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Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.

A RELIGIOSIDADE DE MARGARET DE YORK E A OBRA LES


VISIONS DU CHEVALIER TONDAL (1475)

THE RELIGIOSITY OF MARGARET OF YORK AND THE WORK VISIONS


OF THE KNIGHT TONDAL (1475)

Adriana Zierer1
Universidade Estadual do Maranhão
adrianazierer@gmail.com

Resumo: O objetivo deste artigo é salientar Abstract: The purpose of this article is to
a importância da figura feminina por meio emphasize the importance of the female
da imagem de Margaret de York (1446- figure through the image of Margaret of
1503), duquesa da Borgonha, casada com York (1446-1503), Duchess of Burgundy,
Carlos, o Temerário e irmã dos reis married to Charles the Bold and sister of
Eduardo IV e Ricardo III, da Inglaterra. Kings Edward IV and Richard III, of
Margaret foi uma mulher ativa que se England. Margaret was an active woman
envolveu nas questões políticas de seu who became involved in the political issues
tempo e procurou defender o ducado frente of her time and sought to defend the duchy
às investidas do rei da França, Luís XI. Era in the face of the actions of the King of
uma mulher religiosa e ao longo de sua vida France, Louis XI. She was a religious
fez várias doações às ordens religiosas. woman and throughout her life she made
Teve uma importante biblioteca com cerca several donations to religious orders. She
de duas dúzias de livros e tinha grande had an important library with about two
apreço pela cultura e por livros iluminados. dozen books and had a great appreciation
Um elemento importante é que ela é for culture and enlightened books. An
representada em várias iluminuras como important element is that she is depicted in
uma mulher piedosa, rezando e fazendo various illuminations as a pious woman,
ações de caridade. Essas atitudes, além de praying and doing charitable deeds. These
reforçar a sua religiosidade, pretendiam a attitudes, in addition to strengthening their
afirmação política do ducado da Borgonha. intended religiosity in the political
Dentre os manuscritos que encomendou o strenghth of the Duchy of Burgundy.
mais famoso é a obra Les Visions du Among the manuscripts she commissioned,
Chevalier Tondal, viagem imaginária ao the most famous is Les Visions du Chevalier
Além, redigida por David Aubert e Tondal (Visions of the Knight Tondal), an
iluminada por Simon Marmion. Nesta obra imaginary journey to the Beyond, written
é possível observar os elementos do Além- by David Aubert and illuminated by Simon
Túmulo e as concepções sobre Inferno e Marmion. In this work it is possible to
Paraíso. A obra foi feita como manual de observe the elements of Beyond the Grave
comportamento para o marido da duquesa, and the conceptions about Hell and
Carlos, o Temerário e nos auxilia a Paradise. The work was made as a manual
compreender elementos da religiosidade of behavior for the husband of the duchess,

1Professora Adjunta da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), atuando na Graduação e Pós-


Graduação de História. Atua também na Pós-Graduação de História da Universidade Federal do
Maranhão (UFMA). É coordenadora do Brathair – Grupo de Estudos Celtas e Germânicos e Bolsista
de Produtividade do CNPq (PQ2).

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medieval. Por meio de suas ações Charles, the Bold, and helps us to
religiosas, culturais e políticas, Margaret de understand elements of medieval
York conseguiu ter destaque numa época religiosity. Through her religious, cultural,
dominada pelos homens. and political actions, Margaret of York rose
Palavras-Chave: Margaret de York, to prominence in a male-dominated age.
religiosidade, biblioteca, política, Les Keywords: Margaret of York, religiosity,
Visions du Chevalier Tondal. library, politics, Visions of the Knight Tondal

Introdução
Este artigo tenciona mostrar a importância de Margaret de York, sua relação
com a religiosidade e com livros iluminados, em especial Les Visions du Chevalier
Tondal. Margaret, irmã de reis ingleses e casada com um duque, nos mostra a
importância do feminino no século XV. Busco compreender as relações entre
mulheres e homens nesse período por meio da História de Gênero.2 Também é
importante a História do Imaginário para compreendermos as concepções de
Margaret e de seus pares com relação à religiosidade medieval e o pós-morte.
No período em que foi duquesa, Margaret se destacou pela sua ação na
encomenda de livros e preocupação em auxiliar estudantes pobres, lhes dando
bolsas de estudo e também no papel de auxiliar instituições religiosas. Era irmã dos
reis da Inglaterra Eduardo IV (1461-1483) e Ricardo III (1483-1485); seu
casamento com Carlos, o Temerário, em 1468 se constituiu em uma aliança anglo-
borgonhesa contra o rei da França. Na ocasião, o duque estava no seu terceiro
casamento e possuía apenas uma filha, Maria da Borgonha, onze anos mais nova que
Margaret.
O objetivo central da aliança era garantir descendência masculina ao duque.
No entanto, Margaret e Carlos não tiveram filhos. Por este motivo, segundo
Blockmans, o marido a negligenciava e a via pouquíssimas vezes por ano.3 Talvez
este fato tenha intensificado a sua devoção religiosa. Margaret teve um papel político
importante, realizando viagens para ampliar os territórios do ducado e várias vezes

2 Ver sobre o conceito de Gênero, entre outros estudos, SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de
análise histórica”. Educação e Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
Silva, Andreia Frazão da. Reflexões sobre o uso da categoria Gênero nos Estudos de História Medieval
no Brasil. In: Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, jan./ jul 2004, p. 87-107.
3 BLOCKMANS, Wim. The Devotion of a Lonely Duchess. In: Kren, Thomas (Ed.). Margaret of York,

Simon Marmion and the Visions of Tondal. Malibu, California: The Paul Getty Museum, 1992, p. 29-46.

