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Christina Dodd

Tiamat World
The Governess Brides 03

Christina Dodd
Seduzida
(Rules of Attraction)
Série Instrutoras ou The Governess Brides 03
Depois de nove anos, a senhorita Hannah Setterington decidiu vender
a Distinta Academia de Instrutoras para investigar em um passado
pessoal cheio de segredos. Para poder fazê-lo concordou ser a
acompanhante da tia do obscuro Dougald Pippard, lorde Raeburn, um
homem do qual se rumoreja assassinou sua esposa.
A nova tarefa de Hannah não é mais que um arrevesado plano
esboçado por Dougald para seduzi-la e se vingar dela. Mas sua
satisfação não durará muito porque ela tomou as rédeas e revive nele
uma paixão que não há sentido há nove anos. O fogo que sempre
ardeu entre ambos se aviva com cada roce, com cada olhar, até o
ponto que Dougald quase esquece seus planos de vingança.
Um homem nunca deveria seduzir uma mulher por vingança.

Disp em Esp: Escarada_1


Envio do arquivo e Trad: Gisa
Revisão: Rosilene Xavier
Revisão Final: Matias Jr.
Formatação: Gisa
Tiamat - World

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

Comentário do Revisor Matias Jr.: Bem, começarei o comentário falando


das quatro velhinhas desbocadas... Se preparem para escutar as maluquices
delas. Mas, quanto à mocinha... Essa nos faz arrancar os cabelos e nos deixa
injuriado... até que, depois as injurias são transmitidas para o peste do
mocinho... e, para variar, dá vontade de pegar os dois e enforcá-los ao mesmo
tempo... Não dá pra fazer um comentário coerente com esses dois... Só mesmo
matando a fujona e o cabeça dura. Vão curtir muito com essa história. E ficar
sem cabelos de tanto arrancar de raiva. Risos. Boa leitura.

A senhorita Hannah Setterington,


única proprietária da

Distinta Academia
de Instrutoras
que durante três anos formou às melhores governantas, damas de
companhia e instrutoras, sente prazer
em anunciar que vendeu a

Distinta Academia
de Instrutoras
em troca de uma considerável
fortuna, e decidiu fazer frente
aos problemas de seu passado que
seguem atormentando-a.

Quatro de março de 1843.


Ontem.

Capítulo 1

Naquele preciso instante a senhorita Hannah Setterington podia afirmar


sem temor de se equivocar que estava sozinha. Completa, absoluta e
sinceramente sozinha. Enquanto deixava que sua bolsa de viagem caísse com
um golpe seco sobre as tábuas da plataforma da estação ferroviária, olhou a
seu redor na penumbra do ocaso que se abatia sobre Lancashire. Não se

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avistava nenhum edifício entre o espesso arvoredo. Nenhuma luz de boas-


vindas reluzia atrás dos vitrilhos de uma janela, nenhuma voz humana
resmungava ou ria, e ali, em plena campina, não havia nem rastro do tênue
halo resplandecente que rodeava Londres inclusive na mais escura das noites.
De fato, já nem sequer alcançava a divisar o perfil das montanhas que se
elevavam para o norte. A noite e a névoa se apropriavam da paisagem por
momentos, o trem já não era mais que um murmúrio distante, e naquele
momento a ideia de declinar a oferta de se converter em dama de companhia
da idosa tia do conde de Raeburn lhe parecia muito mais que razoável.
Mas a quem podia comunicar sua decisão? No caminho que serpenteava
colina acima, e cujo esboço se perdia de vista além da estação, não se
percebia nem o mais remoto sinal do criado que, conforme dera por fato, devia
estar ali para recebê-la.
Sua chegada a Lancashire não podia ter sido mais decepcionante. Mas
fora até ali seguindo os ditados de seu coração e não pensava partir até ter
obtido o objetivo que tinha se proposto.
Embora soubesse que não podia ter se equivocado de data, pinçou no
interior de sua bolsa e extraiu uma carta em cujo remete figurava o nome da
governanta que a contratara. Entrecerrando os olhos a tênue luz do crepúsculo,
Hannah releu as palavras que a senhora Trenchard escrevera com sua
esmerada caligrafia: "Tome o trem até Presham Crossing e desça em dita
estação no dia cinco de março de 1843".
Hannah sabia sem lugar a dúvidas que era cinco de março. Elevou os
olhos para o letreiro pendurado sobre a plataforma recém-construída, que
anunciava com orgulho: PRESHAM CROSSING.
"Enviarei uma carruagem para recolhê-la e trazê-la até o castelo de
Raeburn, onde meu senhor aguarda sua chegada com grande impaciência."
Hannah se voltou de novo para a estreita estrada. Nem rastro da
carruagem, nem de criado algum. Nada de nada. Enquanto voltou a guardar a
carta na bolsa, suspirou e se perguntou por que a surpreendia aquela amostra
de inépcia.
A experiência a ensinara que, embora a eficiência se contava entre suas
qualidades, raramente a encontrava em outros.
De fato, foi seu caráter eficiente o que a permitira dirigir a Distinta
Academia de Instrutoras sozinha ao longo dos últimos três anos, e o fizera com
tal solvência que, quando fora a lady Bucknell para que a ajudasse a vender a
academia, esta decidira comprá-la para si mesma.
—Necessito algo no que ocupar meu tempo desde que Wynter tomou as
rédeas do negócio familiar - lhe havia dito esta enquanto estendia um talão
com uma soma considerável.
Agora, nos seus vinte e sete anos, Hannah se achava na invejável situação
de não ter que voltar a trabalhar no que ficava de vida.

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Embora o faria, por descontado. Trabalhara desde que tinha uso de razão,
já fosse costurando, fazendo recados, realizando as tarefas próprias de uma
criada... inclusive em seus estudos sempre se esforçou por ser a melhor.
E logo houve aquele breve, terrível e maravilhoso período no que não
trabalhara.
Atando a capa ao redor do pescoço, voltou a olhar para a estrada, mas
esta permanecia obstinadamente deserta e a luz do sol se desvanecia com
rapidez.
Nos últimos tempos recordava muito frequentemente os dias nos que se
sentira inútil e desnecessária, uma mera posse. Por mais que a claridade
daquelas lembranças lhe resultasse desconcertante, não podia dizer que a
surpreendessem.
Sempre que se encontrava ante uma encruzilhada e seus afazeres diários
não conseguiam ocupar cada segundo de seu tempo, sua mente divagava de
volta ao passado e as dúvidas voltavam a assaltá-la. Em momentos como
aquele, de espera solitária, enquanto as colunas de névoa se convertiam em
um espesso tecido que rabiscava as estrelas e a envolvia, a isolando de todo o
resto, se perguntava o que ocorreria se retornava a Liverpool, onde seu destino
a aguardava.
Entretanto, sempre acabava desprezando essa ideia. Na hora da verdade,
era muito covarde para assumir as consequências de seus pecados de
juventude, e muito sábia para perder tempo pensando neles.
Afundando o queixo em seu cachecol de lã e as mãos enluvadas debaixo
dos braços, tratou de represar seus pensamentos para um propósito mais útil:
o que fazer.
Ninguém se apresentara para recebê-la, não sabia como chegar à aldeia e
a noite se anunciava gelada. De algo estava segura: não sucumbiria ao pânico,
por mais que a tivessem abandonado a sua sorte.
Quando menos, sabia que não a seguiram até ali de Londres. Uma das
muitas razões pelas que aceitara aquele posto era a suspeita recente de se
achar sob vigilância.
Ou isso, ou um dos três cavalheiros de aspecto lúgubre e idêntico traje
que se instalaram na casa de frente visitava o mercado sempre que ela o fazia,
ia a ver as mesmas peças de teatro que ela e inclusive se apresentou em
Surrey o mesmo dia em que ela se deslocou até ali para assistir ao batismo do
segundo filho de Charlotte e visitar Pamela.
Mas quem podia se interessar por uma dama de berço humilde,
proprietária de um honrado negócio londrino, até o ponto de seguir seus
passos e observar todos e cada um de seus movimentos?
Só um homem... e sinceramente, como ia poder esquecê-la?
Possivelmente só fosse imaginação dela.
Por isso, quando chegou a suas mãos uma solicitude para o posto de dama

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de companhia de uma idosa em Lancashire, o interpretou como uma chamada


do destino. Vendeu seu negócio e abandonou Londres.
Quem não a conhecia poderia dizer que empreendeu uma fuga para
frente, mas ela preferia pensar que se tomava um ano sabático1.
Assentiu com firmeza. Sim, um ano sabático para refletir sobre seu futuro.
O futuro de Hannah Setterington.
Seguia sem avistar nenhuma carruagem, nenhum criado. Pensou em como
ensinara a suas aprendizes de instrutoras a enfrentar situações similares: com
senso comum e sem rancor. Se ninguém se apresentava no prazo de uma hora,
voltaria à estrada com a esperança que seus passos a conduzissem até
Presham Crossing. Dali, pagaria a alguém para que a acompanhasse até o
castelo de Raeburn. E uma vez ali, se encarregaria de dar uma boa reprimenda
à senhora Trenchard, a governanta.
Frequentemente, as mulheres criadas entre algodões que ocupavam
postos como o de instrutora ou dama de companhia se viam submetidas a um
trato abusivo por parte dos serventes de fila inferior. Hannah tencionava deixar
as coisas claras desde o começo, o que incluía exigir o respeito que merecia.
Se isso não era possível, preferia sabê-lo quanto antes, e não quando já tivesse
pego carinho à idosa tia do conde que, conforme asseguraram nas missivas
trocadas, era uma dama encantadora, embora às vezes um pouco
desorientada.
Hannah sorriu para seus adentro. Gostava das anciãs. Fora a dama de
companhia de lady Temperly durante seis anos, e graças a ela teve ocasião de
conhecer o mundo e visitar lugares com os que sempre sonhara. Acompanhar
lady Temperly em suas viagens fora muito diferente do que viver de um lado
para o outro com sua mãe, submetida à indiferença ou a brincadeira dos
pequenos latifundiários ingleses e suas honradas esposas. As maravilhas do
continente abriram seus olhos a outro mundo.
Ao longe, pela esquerda, se ouviu um chiado e um gemido lastimoso.
Hannah ficou petrificada, e por um momento se permitiu imaginar o tipo de
animais que vagariam por aquelas paragens, tão perto das montanhas.
Mas então ouviu um estalo continuado familiar, um novo chiado... e
suspirou de alívio. Reconhecia aqueles sons. Algum veículo tinha coroado a
colina e avançava lentamente para ela. Desprezando seu inicial alarme como
se nunca tivesse existido, avançou até a borda da plataforma e ficou à espera,
convencida que, quem quer que fosse, teria ido até ali para recolhê-la. E o que
se não se tratava de uma carruagem? Ninguém mais se aventuraria a sair em
uma noite de cães como aquela.
Por mais que forçasse a vista, Hannah não alcançava a vislumbrar nada.
Então, um resplendor abriu caminho entre a névoa e um carro de madeira se
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Relativo a qualquer período em que se observe interrupção ou suspensão de certas atividades
regulares.

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deteve junto a ela. Um farol pendurava a um lado do veículo, puxado por um


pangaré descadeirado cujas rédeas sustentava um homem esquálido. Assim
que abriu a boca, o desconhecido soltou um arroto que fedia a cerveja e que
Hannah percebeu claramente face à considerável distancia que havia entre
ambos.
Presham Crossing devia ficar na direção que viera aquele homem, pois era
evidente que acabava de passar pelo botequim local.
Observaram-se um ao outro com mútuo receio. Hannah tinha ante si um
homem alto, de meia idade, claramente aficionado à bebida e não muito amigo
da higiene, a julgar por seu nariz avermelhado e o aspecto imundo de suas
roupas.
Só esperava que ao vê-la, embainhada em seu favorecedor traje de
viagem negro, investida de infalível retidão e autoridade moral, tomasse
exemplo de sua conduta.
—É você a senhorita Setterington? - perguntou finalmente o desconhecido.
—Em efeito.
—Se supõe que devo levá-la ao castelo de Raeburn - repôs o homem com
seu estranho acento de Lancashire.
Hannah jogou uma olhada ao carro, com suas duas rodas de madeira, suas
laterais estilhaçadas e o feno empilhado na parte traseira, e pensou na escassa
consideração que seu novo patrono revelava para ela.
Qualquer outra em seu lugar não teria tido mais remédio que suportar
semelhante vexame e teria se sentido profundamente desgostada. Mas ela era
a senhorita Setterington, da Distinta Academia de Instrutoras.
Podia conseguir trabalho onde quisesse, e tinha bastante dinheiro em uma
conta do banco da Inglaterra para abandonar aquele lugar sem voltar a vista
atrás.
Mas não pensava fazê-lo. Não depois de ter procurado expressamente
aquele canto afastado de Lancashire, embora seu patrono não tinha por que se
inteirar.
Aquela noite quão único queria era uma comida quente e um teto sob o
que dormir.
—Quem é você? - perguntou.
Seu tom imperioso fez que o homem levantasse a cabeça. A escrutinou
entre as mechas de cabelo marrom e cinza que penduravam sobre sua testa.
—Meu nome é Alfred.
—Chega tarde. - Hannah desceu os degraus. - Deixei a bagagem na
plataforma. Há uma cesta e uma bolsa de viagem. Vá recolhê-los e partamos
quanto antes.
O homem ficou olhando boquiaberto, até que ela espetou:
—Vamos, a que espera?
Alfred respondeu como o teria feito qualquer cão ante uma ordem

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cortante, levantando um lábio e mostrando os dentes em um breve gesto de


desafio antes de apear do carro, obediente. Enquanto o condutor de ombros
encurvados se arrastava até sua bagagem, Hannah arregaçou a saia, subiu ao
carro e se acomodou na tábua de madeira do assento dianteiro. Da parte
traseira do carro se ouviu um grunhido enquanto Alfred levantava sua
bagagem e a deixava sobre a pilha de feno.
Hannah desejou que nenhum inseto se instalasse ali e decidiu examinar
sua roupa quando por fim lhe tivessem atribuído um quarto no castelo de
Raeburn. O que, a julgar pela lentidão com a que Alfred se movia, podia
demorar uma eternidade.
—Vamos, não quererá fazer esperar a seu amo - o ameaçou.
Suas palavras não pareceram surtir efeito algum. Teve tempo de
acomodar as saias e se sentar cuidadosamente em um extremo do assento
antes que o homem subisse ao carro e se instalasse junto a ela, trazendo
consigo uma nova baforada de cerveja e aroma corporal. Ocupava mais da
metade do assento, não porque fosse especialmente corpulento, a não ser
bastante mais largo de costas do que parecia a primeira vista.
Hannah se fixou em suas grandes mãos enquanto o homem recolhia as
rédeas para açoitar ao cavalo, que parecia tão abatido e cansado como ele. O
pangaré esticou a brida e começou a puxar o carro para frente com um lento
repico dos cascos.
Só então Alfred disse:
—Não é meu amo.
—Perdoe? - Hannah demorou um pouco em se dar conta que se referia a
sua observação de antes. - Você não trabalha para o conde de Raeburn?
—Eu trabalho no castelo de Raeburn. O tenho feito toda a vida. Mas o amo
que temos agora não é o primeiro nem será o último.
—Suponho que é algo habitual em uma propriedade que passa de pais a
filhos - replicou Hannah depois de refletir sobre aquele comentário
desanimado.
—É o quarto amo que tivemos em outros tantos anos.
—Céu santo! - Enquanto alcançavam o topo da colina, uma muito leve
brisa roçou as faces de Hannah, e por um instante viu como as negras sombras
das árvores se abatiam sobre ela.
—Que tipo de infortúnio deu pé a tantas mudanças?
—A maldição.
As árvores desapareceram, engolidas de novo pela névoa.
—Que maldição?
Alfred a olhou de esguelha com profundo desdém.
—Uma maldição pesa sobre a família.
—Ah! - Hannah não pôde evitar esboçar um sorriso. Alfred devia pertencer
a esse tipo de homens que desfrutam pulverizando rumores sem fundamento

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algum. - Esse tipo de histórias me resultam familiares. As jovens damas às que


estava acostumada a dar aulas eram muito aficionadas contá-las. Então uma
maldição pesa sobre a família. Quem a jogou?, uma cigana, uma bruxa,
possivelmente? E por que motivo?, despeito?, vingança?
—Você ri, mas o certo é que faz dez anos morreram dois herdeiros da
propriedade em um naufrágio frente às costas escocesas, o idoso lorde passou
desta para a melhor faz quatro anos e seu primo despencou o ano passado do
topo de um escarpado, logo seu irmão perdeu a vida ao cair rodando pela
escada, e agora temos a este canalha, um parente longínquo que nem sequer
é de Lancashire.
O sorriso de Hannah desvaneceu. Não era tão ingênua para dar crédito às
mentiras saídas da boca de um criado cuja venerabilidade lhe parecia muito
mais que duvidosa, mas se fosse certo o que dizia, se encontrava ante uma
terrível tragédia.
—Você não pode culpar ao amo atual por ter nascido em outro lugar -
observou. - Faria melhor em julgá-lo por suas obras e o modo em que governa
a fazenda.
Alfred soprou.
—Leva aqui menos de um ano e já pôs tudo a funcionar como um relógio.
—Aí tem, vê? - repôs Hannah em tom alentador.
—Sim, mas isso do que serve se tem as mãos manchadas com o sangue
dos seus?
As rodas de madeira tamborilavam os sulcos do caminho com tanta força
que os dentes de Hannah tocavam castanholas e lhe doía o traseiro, apoiado
no banco de madeira.
Colunas de névoa umedeciam suas faces e, o pior de tudo, seu senso
comum parecia a ponto de fraquejar. Entretanto, falou em um tom firme e
reprovador:
—Não acredito que você deva se dedicar a difundir rumores caluniosos
sobre o titular da casa nobiliária para a que trabalha.
—Não sou eu o que pulveriza esses rumores, senhorita. O dizem seus
criados mais diretos. - Alfred encurvou ainda mais os ombros e olhou para
frente com gesto antissocial, como se pudesse distinguir uma estrada que a
névoa tivesse tornado invisível.
—Faz anos se casou com uma jovem dama, bela como uma flor, que
passava a vida rindo e lhe fazendo brigar, e tanto como se queriam também
brigavam a morte. Sempre estavam discutindo. Logo faziam as pazes e
voltavam a se zangar outra vez.
O chofer do conde diz que um bom dia, depois de uma discussão
especialmente violenta, ela desapareceu sem deixar rastro.
—Isso não significa que sua senhoria matou a sua esposa.
—Semanas mais tarde encontraram nas imediações o cadáver de uma

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mulher destroçado pelas bestas.


Hannah seguia se agarrando à lógica com todas suas forças.
—Isso não demonstra nada.
—Sua senhoria foi ver o cadáver e disse que não era o de sua esposa, mas
a donzela da defunta o acusou à cara de tê-la matado. Ele não negou, mas sim
ficou olhando fixamente, sinistro como a própria morte, até que ela saiu
correndo.
Não tornou a ser o mesmo depois. Nunca sorri, nunca tem uma palavra
amável para ninguém e não consegue conciliar o sono. De noite sai a percorrer
as terras no lombo de seu cavalo, e isso não é nenhum rumor, senhorita.
Eu mesmo o vi uma noite, com aquele olhar aceso e febril.
Hannah supôs que o cavalo conhecia o caminho e vencia a levantada
costa sem que ninguém o guiasse, pois as rédeas descansavam soltas nas
mãos de Alfred.
Agarrou sua bolsa com uma mão e o assento com a outra, lutando contra
a tentação de olhar por cima do ombro.
—Se eu estivesse em seu lugar, senhorita - advertiu Alfred em tom
premonitório, - partiria daqui quanto antes. Já sabe o que dizem: "Quem matou,
matará".
Como Alfred soube que Hannah se deixaria impressionar por aquele tipo
de histórias macabras? Certamente ria para seus adentro enquanto ela tentava
conter os calafrios que arrepiavam sua pele.
Pois bem, não pensava lhe dar a satisfação de saber que tinha obtido seus
propósitos.
—Embora sua senhoria fosse o assassino desumano que você diz, duvido
muito que se fixasse em mim - replicou no tom mais áspero que conseguiu
improvisar.
—Ninguém escapa ao interesse de um assassino consumado.
—Se decido não ficar no castelo de Raeburn não será porque tenham me
dissuadido uns rumores absurdos, mas sim pelo trato injustificável que recebi
até agora.
Alfred deu de ombros.
—Você verá o que faz, senhorita.
"Que alegria de homem!"
—Falta muito para que cheguemos?
—Estamos alcançando o topo da colina. - Alfred apontou para diante,
como se ela pudesse ver o que lhe indicava.
—Aí está a torre de entrada. O fosso se cegou faz duzentos anos. Agora
mesmo entramos no pátio.
As luzes do castelo surgiram entre a névoa com súbita nitidez. As rodas de
madeira estralaram sobre a pavimentação e se detiveram na metade do
caminho. Inclinando a cabeça para trás, Hannah levantou o olhar, atônita ante

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a impressionante construção de granito que se elevava abruptamente do chão.


Tinha a impressão de ter viajado no tempo e se achar ante um castelo que
em nada mudara desde a época medieval, quando as janelas não eram a não
ser frestas e cada elemento arquitetônico cumpria uma função defensiva.
—Algumas partes têm quase setecentos anos. Entre estes muros
nasceram muitos meninos, e muitas vidas se apagaram. - Alfred se voltou para
olhar para Hannah, e seus olhos remelentos reluziram, úmidos e taciturnos. -
Lhe desejo boa sorte, senhorita.
Uma porta se abriu, derramando um grande quadrado de luz sobre o qual
se recortavam várias silhuetas, quatro masculinas e uma feminina.
—Trouxe-a, Alfred? - perguntou uma voz de mulher em que Hannah
acreditou perceber um leve acento de Lancashire e certo refinamento.
—Sim.
—Já era hora. O amo está muito inquieto.
A mulher e três dos homens, dois dos quais levavam seus faróis, se
aproximaram apressadamente ao carro.
—A senhorita Setterington? - perguntou a mulher, que tagarelava sem
cessar. - Sou a senhora Judith Trenchard, e lhe peço desculpas por tão precário
meio de transporte. Houve um... mal-entendido.
"Um mal-entendido? Que interessante!"
—Espero que este percalço não lhe tenha causado muitos incômodos -
acrescentou a senhora Trenchard.
—Absolutamente. - Um lacaio colocou uma escadinha ao pé do carro e
ajudou Hannah a descer. - Mas sim rogaria que uma donzela passasse uma
escova em minha roupa.
Quando os lacaios elevaram seus faróis, a consternação se fez patente no
rosto rechonchudo e enrugado da senhora Trenchard.
Rondaria os sessenta e cinco anos, e desprendia um ar de eficiência e
energia que contrastava com suas desculpas e o encargo do engano cometido.
—É obvio, em seguida lhe atribuirei uma donzela. Passe dentro antes que
a umidade a impregne até os ossos.
Mas era muito tarde. Quando Hannah cruzou a soleira e entrou no sombrio
e cavernoso vestíbulo, estava tremendo da cabeça aos pés e não podia parar.
A senhora Trenchard estalou a língua.
—Billie, traga uma manta para a senhorita Setterington. Grande noitinha.
Não sei que se propõem os da ferrovia, mas estas não são horas de deixar a
ninguém ao pé da plataforma. Recorde o que lhe digo, nunca conseguirão ficar
populares em Lancashire se seguirem obstinados em seu desatino. Obrigado,
Billie. - Depois de envolver Hannah na cálida e impoluta manta de lã, a
conduziu apressadamente para as escadas de pedra que subiam em espiral. -
O amo a está esperando.
A senhora Trenchard superava Hannah em estatura, o que a fazia

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inusualmente alta para ser uma mulher. Possuía uma constituição robusta e
generosas nádegas. Quando caminhava, se ouvia o tinido da argola de ferro
repleta de chaves que pendurava de seu cinturão e que era sua particular
insígnia. Hannah seguiu os passos da governanta agarrada na mão, se
sentindo como uma folha arrastada por uma poderosa rajada de vento.
—Primeiro eu gostaria de me assear um pouco - disse.
—Ah, não! Aqui não fazemos o amo esperar - replicou a senhora Trenchard
em tom cortante. - Não é tão mau como dizem, mas sim severo, e gosta que se
façam as coisas a sua maneira. Eu procuro não contrariá-lo, e faz tempo que
espera sua chegada.
Hannah quis lhe fazer ver que isso não era culpa dela, mas a senhora
Trenchard seguiu falando sem cessar enquanto a empurrava escada acima.
—O amo quer reformar esta zona para que os convidados entrem no
castelo por um vestíbulo no segundo andar. A cozinha não é lugar para dar as
boas-vindas aos visitantes, e esta escada é tão velha e está tão desgastada
que é fácil tropeçar.
De fato, o amo anterior... bom, é igual. - A senhora Trenchard se deteve no
meio da escada, se apoiou contra a parede e levou uma mão às cadeiras com
uma careta de dor.
Hannah se alarmou ao contemplar acima a espiral de degraus de pedra
que deixaram atrás.
—Você está doente? - perguntou, agarrando à senhora Trenchard pelo
braço.
—Tolices - respondeu esta, afastando Hannah e voltando a empurrá-la
escada acima. - Jamais estive doente em minha vida. Tenho uma saúde de
ferro. Minha mãe passou desta para a melhor faz tão só cinco anos, à
venerável idade de oitenta e nove anos.
O que passa é que vou ficando velha, isso é tudo. - Assinalou o resplendor
que provinha de cima. - Uma vez que passemos a cozinha, a casa é uma
maravilha.
Hannah assentiu. Certamente a única coisa que ocorria à senhora
Trenchard era que teve um mau dia. Certamente parecia forte como um
carvalho.
—À morte do velho lorde, os dois amos que o substituíram empreenderam
a reforma do castelo, e o último, que em paz descanse, inclusive mandou
instalar estufas que esquentam o dobro de uma lareira. O amo atual estava
muito ocupado quando herdou o título, mas agora começou a restaurar as
tapeçarias, a limpar a carpintaria e a substituir as partes mais antigas. É um
castelo magnífico, já o verá.
—Estou segura disso - assentiu Hannah.
Não sabia se a senhora Trenchard sempre era tão loquaz ou se
simplesmente estava nervosa, mas quando chegaram ao alto da escada se deu

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conta que a governanta não lhe mentira. A parte menos nobre do castelo se
embelezou com uma combinação de mobiliário moderno e chãos de madeira
encerada. O corredor em forma de arco se alongava antes de desembocar em
uma sala ampla, muito bela e bem mobiliada onde o antigo e o moderno se
mesclavam com harmonia. O teto era tão alto que a vacilante luz das velas não
alcançava a iluminá-lo. Painéis de madeira escura revestiam as paredes, sobre
as que se alternavam escudos brunidos e tapeçarias tradicionais bordadas em
ouro e vermelho escarlate. Não obstante, o mobiliário parecia cômodo e de
recente aquisição, e pela primeira vez desde que chegara a Lancashire,
Hannah reconheceu um vislumbre do estilo decorativo que imperava em
Londres.
—O grande salão - anunciou a senhora Trenchard com evidente orgulho.
—Soberbo! - exclamou Hannah.
Seus dentes ainda tocavam castanholas, coisa que a incomodava
sobremaneira. Não queria transmitir uma sensação de fragilidade em seu
primeiro encontro com a criada, o amo e a idosa tia do conde.
A senhora Trenchard se enfiou em um corredor sombrio cujas paredes
estavam repletas de quadros. As portas passavam a um e outro lado, e em seu
extremo Hannah distinguiu uma ampla escada que desaparecia em um poço
de trevas.
Entretanto, no corredor propriamente dito, tudo reluzia e parecia cuidado
com esmero salvo uma das portas, que fora arrancada de suas dobradiças e
apodrecia apoiada contra a parede.
Ao passar pela frente daquela porta, a senhora Trenchard apontou o
interior da sala.
—O amo mandou construir estantes novas para a biblioteca, de carvalho
pintado de amarelo claro. Diz que darão mais luz à sala, e me parece que tem
toda razão.
—Ficará precioso.
—Há quem opina que deveríamos deixar tudo como está, que terá que
respeitar a tradição...
A governanta parecia interessada na opinião de Hannah, embora esta não
acreditasse estar em condições de emitir um juízo a respeito. Tentou sortear a
questão:
—Não há dúvida que é necessário conservar algumas das coisas antigas,
mas estou segura que para você tudo será mais fácil em um castelo novo e
reluzente.
A senhora Trenchard se voltou para Hannah.
—Por quê?
—Porque é você a governanta e os objetos antigos são frágeis e mais
difíceis de limpar... - aventurou Hannah.
A senhora Trenchard a escrutinou com um toque de desconfiança.

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Tinha os olhos de cor clara, embora Hannah não alcançava distingui-los


claramente na penumbra, e embora não era tão velha como parecera em um
primeiro momento, as rugas que sulcavam seu rosto lhe davam um ar
envelhecido.
—Talvez você tenha razão, ainda não sei. - E, ainda sem se mover,
acrescentou: - Sabe, levo toda a vida trabalhando neste castelo e o tenho um
grande apreço à tia do conde, igual a todos os que trabalhamos aqui.
—Me alegra saber disso.
Era um bom sinal que a idosa da qual ia cuidar fosse uma pessoa digna de
apreço, e inclusive que os serventes a quisessem o bastante para submeter
Hannah a um exaustivo interrogatório.
—Espero não parecer indiscreta, mas o amo diz que você tem experiência
no cuidado de senhoras anciãs...
—Passei seis anos em companhia de lady Temperly.
—E estava contente com você?
—A nossa era uma relação apoiada no respeito mútuo, e foi muito
generosa comigo. Deixou-me sua casa como herança. Graças a ela pude fundar
a Distinta Academia de Instrutoras. Sempre recordarei lady Temperly com
profundo afeto.
A senhora Trenchard estudou seu rosto durante um minuto mais e logo
assentiu.
—Então o amo escolheu bem. Não haverá volta atrás. - Ato seguido, a
guiou até uma porta de madeira escura e ricamente lavrada.
—Já chegamos. O amo está no salão. Talvez à princípio a intimide um
pouco, mas sempre me tratou com respeito e consideração.
Não demorará em se acostumar a seus modos bruscos. Levante esse
queixo, e pare já de tremer. Dentro não fará frio. - A senhora Trenchard
arrebatou a manta das mãos de Hannah e a repassou de cima abaixo com o
olhar.
Ao que parecia, não achou grande motivo de aprovação, pois balbuciou: -
Não há tempo para mais.
Logo abriu a porta e entrou na sala.
Hannah a seguiu e abrangeu com uma breve olhada a pequena e
acolhedora sala. Na lareira crepitavam as chamas. Flores frescas assentiam dos
vasos. Alguns livros jaziam dispersos sobre uma mesa junto a uma grande
poltrona de brocado verde.
Quadros de estilo atual, com suas paletas de tons suaves e delicados,
emprestavam calidez às paredes estucadas, e um cavalheiro permanecia de
costas a sala, olhando pela reluzente janela de vitrais além da qual não se
vislumbrava a não ser a noite negra e a interminável névoa. Era alto, largo de
ombros e comprido de pernas. Vestia um austero traje branco e negro e tinha
as mãos entrelaçadas nas costas.

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Christina Dodd
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O cabelo negro pendurava sobre sua nuca e, a julgar por sua nula reação
ante a chegada da senhora Trenchard e de Hannah, se diria que não as ouvira
entrar.
Nem sequer se incomodou em se voltar quando a senhora Trenchard
anunciou com uma reverência:
—A senhorita Hannah Setterington, excelência.
Por um momento seguiu de pé e em silêncio, rígido como uma silhueta
solitária esperando... esperando algo.
—Nos deixe a sós - ordenou ao cabo de um instante em um tom de voz
grave e profundo.
Hannah conteve a respiração.
Aquela voz. Aquele tom.
Seu coração deu um tombo no peito e começou a pulsar com força,
marcando a cada segundo, cada emoção, cada temor.
Visto de costas se parecia com ele, e o rosto refletido no vidro lhe
resultava familiar.
Mas sabia quão equivocada podia estar. Quando ele se apropriava dos
pensamentos de Hannah, todos os homens pareciam com ele.
E entretanto... e entretanto...
Logo que ouviu o ruído da porta se fechando. Lentamente, aquele homem
se voltou para ela.
E o presságio que a atormentara durante nove anos se fez realidade.
Aquele homem não podia ter matado sua esposa.
Porque sua esposa era ela.

Capítulo 02

Dougald. Dougald Pippard. Não o conde de Raeburn, a não ser


simplesmente Dougald Pippard, um rico cavalheiro e empresário de Liverpool.
Mas agora dava as costas à janela e não havia a menor duvida. Aquele
homem era seu marido, pois seus olhos vivos brilhavam com triunfal regozijo.
Sempre fora um grande observador das emoções humanas, e Hannah sabia
que naquele momento senti a prazer em comprovar como as lembranças e o
estupor se apropriavam dela.
—Chega tarde - se limitou a dizer quando por fim Hannah teve recuperado
o fôlego.
Tarde. Sim, nove anos tarde para se reunir com o homem com o qual se
uniu em casamento apesar de seus muitos receios, e só depois de ter fugido
dele a primeira vez. Então ela pegara um trem, lhe dera alcance e...
—Você não é o conde de Raeburn. - Mal reconhecia sua própria voz. Soava

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muito grave, e muito firme tendo em conta as circunstâncias. - Não pode ser.
Seus lábios, os finos lábios esculpidos a golpe de cinzel que em tempos ela
tinha apaixonado contemplar, se moveram para articular com parcimônia e
precisão:
—Asseguro que o sou.
—Como? Mas... como?
Um súbito calafrio a sobressaltou.
Ele entrecerrou os olhos.
—Se aproxime do fogo.
Hannah não esperou que ele repetisse. Sua reação instintiva era sair dali
quanto antes, mas o senso comum lhe dizia que ele teve muitos incômodos
para lhe preparar aquela armadilha, e que agora desfrutaria ante a menor
oportunidade de lhe fazer o que quer que fosse que fazia um homem à mulher
que o abandonara, assim não pensava provocá-lo.
Além disso, sentia frio.
Mas não podia sossegar seu instintivo temor, e não conseguiu convencer a
si mesma para afastar o olhar dele nem tão sequer durante o muito breve
lapso de tempo que demorou para se aproximar à lareira, por isso se deslocou
sigilosamente para o grupo de cadeiras e mesinhas situadas em torno do fogo
sem deixar em nenhum momento de observá-lo.
O passar do tempo provocou muitas mudanças em ambos. Tantas
mudanças.
Hannah começara a viver sob seu teto em Liverpool quando ele contratara
sua mãe como governanta. Quando maturou, Hannah não era mais que uma
menina de doze anos magrinha e inocente. Entretanto, inclusive então se
sentira fascinada por seu rosto: as maçãs do rosto marcadas, a poderosa
mandíbula, o nariz reto e curto, as grandes orelhas. Era moreno de pele, mas
tinha os olhos de um precioso verde jaspeado de ouro que delatava sua
ascendência escocesa. As pestanas eram longas, negras e sedosas. O cabelo
era fino, negro e reluzente. E além disso era muito alto. Para a jovem Hannah,
aquele homem encarnara a quinta essência de um crisol 2 no que se mesclavam
vikings, celtas e ingleses de pura cepa. Sua distinta família vivera no norte ha
dois mil anos. Presenciara e abraçara cada nova onda de imigração sem
renunciar a suas próprias raízes celtas, e Dougald gostava de presumir que
estava aparentado com todas as famílias ao norte de Londres.
Agora, o tempo e a experiência poliram seus traços, lhes emprestando um
ar austero que quadrava à perfeição com a pedra nua e pálida do castelo que
afirmava possuir. A pele tensa sobre os ossos, o olhar acerado e penetrante, e
o cabelo...
Deus santo, uma mecha branca prateava suas têmporas.
Os últimos nove anos não passaram em vão para... de que maneira se
2
Recipiente das máquinas fundidoras e compositoras, onde se derrete o metal-tipo; caldeira.

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fizesse chamar agora.


Mas, apesar do temor e da consternação, Hannah sentiu a traiçoeira
chama do desejo.
Ele seguiria desejando-a? Quereria tomá-la aquela noite?
E ela? O rechaçaria ou corresponderia a seu desejo?
Tropeçou com as franjas do tapete, e isso a trouxe de volta ao presente, ao
difícil transe no que se achava e à atenta observação de... seu marido. Não se
aproximara o bastante ao fogo para notar seus efeitos, mas o aroma da lenha
encheu seus pulmões com uma promessa de calor. Se ficasse onde estava,
havia uma poltrona entre ambos. Podia não ser grande coisa como arma
defensiva, mas era melhor que nada.
—Me diga, como pode ser o conde de Raeburn? - perguntou se agarrando
ao estofo da poltrona com dedos trêmulos.
—Era o quinto na linha sucessória, mas os outros morreram, então aqui
me tem.
Hannah o recordava como um homem sorridente que esbanjava encanto e
confiança em si mesmo. A confiança seguia ali, mas o encanto e os sorrisos se
dissiparam como se nunca tivessem existido.
Hannah acreditava conhecê-lo, mas o olhava e parecia estar ante um
perfeito desconhecido... um desconhecido que tinha direitos sobre ela. Um
desconhecido que a vira crescer e que a conhecia como a palma de sua mão.
Mas se ele mudara, tampouco Hannah seguia sendo uma complacente e
insegura moça de dezoito anos. A experiência e serenidade adquiridas com os
anos outorgavam a ela uma vantagem que ele mal podia entrever.
—Era um comerciante de algodão - espetou adotando o tom e a expressão
que estava acostumada a empregar para entrevistar às aspirantes a
instrutoras.
—E sigo sendo.
—Investia nas ferrovias.
—Uma aposta que me compensou com acréscimo.
—Não aspirava a nenhum título nobiliário.
—É evidente que o fazia. - Dougald assinalou a seu redor. - E também sou
o quarto na linha sucessória de uma baronia. - Deu de ombros, e suas largas
costas se moveram acima e abaixo em um gesto de desdém.
—Entretanto, não imagino nada mais ridículo que um homem que baseie
seu amor próprio em um longínquo parentesco com a nobreza.
Hannah sabia muito bem a que se referia. Durante o tempo em que
dirigira a Distinta Academia de Instrutoras, conhecera a numerosos homens
convencidos que seu duvidoso vínculo genealógico com Guillermo o
Conquistador os fazia o bastante respeitáveis para fazer o que lhes viesse à
cabeça com suas garotas ou com ela. Hannah se encarregara de tirar de seu
engano a aqueles cavalheiros presunçosos e egoístas. Lástima que este lorde

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fosse farinha de outro saco.


Um pouco de vaidade e egoísmo faziam um homem mais fácil de dirigir.
—Chega tarde - insistiu Dougald. - A esperava faz mais de uma hora. E não
me diga que o trem se atrasou porque sempre chega pontual.
—Foi seu lacaio o que se apresentou tarde. - Hannah voltou a estremecer,
em parte porque não chegara a entrar em calor e em parte pela frieza de
Dougald.
—Meu lacaio?
—Alfred.
—Alfred foi te recolher? - Não elevara a voz, mas seu tom não pressagiava
nada bom. - No carro?
—A senhora Trenchard me disse que houve um mal-entendido - Hannah se
apressou a acrescentar, porque recordava perfeitamente seu mau gênio.
—Disso não me cabe a menor duvida - repôs ele com as faces acesas.
Por um momento, Hannah acreditou ter ante si o jovem Dougald nos
instantes prévios a um acesso de ira, e até se sentiu reconfortada ao ver nele
ao homem que tão bem conhecia.
"Mais vale mal conhecido que bom por conhecer."
Mas então ele suspirou com resignação.
—É minha culpa. Só levo aqui um ano, e a senhora Trenchard ainda não
sabe quando fazer caso omisso de meus comentários.
O homem com o que Hannah se casou raramente admitia ter se
equivocado. Agora assumia sua culpa, e entretanto a governanta o temia tanto
que ao perceber seu engano repreendera o lacaio.
—O que disse a ela... sobre mim? - perguntou.
—A verdade.
Era incômodo saber que sua pessoa fora objeto de comentários antes de
sua chegada.
—Disse que sou sua esposa?
—Não se inteirou? Minha esposa faleceu. Conforme dizem, a matei com
minhas próprias mãos. - Dougald elevou as mãos, dobrando os dedos como se
os fechasse em torno de seu pescoço.
—Não me ocorreria privar a esta boa gente do prazer de alimentar
semelhante lenda.
Resultava macabro ouvir falar de sua própria morte com tanta indiferença.
—Mas por que... como começou semelhante história?
Imóvel, Dougald fez ouvidos surdos a sua pergunta enquanto a observava
de cima abaixo.
—Sente.
—Dougald, como pôde consentir que se estendesse um rumor tão
horrível? - insistiu Hannah.
—Tire o chapéu, as luvas e o xale. Toma assento e se ponha cômoda. Vai

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estar aqui muito, muito tempo.


