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BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 2

bell hooks além do espelho


Patrícia Silva
1ª edição – janeiro de 2023

Editor:
Isabel E. F. M. Veloso

Coordenação:
Patthy Silva (@pretaderodinhas)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Silva, Patrícia

Bell Hooks [livro eletrônico] : além do espelho / Patrícia Silva. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro
: Ed. da Autora, 2023. PDF.

ISBN 978-65-00-59748-6

1. Empoderamento 2. Ensaios - História e crítica 3. Feminismo 4. Hooks, Bell, 1952-


2021 - Critica e interpretação 5. Identidade de gênero 6. Mulheres negras 7. Mulheres
- Direitos 8. Racismo I. Título.

22-140733 CDD-300

Índices para catálogo sistemático:

1. Ensaios : Mulheres negras : Antirracismo : Ciências sociais 300


Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
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“Se há um livro que você quer ler, mas não foi escrito ainda,
então você deve escrevê-lo”. (Toni Morrison)
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Gloria Jean Watkins é o nome de batismo de bell hooks. Ela nasceu em 1952,
em Hopkinsville, uma pequena cidade do estado de Kentucky, no sul dos Estados
Unidos.

A escolha do pseudônimo bell hooks é uma homenagem à sua bisavó Bell Blair
Hooks, conhecida dentro da família pela sua coragem de dizer a verdade. Quando
bell hooks começa escrever, passa a adotar o nome da bisavó como uma forma de
reivindicar esse legado, já que, desde a infância, hooks também gostava de expressar
suas ideias de forma sincera. Adotou a escrita do nome em letras minúsculas como
um posicionamento político que busca romper com as convenções linguísticas e
acadêmicas. bell hooks faleceu em 2021.

bell hooks foi uma intelectual americana, muito conhecida aqui no Brasil por
sua teoria feminista. O que poucos sabem é que, além de teórica feminista, hooks
também foi uma grande crítica cultural.

Suas obras abordam, além do feminismo, temas como liberdade de expressão,


censura, masculinidade, escolarização, auto-estima, amor e religião. O pensamento
de hooks é marcado por fontes heterodoxas: de Santa Tereza D´Ávila a Nathanaiel
Branden, suas ideias buscam fontes filiadas a diferentes posicionamentos políticos e
ideológicos.

A heterodoxia de hooks destacou-se aos meus olhos. Para mim, é como se ela
gostasse de pensar à margem, recusando encaixar-se em padrões (até aqueles
estabelecidos pelo movimento feminista). Essa recusa, claro, causou tensões do lado
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de lá e surpresas do lado de cá. Quem poderia imaginar que uma feminista poderia
dizer que “toda mulher quer ser amada por um homem”1?

bell hooks vai “além do espelho”. Ou seja, ela vai além da sua imagem. Sua
honesta busca pela verdade a colocou em confronto com sua autodefinição, a ponto
de parecer, por vezes, contraditória.

Este e-book reúne 11 ensaios que escrevi sobre temas desenvolvidos pela
“bell hooks que está além do espelho”; esses ensaios foram publicados originalmente
no meu blog pessoal (@pretaderodinhas) e aparecem aqui revisados e ampliados.

1
The will to change: men, masculinity and love. Todas as traduções apresentadas aqui, de livros que
ainda não possuem versão em língua portuguesa, foram feitas por mim.
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Nos meados dos anos 1990, o governo canadense não autorizou que o livro
"Olhares negros: raça e representação", de autoria da bell hooks, entrasse no
Canadá; foi considerado pelas autoridades canadenses como literatura que incita o
ódio. Cópias do livro foram adquiridas por uma livraria considerada "radical".

Em "Outlaw Culture: resisting representations", bell hooks relata o caso e


aponta que a censura aplicada pelo Estado canadense não foi a ela, mas à livraria.
Após protestos, os livros foram liberados, mas um recado foi dado: "(...) o Estado está
acompanhando e pronto para censurar." (hooks, 1994, p.73)

Censura e liberdade de expressão são tópicos que aparecem com frequência


no debate público. No Brasil, esses tópicos são comumente expostos por intelectuais
associados ao liberalismo e ao conservadorismo. Normalmente, eles são homens e
brancos.

Como acadêmica negra, eu gostaria de usar este espaço para dar meus 20
centavos de contribuição para o debate. De princípio, já declaro que subscrevo a
posição de bell hooks (1994): "(...) o cerne político de qualquer movimento pela
liberdade na sociedade deve ter o imperativo político de proteger a liberdade de
expressão" (p.75)

bell hooks foi uma conhecida teórica feminista negra, progressista e


anticapitalista. Pode ser surpresa para muitos, mas ela defendia que a liberdade de
expressão deve ser protegida também por ativistas progressistas: "(...)ativistas
progressistas devem trabalhar politicamente para proteger a liberdade de expressão,
para opor-se à censura. (...)"(1994, p.75)
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hooks (1994) pontua que tanto o movimento feminista quanto o movimento


negro possuem reticências à oposição veemente à censura. O silenciamento, então,
passou a ser um aspecto aceito em ambos os movimentos: "(...)esse silenciamento
velado de vozes e opiniões divergentes debilita a liberdade de expressão e amplia as
forças da censura dentro e fora dos movimentos radicais." (p.75)

A autora afirma que

(...) a censura de vozes divergentes em círculos progressistas


frequentemente passa despercebidos. Grupos radicais são frequentemente
tão pequenos que é fácil punir as pessoas usando táticas que podem não ser
tão evidentes para pessoas fora do grupo. Usualmente, a repressão é
promovida pelos poderosos membros do grupo, a mais comum é um tipo de
ostracismo ou excomunhão. (hooks, 1994, p.76)

A punição dos indivíduos divergentes dentro dos círculos progressistas pode


acontecer através da exclusão de seus pensamentos ou textos em debates
importantes e até a sua exclusão de encontros e conferências: "E em alguns casos,
pode tomar a forma de um constante esforço feito behind-the-scenes para lançar
dúvidas sobre sua credibilidade." (hooks, 1994, p.77)

A militância de grupos socialmente marginalizados - pobres, negros, gays,


indígenas - teme que as vozes divergentes expressas de forma pública possam
contribuir com os argumentos do grupo opositor - brancos de classes média ou alta.
O esforço de censura empreendido pela militância tem como principal foco criar uma
imagem homogênea e positiva para o grupo opositor. Por essa razão, negros
libertários, liberais ou conservadores são duramente advertidos pela militância negra,
que é majoritariamente progressista.