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representando o esposo, que se encontrava sempre fora, em guerra. Teve excelente


relacionamento tanto com a sua sogra, Isabel de Portugal, que ao morrer lhe legou a
propriedade que mais gostava, como de sua enteada, que considerava sua filha.
Após a morte de Carlos, o Temerário, em guerra contra o rei da França, Luís
XI, em 1477, na Batalha de Nancy, Margaret continuou a exercer um importante
papel, auxiliando a enteada em questões políticas, lutando para que esta mantivesse
o ducado. Liderou a resistência à invasão francesa em Artois e negociou com as
cidades flamengas para a mobilização das tropas.4 Fundou vários conventos, bem
como, auxiliou estudantes pobres, daí estar ligada a ações de misericórdia.
Também agiu para que a enteada Maria se casasse com o futuro Imperador
do Sacro-Império, Maximiliano da Áustria, pois julgava que este daria suporte para
a manutenção do ducado contra as investidas do monarca francês. Maria da
Borgonha a apreciava muito e colocou o nome de sua filha de Margaret, em
homenagem à madrasta. Para tristeza de Margaret, Maria faleceu precocemente aos
vinte e cinco anos, em 1482, enquanto caçava um falcão, num acidente de cavalo,
que tropeçou numa pedra e a deixou cair.
Maximiliano então contou com o auxílio de Margaret na educação de seu
herdeiro, Felipe, de quem foi nomeada tutora. O genro também demonstrou afeto
pela sogra, que sempre buscou defender os seus interesses na Borgonha. Ela
assinava as cartas para ela como “vosso leal filho, Maxi”.5 A viúva faleceu em 1503,
com cinquenta e sete anos e foi uma mulher com grande destaque em seu tempo.

Margaret de York, Livros, Religiosidade e Poder


O contexto de vida da duquesa Margaret é caracterizado pelo início dos livros
impressos, os incunábulos, sendo que a Visio Tnugdali e sua versão encomendada
em francês por Margaret, teve várias edições impressas em latim e em idiomas
vernáculos entre o fim do século XV e início do XVI, principalmente na Alemanha,

4 MOURON, Anne. The Heart of a Princess: De Doctrina Cordis and two Texts for Margaret of York.
Medium AEvum, Vol. 89, No. 1 (2020), p. 2.
5 SCHNITKER, Harry. Margaret of York, Princess of England and Duchess of Burgundy, 1446-1503:

female power, influence and authority in later fiftenth-century North-Western Europe. PhD Doctor
of Philosophy. Edinburgh: University of Edinburgh, 2007, p. 288, nt. 189.

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Holanda e Espanha. Essa época é ainda marcada pelo movimento artístico e cultural
conhecido como Renascimento e pelas Grandes Navegações.
Havia, por fim, nesse período, manifestações artísticas relacionadas ao medo
da Peste e do falecimento súbito, como a Dança Macabra, com representações
imagéticas e literárias da morte que vem inesperadamente buscar os vivos de todas
as camadas sociais.6 É ainda o momento de florescimento da chamada Ars Moriendi
(Arte do Bem Morrer), livros inicialmente voltados aos religiosos, ensinando ações
corretas para realizar, visando uma boa morte cristã. Uma versão mais curta foi
dedicada aos leigos com xilogravuras, mostrando as dez tentações e em
contrapartida os dez conselhos para que as almas se salvassem e fossem ao Paraíso.7
Sobre a religiosidade medieval, desde a Idade Média Central se acreditava
que havia dois julgamentos após a morte: o primeiro, o Julgamento da Alma,
individual, ocorrido após o trespasse. Dependendo de suas ações, o ser humano
poderia ser conduzido ao Purgatório para “pagar” as penitências não cumpridas em
vida, em virtude dos pecados leves cometidos (os que podiam ser perdoados).8
Neste caso as almas seriam castigadas, com sofrimentos infligidos pelos diabos,
principalmente em locais gelados e ferventes. Este local era compreendido no
imaginário medieval como um “Inferno Temporário”9.
Já os que não haviam sido bons cristãos (isto é, não haviam cumprido os ritos
da Igreja, missa, confissão, penitência) e que tinham cometido os sete pecados
capitais, poderiam ser conduzidos eternamente ao Inferno. Por fim, um grupo
diminuto iria diretamente ao Paraíso.
O segundo momento de julgamento da humanidade seria coletivo, no Juízo
Final com a Parusia ou Segunda Vinda de Cristo. Neste momento, de acordo com a
concepção cristã, as almas serão pesadas por S. Miguel, obtendo os justos a felicidade

6 HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p, 221-245.
7 HUIZINGA, J. Ibid. ZIERER, Adriana. Ars Moriendi. In: NASCIMENTO, Mara Regina; DILLMANN,
Mauro. (Org.). Guia Didático e Histórico de Verbetes sobre a Morte e o Morrer. 1ed.Porto Alegre:
Casaletras, 2022, p. 46-55.
8 Uma das obras da biblioteca de Margaret de York era La Vision de l’Âme de Guy Thurno, que trata

sobre um homem que vai ao Purgatório e quer saber que ações fazer para diminuir o seu tempo de
permanência ali.
9 LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Estampa, 1993.

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eterna no Paraíso e os danados serão alocados eternamente no Inferno.10 Também


é importante lembrar que, segundo a concepção eclesiástica, todo o ser humano é
um homo viator, um caminhante entre dois mundos, sendo o microcosmos, este
mundo, uma cópia imperfeita do Reino Celeste. Daí o objetivo de todo o ser humano
deveria ser atingir a salvação na outra vida e desfrutar da companhia de Deus.
Por fim, também é importante destacar que o período em que Margaret de
York viveu é caracterizado pela preocupação com as Quatro Últimas Coisas (Quatuor
Hominum Novíssima): morte, Juízo Final, Céu e Inferno.11 Os leigos estavam
interessados na espiritualidade e numa espiritualidade renovada, daí a importância
de possuírem livros para que exercessem as atividades religiosas diariamente, como
livros de horas e outros manuais devocionais, visando a sua salvação.
Margaret, nascida em 1446, era filha de Ricardo III, duque de York e Cecília
Neville. A Casa de York estava em conflito com a de Lancaster na luta pelo trono
inglês. Já desde a infância foi educada em contato com obras piedosas. Sua mãe,
Cecília, lia para os filhos na hora do jantar extratos de livros devocionais, tais como
Liber specialis Gratiae, de Mechthild de Hackeborn, a Vida de Santa Catarina de Siena,
as Revelações de Santa Brígida da Suíça, o Espelho da Vida Abençoada de Jesus Cristo,
de Nicholas Love e a Epístola sobre a Vida Mista (Epistle on the Mixed Life), de Walter
Hilton. Ela explicava pela manhã os textos que haviam sido lidos a noite e
provavelmente passou para a filha o gosto por esse tipo de texto.12
Durante a Guerra das Duas Rosas (1455-1487), Eduardo, irmão de Margaret,
se tornou rei e negociou o casamento dela com Carlos, o Temerário, que se tornou
duque da Borgonha com o falecimento do pai. O enlace ocorreu em junho de 1468,
representando uma aliança anglo-borgonhesa contra Luís XI, rei da França. O
casamento teve muita pompa, com festividades que duraram nove dias e que
pretendiam mostrar o poderio da Borgonha frente ao monarca francês.