—Não penso ficar - repôs Hannah em um tom gelado que não admitia
réplica, depois de endireitar os ombros e levantar o queixo.
Dougald apertou as mandíbulas e seus lábios se esticaram em uma linha
fina. Sem prévio aviso, cruzou a sala a grandes passos e foi direto para ela. Um
calafrio percorreu sua coluna, mas Hannah se manteve firme.
Dougald se deteve diante da poltrona, se interpondo entre ela e o fulgor
das chamas.
—Utiliza esta poltrona a modo de escudo protetor.
Sua grande mão se aproximou para ela. Hannah a viu vir e reprimiu um
calafrio quando ele a tocou, a tocou pela primeira vez em tantos anos.
Colocando a mão sobre sua mandíbula, Dougald roçou sua orelha com as
pontas ásperas dos dedos ao mesmo tempo em que elevava seu queixo com a
palma. Não se mostrou brusco.
A tocou como se ela seguisse sendo a moça alta e impressionável com a
que se casou, e esse mero, leve, contato lhe brindou um prazer tão afiado
como a dor.
—Se oculta atrás desta poltrona, mas se eu quisesse poderia jogá-lo na
outra ponta da sala. Poderia te atirar ao chão e possuir agora mesmo, querida,
e todos seus gritos seriam de prazer.
—Deslizou o polegar para cima e acariciou os lábios de Hannah, e pela
primeira vez sorriu, sorriu com malévola determinação. - Mas isso seria muito
fácil, então sente.

Capítulo 03

Hannah sentiu a carícia dos dedos de Dougald e observou seu rosto


sombrio, no que advertiu uma satisfação selvagem.
Todo rastro do juvenil e encantador trapaceiro de outros tempos se
desvaneceu por completo, a deixando ante um bruto tão empenhado em se
vingar e tão senhor de si mesmo que a ameaçava com a subjugação e a
tirania.
Mas se ele já não era o sorridente aventureiro de antigamente, tampouco
ela era a inocente rapariga que fora.
Fechando os dedos ao redor de seu pulso, Hannah afastou a mão de
Dougald.
—Seja amável e me sentarei. Volta a me ameaçar e irei em busca da
senhora Trenchard e de meu jantar.
Dougald pestanejou como se não tivesse ouvido uma resposta tão
insolente em anos.

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—Atrás - repetiu ela.


Dougald obedeceu, retrocedendo um só passo.
Interessante. Durante todo o tempo que vivera com ele, Dougald jamais
fizera nada que ela tivesse sugerido ou exigido, e não desejara nem tão sequer
se afastar um pouco para deixá-la respirar. Sempre acreditava ter razão e
arrumava para que seus rogos e queixas caíssem em saco furado, às vezes a
enrolando com carícias, outras fazendo caso omisso de suas palavras. Agora
Hannah se perguntava se teria aprendido a ceder com o passar dos anos.
Dougald se limitava a lhe seguir a corrente ou acaso ela aprendera a se
manifestar com tal autoridade que não ficava mais remédio que escutá-la?
Para falar a verdade, Dougald continuava muito perto dela, mas Hannah
celebrou seu ridículo afastamento como uma vitória. Elevando os braços por
cima da cabeça, extraiu o comprido alfinete que segurava seu chapéu.
—Fiz uma longa viagem e começo a ter apetite. Por favor, ordena que me
sirvam o jantar.
Dougald observava seu corpo com olhos ambiciosos, como se aqueles
braços elevados o permitissem contemplar a nudez de seus seios em lugar da
excelente lã negra de seu casaco de inverno. Hannah se deu conta que já não
tremia.
O arrebatamento de ira e aquele embaraçoso renascer de uma paixão
antiga a haviam feito entrar em calor, e se alegrou de poder deixar o chapéu
na mesinha auxiliar e ficar cômoda.
Desenrolou o suave cachecol de lã e tirou as luvas, que deixou sobre o
chapéu. Logo, um a um, desabotoou os botões do casaco.
—Um simples lanche será suficiente - recalcou.
Dougald não parecia escutá-la. De fato, nem sequer se movera.
Observava sem dissimulação algum suas mãos nuas, seu comprido
pescoço e especialmente seu rosto, no que demorava o olhar como se quisesse
comparar a lembrança da mulher que fora com aquela em que se transformou.
Hannah não se iludia a respeito. Em seus anos jovem, Dougald tinha lhe
dito incontáveis vezes o muito que adorava o brilho sedoso de seu cabelo loiro,
seus desconcertantes olhos marrons e um pouco rasgados, sua pele lisa
ligeiramente dourada.
Lhe dissera que parecia uma deusa egípcia.
Mas transcorreram nove anos desde a última vez que a vira, e os três
últimos anos de duro trabalho não passaram em vão. Dois cabelos brancos se
escondiam entre a juba loira.
Tinha-os encontrado depois de um mês especialmente difícil no que teve
que se ver com uma instrutora seduzida, um lorde indignado e umas
apressadas bodas.
Face às insônias de sua abnegada cozinheira, perdera a generosidade de
carnes que antigamente emprestava doçura a seu rosto, e em seu incessante ir

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e vir de sala de aula em sala de aula, do mercado para casa, sua viçosa e
exuberante silhueta se tornou magra e enxuta.
De modo que após se despojar do casaco o deslizando sobre os ombros, o
sustentou e ficou à espera da reação de Dougald.
Mas este não disse nada. se limitou a olhá-la com gesto inexpressivo.
Para sua própria surpresa, a indiferença de Dougald lhe sentou como um
jarro de água fria. Não é que quisesse animá-lo a cumprir sua incendiária
ameaça, mas dera por seguro que nunca resistiria a seus encantos.
Ao que parecia, em algum recôndito canto de sua alma, seguia abrigando
a esperança que se mantivesse fiel a suas promessas de eterna paixão.
—Podemos falar enquanto como algo - sugeriu, deixando o casaco sobre o
respaldo de um banco de madeira.
—De que deseja que falemos, querida esposa?
—Pode começar me explicando como averiguou meu paradeiro. Pode me
contar o que fez em todo este tempo. - E mais importante ainda: - Que planos
tem para mim.
Dougald levantou o queixo e a olhou com tal suficiência que, se não o
conhecesse, Hannah o teria tomado por um homem de alta linhagem.
—Contarei o que me venha em vontade te contar, nem mais nem menos.
Como detestava aquela arrogância! Quantas vezes teve que enfrentar a
ela em seu trato com a aristocracia! Decidiu tratá-lo com a mesma frieza que
se revelou eficaz frente a outros nobres, mais insolentes inclusive que ele.
—Bobagens! O que conseguirá me ocultando a verdade?
—O que conseguirei? Minha própria satisfação, é obvio, - se inclinou ante
ela, logo se dirigiu à porta e a abriu. - Charles - chamou, arrastando as sílabas
como estavam acostumados a fazer os ingleses ao pronunciar um nome
francês.
—Charles, a senhorita Setterington tem apetite. Diga à senhora Trenchard
que lhe traga algo de comer, - se voltou para olhar fugazmente a Hannah. -
Algo abundante.
Ao que parecia, se fixou em sua magreza. Dougald fechou a porta, apoiou
as costas nela e voltou a observá-la.
—Por favor - disse, apontando a cadeira, - sente-se.
Sempre que isso não o impedisse de sair-se com a sua, Dougald se
comportaria como um perfeito anfitrião. Muito bem, Hannah não esqueceria o
que a levara a aceitar um posto de trabalho em Lancashire.
Em troca, se comportaria como uma convidada exemplar e cruzaria os
dedos para que aquela farsa não acabasse em tragédia.
Enquanto tomava assento, esfregou os dedos gelados ante as chamas.
—Vejo que Charles continua com você.
—É obvio. - Dougald cruzou a sala sem pressa, mas sem se incomodar em
dissimular sua vigilância. - Onde ia estar, se não?

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—No inferno, se dependesse de mim - replicou Hannah em tom pensativo.


O criado sempre servira a seu senhor com leal devoção, e a tinha tolerado
enquanto fizera Dougald feliz. Mas nunca se privou de manifestar que suas
exigências de atenção e respeito lhe pareciam chiliques próprios de uma
menina mimada.
—Não mudou nem um ápice. Segue alimentando essa irracional aversão
para Charles.
Hannah quase mordeu o anzol. Quase. Se contendo, se recostou sobre as
amaciadas almofadas e assentiu.
—O que você disser, meu senhor, mas Charles conhece meu rosto. Que
explicação deu a ele? Que sua mulher assassinada retornou de entre os
mortos?
—Charles sabe. - Dougald desabotoou a jaqueta do traje.
—O que ele sabe?
Dougald tirou a jaqueta e caminhou para ela. Hannah se encolheu em seu
assento e ele se deteve. Sorriu com regozijo descobrindo uma fileira de dentes
muito brancos e perfeitamente alinhados.
Pendurou a jaqueta sobre o respaldo do banco, em cima do casaco de
Hannah.
Como o detestava por tê-la assustado, e como detestava a si mesma por
ter lhe dado a satisfação de descobrir seu temor! Devolveu um sorriso tenso e
o observou enquanto sentava. A cadeira estava muito perto, deixando uma
separação muito escassa entre ambos e provocando uma cansativa sensação
de intimidade. Dougald podia observá-la à luz das chamas e das velas. Sem
nenhum esforço, podia estender a mão e tocá-la. Se Hannah não o impedisse
ele acabaria tocando-a, e então sua pele se acenderia e seu sangue ferveria, e
só Deus sabia quanto tempo conseguiria ocultar dele a reação de seu corpo.
—O que é que Charles sabe? - insistiu.
—Tudo.
—É obvio - replicou ela com amargura. - Nunca ocultaria nada a Charles.
—Sim o faria - retrucou ele, desabotoando o colete de seda negra.
Um crescente nervosismo se apropriou de Hannah. A camisa branca de
Dougald seguia abotoada até a garganta, o lenço de seda em seu lugar e o
pescoço fechado, mas o fato de ver como ficava cômodo a recordou tempos
passados.
Tempos nos que ela se sentava em seu colo, desabotoava a roupa dele e
se pegava a seu peito recoberto de pelo escuro e cacheado, e ele precisava se
levantar fechar a porta com chave para impedir que alguém os
surpreendesse... Suspirou, estremecida.
Jamais teria imaginado que se alegraria de ver Charles, mas agora
desejava ferventemente que chegasse quanto antes com o jantar.
—Como me encontrou? - Formulou a primeira de suas perguntas em tom

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prudente.
—Pelo dinheiro.
Hannah mordeu o lábio. Temera isso.
—O dinheiro que te enviei para pagar minha educação?
—Não sabe como lhe agradeço isso, embora só seja por isso. - Não parecia
agradecido, mas sim, indignado. - Quanto ao dinheiro, foi parar em várias
obras de caridade.
—Me dá igual o que fez com ele. Tinha jurado saldar essa dívida assim que
pudesse, e o fiz.
—E eu te havia dito que uma mulher não tem por que pagar nada a seu
marido, como se ele estivesse a seu cargo e não ao reverso.
—Lhe devia isso - insistiu ela. - Se supõe que deveria te compensar com
descendência e companhia, mas não o fiz.
—Ainda não.
A réplica direta de Dougald ficou flutuando no ar como uma espada de
Damocles. Acaso esperava que se mostrasse mais dócil após todos aqueles
anos de ausência?
Ou simplesmente estava disposto a fazer recair sobre ela todo o peso da
lei para obrigá-la a ocupar o lugar que lhe correspondia como sua legítima
esposa?
O que mais desejava no mundo era pegar o seguinte trem e se afastar dali
a toda pressa, mas sabia que isso era impossível. E não só porque ele o
impediria.
Faria, por descontado, mas Hannah burlara sua vigilância uma vez e podia
voltar a fazê-lo, embora agora lhe resultaria mais difícil.
Mas sim porque tinha uma missão a cumprir em Lancashire, e devia ficar
ali até encontrar o que fora procurar. Assim decidiu seguir Dougald a corrente
com a esperança de poder sair-se com a sua no dia que decidisse voltar a
escapar.
—Então esse é seu plano? Que eu volte a ser sua esposa, que te dê filhos
e te faça companhia?
—Minha esposa morreu, ou isso dizem. Como íamos justificar algo assim?
Dougald não respondera a sua pergunta. Maldito homem, estava decidido
a fazê-la sofrer como a uma minhoca se retorcendo no anzol.
—Muitas coisas teriam que mudar para que eu voltasse a ser sua esposa.
—Estou de acordo, embora me atreveria a acrescentar que temos ideias
completamente diferentes sobre as mudanças que deveriam se produzir.
—O que você e eu pensamos a respeito de algo sempre foi diferente, meu
senhor. A isso podemos atribuir o fracasso de nosso casamento.
—Dougald Pippard não conhece o significado da palavra fracasso.
—Vê? - replicou Hannah, apontando. - A isso precisamente me referia. Para
você, este casamento é seu e só seu. Que mais dá que eu seja a outra metade?

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—Tem toda razão. Teria sido mais acertado dizer que Dougald Pippard e
sua esposa não conhecem o significado da palavra fracasso - repôs com gesto
indolente observando o dedo que o apontava.
O que acabava de dizer não era mais acertado, e ele sabia.
—Não sou uma mera parte de você, indistinguível de sua pessoa - replicou
Hannah. - Tenho um nome próprio.
—Em efeito, tem: senhora de Dougald Pippard, ou melhor dizendo, lady
Raeburn.
—Hannah - resmungou ela entre dentes. - Me chamo Hannah.
Dougald fez caso omisso de suas palavras.
—Ante a lei, é indistinguível de minha pessoa. Me pertence e posso fazer
com você o que me agrade.
Outra ameaça. Não física, nesta ocasião, mas uma ameaça de todos os
modos. Até então, Dougald sempre arrumara para conseguir levá-la aonde
queria através da manipulação, da chantagem e da intimidação.
Ou chegara à conclusão que não valia a pena andar com sutilezas, ou os
anos o endureceram.
—Jamais pertenci a você. Se em algum momento chegou realmente a
acreditar que assim era, devo repetir que não é de estranhar que nosso
casamento viesse abaixo.
Hannah ficou à espera de sua acesa réplica o que lhe deu uma admirável
sensação de tranquilidade.
Mas Dougald tomou por surpresa:
—Lorde Ruskin já me advertiu que você se convertera em uma mulher de
caráter firme, toda determinação. Agora comprovo que estava certo.
—Lorde Ruskin? - balbuciou Hannah. - Como... por que... falou com lorde
Ruskin?
—A qual de suas perguntas devo responder primeiro?
Dougald falara com lorde Ruskin. Dougald lhe contara... somente Deus
sabia o que, e agora a olhava como uma besta cegada pelo desejo de
vingança, com um sorriso malévolo dançando nos lábios. Hannah se inclinou
para frente e o fulminou com o olhar.
—Me dá vontade de te dar um sopapo.
Dougald abriu os braços como a convidando a tentar, mas Hannah não era
tão tola. Finalmente, ele deixou cair os braços aos lados.
—Acredito que foi a sua amiga lady Ruskin, disse a ela que desejava fazer
chegar certa quantidade de dinheiro a um tal Dougald Pippard de Liverpool e,
sem se incomodar em lhe dar mais explicações, pediu-lhe que o fizesse em seu
nome para preservar sua identidade.
Sabia tudo. Apesar de seus esforços, a localizara através de suas
amizades e, o conhecendo, seguro que tinha posto Charlotte em um aperto.
Mas Charlotte era uma mulher de armas prontas.

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—Lady Ruskin é uma de minhas melhores amigas, e estou absolutamente


segura que não se deixou intimidar por você.
—Absolutamente. Charlotte... quero dizer, lady Ruskin, é uma dama
encantadora. - O fato que Dougald se referisse a sua amiga pelo nome de
batismo lhe deu o que pensar.
—De fato, cumpriu com todo rigor seu desejo de confidencialidade e se
deu o trabalho de me fazer chegar o dinheiro através de sua sogra, uma tal
lady Bucknell.
—Lady Bucknell? - Hannah recordou à formosa e elegante Adorna, que
concordara de bom grado a comprar a Distinta Academia de Instrutoras. Acaso
atuara movida por algo mais que o interesse pessoal? - Lady Bucknell disse
onde me encontrava?
—Não, não. - Dougald zombava dela, como se aquela conversação fosse
um exemplo de claridade e não o labirinto pelo que ela avançava às cegas pela
sua mão.
—Recebi o dinheiro e, rastreando sua procedência, fui dar com a conta
bancária que lorde e lady Bucknell têm em Londres.
A primeira coisa que fiz foi encarar lorde Bucknell, e devo dizer que
naquele momento não abrigava os melhores pensamentos a respeito dos dois.
Hannah fez uma careta.
—Tomaria como um grave insulto. - Recordou o marido de Adorna, um
cavalheiro onde estivesse, exemplo de correção e recato. - Disso não me cabe
dúvida.
—Sim, mas assim que expliquei a ele que era seu marido...
—Meu marido. - Hannah apertou entre seus dedos o tecido sob o qual seu
coração pulsava disparado. - Disse a lorde Bucknell que era meu marido?
—É obvio. - Aquele sorriso macabro voltou a aparecer nos lábios de
Dougald enquanto contemplava seu sofrimento. - Foi ele quem seguiu o rastro
do dinheiro até lady Ruskin, e inclusive me acompanhou para ver seu marido.
—Lorde Ruskin sabe que estamos casados? - Hannah se levantou. Seus
piores temores se fizeram realidade. - Então Charlotte também sabe.
Charlotte Dalrumple e Pamela Lockhart fundaram a escola de instrutoras
com ela.
—Sim, Charlotte sabe. - Dougald a observava como se levasse muito
tempo saboreando de antemão o prazer de lhe revelar que estava
completamente apanhada. - Mas confia em você, apesar de tudo.
Insistiu em que teria suas razões para escapar e não voltar mais. A
defendeu com grande veemência.
—É obvio. Não é em vão em minha... quanto faz que sabem?
—Uns meses.
—Então já sabiam quando me convidaram ao batismo. Não disseram nada.
Hannah pinçou em sua memória em busca de alguma recriminação

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velada, possivelmente por parte de lorde Ruskin, que não via sua
independência com bons olhos. Acreditava sinceramente que toda mulher de
bem deveria se casar, e dentre todos seus amigos era o que mais empenho
tinha posto em lhe buscar um pretendente adequado, até o ponto que
Charlotte se viu obrigada a intervir para atalhar seus esforços. Charlotte, que o
permitia reinar como um monarca em seu lar e seus negócios.
Charlotte, que o controlava com mão firme mas envolta em uma luva de
veludo. E entretanto, a última vez que a vira, se comportou com ela como a
mesma amiga carinhosa de sempre. E sabia. Soube todo o tempo. Sabe lá o
que lhe teria passado pela cabeça.
Hannah se afastou da lareira.
—E entretanto lhe disseram onde estava.
—Lorde Ruskin me informou de seu paradeiro. Nossa situação o
consternara muito.
—É obvio. Está convencido que as mulheres sem os homens não seriam
nada, e lhes devem eterna gratidão. Se não fosse por Charlotte, não teria
quem o suportasse. - Olhou para Dougald, apoltronado em sua cadeira, e lhe
deu as costas.
Do contrário não teria podido reprimir o impulso de esbofeteá-lo, e não era
tão tola para acreditar que ele receberia semelhante ultraje sem responder. -
Charlotte diria a Pamela.
—Se refere a lady Kerrich, suponho.
—Há alguém em toda a Inglaterra a quem não contou? - espetou Hannah
se voltando para ele e elevando a voz.
—Acredito que só lorde Bucknell, lorde Ruskin, lorde Kerrich e suas
respectivas esposas conhecem a verdade. Não são tantos, se se compararem
com toda a população da Inglaterra.
—Dougald assinalou este fato com toda tranquilidade, como se pudesse
lhe servir de consolo.
Hannah voltou sobre seus passos e se agarrou com tanta força ao suporte
da lareira que o motivo do mármore esculpido ficou impresso nas palmas de
suas mãos.
—Está falando de meus amigos.
—Um círculo estreito e leal.
Agora suas amigas, sobretudo Pamela e Charlotte, sabiam que ela não
lhes contara os fatos mais importantes de sua vida. Sem dúvida se sentiriam
confusas, possivelmente inclusive feridas pela escassa confiança que
depositara nelas.
E para cúmulo... para cúmulo, não podia ir a elas em busca de apoio.
—Embora encontrasse o modo de abandonar o castelo Raeburn, e
asseguro que não seria fácil, procurar auxílio entre suas amigas causaria
fricções em seus respectivos casamentos.

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

Não acredito que deseje fazer isso advertiu Dougald como se tivesse lido
seu pensamento.
Estava certo, é obvio.
—Não devia te enviar o dinheiro. Está claro que as boas ações nem
sempre se veem devidamente recompensadas.
—O que fez dista muito de ser uma boa ação - repôs ele com gesto
deliberadamente inexpressivo. - Pretendia me provocar, me incitar a descobrir
seu paradeiro.
—Não é certo!
—Pode seguir enganando a si mesma se assim o desejar, Hannah, mas
sabia que esse dinheiro me poria sobre sua pista. Teria te encontrado embora
seus amigos não se dispusessem a me ajudar.
—Dougald se acomodou na cadeira e uniu as palmas das mãos diante do
rosto em um gesto reflexivo. - Como não ia fazê-lo? Fundou uma academia,
uma escola para instrutoras, mestras e damas de companhia que gozava de
grande popularidade.
—Confiava em que ainda não tivesse começado para me buscar -
balbuciou.
—Outra mentira. Sabia que não ia me render tão facilmente.
De acordo. Sabia que antes ou depois Dougald acabaria dando com ela. E
possivelmente em algum recôndito lugar de sua mente acreditasse que tudo
seria mais fácil se não precisava ser ela quem desse o primeiro passo: buscá-
lo, ir vê-lo, explicar os motivos de sua fuga e tentar justificar sua prolongada
ausência. Por mais que soubesse que deviam solucionar de algum modo a
questão de seu casamento, lhe punha um arrepio só de pensar no reencontro,
e sim, possivelmente dera por certo que se voltasse a vê-lo de improviso, a
consternação dos primeiros momentos dissiparia seus temores. Mas... não
tinha por que jogar em sua cara de um modo tão aborrecível.
—Agora me dou conta de meu engano - repôs com frieza.
—Muito tarde, temo. Se esfumara tão completamente que durante oito
anos não soube nada de você. - Dougald elevou outros tantos dedos no ar. -
Oito anos, Hannah, sem saber se estava viva ou morta.
—Escrevi a você!
—Uma só vez! Recebi uma carta de Londres em que me dizia que estava
bem e que não me preocupasse.
—Se te tivesse escrito mais frequentemente, teria dado comigo em
seguida.
—Era minha esposa, é obvio que teria dado com você! Paguei uma fortuna
a um detetive particular para que a buscasse.
Tem ideia da quantidade de vezes que saí correndo para Londres com a
esperança que a tivesse encontrado, e das vezes que retornei cruelmente
decepcionado?

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

Hannah negou com a cabeça.


—Nove. - Dougald voltou a elevar os dedos no ar, e Hannah percebeu que
não lhe tremiam de jeito nenhum. - Nove vezes tomei o trem com destino à
capital. Até bordéis visitei te buscando, temendo que se tivesse visto arrastada
a essa vida infame.
Em meus pesadelos a imaginava convertida na querida de algum homem.
"Típico dele."
—Como sempre, meu senhor, não me vê mais do que como uma mecha
de cabelo e uma silhueta feminina. Sou algo mais que isso.
—Ah, sim! esquecia das costureiras! Visitei trinta costureiras, Hannah.
Dava por certo que teria entrado a trabalhar em uma oficina de costura ou em
uma sombrereria, mas não era assim. Não estava em nenhuma parte.
—Não, estava...
—No estrangeiro. - Dougald esboçou um sorriso, uma exibição de dentes
brancos como se zombasse de si mesmo e de sua infrutífera busca. - Agora sei.
Se converteu na dama de companhia de lady Temperly, uma viajante
empedernida, e quando ficou muito velha e doente para seguir viajando, voltou
para Londres e levou uma existência tranquila cuidando dela até sua morte.
—Assim é.
Sabia tudo, até o último detalhe. Aquele era o Dougald que ela recordava:
meticuloso, implacável em sua investigação, determinado a averiguar tudo,
pois sempre havia dito que a informação era poder.
—Logo fundou a Distinta Academia de Instrutoras com suas duas amigas.
Elas não demoraram para casar, mas você seguiu solteira. - Dougald cruzou as
pernas e estirou a perfeita raia de sua calça. - Claro, porque já estava casada.
Que lástima, não é?
Hannah o detestava quando ficava assim e a julgava friamente com o
sarcasmo mais demolidor.
—Não queria me casar - replicou ao mesmo tempo que voltava a se deixar
cair na cadeira. - Com uma vez tive mais que suficiente.
Então o viu, obteve a satisfação de ver como um espasmo sacudia
involuntariamente as mãos de Dougald.
—Cuidado com o que diz, meu amor. Lembro certos aspectos de nosso
casamento com os que desfrutava muito - ele espetou em um tom sibilante,
carregado de intenção, depois de apoiar as mãos nos braços da cadeira e se
inclinar para frente.
Hannah ruborizou da cabeça aos pés mas, para sua própria surpresa,
sustentou o olhar daqueles olhos verdes.
—Ao que parece, o prazer não era bastante para mim, não acredita? -
replicou com gesto desafiante.
—Ao que parece não. Mas o seria para mim... agora.

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Christina Dodd
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Capítulo 04

Hannah percebeu a ameaça implícita na mesurada cadência de sua voz e,


sem querer, pressionou as costas com força contra o respaldo da cadeira.
—Eu não gosto que me ameacem - advertiu com lábios tensos.
—Pois não me provoque, a menos que deseje ver uma demonstração de
meu atual estado de frustração carnal.
Aquilo queria dizer que não esteve se aproveitando das mulheres que
tinha a seu serviço? Ou se tratava simplesmente de uma ameaça para mantê-
la a raia? Porque como ameaça surtira efeito, certamente.
Dougald não separava os olhos dela, e Hannah suspeitava que sob o traje
toda sua musculatura estaria tensa, pronta para entrar em ação. A possuiria
apesar de seus protestos? E quanto tempo ela acreditava que poderia seguir
protestando?
O fato de vê-lo devolvera lembranças que até então reprimira com
firmeza. Lembranças de noites nas que havia sentido o peso daquele corpo
sobre o seu, os olhos acesos de paixão, os músculos em tensão...
Hannah teve a precaução de permanecer imóvel e mal respirou até que ao
fim ele relaxou em seu assento.
Então tragou saliva, estava resolvida a sobreviver a aquela espantosa
entrevista com sua virtude intacta.
—Enviei o dinheiro para você faz quase um ano. Como é que...? - disse.
—Recebi seu dinheiro na mesma data em que me informei da morte de
meu primo. Não tinha alternativa. Vim ao castelo de Raeburn, tomei posse do
título e fiz quanto estava em minhas mãos para aliviar a aflição dos criados
ante a morte prematura de seu amo.
Aquele sim era o Dougald que ela recordava, e não desperdiçou a ocasião
para zombar dele.
—Como sempre, primeiro o dever.
O olhar de Dougald escureceu.
—Agradeça que não tinha tempo para ir te buscar em pessoa, porque não
teria podido evitar fazer uso da força. - O qual, deduziu Hannah, significava que
não tencionava fazer uso da força aquela noite.
—O que fiz foi enviar Charles a Londres para te ter vigiada.
Hannah não saía de seu estupor.
—Charles esteve me espiando?
—De forma intermitente há dez meses.
—Dez meses. - Aquilo era pior inclusive do que imaginara.
Alguém bateu na porta.
—Adiante - respondeu Dougald.

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Christina Dodd
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Era Charles, é obvio, como um gnomo malvado que se materializasse ao


se pronunciar seu nome. Em suas mãos atrofiadas pelo reumatismo levava
uma bandeja de prata, pois não permitia que ninguém a não ser ele tocasse a
comida de seu amo.
Um lacaio o seguia, sustentando uma garrafa de vinho e duas taças de
cristal como se fossem se desintegrar a qualquer momento. Saltava à vista que
aprendera a temer Charles e sua língua mordaz.
—Aproxima essa mesa. Deixa-a entre o amo e a... - Charles lançou um
olhar fugaz e gelado a Hannah - e a senhora.
Capturando a garrafa debaixo do braço e agarrando ambas as taças com
uma mão, o lacaio se apressou a obedecer. Enquanto Charles fechava os olhos,
horrorizado ante sua estupidez, o jovem arrastou a mesa redonda e baixa até a
lareira, deixou o vinho e as taças na borda da mesma e retrocedeu com uma
reverência.
Charles depositou a bandeja sobre a mesa e, enquanto andava pela sala,
descobrindo os pratos, Hannah se entreteve observando aquele homem que
tantos anos levava a serviço da família Pippard.
Ficara coxo durante a guerra da Independência espanhola, em que
combatera junto às tropas napoleônicas.
O avô de Dougald salvara a vida dele em plena batalha, o que lhe valeu a
eterna lealdade do Charles, que venerava a todos e cada um dos membros de
pleno direito da família.
Mas Hannah nunca fora, pelo menos aos olhos de Charles, membro de
pleno direito da família Pippard. Agora voltava a ter ante si a aquele
homenzinho curvado que fora seu juiz e carcereiro.
Os anos não o maltrataram muito, mas também era verdade que a
natureza nunca se mostrou muito generosa com ele. Não envelhecera de modo
perceptível, nem seu nariz parecia maior, nem acumulava novas dobras de
pele sob o queixo.
Seus olhos seguiam se movendo inquietos, escrutinando tudo com olhar
crítico, identificando cada imperfeição e passando por cima os acertos. Como
devia lhe chatear ter que voltar a servir Hannah, sempre tão imperfeita.
Embora, bem olhado, possivelmente desfrutasse do momento vendo-a
rebaixada à condição de dama de companhia. Hannah não duvidava que sabia.
Jamais o compreendera e não acertava a explicar o que o levara a colaborar
em sua captura.
Exceto talvez o desejo de ver seu amo liberado dos votos de casamento
que o uniam a ela.
Hannah voltou os olhos para as chamas.
Talvez fosse esse o motivo pelo que Dougald a levara até ali. Para obter o
divórcio, embora só depois de tê-la torturado por prazer.
Entretanto, o divórcio era um assunto desagradável e custoso, e Hannah

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não imaginava Dougald jogando a toalha de um modo tão explícito. Mas então,
o que pretendia fazer com ela?
Charles estendeu as tampas ao lacaio e com um gesto indicou ao jovem
que partisse, coisa que este fez imediatamente, escapulindo da sala como se
acabasse de salvar a pele. Charles se separou da bandeja artisticamente
disposta.
—Fiz que o cozinheiro preparasse minha própria receita de coq au vin3 com
fatias de pão frito - anunciou com sua voz nasal e afrancesada, e logo
perguntou: - Posso lhes servir?
O estômago de Hannah a traiu com um espasmo de fome que desejou
tivesse passado inadvertido. Charles, certamente, não deu mostras de ter
ouvido nada enquanto servia o prato favorito de Hannah em uma grande
terrina para logo polvilhá-lo com fatias de pão frito e salsinha fresca antes de
deixá-lo sobre a mesa, frente a ela. Com um estalo do pulso, estendeu um
guardanapo de um branco radiante sobre o colo de Hannah e aproximou a
mesa.
Logo deixou uma reluzente colher ao alcance de sua mão direita e a
observou imóvel enquanto provava o primeiro bocado.
Que outra coisa podia fazer? A carne estava tenra, o caldo bem temperado
com tomilho e o guisado em seu conjunto retinha a saborosa lembrança do
vinho tinto e as primeiras verduras da primavera.
—Está delicioso - murmurou Hannah, sem olhá-lo diretamente aos olhos. -
Obrigado.
Charles lhe fez uma reverência com os lábios apertados.
—Eu gosto das mulheres com bom apetite - assinalou Dougald. - Faz muito
tempo aprendi que uma mulher que desfruta da boa mesa está acostumada a
ter um apetite similar para... outros prazeres.
Hannah levantou a cabeça bruscamente e lhe lançou um olhar assassino.
Fazendo girar o saca-rolha, Charles abriu uma garrafa de vinho da
Borgonha e o serviu em uma taça reluzente.
Hannah a agarrou pelo caule e acariciou as bordas de cristal esculpido.
Eram perfeitas, esculpidas para apanhar a luz e entretanto suaves ao tato.
E eram reais, não uma lembrança fugidia, como o daquela garrafa de
vinho que ia e vinha entre as mãos de um homem e uma moça.
Hannah tomou um gole e sorriu a Charles sem separar os lábios.
—Obrigado.
Além de qualquer outra coisa que se pudesse dizer dele, devia reconhecer
que sempre dirigira a cozinha com tirânica eficiência e resultado sublime.
De fato, dirigia toda a casa do mesmo modo, sem deixar a ela nada que
fazer exceto se dedicar aos trabalhos de agulha. Em boa medida, nisso
consistira o problema.
3
Frango ao vinho tinto

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—Você também comerá, senhor? - perguntou Charles. Dougald parecia


inclinado a dizer que não, e Charles o adiantou: - Mal provou um bocado em
todo o dia, senhor. Deve se alimentar, e já ouviu a senhora dizer que o guisado
está delicioso.
Hannah viu como Dougald lhe lançava um olhar tão feroz que qualquer
outro homem em seu lugar se encolheria, mas Charles aguentou o toró sem
perder a compostura.
—Me sentiria mais cômoda se me acompanhasse, Dougald - Hannah
assinalou. Não sabia o que a impulsionara a dizer isso, mas, antes que pudesse
pensar nisso, as palavras escaparam de sua boca.
Dougald emitiu um grunhido que Charles interpretou como um sinal de
assentimento. se apressou a aproximar a mesa grande de seu amo e serviu
uma terrina de guisado e uma taça cheia de vinho.
—Hannah se perguntava por que a seguiu com tanta diligencia em
Londres - apontou Dougald enquanto Charles o servia.
Hannah fechou os olhos e amaldiçoou Dougald para si mesmo.
Entretanto, ardia em desejos de escutar a resposta.
—Como não ia fazer isso, meu senhor? - E, em um tom que gotejava
indiferença, acrescentou: - Esse era seu desejo.
Charles, refletiu Hannah, sempre soube pô-la em seu lugar.
—Pode ir, Charles - disse Dougald. - O chamarei se necessitar algo mais.
Charles saiu retrocedendo da sala como se Dougald fosse um membro da
realeza, se detendo só para recolocar uma flor no arranjo que havia junto à
porta. Logo, com uma última reverência, partiu.
—A que veio isso de insinuar que eu pensava que Charles te mentiria
sobre meu paradeiro? Agora tem outro motivo para me odiar - explodiu Hannah
quando a porta mal se fechou.
Dougald arqueou as sobrancelhas.
—Que mais dá? Charles não é mais que um criado.
Hannah o olhou de cima abaixo. Era certo. Dougald se despedira de seu
criado de forma educada, como tinha por costume, mas sem a fraternal
cumplicidade que ela presenciara em incontáveis ocasiões.
No passado se comportavam como companheiros de armas, dois homens
enfrentando ao mundo, amigos para sempre. Agora Charles parecia não ser
mais que... Charles. Um mero ajudante.
—Tiveram alguma diferença?
Dougald se recostou na cadeira sem ter tocado seu prato.
—Seu comportamento nem sempre mereceu minha aprovação.
—Ah! - Hannah tomou outro bocado, pensativa. - Não parece próprio de
Charles. Sempre pensei que, se você assim o desejasse, era capaz de construir
uma linha de ferrovia com suas próprias mãos.
—Sem dúvida o faria, mas passou dos limites em um assunto de grande

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

importância e não soube reparar seu engano. Não voltará a ter outra
oportunidade.
Hannah deixou a colher sobre o prato; perdera o apetite. Se Dougald podia
se mostrar tão implacável com Charles, que tipo de castigo teria reservado
para ela?
O divórcio parecia quase muito bom para uma mulher que fugiu,
convertendo seu marido em suspeito de assassinato durante todos aqueles
anos.
Embora fosse certo, recordou a si mesma, que Dougald não tinha por que
permitir que esses rumores se propagassem. Podia ter revelado ao mundo que
ela o abandonara...
—Por que não come? - perguntou ele. - Está muito magra.
—O mesmo digo - replicou ela.
Na realidade não estava tão magro. Um homem de sua constituição podia
permitir uns quilogramas de mais ou de menos sem que mal se notasse, mas
Hannah pensava que aquele ar taciturno que escurecia seu rosto podia se
suavizar se engordasse.
Além disso, um homem faminto era um homem irritável.
O que ele pensava, em troca, era um mistério para ela. Já não sabia ler em
seu rosto, mas sustentou seu olhar quando ele procurou o dela, o desafiando
com o queixo inclinado e os lábios selados.
Finalmente, Dougald voltou a pegar a colher e se aproximou da mesa, e
Hannah soube que ganhara.
Ganhara um combate. Possivelmente pudesse ganhar outro.
—Vai se divorciar de mim?
Dougald tragou saliva, levantou a vista do prato para olhar sua esposa
perdida fazia muito tempo e a observou com a fria e serena ira que o
acompanhava todos e cada um de seus dias.
Só o fato que ela ousasse mencionar a palavra divorcio lhe dizia o muito
que distava de compreender a situação. Se divorciar era difícil, custoso e uma
vergonha com a que teria que conviver até o último fôlego.
Como amo daquela propriedade, não poria em perigo sua recém adquirida
posição social se divorciando de sua esposa, por muito que ela o merecesse.
Mas essa não era a verdadeira razão.
Não, seus planos eram completamente diferentes. No tom mais indiferente
que conseguiu imprimir a sua voz, respondeu:
—De divórcio, nada.
Hannah o olhou com olhos surpreendidos. Escrutinou seu rosto, franzindo
o cenho, preocupada, procurando o velho Dougald, o homem que a salvara das
garras da miséria, o homem que a protegera durante sua juventude e querido
durante seu casamento.
Ele podia ter lhe dito que esse homem estava morto, tão morto como se