Ainda em "Outlaw Culture: resisting representations", bell hooks relata que


publicou um texto sobre a performance de Anita Hill durante o caso de assédio contra
Clarence Thomas2. O texto de hooks foi duramente criticado por uma grande feminista

2
Em 1991, a advogada Anita Hill testemunhou que o indicado à juiz da Suprema Corte dos Estados
Unidos, Clarence Thomas, a havia assediado sexualmente quando ele era presidente da Comissão
de Oportunidades Iguais de Emprego. Em “Olhares Negros: raça e representação”, bell hooks (2019)
conta como esse caso gerou impasse entre os ativismos negro e feminista pois tanto Hill quanto
Thomas eram negros e conservadores: “estamos assistindo a duas pessoas negras conservadoras
que demonstraram, com suas alianças políticas, que se identificam com a cultura e a política
conservadora branca dominante” (p.155)O testemunho de Hill não impediu que Thomas ocupasse o
mais alto cargo da justiça americana, tornando-se o segundo negro a compor a Suprema Corte.
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negra. Segundo hooks, “(...) ela sentiu que minha crítica à performance de Hill foi uma
traição à solidariedade feminista” (1994, p.78)

A repreensão pública por manifestar dissenso aconteceu com hooks anos


antes do texto que publicara sobre a performance de Anita Hill:

“(...) eu escrevi uma crítica sobre o trabalho de uma grande escritora negra.
(...) Quando o texto foi publicado, eu fui informada que a escritora não estava
apenas magoada, mas que não me considerava mais uma aliada. O fato que
o texto não detonou o trabalho dela não importou. Minha insistência em
criticar um trabalho não significa que eu não admire e goste de outros textos
da mesma autora não resultaram em nada. Simplesmente me disseram que
escrever e publicar este texto seria um ato de traição. (hooks, 1994, p.78)

hooks (1994) afirma que há um grupo de elite entre os intelectuais, acadêmicos


e escritores negros. Esse grupo de elite não é escolhido por outros negros e tende a
ser determinado de acordo com "(...) o grau em que um indivíduo conquista a
consideração e o reconhecimento de um poderoso público branco." (p.79)

A elite da intelectualidade negra assume o papel de mediadora entre a


comunidade negra e a cultura mainstream. Esta elite é

a polícia secreta, que regula ideias, determina quem pode falar onde e
quando, o que precisa ser escrito e por quem, e claro distribuindo
recompensas e punições. Esse grupo não é todo-poderoso, mas busca
censurar vozes que dizem o que não é considerado aceitável." (hooks, 1994,
p.80)

Se os intelectuais negros que possuem largo acesso à mídia usam seu poder
para silenciar, de fato, não há condições para cultivarmos a liberdade de expressão,
acolher a diferença e celebrar a alteridade. Os intelectuais negros de elite estão

Confortáveis com a censura quando podem afirmar que é do interesse


coletivo, eles não veem uma conexão entre essas ações e os esforços gerais
para minar a liberdade de expressão nesta sociedade. (hooks, 1994, p.81)

Reprimir falas e pensamentos pode parecer politicamente correto, mas é a boa


e velha censura. A cultura do cancelamento - que é propriedade intelectual da
esquerda - possui uma conotação de proteção aos oprimidos, mas não passa de
fascismo chique com pedigree, justificado a partir de uma artificial e romântica ideia
de unidade e solidariedade.

Não existe meia liberdade.


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Em "A Mística Feminina", Betty Friedan argumenta como foi construída e


mantida a norma social que, segundo sua visão, define a mulher a partir de uma
existência oca, consumista e devotada ao lar, ao marido e aos filhos, à qual ela estaria
predestinada. Este livro é considerado o clássico fundador da segunda onda do
feminismo e é até hoje apontado como um percursor do movimento feminista
contemporâneo.

Na referida obra, Friedan identificou um sintoma social que denominou como


"o problema que não tem nome". Segundo a autora, um vazio existencial acometia as
mulheres americanas: "Não podemos mais ignorar a voz dentro das mulheres que
diz: 'Quero algo mais que meu marido, meus filhos e meu lar." (FRIEDAN, 2021, p.33)

Este vazio não poderia ser suprido por um casamento perfeito, pelo alto padrão
de vida ou por filhos e teria elevado os índices de alcoolismo e transtornos mentais
nos Estados Unidos após a Segunda Guerra.

Cada dona de casa suburbana lidava com ele [o problema que não tem
nome] sozinha. Enquanto arrumava as camas, fazia compras, escolhia o
tecido para forrar o sofá, comia sanduíches de pasta de amendoim com as
crianças, fazia as vezes de motorista de escoteiros, deitava-se ao lado do
marido à noite...temia fazer a si mesma a pergunta silenciosa: 'Isso é tudo?
(FRIEDAN,2021, p.13)

Em "Teoria Feminista: da margem ao centro", bell hooks afirma que

A famosa frase de Friedan, "o problema que não tem nome", geralmente
citada para descrever a condição da mulher nessa sociedade, na verdade se
referia ao drama de um seleto grupo de esposas brancas de classes média
e alta, com nível superior - mulheres do lar, entediadas pelas horas de lazer,
atividades domésticas, crianças e compras, e que esperavam mais da vida.
(hooks, 2019, p.27)
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hooks continua sua crítica aos escritos de Friedan, demarcando o caráter


excludente do movimento feminista:

(...)ela não discute quem seria chamado a tomar conta das crianças e manter
a casa, no caso de mais mulheres como ela serem liberadas de seu trabalho
doméstico e conseguirem ingressar no mundo profissional em condições
equivalentes às dos homens brancos."(...)ela não fala das necessidades das
mulheres sem homens, sem filhos, sem um lar. Ela simplesmente ignora a
existência de todas as mulheres que não são brancas ou que são brancas,
porém pobres. (...) Ela faz de seu drama e do drama das mulheres brancas
como ela o sinônimo da condição de todas as mulheres da América. Com
isso, disfarçou suas atitudes classistas, racistas e sexistas em relação à
população feminina da América. " (hooks, 2019, p.28)

No contexto em que Friedan escreve seu livro, a maioria das mulheres estava
preocupada com a sobrevivência econômica; mais de um terço das mulheres estavam
na força de trabalho. Ao colocar o vazio existencial no centro do debate dos problemas
das mulheres, Friedan deixa evidente que "(...) as mulheres vistas por ela como
vítimas do sexismo eram as mulheres brancas com ensino superior e condenadas
pelo sexismo ao confinamento doméstico" (hooks,2019, p.28)