10 Sobre o Julgamento Individual e Coletivo da humanidade segundo o pensamento cristão na


concepção medieval, cf. BASCHET, Jérôme. Corpos e Almas. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2019, p.
182-187.
11 HUIZINGA, J. Op. cit., p. 236.
12 MOURON, Anne. The Heart of a Princess: De Doctrina Cordis and two Texts for Margaret of York.

Medium AEvum, Vol. 89, No. 1 (2020), p. 1.

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Margaret tinha interesse por livros. Encomendou cerca de duas dúzias de


manuscritos iluminados e teve acesso à biblioteca do pai do esposo Carlos, o duque
Felipe, o Bom, o qual também era um grande amante dos livros, sendo a biblioteca
deste uma das mais importantes do século XV.13 Dentre as obras que a duquesa
possuía, há o Apocalipse de Margaret de York. Possuía também o livro de Imitatio
Christi (Imitação de Cristo), de Thomas Kemphis, que difundia os ideais da Devotio
Moderna. Encomendou ainda o manuscrito A Consolação da Filosofia, de Boécio,
obras de Jean Gerson e outras em francês, como A Suma do Rei, do irmão Laurent.
Sua biblioteca pessoal, isto é, os livros que encomendou, é pequena, se comparada
com a de outros nobres, mas bastante significativa. Se compararmos Margaret com
sua mãe, Cecília, vemos que esta última ainda que se interessasse por livros e
chegasse a ter uma biblioteca, os exemplares não chegaram até nós e é muito
provável que não fossem ricamente iluminados como os da filha.14
Uma vez que os livros de Margaret de York tinham iluminuras, é importante
falarmos um pouco sobre o conceito de imagem. Desde a Bíblia já aparece o termo
imagem visto que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança. Essas imagens
poderiam ser visuais e mentais.15
No Medievo tinham funções rituais, simbólicas, políticas, religiosas,
estabelecendo uma relação entre o mundo visível e invisível e sendo uma maneira
de o fiel atingir a Deus. Uma imagem interessante que podemos observar está no
Livro de Horas de Maria de Borgonha e foi encomendado por Margaret para a sua
enteada.

13 HUGHES, Muriel J. The Library of Philip, the Bold and Margaret of Flanders, first Valois duc and
duches of Burgundy. Journal of Medieval History, 4, 1978, p. 145. Sobre os livros encomendados e
pertencentes à biblioteca de Margaret de York, cf: BARSTOW, Kurtis A. Appendix: The Library of
Margaret de York and some Related Books. In: KREN, Thomas (Ed.). Margaret of York, Simon Marmion
and the Visions of Tondal. Malibu, California: The Paul Getty Museum, 1992, p.257-266. Ver também:
SCHNITKER, Harry. Margaret of York, Princess of England and Duchess of Burgundy, 1446-1503:
female power, influence and authority in later fiftenth-century North-Western Europe, 2007, v. 2,
Appendix 3, p. 408-487.
14 KREN, Thomas. The Library of Margaret of York and the Burgundian Court. In: The Visions of Tondal

from the Library of Margaret of York. Ed. by Thomas Kren and Roger S. Wieck. Malibu: The Paul Getty
Museum, 1990, p. 16.
15 SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens. Bauru, SP: EDUSC, 2007.

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Fig. 1. Mestre de Maria da Borgonha. A Virgem em uma igreja com Maria de Borgonha em
suas devoções. Livre d’heures de Marie de Borgogne, Vienne, Osterreichische National
Bibliotek, Cod. 1857, fol. 14 v.

Na imagem vemos uma personagem, Maria, que usa o hennin16, tal como
Margaret fazia, lendo seu Livro de Horas, próxima de uma janela que mostra uma
igreja.17 Entre os elementos da cena, vemos próximo de Maria de Borgonha alguns
objetos, como o rosário, e um cãozinho está deitado no seu colo.
Também é possível notar no lado de dentro da janela a presença da Virgem
Maria e o menino Jesus ao centro, sendo ladeados por Maria de Borgonha, que
através de suas leituras e do seu pensamento pôde se transferir do mundo visível ao
invisível e estava agora próxima das figuras divinas.
A posse de livros representava uma afirmação de poder, já que eram objetos
luxuosos e caros. Daí a importância de Margaret de York ter encomendado uma série
de manuscritos iluminados, que simbolizam a afirmação do poder do ducado da
Borgonha.
Por volta de 1500, mulheres da nobreza se tornaram ativas patrocinadoras

16 Tipo de chapéu pontudo, em forma de cone que era moda na Europa do século XV, especialmente

no norte da Europa, como na Borgonha, França e Inglaterra.


17 Sobre a análise desta cena, cf. SCHMITT, Ibid., p. 366-368.

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de manuscritos iluminados e também os recebiam como presentes de parentes e


diplomatas. Alguns autores conheciam a paixão dessas pessoas por livros e
ofereciam seus serviços a elas.18
Outro elemento importante é que a duquesa se fez representar muitas vezes
nas páginas dos manuscritos que possuía, buscando transmitir uma imagem de boa
religiosa. Isto é, Margaret efetivamente era uma mulher devota que fez muitas
doações a instituições religiosas durante o período em que era duquesa e também
depois que ficou viúva.
Era adepta de Santa Colete, uma santa voltada a garantir a fertilidade
feminina, patrona da concepção e das mulheres grávidas. Ela e seu marido Charles
encomendaram A Vida de Santa Colete, doado ao convento das Pobres Clarissas, em
Ghent, que ainda o conserva até a atualidade.19 Esteve ligada à devoção pela Nossa
Senhora dos Sete Sofrimentos e esteve relacionada à confraria do rosário, buscando
desenvolver a renovatio cristã por meio de atividade caritativas. Margaret é
representada ajoelhada rezando em várias iluminuras.
A duquesa de York tinha uma forte ligação com ordens religiosas e foi uma
generosa benfeitora ao longo de sua vida. Ela era conhecida por seu apoio financeiro
e patrocínio a mosteiros e conventos. Fez doações significativas e concedeu
benefícios materiais às ordens religiosas, contribuindo para a construção,
manutenção e sustento dessas instituições.
Entre as ordens religiosas que receberam o seu apoio estão os Frades
Menores (franciscanos), os Cartuxos e as Clarissas (franciscanas). Apoiou a
construção e a restauração de mosteiros e conventos, fornecendo recursos para a
construção de igrejas, capelas, dormitórios e outros edifícios necessários para a vida
religiosa.
Margaret também demonstrou interesse particular pelos Cartuxos, uma