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The Governess Brides 03

dizia que o estava sua mulher, que a própria Hannah se encarregou de matá-lo.
Mas, por algum motivo que não conseguia explicar, seguia sentindo a
necessidade de protegê-la.
Hannah voltou a centrar sua atenção no prato que tinha ante si. Comeu
em silêncio, igual a ele fez, o tempo suficiente para que Hannah enchesse o
estômago e esvaziasse a terrina.
—Não mudou. Nunca perde o apetite, por muito mal que vão as coisas -
sentenciou ele logo que deixou a colher no prato.
—É algo que aprendi quando era pequena e raramente sabia de onde ia
sair minha próxima refeição. - Sustentando a taça com uma mão, agitou o
líquido de cor rubi e viu como as chamas reluziam através do cristal esculpido.
Evitou o olhar de Dougald, como havia feito desde sua chegada aquela
tarde. Agora sabia que a ia torturar com aquelas lembranças que ela tanto se
esforçava por manter no esquecimento. Quanto tempo levaria esperando
aquele momento, Deus santo!
—Querida, pedi expressamente que servissem este Borgonha 4 porque sei
o muito que o aprecia. Me diga, é de seu agrado?
Hannah não o olhou. Sabia por que o perguntava, mas fingiu ignorar como
um náufrago que se agarra ao último vestígio de sua embarcação.
—O vinho é magnífico, mas se não me falha a memória sua adega sempre
foi excepcional.
Se não fosse porque esquecera como se fazia, Dougald teria sorrido.
Hannah evitava o assunto com verdadeira mestria, mas ele sabia que sua
réplica não era mais que uma evasiva.
Aquele dia no trem deixara de ser uma menina para se converter em
mulher e, por mais que agora se empenhasse em se defender atrás de um
falso pudor, ele o recordaria na menor oportunidade.
Porque ele jamais o esqueceria.
Agarrou ao jovem ladrão pelo cangote e o sacudiu como fosse um cão com
sua presa.
—Onde está?
O moço cravou as unhas nas mãos de Dougald até que este afrouxou a
pressão sobre seu pescoço.
—Por ali - resmungou com voz rouca. - Se foi por ali.
O moço assinalou o concorrido acostamento da estação ferroviária de
Liverpool, confirmando assim os piores temores de Dougald. A jovem Hannah o
deixava da maneira mais direta possível - e também da mais perigosa, —em
um trem de mercadorias com destino a Birmingham. Sua prometida era uma
insensata. O trombadinha tentou escapar, e Dougald voltou a fechar os dedos
com força em torno de seu pescoço.
—Fez mal a ela?
4
Tipo de vinho

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—Não, senhor, eu juro! Ia vestida como um menino e levava uma bolsa de


mulher. Só ri dela, e me lançou isso à cara! - O uva sem semente tragou em
seco. - Não havia dinheiro dentro, senhor, mas não o tive em conta. Nunca faria
mal a uma dama, senhor.
Nunca faria mal a ela embora tivesse perdido o juízo - acrescentou, ao
mesmo tempo que assinalava sua própria testa com um dedo imundo.
Sim, o menino pensava que Hannah estava louca. Possivelmente todos
pensassem o mesmo e se separassem de seu caminho. Possivelmente sua
própria impetuosidade fosse sua salvação.
Dougald soltou ao moço e abriu caminho correndo entre a multidão de
homens que trabalhavam carregando algodão americano nas vagonetas
motorizadas inglesas.
Alguns se fixavam nele e, com gesto malicioso, apontavam a direção em
que passara a moça que se acreditava disfarçada.
Cada novo gesto confirmava a esperança de Dougald - e também seu
temor - que Hannah não passasse inadvertida. Pois embora aqueles homens
fossem em sua maioria honrados pais de família e esforçados trabalhadores,
não faltariam os velhacos dispostos a escapulir do grupo para se aproveitar de
uma jovem indefesa. Dougald seguiu as indicações de uns e outros, correndo
sem fôlego, imaginando o pior e temendo chegar muito tarde.
Os homens o guiaram até um trem que lançava baforadas de fumaça e
arrancava entre pigarros. Da plataforma em penumbra, a buscou com avidez
enquanto o trem se afastava com parcimônia.
E então a viu. Ia sentada na porta aberta de um vagão, embainhada em
um de seus trajes de adolescente, com os pés balançando no ar e os olhos
deslumbrados.
Moça formosa e insensata. Durante cinco anos a tinha coberto sob seu
teto sabendo que um dia a faria dele, agradado com sua inteligência,
obediência e feminilidade. Não prestara muita atenção a ela, mas agora sim a
observava.
A menina desaparecera, substituída por uma mulher cujas curvas nenhum
disfarce de colegial poderia dissimular. Uns poucos cabelos dourados
penduravam, rebeldes, em torno de seu rosto.
Em seus lábios se desenhava um sorriso luminoso, como se a ideia de
escapar dele e de suas próprias obrigações lhe produzisse euforia.
Prova suficiente de que não compreendia os perigos aos que se exporia
uma jovem fugitiva como ela.
Dougald se pôs a correr atrás do trem. Com grande esforço, conseguiu se
agarrar ao último vagão e se levantou até a plataforma. Tratando de não
perder o equilíbrio sobre as estreitas e trêmulas tábuas, estudou a situação. O
vagão de Hannah era o terceiro da cauda. O trem ia ganhando velocidade.
Havia uma série de degraus metálicos a um dos lados do vagão. Podia subir

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por eles até o telhado, se arrastar ao longo deste, saltar até o seguinte vagão...
Não pôde reprimir uma gargalhada. Não havia feito nada tão perigoso ou
impetuoso em todos os anos que transcorreram desde a morte de seu pai.
Aquela era o tipo de façanha que deveria ter protagonizado um Dougald muito
mais jovem. Voltou a rir.
Possivelmente ao final Hannah resultasse ser sua salvação.
O trem estralava e exalava baforadas de fumaça enquanto Dougald subia
pela escadinha lateral que conduzia ao telhado.
Os degraus de metal tremiam entre suas mãos e sob seus pés, mas
mesmo assim se sentia mais seguro que acima, onde não teria cabos de
nenhum tipo.
Com um último impulso, se encarapitou ao teto metálico e reaquecido do
vagão. O vento açoitava seus cabelos.
Do alto do vagão tinha boas vistas de Liverpool, da paisagem campestre
no que entravam... e também da distância que agora o separava do chão.
Voltou a rir. Uma loucura. Aquilo era uma verdadeira loucura.
E entretanto não podia deixar Hannah escapar. Não depois de tê-la
sustentado entre seus braços enquanto chorava a morte de sua mãe.
Se arrastou pelo telhado, avançando em linha reta pelo centro do vagão.
Ao chegar ao gancho entre o último vagão e o seguinte, se levantou e tratou
de medir com o olhar a distância que os separava.
Abaixo, a junção estralava entre sacudidas e os trilhos deslizavam a toda
velocidade ante seus olhos.
Dougald fora um jovem temerário e em seus anos moços teria se jogado
divertido naquela aventura sem pensar duas vezes, mas agora era um
respeitável homem de negócios, consciente das consequências de seus atos.
Se falhasse o salto... Respirou fundo e saltou para frente. Aterrissou sobre
as quatro extremidades, fazendo tremer o telhado metálico sob seu peso. Mas
o conseguira.
Sem se erguer, correu como o faria uma besta selvagem até o outro
extremo do vagão.
Sim, agora compreendia as consequências, embora Hannah não fosse
consciente disso. Incontáveis perigos a espreitavam, e como faria para
esquivá-los? Sua vida passada não fora fácil, mas desde que ele a acolhera sob
seu amparo só provara o melhor: comida, roupa, educação, colégios para
senhoritas...
O trem avançava mais depressa. A distância entre os vagões parecia ter
aumentado. Mas desta vez Dougald mal se permitiu respirar fundo antes de
saltar.
Então olhou a seu redor. Conseguira. Aquele era o vagão de Hannah. Só
que ele estava em cima e ela dentro. A porta estava aberta, e a única forma de
entrar era fazendo uma simples pirueta... que não praticara há anos.

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Desta vez não rompeu a rir, mas sim resmungou uma maldição. Se
aproximou pouco a pouco da borda do vagão e olhou para baixo. Os pés de
Hannah já não penduravam para fora da porta. Ao que parece entrara quando
o trem ganhara velocidade.
Muito sensata. Bom, sensata não. Não tão sensata, certamente. Do
contrário, não lhe teria ocorrido desafiar Dougald Pippard.
Possivelmente Hannah não fosse consciente disso, mas ele unira os
destinos de ambos com a mais honrosa das intenções. Agora seu dever -
melhor dizendo, seu carinho - o obrigava a protegê-la, inclusive de si mesmo.
Dougald sorriu por dentro.
Sim, Hannah lhe pertencia. O problema era que ainda não sabia.
Agarrou a soleira da porta, se segurou com força e, dando uma
cambalhota, desceu do teto e se meteu no vagão.
Inclinando a cabeça, Dougald elevou a taça e brindou a lembrança
daquele dia inesquecível no que a juventude, o amor e a aventura confluíram
em suas vidas.
Hannah permaneceu indiferente ao brinde.
—Então foi Charles quem contratou, por tua ordem, aos homens que me
seguiram em Londres...
Dougald deixou a colher sobre o prato, inapetente.
—É obvio.
—Me montou uma armadilha.
—Logo que as águas voltaram para seu leito no castelo, ordenei a Charles
que retornasse e contratei aos detetives particulares para... te pôr nervosa.
Logo fiz chegar uma oferta de trabalho que sabia te resultaria tentadora.
Era uma armadilha para ver se mordia o anzol.
Dougald apoiou o pé sobre a perna da mesa e a afastou com gesto brusco.
Os pratos se agitaram, as cobertas tilintaram, mas conseguira limpar o espaço
entre ambos, por isso agora podia observá-la sem estorvos.
Observá-la embora estivesse embelezada com aquele modesto traje negro
de trabalho. Sempre gostara de se disfarçar ... de moço aquele dia no trem, de
austera dama de companhia agora. Mas sua beleza sempre saía a reluzir.
Nada podia ocultar sua pele radiante, lisa como a de uma menina, nem a
exuberante juba dourada, nem os lábios que pediam a gritos ser beijados.
E, mais à frente do semblante, a escultural silhueta... não tão arredondada
como no passado, mas cada vez mais sedutora em sua esbelta elegância.
Hannah caminhava, se movia, como sempre fizera. Como se o Todo-
Poderoso a tivesse criado para distração de Dougald e a utilizasse para afastá-
lo do pecado e atraí-lo para o sagrado vínculo do casamento.
E o plano do Todo-Poderoso funcionara quase muito bem, pois quando
Hannah o abandonara levou consigo todos os prazeres e não deixara a não ser
escuridão atrás de si.

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

Por sorte, Dougald se acostumara a viver entre trevas. Se propôs superar


o passado e riscou planos para o futuro. E tudo fora segundo o previsto, pois ali
estava ela agora, sentada ante ele.
—Meu único temor era que, se deixando levar pelo medo, renunciasse a
sua preciosa Academia de Instrutoras. Ao fim e ao cabo, a academia te dera o
que nosso casamento não pôde: trabalho, trabalho e mais trabalho.
—Nem te ocorra, - Hannah o via agora como um ser monstruoso, o que
não era de estranhar, pois os anos de solidão e desonra haviam feito o monstro
que Dougald levava dentro crescer.
—Nem te ocorra me acusar de seus próprios pecados. Você também
trabalhava, querido. Trabalhava dia e noite, mas esperava que eu o permitisse
me manter.
—Como corresponde a uma esposa! - replicou Dougald, e a veemência de
sua própria resposta o pegou de surpresa. Fazia anos que não se permitia
desperdiçar suas energias em inúteis mostras de indignação.
—Como uma incompetente e uma fraco mental - pigarreou ela.
—Sua mãe estragou sua capacidade para desfrutar da vida.
Hannah elevou a voz.
—Minha mãe trabalhava de sol a sol, e eu queria ajudá-la!
Dougald se remexeu na cadeira, queria exigir que visse a questão desde
seu ponto de vista, até sabendo de que nunca conseguiria fazê-la entrar em
razão.
—Sei, e seus desejos eram admiráveis. Não como sua capacidade para me
agradar.
—Minha mãe me ensinou que o trabalho é virtude. Que minhas
circunstâncias pessoais mudassem não alterava essa verdade.
—E passa a vida perseguindo a virtude como o gato que tenta em vão
apanhar uma mariposa. - Dougald inclinou a cabeça para trás e entrecerrou o
olhar. - Entretanto, abandonou a seu marido e traiu os sagrados votos do
casamento. Que virtude há nisso?
Hannah entrelaçou seus dedos trêmulos.
—A mesma que possa haver em seduzir uma moça de dezoito anos.
—Tinha dezoito anos e decidira me abandonar. A sedução era o modo mais
rápido de te reter.
—Entendo. A sedução economizou o tempo que você deveria ter passado
me cortejando. - E acrescentou, mastigando as palavras: - Um atalho digno de
admiração, meu senhor.
Dougald soltou uma gargalhada breve, seca, e usou seu conhecimento
para feri-la.
—Não tinha nenhuma necessidade de te seduzir. Não tinha por que me
mostrar tão amável. Já a tinha comprado... nem mais nem menos que a
senhora sua mãe. Ou acaso esqueceu?

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Capítulo 05

Nunca antes fora cruel com ela. Dougald fora um manipulador,


desconsiderado e sem escrúpulos, mas nunca criticara Hannah trazendo à tona
os desgraçados acontecimentos que a conduziram até ele.
—Minha mãe não me vendeu. Me pôs a trabalhar em sua casa, o que é
muito diferente. - Hannah respirou fundo para aliviar o peso que sentia no
peito. - Eu me considero uma de suas obras filantrópicas, que eram tantas...
Dougald deu de ombros. Nunca falava das pessoas a que ajudara: os
órfãos para os quais procurara um lar, as mulheres para as que encontrara
trabalho, os homens aos que dera uma educação.
—Além disso, minha mãe fez o que pôde. - A voz de Hannah tremeu ao
recordar aquele tempo tão funesto. - Estava morrendo.
—Exato. Fez o melhor para você, dadas as circunstâncias. - Ficou muito
quieto para observá-la e sopesar suas reações, vendo a pena que a lembrança
de sua mãe ainda despertava nela. - E se equivoca. Sua mãe sabia com
exatidão o que eu queria de você.
Foi algo que arrumaram entre ela e minha avó.
Não pôde evitar zombar dele.
—Mas você, pobre cordeirinho inocente, não estava à par de seu plano.
—Na realidade sim estava à par. Me disseram que entraram em acordo
que me casasse com você. Você tinha então treze anos, era uma menina
agradável e bonita. Como boa lancasteriana de pura cepa, sua mãe gozava de
uma saúde de ferro e uma grande fortaleza mental, e nos assegurou que seu
pai também era assim. Embora seu nascimento não fosse trigo limpo, a
ilegitimidade não era motivo suficiente para frustrar nossos planos.
Nunca ouvira a história de seu compromisso matrimonial. Nunca narrada
desse modo. Nunca relatada de uma forma tão crua, com tanta indiferença,
sem um ápice de consideração que a fizesse mais fácil de assimilar.
—Sigo sem compreender por que um homem adulto ia deixar que sua avó
lhe arrumasse um casamento.
—Os casamentos acertados são uma tradição na família Pippard. Sempre
têm êxito. - Sua boca esboçou uma careta zombadora. - Por que eu ia ser
diferente?
—Porque as pessoas já não fazem essas coisas.
Soube que era uma estupidez no mesmo momento em que o disse, mas
não pôde evitá-lo.
—Tolices, querida, claro que o fazem. Conviveu com a boa sociedade o
bastante para saber quão ridículas são suas palavras e quão inocentes, -

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gargalhou com uma risada oxidada pelo desuso. - Ao menos em alguns


aspectos não mudou nada.
"Sim mudei." Teria gostado de insistir em que ele mesmo reconhecia o
muito que mudara mas, ao que parecia, Dougald acreditava que nesse aspecto
não.
—Que um homem de vinte e um anos aceite ensinar e educar a uma
mocinha de treze pelo único motivo de ter uma esposa à mão quando decidisse
se casar ... resulta obsceno.
Dougald seguia sorrindo, se é que a aquele trabalhoso gesto de seus
lábios podia chamar sorriso.
—Tem que admitir que a maioria dos casamentos se forjam com
ingredientes que não são o carinho mútuo. A avareza, normalmente, mas em
ocasiões a conveniência.
—A conveniência teria sido sua motivação - o acusou.
—E a sua também. Duvido que teria gostado que a puséssemos à
pontapés na rua quando sua mãe morreu. - Dougald lhe devolveu a acusação.
—Você e sua avó não eram o tipo de gente que teriam me posto à
pontapés na rua. - Fossem o que fossem Dougald e a senhora Pippard, tinha
certeza que não teriam se comportado desse modo.
—Mas, embora me tivessem jogado, teria encontrado trabalho em
qualquer outro lugar.
—Sempre estava tão convencida de sua própria infalibilidade.
—De minha infalibilidade? - Aquilo a surpreendeu. - Não, não acredito. De
minha competência, sim.
—Pense. Pense agora, com a experiência do mundo que adquiriu em todos
estes anos. O melhor que podia ter feito era te colocar como faxineira, com
toda probabilidade na cozinha. Era bonita e refinada. Não teria sido como as
demais donzelas, então teriam zombado de você. Os homens a teriam
acossado. Todos os homens, dos lacaios até o amo e seus filhos. - Aquele tom
tão duro e aquela voz rouca só podiam provir de um homem a quem repelia
semelhante concupiscência.
Dougald a pressionou para que o admitisse. - Agradeça que te economizei
tudo isso.
—Sem dúvida tem razão - reconheceu voluntariamente.
—E o agradeço, mas você nunca compreendeu que minha gratidão para
você pela educação e a escola de senhoritas que me custeou podia ter
correspondido com o suor de minha testa e não com o de meu corpo.
Naquele momento Dougald contemplou o corpo de Hannah e logo lhe
proporcionou um olhar fugaz ao rosto que irradiava uma firme determinação.
—Nunca me perdoou que arrebatasse sua virtude.
Ela odiava que lhe falasse do dia que tanto se esforçou em esquecer.
—Eu era tão jovem, e você me arrastou com suas palavras lisonjeadoras e

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seus cuidados. - "Seus beijos", pensou.


—Tinha te informado do acerto e se dispunha a me abandonar. - Sua voz
era apenas um sussurro. - No trem... se lembre do trem...
Avançavam com grande estrondo para o viaduto de Sankey, e ela inclinou
a garrafa de vinho uma vez mais para provar os aromas de uva e carvalho,
pensando que Dougald não bebera muito e ela esteve muito ocupada
enchendo a pança.
Mas agora ao contemplá-lo de cima abaixo e vê-lo mordiscar a maçã, não
dava a impressão de estar sedento. Em realidade, parecia não sentir falta de
nada; era um homem apresentável, alto, bronzeado e atraente, o homem dos
sonhos de qualquer mocinha.
Mas era muito velho para ela... o que teria? vinte e seis anos? E estava tão
satisfeito e seguro de si mesmo...
Resultava frustrante que um homem de tão boa presença, um homem
capaz de fazer cair rendida a seus pés a qualquer mulher, escolhesse uma
pirralha com a que não precisava se esforçar.
Tal falta de vergonha era sem dúvida sinal de alguma marca espiritual.
—Que tipo de marca espiritual? - perguntou a cálida e profunda voz de
Dougald.
Hannah pestanejou. Acaso falara em voz alta? Céus, bebera muito vinho!
—Certamente muito vinho - ele concordou. - Que tipo de marca espiritual
padeço?
—Querer... se casar com uma mulher sem se incomodar de cortejá-la. - O
constante e hipnótico olhar verde de Dougald a enfeitiçava. - Por que
abandonou a emoção do cortejo?
—Acaso não a cortejei? - inquiriu Dougald muito sério.
—Isso não é o mesmo e você sabe - respondeu Hannah franzindo o cenho.
- Vi como dirige seus negócios, é um competidor agressivo e arrogante, dos
que crescem quando o contrariam.
Dougald respirou fundo, dilatando o peito por completo.
—Está me contrariando. Tem satisfeito minha fantasia.
—Vá! - Hannah tomou um gole da garrafa e a passou a Dougald. - De um
modo totalmente involuntário, asseguro isso.
Dougald guardou os restos do almoço na bolsa, resolvendo o tema no
momento. Se espreguiçou sem recato, desabotoou a camisa e esfregou o peito
com o dorso da mão.
Hannah tampou os olhos com as mãos.
—Senhor Pippard, por favor, isto é indecoroso!
—Isto não poderia resultar indecoroso entre um homem e sua prometida -
discordou ele com um sussurro indolente.
Hannah deixou cair as mãos e lhe lançou um olhar furioso.
—Sim o é e não pode pretender o contrário só por decreto próprio.

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—A surpreenderia o que posso decretar. Trouxe uma manta?


—Não, mas teria gostado. Ao menos poderia se tampar decentemente.
—Se quisesse me tampar abotoaria a camisa.
E ficando de pé, tirou a camisa da cintura.
Hannah quis voltar a tampar os olhos, mas se o fizesse sabe Deus o que
se atreveria a tirar desta vez.
—Estou procurando um travesseiro. Entre a comida, o vinho e o estalo
continuado do trem me deu vontade de dormir uma sesta.
Desabotoou os últimos botões, e desabou sobre uma montanha de fardos
de algodão. Apoiando a cabeça sobre sua camisa de flanela que previamente
enrolara, cavou um pouco o algodão a seu redor até ficar a vontade e fechou
os olhos.
—Como acaba de me recordar, eu não sou tão jovem como você.
—Vai derramar o vinho se não tomar cuidado.
Hannah piscou. A taça se inclinava perigosamente em sua mão, mas a
endireitou em um alarde de reflexos. Agora desejava não ter apurado esse
vinho, desejava não ter provado nenhuma gota.
E, além disso, teria desejado mil libras esterlinas, um cavalo próprio e,
sobretudo, que essa expressão de suficiência se apagasse da cara de Dougald.
Enquanto separava de sua mente lembranças de outros tempos, punha
uma cara de não pensar em nada salvo na discussão, que abandonara fazia
tempo para se internar e vagar pelos becos de sua memória.
Procurou rapidamente um tema de conversação, algo que afastasse a
atenção de si mesma e de sua tez avermelhada, e deu com a Academia de
Instrutoras.
—Estes últimos três anos demonstraram que podia ter êxito. Então seu
interesse por minhas possibilidades juvenis é de tudo desnecessário.
—Ter êxito sendo uma impostora não é nenhum triunfo.
Sua acusação a deprimiu.
—A que se refere com "impostora"? Não sou nenhuma impostora. Vivi no
estrangeiro e em Londres como dama de companhia de lady Temperly durante
seis anos. Fui uma boa administradora e uma boa assistente, e como tal me
anunciei na academia.
—Não usou seu próprio sobrenome.
A indignação crescia nela.
—Os filhos ilegítimos não têm sobrenomes. Eu não tenho sobrenome,
como bem sabe.
Em um momento, se levantou o véu do comedimento e Hannah pôde
vislumbrar a besta feroz que se ocultava atrás da aparente calma de Dougald.
—Sim, tinha sobrenome. Te dei o meu quando nos casamos.
—E o agradeci muito - repôs laconicamente.
Estava agradecida a ele. Sua mãe sempre dizia que era viúva, mas a

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verdade as perseguia em qualquer lugar que fossem e logo Hannah ouvia as


brincadeiras e as risadas.
O fato de que Dougald lhe desse de presente seu sobrenome foi um dos
prazeres de seu casamento, e a primeira corrente da que teve que se liberar
quando fugiu dele.
—Não era gratidão o que eu queria, eu queria... - elevou a voz, mas se
conteve.
E ela retomou a frase onde ele a deixara.
—Já sei o que queria: amor eterno e entrega absoluta.
—Te dei muito em troca.
—Sim, quando se incomodava em pensar em mim, sim, me deu muito.
Sempre e quando fizesse o que me ordenava, sim. Sempre e quando eu não
exigisse muito nem esperasse que cumprisse as promessas que me fizera no
dia em que me convenceu que me amava... então sim, me deu muito.
No tom cada vez mais elevado de sua voz, Hannah ouvia os ecos do
passado e, pelo modo em que Dougald a olhava, pareceu que ele também os
ouvia.
Devia se controlar, se não o fizesse, ele teria todas as armas para ganhar,
como sempre ocorrera. Devia demonstrar maturidade, o fazer ver que já não
poderia manipula-la por muito que brincasse com suas emoções.
Aprendera a dominar seus impulsos; a defunta lady Temperly a ensinara, e
ela refinou seus métodos enquanto deu aulas a jovens raparigas na Academia
de Instrutoras.
Hannah respirou fundo e devagar várias vezes, e percebeu o ligeiro aroma
de madeira queimada e o aroma de couro da cadeira. Deixou que seu olhar
vagasse pela sala e viu as amplas janelas obscurecidas, emolduradas por
pesados cortinados de brocado e a malha de seda esmeralda e ouro que, mais
acima, cobria as paredes e que evidentemente era nova. Aquela sala fora
remodelada para a comodidade de seu amo.
Se aventurou a dirigir um olhar a ele.
Um amo que sabia muito bem o que queria e como conseguir. Enquanto
ela esteve olhando a seu redor para afastar a ira de sua mente, ele a esteve
observando.
Em algum momento tinha tirado o olho de cima dela desde que entrou
naquela sala? Tinha a impressão que não. De modo que devia se comportar
com grande sensibilidade e muita calma, pois do contrário entregaria a vitória
de bandeja a Dougald.
—Se tivesse usado seu sobrenome ou o de minha mãe, partir teria sido
uma tolice. Teria me encontrado em seguida - esclareceu, em um tom correto e
ponderado.
—E teria economizado aos dois um montão de problemas.
—Teria economizado a você - repôs. - Não fui até... até que nosso

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casamento se converteu em um completo fracasso, até que me convenci que


não tínhamos nenhuma possibilidade.
—Sempre tivemos uma possibilidade - replicou Dougald mal movendo os
lábios.
—Tolice. - Empregou um tom razoável, como se explicasse uma situação
com exemplos a um estudante particularmente obtuso. - Você nunca se
incomodou em me escutar. Me dava um tapinha na cabeça e me dizia que você
sabia melhor que eu.
Também podia ter saído a apregoar meu descontentamento aos quatro
ventos.
—Eu a adorava.
—Eu não queria adoração, queria que minha vida tivesse sentido.
—A maioria das mulheres...
"A maioria das mulheres se sentiriam felizes ao estar ociosas." Quantas
vezes ouvira isso antes? Levantou a mão para sossegá-lo.
—Por favor, não me venha com o mesmo argumento de sempre.
As feições de Dougald revelavam que começava a perder a paciência.
—Ia dizer... que a maioria das mulheres se sentiriam felizes ao estar
ociosas, mas que eu deveria ter sabido que você era diferente.
O que queria dizer com isso? Estava admitindo seu equívoco depois de
todos aqueles anos? Hannah o olhou, mas Dougald permaneceu ali sentado,
com rosto severo e inexpressivo. Se realmente tivesse mudado tanto a ponto
de admitir seu engano...
Voltou a olhá-lo.
Agora Dougald cravava o olhar em seus seios como se estivessem nus e
não cobertos por múltiplas capa de roupagem.
Não, não mudara. E embora realmente tivesse mudado tanto para admitir
seu engano, o fizera para ocultar uma segunda intenção. Não podia esquecer
quem era ele. Não podia esquecer as duras lições que aprendera.
As pessoas não mudam.
E os homens eram como as pessoas, só que pior.
E Dougald..., ela riu baixo, era o homem por antonomásia 5. Seguro de si
mesmo até a medula. Dominante, porque se acreditava em posse da verdade.
Criado por sua avó e seu pai na convicção de que a longa linha de seus
antepassados triunfara porque eram superiores por natureza, e Dougald era o
resultado final de todas aquelas gerações de alta linhagem. Nenhuma mulher
tinha a mínima oportunidade contra aquele tipo de doutrinação.
E muito menos uma mulher que desconhecia a verdade que rodeava seu
nascimento, que nem sequer sabia o sobrenome de seu pai. Fazia bem em
5
Figura de linguagem que consiste em designar um indivíduo por um nome comum ou pelo
nome da espécie a que pertence: Eneidas é muitas vezes referido como o Troiano e a alguém
que não conhece as boas maneiras chama-se Bárbaro.

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recordar isso e em tentar não se fixar nas amplas costas de Dougald.


Assim iniciou de novo a conversação que começava a decair.
—Faz muito tempo vivi na cidade de Setterington com minha mãe. Era um
formoso lugar, então tomei emprestado o nome.
—Com sua mãe você viveu uma temporada em todas as partes. - Dougald
falava com seus seios como se esses pudessem lhe ouvir. - Por que não se fez
chamar York ou Bristol ou East Little Teignmouth? Por que Setterington?
—Escolhi Setterington porque acreditei que você não sabia que vivera uma
temporada ali.
—Não - reconheceu, apertando os punhos. - Não sabia.
Hannah se perguntou se aquela nova franqueza que nascia entre os dois
os levaria a se compreenderem melhor ou, pelo contrário, os levaria a
violência. Não conhecia este Dougald.
Procurou em seu rosto algo parecido ao Dougald de antigamente, mas
aquela confrontação parecia um interrogatório entre carcereiro e preso, e sabia
perfeitamente o papel que Dougald gostava de representar.
—Se tiver acabado de se queixar, eu gostaria de conhecer sua tia agora,
caso exista tal tia - exclamou em um tom tão crispado como pôde articular.
—Minha querida Hannah, não mentiria para você em algo tão importante.
- Dougald lhe permitiu mudar de tema sem pôr objeções. É obvio, considerou
sua ação como uma recriminação. - Tia avó, em segundo grau.
—Não recordo que jamais mencionasse a semelhante tia.
—Claro que não. Somos parentes tão longínquos que eu mal ouvira falar
dela. Mas tia Spring viveu no castelo Raeburn toda sua vida. - Dougald suspirou
como se estivesse afligido. - Tia Spring e companhia.
—Companhia? - perguntou Hannah. - Que companhia? Não me informaram
que teria companhia.
—Se trata de umas damas anciãs de natureza intrometida que herdei
junto com o castelo.
—Ah! - compreendeu ao fim.
Se Dougald queria ganhar a simpatia das pessoas da herdade, não poderia
jogar uma idosa do único lar que conhecera, nem a afastar de suas amigas.
Hannah o olhou com atenção e observou as rugas de amargura
profundamente cinzeladas ao redor de sua boca e a severidade que emanava
dele.
—Se supõe que tenho que cuidar de todas? - perguntou.
—Tia Spring é minha tia avó. Às vezes tem momentos em que faz o que
lhe vem na cabeça, e gosta das rochas.
—Das rochas?
Dougald não se espraiou mais.
—As outras damas estão bem. Mais que bem. Gozam de boa saúde, salvo
uma que sofre ligeira surdez, essa é a senhorita Isabel, que tem um telescópio

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para ver as estrelas.


—Estrelas.
—A senhorita Ethel cultiva flores.
—Cultivar flores parece uma atividade mais própria de uma dama idosa.
—Própria. - Dougald parecia estar dando voltas à palavra, até que sacudiu
a cabeça. - Eu não diria "própria". A senhorita Minnie sofre às vezes um leve
enjoo, e desenha. Todas bordam. - Juntou as pontas dos dedos.
—Não se importará de se ocupar destas damas, não é?
A estava testando, queria ouvir o que ela ia dizer!
—Não, absolutamente.
—Ao fim e ao cabo, quanto mais trabalho tem, mais feliz é.
—Tem toda razão. Obrigado por pensar em mim - ela espetou, esquecendo
toda precaução com aquele novo Dougald.
Ele elevou uma comissura da severa boca; Hannah engolira a isca. Tinha-a
cravado e ela reagira. Se aquilo tivesse sido um jogo, ele teria ganho. Se
tivessem estado em guerra, teria entregue a arma com a que ele poderia
disparar nela.
Devia ter mais cuidado. Devia recordar que, naquele momento, estava sob
seu controle. Controlaria suas idas e vindas, seu trabalho e seu ócio. Ele era o
amo e ela estava a seu serviço, ao menos até que lhe ocorresse a maneira de
escapar dele.
Escapar de Dougald... parecia que em cada encontro Hannah tentava fugir
dele. Ao olhá-lo naquele instante, fugir não lhe pareceu uma má ideia.
—É bom que tenha contratado alguém para que cuide delas - disse,
fazendo ornamento de uma fria serenidade como se se tratasse de uma
armadura.
Pensou que o tinha vexado perceber sua serenidade mas, antes que lhe
desse tempo de verificar, o breve indício de irritação desaparecera do
semblante de Dougald.
—Para mim não é nada bom - repôs. - São quatro mulheres excêntricas
que estiveram me causando problemas desde que cheguei. O que quero é
aplacá-las.
—Problemas? - Hannah rebuscou em sua mente. - Não mencionava
nenhum problema em sua carta... mas não os teria então verdade?
—O último conde, que conseguiu sobreviver durante trinta e poucos anos,
foi o irmão de tia Spring, e consentia a ela o menor desejo. Quando os desejos
alcançaram proporções espantosas, as damas se voltaram ingovernáveis.
Hannah mal pôde conter um sorriso ao vê-lo tão desarmado.
—Pensei que só eram quatro.
—Me acredita digno de risada? - Dougald se levantou com uma parcimônia
atroz.
Desapareceu toda diversão e Hannah ficou em pé para olhá-lo à cara.

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—Digno de risada não, mas fala destas damas como se fossem um aríete
de carga e você um portal assediado durante longo tempo.
Pela primeira vez desde que Dougald afastou o rosto da janela para olhá-
la, Hannah já não lhe temia, se interrogava sobre ele, o observava fixamente;
na realidade, temia que lhe proporcionasse um olhar cheio de ternura, pois não
estava zombando dela nem lhe lançava olhadas desafiantes.
OH, não! Era muito pior que isso!
A olhava como se ela fosse um cervo despreparado e ele um lobo à
espreita. Teria seguido o fio de suas reflexões e teria entrado em suas
lembranças?
Ou talvez recordava outros tempos, tempos de paixão, tempos nos que se
uniram, apesar das brigas e da infelicidade, porque não tinham mais remédio
que obedecer a exigência de seus corpos?
Se tinha se informado sobre a Distinta Academia de Instrutoras, ao menos
saberia as tribulações os desafios aos que teve que enfrentar. Sabia que era
forte e dura, que não era a inocente rapariga que quase chegara a destruir.
Só... só que o modo em que ele a olhava não tinha nada a ver com os
assuntos de negócios, nem com os anos que permaneceram separados, nem
sequer com as mudanças que experimentaram seus corpos e suas mentes.
A olhava e parecia banhá-la no mais puro zelo animal. Dougald projetava
uma enxurrada de lembranças... os fracos gemidos de Hannah, a paixão
desesperada para ele, seus corpos nus na cama, em cima da mesa... no trem.
Qualquer problema que pudesse se interpor entre eles carecia de
importância quando estavam um nos braços do outro.
Então Dougald fechou as pálpebras, como se quisesse ocultar seus
pensamentos, e escorregou graciosamente para trás na cadeira.
—Claro que terá que cuidar das tias. Não acreditará que a trouxe até aqui
para que me faça de esposa... em nenhum dos encargos de uma esposa? -
declarou com uma voz cheia de aborrecimento.
Canalha. Trapaceiro, vagabundo, demônio.
Como se atrevia a desprezar suas conjeturas quando a conduzira a pensar
exatamente isso? Lhe fizera engolir a isca, tentando-a com lembranças, a
levando até onde ele queria vê-la, para demonstrar que Hannah ainda o
desejava.
—Não se divorciará de mim - replicou, de um modo agressivo, talvez
desacertado, mas necessário.
—Não. Não serei eu o primeiro em atrair semelhante desgraça à família
Pippard.
—Então que outro recurso fica?
—Acredito que já sabe a resposta - respondeu, acariciando a suave
madeira esculpida do encosto da cadeira. - Podemos seguir como até agora.
Nunca revelarei a ninguém quem é e não poderei voltar a me casar.

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Serei o último dos Pippard, e o título de conde de Raeburn passará a outro


ramo da família. - Fez uma pausa, a espera de algum comentário.
Hannah sabia perfeitamente que ele não sofreria voluntariamente tais
consequências.
—Que outras opções há?
—Podemos nos reconciliar - propôs com uma voz profunda e doce como a
calda de açúcar que a acalorou.
Hannah respirou fundo e rápido olhando a todas as partes menos a ele.
—Ou temos uma terceira opção.
—Uma terceira opção? - A ela não ocorria nenhuma terceira opção. - Que
opção?
—Todo mundo sabe que minha esposa está morta, então... poderia te
matar.

Capítulo 06

Hannah ficou sem respiração. Olhava fixamente para Dougald, o zangado


e hostil amo que acariciava o queixo com gesto absorto. O antigo Dougald
nunca teria sido tão cruel, mas aquele homem falava de matá-la com uma
calma que gelava o sangue.
—Te matar certamente resolveria todos meus problemas. Sempre e
quando não me descobrissem, não me conduziria pior fama que a que já tenho
agora. - Então se pôs a rir com uma gargalhada áspera e malévola.
—Claro que o menciono somente como uma de nossas opções. Na
realidade eu nunca te faria mal... meu amor.
Porco! Brincar sobre sua morte essa noite, na primeira vez que se viam
depois de nove anos! Memorar a fria tumba enquanto a névoa formava
redemoinhos fora e a única pessoa que conhecia sua verdadeira identidade e
sua procedência era o próprio homem que a ameaçava. Se necessitava alguma
prova que ele não a queria, de que nunca a desejara, aí tinha suas palavras e
sua risada.
Bom. Não pensava ficar ali sentada e permitir que a torturasse. Depois da
tortuosa viagem, o mero fato de vê-lo resultara um golpe terrível para ela.
Já tinha o bastante. Bastante de suas ameaças, seus escárnios, suas
provocações, suas reminiscências. Queria correr para ele, lhe soltar uma boa
reprimenda e lhe demonstrar quão equivocado estava se pensava que podia
humilhá-la.
A ela, a diretora da Distinta Academia de Instrutoras e a empresária que
conduzira à escola ao êxito!
Já basta de estar assustada. Não temia ninguém. E muito menos de um

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homem, um covarde que a espreitava, que a ameaçava fazer cumprir suas


obrigações maritais sem desejar, que se divertia a intimidando!
—Nem sequer sonhei com você.
Hannah avançou com passo decidido até sua cadeira e o olhou de cima.
Dougald levantou a cabeça e lhe devolveu o olhar.
Bonito? Já não o era, mas possuía uma rara intensidade, algo que o
inflamava com... uma emoção. Talvez fosse ardor. Talvez o odiasse. O mais
seguro é que nunca chegasse a saber.
As paixões que viviam nele estavam agora submetidas, amarradas com
uma corda muito curta.
Masculino? Sim, as sombras e as luzes que as velas projetavam esculpiam
suas feições, arrebatando toda sua amabilidade, toda ternura, todo traço
suave... salvo sua boca.
Essa boca... os lábios possuíam uma brandura de manteiga, aveludados e
sedosos, sobretudo quando lhe beijavam no pescoço, nos seios, nas coxas.
Alto? Sim, mas ela também era. Quando se casaram, receberam juntos as
felicitações dos convidados que não deixavam de lhes dizer que faziam muito
bom casal.
Alguns cavalheiros algo achispados e indiscretos lhes diziam entre
gargalhadas que iam ter uns filhos muito bonitos.
Não tiveram filhos. Ela o abandonou antes de os ter, muito consciente que
um filho a ataria ao homem que a manipulara, que a decepcionara. Não,
durante os longos anos que passou sozinha não pensou nenhuma só vez nele.
E com muito bom tino, pois sabia que isso só a conduziria as lágrimas.
Sim, esse era Dougald e não ia ter medo dele.
—Se não quer que seja sua esposa por que me trouxe até aqui? -
perguntou a ele apoiando o joelho no assento entre a coxa de Dougald e o
braço da cadeira.
Ele a observou como observaria um gato ao que irritara, com precaução
embora sem remorso. Pois que dano podia um gatinho causar a ele?
Se equivocava; ela era forte, também podia o provocar, ameaçar e
intimidar. Melhor ainda, podia fazer que a desejasse e assumir o comando.
—Quero a você - respondeu, - para que cuide de minha tia.
—Podia contratar uma mulher dos arredores. - Pôs a mão no ombro dele,
se inclinou, se aproximando muito, e teve o grande prazer de sentir como ele
se retirava um pouco para trás. Seu repentino ataque conseguira o
desconcertar um pouco.
—Se incomodou muito para conseguir que viesse até aqui.
—Talvez tenha me tornado mesquinho com os anos. Ao fim e ao cabo, a
minha esposa não tenho que pagar.
O fôlego de Dougald acariciava sua cara e notava o calor ardente que
emanava seu corpo através do colete, enquanto as mãos descansavam nos

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Christina Dodd
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braços da cadeira, aparentemente em repouso, aparentemente desinteressado


em se levantar para o corpo que tão perto estava do dele.
—Isso é um trabalho de escrava - o acusou.
—Quase tão bom como qualquer um - repôs. - O amoroso trabalho de uma
esposa.
Criatura sarcástica! Mas não temia enfrenta-lo.
—Ou talvez tem algum outro plano...?
—Algo é possível - repôs em um tom vagamente aborrecido. - Mas o que é
seguro é que terá que ficar, terá que trabalhar e não saberá quais são meus
planos até que eu queira contar.
—Talvez sim, - se inclinou, o bastante perto para o olhar diretamente aos
olhos, o bastante perto para que seus lábios quase se beijassem.
—Talvez não. Então ela percorreu a pouca distância que os separava e o
beijou.
Hannah saboreou a surpresa em seus lábios. Bom! Bom. Conseguira
apagar de seu rosto aquela maldita suficiência com seu movimento
inesperado. Que inclusive o pegara despreparado.
E seus olhos piscaram até fechar.
Os lábios de Dougald não mudaram; eram suaves, generosos e sensuais.
Desde mocinha passava horas explorando-os, tentando descobrir por que a
fascinavam tanto seus beijos. Nunca averiguou e agora, enquanto posava os
lábios nos dele, se perguntava se na realidade os provara. Abriu os lábios sobre
os dele, o convidando a entrar. Se resistia, Hannah pensava tomar a iniciativa,
se internaria naquela caverna perfumada de vinho e lhe demonstraria o que
valia sua esposa...
Não, não devia fazê-lo. Isso os conduziria até lugares que ela não queria
pisar. Em troca se manteria alerta, recordaria o impulso que a levara até ali e
compreenderia que estava fazendo um esforço para levar a voz cantante.
Ignorou inclusive sua própria respiração agitada, as leves pérolas de suor
que aquele contato originara nela e simplesmente acariciou a cara dele com a
mão. Ao lhe acariciar com suavidade notou que raspara o queixo.
Se barbeou pouco antes que ela chegasse, porque a habitual barba negra
não era mais que uma pelúcia aveludada sob o roce de seus dedos. Uma
pelúcia na ampla mandíbula. Estendeu os dedos, procurando ampliar a carícia
e chegou até a maçã do rosto.
Deslizou o polegar por cima, uma, duas vezes. Sempre teve uma pele
suave, que dava gosto acariciar. Esfregou-lhe uma orelha com a ponta dos
dedos, seguindo cada curva, segurando o lóbulo e lhe dando uma leve
massagem.
Notou que o ombro de Dougald se contraía debaixo de sua outra mão.
Sim, sempre o perturbava que acariciassem a orelha. Sempre atraía seu corpo
para o de Hannah.

