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A NORMALIDADE NAS ELEIÇÕES

Nelson Zunino Neto


2021
Quando se estuda os princípios jurídicos mais invocados nos processos
eleitorais é comum verificar o emprego de determinadas expressões que, ao longo do
tempo, vão sendo lançadas sem a precisão terminológica esperada. Há termos em
relação aos quais nem bem se tem exata noção do alcance, ainda que usuais e
positivados na legislação.
Aqui vale destacar uma expressão encontradiça no mundo jurídico eleitoral e
que tem origem no texto da Constituição Federal: a normalidade da eleição.
O que é esta normalidade?
A palavra consta no art. 14, § 9°, da Carta Magna, que assim dispõe (destaque
nosso):
“§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade
e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a
moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do
candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do
poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na
administração direta ou indireta.”
Esta normalidade das eleições dificilmente é mencionada em textos
doutrinários ou jurisprudenciais desacompanhada do termo com o qual faz par na
redação da Carta Magna: legitimidade. Nas mais das vezes, tal qual o ditame
constitucional, a referência é à normalidade e legitimidade, expressões assim mesmo
acasaladas, como se indissociáveis fossem.
Talvez esta associação se dê muito mais à circunstância de que a) a legitimidade
tem força principiológica bastante para sustentar o sentido do comando; b) a
normalidade, por ser conceito indeterminado e de acepção mais vulgar do que de
conteúdo jurídico, repouse à sombra da legitimidade, o que seria conveniente para
evitar o inglório enfrentamento teórico.
O fato é que não há uma precisão terminológica para a expressão no campo
constitucional-eleitoral. José Jairo Gomes (Direito eleitoral. 12ª ed. São Paulo: Atlas,
2016, p. 28), numa obra completa em que visita o processo eleitoral por todos os
ângulos, dedica duas páginas aos “conceitos indeterminados”, e inclui aí a normalidade
das eleições tal qual prevista no art. 14, § 9°, da Constituição.
Diz o professor Jairo Gomes (loc cit) ser responsabilidade do intérprete, ante a
“vagueza semântica” do conceito, mas dada a possibilidade de sua determinação,
encontrar o sentido mais preciso, e ressalta a relevância do papel do magistrado nesse
mister. Não sem antes criticar essa imprecisão terminológica como catalizadora de um
dos mais temidos fenômenos do direito: a insegurança jurídica.
Para tornar ao seio da Constituição, vale fazer referência a uma segunda
passagem do texto em que a expressão “normalidade” é empregada, no § 3° do art. 36,
que trata de hipóteses de intervenção da União nos estados. Embora não se trate, no
ponto, da normalidade eleitoral, a alusão pode contribuir para que se compreenda
melhor o sentido do termo.
O dispositivo regula o “restabelecimento da normalidade” em hipóteses
relativas a descumprimento da lei ou violação de princípios. Isto leva à compreensão de
que a normalidade seria o estado de não violação de princípios e leis. É um bom começo
para a investigação do espírito do legislador constituinte.
O que se encontra em geral na doutrina e nos julgados é a associação da
normalidade com a legitimidade, mas não com fundamentos específicos e sim pela mera
citação simultânea; com algum esforço é possível compreender que a normalidade –
junto com a legitimidade ou nas raras vezes em que citada avulsa – vem envolvida com
o sentido de qualificar uma eleição livre de desequilíbrio, de desigualdade na disputa ou
de vícios em geral. São menções genéricas, vagas, imprecisas, mas que nos dão um
vestígio de que a melhor interpretação, ou pelo menos a mais ordinária, está mais
próxima dos conceitos ligados à isonomia, à legitimidade e até à razoabilidade.
Cabe uma ligeira tentativa de situar esse conceito, já que se trata de um sócio
da legitimidade eleitoral e carece de ser melhor compreendido.
A normalidade é daqueles objetos mais fáceis de compreender do que de
expressar. A semântica nos leva ao conceito de “normal”. Aurélio Buarque de Holanda
(Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.
1198) traz neste verbete, no que interessa, uma definição direta em duas acepções: “1.
Que é segundo a norma. 2. Habitual, natural.”
Partindo desta premissa, temos dois pilares: o respeito à norma e a
habitualidade. A norma, contudo – aqui não no plano puramente jurídico – não se
restringe a regras, mas abrange modelos, padrões, ideais.
Para Mário Ferreira dos Santos (Dicionário de filosofia e ciências culturais. São
Paulo: Matese, 1965, p. 849), “norma é um tipo concreto ou fórmula abstrata do que
deve ser, em toda extensão do campo dos juízos valorativos. Como tal, pode ser um