A perspectiva elitista da mulher apresentada no livro de Friedan ecoa ainda,


de forma marcante, no feminismo atual. Assim como Friedan, as mulheres brancas
de classes média e alta filiadas ao feminismo raramente se perguntam se o que estão
pautando como luta reflete as experiências e/ou desejos das mulheres como um
grupo. Mulheres negras e pobres não possuem "o problema que não tem nome"; a
subsistência econômica e o combate à discriminação racial estão na ordem do dia
dessas mulheres.
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Santo Inácio de Loyola é considerado o maior santo do século XVI. Mas não
gostava de estudar. Santo Inácio sabia que Deus tinha confiado a ele um profundo
conhecimento das ciências divinas, necessário para desenvolver sua missão e fundar
a Companhia de Jesus. O domínio das ciências humanas, contudo, não era seu ponto
forte. Em razão disso, entendeu que precisava de uma educação formal para estar
melhor instruído antes de se dedicar a outras almas. Santo Iná cio precisou voltar à
escola para aprender assuntos básicos, como gramática.

Como na época não havia educação de jovens e adultos, ele ficou sem saída
e precisou se juntar, aos 33 anos de idade, a alunos mais jovens que ele.
Humildemente, reconheceu suas limitações instrucionais e pediu ao professor: "Peço-
lhe, mestre, que me considere como uma criança, me trate como tal e me castigue
severamente, sendo preciso, para me tornar mais atento e mais estudioso!" 3Santo
Inácio passou 2 anos frequentando a escola em busca do aprimoramento de sua
intelectualidade.

O movimento pela busca do aprimoramento intelectual parece estar fora de


moda na contemporaneidade, especialmente entre aqueles que participam de
ativismo social. Considerando que todos nós estamos infinitos degraus abaixo das
capacidades de Santo Inácio de Loyola, é conveniente perguntar: de onde saiu o Anti-
intelectualismo contemporâneo? Por que o ativismo parece tão divorciado da
intelectualidade e da busca por aprimoramento?

É correto (e justo!) considerar que há intelectualidade fora do ambiente


acadêmico; Ailton Krenak, Nego Bispo e vários outros estão aí para nos mostrar isso.

3
Trecho extraído do texto “O maior santo do século XVI não gostava de estudar”, publicado pelo
perfil “Minha Biblioteca Católica”. Disponível em: https://www.instagram.com/p/Cd3VU9uMmWU/
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O que parece, no mínimo, contraproducente é afastar qualquer tipo de conhecimento


desenvolvido academicamente em nome de uma autonomia e/ou soberania dos
indivíduos e dos coletivos. Esse afastamento, na verdade, sinaliza o que Hofstader
(1963) aponta como uma definição de Anti-intelectualismo: "(...)desconfiança e o
ressentimento contra o mundo do intelectual e contra aqueles que são identificados
como seus representantes (...)" (p10)

A maior consequência do Anti-intelectualismo é o autoritarismo político (isso


foi visto na Alemanha e na URSS!). A história brasileira mostra que a nossa educação
é carente de projeto de desenvolvimento central. A onda anti-intelectualista,
potencializada pelas redes sociais e pelo ativismo social contemporâneo, faz
sucumbir qualquer iniciativa independente com finalidade educacional. A
desmoralização da vida intelectual e a asfixia oferecida a quem insiste em
permanecer empreendendo nela parecem constituir um plano social mal formulado
com objetivos questionáveis. Segundo Rodrigo Coppe Caldeira (2020)4,

O pensador, o intelectual e a instituição universitária só têm lugar nesse


novum saeculum enquadrando-se organicamente aos desejos do líder, que
encarna e embala a nova política. Os saberes produzidos devem estar a seu
serviço, submetendo-se aos interesses e à verdade do “povo”, colaborando
na legitimação de um projeto mais amplo que visa expurgar os seus inimigos
num confronto apocalíptico. O Anti-intelectualismo é um anti esclarecimento.

No interior da comunidade negra, o cenário não é distinto. bell hooks registra


como o Anti-intelectualismo aparece entre negros:

O Anti-intelectualismo nas comunidades negras é uma arma frequentemente


usada na luta de classes entre aqueles negros que se sentem condenados a
uma existência limitada porque não são instruídos e, portanto, não
conseguem ascender, e negros instruídos (...) (hooks,2022, p.103)

hooks também lembra que muitos ativistas do movimento black power eram
leitores ávidos e pensadores críticos de alta instrução. Os escritos desses ativistas
não tinham qualquer registro de anti-intelectualismo. Muito pelo contrário! A autora
relata o seguinte:

No ensaio “Fear and Doubt [Medo e dúvida], Huey Newton, um dos


fundadores do Partido dos Panteras Negras, escreve sobre os caminhos que

4
CALDEIRA, Rodrigo Coppe. A pandemia do anti-intelectualismo. Março/2020. Disponível em:
https://estadodaarte.estadao.com.br/a-pandemia-do-anti-intelectualismo/ (Acesso em 19/06/22)
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homens negros pobres precisam trilhar para obter educação, mesmo sob o
medo de falhar (hooks, 2022, p.96)

A educação era vista com tanta importância pelo ativismo negro de outrora que

Uma das principais razões que faz com que os militantes do movimento black
power escolhessem trabalhar em escolas administrando o café da manhã
e/ou oferecendo aulas de reforço foi o amplo reconhecimento de que o
sistema educacional não apenas falhava em educar negros pobres, mas
estava satisfeito com tal falha, satisfeito em culpabilizar a vítima (hooks,
2022, p.98)

O ativismo negro contemporâneo parece tentar colocar a escolarização formal


como “coisa de branco”. A difusão desse pensamento tem feito com que muitos
negros com baixa escolaridade percebam os negros de alta instrução como inimigos.
É dessa forma que o anti-intelectualismo abunda a comunidade negra e a cultura
como um todo.

Com o intuito de seguir os melhores exemplos do ativismo do passado, o


desenvolvimento da intelectualidade é imprescindível. Que todos nós possamos ter a
humildade de Santo Inácio de Loyola, que não deixou de buscar o desenvolvimento
de suas virtudes.
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Pessimismo e vitimismo são os principais mecanismos de mobilização do


ativismo social contemporâneo. As lideranças dos movimentos sociais e seus
intelectuais associados encorajam que sua militância desenvolva a mentalidade de
vítima; com o movimento negro, a situação não é muito diferente. Em "Losing the
Race: Self-Sabotage in Black America", John McWorther desenvolve o conceito de
"vitimologia", que é a adoção do vitimismo como núcleo da identidade da pessoa.