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Christina Dodd
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Hannah interrompeu o beijo e ficou em pé. Devia ser prudente. Precisava


aproveitar a oportunidade com bom critério.
Dougald não se levantou atraído para ela. Não se moveu nem um ápice.
As mãos ainda descansavam nos encostos da cadeira e a coxa ainda
pressionava contra o joelho de Hannah, ainda a olhava, não deixava de olhá-la.
—Quer que pare? - perguntou notando os lábios cheios.
—Não.
—Isto é uma loucura.
—Ao inferno a prudência! - exclamou em um arranque de sinceridade.
Sim, talvez tivesse perdido o juízo, mas eram dois loucos arrastados para
o mesmo desvario.
Nasciam neles incontroláveis emoções que os arrastavam para mares de
paixão e, por muito que quisesse fazer o contrário, Dougald reagia ante os
estímulos de Hannah. Ao menos, nesta ocasião, sua disciplina não bastou para
evitá-lo.
Hannah deslizou a mão pelo cabelo dele, das têmporas até as sedosas
mechas. As levantou com os dedos; eram mechas brancas. Santo céu!, mechas
brancas se mesclavam com o reluzente cabelo negro, e só tinha trinta e seis
anos!
Imaginou que podia notar com os dedos a diferença de cores. Na realidade
o que podia notar era dor, solidão, naufrágio.
Sofrera Dougald? Isso ela esperava!
Apartando o cabelo do seu rosto, se inclinou outra vez para ele. Seus
lábios eram... tão doces. Excepcionalmente doces para um homem tão amargo.
Com os olhos e os lábios fechados, quase podia saboreá-lo através do ligeiro
roce de seu fôlego.
Quase saboreá-lo...
Mas não se conformava com isso, assim brandamente abriu os lábios em
cima dos de Dougald, lhe mostrando o caminho, tentando sua boca aberta.
Era um estudante muito avançado, disposto a seguir seu exemplo, como
se nunca tivesse feito aquilo antes, nunca a tivesse seduzido, nunca a tivesse
feito gemer de prazer para poder dobrá-la a vontade...
Maldito Dougald! Seus dedos se crisparam no cabelo, com a outra mão
apertou forte o ombro, e lhe colocou a língua na boca, dando a satisfação de
dominá-lo.
E ele... Dougald não ia resistir aquele embate. Claro que não. Respondeu
da mesma maneira, afundando a língua na boca dela, disputando com ela o
domínio da situação. Agarrou-lhe a cintura com as mãos e a segurou forte.
Como se ela fosse tentar fugir naquele momento! Quando o tinha
precisamente onde o queria ter, debaixo dela, beijando-a a instâncias delas.
Hannah tomara a iniciativa. Que tentasse tirar-lhe.
Uma voz firme, fria e desaprovadora os interrompeu, para o estupor de

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Hannah.
—Vamos ter que vigiar a esses dois.

Capítulo 07

Perplexa, Hannah interrompeu o beijo. Olhou Dougald aos olhos. Em um


momento de descuido viu paixão e fúria. Logo Dougald piscou e... Nada. Não
pôde ler nada neles; se experimentara alguma emoção, a que fosse, ocultou
bem.
Deliberadamente Hannah apagou a expressão de seu rosto, clareou a
mente e dirigiu o olhar para a procedência da voz.
Na soleira estavam detidas quatro anciãs de diversos tamanhos e formas,
observando Dougald e a Hannah com expressões que oscilavam entre a
desaprovação e o mais vivo interesse.
—Que alívio! - exclamou em voz alta uma cara redonda de tez morena. -
Fazia quase um ano que o querido Dougald não mostrava o menor interesse
pelas mulheres. Tinha começado a me perguntar se gostava mais do pescado
que a carne.
—Isabel, olhe os modos! - comentou uma dama de cabelos brancos
sacudindo a cabeça a modo de reprovação.
—Você também tinha suas dúvidas, Ethel!
Em comparação, o cabelo de tia Isabel era completa e suspeitosamente
negro.
—Sim, mas eu não o teria dito abertamente.
—O mais seguro é que não tenha me ouvido.
—Teria que estar surda para não te ouvir.
—Ora!
Enquanto brigavam como crianças, Hannah se separou de Dougald - agora
que o pensava com maior frieza, seu plano de vingança lhe pareceu uma má
ideia, destinada ao fracasso, - e baixou o joelho para pôr os dois pés no chão.
Dougald se levantou sem se ajeitar, embora tivesse o cabelo
completamente revolto.
—Boa noite, senhoras - saudou, avançando para elas, sério, alto e
aparentemente imperturbável depois de ser surpreendido beijando uma
estranha.
—Como está, querido moço? - A diminuta dama de cabelos cinza ficou nas
pontas dos pés. Dougald se inclinou, a beijou na face e deu uns leves golpes na
cabeça. - Lhes contei o feliz que me faz ter aqui a meu sobrinho por fim?
—Muitas vezes, tia Spring.
Hannah reconheceu a voz profunda e repressora. Pertencia à dama que os

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admoestara. Tinha o cabelo branco recolhido em um precioso penteado e


sobressaía sobre a diminuta tia Spring, tanto em altura como em largura.
Não é que fosse gorda, mas tinha ossos grandes e costas amplas, o tipo
de mulher que teria sido uma perfeita enfermeira.
—Mas, senhorita Minnie, tia Spring pode me repetir isso tantas vezes como
queira. - Dougald fez uma reverência a ambas. - É um prazer ser tão
queridíssimo para minha tia avó.
A senhorita Minnie resmungou.
Tia Spring a beliscou frouxo no braço.
—Vê, querida? É meu querido moço.
—Sim, é. - A senhorita Minnie não é que falasse, mas sim decretava, e
entrou na sala como uma fragata a todo vapor. - Boa noite, Dougald!
Dougald inclinou a cabeça ante ela, logo à dama de olhos pestanejantes e
com uma boca feita para sorrir que duvidara em voz alta de sua masculinidade.
—Boa noite, senhorita Isabel.
A pele escura e os traços angulosos fizeram Hannah suspeitar que era
espanhola ou italiana e, de fato, detectou um leve acento latino em sua voz
grave e apagada.
—Dougald querido, já te disse que me chame tia Isabel. Todo mundo me
chama assim. - Admoestou tia Isabel e, enquanto retorcia a orelha de Dougald,
fez uma piscada a Hannah. - Você também, querida.
Hannah conteve o estalo de hilaridade que lhe subia pelo peito. Ou lhe
estavam dando tempo para que recuperasse a compostura ou sempre eram
tão esmagadoramente impetuosas.
A dama de cabelos brancos entrou na sala como uma exalação. Se deteve
ante o vaso que Charles mudara de lugar e devolveu as flores a sua posição
original, tudo isso sem deixar de falar nem um segundo.
—Dougald, viu meu ramalhete de rosas? Você disse que se as
colocávamos neste canto onde o sol bate nelas floresceriam e hoje, inclusive
com este mau tempo, teríamos as mais belas rosas amarelas.
—Boa tarde, senhorita Ethel - disse Dougald inclinando a cabeça.
—Tia Ethel, por favor. As pétalas mal estão despontando, sabe?
Parecia requerer uma resposta a aquela conversação botânica, mas a
senhorita Minnie já se voltara para Hannah.
—É esta a moça que se supõe que tem que cuidar de Spring?
—Sim, é - confirmou Dougald. - Tia Spring, a senhorita Hannah
Setterington será sua nova dama de companhia.
Hannah lhe fez uma reverência.
—É uma honra conhecê-la, senhora. E a todas suas amigas também.
Tia Spring se aproximou com passos saltitantes, e os saltos repicaram no
chão de madeira.
—Caramba! Você é muito bonita.

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—Obrigado, senhora - murmurou Hannah.


—Me chame tia Spring. - Colocou as mãos a ambos os lados da cara de
Hannah e a voltou para ela. - Que alta é!
—Sim, senhora.
Era quase trinta centímetros mais alta que tia Spring, quase cinco
centímetros mais alta que a senhorita Minnie e uns treze centímetros mais alta
que as demais damas, e isso que elas eram de uma estatura normal.
—Quando eu era jovem, o que mais queria era ser tão esbelta como você.
- Tia Spring deu uns tapinhas nas faces de Hannah. - Mas Lawrence me amava
tal e como eu era, e ele sim que era um homem arrumado.
—Lawrence?
Hannah pensava que tia Spring era solteira, uma a mais da legião de
garotas que cresceram sem ter a sorte de possuir um bom dote e atrair um
pretendente.
—Meu amor querido. O mataram na guerra da Independência espanhola
antes que pudéssemos nos casar. - O rosto alegre de tia Spring escureceu. - Foi
ha muito tempo, mas sabe?, ainda sinto falta dele.
Ainda me parece o ouvir pronunciar meu nome e quando me volto, não
está.
—Bobagens e fofocas - comentou tia Minnie.
—Não, não o são. - Tia Spring não hesitou em contradizer a sua formidável
amiga. - Ele sempre está comigo, estou segura, só que não posso vê-lo. Não é
incrível e maravilhoso pensar que um amor pode durar eternamente?
Hannah levantou o olhar para Dougald. Uma grande satisfação
enquadrava sua boca quando a olhava junto a tia Spring.
—Alguns amores duram eternamente - corrigiu Hannah. - Outros se
machucam, se descuidam e ressecam como uma maçã.
—Você é muito jovem para ser tão cínica. - Tia Isabel se aproximou. -
Como chegou a desenvolver semelhante atitude?
—O mais seguro é que tenha estado casada - opinou tia Ethel. - As
mulheres se voltam cínicas quando estiveram casadas.
—Os homens também se voltam cínicos quando estiveram casados - repôs
Dougald.
—E por que você teria que ser cínico? - perguntou tia Isabel. - Você
assassinou sua esposa.
Aquilo causou uma verdadeira comoção em Hannah. Pela primeira vez
ouvia os cargos verbalizados, e nunca teria esperado os ouvir de tão inofensiva
fonte. Olhou para Dougald, mas parecia impassível.
O teriam acusado tantas vezes que já não se importava? Ocultava aquele
estoicismo uma necessidade de se defender?
A teria amedrontado porque o amedrontaram outras tantas vezes?
—Desconcertou à senhorita Setterington - disse a senhorita Minnie.

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—Além disso, Isabel, querida, sabe que decidimos que era um conto
maravilhoso, mas que ele não o fez. - Tia Spring deu uns tapinhas no braço de
Hannah. - Não deve temer que a assassinem em seu leito. Isto é muito seguro
com Dougald ao leme.
Todos os assassinatos ocorreram antes que ele chegasse.
—Os assassinatos? - replicou Hannah com temor.
—Se refere às mortes dos anteriores senhores - informou Dougald.
Com esse gosto latino pelo drama, tia Isabel não fez conta.
—Senhoras, vocês são quem tem decidido que Dougald era inocente, não
eu. Acredito que é maravilhosamente misterioso que tenha matado sua
esposa. Lhe dá um ar ameaçador. As coisas seriam muito aborrecidas aqui sem
um pingo de perigo. - Mudou o tom de ameaçador a evidente. - Além disso,
provavelmente tivesse razão. Deus sabe que eu mesma muitas vezes quis
liquidar ao velho ogro com o que me casei. - E se dirigindo a Hannah
prosseguiu.
—Nunca se case com um homem que a distancie de sua família por que
fará com você o que deseja e ninguém poderá impedir.
—Prometo que não o farei - repôs Hannah.
—Meu velho ogro se divorciou de mim. - Os olhos de Ethel se alagaram de
lágrimas. - Sabe os desgostos e o dinheiro que custa um divórcio? Deve ser
aprovado por lei pelo Parlamento, sabia?
—Isso tinha ouvido - murmurou Hannah.
—Mas pôs tanto empenho em se desembaraçar de mim que o pagou com
muito prazer. - Suas lágrimas secaram e piscou com energia. - Agora está
vivendo com essa senhoritazinha que antes era minha garçonete.
Provavelmente morrerá na cama e a morte não conseguirá apagar o
sorriso do seu rosto.
—Não há maior louco que um velho louco, eu sempre digo - proclamou a
senhorita Minnie ao mesmo tempo que assentia com a cabeça.
—Senhoras, podem estar seguras que nunca sucumbi às tendências
assassinas - Dougald dirigiu um olhar intenso a Hannah, - por muito que a
pessoa com a que esteja tratando o mereça.
—Veem, queridas - tia Spring disse com gosto. - Ele não o fez.
—Vamos, não ia admitir tê-la matado, não é? - exigiu tia Isabel.
Tia Ethel o olhou pensativa.
—Nunca antes o negara e realmente parece um assassino.
As demais damas o negaram a gritos.
Hannah recordou a hilaridade que modelava os traços de Dougald quando
sugeriu que podia matá-la e resolver assim seus problemas.
—Sim, parece - insistiu tia Ethel com teimosia. - E se não, olhem seu gesto
meditabundo. Esteve encerrado em si mesmo desde o dia em que chegou aqui.
Não é que me queixe, que fique claro, Dougald querido.

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Dougald assentiu como se já tivesse ouvido aquilo antes.


As damas falavam diante de Dougald e Hannah como se não estivessem
presentes. Parecia que por levar tanto tempo nele, as tias formavam parte do
mobiliário do castelo, e os usos e maneiras comuns já não se aplicavam a elas.
Ou talvez consideravam a outros só fugazes interrupções no longo trajeto de
suas vidas. Certamente Dougald atuava como se tudo funcionasse à perfeição;
dava a impressão de estar acostumado ao bate-papo, as contradições e a
esmagante franqueza que gastavam as velhas damas.
—Morro por um homem que passe a vida meditando realmente bem -
exclamou tia Ethel. - Podia vir e meditar em meu dormitório todo o dia.
—Ethel! - A senhorita Minnie parecia sinceramente horrorizada.
A senhorita Minnie era a mais velha. Apesar de seu tamanho
impressionante e sua postura erguida, provavelmente fosse dez anos mais
velha que as demais, e Hannah estimou que tia Spring, tia Ethel e tia Isabel
andariam pelos sessenta bem cumpridos.
A diferença de idade afastava tia Minnie do resto, talvez não fosse só pelos
anos mas sim pelo ponto de vista.
—Que tenha neve no telhado não significa que não ponho o fogo no forno!
- replicou tia Ethel.
Hannah não sabia se ria ou desmaiava, assim não fez nenhuma das duas
coisas e se comportou como se estivesse acostumada a participar daquelas
conversações.
—Sim, mas já sabe que estes jovenzinhos não querem ouvir conversa
mole.
As damas anciãs ficaram em silêncio e olharam para Dougald e Hannah.
Ao que parece Dougald decidiu que Hannah já fizera uma ideia
suficientemente clara das provocações as quais deveria enfrentar, pois
aproveitou a pausa.
—A senhorita Setterington me contou que estava acostumada a desenhar
roupa - disse em um tom absolutamente neutro.
Hannah fulminou Dougald com o olhar. Não gostava de pensar nisso,
recordar como utilizou seu inocente sonho de possuir uma loja de modas para
apanhá-la no casamento.
O trem estralava debaixo dela e Hannah se sentava muito rígida em seu
assento, sem prestar atenção à forma descamisada e recostada de Dougald.
De repente lhe vieram à memória as sérias advertências da senhorita
Blackmoor sobre o que ocorria às garotas que relaxavam na presença de um
homem, e sobretudo às que tivessem a ousadia de se deitar.
O qual era muito tentador depois da comida, o vinho e o estalo continuado
do trem... Quando Hannah tinha doze anos e sua menstruação chegou pela
primeira vez, sua mãe lhe explicou com calma e de modo muito explícito os
fatos nus da reprodução humana.

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Mas Hannah não recordava ter ouvido nada a respeito daquele rubor
nervoso que Dougald lhe provocara com seus olhos verdes como o mar, sua
voz profunda e sua etiqueta relaxada. Sempre menosprezara o tolo palavrório
das meninas, mas não tinha nem ideia de por que sentia aqueles calafrios na
pele, por que acelerava sua respiração nem por que de repente sentia a
deliberada urgência de danificar a perfeita manicure de suas unhas mordendo-
lhe até a raiz.
Não tinha nem a menor ideia.
Não é que Dougald o fizesse de propósito, é que não se dava conta de
quão sedutora sua atenção podia resultar a uma moça que não tinha nenhuma
experiência com os homens. Não podia ser tão porco para seduzi-la
deliberadamente.
Dougald queria se casar com Hannah e a mãe lhe dissera que todos os
homens queriam se casar com mulheres que se mantiveram incólumes ante os
instintos mais vis.
Assim não podia estar interessado em atrair Hannah, utilizando sua
própria curiosidade e ignorância contra ela.
Por que não lhe ocorrera comprar uma manta? Dougald a poderia estar
usando de travesseiro e ela não teria tido que estudar a paisagem com tanta
fruição para despistar seus traidores olhos e evitar que estudassem aquele
peito, esculpido e modelado pelo trabalho e o exercício, e aquelas costas
maravilhosamente largas. Aquele torso nu e moreno era muito tentador para
uma moça que tinha passado a infância e a adolescência privada dos afetos
mais básicos.
Uma moça que, até ha trinta minutos, ria da tentação irresistível.
Por sua própria paz de espírito era melhor não ver aqueles olhos arteiros
que se abriam somente um pouco para comprovar que ela se sentia incômoda
e logo se fechavam com satisfação.
—Que trabalho é esse que quer fazer?
Hannah deu um salto e esfregou as mãos suarentas contra as calças.
—Quero abrir uma boutique - murmurou como resposta.
—O que? Não a ouço. - Dougald estirou o pescoço, tentando captar as
palavras de Hannah.
—Eu disse que quero abrir uma loja de roupas sob medida - gritou,
repentinamente furiosa.
—Ah! - Deixou cair a cabeça para trás e resmungou: - Não precisa gritar.
Não é uma ambição tão espetacular. Como o dizia tão encolhida, pensei que
queria desenhar saias para damas escocesas com o traseiro nu.
—Não há suficiente demanda - soltou, embora um segundo mais tarde se
horrorizou de sua própria resposta.
Dougald sorriu com um atraente e perverso sorriso.
—Teria se você as fizesse.

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O que imaginou era quase um elogio.


—Também pensava que sua maior ambição na vida era formar parte de
uma família.
Ficou gelada.
—E você o que sabe?
—Era uma moça discreta, mas quando olhava às famílias que se sentavam
juntas na igreja, o desejo aparecia em seus olhos.
O odiava por ter se dado conta disso. Odiava a qualquer que notasse o
muito que desejava ter pais, avós, irmãos, a qualquer que a recordasse que
estava sozinha. Em sua experiência, as pessoas riam dos bastardos que
perseguiam o inalcançável.
Mas Dougald não estava rindo. Tinha os letais olhos verdes e ouro
fechados e os músculos relaxados. Não atuava como se lhe parecesse raro que
sonhasse ter uma família. Deu uns leves golpes às bolas de algodão que tinha
a seu lado.
—Mas suponho que quer realmente ter uma boutique. Por que não me
conta isso?
Sua coragem começava a fraquejar outra vez.
Se arrastando pelas tábuas estilhaçadas, se sentou a seu lado com as
pernas cruzadas, embora não muito perto, e lhe contou seus planos.
A princípio com voz entrecortada, logo com maior integridade, contou
quão boa era em todo tipo de trabalhos de costura.
Podia levar a lã da ovelha até o tear. Sabia como fazer ou adaptar um
padrão, como marcar e cortar, como costurar a costura mais delicada.
Adorava os trabalhos de agulha e o bordado, a agulha de crochê e a
renda. Os vestidos que criara e sua costura eram obras de arte e adorava.
O olhou relaxado e viu seu sorriso. Aquilo não podia ser bom.
—Retornaria comigo se a ajudar a conseguir sua loja? - perguntou
Dougald.
Com as mãos no colo se preparou para rechaçar ao diabo.
—Posso trabalhar, posso economizar. Posso ter minha própria loja... com o
tempo. Não o necessito para isso.
—Sou um bom empresário e você tem o entusiasmo e o conhecimento
para que suas empresas sejam um êxito. E se eu puser o dinheiro?
O rosto de Hannah se iluminou e se sentou erguida.
—Me faria isso? O devolveria com acréscimo, eu asseguro.
—Minha esposa não teria que me devolver isso embora a loja fosse um
fracasso.
Deveria ter se dado conta que era uma armadilha. Sabia que era uma
armadilha mas tinha a esperança de estar equivocada.
—Minha loja não será um fracasso. Tenho contatos entre minhas
companheiras de curso e seus pais, e sou uma dama muito decente, se

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gabarão de ir para mim. Tenho habilidade para o desenho e boa cabeça para os
negócios - e concluiu com energia,
—mas não me prostituirei por uma boutique. Já estou em dívida com você.
—Não estou pedindo que se prostitua. Estou pedindo que se case comigo.
- O desespero raspava sua voz como uma lima.
—Não temo o trabalho duro. Sei como viver quase sem nada e abrirei
minha própria loja. Não vejo nenhum motivo para mudar meus princípios por
dinheiro.
Um leve e sinistro sorriso apareceu em um canto de sua expressiva boca.
—Seguro?
Dougald punha Hannah nervosa enquanto examinava seu rosto, seu
queixo tremia com um ataque de precaução tardia, e seus dedos também
tremiam insistentemente.
Dougald olhou seu pescoço, o rubor que desfigurava a pálida pele de seu
seio ali onde a blusa de fio de lã ficava inesperadamente baixa. A observou
muito bem.
—Não quero me casar com você - soltou a queima-roupa.
—Não quer? - voltou a lhe perguntar.
E, paralisando-a com seu olhar sustentado e sem pressa, se sentou.
Estendeu a mão, muito devagar e a agarrou pelos braços. Com cuidado e
lentamente a atraiu para que pudesse se deitar no vão quente que ele acabava
de deixar no algodão, de modo que a cabeça dela descansasse em cima de sua
camisa. Logo muito, muito lentamente deitou com o peito sobre o dela e os
quadris junto aos dela, uma coxa entre as pernas dela e o rosto quase pego a
ela.
—Nunca a beijaram - disse, com a cara tão perto da sua que sentia seu
fôlego enquanto respirava.
Como ocorrera aquilo? Foram aqueles maravilhosos olhos de jade que a
hipnotizavam, a atraíam e a tranquilizavam. Foi seu modo de se mover, seguro
e precavido, sem um movimento súbito que a sobressaltasse.
Nenhum outro homem podia tê-la feito passar de uma posição sentada a
outra deitada, de um furioso desafio a uma furiosa excitação, de uma fúria
entrecortada a uma entrecortada curiosidade.
Tia Spring sacudiu com cuidado o braço de Hannah para captar sua
atenção.
—Querida, você é boa com a agulha? Porque nós, minhas amigas e eu,
temos uma oficina preciosa. A melhor habitação da ala oeste, onde lhe
prometo que não teve lugar nenhuma tragédia.
Hannah não tinha nem ideia a que se referia.
—Isso está muito bem.
—Eu também acredito! E tem muito boa luz.
—O qual é muito importante - disse Hannah.

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—Sim, eu não vejo nada na metade das vezes - repôs tia Spring.
A senhorita Minnie suspirou.
—Isso é porque tem que pôr os óculos.
Os olhos de tia Spring se abriram como pratos.
—Eu não uso óculos.
Ninguém disse nada, então Dougald se inclinou para frente e levantou os
óculos que penduravam de uma corda ao redor do pescoço de tia Spring.
—Aqui estão, tia.
Com uma vaga expressão de surpresa, tia Spring agarrou as alças com
dois dedos.
—OH, obrigado, Dougald! Estive procurando eles por toda parte. - Sorriu a
seu sobrinho. - Já disse quão feliz estou de ter a meu sobrinho aqui por fim?
Hannah caiu na conta de que aquele era o tipo de desorientações que
levara Dougald a procurar uma dama de companhia para sua tia. Tia Spring
não estava louca nem senil, mas era esquecida e talvez caprichosa.
—A verdade, tia, é que me alegro de estar aqui com você. - Se voltando
com graça para Hannah, Dougald a utilizou para distrair a atenção de tia
Spring. - Eu disse às tias que era você uma perita costureira.
Hannah sentiu ressentimento contra ele por utilizar aquela informação
para manipulá-la.
—Sou boa com a agulha, senhora, mas já não desenho roupa - contou a tia
Spring e logo, olhando Dougald com muita intenção, prosseguiu: - Meu
principal critério para a moda é que não uso nada chamativo.
Se a ideia de Hannah vestindo uma roupa simples o desagradou,
dissimulou muito bem com uma deliciosa reverência.
Realmente necessitava que lhe dessem uma lição. Várias lições. Lições
sobre as mulheres, sobre as esposas, sobre o respeito e a filantropia pela
filantropia.
Mas Hannah não se dignaria a ilustrá-lo. Por muito que se orgulhasse de
ensinar o impensável, por muito que a atraísse a imagem de Dougald se
dobrando ante sua sabedoria, sabia que ele era muito obstinado, e não cairia
na tentação de instruí-lo.
—Muito inteligente por sua parte. - Tia Spring cravou seus grandes olhos
castanhos em Hannah. - Agora mesmo uso umas ligas com rendas e me ardem
de um modo atroz. E para que?, se perguntará. Nenhum homem me olhou as
meias em trinta anos.
Uma risada escapou de Hannah.
—Mas não deveria lhe dizer isto, não é? Sou uma solteirona e é meu dever
servir de bom exemplo para vocês as jovens.
—Mas se tiver mentido a respeito de suas ligas, isso tampouco seria um
bom exemplo, querida. - As mãos de tia Ethel revoaram para sua boca. - Mentir
é um pecado.

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—Spring não mentiu sobre suas ligas - se apressou a afirmar a senhorita


Minnie. - Não deveria ter falado delas.
—Sim, mas querida, só estava mantendo uma conversação com a
senhorita Setterington. Tenho que dizer algo a nossa querida menina para que
se sinta como em sua casa.
—A senhorita Setterington não deveria ter mencionado roupas que
provoquem incômodos. - A senhorita Minnie levantou o impertinente queixo e
deu um repasse a Hannah. - É evidente que não é do melhor berço.
Hannah deu um salto quando colocaram o dedo na velha chaga.
—Asseguro, senhorita Minnie, que só permitiria que uma mulher de bom
berço cuidasse de minha tia - repôs Dougald, com uma pronunciada frieza na
voz.
—É obvio - ratificou tia Spring.
Hannah se perguntou se ele acreditava que ia estar agradecida a ele por
ter saído em sua defesa, quando na realidade ela nunca teria sido tão
escandalosamente franca se ele não a tivesse provocado.
Mas não, mantinha uma atitude distante com respeito ao enlouquecido
rumo que tomava a conversação. A Dougald importava um cominho seu
agradecimento, simplesmente não gostava que pusessem em posição de
julgamento sua escolha de uma dama de companhia.
—Minnie, você sempre está pendente do decoro das frases e não pensa na
bendita mensagem. - Os olhos azuis de tia Ethel pestanejaram com força. - A
senhorita Setterington parece uma mulher adorável, e costura, o qual é da
maior importância para nós.
O que ocorre é que está ciumenta porque sofre esses desmaios e não
pode seguir dando ordens sozinha.
A tez da senhorita Minnie se voltou branca e se afundou na cadeira.
—Olhem isso. - Tia Ethel era todo interesse e atividade. - Lhe deu um
desses desmaios agora mesmo.
Enquanto tia Ethel movia os sais sob o nariz da senhorita Minnie, tia Isabel
sorriu a Hannah e assentiu.
—Odeio quando me caem as ligas até os tornozelos, você não?
Tia Spring tirou uma manta e a colocou sobre os ombros da senhorita
Minnie.
—Se atasse isso como a ensinei, Isabel, não fariam esse ruído tão
horroroso nem lhe cairiam!
—Senhoras! - A senhorita Minnie protestou fracamente. - Recordem que há
um cavalheiro presente!
Hannah esqueceu seu ressentimento para Dougald e o olhou com uma
irrefreável hilaridade. Ele ainda estava ali plantado com as pernas separadas,
observando às anciãs damas com cautelosa fascinação.
Não era de estranhar que desejasse ajuda com sua desorientada parente

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Christina Dodd
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longínqua e sua corte de amigas.


Hannah o olhou aos olhos e por um momento foi tal como era no princípio
de seu casamento. Compartilhavam um calado júbilo e logo... logo não sabia o
que ocorrera.
A confusão das vozes das damas se extinguiu, a luz se apagou. Para ela
não existia nada mais que o firme olhar de seus olhos, a alma solitária que
podia ver em seu interior, a irmandade de seus seres...
O som e o calor da realidade retornaram de súbito. Pestanejou e voltou
para a biblioteca para ouvir tia Spring dizer:
—Acredito que tem razão, Minnie. Vamos ter que vigiar a esses dois.

Capítulo 08

—Ah! Você está aqui, senhorita Setterington. A câmara está arejada,


tiraram o pó esta manhã e puseram lençóis limpos na cama.
A senhora Trenchard colocou uma grande chave de ferro na fechadura e
abriu a porta cravada no extremo de um amplo e sombrio corredor da ala leste
do castelo de Raeburn. Indicou a Hannah que passasse à frente e entrou na
minúscula câmara atrás dela.
—Sally desfez suas malas, escovou suas roupas e as pendurou no armário.
Há água no jarro e se necessitar mais pela manhã, chame uma das donzelas de
cima e elas a ajudarão com prazer - prosseguiu a senhora Trenchard.
—Obrigado, com esta bastará.
A única vela que a senhora Trenchard segurava mal iluminava a câmara,
mas Hannah pôde ver que aquilo não era ao que estava acostumada. Em
Londres era a senhora de sua própria casa. Seu quarto era grande e luminoso,
tinha uma estufa que esquentava a sala, três grandes janelas sobre as quais
penduravam cortinados de veludo, e uma larga e alta cama com três
travesseiros recobertos em capas de renda para ela sozinha. Ao outro lado da
porta, a saleta continha uma mesa pequena onde podia escrever cartas e
quadrar contas, se desejava intimidade, e uma cômoda poltrona onde podia se
acomodar para ler um livro se tivesse vontade. Tinha pouco tempo para tais
escarcéus, mas valorizava muito o fato de poder se permitir tais luxos.
Aquele era o quarto de uma criada, nada mais, uma escura, fria e
antiquada câmara mobiliada com os móveis que já ninguém queria e uma
única janela emoldurada por cortinados fora de moda.
A cama era estreita, a colcha descolorida pelos anos e o único travesseiro
quase plano. Se supunha que devia estar agradecida por não ter que dormir no
desvão com o resto dos criados.
—Você está na parte traseira do castelo, na parte velha - explicou a

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Christina Dodd
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senhora Trenchard enquanto acendia os candelabros que havia sobre a


mesinha do exíguo leito.
Hannah estremeceu quando o vento golpeou a janela do exterior e as
cortinas se inflaram um pouco.
—Este lugar está cheio de correntes de ar. - Talvez o desagrado de Hannah
ficasse em evidência, talvez a senhora Trenchard desejasse ainda se desculpar
pela viagem que teve que percorrer entre a névoa, em qualquer caso,
acrescentou:
—Eu asseguro, senhorita Setterington, que a tenho feito desobstruir, mas
a lareira segue jogando fumaça.
Hannah olhou a pequena pilha de brasas na lareira em miniatura.
Conforme comprovara, não despediam nenhum calor e o fino rolo de fumaça se
esfumava a menor rajada de ar.
—Estou segura que fez o que pôde.
—Mas, com toda franqueza, a maioria das lareiras do castelo também
fumegam com este vento, incluída a do senhor.
Dougald dormia perto. O olhar de Hannah se dirigiu para a porta, para a
grande chave metida na fechadura que sem dúvida usaria.
—Ainda não têm feito reforma aqui. O senhor já acabou as das salas
velhas e das queridas damas na ala oeste, por isso são tão cômodas. - A
senhora Trenchard sacudiu a cabeça.
—Não posso imaginar por que insistiu em que você se alojasse aqui em
lugar de ficar nelas.
Hannah podia ter explicado à senhora Trenchard por que o amo a atribuía
aquela sala. Queria que estivesse perto dele para poder atormentá-la. Queria
que fosse desgraçada em todos os aspectos possíveis.
Queria que ela visse que ele tinha a sala do amo com as grandes portas
de folha dupla enquanto ela habitava aquele pequeno e escuro chiqueiro.
—Claro que, para lhe fazer justiça, disse que você merecia estar longe da
senhorita Spring e das outras senhoras, ao menos durante a noite.
—O dedo da senhora Trenchard percorreu a parte superior do travesseiro,
entortou os olhos e logo os entrecerrou após olhar o dedo. - Amanhã enviarei
Sally para que acabe a limpeza.
Hannah sentiu lástima pela desconhecida Sally e mais lástima ainda por
ela mesma.
—Quem mais dorme nesta ala? - perguntou ao pensar na longa fila de
portas fechadas que enchiam o corredor.
—Ninguém mais. Só você e sua senhoria.
—E Charles.
A senhora Trenchard arqueou as sobrancelhas, perplexa. Hannah acabava
de revelar um grande conhecimento dos costumes de Dougald ou muito
interesse em seu ajudante de câmara?

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Christina Dodd
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—Não, Charles não dorme aqui - explicou a senhora Trenchard. - Ele


também dorme na ala oeste.
Agora foi Hannah a que se surpreendeu. Charles estava acostumado a
dormir em uma câmara contigua ao dormitório de Dougald, para estar sempre
perto se por acaso necessitasse algo.
Hannah odiava aquela dependência, temia fazer ruído ou levantar a voz,
sempre consciente que Charles andava rondando.
—Ah...! - exclamou então a senhora Trenchard com voz de cumplicidade. -
Bom, senhorita Setterington, não se preocupe. O senhor não é dos que
perseguem os serviçais.
Está aqui a um ano e não houve nem um só escândalo entre o senhor e
nenhuma de minhas garotas.
—Que alívio! - repôs Hannah secamente.
Era um alívio saber que não incomodara a nenhuma das donzelas. E ainda
maior alívio saber que a senhora Trenchard não percebeu da verdadeira fonte
de mal-estar de Hannah.
Outra rajada de ar sacudiu o marco da janela e Hannah se aproximou para
afastar as cortinas. Se levantou um vento do oeste que dissipava a névoa. As
estrelas brilhavam friamente no céu negro, a lua pálida cavalgava sobre os
restos de uma nuvem e ela olhava pela janela as colinas e os vales em sombra
da herdade de Dougald.
As escassas árvores levantavam os ramos nus para cima para arranhar o
céu, a terra se estendia até um horizonte vazio, e uma estrada - a estrada que
a trouxera da estação de ferrovia - se afastava pelo mar invisível.
Uma rajada de vento sacudiu o velho marco da janela e Hannah ficou a
tremer abraçada por uma corrente de ar frio.
A senhora Trenchard se aproximou.
—Há um precipício desde esta janela, assim não a aconselho que a abra e
apareça.
Se baixava a vista, Hannah podia ver a muralha do castelo que descendia
até sumir nas sombras. O chão parecia escuro e muito longínquo. Muito, muito
longínquo.
Enjoada por uma sensação de vertigem cambaleou para frente, fechou os
olhos e logo se inclinou para trás.
—Está muito alto. Está a planta da cozinha, a planta principal, justo
debaixo de onde nos encontramos, e eu estou no terceiro andar...
—Sem esquecer as masmorras que estão debaixo da cozinha - recordou a
senhora Trenchard. - Não têm janelas e estão sem usar a centenas de anos,
mas confie em mim: ainda estão ali, tenebrosas e úmidas.
Sei por que cada primavera envio uma equipe para limpa-las. Claro que
guardamos o vinho ali abaixo.
—Claro - disse Hannah pensando em quão agradecida estava de não ter

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que descer a limpar as masmorras. - Se usavam muito antigamente?


