diminuto iria diretamente ao Paraíso.
O segundo momento de julgamento da humanidade seria coletivo, no Juízo
Final com a Parusia ou Segunda Vinda de Cristo. Neste momento, de acordo com a
concepção cristã, as almas serão pesadas por S. Miguel, obtendo os justos a felicidade
6 HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p, 221-245.
7 HUIZINGA, J. Ibid. ZIERER, Adriana. Ars Moriendi. In: NASCIMENTO, Mara Regina; DILLMANN,
Mauro. (Org.). Guia Didático e Histórico de Verbetes sobre a Morte e o Morrer. 1ed.Porto Alegre:
Casaletras, 2022, p. 46-55.
8 Uma das obras da biblioteca de Margaret de York era La Vision de l’Âme de Guy Thurno, que trata
sobre um homem que vai ao Purgatório e quer saber que ações fazer para diminuir o seu tempo de
permanência ali.
9 LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Estampa, 1993.
169
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
170
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
13 HUGHES, Muriel J. The Library of Philip, the Bold and Margaret of Flanders, first Valois duc and
duches of Burgundy. Journal of Medieval History, 4, 1978, p. 145. Sobre os livros encomendados e
pertencentes à biblioteca de Margaret de York, cf: BARSTOW, Kurtis A. Appendix: The Library of
Margaret de York and some Related Books. In: KREN, Thomas (Ed.). Margaret of York, Simon Marmion
and the Visions of Tondal. Malibu, California: The Paul Getty Museum, 1992, p.257-266. Ver também:
SCHNITKER, Harry. Margaret of York, Princess of England and Duchess of Burgundy, 1446-1503:
female power, influence and authority in later fiftenth-century North-Western Europe, 2007, v. 2,
Appendix 3, p. 408-487.
14 KREN, Thomas. The Library of Margaret of York and the Burgundian Court. In: The Visions of Tondal
from the Library of Margaret of York. Ed. by Thomas Kren and Roger S. Wieck. Malibu: The Paul Getty
Museum, 1990, p. 16.
15 SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens. Bauru, SP: EDUSC, 2007.
171
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
Fig. 1. Mestre de Maria da Borgonha. A Virgem em uma igreja com Maria de Borgonha em
suas devoções. Livre d’heures de Marie de Borgogne, Vienne, Osterreichische National
Bibliotek, Cod. 1857, fol. 14 v.
Na imagem vemos uma personagem, Maria, que usa o hennin16, tal como
Margaret fazia, lendo seu Livro de Horas, próxima de uma janela que mostra uma
igreja.17 Entre os elementos da cena, vemos próximo de Maria de Borgonha alguns
objetos, como o rosário, e um cãozinho está deitado no seu colo.
Também é possível notar no lado de dentro da janela a presença da Virgem
Maria e o menino Jesus ao centro, sendo ladeados por Maria de Borgonha, que
através de suas leituras e do seu pensamento pôde se transferir do mundo visível ao
invisível e estava agora próxima das figuras divinas.
A posse de livros representava uma afirmação de poder, já que eram objetos
luxuosos e caros. Daí a importância de Margaret de York ter encomendado uma série
de manuscritos iluminados, que simbolizam a afirmação do poder do ducado da
Borgonha.
Por volta de 1500, mulheres da nobreza se tornaram ativas patrocinadoras
16 Tipo de chapéu pontudo, em forma de cone que era moda na Europa do século XV, especialmente
172
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
18 EICHBERGER, Dagmar. ‘Women who read are dangerous’: illuminated manuscripts and female
book collections in the early Renaissance. In: DUNLOP, Anne (ed.). Antipodean Early Modern.
European Art in Australian Collections, c. 1200–1600. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2018,
p. 179.
19 KREN, Thomas. La Vie de Sainte Catherine ilustrée par Simon Marmion. In: L’Art de Enluminure.
173
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
174
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
175
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
Fig. 2. Master of Gerald of Roussilon. Margaret de York diante de Cristo ressuscitado, c. 1468,
de sua cópia do Diálogo de la duchesse de Bourgogne, de Nicolas Finet. BL. Add. Ms. 7970, fol.
l. Foto British Library.
21 Vários autores mencionam a relação entre Cristo aparecendo para Margaret e a imagem Noli me
tangere quando Cristo aparece diante de Maria Madalena após a ressurreição. Ver PEARSON, Andrea.
Gendered Subject, Gendered Spectator: Mary Magdalen in the Gaze of Margaret of York, Gesta, Vol.