Para McWorther, a adoção do vitimismo como identidade demanda o uso do


exagero da situação de vítima:

(...) os negros americanos obviamente fizeram tanto progresso desde a Lei


dos Direitos Civis que, para adotar a vitimismo como identidade, uma pessoa
negra, ao contrário, por exemplo, de um refugiado Hutu na África Central,
deve exagerar na extensão de seu vitimismo. O resultado é um Culto de
Vitimologia (...) (2000, p.2)

A vitimologia incentiva a fraqueza e o fracasso, ao colocar características


sociais e biológicas como determinantes para o processo social. Além disso,

(...) impede os líderes negros de empreender energia significativa e criativa


para quebrar padrões culturais que ditam que aquelas pessoas que
nasceram neles são, em grande parte, impotentes para mudar. A vitimologia,
ao concentrar a atenção em apontar o dedo para os brancos, nos cega para
o potencial dos moradores de áreas socialmente vulneráveis promoverem
mudança em suas vidas, fazendo com que o fracasso pareça muito mais
inevitável do que é. (MCWORTHER, 2000, p.44)

McWorther também argumenta que a vitimologia prejudica qualquer


desempenho por focar demasiada atenção nos obstáculos. A postura vitimista,
mesmo com os visíveis prejuízos, é fácil de ser reproduzida em razão da insegurança
comum entre jovens, que percebem a desresponsabilização por seus próprios atos
como uma coisa boa. Fazer coisas erradas e responsabilizar outras pessoas é
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"(...)virtualmente irresistível e oferece um caminho fácil para a autoestima (...)"


(MCWORTHER, 2000, p.39)

Em "Rock my soul: black people and self-steem", bell hooks critica o livro de
McWorther (2000) apesar de mostrar pontuais concordâncias:

Mesmo que eu concorde com a sugestão de que estudantes negros podem


exagerar no número de situações racistas que eles experienciam,
claramente, por seu próprio desconto agressivo, McWorther vai para o outro
extremo, e sua afirmação parece ser tão grandiosa e falsa quanto as
alegações que ele critica. (p.73)

hooks apresenta uma explicação para o vitimismo presente na comunidade


negra:

(...)pessoas negras que percebem a si mesmas como vítimas estão muito


carentes de autoestima (...) poucos negros ganham significativas vantagens
fingindo que são vítimas. Contudo, um número grande de pessoas negras
preferem ser vistas como vítimas do que não serem vistas nunca."(2003,
p.74)

Apoiando-se no trabalho de Nathaniel Banden, psicoterapeuta associado à


Ayn Rand, bell hooks afirma que "Branden está correto em sua suposição que
pessoas que se percebem como vítimas usualmente se tornam "presas na
passividade" e se sentem condenadas. (...)" (2003, p.78)

hooks aponta ainda que recusar o lugar de vítima demanda, obrigatoriamente,


engajar-se em políticas de autoconfiança, que incluem a autorresponsabilidade. Com
base no trabalho de Nathaniel Branden, hooks afirma que as pessoas que se
percebem como vítimas usualmente se tornam presas na passividade e se sentem
condenadas e sem saída:

Enquanto estou, estou de acordo com qualquer crítico social que aponta que
negros demais abraçaram a ideia de que são vítimas sem possibilidade de
ação, é claro que a recusa de assumir a responsabilidade por si mesmo
atingiu proporções epidêmicas na sociedade como um todo. Negros que
percebem a si mesmos sempre e somente como vítimas abraçaram uma
forma de pensar que seus destinos os condenam. (hooks, 2003, p.74)

A construção de uma verdadeira autoestima depende do abandono da posição


de vítima:

(...) as pessoas negras que se vêem como vítimas são extremamente


carentes de autoestima, o que as leva a serem vítimas de pensar que lhes
falta qualquer agência significativa. Poucas pessoas negras ganham
significativas vantagens fingindo serem vítimas. Contudo, um grande número
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de pessoas negras prefere ser vistas como vítimas do que não vistas como
coisa alguma. (hooks, 2003, p.74)

hooks assevera ainda que

Assumir a responsabilidade por nossas vidas como pessoas negras exige


que evitemos assumir o papel de vítima, mesmo que ousemos nos posicionar
corajosamente contra a dominação racista. Ao mesmo tempo, indivíduos
negros que se veem como vítimas não devem ser repreendidos ou
desprezados, pois a prática da autoestima positiva exige autoaceitação.
Aceitar-nos como somos é, paradoxalmente, a primeira etapa do processo
de transformação. (hooks, 2003, p.77)

Para recusarem o lugar de vítima, as pessoas negras devem engajar-se em


políticas de autoconfiança, o que envolve assumir responsabilidade por suas próprias
ações. Contudo, o vitimismo como núcleo da identidade da pessoa negra parece que
continuará sendo incentivado por ativistas e intelectuais que ecoam na mídia de
massa e na cultura popular. Inevitavelmente, atrairá jovens negros que permanecem
socialmente vulneráveis. É importante não perdermos isto de vista na hora em que
construirmos nossas críticas: quem será verdadeiramente prejudicado com o culto do
vitimismo.
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Em 1945, Richard Wright, escritor americano que é um dos grandes nomes da


conhecida "African-American Literature", publicou a autobiografia intitulada "Black
Boy".

Em "Black Boy", Richard Wright narra sua vida durante a infância em Mississipi
(sul-americano) e a juventude em Chicago (norte americano). Dor, humilhação, fome
e ódio são as palavras-chave para compreender a infância de Wright no Sul durante
as duríssimas leis Jim Crow. A narrativa de Wright enfatiza as desigualdades raciais
americanas e expõe como o racismo é capaz de esmagar, com mais intensidade, os
mais pobres.

O que Wright descreve como fome ultrapassa o sentido literal do substantivo;


passa a ocupar um sentido metafórico, ao apontar também como fome seu desejo
por uma vida melhor e mais livre. A ida para o norte representa a materialização desse
desejo; o norte era visto como uma terra de liberdade e oportunidades. Nesse
contexto, a escolarização era entendida por Wright como estratégia de liberdade; a
leitura ensinou Wright a ter esperanças.