18 EICHBERGER, Dagmar. ‘Women who read are dangerous’: illuminated manuscripts and female
book collections in the early Renaissance. In: DUNLOP, Anne (ed.). Antipodean Early Modern.
European Art in Australian Collections, c. 1200–1600. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2018,
p. 179.
19 KREN, Thomas. La Vie de Sainte Catherine ilustrée par Simon Marmion. In: L’Art de Enluminure.

Paris: Éditions Faton/BNF, N° 45 - Juin/Juillet/Août 2013, p. 29.

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ordem monástica contemplativa. Ela patrocinou a construção do convento da


Cartuxa de Sheen, perto de Richmond, Inglaterra, que se tornou um importante
centro espiritual durante sua vida.
Além de seu apoio financeiro, também demonstrou um grande interesse na
vida espiritual das ordens religiosas. Ela interagia com os membros dessas
comunidades, participando de serviços religiosos, visitando mosteiros e mantendo
correspondência com monges e freiras.
A duquesa Margaret também deixou instruções específicas em seu
testamento para o bem-estar das ordens religiosas. Ela deixou legados para
mosteiros e conventos, garantindo a continuidade de suas obras de caridade mesmo
após sua morte.
Portanto, Margaret de York teve uma ligação estreita com ordens religiosas,
apoiando-as financeiramente, promovendo a construção e a restauração de
mosteiros e conventos, e demonstrando um interesse genuíno na vida espiritual
dessas comunidades. Sua generosidade e devoção às ordens religiosas refletiam sua
profunda fé e compromisso com a religião.
A esposa de Carlos, o Temerário ficou conhecida por sua importante
biblioteca pessoal, que era uma das mais relevantes da época. Ela era uma entusiasta
da leitura e da educação e tinha uma coleção significativa de livros em diversos
assuntos.
A biblioteca de Margaret incluía uma ampla gama de obras, abrangendo
Literatura, História, Teologia, Filosofia e outras disciplinas. Ela estava interessada
em textos religiosos, como a Bíblia, livros de oração e obras devocionais.
Margaret também era uma patrona das artes e da cultura. Ela apoiava a
produção de manuscritos iluminados, que eram elaborados e decorados com
requinte. Sua biblioteca incluía belos exemplares de manuscritos ricamente
ilustrados.
Além disso, Margaret também foi uma defensora da impressão de livros. Ela
encorajou a produção de obras impressas, especialmente aquelas relacionadas à
religião. Ela patrocinou a impressão de várias obras devocionais e teológicas. Uma
imagem significativa ocorre quando Caxton é mostrado ajoelhado, entregando a ela

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um livro impresso. encomendado pela duquesa (The Recuyell of the Historyes of


Troye). Margaret aparece na xilogravura recebendo o exemplar, portanto associada
ao saber e à cultura representados por este objeto, o que é mais um elemento de
afirmação política do ducado.20
A biblioteca de Margaret de York não apenas refletia sua paixão pela leitura,
mas também sua posição como uma figura influente e culta da época. Sua coleção de
livros era uma fonte de conhecimento e entretenimento, além de um símbolo de sua
posição social.
Após a morte de Margaret, sua biblioteca foi dispersa, mas alguns dos livros
sobreviveram e foram preservados em diferentes coleções e bibliotecas ao longo dos
séculos. Esses livros testemunham o seu interesse e o amor pela Literatura e pelo
conhecimento.
Uma imagem importante aparece no livro composto por Nicolas Finet sob
encomenda da duquesa, intitulado Le Dialogue de la Duchesse de Bourgogne avec Jesu
Christ (O Diálogo da Duquesa de Borgonha com Jesus Cristo). O texto está dividido
em treze artigos e um prólogo, tratando da vida contemplativa, com um total de
cento e quarenta fólios. Na primeira iluminura do texto, no frontispício (f 1 v) vemos
Margaret ajoelhada em seu quarto, com um vestido dourado, diante de Cristo com
suas chagas à mostra, após a crucificação, no momento da Ressurreição. No dossel
da cama vemos as iniciais de Carlos e Margaret. As iluminuras foram realizadas por
Dreux Jean, normalmente identificado com o Mestre de Rousillon.

20 ZIERER, A. A Duquesa Margaret de York e a Salvação de Mulheres e Homens no manuscrito


iluminado Visions du Chevalier Tondal (1475), 2022, p. 86.

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Fig. 2. Master of Gerald of Roussilon. Margaret de York diante de Cristo ressuscitado, c. 1468,
de sua cópia do Diálogo de la duchesse de Bourgogne, de Nicolas Finet. BL. Add. Ms. 7970, fol.
l. Foto British Library.

