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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE DIREITO

ADPF Nº54 EM PAUTA: O DISCURSO RELIGIOSO E A PRESENÇA DOS


MOVIMENTOS SOCIAIS

LEONARDO CARNEIRO LIMA

Trabalho apresentado para a avaliação da


disciplina de Sociologia e Direito II do 2°
Período da graduação em direito pela
Universidade Federal Fluminense
ministrada pelo Professor Roberto Fragale
Filho

2021
1. INTRODUÇÃO

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF N°54 se trata,


nas palavras do min. relator Marco Aurélio, da interrupção da gravidez no caso de feto
anencéfalo. A petição inicial, foi assinada pela CNTS - Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Saúde, arquitetada e defendida pelo então advogado Luís Roberto
Barroso e encabeçada, como amicus curiae, pela ANIS – Instituto de Bioética Direitos
Humanos e Gênero, fundada pela antropóloga Débora Diniz. Nesse sentido, sob a forma
de audiências públicas, o tribunal ouviu diversos setores da sociedade civil, entidades
religiosas e do campo científico.

Dessa forma, no presente trabalho, será intencionado analisar três passagens que
denotam argumentos religiosos sob a luz da tese defendida no capítulo de religião, qual
seja a “defesa da vida desde a gestação, apropriando-se da força legitimadora dos
argumentos jurídico e científico a favor de suas convicções em detrimento da imposição
de verdades doutrinárias” (MONTEIRO, Paula et al., 2019, p.437). Não obstante, serão
sopesadas outras três passagens que demonstram a presença dos movimentos sociais no
debate sob a perspectiva da litigância estratégica.

2. DOS ARGUMENTOS RELIGIOSOS

Durante o primeiro dia de audiências públicas, foram ouvidos, em sua maioria,


representantes de entidades religiosas. Dentre eles, representando a Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil, o Padre Luiz Antônio Bento Doutor em Bioética. Em sua fala,
defendeu a ideia de vida desde a gestação, como pode ser observado no seguinte trecho:

“A sociedade tem a obrigação de promover e de defender esses


direitos da pessoa humana, do feto que está com uma anomalia. Uma
vida atingida por limites psicofísicos [...] em nada diminui a sua
dignidade. O fato de uma deficiência, de uma anomalia, não diminui
ou nega a dignidade de uma pessoa. [...] A ninguém é lícito, portanto,
muito menos à sociedade e ao Estado, julgar o valor intrínseco de uma
vida por suas deficiências.”

Percebe-se, portanto, o movimento de incorporação da terminologia jurídica,


como dignidade da pessoa humana, para se distanciar do que poderia ser interpretado
como uma argumentação baseada apenas na doutrina da igreja católica. Aqui, o religioso
vende seu Ethos como Doutor em Bioética.
Em segundo plano, cabe ressaltar a fala do representante da Associação Nacional
Pró-vida e pró-família, Doutor em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,
o Sr. Rodolfo Acatauassú Nunes. Em sua argumentação, destaca-se, também, a intenção
de se colocar enquanto especialista e defensor da tese de vida desde a concepção. Assim,
se utiliza da linguagem técnica do campo científico, pretensamente apartado de seu viés
religioso. Como se observa quando se refere a um exemplo apresentado:

“Observa-se medula cervical, medula oblonga de aspecto preservado,


observando-se também a ponte em pequena porção do mesencéfalo,
que apresenta formato irregular e alterado, sem evidência de
alteração, senão a interior. A partir desse nível, cranialmente não mais
se observa parênquima cerebral, mas encéfalo. [...] Anencefalia é um
termo que induz ao erro, há uma grande desinformação que faz pensar
que anencefalia equivale a morte encefálica.”

Busca, de tal forma, dizer que há sobrevida em casos de anencefalia. Seu discurso,
pretensamente cientifico, na realidade, oculta aquilo que lhe é conveniente para o efeito
que deseja promover no auditório, defendendo os interesses religiosos da instituição que
representa.

Em última análise, denota-se a fala da representante da Associação Médico-


Espírita do Brasil, Dra. Marlene Rossi Severino Nobre, reiterando a defesa da vida desde
a gestação. Novamente, se encontra a intenção de se portar enquanto autoridade no
assunto apartada de quaisquer anseios doutrinários. Destaca-se a seguinte passagem:

“Não é porque o feto anencéfalo não tem essas áreas nobres do córtex
cerebral - geralmente ele não as tem – que ele não tem consciência.
Ele tem a consciência que entra e sai pelo tronco cerebral alto, mas
ele não tem como se expressar fenomenicamente porque lhe faltam
os instrumentos neurais compatíveis com essa forma de
manifestação.”

Nos três casos analisados, percebe-se a intenção de afirmar o Ethos do orador


enquanto autoridade científica e, concomitantemente, recorrer ao Logos na
argumentação, qual seja a pretensão de apresentar argumentos científicos, ou referências
à linguagem jurídica que embasem a tese da defesa da vida desde a gestação.