Em "A gente é da hora: homens negros e masculinidade", bell hooks aponta


que "no mundo Jim Crow pós-escravidão, as pessoas negras tinham que lutar pelo
direito de se educarem. (...)" (2022, p.90) Essa luta é descrita por Wright, que precisou
se mudar inúmeras vezes - o que era comum em famílias negras com necessidades
econômicas - e, assim, teve sua escolarização interrompida constantemente. Além
disso, a pobreza não permitia que a família de Wright pudesse adquirir livros e roupas
adequadas:

Comecei a estudar no Instituto Howard com alguns anos a mais que o


habitual; minha mãe não tinha podido comprar as roupas necessárias para
que eu estivesse apresentável. (...)Embora eu tivesse quase nove anos, não
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 20

tinha tido um único ano ininterrupto de escola, e não tinha consciência disso.
Eu podia ler e fazer contas, e isso era o que a maioria das pessoas que eu
conhecia podia fazer, fossem adultas ou crianças. (WRIGHT,1945 apud
hooks, 2022, p.90)

Haki Madhubuti, um educador e poeta americano, escreveu como sua infância


e suas atitudes em relação à educação foram transformadas após a leitura de "Black
Boy":

(...)pela primeira vez na minha vida eu estava lendo palavras transformadas


em ideias que não eram ofensivas à minha pessoalidade (...) ao terminar a
leitura de Black Boy, eu me tornei de algum modo um questionador diferente
na escola e em casa. (MADHUBUTI, s/d apud hooks, 2022, p.93)

Biografias e autobiografias de homens negros que conseguiram superar a


pobreza em que nasceram através de investimento na escolarização evidenciam um
aspecto: a autodeterminação de homens que lutaram para educarem a si mesmos no
interior de um sistema educacional que não os apoiavam. São essas histórias que
podem ser utilizadas como exemplos para os meninos negros; Madhubuti teve Wright
como exemplo.

Os grupos sociais são influenciados por indivíduos de gerações anteriores.


Esses indivíduos acabam sendo exemplos. As mulheres negras são exemplos para
as meninas negras. Os homens negros são exemplos para os meninos negros. Ser
exemplo para um ser humano é importante e poderoso demais para não nos
preocuparmos com o que falamos, como falamos e com quem falamos. O discurso
pode até instruir, mas é o bom exemplo que educa!
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 21

O fenômeno do maior sucesso escolar das meninas brasileiras, considerando


qualquer grupo racial, vem se configurando desde os anos 1940. A situação com os
meninos é diferente, especialmente os negros. Segundo Saldanha (2019), em artigo
publicado pela Folha de São Paulo, 4 em cada 10 jovens negros não concluíram o
ensino médio. Ou seja, 44,2% dos homens negros entre 19 e 24 anos não concluíram
a última etapa da educação básica. Entre as mulheres negras dessa mesma faixa
etária, o índice cai para 33%.

Diante desse cenário, a pergunta sobre quem são os meninos que vão mal na
escola (notas baixas, reprovação, evasão etc.) tem sido feita com insistência por
pesquisadores no Brasil. Essa pergunta também tem sido feita com insistência por
pesquisadores de outros países como Estados Unidos, França, Inglaterra, Canadá e
Austrália há pelo menos 20 anos; há quem aponte, inclusive, estarmos no meio de
uma crise de masculinidade e, até mesmo, um segundo sexismo.

Comparando com a produção dos países supracitados, a literatura nacional


que articula teórica e empiricamente as dimensões raça e gênero com o desempenho
acadêmico é ainda modesta; a literatura internacional, por sua vez, é pouco explorada
no Brasil. No cenário nacional, destaca-se o trabalho de Marília Pinto de Carvalho,
pesquisadora da Universidade de São Paulo, que se dedica há mais de duas décadas
aos estudos sobre fracasso e sucesso escolar e suas relações com as dimensões de
raça e gênero.

Os trabalhos de Carvalho, que possuem cunho qualitativo, buscaram


compreender os processos que têm conduzido um maior número de meninos que
meninas e, dentre eles, uma maioria de meninos negros a obter baixo rendimento
escolar. De uma forma geral, os trabalhos de Carvalho acompanham os
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 22

apontamentos dos estudiosos estrangeiros: a maioria dos meninos com dificuldades


escolares pertencem a minorias raciais e famílias de baixa renda.

Se consideramos que a avaliação escolar utilizada neste caso é construída


pelas próprias professoras, podemos supor tanto que elas tendem a perceber
como negras as crianças com fraco desempenho, com relativa
independência de sua renda familiar, quanto que tendem a avaliar
negativamente ou com maior rigor o desempenho de crianças percebidas
como negras. (CARVALHO, 2004, p.27)

O trecho acima destaca um ponto importante que emerge no trabalho de


Carvalho: o olhar do docente, que pode contribuir com o fracasso escolar de muitos
meninos.

Preconceitos explícitos estiveram presentes nas falas de alguns docentes


entrevistados pela pesquisadora:

A J. é pardinha, tem o cabelo ruim, hem [ri]. Esse menino aqui eu vou colocar
PA, para você saber que é pardo. O J., a mãe dele é bem preta, retinta, mas
ele é branco, fazer o quê? [ri]. A mãe dele é bem acentuada, o cabelo ruim,
mesmo,daqueles bem “bombril”; mas ele deve ter colocado branco. A L.
também é branca. Esse L. eu classificaria como preto. Como dizia a minha
bisavó – minha bisavó era dona de escravos, então na minha família o
preconceito era muito forte. Pro meu pai, preto para ser bom tinha de ter
alguma coisa de branco, pelo menos a alma. Você lembra disso?
(CARVALHO,2004, p.18)

Além dos problemas de aprendizagem, estudiosos apontam predominância de


meninos entre os estudantes apontados como indisciplinados pelos professores.
Dentre os meninos nessa situação, há maioria de meninos negros. Conolly (1998) e
Ferguson (2000) indicam que os estereótipos que estabelecem os homens negros
como violentos são transferidos para os meninos; daí, estes são transformados em
potenciais suspeitos de toda indisciplina e, por vezes, arbitrariamente associados com
a ideia de delinquência.

Ainda que as pesquisas - quantitativa e qualitativa - descortinem um quadro


desfavorável para os meninos negros na educação, é importante não perder de vista
que há trajetórias escolares diversas nesse grupo social e exemplos de sucesso
escolar podem ser localizados. O esforço que se tem feito é para evidenciar um
problema educacional que atinge um grupo social de forma predominante (e, assim,
pontuar soluções); não é adequado absorver, em nível individual, os apontamentos
das pesquisas como determinantes de trajetórias.
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 23

Em "A gente é da hora: homens negros e masculinidade", bell hooks (2022)


discute a relação entre parentalidade e masculinidade negra. Em particular, ela critica
o difundido estereótipo do pai negro ausente ou negligente, que é frequentemente
evocado para criticar as famílias negras. Não há estereótipo mais injusto e
equivocado do que esse.