—Os condes de Raeburn tiveram seus momentos de crueldade - admitiu a
senhora Trenchard. - Não gostavam que os traíssem, a nenhum deles.
O primeiro senhor de Raeburn era um barão, chegou com Guillermo o
Conquistador e contam que mandou construir as masmorras para jogar nelas
ao senhor saxão e deixá-lo morrer.
—Encantador - murmurou Hannah.
—Nos tempos da guerra das Duas Rosas os senhores ganharam o título de
visconde e quarto visconde, nenhum deles era um homem agradável.
—Parece ser um traço da personalidade destes senhores - repôs Hannah
embora sem mencionar Dougald por seu nome.
A senhora Trenchard deu de ombros.
—Houve tanto homens bons como homens maus, mas aquele senhor
jogou um lancasteriano à masmorra e ficou com sua mulher para usá-la como
amante.
Teria perdido o castelo, mas quando o rei conquistou todas as terras, sua
senhoria declarou que sempre fora fiel, e o rei Enrique decidiu acreditar nela.
Era mais fácil que tentar jogá-lo.
—Os reis ganhadores sempre tomam decisões guiadas pela conveniência -
observou Hannah.
—Suponho que sim. Não sei muito de reis. Só sei a respeito dos senhores
de Raeburn. Minha família leva os servindo desde que existe o castelo Raeburn
e suspeito que inclusive antes.
—A senhora Trenchard abriu mais as cortinas e apontou para o exterior. -
Durante o protetorado de Cromwell, o senhor de Raeburn foi um realista
obstinado. Vê esses restos de muralha?
Hannah olhou para ali. A larga e reta fileira de pedras e musgo se elevava
e descendia em linha reta atrás do castelo, negras sombras do passado se
estendiam sobre o páramo.
—Cromwell e seus homens chegaram com seus canhões e derrubaram o
muro de cerramento. O senhor conseguiu escapar com vida com muita
dificuldade. Fugiu para o continente e retornou com a Restauração, e sua
lealdade lhe valeu o título de conde.
—Parece um bom homem - comentou Hannah, - incondicional e resolvido.
—Sim, um bom homem - repôs a senhora Trenchard coçando o queixo, -
mas um marido terrível. Trouxe a mulher mais formosa da França e era tão
ciumento que, quando ela flertou com um dos criados, enforcou o criado e a
encerrou na torre nesta ala.
—Não a encerrou nas masmorras?
—Não queria matá-la. - A senhora Trenchard parecia desculpar ao
asqueroso desumano. - Só queria estar seguro dela.
—Não acredito que depois disso ela tivesse vontade de recebê-lo com os

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braços abertos em seu dormitório.


—Se jogou pela janela.
Hannah olhou impressionada para baixo, para o chão, e voltou a sentir
uma onda de vertigem que a obrigou a fechar os olhos.
—Que horror!
—A maioria dos homens não querem que suas mulheres os enganem. O
atual senhor não é diferente nesse aspecto, ao menos.
A senhora Trenchard fez uma pausa tão relevante que Hannah abriu os
olhos. A senhora Trenchard contemplava com pesar a figura de um homem a
cavalo que se afastava galopando do castelo. De amplas costas e
transbordante de energia, se inclinou para frente na cadeira de montar e
esporeou seu alto cavalo negro em direção do mar. A jaqueta desabotoada se
movia ao vento e a intensa e branca luz da lua brilhava sobre seu cabelo negro
descoberto fazendo reluzir as características mechas prateadas.
Dougald saía para cavalgar de noite, tal como Alfred havia dito. Mas do
que estava fugindo aquela noite em concreto?
A senhora Trenchard correu a cortina, com o que o tirou da vista de
Hannah, e se afastou da janela.
—Suponho que já teria ouvido os rumores sobre o atual senhor.
Hannah suspeitou que aquele era o verdadeiro motivo do bate-papo da
senhora Trenchard.
—Que matou a sua esposa?
—Sim, senhora, isso é o que se comentava. Espero que não a ponha
nervosa.
—Não.
Não quando sabia que não era certo ou, como Dougald comentara, ao
menos não ainda.
A senhora Trenchard sorriu obviamente agradada.
—Quando o vi pela primeira vez me disse: eis aqui uma pessoa sensata.
Esse homem nunca matou ninguém.
—E você como sabe?
—Quando um homem matou a alguém, conserva uma frieza em seu
interior que se nota... se souber o que anda procurando. Os que cometeram um
assassinato estão malditos sabe?, e voltarão a assassinar se se veem
obrigados a isso, porque que mais lhes dá?
Sabem que estão condenados ao fogo do inferno quando morrerem.
A funesta e plaina declaração da senhora Trenchard soou como a sentença
ditada pelo mais desumano dos juízes. Logo deu uma palmada e esfregou
vigorosamente as mãos.
—Bom, basta de conversa. Estará cansada depois da viagem e quererá se
levantar cedo para ver as encantadoras damas. Estão muito emocionadas de
ter a você aqui.

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E eu me alegro que vá se encarregar delas. São umas damas adoráveis,


mas de difícil trato.
—Estou segura que desfrutarei embora cuidar delas resulte um desafio.
—Sim, senhorita. Claro que sim. Depois desta noite, não vá dormir mais
tarde que as dez. Estas são as velas que lhe dou para toda a semana. - A
senhora Trenchard franziu o cenho ante o modesto montão de livros que havia
na mesa de Hannah.
—Não lhe darei mais porque ficou acordada lendo. Recorde, os criados não
estão aqui para gastar o carvão e o sebo do amo. Também temos um toque de
silêncio; às nove em ponto deverá estar em seu dormitório.
—Por quê? - Hannah vislumbrou as noites frias, escuras e solitárias que
teria que passar recolhida em seu quarto.
—Os criados se sentem melhor se impusermos um toque de silêncio. As
mortes dos antigos senhores colocaram medo em seus corpos.
—Não acreditarão que lorde Raeburn...?
—São muito supersticiosos, seriamente que são. - A senhora Trenchard
desfilou para a porta e se deteve com a mão na ombreira. - Como amanhã é
seu primeiro dia direi a Sally que avive o fogo para você quando deva limpar o
dormitório.
A senhora Trenchard fechou a porta ao sair, deixando a Hannah só na
desolada câmara que lhe atribuíram no lar de seu marido. Correu as cortinas,
voltou a olhar para o caminho, mas Dougald se foi. Fugia dela? Das lembranças
que suscitava nele?
Da paixão que ainda existia entre eles? Ou estava fugindo para evitar o
desejo de jogar as mãos em seu pescoço e estrangulá-la?
Deixou cair a cortina.
Deus sabe que Hannah compreendia muito bem a fuga. A fuga dele, a
fuga deles. Tinha dezoito anos a primeira vez que fugiu dele e de seus planos.
Fora uma moça séria que zombava de suas companheiras que acreditavam nas
histórias de amor, que cochichavam sobre os homens e do que faziam na
escuridão. Tudo o que Dougald fez naquele trem a pegou de surpresa. Em
especial aqueles beijos, não a pressão seca de um lábio contra a face, a não
ser aquela aberta e úmida calidez...
Dougald fora, e ainda era, um homem que beijava maravilhosamente.
Isso não explicava suas próprias ações daquela noite. Não se arrependia
de tê-lo deixado plantado.
Nada podia acalmar o profundo desassossego que sentia ao ver as
mudanças que se produziram nele, mas devia ser precavida antes que seu
espírito independente voltasse a se reafirmar.
Mas o desafiar de tal modo... nem sequer ela mesma o compreendia...
"O que a levara a beijá-lo?"

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Capítulo 09

"O que a levara a beijá-lo?"


Dougald sabia que não devia cavalgar à noite, mas não podia se retirar a
seu leito. Não quando por fim sua esposa dormia sob seu próprio teto. A moça
com a que se casou se foi, arrastada pelos anos e por experiências muito
diferentes das suas.
Em seu lugar estava a mulher que tinha conhecido aquela noite:
contrariada, reservada, digna. Uma mulher que guardou a compostura até que
a pressionou muito. Então se vingou com beijos.
Uns beijos condenadamente deliciosos.
Escrutinou com o olhar o escuro caminho que tinha ante ele e as
serpenteantes colinas a seu redor e se sentiu, como sempre, orgulhoso. Aquela
era sua propriedade, suas terras, seu título.
O tipo de honras que durante gerações sua família lhe negara, apesar de
todos seus esforços.
E agora, devido a uma série de acidentes - acidentes dos quais ele não era
responsável, apesar do que suspeitassem os criados - o destino o tinha
brindado com todas aquelas deferências.
E a única coisa em que Dougald pensava era em Hannah, acima em uma
câmara não muito longe da sua.
A alojou ali de propósito. Queria-a perto para poder ameaçá-la,
surpreendê-la despreparada, obrigá-la a compartilhar suas noites insones.
Agora, por ironias do destino, era ele quem não podia dormir.
Se apoiando na sela de montar, pôs o corcel a galope, com a intenção de
fugir da tentação - supôs ele, - com a intenção de evitar a lembrança do corpo
de Hannah, nu debaixo do dele, e se perguntar que mudanças teriam causado
os anos.
Com a intenção de escapar a urgente ideia de que ela teria ido a sua
cama... essa noite.
Lhe devia um herdeiro ao que legar a fazenda, e o daria, mas ainda não.
Não vivera todos aqueles solitários e frios anos desatendendo os murmúrios
que o acusavam de "assassino", tentando ignorar às mulheres que
estremeciam a sua passagem, ouvindo as balbuciantes desculpa de seus
sócios por não poder lhe convidar a suas casas, sem tramar um plano para
acertar as contas com sua errante esposa. Todo aquele palavrório sobre as
alternativas não fora mais que isso: palavrório.
Divórcio; se atreveu a lhe falar de divórcio. Não teria divórcio nem
tampouco crime. Não, isso teria sido muito fácil.
Mas uma reconciliação? Talvez pudesse se chamar assim. Não havia lugar

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a dúvidas que ele tentou conservá-la. Mas na verdade a usaria, tal como seu
pai lhe havia dito que teria que usar a uma mulher, sem amor, sem paixão,
para procriar.
E Hannah, a ardente, impulsiva, entusiasta Hannah, a garota que sonhara
pertencer a uma família... essa Hannah se sentiria muito desgraçada.
Tão desgraçada como ele fora durante os últimos nove anos.
Não podia esperar.
Se enfureceu tão quando, aos seis meses de se casar, Hannah fugiu dele.
Fugiu dele como se fosse uma espécie de monstro. Conhecia homens que eram
piores maridos do que ele jamais chegaria a ser.
Homens que negligenciavam suas esposas, que gritavam com elas, que
lhes batiam. E ele, que fora bom com aquela mocinha, se converteu no bobo
de seus colegas empresários. Logo... logo o acusaram de tê-la assassinado.
Que ressentimento lhe produziu! Essa estúpida donzela dela apregoou que
brigaram antes que Hannah desaparecesse.
Claro que brigaram, e o que? Ele nunca a teria matado. Nunca lhe teria
feito dano, nem teria posto a mão em cima dela em um arrebatamento de ira,
por muito que ela tivesse posto a prova sua paciência.
E depois, sempre a punha a prova o chamando mentiroso, exigindo que
cumprisse suas promessas. Como se ele fosse permitir que sua esposa
trabalhasse! Lançou-lhe uma diatribe6 quando pensou nas falações que isso
levantaria.
Agora sabia que havia coisas piores que as falações.
O caminho serpenteava para o Presham Crossing e mais à frente, para o
mar, e ele o seguia como sempre fazia nas noites em que as lembranças e a
frustração o tiravam da cama.
Nunca pensou que viveria sob a sombra da suspeita durante tanto tempo.
Pensou que encontrariam facilmente à menina com a que se casou e só temeu
que lhe fizessem algum dano ou que, em sua inocência, se aproveitassem dela.
Mas em lugar disso, se desvaneceu. Qualquer rastro dela se desvaneceu,
salvo uma única carta.
Esteve muito preocupado. Procurou por toda parte. Contratou detetives e
foi às nuvens contra Charles. Nem o menor rastro dela até... até que chegou
aquele cheque.
Naquela época estava tão acostumado a que seus criados e seus colegas
tivessem medo dele que já não se importava. Se converteu em um solitário
contumaz, frio e disciplinado, em um homem como seu pai.
Sobretudo se deu conta da necessidade de montar uma armadilha com
muita sutileza. Temia que Hannah saísse correndo, que descobrisse suas
verdadeiras intenções, pois se a moça sem um tostão nem um amigo fugira
dele, que não faria a mulher já adulta?
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Discurso ou escrito violento contra pessoas ou coisas

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Tinha contatos. Dougald sabia tudo a respeito deles. Sabia que a rainha
Vitória concedeu seu favor à Distinta Academia de Instrutoras.
Sabia tudo a respeito de seus amigos, tudo a respeito de sua situação
financeira, o nome de sua costureira e o número de seus sapatos. Porque
queria vingança.
Não porque a quisesse. Já não lhe tinha carinho. Não como marido, nem
como amante, não; o tempo e a distância tinham obtido seu objetivo.
Compreendeu isso quando recebeu seu dinheiro. Olhou o cheque e se deu
conta que chegara o momento.
O momento que esperara tantos anos. O momento em que ela se pôs em
suas mãos. E manteve a calma sem que nada o fizesse explodir, sem que a
paixão corresse por suas veias. Manteve a calma, a calma mais absoluta.
Salvo a noite. Salvo em sonhos. Salvo quando seus pensamentos o
tiravam da cama e o obrigavam a cavalgar sem descanso, como estava
fazendo essa noite.
Maldita mulher! Não se dava conta que agora tocava a ele se vingar dela?
A ele, não a ela.
Não tinha direito de beijá-lo, de atormentá-lo com a fragrância de seu
sinuoso corpo, o brilho de seu cabelo claro e dourado, a exigência de seus
acetinados lábios. Era ele quem tinha direito a atormentá-la.
Mas o conseguira?
Tinha-a em um punho, isso sabia. Não podia ir embora. Fizesse o que
fizesse, não podia ir. Não até que descobrisse a verdade sobre si mesma, sobre
sua procedência e sobre sua gente.
Esteve procurando aquela informação toda sua vida e ele tinha o poder de
dar-lhe.
Mas não o faria, ainda não. Não até que ele tivesse obtido o que queria
dela.
E o que queria era vingança.
Sem dúvida ela a devia.
Ao notar Dougald abstraído, o corcel mordeu o arreio. Dougald puxou as
rédeas, controlando-o com os joelhos e as mãos enluvadas. As pessoas da
propriedade esperavam que o senhor de Raeburn cavalgasse como um
centauro enlouquecido e não ia decepcioná-los. Na realidade, suspeitava que já
superara suas expectativas, graças a Deus. Já tiveram muitos sustos quando o
último senhor caiu pela escada e o penúltimo foi achado no fundo de um
escarpado marinho.
Pobres tipos! Nenhum dos dois pôde deixar o álcool.
Em qualquer caso, um mero cavalo não podia desafiar a autoridade de
Dougald; durante nove longos anos ninguém desafiara sua autoridade.
Dougald levantou sombriamente o olhar para o aveludado céu negro.
Todo mundo o conhecia como o homem que assassinara sua esposa,

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assim nunca lhe diriam que não, por medo que lhes proporcionasse o mesmo
trato.
Hannah era a única que não se enrugava ante ele. E motivos não lhe
teriam faltado se tivesse se precavido da escrupulosidade com a que tramara
as represálias, do esmero com o que planejara a vingança, e do modo em que
os anos gelaram sua raiva.
Em lugar disso, o beijara.
Sentiu uma tensão na entreperna só de pensar. Depois do inferno pelo que
o fizera passar, se atrevia a lhe beijar.
Dougald tinha vontade de gritar a voz em pescoço, mas esse já não era
seu estilo. Em lugar disso, deu rédea solta ao cavalo e galoparam pelo tortuoso
caminho que conduzia ao mar.
O ar clareou sua cabeça, o exercício fez que o sangue fluísse com brio por
suas veias, mas os demônios que o guiaram durante tantos anos viajavam com
ele. Sempre estavam com ele.
Quando coroou a colina que sobressaía sobre o Atlântico pôs o cavalo a
passo, cavalgou pelo atalho que serpenteava entre as rochas da praia e logo
voltou a subir até se internar entre prados e árvores balançadas pelo vento.
Em sua juventude, os demônios o dominaram. Em todos aqueles anos
aprendera a combatê-los. Bebera, frequentara rameiras, quase morrera.
Mas não foi ele quem morreu, a não ser seu pai.
Dougald nunca voltara a se permitir liberar a seus demônios.
Entretanto, aquela noite Hannah, com seus seios turgentes, sua figura
erguida e atitude provocadora, ameaçava deixá-los soltos. Maldita mulher!, se
supunha que não devia acontecer daquele modo.
Sua avó a escolhera, disse a Dougald que seria uma boa esposa e ele
acreditou. Hannah não era mais que uma menina então.
Que mais dava a ele, se ao mesmo tempo estava tentando aprender o
negócio de seu pai e o proteger de seus rivais que o teriam arrebatado?
Quando Hannah teve idade de merecer, já se acostumara à ideia. Não via
nada mau no acerto e, na realidade, gostava da ideia de ter uma esposa que
não requeresse mais resposta dele que a indiferença.
Pensou, louco dele, que Hannah entenderia as vantagens da união e a
aceitaria com submissão.
Em lugar disso lhe expôs um desafio.
Meu deus!, algum dia poderia esquecer a primeira vez que fugiu dele?
Ainda melhor foi o que ocorreu depois...

—Nunca a beijaram - disse Dougald. Não o perguntava, sabia. Deduzia


pelo assombro de Hannah, pelo modo em que seus grandes olhos castanhos
percorriam o vagão como se pudesse achar as respostas nele.
—Não acredito que isso tenha importância. - Ela umedeceu os lábios. -

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Agora deveria me levantar.


Com grande cuidado e carinho, reteve os braços dela. Era tão inocente ao
propor educadamente que a permitisse se levantar quando devia estar
gemendo como uma alma penada.
Não compreendia que ao fugir atraíra sua atenção e desafiado seu instinto
de posse. Quando caiu na conta, já era muito tarde para ela.
—Mas quero te beijar. Quero ser o primeiro. - Deslizou os lábios sobre os
olhos de Hannah para fechá-los. - Me deixe te beijar, ao menos.
Ela negou com a cabeça. Mas Dougald alcançou sua face com os lábios e
os pressionou contra a comissura da boca de Hannah, os lábios e ao redor
deles, tentando-a, seduzindo-a.
Tinha uma pele de veludo, nunca havia tocado uma pele tão suave e se
deleitou na sensação. Inclinando o rosto, apertou os lábios contra os dela, de
uma maneira tenra e amorosa, e o recompensou quando relaxou com um
suspiro.
Que doçura! Tenra, delicada, complacente! Era perfeita para ele. Tocou a
boca dela com a língua. Aquilo a surpreendeu e Hannah deu um salto, ele a
acariciou outra vez com os lábios fechados para infundir confiança. Tomando a
dianteira, deslizou a língua sobre seu lábio superior e ela abriu mais os olhos
como se não soubesse o que pensar, enquanto punha as mãos nos seus
ombros e o rechaçava de um tranco.
Ela acariciou a pele nua com dedos complacentes, de repente ela deixou
cair rapidamente as mãos e voltou a cabeça a um lado.
—Quer fazer o favor de voltar a vestir a camisa? - disse severamente.
—Sim, vestirei isso. - A agarrou pelo queixo e voltou a cara dela para ele. -
Quando tivermos acabado, - voltou a lhe beijar os lábios.
E ela mostrou seu caráter desafiante levantando a boca para a sua e
mordendo um lábio.
Dougald retrocedeu de um salto e deu uns leves toques na ferida.
—Bruxa!
Ela se apoiou sobre um cotovelo e examinou ansiosamente seu rosto.
—Tenho-te feito dano?
—Sim. - se aproximou tanto que suas bocas quase se roçaram. - Terá que
aprender a beijar melhor.
Hannah baixou o olhar, as covinhas da cara tremeram e se pôs a rir.
Ele recapturou sua boca e a deitou de costas, e desta vez o deixou beijá-la
sem inibição. Dougald se movia devagar, tocava seus dentes, tocava sua
língua com suaves toques da sua, deixando que ela o provasse...
Se pudesse distraí-la, leva-la de um extremo do prazer a outro, poderia
mantê-la afastada de sua moral e de suas dúvidas. Seu beijo a cativou tanto
que não se deu conta de que ele desabotoava a blusa.
Era tão fácil como roubar os caramelos de um menino. E tão difícil de uma

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

vez, pois não podia afastar a mente do urgente impulso de penetrá-la. Maldita
mulher!, não sabia o que lhe estava fazendo com sua encantadora inépcia?
Não, claro que não sabia.
Ela notou o que suas mãos impacientes conseguiram. Tentou voltá-lo para
rechaçar de um empurrão. E de novo rompeu o contato de repente, se
comportando como se o mero fato de tocar sua pele nua a queimasse.
Ele esperava que ardessem juntos.
Olhando aos olhos castanhos e delicados fez o que pôde para hipnotizá-la
com voz amável.
—Eu gostaria que me tocasse. Sua carícia é um prazer. Me acaricie e me
porei a ronronar... me toque como eu toco a você.
Abriu-lhe a camisa mostrando-a ao ar e à luz do sol, e viu pela primeira
vez seus seios perfeitos.
Ela tentou sair correndo, mas ele não podia permitir. Naquele instante já
não. Passando uma perna por cima dela, imobilizou-a enquanto a olhava. Não
podia deixar de olhá-la. Deus santo, que seios!
Nasciam em seu torso como suaves e cremosos montículos, pálidos,
deliciosos... dele. Acariciou levemente a ponta do mamilo com a ponta de um
dedo.
Com um esforço feroz e desesperado, Hannah levantou as mãos para
contê-lo.
—Alguém pode nos ver!
—Não. - Ele deixou que o segurasse. - Olhe. Estamos atravessando Chat
Moss. Não há ninguém.
Era certo. Estavam passando pelo vasto pântano de turfa que tantos
problemas causara aos engenheiros da ferrovia, e tudo o que alcançava a vista
eram arbustos, moitas e uma árvore de vez em quando que se deleitava na
umidade.
—Estamos a salvo. - A agarrou pelos pulsos. - Agora observa, observa.
Se colocou em cima dela e começou a descer. Primeiro entrou em contato
com os mamilos de Hannah, que aninharam no crespo pelo que lhe cobria os
peitorais. Seu coração dava tombos de excitação. Desejava enrolá-la, sem lhe
dar nenhuma oportunidade... queria se fundir com ela, tomá-la naquele mesmo
instante. Sua mente o animava a fazê-lo.
Então se sacudiu quando os estômagos se juntaram apertadamente e
lutou contra todo aquele instinto feroz e masculino enquanto lentamente
aplanava os seios dela com seu peito.
Enrolá-la, sim. Não lhe dar nenhuma oportunidade, começar aquela
relação tal como queria que prosseguisse, sim. Mas não podia assustá-la nem
lhe fazer mal e, pela expressão de seu rosto, Hannah estava assustada.
Soltou as mãos dela e elas começaram a empurrar sem conseguir seu
propósito. Empurrou e empurrou até que ele a abraçou e acariciou seu cabelo

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que nascia na base do crânio.


Então se tranquilizou e descansou, aconchegada em seus braços, o
olhando à cara como se algo nela a tivesse fascinado.
Bem. Isso estava bom. Não pôde evitar sorrir e deve ter demonstrado
certa sensação de triunfo, pois ela baixou o olhar e se retorceu como se
quisesse escapulir. Ele a estava domando, tranquilizando-a com a mão, mas
via que ela sabia e se incomodava.
—Chist - sussurrou, embora ela não fizesse nenhum ruído.
—Como fez isto? - ela exigiu com beligerância.
Tinha-a acreditado uma menina, mas obviamente era uma mulher, pois
fazia uma pergunta e esperava uma resposta, embora não tinha nem ideia do
que estava falando.
—Como faz que perca os sentidos? - insistiu. - Não posso ouvir nem ver
nem cheirar quando me acaricia. Só posso acariciar...
Sua voz se extinguiu.
—E sentir? - perguntou ele então.
—Sim. - Ela voltava a sussurrar. - E sentir.
Centrando os olhos em seu rosto, riscou com um dedo vacilante a linha
que acentuava sua face, a cicatriz debaixo do olho, o veludo de sua boca.
—Já o averiguou, carinho? - perguntou Dougald.
—Sim. Sou uma desavergonhada - repôs com voz trágica.
—Não esperava menos de você - brincou.
Foi um engano porque imediatamente as pestanas dela se encheram de
lágrimas. Ele se acreditava tão preparado, mas esquecera que sua mãe fora
desgraçada por culpa de uma paixão, que Hannah vivera com aquela desgraça
cada dia de sua vida.
Ao lhe alisar o cabelo da testa, se maravilhou da suave textura de cada
mecha.
—É sensível - disse mantendo uma voz grave e persuasiva, - mas não
deve se envergonhar por isso. O alívio que encontramos na paixão é o mais
perto que podemos estar do voo do falcão peregrino. É tão formosa, acaricia
meu coração e minha mente.
Vi o dano que faz um marido desconsiderado em um casamento. Confiaria
em mim? Eu cuidarei de você e te oferecerei meu compromisso incondicional.
Não a enganarei, nem física nem mentalmente. O casamento é para sempre,
um voto que terá que manter.
Seremos felizes. Tem muitas coisas para compartilhar comigo: seu
encanto, sua diplomacia, sua amabilidade... tudo isso complementará minha
vida.
—O que você compartilhará comigo?
Meu Deus, seu tom era queixoso! Acaso estava pensando? Estava
raciocinando? Ela era consciente da meticulosidade com a que planejara cada

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movimento, cada palavra?


Assim tentou chegar à alma dela com um beijo. Seus lábios se fundiram.
Ele a conduziu através de uma nova dança, uma dança que ela nunca dançara
antes, e ele se deleitou em sua sensualidade.
Hannah gemia em sua boca e tinha gosto de maçã de outono e do centeio
do estio, e de Hannah. Cada roce de sua língua o levava mais perto do prazer.
Em um momento de prudência pensou que estava fazendo mau. Se
ergueu um pouco se afastando dela e a contemplou de cima. Contemplou
aqueles olhos ternos de pomba, os lábios sensuais e úmidos, as faces
arredondadas. Não podia atraí-lo; ele era um adulto, ele era o homem. Mas se
não tomasse cuidado, ela o apanharia com a mesma certeza que ele queria
apanhar a ela. Isso seria horrível. Isso seria... impossível. Os homens não
amam, não como as mulheres amam.
Uma vez que tivesse capturado o coração de Hannah, a teria na palma da
mão. Assim era como se supunha que devia ser. Assim era como planejara.
Ela deve ter visto a consternação em seu rosto porque lhe perguntou:
—O que ocorre?
—Nada.
Não, estava fazendo tudo bem. Não podia falhar.

No céu brilhavam as estrelas. Os jaezes7 tilintaram e o cavalo soprou. O


atalho serpenteava e subia rodeando um pequeno arvoredo.
Dougald fizera tudo bem. Como qualquer moça, jovem, doce e inocente,
Hannah confundira a paixão com amor. Ele se aproveitara totalmente de sua
ilusão e alimentado diligentemente sua fantasia.
Só depois de se casar começou a suspeitar que ele não a queria. Ou
possivelmente pior, também tinha a suspeita que ela não queria a ele.
Mas agora Dougald voltaria fazer amor com ela e quando o fizesse... Crac!
Muito perto dele uma casca de árvore explodiu em milhões de lascas. O
que estava ocorrendo? Por quê? O que podia ser aquilo?
Dougald retornou bruscamente ao presente. O cavalo se encabritou.
Diabos! Alguém estava disparando nele. Demorou uns breves instantes em se
liberar do feitiço do passado.
Crac!
Outra bala rasgou o ar roçando uma orelha sua. Aproveitando o impulso
do animal, se jogou da sela e rodou pelo chão tentando se afastar dos cascos
que batiam.
Se ergueu um pouco e correu agachado, olhando para o chão, com a
camisa branca fora da vista de seus atacantes.
—Acertei! - ouviu um homem gritar.
Enquanto o corcel resfolegava e dava coices contra demônios invisíveis e
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Aparelho e adorno para bestas.

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logo corria a galope para o castelo de Raeburn, Dougald escapuliu até o


pequeno arvoredo que estava junto ao atalho.
As raquíticas árvores eram finas e estavam modeladas pelo vento, ao
redor deles se estendia um prado ondulante e coberto de erva.
Não muito longe, o mar golpeava contra a costa amortecendo qualquer
outro som, mas à fraca luz das estrelas viu duas figuras que se separavam
entre as rochas e corriam para o lugar onde ele caíra.
Uma alta e outra baixa, nenhuma sustentava uma pistola, mas ambas
levavam capotes com amplos bolsos.
O Dougald briguento sabia que podia vencê-los, mas o Dougald realista
reconheceu a horrível verdade. Alguém estava disparando, nele, no senhor de
Raeburn.
Zombara quando Charles lhe contou que os criados cochichavam histórias
de sabotagem e assassinato, mas agora não acreditava que aquele ataque
fosse uma coincidência.
Alguém tentava matar ao senhor de Raeburn e o senhor de Raeburn era
ele.
Os homens inspecionaram o chão e, cada vez mais indignados, se
aproximavam das árvores.
Ao final, um deles se levantou.
—Não está aqui! - exclamou.
Dougald sorriu enquanto aparecia de improviso atrás deles.
—Sim, sim está.
Enquanto se voltavam com dificuldade, os agarrou pelos cabelos e fez
chocar suas cabeças. Quando seus crânios se golpearam começaram a uivar.
Um caiu. Agarrou o outro pelo tosco casaco e o levantou até pô-lo nas pontas
dos pés.
—Que demônios estavam fazendo? Por que me disparavam?
Então outro homem, oculto a seu lado na paisagem sombria e revolta,
bateu nele, Dougald caiu ao chão amaldiçoando quando um após o outro
saltaram sobre ele.
Deveria ter recordado: se assegure sempre de suas possibilidades antes
de empreender uma briga.

Capítulo 10

Quando Hannah descia a escada para a sala do café da manhã, seus


músculos doíam e seus olhos ardiam; era o resultado do dia anterior, longo e
cheio de acontecimentos inesperados. Ao menos essa foi a explicação que deu
a si mesma. Por não falar da noite insone passada sonhando com demônios

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que se convertiam em Dougald e a sua vez a caçavam enquanto as chamas do


inferno lambiam seus calcanhares.
"Fora tão estúpida"; ontem ao se deixar apanhar, e anos atrás quando a
mocinha Hannah se convenceu que amava Dougald porque a seduzira, e
porque ela desejara que a seduzisse.
Agarrada à curva do corrimão franzia raivosamente o cenho.
Toda a sabedoria que tanto custara adquirir no mundo não servira para
nada. De nada valera o que lhe aconselhava sua mente nem que ao refletir
sobre a jovem Hannah de outros tempos se compadecesse de sua crença de
que paixão equivalia a amor e de que os homens sempre cumpriam suas
promessas, porque quando estava com Dougald?
—OH, formosa donzela que iluminou a manhã!
Hannah lançou uma exclamação e quase tropeçou no último degrau
enquanto um presunçoso saltava com delicadeza de seu esconderijo atrás da
escada. Um cavalheiro de uma idade incerta, embelezado à última moda de
Londres, sustentava uma rosa amarela que lhe oferecia com um floreio.
—Senhor, me parece que não nos conhecemos - disse em seu tom mais
glacial, apertando a mão contra o coração, que pulsava apressadamente.
—Não, claro que não! Me atrevi porque queria comprovar que a
informação era certa.
Quem era aquele almofadinha, quase três centímetros mais baixo que ela,
com lustrosas botas de salto alto, que tomava semelhantes liberdades com a
cortesia? De que informação falava?
—Que a mais bela das damas se alojava sob o nobre teto do castelo
Raeburn.
Hannah ficou olhando para ele. Acreditava que semelhante adulação ia
fazer ela perder a cabeça? Sabia muito bem o aspecto que tinha aquela
manhã. Usava um vestido de algodão azul apagado, com as mangas adornadas
com um discreto babado de renda. Tinha posto seu colar branco mais simples
muito curto ao redor do pescoço e, depois de certo debate interno, atara um
avental à cintura.
Era uma estupidez acreditar que com semelhante vestimenta dissuadiria
Dougald, mas Hannah gostava de acreditar que tinha o bom senso de se vestir
com discrição.
—Ah! Estará se perguntando quem sou eu. É possível que meu novo primo
nem sequer lhe tenha mencionado minha existência? - O estranho levou o
dorso da mão a testa, a mim que sou seu herdeiro.
Aquele era o herdeiro de Dougald? O inspecionou com mais atenção.
Vestia calças de lã com xadrez marrons e azuis com um fino fio amarelo, um
colete xadrez combinando, uma larga gravata de laço segura com um alfinete
de ouro com um diamante. Os punhos e o colarinho do casaco marrom eram de
veludo cobalto intenso combinando com seu melhor traço: uns formosos olhos

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azuis emoldurados por longas pestanas que conseguia lhe imprimir uma
melancolia que teria sido o orgulho de Byron. Por desgraça não tinha a
cabeleira de Byron. Pelo contrário, o cabelo castanho crescia comprido sobre
um lado e alguém, provavelmente seu avantajado ajudante de quarto, o
penteara por cima da cabeça para tampar uma clareira na qual apareciam
partes de pálida pele entre as mechas condensadas.
Hannah fingiu não se dar conta.
—Você? vive aqui?
—Sim. - Hannah inspecionou a rosa que ainda segurava nas mãos e
percebeu que não a escolhera por sua beleza, mas sim porque combinava com
o fio amarelo de seu colete xadrez.
—Quando não estou em Londres, faço do castelo Raeburn meu lar.
—Peço desculpas por minha ignorância, senhor - sorriu Hannah.
Cada vez era mais consciente das vicissitudes que afligiam Dougald em
sua nova situação. Embora temia que seus sentimentos a condenassem, se
deleitava na calamidade de Dougald. Sempre fora tão ambicioso, ele e sua
família; ao herdar aquele patrimônio deve ter acreditado que conseguira todas
as suas metas, mas entre as anciãs damas, o herdeiro e sua própria esposa,
sem dúvida a herança o engasgara.
Dougald não podia nem imaginar, mas ela sim. E de fato assim o
imaginara mais de uma vez em seus melhores sonhos.
—Temo que ninguém me explicou que você residia aqui.
—Se me permitir a ousadia de me apresentar a mim mesmo: sou Seaton
Brackner, barão Onslow, filho do irmão mais novo do décimo segundo conde e
primo em quinto grau do atual lorde Raeburn.
Ela fez uma reverência.
—Senhorita Hannah Setterington, senhor. Vim ser dama de companhia da
tia de sua senhoria, que deve ser também a sua, presumo.
—Então a informação é certa. - Voltou a se inclinar ante ela e lhe estendeu
a rosa. - A mais bela das damas veio morar aqui.
Hannah aceitou solenemente a flor.
—Você me adula, senhor, mas sou muito prudente para deixar que me
faça perder a cabeça. Considerarei que seu interesse se deve só ao
aborrecimento de um londrino em suas atuais circunstâncias rurais.
—Suas palavras são desencorajadoras, - ofereceu-lhe o braço e ela posou
a mão em sua manga.
—Em troca você me resultou cativante, mas acredito que nunca se olhe ao
espelho ou se convenceria que minha adulação é sincera.
Hannah retificou seu primeiro julgamento. O senhor Onslow não era um
completo almofadinha, a não ser um resplandecente urbanita que sofria o
aborrecimento do campo, provavelmente devido a motivos econômicos.
Também era, decidiu ela, sua maior fonte de distração naquela situação

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insustentável.
—Aonde me leva, senhor?
—Meu primeiro pensamento foi ir para a sala do café da manhã, mas se o
prefere, bela dama, mandarei trazer meu corcel, a levantarei sobre a sela de
montar e a levarei longe do tédio da vida comum.
Hannah lhe olhou a calvície e ao vê-la claramente, pensou que a
possibilidade que ele a levantasse a algum lugar parecia bastante improvável.
—A sala do café da manhã parece tentadora - embora Dougald sem
dúvida rondaria por ali.
Sir Onslow respirou pesadamente.
—Como tantas outras jovens damas, você carece de imaginação.
—Não é que careça de imaginação, é que possuo uma forte praticidade.
E seguro que se se inteirava de que tentava fugir do castelo Raeburn,
Dougald a caçaria rapidamente. Não queria implicar nenhum homem em uma
disputa entre ela e seu marido; alguém poderia sair maltratado e esse alguém
nunca seria Dougald.
Ela e sir Onslow cruzaram a longa e ampla galeria que discorria da escada
para o grande salão.
—Então conheceu às tias. Ou deveria dizer? a tia Spring e suas
companheiras. Pelo modo em que me repreendem, também poderiam ser
minhas tias.
Seu abatimento a fez sorrir.
—As conheci ontem à noite.
—E o que opina?
—São umas damas encantadoras e estou segura que será um prazer
cuidar de tia Spring.
—Que discreta é você! - Parecia desconsoladamente contrariado, mas se
alegrou. - Sempre acredito que as tias são como uma pequena matilha de
terriers, dando voltas e mordiscando, saltando e reclamando atenção.
Hannah reprimiu um sorriso.
—Não são uma matilha, senhor. Têm personalidades muito diferentes.
—Sim, claro! Personalidades muito diferentes, mas consideradas em
conjunto são umas intrometidas, sentenciosas, benévolas sabichonas.
—Parece amargurado.
—Absolutamente. Eu também as adoro. E quem não? - Soltou um suspiro
teatralmente longo. - Eu só gostaria que tivessem um pingo de maturidade
entre todas elas!
Pelo que pudera observar a noite anterior, não tinha mais remédio que
estar de acordo com ele, as tias diziam o que pensavam e o que pensavam
com frequência não se podia repetir em voz alta.
Seus comentários sobre ela e Dougald foram críticos, e sua intuição ainda
mais. Na noite anterior se alegrou de deixar Dougald e se sentar com as tias

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em sua salinha, onde ria e assentia enquanto conversavam, e ao final teve que
alegar que estava exausta para que a senhora Trenchard pudesse acompanhá-
la até sua apertada, fria e pobre habitação.
Dormiu muito mal e sonhou com Dougald.
O corredor parecia muito diferente durante o dia com a luz do sol que
entrava por uma fileira de janelas que se abriam a um dos lados. Hannah não
vira as janelas na noite anterior, nem tampouco compreendia por que o castelo
se rendia para dentro para permitir janelas em semelhante lugar, mas todos os
edifícios antigos que visitara tinham alguma excentricidade.
—O castelo Raeburn é um lugar interessante - observou.
—Um maldito e velho montão de pedras - repôs sir Onslow. - Mas é nosso
montão de pedras e o amamos.
—Vejo que lorde Raeburn está fazendo reformas - comentou apontando a
porta apoiada contra a parede e o rumor das vozes dos trabalhadores.
—Lorde Raeburn é um bárbaro sem nenhum sentido da história - disse sir
Onslow com desdém . - E o que é pior, não arrumará meus aposentos até que
não tenha acabado com os seus.
Mas que se pode esperar de um bruto que matou sua esposa? - A
observou com atenção esperando ver sua reação.
Hannah era consciente do forte desejo que sentia de esbofeteá-lo. Em
lugar disso, se deteve e se armou de seu mais firme e desaprovador olhar de
instrutora.
—Você sabe ou está difundindo rumores sem fundamento?
—São rumores, é obvio! - Era óbvio que sir Onslow não sentia o mínimo
arrependimento. Minha querida senhorita Setterington, sou desses homens aos
que alguém convida para jantar para comentar os rumores.
Um homem de minha posição ou sabe contar anedotas e intrigas ou não o
quer ninguém.
—Ah! - A desaprovação de Hannah cedeu um pouco.
Tinha toda a razão. Quando assistia a um jantar, ela preferia se sentar ao
lado de um homem assim e não ao lado de um daqueles cavalheiros
eternamente aborrecidos e imensamente circunspetos que lorde Ruskin
considerara aceitáveis para uma dama solteira.
Bom. Já não teria que se preocupar nunca mais por isso.
—Não obstante, senhor, me parece muito descortês por sua parte o fato
que se beneficie da hospitalidade de lorde Raeburn e o difame de uma maneira
tão maliciosa.
Sir Onslow sorriu e se poliu.
—Fiz a Dougald um grande favor. Antes que chegasse aqui só uma
pequena porção da Inglaterra conhecia sua história: que era um rufião em sua
juventude, que escapou de sua casa porque seu pai o odiava, que vagava sem
rumo pelas ruas para pegar e roubar.