44, No. 1 (2005), p. 47-66; EICHBERGER, Dagmar. ‘Women who read are dangerous’: illuminated
manuscripts and female book collections in the early Renaissance. In: DUNLOP, Anne (ed.).
Antipodean Early Modern. European Art in Australian Collections, c. 1200–1600, p. 87.
22 RAGNHILD M. Bø relaciona a aparição de Cristo após a ressureição diante de Margaret, com a
aparição de Cristo diante da Virgem Maria e estuda as representações imagéticas de Cristo a Maria
na região dos atuais Países Baixos. Ver Bø, Ragnhild M. The Resurrected Christ Appearing to His
176
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
177
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
Fig. 3. Nicolas Finet (texto), iluminura atribuída a Girard de Roussilon. Margaret of York e
os Sete Atos de Misericórida, da obra Benois seront les misericordieux. c. 1468–1477.
Pergaminho, 37.2cm × 26.5cm. Bruxelas: Bibliothèque Royale de Belgique, ms 9296, f. 1.
Margaret é observada por Cristo, trajado de azul, nas quatro primeiras ações,
mostradas na parte superior da imagem. Da esquerda para a direita, vemos a
178
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
duquesa entregando pão aos pobres, água para os sedentos, roupas para um homem
desnudo, hospedagem para um peregrino, que segura um cajado; na parte de baixo
da imagem, ela visita prisioneiros, doentes, onde Cristo também está a observá-la, e
assistindo a um sepultamento, o qual conta com a presença de religiosos. Por fim, na
cena final, em baixo, à direita, ela se encontra ajoelhada diante de um livro. Atrás
dela está a sua patrona, Santa Margaret. O fato de estar ajoelhada parece demonstrar
que seus atos de misericórdia foram ocasionados por orações e meditação. As cenas
são divididas por linhas douradas e entre a parte de cima e a de baixo estão as
iniciais do casal ducal, Carlos e Margaret, em dourado, sob um fundo vermelho.
Aparece também aí a cota de armas de Carlos.23
23 SUMIKO, Imai. Portraits of Margaret of York, Duchess of Burgundy at Prayer, Bulletin of Osaka,
Ohtani University, p. 160.
24 Sobre a versão francesa encomendada pela duquesa Margaret de York, cf. Les Visions du Chevalier
Tondal (1475). Paul Getty Museum; La Vision de Tondale. Les versions françaises de Jean de Vignay,
David Aubert, Regnaud de Queux. Editées par Matia Cavagna. Paris: Honoré Champion, 2008; Les
Visions du chevalier Tondal (The Visions of Tondal). In: Kren, Thomas e Wieck, Roger (Eds.). The
Visions of Tondal from the Library of Margaret de York. Malibu, Los Angeles: Paul Getty Museum, 1990,
p. 36-61. Estudos sobre o texto, cf: Cavagna, Mattia. La Vision de Tondale et ses versions françaises
(XIIIe – XVe siècles). Contribution à l’étude de la littérature visionnaire latine et française. Paris:
Honoré Champion, 2017; Zierer, Adriana. Alimentando o Corpo e a Alma no Medievo: devoração e
nutrição na Visio Tnugdali. Acta Scientiarum. Education, v. 41, p. e48175-18, 2019.
https://doi.org/10.4025/actascieduc.v41i1.48175
Zierer, A. A Duquesa Margaret de York e a Salvação de Mulheres e Homens no manuscrito iluminado
Visions du Chevalier Tondal (1475). De Medio Aevo 11/1, p. 77-
95. https://doi.org/10.5209/dmae.79876
25 Sobre essa obra há uma ampla bibliografia. Ver, entre outros: Carozzi, Claude. Le Voyage de l’Âme
dans l’Au-Delà d’Après la Littérature Latine (V-XIIIéme Siècle). Paris: École Française de Rome, 1994;
Baschet, Jérôme. Les Justices de l’Au-Délà. Les Représentations de L’Enfer en France et Italie (XII et XVe
siècle). 2e Ed., Rome: École Française de Rome, 2014; Zierer, Adriana. Visio Tnugdali e sua Circulação
nas Idades Média e Moderna (S. XII-XVI). Notandum, São Paulo, Porto, n. 43, jan-abr, p. 37-54, 2017;
Dinzelbacher, P. The Latin Visio Tnugdali and its French Translations. In: KREN, T. (Ed.). Margaret of
179
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
York, Simon Marmion and the Visions of Tondal. Malibu, California: The Paul Getty Museum, 1992, p.