A minha memória é repleta de recordações incríveis de um pai presente,


amoroso, carinhoso e trabalhador. bell hooks, em "Olhares negros: raça e
representação", apresenta recordações parecidas sobre seu pai:

(...)Chefe da família, nosso pai era "muito homem", um provedor, amante,


disciplinador, leitor e pensador. Era introvertido, quieto e mantinha sua raiva
em fogo baixo, mas ela era intensa quando se manifestava. Nós o
respeitávamos. (hooks, 2019, p.168)

hooks (2022) traz também apontamentos sobre a importância do amor dos pais
para as crianças:

(...)Meninos e meninas precisam ser amados por homens. Não é essencial


para o seu bem-estar que esses homens sejam pais biológicos, mas sim que
ofereçam à criança a oportunidade de ser afirmada e amada por um cuidador
parental masculino. (p.187)

A autora ainda destaca a especial importância do amor do pai para os meninos:


"(...)os meninos, em especial, precisam que os homens sejam modelos (...)" (hooks,
2022, p.187)

Nas famílias chefiadas por mães amorosas e sábias, "(...) elas sabem que
precisam fornecer modelos de masculinidade saudável para os filhos." (hooks, 2022,
p.198)

Muitas pessoas pensam que "(...) tudo o que um pai precisa fazer é colocar
dinheiro em casa. Embora o apoio material seja uma forma de demonstrar cuidado,
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 24

jamais poderá substituir o vínculo emocional, o carinho e a interação amorosa."


(hooks, 2022, p.197) Ao contrário do que o movimento feminista comumente aponta,
as meninas e as mulheres também precisam ser amadas pelos homens.

Em "The will to change: men, masculinity, and love", bell hooks (2004) afirma
que "(...)nós precisamos dos homens em nossas vidas(...)" (hooks, 2004,p.xvi)

"Toda mulher quer ser amada por um homem. Toda mulher quer amar e ser
amada pelos homens em sua vida. Seja lésbica ou heterossexual, bissexual
ou celibatária, ela quer sentir o amor do pai, do avô, do tio, do irmão ou de
um amigo homem. Se ela for heterossexual, ela quer o amor de um
companheiro." (hooks, 2004, p.1)

Nós, mulheres, vemos comumente nossos pais na infância como "(...) o


homem forte que não conversa, que não mostra seus sentimentos (...) ele era o
provedor, o protetor, o guerreiro que guardava o portão." (hooks, 2004, p.169)

E nós os amamos por isso! Porque proteger é amar!

"Nosso pai é importante para nós. Nós o valorizamos tanto quanto


valorizamos nossa mãe. (...) nós o valorizamos simplesmente porque o
amamos. Precisamos dele porque o amamos." (hooks, 2022, p.200)

Que toda criança negra possa amar e ser amada pelo seu pai quanto eu amo e sou
amada pelo meu.

Feliz Dia dos Pais!


BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 25

Em 2004, bell hooks publicou o livro "The will to change: men, masculinity and
love", como uma espécie de resposta à sua decepção ao ler o livro "About men", da
pensadora feminista Phyllis Chesler. Segundo hooks, o livro de Chesler é
decepcionante, "(...)cheio de citações de numerosas fontes, artigos de jornais sobre
violência masculina (...)há pouca ou nenhuma explicação, nem interpretação".
(hooks,2004, p.xi)

bell hooks aponta que tinha a expectativa que o livro de Chesler pudesse
ajudá-la a compreender os homens para que assim pudesse não os temer. Como a
expectativa não foi atendida, decidiu escrever "The will to change", obra em que
admite que tudo o que o feminismo sabe sobre os homens está relacionado apenas
à violência masculina imposta às mulheres e crianças. E, por sua vez, esse
conhecimento - parcial e, portanto, inadequado - é comumente difundido através de
raiva e ódio aos homens:

(...)O feminismo militante deu às mulheres permissão para liberarem sua


raiva e seu ódio pelos homens, mas não nos permitiu falar sobre o que
significa amar um homem numa cultura patriarcal. (hooks,2004, p.xii)

Para hooks, as feministas manifestam ódio e raiva pelos homens pois


entendem que os homens dominadores e/ou violentos não são capazes de mudar
(will to change):

(...) o feminismo me ensinou que eu poderia esquecê-lo [o pai], dar às costas


para ele. Dar às costas para o meu pai é dar às costas para parte de mim. É
uma ficção do falso feminismo que nós, mulheres, podemos encontrar nosso
poder num mundo sem homens, num mundo onde negamos nossa conexão
com os homens (hooks, 2004, p. xvi)
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 26

bell hooks reconciliou-se com a masculinidade através, justamente, da reflexão


sobre sua relação com seu pai:

(...) minha reconciliação com meu pai começou com meu reconhecimento
que eu queria e precisava de seu amor - e se eu não pudesse ter esse amor,
que eu pudesse, pelo menos, curar a ferida que sua violência criou no meu
coração. (hooks, 2004, p.xvi)

Em "A gente é da hora: homens negros e masculinidade", bell hooks relata:

Recobrei meu amor pela masculinidade negra após uma infância na qual o
homem negro de quem eu mais desejava receber amor me considerava
desprezível. Felizmente, Daddy Gus, pai da minha mãe, ofereceu-me o amor
pelo qual meu coração ansiava (...) (hooks, 2022, p.40)

Como pensadora feminista, bell hooks entende que é necessário falar de


homens e masculinidade. É necessário, também, reconhecer que as mulheres
precisam do amor masculino: "(...)nós precisamos dos homens em nossas vidas(...)"
(hooks, 2004, p.xvi)

Para a autora, admitir essa necessidade não reduz em nada a mulher; na


verdade, torna-a mais forte:

Toda mulher quer ser amada por um homem. Toda mulher quer amar e ser
amada pelos homens em sua vida. Seja lésbica ou heterossexual, bissexual
ou celibatária, ela quer sentir o amor do pai, do avô, do tio, do irmão ou de
um amigo homem. Se ela for heterossexual, ela quer o amor de um
companheiro. (hooks, 2004, p.1)
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 27

Algumas pessoas repararam que eu posto a "Ladainha da Humildade" todos


os dias nos stories e perguntaram o motivo. Eu respondi privadamente, mas achei
que seria interessante deixar outras pessoas saberem; eis o porquê deste texto.