ideal, um modelo, uma regra, um fim.” A habitualidade, por sua vez, é traduzida pela
frequência com que ocorre.
Somando estas proposições, chega-se à noção de que o normal seria aquilo que
habitualmente atende a determinado ideal.
Esta conceituação resolve o problema do mero apego à norma, já que não
alcançaria o sentido da frequência e também porque poderia permitir a confusão com
a legalidade. De outro lado, a habitualidade por si só não bastaria, dada a possibilidade
de algo ser habitual e ao mesmo tempo maléfico, forçando a conclusão de que a
normalidade poderia residir aí.
Assim, a associação da habitualidade com a sujeição a um ideal resultará num
sentido mais adequado, desde que se tenha a norma-modelo como produto da
civilização e, portanto, represente um resultado benfazejo.
A normalidade, então, será o estado de habitual atendimento a um modelo
ideal. Pondere-se que este modelo ideal é mais abrangente que a lei, porque pode
envolver concepções morais ou naturais. Esta normalidade pode ser entendida como
um estado resultante da aspiração comum à paz social. Mas recorramos à filosofia para
uma base mais sólida.
Ensina o professor Mário Santos (op cit, p. 102 e 850):
“A normalidade é um conceito axiológico, portanto sujeito a
valorizações e valorações, que dependem das estruturas esquemáticas dos que
classificam os fatos. (...) Costuma-se chamar anormal o que não está, o que não
se conforma com o tipo médio ou com o tipo ideal específico. Este termo é de
difícil precisão, porque nem sempre se pode precisar qual seria o normal. (...)
Normal, portanto, no sentido próprio, podemos chamar tudo o que é conforme
à sua própria ideia do bem, ficando, assim, ‘normal’ sinônimo de bom, justo,
direito. Como a norma não é sempre uma regra abstrata, ‘normal’ também
pode significar a conformidade de um indivíduo com a ideia de sua espécie, que
representa para ele a norma e o ideal ao qual aspira, não obstante tratar-se,
aqui, de uma norma, que só empiricamente pode ser conhecida, cujo valor a
priori só é presuntivo. (...) Entre esses extremos de normal=justo e
normal=habitual ou costumário, ainda há uma série de acepções
semantologicamente intermediárias.”
Pode-se concluir então que a normalidade não é equivalente à legitimidade da
eleição, mas certamente faz boa companhia, como um complemento que não é
supérfluo. A legitimidade não guarda relação com as mesmas premissas, já que ainda
numa situação inusual, com ocorrências extremas, o pleito pode ser legítimo. E mesmo
com a ocorrência de afronta a determinadas disposições legais o processo pode ser
considerado legítimo, desde que preservados, no contexto, os postulados que de algum
modo tenham conduzido a soberania popular a um resultado justo, equilibrado, livre de
máculas.
A normalidade diz respeito a um processo eleitoral que não desborda do que
habitualmente ocorre em conformidade com o ideal da sociedade.
Esta habitualidade há de ser aferida de acordo com o histórico. O que ocorre
comumente há muitos certames será tido como habitual, guardadas as mutações
acumuladas no transcorrer da história.
Por seu turno o ideal é um tanto mais amplo que a própria lei; supera, ou difere,
assim, do conceito de legalidade, e está a serviço da paz social. Esta concepção de
idealidade igualmente varia com o tempo, dada a natural evolução de costumes e do
ordenamento jurídico, cada vez mais frequentemente.
Isto não significa que inovações terão o condão de interferir na normalidade do
pleito, por si só. É preciso verificar a relevância e o grau da intercorrência, de modo que
possa ser, além de inusual, prejudicial, ferindo as expectativas do homem médio acerca
de uma eleição, conforme seus ideais. Por outro ângulo, um evento não muito aceitável
do ponto de vista ideal pode ser historicamente recorrente, o que, a depender do
contexto, não retira do pleito a normalidade.
Dito de outro modo, a normalidade é o estado do processo eleitoral cujas
ocorrências não destoam das havidas habitualmente em consonância com o ideal social.

Nelson Zunino Neto é advogado em São João Batista SC, graduado em Direito (FURB) e pós graduado em
Direito Eleitoral (IDDE). Concluiu o curso de preparação da Escola Superior da Magistratura de Santa
Catarina (ESMESC). Atuou como convidado em comissões parlamentares de inquérito municipais.
Palestrante sobre reforma política, legislação eleitoral e improbidade administrativa. Na OAB/SC
participou, dentre outras, da Comissão de Moralidade Pública, além de ter sido vice-presidente da
Comissão de Direito Eleitoral. É membro da Academia Catarinense de Direito Eleitoral (ACADE) e do
Instituto dos Advogados de Santa Catarina (IASC). Autor do livro Tempo mínimo de propaganda eleitoral
em rádio e TV: por um jogo justo, Habitus, 2020.

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