111-118.
26 Ver quadro dos idiomas e traduções em Palmer, Nigel. Visio Tnugdali. The German and Dutch
Translations and their Circulation in the Later Middle Ages. München: Artemis Verlag, 1982, p. 1.
27 ZIERER, Adriana. Da Ilha dos Bem Aventurados à busca do Santo Graal: uma outra viagem pela Idade
female power, influence and authority in later fiftenth-century North-Western Europe, p. 273.
180
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
de Thurno.
Sobre Les Visions du Chevalier Tondal, David Aubert traduziu a obra do latim,
adaptando algumas partes. Dá grande importância ao fato de Tondal ser cavaleiro e
tenta traçar um paralelo entre Tondal/Carlos, o Temerário, sendo o percurso da
alma ao Além, visto como uma aventura cavalheiresca.30
Tal como outras obras em vernáculo sobre a Visio Tnugdali nos séculos finais
do Medievo, essa versão do século XV compreende o Além em três espaços,
Purgatório, Inferno e Paraíso, ao contrário do manuscrito original, produzido no
século XII, que dividia o Inferno em Superior (de onde as almas ainda poderiam sair
após terem purgado os seus pecados) e Inferior (local dos eternamente condenados,
por haverem cometido pecados capitais e não terem se arrependido deles em vida).
Margaret pretendia que a obra fosse uma espécie de espelho de
comportamento para o seu marido Carlos, na medida em que ele e o Tondal,
protagonista da Visio, eram cavaleiros e a duquesa pretendia que seu esposo se
voltasse mais às coisas do sagrado que às do profano. No entanto, tal modificação
comportamental não ocorreu e Carlos faleceu em 1477, em guerra contra Luís XI, rei
da França, como já mencionado. Seu corpo foi encontrado nu e desfigurado, atacado
por animais selvagens.
Margaret, como já vimos, era representada nas imagens sempre com o
hennin, espécie de chapéu pontudo e foi mostrada assim em muitas iluminuras que
a retrataram. O manuscrito sobre Tondal é acompanhado por belas iluminuras em
tons suaves, com o objetivo de aproximar a corte de Margaret da mensagem do texto,
bem como mostra personagens usando o hennin.
O iluminador, Simon Marmion, era conhecido em seu tempo como o “príncipe
dos iluminadores”. Ao contrário de outros artistas do seu contexto, que enfatizavam
os elementos grotescos do Inferno, com monstros horrendos e assustadores, no caso
de Marmion, as suas representações são suaves, dando mais a impressão do que
realmente mostravam os monstros e espaços infernais nas imagens.
30BUSBY, Keith. Text and Image in the Getty Tundale. In: Wright, Monica; Lacy, Norris; Pickens,
Rupert (ed.). “Moult a sans et vallour”: Studies in Medieval French Literature in Honor of William W.
Kibler. Amsterdam: Rodopi, 2012.
181
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
31 KREN, Thomas. La Vie de Sainte Catherine ilustrée par Simon Marmion. In: L’Art de Enluminure.
Paris: Éditions Faton/BNF, N° 45 - Juin/Juillet/Août 2013. ZIERER, A. A Duquesa Margaret de York e
a Salvação de Mulheres e Homens no manuscrito iluminado Visions du Chevalier Tondal (1475). De
Medio Aevo 11/1, p. 82-83, 2022.
32 A presença de um morto que aparece aos vivos, solicitando ações para a salvação de sua alma é
comum nos escritos desde a Idade Média Central. Cf. SCHMITT, Jean Claude. Os Vivos e os Mortos no
Ocidente Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
182
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
Fig. 4. Simon Marmion. Tnugdal estica o braço para pegar a comida e se sente mal durante
o jantar. Visions du Chevalier Tondal, 1475, Los Angeles, The Paul Getty Museum, ms. 30, fol.
7.
183
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
Fig. 5. Simon Marmion. Tnugdal cai no chão e parece morto Visions du Chevalier Tondal,
1475, Los Angeles, The Paul Getty Museum, ms. 30, fol. 11.
33 Há uma xilogravura que faz parte do frontispício da edição impressa produzida em Toledo no
século XVI, a Vision de Don Túngano que mostra a cena de Tnugdal recebendo a hóstia. Cf. ZIERER,
A. M. S. Paraíso e Inferno na Visión de Don Túngano (Visão de Túndalo): um percurso para a salvação.
Notandum, São Paulo/Porto, n. 42, p. 1-19, set-dez 2016.