A "Ladainha da Humildade"5 é uma oração simples composta pelo Cardeal


Merry del Val, secretário do Estado do Vaticano durante o pontificado de São Pio X.
A oração é uma prece para pedir ao Senhor a graça da humildade de coração, que é
o alicerce da vida interior e um remédio eficaz contra a soberba. Eis a oração:

Jesus, manso e humilde de coração, ouvi-me.


Do desejo de ser estimado, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser amado, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser conhecido, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser honrado, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser louvado, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser preferido, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser consultado, livrai-me, ó Jesus.
Do desejo de ser aprovado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser humilhado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser desprezado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de sofrer repulsas, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser caluniado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser esquecido, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser ridicularizado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser difamado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser objeto de suspeita, livrai-me, ó Jesus.
Que os outros sejam amados mais do que eu, Jesus, dai-me a graça desejá-lo.

5
Veja mais em: https://padrepauloricardo.org/blog/conheca-e-aprenda-a-rezar-a-ladainha-da-
humildade?gclid=CjwKCAjwkYGVBhArEiwA4sZLuLWAqRr-QZLMjdoeoYmhvPytPqCjDJFmnM_XP-
Ohq01qYzVDK_eoAxoCvPsQAvD_BwE (acesso em:08/06/22)
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 28

Que os outros sejam estimados mais do que eu,


Que os outros possam elevar-se na opinião do mundo, e que eu possa ser diminuído,
Que os outros possam ser escolhidos e eu posto de lado,
Que os outros possam ser louvados e eu desprezado,
Que os outros possam ser preferidos a mim em todas as coisas,
Que os outros possam ser mais santos do que eu, embora me torne o mais santo quanto me
for possível,
Jesus, dai-me a graça de desejá-lo.

A inclusão da "Ladainha da Humildade" na minha rotina de orações - eu sou


Católica Apostólica Romana - me ajuda a perder o receio de ser observada e criticada;
o fortalecimento da humildade edifica o processo de aquisição do conhecimento e dá
força e clareza para a busca pela verdade.

Em "Tudo sobre o amor: novas perspectivas", bell hooks dedica um capítulo,


intitulado "Espiritualidade: o amor divino", para apresentar sua vida espiritual e seus
pensamentos sobre espiritualidade. Ela diz:

Outra fonte de crescimento espiritual são a comunhão e o companheirismo


com almas semelhantes. Quem está numa busca espiritual permite que sua
luz brilhe para que outros possam ver, não apenas para servir de exemplo,
mas também como um lembrete constante para si mesmo de que a
espiritualidade é manifestada da maneira mais gloriosa em nossas ações -
em nossos hábitos de existência. (hooks, 2021, p.116)

É por isso que eu passei a compartilhar a "Ladainha da Humildade" neste


Instagram: para deixar outros católicos saberem que eles não estão sozinhos. A vida
espiritual pode ser especialmente desafiadora para aqueles que, como eu, estão
inseridos no meio acadêmico. "(...)entre acadêmicos e pensadores progressistas, era
muito mais legal, descolado e aceitável expressar sentimentos de ateísmo do que
declarar uma devoção apaixonada pelo espírito divino." (hooks,2021, p.120)
A autora ainda aponta que o

Compromisso com a vida espiritual exige que façamos mais que ler um bom
livro ou ir a um retiro restaurador. Demanda prática consciente, uma
disposição de unir a forma como pensamos e como agimos. (...)Quando falo
do espiritual, me refiro ao reconhecimento dentro de cada um de que existe
um lugar de mistério na nossa vida onde forças que estão além do desejo ou
da vontade humana alteram as circunstâncias e/ou nos guiam e nos
direcionam. Chamo essas forças de "espírito divino". (hooks, 2021, p.115)
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 29

Como eu te amo? Deixe-me contar as maneiras" é um verso do 43º soneto do


Soneto da Portuguesa, uma coleção de 44 sonetos escritos pela poetisa britânica
Elizabeth Barret Browning, considerada por bell hooks e outros estudiosos da
literatura como a “sacerdotisa do amor”. O poeta Robert Browning chamava-a de
“minha pequena portuguesa” porque ela tinha os cabelos negros e a tez mais
morena6.

Na introdução de "Tudo sobre o amor: novas perspectivas", bell hooks cita o


primeiro verso do soneto de Browning: “Como eu te amo? Deixe-me contar as
maneiras”. O livro de hooks discute o amor como uma relação de ética, amizade e
liberdade. O cinismo contemporâneo nos faz acreditar que o trabalho é mais
importante que o amor, apesar de, culturalmente, nossa sociedade ser marcada pela
busca do amor (e, claro, pela obsessão sexual). A partir de suas próprias
experiências, hooks também fala o que devemos fazer para sermos tocados pela
graça do amor e sobre as maneiras de amar.

a) Clareza: pôr o amor em palavras

Nota-se uma confusão ao que queremos dizer quando usamos a palavra amor.
Essa confusão tem origem justamente na nossa dificuldade de amar. Em razão disso,
bell hooks afirma que saber nomear o que é o amor é a condição para que ele exista.
Justiça: lições de amor na infância. As famílias são as nossas primeiras escolas de

6
Agradeço profundamente ao Pedro Sette-Câmara por ter corrigido minha tradução do soneto e por
ter compartilhado comigo um pouco da história da autora e seu marido. O pai do Robert Browning
tinha uma plantação de açúcar na Jamaica. Ele nunca tinha pensado no assunto, até que cresceu e
foi trabalhar no negócio. Chegando na Jamaica, Robert viu a escravidão, voltou para a Inglaterra,
disse para o pai que não queria mais o dinheiro da família e foi trabalhar num banco. Deixou a vida
luxuosa, mas manteve um padrão confortável.
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 30

amor. Valorizar, respeitar e assegurar os direitos civis básicos da criança é imperativo,


pois não há amor sem justiça.

b) Honestidade

Seja verdadeira com o amor bell hooks ensina que reafirmar o valor de dizer a
verdade é um dever perante a tarefa de construir uma sociedade amorosa e sermos
amorosos. A confiança é a base da intimidade; a verdade é o coração da justiça. Não
há um praticante do amor que engane.

c) Compromisso: que o amor seja amor-próprio

O amor-próprio é o fundamento da prática amorosa, pois permite que nossos


esforços amorosos com outras pessoas não falhem. O coração machucado
desenvolve amor-próprio ao superar a baixa autoestima. Não confundir amor-próprio
com egoísmo ou egocentrismo!

d) Espiritualidade: o amor divino

bell hooks ensina que a vida espiritual é necessária para a prática amorosa,
pois nos permite ver a luz do amor em todos os seres vivos. Valores: viver segundo
uma ética amorosa O poder e o domínio são obstáculos para o despertar do amor.
Desapegue-se disso!

e) Ganância: simplesmente ame

bell hooks ensina que viver com simplicidade amplia e intensifica a nossa
capacidade de amar, de praticar a compaixão e afirmar a nossa conexão com a
comunidade. Comunidade: uma comunhão amorosa A amizade é a nossa primeira
experiência com uma "comunidade carinhosa". O amor desenvolvido nas amizades
fortalece, de maneira a potencializar nossos relacionamentos românticos e familiares.

f) Reciprocidade: o coração do amor

Ser generoso nas relações românticas e em todos os outros vínculos significa


reconhecer quando a outra pessoa precisa da nossa atenção. Atenção é um recurso
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 31

importante. Ao darmos uns aos outros, aprendemos a experimentar a reciprocidade.