Está figuração valoriza extremamente o papel de Margaret como devota, na


medida em que Cristo teria aparecido para ela, o que lhe atribuiria uma profunda
religiosidade. Margaret nesse caso fica ligada a duas figuras importantes da Bíblia,
Maria Madalena, a quem Cristo apareceu depois da Ressurreição21, e a Virgem Maria,
sua mãe, a qual, de acordo com Thomas Kempis na Imitatio Christi (Imitação de
Cristo), manuscrito conservado por Margaret em sua biblioteca, atribui ser a sua
genitora a primeira pessoa a quem ele apareceu.22

21 Vários autores mencionam a relação entre Cristo aparecendo para Margaret e a imagem Noli me
tangere quando Cristo aparece diante de Maria Madalena após a ressurreição. Ver PEARSON, Andrea.
Gendered Subject, Gendered Spectator: Mary Magdalen in the Gaze of Margaret of York, Gesta, Vol.
44, No. 1 (2005), p. 47-66; EICHBERGER, Dagmar. ‘Women who read are dangerous’: illuminated
manuscripts and female book collections in the early Renaissance. In: DUNLOP, Anne (ed.).
Antipodean Early Modern. European Art in Australian Collections, c. 1200–1600, p. 87.
22 RAGNHILD M. Bø relaciona a aparição de Cristo após a ressureição diante de Margaret, com a

aparição de Cristo diante da Virgem Maria e estuda as representações imagéticas de Cristo a Maria
na região dos atuais Países Baixos. Ver Bø, Ragnhild M. The Resurrected Christ Appearing to His

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Margaret de York, além de elementos devocionais nas iluminuras do seguidor


de Dreu Jean, realizando os sete dos de misericórdia e também com Cristo
aparecendo a ela, é representada nas imagens recebendo livros dos que os
compuseram, como por exemplo Caxton e Nicolas Finet. É retratada em várias
iluminuras próxima de manuscritos, o que a ligava com a cultura e o saber. Em
outras imagens aparece rezando, conforme mencionado, ajoelhada, submissa ao
Salvador. Também é representada fazendo atos de caridade, como veremos a seguir
na sua realização dos sete atos de misericórdia.
O livro Benois seront les Misericordieux (Benditos serão os misericordiosos),
de Nicolas Finet, elaborado para a duquesa, possui o título retirado de O Sermão da
Montanha e buscava levar Margaret de York a uma vida mais voltada à caridade.
Finet, cônego de Cambrai e capelão da duquesa, traduziu o livro do latim num
convento cartuxo em Herinnes. Dentre as imagens, há uma iluminura de página
inteira no fólio 1r, representando a duquesa realizando os sete atos de misericórdia.
A imagem divide as ações em oito compartimentos individuais:

Mother in Late Medieval Netherlandish Altarpieces, Konsthistorisk tidskrift/Journal of Art History,


89:3, p. 165-190, 2020. DOI: 10.1080/00233609.2020.1770856

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Fig. 3. Nicolas Finet (texto), iluminura atribuída a Girard de Roussilon. Margaret of York e
os Sete Atos de Misericórida, da obra Benois seront les misericordieux. c. 1468–1477.
Pergaminho, 37.2cm × 26.5cm. Bruxelas: Bibliothèque Royale de Belgique, ms 9296, f. 1.

Margaret é observada por Cristo, trajado de azul, nas quatro primeiras ações,
mostradas na parte superior da imagem. Da esquerda para a direita, vemos a

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duquesa entregando pão aos pobres, água para os sedentos, roupas para um homem
desnudo, hospedagem para um peregrino, que segura um cajado; na parte de baixo
da imagem, ela visita prisioneiros, doentes, onde Cristo também está a observá-la, e
assistindo a um sepultamento, o qual conta com a presença de religiosos. Por fim, na
cena final, em baixo, à direita, ela se encontra ajoelhada diante de um livro. Atrás
dela está a sua patrona, Santa Margaret. O fato de estar ajoelhada parece demonstrar
que seus atos de misericórdia foram ocasionados por orações e meditação. As cenas
são divididas por linhas douradas e entre a parte de cima e a de baixo estão as
iniciais do casal ducal, Carlos e Margaret, em dourado, sob um fundo vermelho.
Aparece também aí a cota de armas de Carlos.23

Margaret de York e seu Manuscrito mais Famoso: Les Visions du Chevalier


Tondal (1475)
A obra Les Visions of the Knight Tondal é um relato de viagem imaginária que
possuiu grande circulação no período medieval.24 Originalmente foi escrita em latim
no século XII (Visio Tnugdali) pelo monge irlandês, Marcus, que se encontrava em
Regensburg, sul da atual Alemanha, para a abadessa Gisela, num período de
preocupação com o livre arbítrio.25 Foi um momento de Reforma Eclesiástica na

23 SUMIKO, Imai. Portraits of Margaret of York, Duchess of Burgundy at Prayer, Bulletin of Osaka,
Ohtani University, p. 160.
24 Sobre a versão francesa encomendada pela duquesa Margaret de York, cf. Les Visions du Chevalier

Tondal (1475). Paul Getty Museum; La Vision de Tondale. Les versions françaises de Jean de Vignay,
David Aubert, Regnaud de Queux. Editées par Matia Cavagna. Paris: Honoré Champion, 2008; Les
Visions du chevalier Tondal (The Visions of Tondal). In: Kren, Thomas e Wieck, Roger (Eds.). The
Visions of Tondal from the Library of Margaret de York. Malibu, Los Angeles: Paul Getty Museum, 1990,
p. 36-61. Estudos sobre o texto, cf: Cavagna, Mattia. La Vision de Tondale et ses versions françaises
(XIIIe – XVe siècles). Contribution à l’étude de la littérature visionnaire latine et française. Paris:
Honoré Champion, 2017; Zierer, Adriana. Alimentando o Corpo e a Alma no Medievo: devoração e
nutrição na Visio Tnugdali. Acta Scientiarum. Education, v. 41, p. e48175-18, 2019.
https://doi.org/10.4025/actascieduc.v41i1.48175
Zierer, A. A Duquesa Margaret de York e a Salvação de Mulheres e Homens no manuscrito iluminado
Visions du Chevalier Tondal (1475). De Medio Aevo 11/1, p. 77-
95. https://doi.org/10.5209/dmae.79876
25 Sobre essa obra há uma ampla bibliografia. Ver, entre outros: Carozzi, Claude. Le Voyage de l’Âme

dans l’Au-Delà d’Après la Littérature Latine (V-XIIIéme Siècle). Paris: École Française de Rome, 1994;
Baschet, Jérôme. Les Justices de l’Au-Délà. Les Représentations de L’Enfer en France et Italie (XII et XVe
siècle). 2e Ed., Rome: École Française de Rome, 2014; Zierer, Adriana. Visio Tnugdali e sua Circulação
nas Idades Média e Moderna (S. XII-XVI). Notandum, São Paulo, Porto, n. 43, jan-abr, p. 37-54, 2017;
Dinzelbacher, P. The Latin Visio Tnugdali and its French Translations. In: KREN, T. (Ed.). Margaret of

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Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.