3. DA PRESENÇA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E DA LITIGÂNCIA


ESTRATÉGICA
Após as três passagens que evidenciam os argumentos religiosos de defesa da vida
desde a gestação - relacionados com a incorporação de linguagens externas ao âmbito
dogmático da religião, como apresentado no capítulo sobre o tema - neste momento serão
referenciadas passagens que demonstram a presença dos Movimentos Sociais sob a
perspectiva do uso estratégico do judiciário.
Sendo assim, no segundo dia de audiências, foi ouvida, representando o Instituto
de Bioética, Direitos Humanos e Gênero - ANIS, a doutora em Antropologia e pós-
doutora em Bioética, Débora Diniz. Destaca-se em seu discurso a seguinte passagem:
“As mulheres querem ter, Senhor Ministro, o direito de abreviar o seu
sofrimento. [...] O conceito de antecipação terapêutica do parto é um
retrato antropológico de como as mulheres grávidas de fetos com
anencefalia descrevem o procedimento médico. Nenhuma delas o
descreve como aborto. O que essas mulheres nos mostram é a
dinâmica da vida social. O diagnóstico de anencefalia lança uma
situação ética inesperada, e elas querem descrevê-la em termos
acolhedores para suas próprias vidas, não em nome de dogmas
religiosos ou verdades absolutas, distantes de suas realidades.”

Denota-se um cuidado ímpar pela terminologia adotada ao afirmar o procedimento


enquanto Antecipação Terapêutica do Parto (ATP). Isto é, em uma sociedade atrasada e
frente a diversos juízes conservadores, é importante, para o pleno uso estratégico do
judiciário, adaptar o discurso ao auditório. De tal modo que se conquiste a recepção da
demanda dos movimentos sociais, como a ANIS pelos direitos humanos e da mulher.
Com efeito, no terceiro dia de audiência, a argumentação da Doutora Jacqueline
Pitanguy, socióloga e cientista política representando o Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher destaca a carta do CNDM:
“A propósito da dimensão de direitos da mulher, gostaria de ler a nota
do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher: “O CONSELHO
NACIONAL DOS DIREITOS DA MULHER – CNDM vem
publicamente reiterar seu posicionamento a respeito da interrupção da
gestação em casos de fetos com anencefalia, no momento em que o
tema volta à pauta do Supremo Tribunal Federal, quatro anos após a
liminar que permitiu a interrupção de uma gestação com feto
anencéfalo. Naquela ocasião o CNDM manifestou sua posição: É
direito das Mulheres interromper a gestação em casos de Anencefalia.
É dever do Estado garantir esse direito.”

Nesse sentido, é marcante a presença dos movimentos sociais no debate. Seja por
meio da representação das oradoras, seja por referência direta delas ao posicionamento
das entidades, como evidenciado na leitura da carta do CNDM.
Por último, cabe ressaltar a presença do setor referente ao direito das pessoas com
deficiência, a Escola da Gente – organização que atua em torno do tema sobre a inclusão
de pessoas com deficiência, representada pela Dra. Claudia Werneck. Destaca-se uma
passagem que deixa claro a posição defendida pela organização:

“o conceito de deficiência disposto na Convenção sobre os Direitos


das Pessoas com Deficiência, da ONU, pressupõe que haja a presença
de vida ainda que em forma de expectativa de vida. Utilizamos o
disposto na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, da ONU, que entrou em vigor por meio do Decreto
Legislativo nº 186, já citado nesta audiência, aprovado no Brasil com
hierarquia constitucional em 9 de julho de 2008. Assim, a Escola de
Gente entende que, de acordo com a legislação internacional
ratificada pelo Brasil, a vida fora do útero exerce uma função
mediadora para que uma pessoa seja ou não considerada “pessoa com
deficiência” e, consequentemente, pessoa titular de todo e qualquer
direito. É impossível constatar discriminação com base na deficiência
quando não há expectativa de vida fora do útero.”

Isto é, mais uma vez a presença dos movimentos sociais na discussão é reafirmada.
Se valendo, neste momento, por meio do esclarecimento de falácias e falsas simetrias –
como equivaler anencefalia à deficiência - apresentadas durante a exposição de
defensores dos argumentos religiosos contrários à ATP.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evidencia-se, portanto, por parte das passagens dos argumentos religiosos (defesa
da vida desde a gestação), uma eminente intenção do orador se afirmar enquanto
autoridade embasada em discursos jurídicos e cientificos, apartando-se da dogmática
eclesiástica.
Por sua vez, na perspectiva dos que defendem o direito à antecipação terapêutica
do parto, percebe-se a forte presença dos movimentos sociais sob a égide da litigância
estratégica. Isto é, diferentes setores da sociedade civil articulados em prol de uma decisão
favorável à solução da problemática cotidiana de milhares de brasileiras a partir da disputa
judicial. Trata-se de usar do direito aquilo que dele puder se extrair e transformar.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

MONTEIRO, Paula et al. As Relações entre Estado e Religião no Brasil, p.425, in


RODRIGUEZ, José Rodrigo e SILVA, Felipe Gonçalves; Manual de Sociologia Jurídica
3ª Edição; São Paulo: Saraiva Educação 2019.

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