Romance: o doce do amor O amor verdadeiro poderá (ou não) nos levar ao "felizes
para sempre". Mas é importante não perder de vista que para amar é necessário ter
disposição; amar dá trabalho e nem todo mundo entra num relacionamento preparado
para receber amor.

g) Perda: amar na vida e na morte

Motivos diversos nos impedem de falar sobre nossa necessidade de amar e


sermos amados. O medo de sermos vistos como fracos nos impede de compartilhar
com outros nossos pensamentos sobre mortalidade e perda. O medo coletivo da
morte é uma doença do coração que só o amor pode curar.

h) Cura: o amor redentor

É impossível nos curar em isolamento. Cura é um ato de comunhão. O


exercício da compaixão é necessário.

i) Destino: quando os anjos falam de amor

"Amar é nosso verdadeiro destino. Nós não encontramos o significado da vida


sozinhos, por conta própria - nós o encontramos com outros". (Thomas Merton).

Permita ser amada. Conte suas maneiras.


BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 32

“Eu não deveria estar sozinha e sem você que compreende”.


(Barbara Smith e Beverly Smith)

Navegando nas redes sociais, eu tenho notado um levante de negros que não
se consideram progressistas (e eu estou nesse grupo). Apesar de ficar muito feliz com
o #blexit7 (pra lembrar Candace Owens), eu devo dizer que não gosto dos
posicionamentos de todos os negros que estão se levantando contra o establishment
(Sérgio Camargo é um deles; peço desculpas aos fãs dele).

Felizmente, há muita gente boa que está genuinamente interessada em ver o


sucesso da população negra, mas percebe as vias para tal sucesso de forma diferente
do que os progressistas percebem. A minha mentalidade acadêmica não me deixa
ver nenhum problema nisso. Eu acredito que a diversidade ideológica entre negros é
extremamente positiva. Tenho amigos muito queridos de esquerda e de direita; todos
me ajudam a aprimorar meu pensamento.

Só que eu tenho percebido que, no debate público, os negros que não estão
alinhados com a agenda progressista são rechaçados. Veja: não estou pedindo para
arrecadar aplausos; a crítica é necessária. O que me parece extravagante é a
violência verbal.

No dia 11 de junho de 2022, eu publiquei a tradução de um texto sobre


relacionamento interracial de autoria de Ralph Banks, professor da Universidade de
Stanford. Eu fui severamente criticada com palavras de muita violência.

7
Movimento de saída coletiva de negros do partido Democrata (esquerda) nos Estados Unidos. A
palavra junta “black” (negro) com “exit” (saída).
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 33

Quero levantar um ponto: a sua militância é pelos negros ou pelos negros que
concordam com a militância? Parece preciosismo, mas há uma diferença substantiva
que demanda honestidade de resposta.

Em “Irmã Outsider”, Audre Lorde (2020) faz o seguinte questionamento: “por


que as mulheres negras reservam uma voz específica de fúria e decepção para
usarem entre si?” (p.200) Eu vou me permitir ampliar esse questionamento para
homens também.

Em “Sisters of Yam: black women and self-recovery”, bell hooks aponta que
algumas

(...)mulheres [negras] podem punir outra mulher negra por falar


honestamente, ou criticá-la sugerindo que ela não possui certas graças
sociais. Isso é especialmente verdadeiro entre classes profissionais de
mulheres negras que compram noções de etiqueta social informadas por
valores burgueses comprometidos com manter o público e o privado
separados. (2015, p.36)

hooks (2015) afirma que a vontade ser honesta é essencial para o nosso bem-
estar. Fala verdadeiramente é essencial. Então por que eu e todos negros que não
são progressistas somos severamente punidos e até mesmo boicotados?

Qual é o propósito disso?

O cancelamento imposto por militantes negros aos negros liberais e


conservadores corresponde à morte em vida. E é irônico pensar que são esses
militantes, que dizem que defendem o bem da população negra, são os primeiros a
boicotarem um “irmão” que pensa de forma heterodoxa.

A verdade, meus caros, é o seguinte: gostando do meu posicionamento ou


não, eu ainda sou sua irmã.
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 34

CARVALHO, Marília Pinto de. Quem são os meninos que fracassam na escola?
Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, p. 11-40, jan./abr. 2004

CONNOLLY, P. Racism, gender identities and young children: social relations in


a multi-ethnic, inner-city primary school. London: Routledge, 1998.

FERGUSON, A. A. Bad boys: public school in the making of black masculinity.


The University of Michigan Press, 2000.

HOFSTADTER, Richard. Anti-intelectualismo nos Estados Unidos.Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1963.

hooks, bell. A gente é da hora: homens negros e masculinidade. São Paulo:


Elefante, 2022.
_________. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022.
________. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019
________. Outlaw Culture. New York: Routledge, 1994.
________. Rock my soul: black people and self-esteem. New York: Atria books,
2003.
________. Sisters of the Yam: black women and self-recovery. Routledge: New
York, 2015
_________. Teoria Feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva,
2019.
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 35

________. The will to change: men, masculinity and love. Nova Iorque:
Washington Square Press, 2004
________. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2021.

LORDE, Audre. Irmã Outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica,


2020.

MCWORTHER, John. Losing the race: self-sabotage in Black America.New York:


The Free Press, 2000.

SALDANHA, PAULO. 4 em cada 10 jovens negros não terminaram o ensino médio.


Folha de São Paulo. São Paulo, 01/09/2019. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/09/4-em-cada-10-jovens-negros-nao-
terminaram-o-ensino-medio.shtml (Acesso em: abril/2022)
BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 36

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BELL HOOKS ALÉM DO ESPELHO 37

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