Igreja (também conhecida como Gregoriana), na qual os oratores buscaram


fortalecer o papel da instituição e o seu poder frente aos leigos.
Essa viagem imaginária ao Além contou com muitos manuscritos
conservados em latim e foi traduzida para vários idiomas vernáculos (alemão,
francês, inglês, holandês, italiano, espanhol, português, gaélico, entre outras)26, com
grande circulação entre os séculos XII ao XVI, inclusive com exemplares impressos.
A obra pretendia a evangelização da sociedade e conta a história de um
cavaleiro irlandês pecador que um dia passou mal e sua alma saiu do corpo,
conhecendo os castigos do Inferno, num primeiro momento e depois as alegrias do
Paraíso, acompanhado por um anjo. Este lhe explica sobre cada punição e cada lugar
e lhe estimula a se arrepender de seus pecados, relacionados aos sete pecados
capitais.27
A narrativa pode ser compreendida como um manual de comportamento
cristão, pois, após retornar da sua viagem imaginária a este mundo, Tnugdal/Tondal
acorda regenerado no terceiro dia (tal como Cristo que ressuscitou), tornando-se
um modelo de cristão ideal.
No século XV, a duquesa Margaret de York tomou contato com a obra, através
das pregações de Denis de Rickell ou Denis, o Cartuxo e a encomendou a David
Aubert, redator famoso que possuía uma oficina de composição de manuscritos.28 A
sua caligrafia em letra bâtarde (bastarda) era muito apreciada na época.
Esta obra é o único manuscrito iluminado da Visio Tnugdali, com vinte
iluminuras e o mais famoso exemplar da biblioteca da duquesa de York.29 A obra foi
encadernada com duas outras também escritas com a caligrafia de David Aubert e
iluminadas por Simon Marmion, La Vie de Saint Catherine e La Vision de l’Âme de Guy

York, Simon Marmion and the Visions of Tondal. Malibu, California: The Paul Getty Museum, 1992, p.
111-118.
26 Ver quadro dos idiomas e traduções em Palmer, Nigel. Visio Tnugdali. The German and Dutch

Translations and their Circulation in the Later Middle Ages. München: Artemis Verlag, 1982, p. 1.
27 ZIERER, Adriana. Da Ilha dos Bem Aventurados à busca do Santo Graal: uma outra viagem pela Idade

Média, São Luís: Ed. UEMA/Apoio FAPEMA, 2013.


28 CAVAGNA, Mattia. La Vision de Tondale et ses versions françaises (XIIIe – XVe siècles). Contribution à

l’étude de la littérature visionnaire latine et française. Paris: Honoré Champion, 2017.


29 SCHNITKER, Harry. Margaret of York, Princess of England and Duchess of Burgundy, 1446-1503:

female power, influence and authority in later fiftenth-century North-Western Europe, p. 273.

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Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.

de Thurno.
Sobre Les Visions du Chevalier Tondal, David Aubert traduziu a obra do latim,
adaptando algumas partes. Dá grande importância ao fato de Tondal ser cavaleiro e
tenta traçar um paralelo entre Tondal/Carlos, o Temerário, sendo o percurso da
alma ao Além, visto como uma aventura cavalheiresca.30
Tal como outras obras em vernáculo sobre a Visio Tnugdali nos séculos finais
do Medievo, essa versão do século XV compreende o Além em três espaços,
Purgatório, Inferno e Paraíso, ao contrário do manuscrito original, produzido no
século XII, que dividia o Inferno em Superior (de onde as almas ainda poderiam sair
após terem purgado os seus pecados) e Inferior (local dos eternamente condenados,
por haverem cometido pecados capitais e não terem se arrependido deles em vida).
Margaret pretendia que a obra fosse uma espécie de espelho de
comportamento para o seu marido Carlos, na medida em que ele e o Tondal,
protagonista da Visio, eram cavaleiros e a duquesa pretendia que seu esposo se
voltasse mais às coisas do sagrado que às do profano. No entanto, tal modificação
comportamental não ocorreu e Carlos faleceu em 1477, em guerra contra Luís XI, rei
da França, como já mencionado. Seu corpo foi encontrado nu e desfigurado, atacado
por animais selvagens.
Margaret, como já vimos, era representada nas imagens sempre com o
hennin, espécie de chapéu pontudo e foi mostrada assim em muitas iluminuras que
a retrataram. O manuscrito sobre Tondal é acompanhado por belas iluminuras em
tons suaves, com o objetivo de aproximar a corte de Margaret da mensagem do texto,
bem como mostra personagens usando o hennin.
O iluminador, Simon Marmion, era conhecido em seu tempo como o “príncipe
dos iluminadores”. Ao contrário de outros artistas do seu contexto, que enfatizavam
os elementos grotescos do Inferno, com monstros horrendos e assustadores, no caso
de Marmion, as suas representações são suaves, dando mais a impressão do que
realmente mostravam os monstros e espaços infernais nas imagens.

30BUSBY, Keith. Text and Image in the Getty Tundale. In: Wright, Monica; Lacy, Norris; Pickens,
Rupert (ed.). “Moult a sans et vallour”: Studies in Medieval French Literature in Honor of William W.
Kibler. Amsterdam: Rodopi, 2012.

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Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.

As figurações infernais de Marmion são caracterizadas por tons escuros,


como o vermelho do fogo, das bocas dos monstros e o marrom, cor dos diabos e dos
animais demoníacos. Já no Paraíso, local de vegetação edênica e espaço da salvação,
os tons são suaves, azuis, verdes, rosas, dourados, brancos, buscando enfatizar os
elementos harmônicos do Paraíso.
Das vinte iluminuras, quatro apresentam os locais paradisíacos, duas
mostram um local intermediário, antes do Paraíso, mas que nessas iluminuras pode
ser confundido com o Paraíso (devido à paisagem edênica em ambas e a fonte de
água viva no local, f. 33v e 34v) e catorze imagens retratam os espaços infernais.
Conforme já mencionado, Les Visions du Chevalier Tondal estava encadernada
com duas outras obras, La Vie de Sainte Catherine e La Vision de l’Âme de Guy Thurno.
Esses três manuscritos possuem unidade, por terem tido o mesmo copista, David
Aubert e o mesmo iluminador, Simon Marmion. As três possuem uma decoração
floral característica, nas margens, o lema da duquesa “bien et aviegne” e as iniciais
de Carlos e Margaret, C e M entrelaçados por um laço de fita azul embaixo. La Vie de
conta o martírio de Catarina de Alexandria, que foi martirizada numa roda e depois
decapitada. Portanto, o centro da hagiografia é uma figura feminina, uma santa,
mártir em defesa da fé cristã. A obra se encontra na Bibliotheque Nationale de
France, ms. fr. 28650. As outras duas ms. 30, referente a Tnugdal e ms. 31, referente
a Guy Thurno, se encontram atualmente no Paul Getty Museum, em Malibu, nos
Estados Unidos.31
La Vision de l’Âme de Guy Thurno contém somente uma iluminura no
frontispício da obra. A narrativa trata da aparição de Thurno, após a sua morte, a
sua esposa, buscando, por meio da conversa com ela e com os clérigos, saber o que
poderia ser feito para que passasse menos tempo no Purgatório, visando obter a
salvação da sua alma.32