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Hannah também ouvira aquilo antes, embora fosse um rumor que se


sussurrava as costas de uma jovem esposa. E cada vez que perguntava a
Dougald a respeito de semelhantes contos, ele a distraía ou não fazia nenhum
caso.
Essa era outra parte de sua vida que não a permitira compartilhar.
Sir Onslow prosseguiu.
—Contei que Dougald se reformou porque amava a sua jovem esposa, que
brigaram e o ameaçou abandonar, e que em um ataque de ira ele declarou que
se não ficasse para viver com ele, morreria.
Um calafrio percorreu a coluna vertebral de Hannah. O dramatismo de sir
Onslow estava muito perto da realidade.
—De modo que a assassinou e jogou seu cadáver aos lobos, e após chora
sua morte. - Sir Onslow piscou com prazer.
—Difundi o conto por toda parte e Dougald é agora um homem cheio de
mistério, fortuna e paixão desde a Escócia até a Cornualia. Deveria me estar
agradecido. Dei-lhe fama.
O aroma de pão recém assado chegou até Hannah.
—E o está agradecido?
—Provavelmente não, mas já disse que é um bárbaro.
Hannah se pôs a rir. Não pôde evitar. Tinha uma voz graciosa e um
engenho que resultava refrescante depois do opressivo desejo de vingança de
Dougald.
—Viveu sempre aqui? - perguntou enquanto caminhavam.
—Minha mãe insistiu. Disse que era minha herança e, claro, aos nobres de
pouca estirpe os impressiona quando me refiro a mim mesmo como Sir Onslow
do castelo Raeburn.
—Sorriu ao quadro de seu antepassado que pendurava da parede.
—De modo que o repito frequentemente.
Hannah fez girar a rosa na mão enquanto ria do tom de reprovação que
empregava consigo mesmo.
Sobressaltada por um ruído de passos que retumbavam atrás deles,
Hannah se voltou para ver Charles, sem barbear, despenteado, com os olhos
injetados em sangue e fixos nela, correndo como um homem que tivesse uma
missão.
—Madame, suplico que me permita falar com você uns minutos?
—Que pressa mais pouco elegante, bom homem! - Sir Onslow tirou um
lenço da manga e o ondeou em direção a Charles. - Trouxe com você uma
baforada francesa de alho.
Charles se deteve ao ver pela primeira vez o braço de Hannah sobre a
manga de sir Onslow. Seus lábios já enrugados se franziram ainda mais e
baixou a cabeça.
—Madame?

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—Ela é a senhorita Setterington para você - disse sir Onslow.


A boca de Charles trabalhava enquanto ficava olhando fixamente. Sabia
muito bem seu nome, odiava que o corrigissem e odiava especialmente que o
corrigissem quando sabia perfeitamente que tinha razão.
Hannah desfrutou ao vê-lo perturbado.
—Senhorita Setterington, esperava que você me acompanhasse até onde
se encontra lorde Raeburn; o senhor precisa de você - disse Charles se
rendendo, mas resmungando.
Ah, de modo que Dougald não estava ainda na sala do café da manhã!
Não precisava se preparar para vê-lo. Ainda não.
Charles sempre era o criado que ia em busca dela quando Dougald queria
que lhe fizesse o nó da gravata, costurasse um botão qualquer outra tarefa tola
e inútil que ele considerava aceitável para que a realizasse uma esposa. A
lembrança a fez ficar muito erguida.
—Lorde Raeburn mandou me chamar? - perguntou muito estirada.
—Claro que não a mandou chamar! - Sir Onslow ficou nas pontas dos pés
de indignação. - Nenhum cavalheiro requereria a presença de uma dama antes
do café da manhã!
Hannah não fez conta.
—Mandou me chamar, Charles?
Charles lhe lançou um olhar fulminante.
—Não exatamente, mas eu não posso? em troca ele precisa? espero que
você?
Hannah não sabia o que Charles esperava, mas o escutava gaguejar, em
espera de uma explicação e sabendo que não podia dizer o que queria, que
era: "Não é próprio de uma mulher questionar as demandas de seu homem."
Ah, ver Charles mordendo a língua podia converter seu horrível apuro na
maior das delícias!
—Obrigado - respondeu com um sorriso, um sorriso tão gelado como o
olhar fulminante de Charles. - Mas temo que devo concordar com sir Onslow.
Se lorde Raeburn "exatamente" não mandou me chamar, então esperarei
até depois do café da manhã para falar com ele.
Charles ficou plantado, rígido, incrédulo, enquanto sir Onslow fazia um
gesto para a porta.
—Por aqui. - Enquanto passavam na frente de Charles, sir Onslow disse em
voz o bastante alta para que este o ouvisse: - Malditos afrancesados, se dão
ares e não têm nem ideia do que são as maneiras!
Hannah não olhou para Charles, mas pôde imaginar como um homem que
acreditava em si mesmo o arauto da civilização francesa no baldio da
sociedade inglesa reagiria ao ouvir que o chamavam afrancesado, e ao
imaginar isso sentiu um imenso prazer.
Ela e sir Onslow passaram por uma pequena sala vazia que só continha

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uma delicada mesa de jantar redonda, perto da janela.


—Esta é a sala de jantar menor - explicou ele. - Aqui se serve a refeição
quando assistem quatro ou menos convidados. Quer dizer: nunca. A
hospitalidade de lorde Raeburn é de tudo hospitalar.
Aqui estamos, senhorita Setterington, a sala do café da manhã.
Hannah se guiou pelo olfato até a seguinte sala. O rico e salgado aroma de
panqueca, salsichas e arenques defumados circulava pelo ar, e atrás dele
estava o aroma torrado de pãezinhos e madalenas.
Ao entrar na sala de jantar de painéis escuros viu uma grande mesa que
bem teria acomodado a duas dúzias de convidados com os pratos fumegantes
sobre um aparador e a sala cheia de criados atarefados e anciãs que ingeriam
uma surpreendente quantidade de comida.
—Aqui estão - disse tia Spring. - Eu disse que viriam juntos. - E depois de
olhar a sir Onslow entrecerrando os olhos acrescentou: - Bom, você não, claro!
—Obrigado, tia. - Sir Onslow indicou dois assentos vazios entre a senhorita
Minnie e tia Ethel. Separou a cadeira para Hannah enquanto perguntava: - A
quem esperavam?
—Acredito que pensava que o querido Dougald traria a senhorita
Setterington até aqui. - Tia Ethel sustentava o garfo sobre um montículo de
ovos mexidos e arenques defumados.
—Ontem à noite pareciam estar muito enfrascados.
—Será que seu interesse já mudou? - perguntou tia Isabel a Hannah. -
Porque não deveria; Seaton é um moço encantador, mas é mais pobre que um
rato de igreja e seu título mal tem uma geração de antiguidade.
—Obrigado, senhora.
O rosto de sir Onslow mostrava a mesma expressão afligida que Dougald
quando precisava fazer frente às tias. Sentado ao lado de Hannah, levantou um
dedo.
A senhora Trenchard abandonou sua posição junto à mesa auxiliar e se
apressou a ir para eles.
—O que posso fazer por você, sir Onslow?
Este moveu uma mão negligente para Hannah.
—O que gostaria de tomar no café da manhã, senhorita Setterington?
—Chocolate quente, por favor, senhora Trenchard.
Talvez o chocolate lhe curasse a dor de cabeça que a menção do nome de
Dougald provocara.
—É muito cedo para o álcool, tomarei chá - disse sir Onslow.
A senhora Trenchard lhe sorriu carinhosamente e se afastou pressurosa
para transmitir seu pedido a uma garçonete.
Sir Onslow se inclinou se aproximando de Hannah.
—Hei aqui um personagem interessante.
Hannah seguiu seu olhar.

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—A senhora Trenchard?
—Sim, vem de uma antiga família de criados devotos. A mãe de tia Spring
morreu de parto, assim contrataram à mãe da senhora Trenchard como ama de
leite e nunca mais se foi. Até o dia de sua morte esteve ao lado de tia Spring, a
protegendo de algo desagradável que pudesse aparecer em sua vida, e educou
à senhora Trenchard para que fizesse o mesmo. É muito raro ver as duas, a tia
Spring tão feliz todo o tempo e à séria senhora Trenchard correndo atrás dela
para comprovar que se encontra bem a menor oportunidade.
Aquilo explicava o interrogatório da noite anterior.
—Então me trouxeram para substituir à senhora Trenchard?
—Em certo modo podíamos dizer assim. Ela é também a governanta, mas
não abandonará facilmente suas responsabilidades.
A senhorita Minnie ao que parece decidiu que já conversaram bastante em
voz baixa, pois dirigiu a ambos um olhar implacável.
—A comida está aqui. Você sirva a si mesma, senhorita Setterington.
Deixemos de cerimônias pela manhã - disse com voz ensurdecedora.
—Obrigado, senhora. Acabo de me dar conta que a viagem me tem aberto
o apetite.
Hannah foi ao aparador e observou tal variedade de comida que se
alegrou muito. Em nenhum lugar se comia melhor que em uma casa da
campina inglesa, e sem dúvida ia dar boa conta daquele banquete, sobretudo
quando Dougald não estava presente.
Sir Onslow a seguiu e esfregou as mãos ante a expectativa. Aquilo e o
brilho de seus olhos ao contemplar o montão de bolinhos recém feitos
explicavam a curva de seu estômago, que desafinava com a lisa silhueta de
sua sobrecasaca.
Com um garfo de servir, Hannah começou a se servir salsichas no prato.
—Se esta jovenzinha se propõe flertar com todos os cavalheiros do
castelo, muito em breve lhe encontraremos marido - declarou tia Ethel em uma
voz doce e insinuante.
Hannah esqueceu a salsicha e o garfo golpeou contra a porcelana com um
estalo.
—Querida, esteve flertando com Seaton? - opinou tia Spring.
Hannah não podia olhar para sir Onslow.
—Mas se estava beijando Dougald.
—Já? - sir Onslow parecia encantado, o fofoqueiro tinha uma nova intriga.
Hannah simulou não ouvi-lo. Ele era o menor de seus problemas.
A senhora Trenchard lhe dirigiu um olhar escandalizado e fez um gesto aos
criados, que começaram a tossir, para que abandonassem a sala de jantar.
Casamenteiras. As tias eram umas casamenteiras. Na experiência de
Hannah os casamenteiros eram um problema, pois manipulavam suas vítimas
até que conseguiam seu objetivo: o casamento entre dois inocentes.

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Invariavelmente teve que evadir as armadilhas que a ela e a diversos


cavalheiros montaram casamenteiros de boa vontade. Teve que fazê-lo; os
casamenteiros não teriam hesitado em apanhá-la em uma situação
comprometedora e mais de um cavalheiro indicara sua disposição de cair
naquela intriga concreta com ela, mas ela não se sentira tentada.
Claro que não. Já estava casada.
O que ia fazer agora que as casamenteiras planejavam, de maneira pouco
sutil, enredá-la com seu próprio marido?
—Talvez não queira se casar. Talvez simplesmente queira ter umas
quantas aventuras. Depois de estar casada com o Irving, ter aventuras me
pareceu uma boa ideia - disse tia Isabel em tom reflexivo.
—Me pergunto se poderia despertar o interesse de algum homem por uma
aventura.
—Devem ser vários homens, se teve umas quantas aventuras - observou
tia Ethel.
—A senhorita Setterington é perfeitamente apta para se casar com
Dougald - declarou a senhorita Minnie.
—Bom dia - disse Dougald o bastante alto para se fazer ouvir entre o
bulício, mas imediatamente se fez um incômodo silêncio. Hannah pensou que
era sua presença sombria que empanava a frivolidade.
Hannah não queria olhá-lo, não queria recordar a loucura da noite anterior,
como se seus beijos fossem mais censuráveis que as ameaças e o engano de
Dougald. Mas estremeceu somente um momento antes de ficar muito rígida e
dirigir o olhar para ele. Então reprimiu uma exclamação.

Capítulo 11

Não foi a presença sombria de Dougald a que provocou que se fizesse o


silêncio, a não ser seu aspecto; tinha um olho arroxeado e completamente
fechado pelo inchaço, o lábio partido e volumoso, um machucado na face e
um galo na testa.
—Caí do cavalo - disse antes que a ninguém desse tempo de fazer um
comentário.
Mentira. Hannah já o vira com tal aspecto depois de uma farra que acabou
em murros uma noite, a véspera de São João 8; muita cerveja e a companhia de
8
são celebrações que acontecem em vários países historicamente relacionadas com a festa
pagã do solstício de verão, que era celebrada no dia 24 de junho, segundo o calendário juliano
(pré-gregoriano) e cristianizada na Idade Média como "festa de São João". Essas celebrações
são particularmente importantes no Norte da Europa — Dinamarca, Estônia, Finlândia, Letônia,
Lituânia, Noruega e Suécia —, mas são encontrados também na Irlanda, partes da Grã-
Bretanha (especialmente na Cornualha), França, Itália, Malta, Portugal, Espanha, Ucrânia,

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alguns velhos camaradas da época em que andava vadiando.


—Venha aqui, jovem - se dirigiu a senhorita Minnie em seu tom mais
severo.
Dougald caminhou capengante para ela crispando o semblante de dor a
cada passo.
Hannah afastou o olhar de seu rosto. Não podia fazer nada por ele. Aquele
não era seu papel. Ao olhar a seu redor viu as tias sacudir a cabeça ao
uníssono. A senhora Trenchard ficou em pé esfregando as mãos.
Da soleira, Charles olhava para Hannah como se o estado de seu amo
fosse culpa dela, e então compreendeu por que a procurara. Talvez pensava
que Dougald lhe faria caso e deixaria que curasse suas feridas.
Dougald nunca a teria feito caso. Charles sabia.
Dougald não merecia toda aquela comiseração. O muito estúpido se
encetou em uma briga!
Ela teria gostado de se levantar, apontar com o dedo e o repreender,
emplastar uma vendagem no olho e dizer que sua conduta era infantil e
desacertada.
E por que sir Onslow se reclinava sobre o aparador e sorria como um bufão
ante a figura capengante de Dougald? Não gostava desse barão. Não entendia
como pudera encontrá-lo divertido.
Agarrando suas mãos, a senhorita Minnie o examinou de cima abaixo.
—Se tiver caído do cavalo, Dougald, parece que aterrissou sobre os
nódulos.
Sir Onslow gargalhou com vontade.
A senhorita Minnie moveu rapidamente a cabeça para ele.
—De que ri você, jovem?
Influenciado por aquela justa indignação se serenou em seguida.
—De nada, senhora.
—Não me pareceu isso, - depois de o repreender, a senhorita Minnie se
dirigiu à senhora Trenchard. - Necessitaremos pomada e ataduras do armário
dos remédios.
A senhora Trenchard procurou entre as chaves de seu cinturão.
—Agora mesmo o trago, senhora - disse quando encontrou a chave correta
depois de fazer uma reverência.
Saiu a toda pressa deixando atrás de si um silêncio que tia Spring se
apressou a encher.
—Como é que o querido Dougald arranhou os nódulos ao cair do cavalo?
—Esteve brigando, Spring, querida. - Tia Ethel sacudiu a cabeça e seus
brancos cachos se balançaram. - Acreditei que nosso querido moço seria mais
hábil com os punhos.

outras partes da Europa, e em outros países como Canadá, Estados Unidos, Porto Rico, Brasil e
Austrália.

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Hannah endireitou as costas. Dougald era bom com os punhos. Ele mesmo
contou e ela o vira se pavonear transbordante de orgulho depois daquela briga.
Como fizera para sair tão maltratado?
O olhou com um pouco menos de aquecimento e um pouco mais de senso
comum.
Mas deliberadamente não ele prestou a menor atenção a ela. Coxeando
até a cadeira com braços, alta e lavrada, que estava na cabeceira da mesa, se
sentou com extremado cuidado como se lhe doesse muito.
—Não poderia estar melhor. - Desafiou com o olhar a qualquer um que o
refutasse.
Mas tia Spring pareceu não perceber.
—Por que brigou, Dougald? Nunca antes tinha brigado - insistiu tia Spring.
—Caí do cavalo - repetiu Dougald depois de sacudir o guardanapo.
—Brigou com seu cavalo? - brincou tia Isabel.
Dougald não lhe devolveu o sorriso. Certamente não podia fazê-lo com
aquele lábio partido. Hannah se serviu outro tenro pãozinho (como pensava
comer tanto?), e se dirigia a seu assento quando a senhora Trenchard
retornou, com as mãos cheias, quase correndo.
Charles fez gesto de se adiantar, mas a senhorita Minnie bramou:
—Dê as ataduras à senhorita Setterington. Veremos se sabe o bastante de
enfermaria para cuidar de nossa querida tia Spring.
—Eu não brigo a murros - objetou tia Spring.
—Mademoiselle Minnie, eu já me ofereci para curar as feridas do amo, e se
negou rotundamente. De modo que se ele - começou Charles.
Hannah não esperou para ouvir como acabava aquela discussão mas sim
avançou para Dougald com confiança arduamente ganha e com um prato de
comida.
Era uma enfermeira competente e seus dedos ansiavam curar Dougald em
mais de um sentido. O agarrou pelo braço.
—Vamos ao refeitório pequeno.
Dougald ficou olhando a mão com a que ela o pegava pelo braço.
—Senhorita Setterington, você é uma presunçosa.
Hannah o soltou.
—Muito bem.
Deu-lhe as costas e cruzou os braços, sabendo à perfeição o que estava a
ponto de ocorrer.
—Dougald, querido, parece um bárbaro. - Tia Spring parecia afligida.
—Não é algo agradável de ver na mesa do café da manhã - disse tia Isabel
em tom de recriminação.
Tia Ethel tampou os olhos com a mão.
—Enjoo se vir sangue.
Hannah ouviu a respiração pesada de Dougald e sorriu. Como gostava de

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ver Dougald derrotado por aquelas quatro frágeis anciãs.


—Maldição! - murmurou Dougald ao se levantar. - Foi somente uma
pequena briga.
Quando Hannah voltou a vista atrás, tia Ethel lhe piscou um olho.
Dougald começou a mancar, mas algo captou sua atenção. Se deteve e
ficou olhando a seu herdeiro.
—Tenho um alfinete de gravata com um diamante igual a este - observou
em tom contrariado.
Seaton o tocou com o dedo.
—Devo elogiar seu bom gosto.
Dougald sacudiu a cabeça e passou de lado enquanto Hannah o ouvia
murmurar:
—Vadio!
A senhora Trenchard seguiu Hannah e Dougald. Um lacaio se apressou a
retirar a cadeira da mesinha redonda.
Dougald se sentou com pouca graça.
—Me lembrarei disto - disse a Hannah.
A senhora Trenchard pôs as ataduras e a pomada ao lado de Dougald e
uma taça fumegante perto de Hannah.
—Seu chocolate quente, senhorita Setterington.
—Obrigado, senhora Trenchard. Lorde Raeburn, você recorda tudo.
—Hannah deixou o prato perto de sua mão direita, aprendera algumas
coisinhas nos anos que levava cuidando de doentes, e uma delas era que
precisavam estar no leito de morte antes de tomar ascos à comida.
—E eu também.
Por agora poderia se dizer que estavam em um empate técnico, ao menos
enquanto houvesse um lacaio na porta e a senhora Trenchard rondasse ao
redor de Hannah disposta a lhe prestar ajuda.
Dougald lhe mostrou os dentes em um grunhido de irritação.
—Deveria comer. Já está muito fraca.
—Obrigado, senhor, por esse comentário lisonjeiro. Seu semblante
também poderia melhorar.
Explodiu em uma gargalhada que freou de repente quando seu lábio
puxou.
—Harpia - disse em agradecimento.
—Coma. Isso o obrigará a ter a boca fechada.
E lhe alisou o cabelo para trás. Ele afastou a cabeça como se sua carícia o
queimasse.
—Quando aprendeu enfermagem?
—Aprendi muito quando cuidava de lady Temperly e mais ainda enquanto
estive à frente da Distinta Academia de Instrutoras. - Com um movimento lento
acariciou a face dele. Quando ele o permitiu, levantou o queixo e o examinou.

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—As garotas de dezoito anos sempre estão fazendo travessuras, e depois


das travessuras, alguém deve lhes enfaixar as feridas.
—Devia te encantar dirigir essa sua academia. Todas aquelas garotas
fazendo o que você lhes dizia. Podia imaginar que eram suas filhas. - Fez
pausa. Isso deve ser quase tão bom como ter sua própria família.
Sentiu vontade de esbofeteá-lo, mas estava pior que o que apreciara em
um primeiro momento.
Quando deslizou as mãos pelo couro cabeludo de Dougald encontrou
outros dois galos do tamanho aproximado de um ovo de galinha. Lhe deram
uma boa surra.
Naquele instante se alegrou disso.
—É um autêntico porco - disse com naturalidade, como quem não quer a
coisa.
—Senhorita Setterington! - exclamou a senhora Trenchard.
Hannah fez caso omisso da desaprovação. A senhora Trenchard não tinha
nem voz nem voto naquela guerra entre Dougald e ela.
—Senhor, dói-lhe a cabeça? - perguntou Hannah.
—Claro - ele espetou.
—Vê bem com o olho bom?
Dougald lhe dirigiu um olhar lascivo aos seios.
—E vejo um formoso panorama!
A senhora Trenchard pigarreou. Ao que parece não estava acostumada a
ouvir seu amo fazer elogios a uma mulher sobre seus seios.
Hannah se consolou como pôde com aquele comentário.
—Necessito ataduras frias para lhe enfaixar a cabeça e um bife frio para o
olho - comunicou à governanta.
A senhora Trenchard deu instruções ao criado.
—Como está nosso querido moço, senhorita Setterington? - Tia Ethel
apareceu pela porta para dar uma olhada ao maltratado Dougald, que se
ergueu um pouco.
—Estou bem, tia Ethel. Por que todo mundo fala de mim como se eu não
pudesse ouvir? E por que todo mundo arma tanto revoo por uns pequenos
cortes de nada? Estou bem!
—Já imagino que esteja. Quando um homem se instiga tanto, é que
sobreviverá. - Tia Ethel se retirou, mas Hannah a ouviu murmurar entre dentes:
- E mais é a vergonha!
Charles apareceu pelo ombro esquerdo de Dougald com seu nariz francês
levantado para Hannah em sinal de desafio.
A importava um cominho, enquanto não se intrometesse no que estava
fazendo. Ao fim e ao cabo, ele ajudara Dougald a se vestir. Teve a oportunidade
de fazer uma ideia clara sobre o estado de saúde de Dougald.
—Primeiro lhe curarei os arranhões.

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A senhora Trenchard destampou um pote de argila e o ofereceu a Hannah.


—Consolda9 mesclada com manteiga de porco - explicou.
Hannah lubrificou com cuidado um pouco daquele unguento no lábio e
descobriu que as palavras lhe escapavam da boca sem que o decoro nem o
fato de que outras pessoas pudessem as ouvir as refreassem.
—O que esteve fazendo, Dougald? Pretendia obter que o matassem?
Nunca antes foi tão estúpido para se colocar em uma briga que não pudesse
ganhar.
Dougald tentou afastar a cabeça de seu alcance.
—Esta coisa fede.
—É uma penitência por seus pecados. - Hannah respondeu o bastante
forte para que a senhora Trenchard a ouvisse, dirigiu um rápido sorriso em
direção a ela, logo estendeu o unguento sobre as feridas do queixo e sobre a
inflamação de sua orelha e murmurou: - Onde esteve ontem à noite? Na tasca
com Alfred?
—Está me aporrinhando.
—Alguém tem que fazê-lo - repôs Hannah. - Esteve muito perto de
conseguir que o matassem.
A senhora Trenchard estremeceu.
Os dois, Dougald e Hannah, a olharam.
—Como os outros senhores - disse em uma voz abafada.
Dougald soltou um bufido.
—Sim, senhora Trenchard, mas já ouviu os rumores. Eu matei a minha
esposa e a outros senhores para obter o título. Não vou matar a mim mesmo.
—Sim senhor. - O pote que a senhora Trenchard sustentava nas mãos
estava tremendo. - Esquecera isso, senhor.
Hannah levantou a mão direita.
—Por que coxeava?
—Caí em um buraco e torci o tornozelo. - A mão livre se arrastou até o
prato de Hannah e agarrou o pãozinho.
Sempre gostara dos pãezinhos tenros.
Hannah lhe lubrificou os nódulos de unguento.
—Diz sir Onslow que agora é um personagem romântico conhecido em
toda a Inglaterra.
—Sir Onslow. - Dougald fixou seu perturbador olhar, ou melhor dizendo, a
metade de seu perturbador olhar, no rosto de Hannah.
—Esteve flertando com ele.
—Eu não flerto com ninguém - repôs deixando de sorrir e agarrando as
vendagens com os que enfaixou os dedos.
—Esteve falando com ele.
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Consolda: Planta forrageira de propriedades medicinais, da família das boragináceas
(Symphytum asperrimum); consolda-do-cáucaso, consólida.

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Chegou um lacaio com toalhas flutuando em uma bacia de água. Outro


trazia um bife em um prato.
Hannah agarrou uma toalha da bacia e a retorceu para escorrer a água
fria.
—Falei com ele.
—Não quero que fale com ele.
Estavam elevando cada vez mais a voz, mas Hannah não podia se conter.
—Não seja ridículo.
—É perigoso.
Sacudiu-lhe com a toalha na cabeça.
—Se eu ouvi os rumores você também.
A agarrou pelo pulso e ela baixou o olhar para ele.
Sob os machucados e os arranhões voltava a mostrar seu rosto frio e
sério, e sua eficaz cara de poucos amigos transmitia uma advertência: "Não
ouça os rumores. Acredite neles. Sou um homem perigoso."
Voltava a ameaçá-la, a plena luz do dia e depois que ela teve a
amabilidade de lhe enfaixar as feridas. Se não tivesse estado ferido, Hannah
lhe teria dado uma sova. Se liberou de um puxão e olhou aos lacaios.
A cara de pau da senhora Trenchard demonstrava que ouvira ao menos a
última parte de sua rixa. Os criados pareciam aguçar o ouvido.
Dava o mesmo, embora, realmente dava o mesmo? Toda aquela situação
era insustentável, e a senhorita Hannah Setterington não estava disposta a
permitir que nenhum homem a intimidasse e menos seu marido.
—Fofocas! Não tenho por que suportar estas tolices.
—E o que pensa fazer?
Levantou o bife, o colocou com cuidado sobre seu olho machucado e deu
um passo atrás para examinar os resultados.
—Tem um aspecto completamente ridículo. - E avançou para ele, se
inclinou, agarrou a xícara de chocolate, agora morno, e disse em voz baixa mas
implacável:
—vou pegar o primeiro trem de volta a Londres.
Enquanto dava meia volta para partir, Dougald a segurou pela saia.
—Senhora Trenchard, pergunte a tia Spring se pode vir me ajudar.
A senhora Trenchard lhe fez uma reverência e partiu correndo até o salão
do café da manhã.
—Que acredita que está fazendo? - perguntou Hannah. - Não pode me
obrigar a ficar aqui pela força.
Observou a intensidade de seu único olho e pensou que ia se equilibrar
sobre ela. Deixou a xícara sobre a mesa para poder se defender.
Se defender ou se alegrar que se equilibrasse sobre ela? que dilema!
Já não sabia qual das duas coisas desejava mais. Todos os anos que
passara sozinha foram de castidade e estava orgulhosa de sua contenção. Se

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fixou nos homens, homens bonitos, homens queixumeiros, homens que


tentavam seduzi-la com as frases mais doces e os mais enérgicos abraços, e
ela rechaçara a todos. Com seu engenho às vezes, e outras com um sopapo, os
pusera em seu lugar, os reduzira ao que eram na realidade: meninos zangados
ou bestas necessitadas. Imaginava a si mesma como um bastião da retidão,
uma fortaleza tão resistente que o mero encanto e a limpa virilidade não
podiam assaltá-la.
Agora se dava conta que não fora forte, simplesmente não encontrara a
nenhum homem que tivesse feito perigar seus princípios. Aqueles homens não
eram Dougald. Nada em seus corpos nem em suas almas despertara nela
paixão ou alterado sua solidão, pois nenhum daqueles homens era o
companheiro que a natureza dispusera para ela.
À natureza só importava que dois corpos sentissem uma paixão mútua
que os levasse a se reproduzir. A natureza não compreendia que uma mulher
precisava ser mais que uma fêmea procriadora destinada a aumentar a tribo.
Agora Hannah enfrentava a seu casal, ouvia suas ameaças, sabia o que
ele desejava. Ora! Tramara sua captura como se fosse um mascote que lhe
escapara; entretanto, experimentou uma breve e aguda dor quando os
mamilos se arrepiaram, e um quente e lento desejo que ia se alojando em seu
ventre.
Precisava pôr fim a aquilo. Se ele se inteirava - e Dougald sempre fora
muito agudo no que se referia a paixões animais, - se comportaria de um modo
que provavelmente a faria se sentir desgraçada e a ele satisfeito. Não lhe cabia
a menor duvida de qual seria essa ação, que tinha a ver com emoções longo
tempo reprimidas e dois corpos nus.
Afastou aquele pensamento com uma consternação virginal que a jovem
Hannah nunca experimentara. Precisava pôr fim a aquela cena. Precisava sair
de algum modo daquela sala antes que ele tentasse se aproveitar dela ou lhe
revelasse com muita franqueza o que pensava dele quando era mais jovem e
de sua atual alma desprezível e tão manchada.
Cruzando os braços olhou a Dougald.
—Sou a senhorita Hannah Setterington da Distinta Academia de
Instrutoras e não tolerarei ameaças.
—Não estou ameaçando a ninguém - repôs Dougald em um tom tão frio e
firme como o dela.
Ficaram se olhando fixamente, liberando uma batalha de vontades, sem
que nenhum dos dois desse seu braço a torcer.
Tia Spring apareceu pela porta.
—Temo que não sou muito boa enfaixando feridas, meu querido moço.
Está melhor aos cuidados da senhorita Setterington.
Hannah e Dougald deixaram de se olhar aos olhos.
—Não é por isso pelo que te pedi que me ajudasse, tia Spring - manifestou

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Dougald.
Tia Spring correu para ele.
—Então, o que posso fazer por você?
—Não me disse que conhecia a família Burroughs? - perguntou ele em
uma voz tão exagerada como a de um ator ambulante.
O nome não significava nada para Hannah, que deu um puxão na saia com
a intenção de se liberar.
Tia Spring piscou ante aquele jogo de tira e afrouxa.
—Claro que sim, querido. Ao que resta deles: só o velho casal e é uma
lástima. - Se voltou para a senhorita Minnie, para tia Isabel e tia Ethel, quem,
guiadas pela curiosidade, a seguiram.
—Dougald está perguntando pelos Burroughs.
—Os conhecemos - troou a tia Isabel. - São um casal agradável, mas muito
estirados.
—Estirados? - perguntou a senhorita Minnie com desdém. - Estão muito
cheio de si mesmos.
Como não era homem que perdesse uma conversação assim, sir Onslow
apareceu atrás delas.
—Sim, senhora, mas a família leva na região desde a época dos Tudor. Se
diria que têm todo o direito do mundo a estar cheios de si mesmos.
—Bom, agora se extinguirão - declarou tia Isabel. - Não têm a ninguém.
Dougald retorceu a saia de Hannah em seu punho enfaixado.
—Disse que perderam seu filho quando estava na flor da idade, pouco
depois que lhe negasse a permissão para se casar com uma tal senhorita
Carola Thomlinson?
Hannah deixou de puxar tão de repente que se precipitou para Dougald,
mas recuperou o equilíbrio justo antes de cair sobre seu colo e deu meia volta
para o encarar.
Sentado em uma cadeira como se se tratasse de um trono, sombrio e
severo, estava o homem que conhecia seus segredos. O homem que sabia que
teclas devia pulsar nela. O homem que conhecia o nome de sua mãe e sabia o
desesperadamente que Hannah desejava descobrir que família deixara. O
homem que estava seguro que iria a Lancashire e ficaria, apesar do que ele
fizesse ou dissesse, para ter a oportunidade de conhecer seus avós.
Certamente ele era quem dirigira sutilmente suas indagações para o lugar
correto.
Não era de estranhar que estivesse tão crédulo.
—Burroughs. - Provou como soava o nome. Burroughs. O sobrenome de
seu pai. Não sabia. Sua mãe nunca disse. Ela perguntara, mas as pesquisas
causavam tal dor em sua mãe que preferira esperar, e esperou até que foi
muito tarde e sua mãe já não pôde dizer.
Agora Dougald sabia o nome de seus avós, dos pais de seus pais. Se

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voltou para tia Spring, incapaz de reprimir esse tipo de desespero que só um
órfão compreenderia.
—Poderia? me diria onde vivem?
Tia Spring lhe sorriu.
—Os conhece, querida?
—Não. Não, mas?
—Amigos da família, sem dúvida - comentou tia Ethel.
—Sim.
Hannah olhou a seu redor para descobrir que era o alvo de todos os
olhares. Não tinha reparado nisso, em que teria que se explicar ante todos. Por
que teria que fazê-lo?
Imaginara que poderia fazer discretas averiguações ao longo de um
dilatado período de tempo. Não pensara que Dougald estaria no castelo
Raeburn, fazendo impossível sua estadia ali, fazendo impossível sua fuga.
—Suponho que poderia se dizer assim, embora tenham passado muitos
anos? certamente não me conhecerão.
—Tenho uma ideia, tia Spring. Por que não os convida a nos fazer uma
visita dentro de, digamos, um mês?
Até então a senhorita Setterington já estará assentada em seu posto e
saberemos mais a respeito dela e sua relação com os Burroughs - disse
Dougald em um tom que transmitia uma falsa e cordial surpresa.
Tia Spring aplaudiu.
—Uma ideia genial, Dougald! Escreverei-lhes imediatamente.
—Mantém a presença da senhorita Setterington em segredo, será uma
surpresa - a instruiu. - Não queremos apresentá-la tão cedo.
—Seria maravilhoso ver suas caras - esteve de acordo tia Spring. Isso seria
aceitável para você, senhorita Setterington?
Hannah olhou o rosto de tia Spring, ardente ante a expectativa. Olhou às
tias, alegres e em espera de sua decisão. Observou sir Onslow que a sua vez a
observava. Contemplou Charles e à senhora Trenchard, que olhavam a cena tal
como fazem todos os criados entregues, tentando predizer o curso de seu
futuro pelas palavras de seus amos.
E olhou fixamente para Dougald, petulante, satisfeito, espancado mas
irredutível e como sempre, vitorioso.
—Eu gostaria muito, tia Spring. Isso eu gostaria muito - repôs, se dobrando
ante o inevitável.

Capítulo 12

"Seriamente acreditava que a ia deixar escapar?" Dougald observava

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Hannah sair da sala de jantar rodeada das damas anciãs que acolhera sob sua
asa e se pôs a rir baixinho, com amargura.
Pouco depois que Hannah o abandonasse, começou a investigar sobre a
identidade de seus avós. Imaginara que lhe oferecia esta averiguação como
um presente, um presente que demonstraria que fizera o correto ao retornar
com ele. Mas ela nunca retornou e agora ele tinha aquela informação em um
punho, como um miserável. Teria que lhe pagar por aqueles dados. Lhe pagar
do modo que ele escolhesse.
Era vagamente consciente que Seaton tomava posições para se sentar a
sua direita, mas não prestava atenção a ele. Que Seaton falasse primeiro.
Dougald escutaria o que tinha a dizer.
Ao fim e ao cabo, raciocinou Dougald, Seaton matara ao menos a dois
duques de Raeburn e estava tentando matar a outro.

Dougald a apanhara. Outra vez. Por completo. De todas as maneiras


possíveis.
De pé junto à janela da grande e ensolarada oficina das tias, convocado na
torre da ala oeste, Hannah olhava a torre que se elevava ao outro lado, nesta
ala. Ali fora apanhada outra esposa
Raeburn e se liberou com um salto suicida.
Não é que Dougald a tivesse encerrado fisicamente nem que ela fosse
saltar para morrer, mas a apanhara com a mesma segurança com que teria
dado volta a uma chave. Seu estômago ardia.
Nunca se sentira assim, nem sequer quando a ameaçou de assassinato.
Fora uma vaga ameaça, palavras pronunciadas com a intenção de impressioná-
la. E se recuperara porque não o acreditava capaz do assassinato.
Ao fim e ao cabo, fora seu amante. Seus corpos se fundiram,
compartilharam uma mesma paixão, estiveram tão próximos em corpo e alma
como duas pessoas poderiam estar.
Ao menos isso ela acreditava. Talvez aquela proximidade não fora mais
que uma quimera, induzida por uma imaginação juvenil e por sua necessidade
de ter a alguém, a uma só pessoa, a quem amar.
Porque Dougald era agora o que movia os fios de seus desejos, e os usava
para obrigá-la a fazer coisas e para atá-la.
A voz de tia Ethel interrompeu a melancolia de Hannah.
—Venha, tia Spring, pergunte.
Hannah morria de vergonha ao se interrogar sobre que circunstâncias
pretenderiam que as clarificasse.
Como estava mais alta que o resto do castelo, batia o sol pela manhã na
sala da torre e pela tarde, e recebia toda a luz. As tias se apinhavam em torno
de uma grande mesa sobre a que se esparramavam amostras de todos seus
interesses. Uma das apreciadas rosas de tia Ethel se encontrava em um jarro

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junto ao caderno de desenho da senhorita Minnie. Uma variedade de pedras


polidas, engastes de prata e ferramentas de joalheria estavam dispostos
ordenadamente ante a cadeira de tia Spring. O telescópio de tia Isabel
apontava pela janela para o céu. Pedaços de trabalhos e partes de tapeçarias
estavam dispersas por toda a superfície. A sala parecia cheia de fios de
brilhantes cores, azul real e púrpura, granada e pêssego pálido.
Um frente a outro, junto à janela maior, se elevavam quatro formidáveis
teares.
Teares. O que fariam as anciãs damas com os teares?
—Pergunte, tia Spring. Sabe que devemos estar seguras que seja a pessoa
apropriada.
Hannah tinha o olhar perdido nas verdes e onduladas colinas do imóvel,
mas podia perceber claramente os tons agudos de tia Isabel. De fato, ouvia
todas, pois elevavam as vozes para compensar a perda de audição de tia
Isabel. Era evidente que naquela estadia não havia segredos.
Hannah se preparou para confrontar suas inquisições enquanto tia Isabel
se aproximava trotando até ela.
—Querida senhorita Setterington, isso é certo? - perguntou a ela.
—Bom, depende do que esteja me perguntando - disse Hannah com
precaução.
—Só uma coisa poderia nos interessar. - Os olhos de tia Spring piscaram
com uma expressão míope ante Hannah. - É certo que conhece nossa querida
rainha Vitória?
Hannah ficou olhando os olhos cândidos de tia Spring. Aquela não era a
pergunta que esperava.
Depois da cena do café da manhã, sem dúvida o castelo inteiro fervia de
curiosidade a respeito da conexão de Hannah com Dougald, do passado de sua
família, de sua condição de filha ilegítima.
—Me pergunta se conheci à rainha Vitória? - repetiu Hannah assombrada.
—Sim! Sim, exatamente isso.
Por que queria tia Spring saber? Como Hannah devia lhe responder?
Hannah conhecera à rainha Vitória. Não lhe surpreendia que tia Spring
tivesse obtido aquela informação. Era óbvio que Dougald indagara sobre a vida
de Hannah. Nenhum âmbito de sua vida ficara ignoto, nenhum canto
inexplorado, e escolhera compartilhar aquele fragmento concreto de
informação com suas tias.
—Conheci sua majestade - admitiu Hannah. - Apoiou minha academia.
Tia Spring lançou um olhar emocionado para as demais damas.
—É certo, garotas! - gritou em tom jubiloso.
Fazendo voar seus cachos e sua saia, tia Ethel arrancou emocionada à
carreira para elas, enquanto tia Isabel seguia perguntando:
—Disse que era certo?

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

—Sim, Isabel, é certo.