184
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
Na cena ele é cercado por homens e mulheres que ficam aflitos ao seu redor.
É interessante salientar a importância de duas damas na cena, usando o hennin, que
estão próximas do cavaleiro. Elas se aproximam e uma delas evidencia grande
vivacidade por estar em destaque na imagem e com as mãos juntas, demonstrando
preocupação com a saúde do cavaleiro. Está dama, embora não seja a duquesa, está
diretamente relacionada a Margaret de York. Próxima dela se encontra outra mulher
com as mãos juntas enquanto o cavaleiro está estirado no chão. Já os homens que
observam a cena possuem gestos mais contidos.34
Outras figurações do iluminador dão destaque ao feminino, como será visto
adiante. Elas estão ausentes dos espaços infernais, ao contrário do texto do
manuscrito que salienta os pecados femininos e masculinos, em especial dos
religiosos e religiosas que cumpriram o pecado da fornicação. Esses são castigados
mais fortemente nos órgãos do corpo onde pecaram, daí descrições dos órgãos
sexuais infestados por vermes. Há outras descrições e outros locais com homens e
mulheres sofrendo, mas que não aparecem nas imagens de Marmion.
O feminino é visto nas iluminuras num espaço intermediário, lugar dos “não
muito maus”, onde as pessoas não estavam nos espaços infernais, mas também nem
no Paraíso, sofrendo ainda alguns desconfortos, como a fome, sede, o frio e o vento.
No f. 33v vemos um muro com a presença de homens e mulheres em trajes claros
que se encontram em pé e não parecem estar sofrendo.
As mulheres nas iluminuras de Les Visions du Chevalier Tondal são
representadas, além das cenas iniciais e na dos “não muito maus”, nas cenas
relativas ao Paraíso (f. 37, 38v, 39v). Podemos ver a figura feminina no Muro de
Prata, por exemplo, onde homens e mulheres que foram fiéis ao casamento estão
representados com a cor branca. Isso encontraria interesse por parte de Margaret,
a qual era uma mulher casada que havia sido uma boa esposa, se aproximando assim
do ideal mariano e podendo atingir a parte do Paraíso destinada aos bem casados, o
Muro de Prata.
185
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
Fig. 6. Simon Marmion. Túndalo e o Anjo com os fiéis no casamento, 1475. Visions du
chevalier Tondal. Los Angeles, The Paul Getty Museum, ms. 30, fol. 37.
Nesse lugar havia belas paisagens, cantos, pessoas que usavam trajes brancos
e muita harmonia. Cantos melodiosos representam um elemento importante do
Paraíso, que possui aspectos edênicos e ao mesmo tempo é dividido em três muros,
de Prata (bem casados que não cometeram o adultério), Ouro (religiosos de ambos
os sexos que tinham sofrido em prol da fé cristã) e Pedras Preciosas (destinado aos
mais puros de todos: os virgens de ambos os sexos dedicados à fé cristã, as nove
ordens de anjos e alguns santos irlandeses, terra natal do monge Marcus, elaborador
do relato, como S. Patrício e S. Ruadan). A Bíblia no Apocalipse de S. João também
afirma que os eleitos no Paraíso estarão em harmonia e em trajes brancos.
Encontramos nesse local homens e mulheres, religiosos e religiosas que
sofreram em prol da fé cristã. O Muro de Ouro é mostrado no manuscrito por meio
de duas imagens:
186
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
Fig. 7. Simon Marmion. Os Mártires e os Puros cantam louvores a Deus (Tnugdal e o anjo no
Muro de Ouro). In: Visions du chevalier Tondal, 1475. Los Angeles, The Paul Getty Museum,
ms. 30, fol. 38v
187
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
Fig. 8. Simon Marmion. (Detalhe) A Glória dos Monges e Freiras. In: Visions du chevalier
Tondal, 1475. Los Angeles, The Paul Getty Museum, ms. 30, fol. 39v.
Considerações Finais
O estudo sobre Margaret de York nos permite compreender o papel feminino
no Medievo, mostrando que exerciam uma série de atividades que iam muito além
do ambiente privado e com destaque no espaço público. Desta forma, mulheres do
campesinato trabalhavam na agricultora, assim como os homens35 e havia outras
35 Sobreo trabalho feminino no campo é mostrado também em belas iluminuras do calendário de Les
Très Riches Heures du Duc de Berry, manuscrito francês famoso do século XV, no qual visualizamos
as mulheres trabalhando junto dos homens na agricultura.
188
Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.
189