31 KREN, Thomas. La Vie de Sainte Catherine ilustrée par Simon Marmion. In: L’Art de Enluminure.
Paris: Éditions Faton/BNF, N° 45 - Juin/Juillet/Août 2013. ZIERER, A. A Duquesa Margaret de York e
a Salvação de Mulheres e Homens no manuscrito iluminado Visions du Chevalier Tondal (1475). De
Medio Aevo 11/1, p. 82-83, 2022.
32 A presença de um morto que aparece aos vivos, solicitando ações para a salvação de sua alma é

comum nos escritos desde a Idade Média Central. Cf. SCHMITT, Jean Claude. Os Vivos e os Mortos no
Ocidente Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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Revista Signum, v. 24, n. 2, 2023.

Essas narrativas mostram que o período de Margaret de York é marcado pela


Peste Bubônica, Guerra dos Cem Anos, conflitos entre franceses e borgonheses,
Guerra das Duas Rosas, fome, inflação, revoltas populares. Neste sentido, havia um
sentimento de medo da morte e de como seria o mundo no Além.
Na obra Les Visions du Chevalier Tondal embora a duquesa não seja retratada,
duas personagens usam nas iluminuras iniciais o hennin (chapéu pontudo), com o
qual vemos Margaret representada normalmente em imagens. Assim, haveria
inconscientemente uma relação entre a duquesa e essas representações.
Na imagem do jantar, ocasião quando o cavaleiro Tondal se sente mal, há na
mesa a representação da anfitriã, que está relacionada a Margaret. Já o anfitrião
possui relação com Carlos o Temerário por usar um colar que pode estar associado
ao da Ordem do Tosão de Ouro, ordem honorífica a qual o duque pertencia. Também
usa uma espécie de colar (que não identificamos muito bem na iluminura), o
cavaleiro Tondal.

Fig. 4. Simon Marmion. Tnugdal estica o braço para pegar a comida e se sente mal durante
o jantar. Visions du Chevalier Tondal, 1475, Los Angeles, The Paul Getty Museum, ms. 30, fol.
7.

A imagem representa o momento em que o jovem se sentiu mal quando ia


tocar o alimento (associado na imagem à carne e, portanto, ao aspecto material, aos

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pecados da carne em oposição às coisas espirituais), e após pedir à anfitriã para


tomar conta do seu machado porque estava morrendo, cai desmaiado no chão (f.
11). Um elemento a ser destacado é que ao retornar da sua viagem extracorpórea a
primeira coisa que pede é para se confessar e tomar o corpus christi, a hóstia,
alimento espiritual, o que mostra a regeneração do cavaleiro.33 No retorno a este
mundo, quando ‘acorda’ de sua viagem espiritual, ele se torna bom cristão, doando
bens à Igreja e aos pobres.
Na segunda iluminura sobre a cena do jantar, vemos Tondal caído no chão e
parece usar um colar (referência à Ordem do Tosão de Ouro que Carlos o Temerário
pertencia, como já citado).

Fig. 5. Simon Marmion. Tnugdal cai no chão e parece morto Visions du Chevalier Tondal,
1475, Los Angeles, The Paul Getty Museum, ms. 30, fol. 11.

33 Há uma xilogravura que faz parte do frontispício da edição impressa produzida em Toledo no
século XVI, a Vision de Don Túngano que mostra a cena de Tnugdal recebendo a hóstia. Cf. ZIERER,
A. M. S. Paraíso e Inferno na Visión de Don Túngano (Visão de Túndalo): um percurso para a salvação.
Notandum, São Paulo/Porto, n. 42, p. 1-19, set-dez 2016.

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Na cena ele é cercado por homens e mulheres que ficam aflitos ao seu redor.
É interessante salientar a importância de duas damas na cena, usando o hennin, que
estão próximas do cavaleiro. Elas se aproximam e uma delas evidencia grande
vivacidade por estar em destaque na imagem e com as mãos juntas, demonstrando
preocupação com a saúde do cavaleiro. Está dama, embora não seja a duquesa, está
diretamente relacionada a Margaret de York. Próxima dela se encontra outra mulher
com as mãos juntas enquanto o cavaleiro está estirado no chão. Já os homens que
observam a cena possuem gestos mais contidos.34
Outras figurações do iluminador dão destaque ao feminino, como será visto
adiante. Elas estão ausentes dos espaços infernais, ao contrário do texto do
manuscrito que salienta os pecados femininos e masculinos, em especial dos
religiosos e religiosas que cumpriram o pecado da fornicação. Esses são castigados
mais fortemente nos órgãos do corpo onde pecaram, daí descrições dos órgãos
sexuais infestados por vermes. Há outras descrições e outros locais com homens e
mulheres sofrendo, mas que não aparecem nas imagens de Marmion.
O feminino é visto nas iluminuras num espaço intermediário, lugar dos “não
muito maus”, onde as pessoas não estavam nos espaços infernais, mas também nem
no Paraíso, sofrendo ainda alguns desconfortos, como a fome, sede, o frio e o vento.
No f. 33v vemos um muro com a presença de homens e mulheres em trajes claros
que se encontram em pé e não parecem estar sofrendo.
As mulheres nas iluminuras de Les Visions du Chevalier Tondal são
representadas, além das cenas iniciais e na dos “não muito maus”, nas cenas
relativas ao Paraíso (f. 37, 38v, 39v). Podemos ver a figura feminina no Muro de
Prata, por exemplo, onde homens e mulheres que foram fiéis ao casamento estão
representados com a cor branca. Isso encontraria interesse por parte de Margaret,
a qual era uma mulher casada que havia sido uma boa esposa, se aproximando assim
do ideal mariano e podendo atingir a parte do Paraíso destinada aos bem casados, o
Muro de Prata.