A senhorita Minnie respondeu a tia Isabel a olhando diretamente e
vocalizando notoriamente, logo se apressou dando amostras de emoção com
brilhos nos olhos esvaídos.
—Vamos, nos conte tudo. - Tia Ethel usava luvas de jardinagem e
sustentava as tesouras de podar; antes daquela congregação das tias esteve
cuidando das diversas plantas que se encontravam na habitação.
—Sua majestade é tão jovem e bonita como em seu retrato?
—É muito bonita e muito jovem para levar sobre os ombros tão tremenda
responsabilidade.
Na realidade, Hannah agradecera às estrelas em infinidade de ocasiões
não ter nascido com a tarefa de reinar sobre a Inglaterra. Sua majestade
estava rodeada de pompa e cerimônia em todo momento; o único tempo que
parecia dispor para si eram aquelas ocasiões em que ela, seu consorte e os
meninos escapavam para a Escócia para tomar uma pausa.
—Temos este retrato dela. - Tia Isabel mostrou a Hannah um pequeno
óleo, uma réplica do retrato oficial da coroação. - Parece com ela?
—É a cópia dela - repôs Hannah.
As tias intercambiaram olhadas.
—Por que se importava tanto?
—Viu a seu querido consorte? - perguntou tia Spring.
—Ao príncipe Alberto? - A maioria da gente se mostrava interessada
quando se inteiravam que Hannah conhecera ao casal real, mas naquele
momento parecia estar cumprindo os sonhos daquelas damas.
—Sim, me apresentaram aos dois.
—Temos este retrato dele. - A senhorita Minnie tirou um amarelado recorte
de imprensa do amplo bolso de seu avental.
—Não é uma dessas vulgares caricaturas a não ser um retrato real. Parece
com ele?
—Sim, muito. - Hannah olhou a seu redor para descobrir suas expressões
ansiosas.
—Agora me digam o que querem saber.
Tia Ethel tirou as luvas e as deixou junto às tesouras de podar.
Tia Spring agarrou Hannah pela mão.
—Venha e sente.
Hannah a seguiu até o lugar que tinham disposto para ela sentar, uma
congregação de cadeiras e sofás colocados em torno de uma estufa de ferro e,
embora as janelas estavam um pouco abertas para deixar passar a fresca brisa
daquele dia de março, a estufa irradiava calor. As tias se apinharam a seu
redor; Hannah notara que quando as damas chegam a uma avançada idade, a
pele delas emagrece, os ossos parecem os de um pássaro e procuram o calor
como uma droga. Na realidade, as cortinas das janelas eram grossas, para

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The Governess Brides 03

frear as rajadas de vento que assolavam o dormitório de Hannah, e toda a


parede estava recoberta de magnífico veludo púrpura para impedir as
correntes de ar.
De modo que Hannah pegou a cadeira mais afastada da estufa, se
arregaçou e perguntou:
—Por que estão tão interessadas na rainha Vitória?
Tia Spring olhou a seu redor procurando a suas companheiras.
—Adiante, tia Spring - assentiu a senhorita Minnie. - Conte à senhorita
Setterington o que temos feito.
—Sim. - Tia Spring se sentou e começou a dar saltos na cadeira como uma
menina presa pela emoção. - Durante anos meu irmão foi o duque deste lugar.
—Sim, já sabia. - Mas Hannah não sabia o que isso precisava ver com a
rainha Vitória.
—Rupert sempre foi muito maníaco. Era muito consciente de sua posição.
Sempre estava falando das obrigações que precisava confrontar. E era mais
estirado que o pau de uma vassoura. - Tia Spring sacudiu a cabeça.
—Eu nasci aqui e vivi sempre aqui, mas pelo modo em que ele se
comportava qualquer um diria que roubei o pão da boca dele.
Triste historia a que contava tia Spring, tantas vezes repetida entre as
damas solteiras da Inglaterra.
—Imagino que ele a fazia se sentir incômoda - disse Hannah
amavelmente.
Tia Spring levantou o nariz.
—Não? era um homem com muito caráter. Me fazia sentir mais como um
obstáculo que outra coisa, e era do tipo de homens que se teria queixado
embora se enforcasse com uma corda de seda.
Inclusive quando o querido Lawrence pediu minha mão, Rupert se
lamentou da pobreza de Lawrence. Como se eu não tivesse sido mais feliz
sendo a mulher de um soldado que dependendo de Rupert!
—Assentiu até que seus cachos começaram a se mover.
—Se não fosse porque Rupert nos negou sua permissão, eu teria tido a
sorte de viver com Lawrence. O mataram na Espanha, já sabe, foi um herói até
o final, e ao menos eu teria tido muito mais lembranças.
Tia Spring ficou olhando à frente, com a boca apertada e os olhos perdidos
e afligidos. O silêncio encheu a sala. Hannah viu como as amigas de tia Spring
intercambiavam olhadas e logo se sorriam tristemente umas a outras.
Tia Isabel deu uns leves golpes na mão de Hannah, se inclinando para
frente, e sua voz grave contrastava estranhamente com a delicadeza do
momento.
—É triste saber que uma de nós podia ter se casado e ser feliz, embora só
fosse durante um breve período de tempo, e que uma coisa tão insignificante
como o dinheiro impediu essa união, e que um acontecimento tão horrível

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como a morte pôs fim a esse amor para sempre.


—OH, não! Eu ainda o amo e ele ainda me ama. Algum dia estaremos
todos juntos, ele e a querida pequena - tia Spring tocou a testa como se lhe
doesse. Logo em um arrebatamento de entusiasmo começou a aplaudir.
—Enquanto isso, tenho a minhas amigas para me fazer feliz. Lawrence foi
meu verdadeiro amor e um verdadeiro amante quer a felicidade para o amado,
não importa quanto tempo tenha que esperar.
—Que pensamento mais bonito - repôs Hannah, enquanto pensava: "Outra
prova que Dougald nunca me quis."
Como se necessitasse uma prova assim. Ele queria que fosse desgraçada
e o estava fazendo muito bem. Às vezes sentia que levava o nome "bastarda"
escrito na testa. Por esse motivo fora a Lancashire.
Para descobrir sua procedência.
Dougald tinha se precavido disso. Claro que percebeu. Fazia já uns anos
explicou a ele o muito que desejava conhecer suas origens e, naquele
momento, ele considerou que seu desejo era uma tolice.
O maior cabeça-dura do mundo disse que na realidade devia viver para
ele. Qualquer pessoa sensata saberia que ela se rebelaria ante tal pretensão,
mas Dougald não. Não prestara nenhuma atenção a ela, até agora.
Até que aquela informação foi útil para lhe montar uma emboscada.
Posou o olhar sobre tia Spring. Ela era a chave da liberação de Hannah. Tia
Spring conhecia a família de Hannah, provavelmente sabia onde viviam. O que
a impedia de acudir sozinha a casa de seus avós, se apresentar ali como sua
neta e desfrutar de uma agradável visita?
Levou a mão ao pescoço e sentiu como seu coração acelerava.
Que outra coisa, além do temor a um brutal rechaço?
—Spring, querida - disse tia Ethel. - Vai contar à senhorita Setterington por
que queremos que a rainha Vitória venha nos visitar?
Sem saber muito bem como, Hannah se encontrou de pé.
—Querem que a rainha Vitória venha visita-las? Aqui?
—Querida senhorita Setterington, uma dama nunca grita. - Enquanto
repreendia a Hannah, a senhorita Minnie elevou uma sobrancelha para tia
Ethel.
—Sinto muito. - Tia Ethel parecia sobressaltada ao desculpar, queria dizer
que deixássemos tia Spring seguir com seu relato.
—A senhorita Setterington não gritava. Simplesmente falou claramente,
para variar. - Tia Isabel puxou a saia de Hannah. - Queridas, vocês têm
tendência a bisbilhotar.
—Me esforçarei em recordar - Hannah disse humildemente.
—Agora, querida, sente e deixe que tia Spring explique tudo.
Aterrada, Hannah se deixou cair na cadeira. Dava no mesmo o que tia
Spring dissesse, isso não explicaria o que Dougald tinha em mente quando

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contou às tias que Hannah conhecia sua majestade.


Se supunha que precisava escrever à rainha e convidá-la ao castelo
Raeburn? Por quê? Acreditava que ia ganhar poder com a visita da rainha? Se
fosse assim, ele tinha subestimado a força de Hannah.
—Quando a esposa de Rupert morreu, eu o ajudei com seus filhos, e
quando seus filhos já estavam quase crescidos, me perguntava o que ia fazer
eu com minha vida - sorriu à senhorita Minnie,
—quando minha querida amiga de tantos anos perdeu seu irmão e seu lar,
e me precavi de que seríamos boas companheiras.
A senhorita Minnie olhava fixamente para tia Spring, e Hannah pensou que
a sombria expressão da idosa estava cheia de afeto e também de impaciência
ante os meandros da narração.
—Então meu marido jogou o olho nessa desavergonhada criadinha e,
quando me encontrava em minhas horas mais baixas, a querida Minnie falou
de mim à querida Spring e ela me ofereceu refúgio - saltou Tia Ethel.
Todas olharam para tia Isabel, esperando sua história.
—Meu marido morreu, que o velho verde descanse em paz, ou ao menos
que descanse. Não me deixou nada, mas Spring disse que as amigas de Ethel e
Minnie eram suas amigas e eu realmente não tinha escolha.
—Tia Isabel se apressou a acrescentar: - Não ache que não me alegro e
agradeço muito por estar aqui, só quero lhe contar que realmente me
encontrava muito necessitada.
Não vim aqui só pela alegre vida da que desfrutam as damas.
—Sua senhoria, o conde, deve se sentir...
—OH sim, muito perturbado que compartilhasse sua generosidade com
minhas queridas amigas. Grunhia e perdia os estribos como se tivesse um
verme nas tripas! - Tia Spring levou os dedos à boca e olhou pela janela.
—Hummm! Nunca tinha pensado nisso. Possivelmente tinha um parasita.
—É bastante discutível - apontou a senhorita Minnie.
Tia Spring a olhou vagamente.
—Mas teve sua recompensa - explicou a senhorita Minnie, - ou seu castigo.
—Certamente - assentiu tia Spring. - E como cristã chorei sua morte, mas
depois que os meninos morreram (eram meus sobrinhos, já sabem, e seus
filhos), se tornou desagradável e taciturno.
Tia Ethel se levantou, apertou as mãos, relaxou-as e voltou a apertar.
—Eram seus filhos, querida. Não há nada mais horrível que seus filhos
morram antes que você.
Outra triste história, observou Hannah, tão triste que tia Isabel atraiu a
sua amiga até seu lado no sofá e lhe deu uns tapinhas na mão venosa.
A voz de tia Spring se quebrou e seus olhos encheram de lágrimas.
—Sei, Ethel. Sei.
—Talvez não deveríamos nos estender em um tema tão triste. - A

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senhorita Minnie assentiu de modo eloquente para tia Ethel. - Em troca,


deveria contar à senhorita Setterington por que queremos ver a rainha Vitória.
—Sim, querida - repôs tia Spring. - Contarei.
—Talvez possa me esclarecer o motivo - sugeriu Hannah.
Tia Spring fez um gesto para a mesa de trabalho.
—Temos algo para ela.
—Para a rainha?
—Sim, e queremos que escreva a ela e lhe diga que venha.
—Mas, com o devido respeito, a rainha não virá porque eu o peça.
—Pois deveria fazê-lo. - Tia Spring elevou a voz, afligida, e tocou a face
com a ponta dos dedos. - Tem que escrever a ela e lhe dizer que venha para
que possamos lhe dar, possamos lhe dar, a coisa.
A má memória de tia Spring causava muita tensão a suas companheiras.
—A coisa? - a animou Hannah.
—Isso que fizemos - insistiu tia Spring. - Ai, não me lembro da palavra!
—A palavra não importa, senhorita Spring. Pode mostrar à senhorita
Setterington o que fizeram depois que tenham tomado o chá - disse a senhora
Trenchard da soleira da porta.
—OH, sim! - Tia Spring aplaudiu. - Querida Judy, trouxe bolos de creme?
—É obvio, senhorita Spring. Sei o muito que gosta. - A senhora Trenchard
empurrava um carrinho coberto com uma toalha branca cheia de bolos de todo
tipo, sanduíches planos de pão sem casca e dois bules de porcelana
fumegantes. Ao colocar as taças e os pratinhos, perguntou: - Gostam de sua
nova companheira, senhoras?
Tia Isabel se voltou para tia Ethel.
—O que disse?
—Quer saber se nós gostamos da senhorita Setterington - tia Ethel disse
em voz alta.
—Claro que nós gostamos. - Tia Isabel sorriu para Hannah com uma faísca
de humor perverso. - Conhece a rainha.
Hannah lhe devolveu o sorriso.
—É uma garota adorável - disse tia Ethel.
—É tão amável.
O elogio de tia Spring era previsível - Hannah suspeitou que tia Spring
raramente falava mal de alguém, - mas isso reconfortou o coração de Hannah.
—Está fazendo muito bem - se pronunciou a senhorita Minnie.
A aprovação da senhorita Minnie encheu Hannah de orgulho.
A senhora Trenchard pôs os pratos de sobremesa.
—Senhorita Setterington, parece que as conquistou, e muito rápido!
O reconhecimento da senhora Trenchard parecia menos sincero;
provavelmente desejasse que a relevassem da árdua tarefa de cuidar de tia
Spring, mas ao mesmo tempo não quisesse que a substituíssem tão rápido.

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Hannah compreendia. Depois de vender a Distinta Academia de


Instrutoras, algumas vezes desejara, embora lhe desse vergonha admitir, que o
transpasse de poderes às mãos de Adorna não resultasse tão fácil.
De modo que Hannah repôs:
—Esperava ter a oportunidade de falar com você, senhora Trenchard, para
perguntar como podia servir melhor à senhorita Spring e a suas damas.
—Estarei encantada de ajudar. - A senhora Trenchard sorriu, obviamente
satisfeita pela deferência de Hannah. - Quer que fique e sirva o chá?
—Você está muito ocupada, querida Judy. - Tia Spring empurrou à
governanta pelos ombros. - Nos serviremos nós mesmas e assim poderá voltar
para suas obrigações. Já sei quão ocupada está o dia que se faz a panelada!
—Sim, obrigado, senhorita Spring.

A senhora Trenchard permaneceu muito rígida durante o abraço de tia


Spring, mas adulada, observando com evidente prazer como as tias
recomendavam a Hannah um bolo atrás de outro.
A senhorita Minnie serviu o chá e estava perfeito: quente, ricamente
ambarino e fragrante. A comida estava deliciosa, certamente digna de se servir
à rainha, Hannah admoestou a si mesma.
Mas era uma loucura imaginar que a rainha Vitória acudiria especialmente
ao ruinoso castelo Raeburn por uma ninharia que fizeram quatro excêntricas e
anciãs damas. O que Dougald tramava?
Hannah apurou seu chá.
—Quando poderei ver o que fizeram para a rainha?
As tias intercambiaram olhadas, logo deixaram as xícara de chá.
—Agora mesmo, se quer - disse tia Spring.
Esqueceram da senhora Trenchard enquanto elas empurravam Hannah
para a longa parede estofada de púrpura. A governanta recolheu o chá,
olhando para Hannah e as tias com uma mescla de saudade e alívio, e um total
sentimento de culpabilidade. Logo empurrou o carrinho pela porta.
Tia Ethel e tia Isabel agarraram cada uma um extremo da cortina e
ficaram de pé, ofegantes, esperando instruções.
—Está preparada, senhorita Setterington? - perguntou tia Spring.
"Preparada para que?" Hannah assentiu.
—Puxem, - ordenou a senhorita Minnie.
Tia Ethel e tia Isabel puxaram as cortinas, arrastando o pesado tecido pela
barra e deixando a descoberto uma tapeçaria.
E não uma mera tapeçaria. Uma enorme e magnificamente concebida
tapeçaria que representava a sua majestade a rainha Vitória vestida com suas
roupas da coroação, com o príncipe Alberto a seu lado.
Hannah o contemplou maravilhada e quando se recuperou o bastante para
fechar a boca, voltou a olhá-lo. A obra media três metros de altura e cinco de

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comprimento, e ocupando toda a parede, enchia os olhos de arte.


Não era a tapeçaria do Bayeux, com sua descrição da guerra e da
conquista. Era um tributo, um presente moderno feito com a esquecida
destreza de outros tempos. Aquelas damas, aquelas frágeis, surdas, e
infravalorizadas anciãs, realizaram sua façanha com quatro teares e
considerável talento.
Hannah ficou em pé como mostra de veneração de sua habilidade e seu
virtuosismo.
As frágeis, surdas e infravalorizadas anciãs quase dançavam de
impaciência.
—Nos diga o que lhe parece - exigiu tia Isabel.
—O detalhe? a precisão criativa? - Parecia a rainha Vitória em carne e
osso, e embora o príncipe Alberto tinha uma maçã do rosto mais alta que a
outra, ninguém o jogaria na cara às artífices daquele empenho.
—É extraordinário.
Hannah falou com tia Isabel, se assegurando que não murmurava.
—Eu disse que era bom! - tia Isabel anunciou triunfante.
—Quanto tempo trabalharam nele? - perguntou Hannah.
—Desde o nascimento da rainha em 1819 - explicou tia Ethel.
—Vinte e quatro anos? - A Hannah pareceu assombroso que o tivessem
terminado em tão pouco tempo. - Sua majestade realmente deveria? - Mordeu
a língua.
A rainha Vitória realmente deveria vê-lo, mas sem a permissão de Dougald
não se atrevia a mencionar tal convite.
—É simplesmente imponente.
—Olhe o fundo. Utilizamos diferentes símbolos para indicar sua soberania.
- Tia Spring estendeu a mão para indicar o magnífico fundo.
—Isabel fez a lua e o sol e sugeriu o polvilhar de estrelas para indicar a
majestade da rainha.
—O azul marinho serve de estupendo marco. - Hannah deu um passo
atrás, admirada pela quantidade de trabalho e esforço que as mulheres tinham
posto na tapeçaria.
Tia Ethel mostrou um estojo de joalheria aberto.
—Tia Spring sugeriu as gemas para representar a riqueza da nação.
—As cores são extraordinárias. - Hannah se aproximou para apreciá-los
melhor.
—Ethel sugeriu as rosas, vermelha e branca para representar o impulso da
história britânica, o rosa para a juventude eterna de sua majestade, e os
espinhos? vê os espinhos? - a senhorita Minnie indicou as sarças que se
retorciam na base da montagem, - para demonstrar que a Inglaterra se
defende e nunca poderá ser conquistada.
—Que inteligente! E que premeditado! - Hannah não podia afastar o olhar

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da harmoniosa tapeçaria, resplandecente de simbolismo e grandeza.


—Quem o desenhou?
—Minnie o desenhou, querida. Fez os rabiscos e quando foi do agrado de
todas, o dividimos em painéis. Cada uma de nós teve que tecer dois painéis.
Logo os encaixamos e os costuramos - Tia Spring aplaudiu de emoção.
—Fizemos tudo sozinhas. Não deixamos que as donzelas que trabalham na
costura do castelo o tocassem. Queríamos render nosso próprio tributo à rainha
Vitória. - Então gosta?
—Maravilhoso. - Hannah ficava sem adjetivos, e a tapeçaria merecia todos.
—É digno de sua majestade? - perguntou a senhorita Minnie.
Hannah conteve o fôlego, mas não podia falar de forma equívoca.
—Será uma grande honra para ela receber semelhante presente.
—Então a convidará ao castelo Raeburn? - Os olhos azuis de tia Ethel
resplandeceram.
O que podia dizer? Como devia lhe responder? Como se pretendesse
ganhar tempo, esperava que lhe chegasse a inspiração.
—Como podem imaginar, a agenda de sua majestade está estabelecida
com vários meses de adiantamento. Depois que escrevamos a ela, podem
passar meses, inclusive - repôs Hannah.
—Tenta nos dizer que não virá? - a senhorita Minnie a interrompeu.
A senhorita Minnie reconheceu a vacilação de Hannah e expressou
abertamente o que pensava. Escrutinando a tapeçaria outra vez, Hannah ficou
paralisada ante o direto olhar da rainha Vitória que dava a impressão que via
tudo. Hannah não podia mentir às tias, nem fazer outra coisa mais que tentar
com todas suas forças. Elas o desejavam tanto. Mereciam mostrar à rainha a
comemoração que lhe fizeram, tal como a rainha merecia ver os resultados de
sua devoção.
—Compreendam que não posso lhes prometer nada. Talvez não venha
nunca.
—Sabemos. É a rainha da Inglaterra, mas se não o perguntamos, nem
sequer saberá - explicou tia Spring.
—O que é de pior poderia fazer sua majestade? Enviar uma missiva se
desculpando? - As mãos da senhorita Minnie tremeram e se afundou na
cadeira. - Devemos tentar ou nosso esforço será em vão.
Ao fim e ao cabo, a expectativa de sua visita é o que nos manteve vivas.
Ao ver a tez pálida da senhorita Minnie e o modo em que as demais se
apressavam a lhe dar uns leves golpes na mão e a pôr os sais sob o nariz dela,
Hannah acreditou.
De fato, a menos que a rainha viesse logo, a senhorita Minnie poderia não
estar aqui para ver seu triunfo.
—As normas de urbanidade requerem que fale com lorde Raeburn antes
de enviar um convite.

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E ao falar o faria com todo seu poder de convicção.


—Isso é satisfatório. - A senhorita Minnie afastou os sais. - De modo que
acredita que nos dará tempo de arrumar a cara de Alberto?
Sou bastante destra com o caderno de desenho, mas nem tanto com o
tear, e não estou satisfeita de seus traços irregulares.
—Estou de acordo, seus traços poderiam ser mais simétricos. - Ao recordar
a devoção que a rainha sentia por seu consorte, Hannah acrescentou: - Lhes
asseguro que dará tempo de voltar a tecê-lo.
—Bom. - A senhorita Minnie mostrou a tapeçaria. - Chamem os lacaios
para que o baixem. O desmontaremos e nos poremos a trabalhar em seguida.

Capítulo 13

Charles fechou a porta do espartano escritório de Dougald com sua


habitual preocupação por não ferir a suscetibilidade de seu amo, mas este
notou imediatamente que seu fiel criado estava preocupado e sabia por que.
Hannah aguardava do outro lado da porta.
Dougald ficou imóvel, com a pluma levantada sobre o livro de contas da
fazenda.
—Sim, Charles?
Senhor, madame deseja falar com você outra vez.
—Ah, sim?
Em Dougald cresceu um raro e repentino impulso: o impulso de sorrir.
Levava quase duas semanas frustrando os desejos de Hannah de falar com ele
em particular. Adorava aquilo, certamente muito, mas se permitiu ceder a
irreprimível emoção. Ignorar a Hannah parecia uma vingança mínima frente a
tantos anos de preocupação e desonra.
—Suplica falar com você, senhor - lhe comunicou Charles pondo muita
comicidade naquele pedido.
A comicidade não serviria de nada.
—Suplica? - bufou Dougald. - Duvido.
—Talvez não seja o termo que empregou, mas deseja sinceramente que
lhe empreste um momento de seu tempo para fazer uma pergunta.
Dougald não precisava falar com Hannah para saber o que queria. Queria
saber mais sobre sua família, ou possivelmente queria se inteirar do que
pretendia fazer a respeito de seu casamento.
E ele não tinha a menor intenção de responder a nenhuma das duas
coisas. Saberia a resposta a ambas as questões quando ele decidisse que devia
saber, não antes.
—Diga a ela que se vá. Não tenho tempo para conversar com uma simples

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dama de companhia de minha tia.


De novo voltou a baixar a cabeça para a longa coluna de números.
Calcular as rendas e o rendimento da fazenda Raeburn demonstrara ser um
desafio, em especial quando tantos senhores diferentes usaram os livros em
tão poucos anos.
Charles suspirou. Não aprovava o trato torturante que estava
proporcionando a sua esposa separada, embora Dougald não compreendia por
que. Ao fim e ao cabo, Charles considerava Hannah um incômodo horroroso e
uma esposa indigna, e se sentia orgulhoso da influência que ele teve para que
se separasse da vida de Dougald. Interferira em seu casamento. Logo se
gabara ante Dougald de tê-lo resgatado de uma união desventurada. Gabado!,
quando não havia pior desdita que a solidão e a ansiedade que seguiram a sua
separação.
Dougald ainda sentia um pingo de vergonha por ter se deixado enganar
daquela maneira. Permitira que seu orgulho, sua ignorância e as opiniões de
Charles destruíssem seu casamento.
A vergonha, descobrira Dougald, só o fazia ser mais cruel no trato com
Hannah.
—Charles!
Charles se alegrou, se o muito ligeiro ápice de alegria em sua expressão
melancólica podia se chamar assim.
—Senhor?
—Descobriu algo sobre as mortes dos últimos dois senhores?
O rosto de Charles recuperou sua habitual expressão decaída.
—Oui, senhor, tenho descoberto algo, mas pensava falar disso com você
quando pudesse desfrutar de toda sua atenção. Agora mesmo, madame?
—Que espere! - Dougald escorreu a pluma e a deixou sobre o mata-borrão.
- Venha, sente-se. Me conte se minhas suspeitas estão corretas.
Charles olhou com tristeza para a porta.
—Mas madame está esperando. Poderia lhe dizer?
—Quererá dizer a senhorita Setterington - Dougald enfatizou o título; - não
é mais que uma empregada. Terá que esperar para me ver até que me dê
vontade. Sente-se e me conte os resultados de sua investigação.
—Como deseja, senhor.
Dez anos atrás Charles teria se ofendido pelo tom de voz de Dougald e o
teria feito saber. Agora obedecia com presteza, sabendo que ele mesmo se
encontrava em um eterno período de prova.
Se sentou na cadeira de respaldo reto e olhou para Dougald do outro lado
da escrivaninha, não era mais que um idoso francês dedicado ao bem-estar da
família.
—Cheguei ao castelo Raeburn faz cinco anos, seguindo suas ordens,
procurava à família de madame, quero dizer, da senhorita Setterington. Então

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no lugar se falava das mortes dos jovens filhos do nobre; definitivamente foi
um acidente, senhor, a menos que o assassino conseguisse provocar uma
tormenta no mar.
Dougald assentiu. Ouvira o bastante para que a explicação o convencesse.
—Ouvi que o velho senhor estava morrendo, devido a sua avançada idade
mais que a nenhuma outra causa humana, e naturalmente eu conhecia a
relação que você tinha com o título.
Dougald olhava fixamente para Charles.
—Eu mal estava informado naquela época. Como soube?
—Seu pai.
—Claro, meu pai.
Charles não teve que dizer uma palavra mais. Dougald recordava muito
bem o ambicioso empenho de seu pai por conseguir nobreza, respeitabilidade
e riqueza. Tudo isso em nome da família Pippard.
Tudo para que continuasse a glória da estirpe. E ele se tornou como seu
pai.
Dougald fechou os olhos por um momento e pensou em Hannah, atrás da
porta, sentada, passeando ou o amaldiçoando. Seria a mãe de seu filho, a
portadora da ininterrupta glória dos Pippard.
Esperava que apreciasse a honra que fazia a ela, pois se asseguraria de
que obtivesse uma pequena e chata gratificação por sua posição como esposa
do senhor.
—Retornei periodicamente - disse Charles.
—Por quê?
—Eu gostava destas paragens e aqueles dias em que você amavelmente
me deu umas férias, retornei a este lugar.
Dougald o olhou. Não era certo, claro está. Charles nunca ia de férias sem
mais propósito. Voltara para Lancashire para velar por seu título, esperando,
contra todo prognóstico, que o destino favorecesse a seu senhor. Como de fato
ocorrera.
—Se o que tiver descoberto é certo, senhor, então devo aceitar que os
dois senhores anteriores foram assassinados com um propósito deliberado -
Charles disse rapidamente, afastando o olhar do de Dougald.
—O empurraram pela escada. O jogaram do escarpado?
Se Dougald não tivesse conhecido Charles tão bem, teria dito que ele era
o assassino. Ao fim e ao cabo, Charles não via nada mau em servir à família
Pippard em tudo o que pudesse, e talvez imaginasse que herdar o título
atenuaria o aborrecimento que sentia por sua causa. Mas Charles nunca teria
matado Dougald, embora só fosse pelo fato que sua própria sorte se veria
arrastada pela de seu amo.
Dougald olhou os dedos. Ainda tinha a articulação do polegar ligeiramente
torcida e lhe doía ao dobrá-lo. "Será uma fratura - pensou - ou um entorse."

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Mostrava um arroxeado, embora cada dia mais esvaído, da maçã do rosto até a
testa, e gostava de ter o tornozelo elevado. Nunca o sacudiram tanto e, se não
fosse por sua experiência nas brigas de ruas, não teria conseguido escapar.
Mesmo assim, deixou a dois homens inconscientes e a outro com um
braço quebrado. Retornou correndo ao castelo Raeburn com toda a urgência
que foi possível, e com a esperança de enviar a alguém atrás deles, mas só o
louco do Alfred estava acordado e se negou a deixar Dougald entrar. O
estúpido bêbado esteve propagando a voz em grito a maldição da família e a
volta do fantasma, e a gritaria despertara até à senhora Trenchard. Claro que
ela arrumara tudo com precisão, lhe prestara os primeiros socorros, mandara
chamar Charles e enviado alguns homens em busca dos assaltantes de
Dougald.
Os atacantes se foram e não ficava nenhum rastro deles pelos arredores.
Maldição! Maldição! Se Dougald tivesse conseguido capturar somente a
um deles, teria descoberto quem estava atrás daquela infame intriga e estaria
pendurado de uma corda antes que acabasse o ano.
—Quem você acredita que está fazendo isto?
Charles agachou a cabeça.
—Sou um miserável fracasso, senhor, não sou digno de limpar seus
sapatos.
—Sim, sim, mas é o agente mais inteligente que trabalha para mim.
—Não fui capaz de descobrir a seu assaltante nem ao dos anteriores
senhores.
—Seaton - pronunciou Dougald. - Esse almofadinha escorregadio é o único
que tem um motivo.
Charles torceu a boca para um lado, logo para o outro; estava procurando
a maneira de não ofendê-lo.
—Com o devido respeito, senhor, para seu intelecto superior e sua vasta
experiência em julgar a seus compatriotas: não acredito que sir Onslow tenha
estômago para isso, senhor.
Dougald ofendia Charles a três por quatro, mas naquele caso foi quase
delicado.
—Por isso contratou valentões para fazerem o trabalho sujo. É um trabalho
feio.
—A fofoca não faz ao assassino.
Dougald observou seu criado.
—Aonde quer ir parar?
—Já sabe quão falsas resultam as acusações sobre supostos assassinatos.
Você mesmo se viu preso em semelhante injustiça. - Charles se ergueu para
frente com as mãos crispadas.
—Pense, senhor, como sir Onslow desfruta com os relatos que rodeiam a
seu supostos crimes. Pense no abertamente que corteja a madame, mesmo

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

você deixando imediatamente claro qual era seu interesse.


Sim, aquela primeira manhã, Dougald fora muito flagrante na exposição
de seu interesse por Hannah. Não deveria ter sido, mas a dor o impediu de se
reprimir.
—Depois, mantive a distância.
—Provocando ainda mais comentários, senhor. - Apertando os lábios,
Charles levantou a mão para frear qualquer protesto por parte de Dougald.
—Mas não, essa não é a questão. A questão é que se o tivessem
assassinado, sir Onslow teria sido o principal, de fato, o único suspeito.
—Porque ele é o herdeiro do título e da fortuna.
—Porque ele difunde falatórios caluniosos sobre você. Qualquer homem
que tivesse assassinado aos dois senhores anteriores teria tratado com mais
sigilo.
Dougald se reclinou para trás em sua cadeira. Charles expôs seu parecer.
Se tivesse açoitado esse objetivo com uma determinação tão inquebrável,
Seaton teria tramado seu plano e seu complô durante anos? e para que?
Para permitir que sua avareza e sua antipatia se voltassem contra ele
quando estava tão perto de sua meta? Claro que era possível, mas...
—Por que te importa tanto que suspeite de Seaton?
—Porque, senhor, se estiver enganado, a pessoa que o quer morto ainda
não foi descoberta.
—Sim? - Dougald acariciou o corte ainda tenro da testa.
—Ao menos deixe aberta a possibilidade da dúvida. Já tem sir Onslow em
observação. - Charles conhecia seu amo, assim não era uma pergunta.
—Sim.
Dougald não pensara em voltar a contratar tão cedo aos três detetives
que espionaram Hannah, mas mandara chama-los. Chegaram. Seguiram
Seaton, Seguiram seus rastros, passaram despercebidos com seus casacos
escuros e seu porte cavalheiresco. Eram condenadamente caros, mas Dougald
não podia confiar em ninguém do castelo Raeburn. Já não.
—Não sei quem é o culpado, mas continuarei buscando-o e guardarei suas
costas. - Como era seu costume, Charles fez um gesto com o punho no peito. -
Enquanto Charles esteja com você, estará a salvo, senhoria.
Nas atuais circunstâncias, era plausível um pouco de afetação.
—Obrigado, Charles.
—Agora, senhor, posso convidar à senhorita Setterington a entrar?
Afetação sim, mas manipulação não.
—Não.
Dougald agarrou a pluma e a molhou no tinteiro.
—Mas a senhorita Setterington esteve esperando.
Dougald apontou para Charles com a pluma.
—Não quero te ouvir dizer nenhuma palavra mais sobre a senhorita

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Christina Dodd
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Setterington.
—Mas, senhor?
—Nenhuma palavra.
Dougald retornou ao trabalho.

Fora do estúdio de Dougald, Hannah se sentava com os joelhos juntos, as


mãos pregadas e a boca apertada, enquanto sua exasperação adquiria
proporções incontroláveis. O que acontecia com Dougald?
Precisava falar com ele de uma coisa. Necessitava sua permissão para
convidar à rainha Vitória ao castelo Raeburn. Só demoraria um minuto, mas
não lhe concedia nem um minuto. Não era apropriado pedi-lo no jantar. Cada
dia há fazia duas semanas, transitara da oficina das tias, atravessando o
corredor, o grande vestíbulo e a capela até a sombria sala de espera sem
janelas do escritório de Dougald.
E cada dia encontrava Charles rodeado de velas, sentado a sua mesa, com
aspecto de ser o próprio diabo feito carne com seu espaçado cabelo branco
rígido e seus grandes olhos negros atormentados.
Expressava a ele seu desejo de falar com Dougald. Ele entrava no
escritório de Dougald e fechava a porta. E retornava quase imediatamente
para lhe informar que Dougald estava muito ocupado para recebê-la.
Aquele dia estava demorando mais.
Devia ceder e enviar a mensagem através de Charles, mas era obstinada.
Já vivera aquela cena uma e outra vez durante seu casamento, e agora
gostava ainda menos.
Ficou em pé, e passou da sala de espera até a capela. Aquela pequena
capela fora parte original do castelo, construída durante as lutas entre saxões e
normandos. No lado esquerdo, em um alto muro, vidraças de cores descreviam
a vida da Santa Marta e projetavam faixes de luz matizada por todo o templo. A
pátina do tempo cobria as vigas lavradas do teto arredondado.
As paredes estucadas se elevavam por cima da madeira polida
intricadamente esculpida. Os bancos resplandeciam, alisados pelas mãos e os
corpos de tantos fiéis. Uma pequena porta perto do altar conduzia à sacristia.
As velas ardiam perpetuamente em seus candelabros em cima do altar e
uma sensação de paz impregnava até as paredes de pedra, gesso e madeira.
Se Hannah pudesse encontrar semelhante paz?

—Charles, preciso falar com Dougald agora mesmo!


Charles olhou para Hannah.
—Monsieur Pippard está muito ocupado para que o incomodem com
problemas domésticos durante sua jornada de trabalho. Comente sua questão
urgente com ele esta noite.
—Sou sua esposa. Tenho direito a falar com ele quando desejar!

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—Pois então não o incomode com suas insignificâncias. Uma verdadeira


esposa faz que seu marido se sinta cômodo quando retorna de um dia de
trabalho. Se assegura que a casa esteja ordenada e limpa, arrumada e nunca
se queixa.
—Não necessito que você me diga como devo cuidar de meu marido.
—É óbvio que sim ou não estaria agora aqui.

O eco daquele tempo desgraçado ressoava em seus ouvidos. Como se


atrevia Charles a julgar, então ou agora, que suas necessidades careciam de
importância? E como se atrevia Dougald a ignora-la daquele modo?
Ela era a ex-proprietária da Distinta Academia de Instrutoras. Jovens
damas tinham tremido ante seu penetrante olhar. E nem sequer podia entrar
no escritório de Dougald para lhe dirigir aquele penetrante olhar dela!
Dando a volta, olhou a porta fechada do escritório da capela. Charles
estava ali há muito tempo. Talvez significasse que Dougald satisfizera sua
infantil necessidade de fazê-la esperar e por fim queria falar com ela.

—Pelo amor de Deus, Hannah, tem que seguir falando dessa loja de
modas? Estou cansado de ouvir suas queixas.
—Não estou me queixando. Estou recordando sua promessa.
—Se esqueça da promessa! Acaso não te dou tudo o que necessita? Não
tem criados para satisfazer seus mínimos desejos? Não se veste com as
melhores roupas?
Hannah quase degustava seu desespero.
—Sim, sim, mas não é isso o que quero. Ao menos diga a Charles que me
deixe governar meu próprio lar. Não tenho nada a fazer!
—Não seja tola. A maioria das mulheres estariam felizes de viver como
você vive. - Dougald lhe franziu o cenho. - Deveria deixar de se queixar de
Charles e aprender a se dar bem com ele.
É meu criado de confiança e não vou despedi-lo pelos caprichos de uma
moça.
—Não confia em mim tanto como nele.
—Querida, não seja tola. - Dougald a atraiu para ele e a beijou na testa. -
Você é minha esposa.

O qual não era uma resposta. Soube inclusive então.


Seu maior temor era que Dougald acreditasse que realmente agora
ansiava estar com ele e que ansiara estar perto dele durante a breve época de
seu casamento.
Não era assim. Vira Dougald cada dia durante o café da manhã e durante
o jantar, e se via seu semblante remoto, sardônico e demoníaco com mais
frequência, lhe daria náusea e inclusive urticária.