34 ZIERER, A. A Duquesa Margaret de York e a Salvação de Mulheres e Homens no manuscrito


iluminado Visions du Chevalier Tondal (1475), 2022, p. 88-89.

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Fig. 6. Simon Marmion. Túndalo e o Anjo com os fiéis no casamento, 1475. Visions du
chevalier Tondal. Los Angeles, The Paul Getty Museum, ms. 30, fol. 37.

Nesse lugar havia belas paisagens, cantos, pessoas que usavam trajes brancos
e muita harmonia. Cantos melodiosos representam um elemento importante do
Paraíso, que possui aspectos edênicos e ao mesmo tempo é dividido em três muros,
de Prata (bem casados que não cometeram o adultério), Ouro (religiosos de ambos
os sexos que tinham sofrido em prol da fé cristã) e Pedras Preciosas (destinado aos
mais puros de todos: os virgens de ambos os sexos dedicados à fé cristã, as nove
ordens de anjos e alguns santos irlandeses, terra natal do monge Marcus, elaborador
do relato, como S. Patrício e S. Ruadan). A Bíblia no Apocalipse de S. João também
afirma que os eleitos no Paraíso estarão em harmonia e em trajes brancos.
Encontramos nesse local homens e mulheres, religiosos e religiosas que
sofreram em prol da fé cristã. O Muro de Ouro é mostrado no manuscrito por meio
de duas imagens:

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Fig. 7. Simon Marmion. Os Mártires e os Puros cantam louvores a Deus (Tnugdal e o anjo no
Muro de Ouro). In: Visions du chevalier Tondal, 1475. Los Angeles, The Paul Getty Museum,
ms. 30, fol. 38v

Nesta primeira imagem do Muro de Ouro, vemos homens e mulheres


ricamente trajados em tons rosados e azuis, com coroas em suas cabeças. Sobressai
o dourado, cor do Muro, num ambiente edênico marcado pela cor verde, da
vegetação em redor do muro.
A segunda imagem referente ao Muro de Ouro mostra os eleitos na
companhia de anjos, usando cores brancas e com a presença de instrumentos
musicais, marcando a harmonia paradisíaca. O texto menciona a presença de
homens e mulheres ali, mas a iluminura não deixa tão claro se as pessoas nesse local
são de ambos os sexos:

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Fig. 8. Simon Marmion. (Detalhe) A Glória dos Monges e Freiras. In: Visions du chevalier
Tondal, 1475. Los Angeles, The Paul Getty Museum, ms. 30, fol. 39v.

Vemos na imagem pessoas tocando instrumentos musicais numa tenda rosa.


Por fim é dito que homens e mulheres estão no Muro de Pedras Preciosas, mas o
iluminador não nos mostra o que existe nesse local. No f. 42, tudo o que temos é a
figura do anjo e Tnugdal em frente a um muro azul. A seguir, como já referido,
Tnugdal “acorda”, isto é, sua viagem imaginária termina e ele se encontra de volta a
este mundo como um modelo de cristão ideal. Les Visions du Chevalier Tondal, por
meio do texto de David Aubert e imagens de Simon Marmion, com certeza contribuiu
para aguçar os sentimentos devotos de Margaret de York e de sua corte.

Considerações Finais
O estudo sobre Margaret de York nos permite compreender o papel feminino
no Medievo, mostrando que exerciam uma série de atividades que iam muito além
do ambiente privado e com destaque no espaço público. Desta forma, mulheres do
campesinato trabalhavam na agricultora, assim como os homens35 e havia outras

35 Sobreo trabalho feminino no campo é mostrado também em belas iluminuras do calendário de Les
Très Riches Heures du Duc de Berry, manuscrito francês famoso do século XV, no qual visualizamos
as mulheres trabalhando junto dos homens na agricultura.

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nas cidades que exerciam atividades artesanais e comerciais. Quanto às mulheres da


nobreza, também exerciam uma multiplicidade de funções, inclusive relacionadas
ao poder.
Conforme foi possível observar, Margaret de York foi uma mulher culta e que
soube usar a política para garantir os direitos de seu marido, de sua enteada, seu
genro e netos com relação ao ducado da Borgonha. Numa sociedade misógina ela
soube agir, estabelecendo relações e procurando fortalecer a imagem do ducado.
Como vimos, Margaret, que era uma pessoa profundamente religiosa, ligada aos
cartuxos, às clarissas, dominicanos, entre outros grupos religiosos, se fez
representar em muitos manuscritos e pinturas como uma mulher devota, visando
fortalecer a sua imagem como duquesa e ao mesmo tempo conter a ação do rei da
França Luís XI, sobre os seus domínios e os de seus familiares na Borgonha. Teve
uma educação religiosa desde a infância e foi influenciada por sua mãe, Cecília de
Neville e pela sogra, Isabel de Portugal, mulheres também fortes como ela e que
tiveram importância em assuntos administrativos e políticos.
Embora não tenha sido mãe de fato, exerceu as tarefas da maternidade,
cuidando, inicialmente de sua enteada Maria e depois dos seus filhos. A sua
biblioteca, com uma série de obras encomendadas por ela e algumas herdadas, foi
uma biblioteca importante e dali destaca-se o mais importante livro encomendado
por Margaret, Les Visions du Chevalier Tondal, com o objetivo de converter o seu
marido Carlos, o Temerário. Ainda que essa obra não tenha conseguido modificar o
comportamento belicoso de Carlos, com certeza confortou Margaret e a auxiliou a
refletir sobre o Paraíso, certamente pensando que atingiria lugar dos fieis no
casamento, o Muro de Prata, quando terminasse a sua missão neste mundo.
Margaret cumpriu bem os seus compromissos familiares, espirituais, culturais e
políticos, sendo uma mulher de destaque em seu tempo.

Artigo recebido em 05/06/2023


Artigo aceito em 10/08/2023

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