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Não só o via durante as refeições, mas sim precisava ser educada com ele.
Precisava simular respeitar sua posição de senhor de Raeburn e não se mofar
quando pedia um relatório diário de suas atividades.
Precisava lhe falar de maneira cortês, e se aproveitava a oportunidade
para insinuar que deveria lhe ajudar a estabelecer corretamente suas
obrigações, também ele aproveitava a oportunidade para insinuar que falaria
com ela quando estivesse preparado e se encontrasse bem.
Precisava suportar o modo em que a olhava. A observava todo o tempo
com seus infatigáveis olhos verdes. A escutava quando falava. Se convertia em
um incômodo geral com seus cuidados inarticuladas que, ela sabia, tinham
como objetivo pôr sua crítica em evidência. Se pudesse falar livremente, sem
que nem as tias nem Seaton andassem por aí aguçando alegremente o ouvido,
então diria a ele que a importavam um cominho seus cuidados e que podia
abandonar a tentativa de torná-la apreensiva porque não ia dar certo.
Dougald e Hannah estavam pondo em cena uma dança, uma em que ela o
perseguia e ele a evitava e, maldito seja!, ela não queria persegui-lo.
Afetada uma vez mais pela injustiça da situação, se afundou no banco da
primeira fila e olhou para frente. Acaso o Dougald com o que se casou deixara
de existir? Existira alguma vez ou fora um produto de sua imaginação? Pois ela
não reconhecia a aquele difícil e perturbador senhor que poucas vezes se
incomodava em ocultar as escuras curvas de sua alma.
Se acabassem de apresenta-los, se não soubesse a verdade, seria fácil
acreditar que matara sua esposa.
Talvez fosse melhor ser prudente quando falasse com ele.
Devia existir uma solução para aquela situação. Talvez a poderia achar na
capela. Pois durante seiscentos anos o altar fora o coração do castelo. Os
degraus estavam gastos pelas pegadas de centenas de pés que se
aproximavam para receber a comunhão. O próprio altar era feito de carvalho e
se limpava e encerava diligentemente para que a nervura de ouro puro
seguisse brilhando e uma toalha branca imaculada, engomada e bordada
pendurasse de seus extremos.
Aquela capela vira nascimentos e mortes, ouvido preces e maldições, e
dentro de seus muros se celebraram incontáveis batismos e oficiado
incontáveis funerais. Ao lado daqueles acontecimentos vitais, a atual
adversidade de Hannah não tinha comparação, mas ainda assim baixou a
cabeça e pediu que a guiassem.
Quando voltou a levanta-la, olhou ansiosa a seu redor esperando ver ante
ela uma solução celestial. Em troca observou, no feixe de luz azul procedente
da janela, um tosco lugar no muro, ao lado esquerdo do altar.
Estava perto do chão, parecia como se um dos painéis lavrados tivesse se
desprendido da parede.
Olhou para o escritório de Dougald. A porta permanecia obstinadamente

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fechada, então foi investigar a tábua deteriorada. Ao se ajoelhar viu que o


painel fora prejudicado pelo mofo ou
—o esfregou com a ponta dos dedos - algum objeto afiado até que o tinha
separado do gesso.
O que ocorrera naquele mofado canto da história? Algum menino o teria
feito com um brinquedo? Desejara um criado ressentido destruir uma peça da
capela do senhor?
Hannah agarrou o extremo da tábua com as unhas. Sim, estava solta, e
enquanto a puxava não viu o gesso, como esperava, a não ser uma cavidade
sombria entre a tábua e o muro de pedra do castelo.
Talvez tivesse algo oculto ali?
Necessitava uma vela para olhar o interior, mas ao se erguer golpeou a
cabeça. Forte. Tão forte que caiu de joelhos e por um momento, só por um
momento, não viu nada mais que uma espiral negra e vermelha.
Quando se recuperou, sua testa descansava no chão e ouvia Charles
chamá-la.
—Madame! Madame! Está se sentindo mal?
Se inclinava sobre ela e a única coisa que podia pensar é que lhe doía a
cabeça e se sentia estúpida.
—Golpeei a cabeça - repôs.
Charles a agarrou pelo braço e a ajudou a ficar de pé.
—Com o que? - Parecia surpreendentemente cético.
Levantou a vista, mas piscou contra o feixe de luz que atravessava o vitral
de cores.
—Não sei. Não me dei conta que estava debaixo de algo, mas quando
tentei me levantar...
Charles a ajudou a chegar até o banco.
—Sente-se, s'il vous plait, madame, está muito pálida.
—Já disse que me golpeei com algo!
—Acredito - disse em um tom tranquilizador que a irritou ainda mais.
Não parecia preocupado por seu estado, estava muito ocupado olhando a
seu redor, e justo quando se dispunha a lhe dizer que a deixasse em paz,
mostrou o chão.
—Olhe, foi isso.
—O que foi? Se inclinou e recolheu uma parte de arabesco de madeira
lavrada.
—Deve ter caído de uma das vigas. Olhou para cima, desta vez com
cuidado, e examinou as vigas.
—Não vejo que em nenhuma madeira falte uma parte.
—Está muito escuro ali acima e as esculturas são velhas. Direi a lorde
Raeburn que deveria renovar a capela antes que alguém saia ferido.
Hannah olhou fixamente para Charles.

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—Alguém mais - retificou. - Posso lhe sugerir que suba a seu quarto de
dormir? Eu explicarei às tias que está indisposta e farei que lhe subam o jantar
em uma bandeja. Deve descansar depois de um golpe assim na cabeça.
Mas sua amabilidade causava o efeito contrário e a voltava mais teimosa,
sabia muito bem o que significava.
—Sua senhoria falará comigo?
Charles conseguiu parecer contrito e inclusive retorceu as mãos.
—Sinto muito, madame, não tem tempo.
—Na realidade não quero nem vê-lo. Você sabe, não sabe?
—Entendo, madame.
—Tenho que lhe fazer uma única pergunta que só ele pode responder.
—Possivelmente se você me comunica a dúvida, poderia transmitir a ele.
Hannah soprou.
—Ou possivelmente não - reconheceu.
—Sua senhoria está jogando e tem tudo para perder - disse Hannah.
—Temo que tem razão.
Charles estava brincando com ela e aquilo a irritava ainda mais. Dougald
estava jogando, mas ela não tinha a mínima oportunidade de ganhar e tanto
ela como Charles sabiam.
—Ele não vai gostar do que vai acontecer a seguir.
Charles inclinou a cabeça.
—Faça o que queira, madame.
Zangada por sua cortesia ficou em pé, sua cabeça doía muito para tratar
com o amigável Charles. Rasgões negros turvaram sua visão e por uns
humilhantes momentos a náusea A ameaçou.
—Acredito que deveria acompanhar a madame até o quarto - disse
Charles.
—Isso não será necessário. - Respirou fundo e se estabilizou. - Se
necessita mais de um golpe na cabeça para me deter.
—Já o vejo.
Suspeitou que se tratava de um comentário sarcástico, mas lhe custava
muito esforço responder. Lenta e vagarosamente saiu da capela, percorreu o
corredor, subiu a escada e depois de um momento de dúvida no que se
debateu se deveria retornar com as tias, se dirigiu para seu quarto. Ali tirou
sua máquina portátil, se sentou à mesa que havia junto à estreita cama e
começou uma carta que começava assim:
"Minha querida e graciosa soberana, rainha Vitória..."

Capítulo 14

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The Governess Brides 03

—Ethel querida, acredito que este fio branco servirá melhor para a gravata
de nosso querido príncipe. - A voz da tia Isabel ressoou alta e clara na oficina
das tias.
—Não querida, quero tecer uma parte neste fio mais escuro porque estou
começando a sombra. - Era o turno de tia Ethel no tear e defendia ferozmente
sua opinião.
—Acredito que um pouco mais de branco?
—Não, querida, esse foi o engano que cometemos na primeira vez!
Tia Ethel e tia Isabel estavam no canto melhor iluminado e ventilado: o
lugar onde foi montado a tapeçaria. A senhorita Minnie, tia Spring e Hannah se
sentavam junto a um dos janelões, enquanto a luz do sol poente iluminava o
trabalho de costura. Hannah baixou a cabeça para ver seu bordado e sorriu ao
ouvir as duas damas discutir sobre a gravata do príncipe Alberto. As quatro tias
eram como meninas, com vontade de brigar, cabeças-duras e empenhadas em
fazer tudo a sua maneira. Mas um objetivo comum as unia; queriam que a
tapeçaria da rainha fosse perfeita e trabalhavam um retalho após outro.
Tia Spring estalou a língua enquanto polia uma das bonitas pedras que
recolhera do leito do rio.
—Eu disse a Isabel que não se aproximasse até que Ethel tivesse
terminado.
A senhorita Minnie deixou seu caderno de desenho e tirou os óculos.
—Eu gostaria que não passassem por cima de minhas decisões. Eu
desenhei a cor de cada fio que devia se usar. - Esfregando a ponte do nariz
acrescentou: - Suponho que terei que ir me encarregar disto.
Hannah tampou a mão da senhorita Minnie com a dela.
—Deixe que eu faça isso .
A senhorita Minnie relaxou em sua cadeira.
—Seria tão amável, senhorita Setterington! Você tem o tato e a diplomacia
da que, ao que parece, eu careço.
Raramente elogiava a alguém, por isso Hannah se ruborizou ante o brusco
elogio. Se levantou e caminhou para onde as duas damas debatiam sobre a
virtude do branco frio e o branco quente.
As interrompeu sem reparos, pois se as tivesse deixado prosseguir nunca
teria podido interferir.
—A luz está morrendo, mas pelo que posso observar, o trabalho está
avançando muito bem.
—Esperava acabar esta fileira antes de deixá-lo - se lamentou tia Ethel.
Dando um passo atrás, Hannah contemplou toda a peça da tapeçaria. Nas
três semanas que estava no castelo Raeburn, tiraram da tapeçaria a peça que
continha o príncipe Alberto, descosturara a parte superior de seus ombros e
começado o árduo processo de voltar a criar seu rosto e o fundo. Cada retalho
de cor precisava ser tecido por separado e costurado ao seguinte retalho; cada

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engano supunha um agravante ao meticuloso e consciencioso trabalho das


tias. Hannah era a supervisora. A senhorita Minnie era a artista. As outras três
tias se alternavam no tear.
Hannah esperava mantê-las ocupadas até ao menos o próximo Natal mas,
com seu entusiasmo, a tapeçaria voltaria a estar acabada no outono ou
inclusive nos finais do verão.
—Claro, tia Ethel, que deve fazer o que desejar, mas com esta luz? -
Hannah sacudiu a cabeça. - Temo que esta pressa é o que provocou um
problema com o príncipe Alberto na primeira vez.
Tia Ethel deixou a bobina.
—Estava forçando a vista.
—Vamos, querida. - Tia Isabel se pendurou no braço de tia Ethel e a ajudou
a ficar em pé. - vamos ver se a senhora Trenchard nos sobe o jantar ou temos
que nos trocar para baixar a sala de jantar.
Saíram, amigas como sempre, e Hannah contemplou a carta que enviara a
Londres fazia uma semana. Tão só com que sua majestade se dignasse a
responder, que felizes ficariam as tias!
Não seria o mesmo, claro está, que conseguir que a rainha Vitória visse a
tapeçaria em todo seu majestático esplendor, e às vezes Hannah sonhava com
a cena em que a rainha se emocionava pela comemoração que lhe renderam e
agradecia às tias daquela maneira sua tão elegante, enquanto Hannah
permanecia junto à rainha e lhe dirigia um sorriso de suficiência ao incrédulo
Dougald.
O senso comum sempre a tirava daqueles pensamentos e a devolvia de
novo à crua realidade. Uma realidade em que a rainha Vitória nunca teria
tempo para fazer um gesto semelhante. Uma realidade povoada por anciãs
amáveis, um herdeiro petimetre10, Charles, diversos criados que não sabiam
exatamente como tratá-la e um marido que a tinha apanhado, ameaçado e
agora a ignorava conscientemente.
Uma realidade da que não podia fugir porque se o fazia antes de conhecer
seus pais, lamentaria toda a vida. Inclusive embora ao final seus avós a
rechaçassem.
—Está ficando muito bem, não é? - Tia Spring se encontrava junto à
Hannah e tocava ligeiramente a tapeçaria.
—Ficará perfeito.
Hannah olhou a amável dama pequenina e de cabelos cinzas que estava a
seu lado. A senhorita Minnie se sentava com os olhos fechados, juntando forças
para enfrentar o resto do dia, e aquela era a oportunidade de Hannah para
formular, sem que ninguém as interrompesse, as perguntas que a
atormentavam desde a primeira manhã que chegou. Se desejava se encarregar
do assunto que a preocupava, aquele era o momento.
10
Pessoa que cuida muito de seu aspecto

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—Tia Spring, você convidou aos Burroughs para vir nos visitar?
—OH, querida! Se supunha que precisava convidá-los?
Hannah baixou a cabeça por um breve instante no que a pena invadiu seu
coração. Era por isso que tia Spring necessitava uma dama de companhia. Às
vezes esquecia coisas. Coisas sem importância, como falar com Hannah dos
Burroughs. Coisas importantes, como onde se encontrava seu dormitório. Todo
mundo a ajudava.
As demais tias, Hannah, a senhorita Trenchard, sir Onslow, os lacaios, mas
já não podiam deixá-la só ou talvez se perderia nas curvas do castelo Raeburn.
—Posso convidá-los se quer - repôs tia Spring. - Os conhece?
—Pessoalmente não, mas ouvi falar deles.
—Talvez seus pais os conheciam?
—Sim. OH sim! Meus pais os conheciam.
—Os Burroughs são um casal encantador, um pouco mais velhos que eu. -
Tia Spring se aproximou um pouco a Hannah e sussurrou: - Não quero ser
fofoqueira!
A todas as tias adoravam a fofoca.
—Mas estavam acostumados a ser muito empertigados.
Hannah sabia. Sabia melhor que ninguém.
—Por quê?
Tia Spring deu de ombros, mostrando um indício de altivez próprio da irmã
de um conde.
—Pelo de sempre. Tinham dinheiro e suas famílias estiveram aqui desde o
começo dos tempos. Mas ambos eram os últimos de suas linhagens e tinham
um único filho que morreu sem herdeiros.
Agora estão completamente sozinhos. - Sorveu pelo nariz. - Eu disse a eles
que não deveriam jogar a essa jovem, mas não me escutaram.
Hannah ansiava ouvir a história de um ponto de vista alheio à mesma,
descobrir o que realmente acontecera naquele verão há vinte e oito anos.
Então perguntou.
—Que jovem?
—A senhorita Carola Thomlinson.
O nome ressoou dentro de Hannah.
—Amava tanto ao Henry.
—Henry. - Hannah pronunciou o nome. Seu pai se chamava Henry.
—Ele também a amava tanto, mas era um desses jovens que amaram,
sem personalidade. - Tia Spring tocou levemente o marco do tear. - Era tão
bonita.
Hannah recordava ter olhado a sua mãe e pensado que era a mulher mais
bela que vira em sua vida. Só quando Hannah ficou mais velha observou as
rugas de preocupação e as olheiras que o excessivo trabalho puseram sob seus
olhos.

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—Sim.
—Mas não tinha família. Era somente a governanta de uma família da
vizinhança.
Hannah estremeceu.
—Então a mandaram embora e ele o permitiu. - Os olhos de tia Spring se
encheram de lágrimas. - Ele começou a frequentar más companhias e morreu
em uma briga no botequim ao cabo de menos de três meses.
—Então ele nunca pôde ir procurar por ela.
Hannah sabia que estava morto; sua mãe contara, embora nunca soube
como ela descobrira. Mas de algum modo a ajudava acreditar que fora infeliz
depois de tomar aquela decisão, e imaginar que talvez, se tivesse vivido, teria
tido a coragem para desafiar a seus pais e se casar com a senhorita Carola
Thomlinson. E quanto a se estava informado do iminente nascimento de
Hannah, temia, seria um mistério, ao menos até que falasse com seus avós.
Seus avós. Possivelmente fossem cruéis, possivelmente fossem amáveis,
possivelmente não merecessem perdão algum pelo funesto destino que
propiciaram a seu filho, e possivelmente Hannah não se sentisse capaz de
perdoá-los. Mas precisava saber. Precisava vê-los. Se ocuparia disso
pessoalmente.
Na semana seguinte tinha meio-dia livre.
—Onde vivem os Burroughs? - perguntou tomando uma drástica resolução.

Capítulo 15

Hannah tinha a informação. A informação pela que acudira a Lancashire.


Tia Spring a dera voluntariamente, sem imaginar o muito que significava para
ela ou o que lamentaria Dougald que Hannah a tivesse conseguido.
Além disso, Hannah estava segura que tia Spring lhe teria dado a direção
dos Burroughs embora a tivesse posto à par da situação.
Então, por que Hannah se sentia tão culpada?
Provavelmente porque escondera os fatos de tia Spring e das demais tias.
Eram umas damas tão adoráveis, a tomaram sob seu amparo, lhe contaram
todos seus segredos, fazendo de seu trabalho um prazer.
A restauração da tapeçaria seguia de vento em popa e as anciãs que
estavam a seu cargo eram um encanto, a única mosca aporrinhante era
Dougald e sua desprezível superioridade.
Se não fosse por ele, seria perfeitamente feliz. Perfeitamente feliz.
A prova era que cantarolava enquanto sustentava no alto a vela e cruzava
o corredor para seu dormitório. A escuridão não a incomodava, nem tampouco
o horroroso e deslustrado papel da parede, nem as sombras que afinavam e

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The Governess Brides 03

oscilavam à luz da vela, nem as portas profundas, fechadas e misteriosas, e


certamente tampouco a absoluta e perversa solidão de sua situação.
A senhorita Trenchard havia dito a verdade quando lhe contou que só
Dougald e Hannah viviam naquela ala. A animação, a camaradagem, a alegria
que caracterizava a ala das tias estava ausente na sua.
Os criados iam durante o dia limpar o pó e a encerar, preencher a água do
copo e levar a roupa para lavar, mas a noite os passos ressoavam no liso chão
de madeira e Hannah fantasiava sobre Dougald e sobre o que ela queria dizer a
ele, se chegasse a vê-lo alguma vez.
Detida do outro lado da porta de folha dupla, olhava para o quarto de seu
amo. Acaso ele estava dentro e podia apanhá-lo e contar-lhe tudo. Que suas
táticas evasivas não quebrantaram sua fortaleza.
Que era feliz sendo a dama de companhia de sua tia e nada mais. Que não
se importava se não voltavam a viver como marido e mulher e, de fato, mal
pensava no que poderia passar se os dois se encontrassem sós em uma cama.
Ah!, e, que convidara à rainha Vitória para visitar o castelo Raeburn.
Hannah riu entre dentes. Dougald fazia tudo o que estava em sua mão
para demonstrar que não a queria mais, mas apostava que sim lhe interessaria
o convite.
Deu um passo para as portas. Na realidade, uma mulher valente teria
chamado a aquelas portas e falado com seu patrão. Era estúpido se refrear.
Mais que isso, era uma covardia, um sinal que, apesar da segurança que tinha
em si mesma, as táticas de Dougald para lhe fazer perder os nervos estavam
funcionando.
Alongou o braço e golpeou com o punho na porta. A grossa madeira
amorteceu o ruído, mas soou forte no corredor vazio. Compulsivamente, olhou
a seu redor. O corredor seguia vazio e escuro. Assim voltou a chamar.
Nada. Dougald não respondeu. Não saía luz por debaixo da porta.
Provavelmente não estivesse dentro.
Então, por que segurou o trinco da porta? O metal estava frio na palma de
sua mão; se deteve e calculou a loucura que estava a ponto de cometer. Logo
girou o trinco. A fechadura fez um ruído e a porta se abriu.
Ficou vacilando na soleira e escrutinou a infernal penumbra. Se dava um
passo mais, estaria invadindo conscientemente a intimidade de Dougald.
Não é que ele não merecesse. Em Londres ele ordenara que a espiassem,
Por Deus bendito!
Mas entrar furtivamente no dormitório de seu ex-marido parecia ilógico e
não era nada próprio dela.
Bem é certo que quando era uma menina sentia uma saudável dose de
curiosidade. Estava ansiosa de novas experiências. Aquela curiosidade a
conduzira até os braços de Dougald e dera lugar a um casamento insuportável.
O qual constituía uma boa razão para não entrar.

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Mas queria saber como era seu quarto. Então transpassou a soleira e,
levantando a vela, entrou com cautela até o centro da antessala de Dougald.
Na lareira brilhavam tenuamente alguns carvões que projetavam sua débil
luz sobre móveis e tapetes. Naquele lugar, sua vida como amo do castelo
Raeburn não era muito diferente da sua como dama de companhia das tias.
Sua antessala era maior, seu dormitório era maior, mas os tapetes
estavam igualmente descoloridos e apagados, o bordado dos assentos das
cadeiras estava desfiados, o papel pintado talvez estivesse na moda em outro
tempo, mas certamente não durante os últimos quarenta anos e, como
assegurara a senhora Trenchard, os carvões criavam uma cortina de fumaça no
ambiente.
O homem que trabalhara tão duro para conseguir os prazeres da vida
agora seguia trabalhando, mas ignorava os prazeres.
—Isto é penoso. - Alisou o horrível e puído tecido de uma das cadeiras. -
Realmente horrível. Quem escolheu o tecido?, o ferreiro do povoado?
A porta se fechou contra a parede e Dougald disse:
—Na realidade, acredito que a avó de tia Spring escolheu a malha.
Hannah deu um salto e se voltou. Na mão derramou cera quente e
segurou a vela por puro instinto.
Dougald a observava com seus resplandecentes olhos verdes. Atravessou
a soleira bloqueando a porta com suas amplas costas, e com os braços
cruzados parecia ainda maior.
Sua postura transmitia uma clara mensagem: não pensava lhe franquear o
passo.
—O que está fazendo aqui? - inquiriu Hannah.
Dougald arqueou uma sobrancelha.
Claro, aquele era seu quarto.
—Se perguntará o que eu estou fazendo aqui. Só estava olhando. - Sua
voz denotava culpabilidade e isso não era bom. - Queria falar com você.
Já estava dito. Por fim pode falar com firmeza. Muito melhor.
—O dormitório estava vazio.
—Pensei que podia entrar e te esperar.
—Que?, audácia de sua parte? - exclamou arrastando as palavras.
Sua brincadeira a recordou quão indignada estava e sacudiu a
culpabilidade de cima como um pato sacode a água.
—Se tivesse concordado em falar comigo quando lhe pedi isso, não teria
sido obrigada a me comportar deste modo.
—Não queria que me importunasse - repôs com frio desapego.
—Te importunar? - Pelo fato de convidar à rainha ao castelo Raeburn?
Hannah entrecerrou os olhos. - Te Importunar com o que?
—Com o assunto de nosso casamento. Com o assunto de sua família. -
Gesticulou para ela, com a mão aberta e os dedos separados. - Com o que quer

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

que seja que deseje agora me importunar.


Dougald era insuportável, acreditava que lhe lia o pensamento.
—Não preciso te importunar com o assunto de minha família. Falei com tia
Spring - lhe disse em um maiúsculo gesto desafiante.
Pensou que rugiria de fúria, mas em troca sorriu com um sorriso glacial.
—Já suspeitava que o faria.
Possivelmente ele não entendera.
—Agora não só sei os nomes de meus avós mas sim também sei onde
vivem.
—Compreendo.
Mas como podia reagir daquela maneira? Sem lhe pôr má cara nem
travas.
—Estou planejando ir vê-los, Dougald, e você não pode me impedir isso.
—Certamente não posso. Vá. - se reclinou despreocupadamente em uma
cadeira. - Já me contará o que dizem os Burroughs quando aparecer de um
nada dizendo que é sua herdeira.
—Sua herdeira - disse como uma desorientada. - Herdeira do que?
—Têm uma considerável fortuna. Uma casa agradável. Nenhum
descendente que possa herdá-los. Assim quando chegar e diga que é sua neta
perdida há tanto tempo, eu adorarei ouvir como reagem.
Dougald entendia a situação. A entendia melhor que ela.
—Não me interessa seu dinheiro, estou segura que a herança da
propriedade tem um limite.
Imediatamente se deu conta do pouco convincente que era seu protesto.
Ninguém acreditaria que a ela, uma órfã, uma mulher que trabalhava para
viver, não importava a fortuna de seus avós.
—Falei com o senhor Burroughs. É um velho inflexível partidário da linha
dura, um antigo militar com poucas ilusões e menos paciência com quem
aspira a algo. Me fez passar por boas, isso devido a meu passado e a minha
procedência. Imagina o que fará quando conhecer a você, senhorita Hannah
Setterington? Uma mulher que nem sequer usa o sobrenome de sua mãe?
Ter chegado até ali! Ter averiguado tanto! E ter topado com semelhante
obstáculo na busca de sua família!
—Não tenho nenhuma prova de meu parentesco - disse com frieza. - Se o
que diz é certo, então nunca poderei os convencer de quem sou.
—Talvez vejam algo parecido entre você e seu filho. Ou talvez? - Dougald
esfregou o queixo como se estivesse pensando. - Talvez existam provas.
Dougald abandonou a representação.
—Um maço de cartas que seu pai escreveu a sua mãe. Sua mãe me
deixou isso. Essa seria a prova que procuram.
—Cartas? De meu pai? - Mal podia conter sua alegria. Tinha provas da
existência de seu pai. Palavras que ele escrevera. Palavras que podia ler. Então

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se deu conta, as cartas não significavam nada para Dougald.


Não eram mais que um instrumento para influir nela.
—Me dê isso. Disse com impetuosa exigência.
—Não.
—É um bobo.
—Semelhante adulação não contribuirá para que ganhe meu favor.
O cabelo negro penteado para trás conferia uma austera elegância aos
traços de Dougald. A pálida piscada da única chama cruzou seu rosto,
revelando a proeminência de umas maçãs do rosto e o ângulo de uma
mandíbula regiamente esculpida e angulosa. Nem um vislumbre de sorriso
abrandou seus lábios. Seus grandes olhos não a olhavam; a submetiam a
vigilância. Nada do que fazia, nenhum matiz de seu pensamento ou seu
discurso passava despercebido. O traje escuro se mesclava com a noite que os
envolvia, mas mesmo assim Hannah via e sentia cada músculo de seu corpo. A
fortaleza dos ombros, a grossura do peito, os quadris estreitos e as pernas
poderosas. Sim, perdera peso desde o dia de suas bodas, mas nunca duvidou
que corresse mais que ela ou de que fosse mais forte. Sob aquela luz, naquele
lugar, parecia mais o vingador que alimentava seus pesadelos que o amante
de suas fantasias.
—O que tenho que fazer para conseguir essas cartas? - perguntou.
—Já sabe.
Se referia a? Claro que sim. Se o que queria era que se sentisse incômoda,
estava fazendo muito bem. Lhe dizia umas coisas tão terríveis! Coisas que
feriam, sem nenhum indício de amabilidade ou afeto.
Entretanto, agora, seu coração pulsava ao ritmo de um inquietante desejo
comum. Ali, naquele escuro quarto cheio de fumaça, enquanto a estava
olhando, Hannah voltou a experimentar aquele antigo arrebatamento de
excitação, de novidade, de fascinação. Sua respiração acelerou, Dougald teria
notado? Com prudência apertou os joelhos por debaixo das anáguas, mas não
sabia se o fazia para eliminar a pressão e a umidade ou para conservar a
sensação da imaginária carne de Dougald. E desejou - meu Deus, quanto o
desejou!
—poder seguir acreditando no futuro, tal como acreditara aquele primeiro
dia no trem quando acreditou que o amava, e acreditou que ele amava a ela.
A escuridão se pegou a ele como um amante e ela quis se retirar dessa
escuridão.
—Por que razão não tem uma vela? - perguntou Hannah.
—Eu gosto de te ver passar.
Assombrada, ficou olhando-o fixamente aos olhos. Ele estava ali de pé
quando ela entrou? Estava tão escuro e ela estava tão absorta em seus
pensamentos que o tinha passado por cima?
E, a teria estado observando outras noites, em outras ocasiões? Quando

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Christina Dodd
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ela cantava ou...


—Fala sozinha - lhe disse Dougald.
Não podia negar. Falava quando estava nervosa ou se sentia sozinha e
enquanto cruzava o corredor confluíam as duas coisas. Tentou recordar
freneticamente quanto falara e o que havia dito.
Os dentes de Dougald brilhavam na tênue luz.
—É um feio costume, um costume que conduz à loucura? ou significa que
já está louca? Não me lembro.
O que vira dela? Sonhava fazendo o que ameaçava? Planejava assassiná-
la? Ou saltar sobre ela e possuí-la?
—É você quem deveria dizer, respondeu.
Conhecia Dougald. Não era capaz de matá-la e, se tivesse intenção de
fazê-lo, bom, a teria advertido antes de cometer a traição.
—Então me encerrará? - O estava avaliando e lhe oferecendo uma
alternativa. - Acredito que a loucura o liberaria de uns indesejados votos
matrimoniais.
Ele esfregou o queixo simulando estar meditando sobre isso.
—Não tinha pensado nisso, muito obrigado pela sugestão.
—Se fizer que me encerrem, terá que admitir que não me assassinou, mas
permitiu que circulassem rumores sobre minha morte, em seu detrimento. -
Hannah adotou uma postura desafiante. - Então, a quem considerariam louco?
—A mim, sem dúvida, por não castigar a minha esposa.
—Esse é meu Dougald. Sempre um bruto. - Deu-lhe as costas, com uma
atitude muito parecida com a do domador de leões que com audácia volta as
costas à fera selvagem, e se aproximou das cortinas.
Levantou uma borla e voltou a ficar frente a ele. Dougald não se moveu. -
Bruto ou não, não tem por que viver assim, rodeado disto tão velho e puído. A
quem escolheu este desenho deveriam tê-lo matado.
Dougald estremeceu. Hannah ficou olhando-o fixamente.
—Não acredita?
—Não me dei conta.
—Desde quando? Estava acostumado a querer o melhor.
—Estava acostumado a me importar sobre o que pensassem os outros.
—Falamos das comodidades básicas.
—As cadeiras são velhas, o colchão está cheio de calombos. - Dougald deu
de ombros. - De qualquer modo, não consigo dormir.
—Talvez por isso está tão taciturno.
Hannah aproximou o candelabro da mesa e acendeu as velas. A habitação
não melhorava embora a iluminassem uma dúzia de velas. A fumaça manchara
os cortinados e o papel pintado da parede em nervuras irregulares, e um
aroma acre impregnava tudo. Ao olhar a seu redor, pensou que necessitava...
bom, necessitava algo. Uma influência que o adoçasse ou um discurso firme e

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Christina Dodd
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razoável.
Nunca pôde inculcar um pouco de senso comum, mas seu Charles sim.
—O que Charles opina disto?
Seus olhos se converteram em duas finas lascas de gelo verde.
—Não perguntei.
A hostilidade de Dougald não a impressionava.
—Sempre gostou das comodidades, inclusive mais que você.
—Ele está cômodo em outra parte. - Dougald deu um passo entrando no
quarto. - Eu já não sou o mesmo, nada em mim é igual, Hannah. Se tentar me
julgar por minhas ações passadas está fadada ao fracasso.
—Então temos que falar de certos temas.
—Esta noite não. Aqui não. Agora não.
—Você disse que já não é o mesmo, mas deveria ser eu quem dissesse
isso. Segue sendo o de sempre. Claro, é um homem - se sentou em uma das
cadeiras estofadas com muito recheio e cruzou os braços.
—Esta noite. Aqui. Agora.
Ainda meio oculto pela sombra, reclinou o ombro na parede. Durante um
momento, vislumbrou ao antigo Dougald com seu meio sorriso.
—É muito descarada para ser uma mulher separada.
—Não fui eu a que se equivocou, Dougald.
Seu sorriso desapareceu e retornou a sombria cara do estranho.
—Sei. Já castiguei ao outro culpado.
O que queria dizer? De quem estava falando? De Charles ou dele mesmo?
—Ninguém me desafia, Hannah. Recorde isso.
Não, não castigara a si mesmo. Era muito presunçoso para isso.
—Eu o desafiei.
—Nem tampouco ninguém consegue que dê meu braço a torcer -
continuou. - Não estou disposto a suportar uma cena esta noite. Falaremos
quando eu o diga, e não antes.
Imediatamente Hannah se agarrou a suas palavras.
—Admite que temos que falar?
—Sim, quando considerar que é o momento oportuno, eu falarei e você
escutará.
Maldito homem e sua eterna impassibilidade! A tirava do sério até
enfurecê-la como ninguém na vida a enfurecera. Ficou em pé e se aproximou
de Dougald. Ele nem sequer se afastou, por que teria que fazê-lo? Ela não
podia lhe fazer nenhum dano. Deixou que o agarrasse pelas lapelas.
—Não mudou nem um ápice. É o mesmo Dougald de sempre, que dita
ordens e decide por outros. Não aprendeu nada. Mas - Hannah o sacudiu, - não
parece se dar conta. Eu sou diferente.
—Está mais velha, mais magra.
—Sou mais rica. - Levantou a vista para ele com um gesto altivo do

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queixo. - Não tenho por que suportar suas tolices, Dougald. Tenho suficientes
recursos para me manter sozinha.
—Dinheiro? - Dougald acariciava seu queixo com carícias lentas, leves e
amplas. - Tem dinheiro?
Hannah não fez caso de suas carícias. Ao fim e ao cabo, estava muito
séria. Queria que a escutasse, que soubesse que conseguira triunfar sem sua
ajuda.
—Estive economizando dinheiro desde a primeira vez que lady Temperly
me pagou. No princípio não tinha muito, mas economizei até o último tostão.
Ele assentiu.
—Em uma conta no Banco da Inglaterra.
—Sim. E finalmente, quando vendi a Distinta Academia de Instrutoras,
depositei todos os lucros. Não necessito seu emprego. Posso comprar um
bilhete de trem ou alugar uma carruagem.
Posso ir a qualquer parte e viver como uma dama, e você não pode me
deter.
—Embora nunca explique à polícia que é minha esposa?
A pergunta de Dougald deteve a inundação de palavras de Hannah como a
água extingue a chama. Mas o modo de dizê-lo, o modo de olhá-la e a mestria
dos dedos que acariciavam o perfil da mandíbula e desciam pelo pescoço...
ah!, ela não era de gelo. Naquele momento certamente que não. Baixou a vista
para ela como se fosse dele e tivesse reconhecido sua posse. Reconhecido sua
titularidade. Ela suspirou.
—E por que faria isso?
—Realmente imagina que a deixaria ir à estação de trem? Que te
permitiria voltar a me abandonar? - Soltou uma risada breve e rouca. - Quando
na realidade é minha esposa e um homem tem o direito de controlar tudo o de
sua esposa brigona, inconstante e irresponsável?
O amor, ou a ilusão do amor, não era suficiente. Nunca fora suficiente. As
horas felizes passaram há muito tempo, a esperança morrera e a paixão, bom,
se a paixão não estava completamente extinta, isso simplesmente significava
que devia ficar rígida, levantar o queixo e levantar a guarda para se defender.
—Encontrarei o modo de escapar de você, Dougald. Sabe que já o fiz
antes.
—Mas se o faz, querida, estará como antes. Sem recursos, sem amigos
que possam te ajudar, e realmente agora é uma personagem muito conhecida
em toda a Inglaterra. - Pôs a mão plana sob seu queixo e a segurou.
—A encontrarei.
Suas palavras, com aquela dose de brilhante engenho, produziram um
calafrio que percorreu sua coluna vertebral.
—O que quer dizer com "sem recursos"?
—Sua conta no Banco da Inglaterra. Onde tem depositadas suas

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economias. A fechei. Tudo o que uma mulher possui está sob o controle de seu
marido, - sorrindo ante seu olhar de espanto ele pôs as mãos na cintura dela.
—O que é seu, é meu.
Como uma torpe bailarina, se movendo muito rígida, com os joelhos
travados e os pés vacilantes, saiu pela porta e se internou no corredor.
—Que durma bem, querida.
A beijou nos lábios, se meteu em seu quarto e lhe fechou a porta na cara
dela, sem que ainda tivesse saído de seu assombro.

Oculta nas sombras do corredor, uma figura observava Hannah se afastar


da porta.
Aquele acontecimento fora vigiado.

Capítulo 16

Hannah guiava o cavalo da carreta em um refrescante entardecer de abril


pelo caminho que conduzia para Burroughs Hall. vestia seus melhores
ornamentos diurnos: um vestido de cetim castanho com uma saia de babados
bordada, uma jaqueta negra de veludo e um chapéu castanho combinando,
com a aba de fita franzida. As luvas de pele negras seguravam firmes as
rédeas e quem a visse diria que aparentava estar tranquila. Uma tranquilidade
que contradiziam as numerosas vezes que trocara de roupa aquela manhã, e
também seu coração, que insistia em palpitar fortemente com um batimento
desassossegado e entrecortado.
Mas, enquanto o cavalinho avançava com passo decidido para a negra
grade metálica que rodeava o imóvel de seus avós, Hannah praticava o modo
de narrar o inenarrável.
"Senhor e senhora, não sei se são conscientes de minha existência, mas
sou a filha da senhorita Carola Thomlinson e seu filho, Henry."
Ou: "Senhor e Senhora Burroughs, faz vinte e oito anos, seu filho Henry
amava minha mãe, a senhorita Carola Thomlinson, e eu sou o resultado."
Ou: "Sem dúvida vocês devem ter temido que chegasse este dia?"
Na realidade se tratava disso. Se seus avós estavam à par de seu iminente
nascimento e mesmo assim tinham mandado sua mãe embora sem um pingo
de compaixão, então não a quereriam em suas vidas.
E inclusive embora a quisessem, ela quereria a eles? Poderia lhes perdoar
a dor de sua vida anterior e a pena da morte precoce de sua mãe? Mamãe só
tinha trinta e um anos quando morreu. Agora Hannah quase tinha sua idade, e
pensar na morte quando se encontrava mal alcançando o topo do poder, a
sabedoria e a força, lhe provocava uma amargura desesperançadora.

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A porta principal da grade estava aberta e através das árvores se divisava


a casa. Em alguma parte, muito perto de seu coração, sentiu uma pressão. Lhe
custava respirar e lhe doía do terror que sentia.
E justo antes de entrar e dar o passo definitivo e irrevogável para cumprir
seu sonho, Hannah puxou as rédeas para a esquerda e se deteve a um lado do
caminho. Deteve o cavalo e desceu da carreta à erva umedecida pela chuva
que caíra antes. Com as rédeas nas mãos, avançou até apertar a cara contra
os barrotes de metal.
Contemplava a casa de tijolo, construída ao estilo palaciano inglês do
século passado, suavizada pela hera e animada pela moldura branca. Não era
muito grande, teria uns vinte cômodos, era o lar de uma família rica e
assentada no campo. A grama bem aparada e as árvores velhas emolduravam
o edifício, e, como o adorno de um pacote, as rosas em flor subiam pelas
pérgolas levantadas nos campos.
Burroughs Hall era formosa, a fantasia infantil de todo órfão.
Hannah não conseguia se animar a entrar pelo atalho, subir os degraus e
chamar com a aldrava. Apertava os dedos contra os barrotes frios. Ali seus pais
se conheceram. Ali se apaixonaram.
Provavelmente a conceberam em um desses cômodos do andar superior.
Mas aquele não era seu lugar. Ou sim? Seus avós a expulsaram dali antes que
ela tivesse visto o primeiro raio de luz.
A porta principal se abriu e Hannah se esticou. Quem seria? Um homem
em um antiquado libré de cetim azul e uma peruca empoeirada entrou no
pórtico.
Hannah relaxou. Um criado. Levantou a mão e do fundo chegaram um
tinido de arnês e o repico de uns cascos de cavalo. Uma carruagem aberta
chegou até os degraus conduzido por um jovem chofer.
O criado e o chofer começaram a falar. Hannah estava muito longe para
ouvir sequer um sussurro de sua conversação, mas pensou, certamente aquilo
significava, sim, ali estava: um rígido e idoso cavalheiro de bigode e
sobrancelhas hirsutas, vestido com um traje marrom. Saiu da casa, umedeceu
o dedo com saliva e o levantou para o vento.
Assentiu como se estivesse agradado, logo tirou um relógio de prata de
seu bolso, o abriu e se dirigiu com impaciência para a porta.
—Alice, será que sempre tem que conseguir que cheguemos tarde? -
gritou com uma voz profunda e impaciente.
Uma dama um pouco encurvada vestida com seda granada e um chapéu
de plumas se aproximou dele. As plumas se moviam com um constante tremor.
Hannah podia ver que seus lábios se moviam, mas falava como deve falar
uma dama, baixinho, e não conseguiu ouvir nenhuma só palavra.
Sua garganta secava enquanto contemplava, pela primeira vez, a seus
únicos parentes neste mundo.

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Não pensou em se mover, nem para frente nem atrás. Só pôde ficar ali
plantada e contemplar aos criados colocar a escadinha debaixo da carruagem
e ajudar a entrar no veículo primeiro à dama idosa e logo ao idoso cavalheiro.
O criado fechou a porta e só então Hannah se deu conta que precisava se
esconder, melhor dizendo, devia se esconder.
Rapidamente conduziu o cavalo e a carreta até os arbustos e os ramos
ainda sussurravam atrás dela quando a carruagem passou.
Então, como a covarde néscia que era, saiu correndo e ficou de pé no
caminho olhando como se afastavam.
Eram sua avó e seu avô, e não encontrou a coragem para se apresentar
ante eles.

Aquela noite, enquanto Hannah caminhava penosamente para seu


dormitório, as pranchas do chão rangeram cansativamente sob seus pés, e o
corredor cheirava a antigas afrontas. A vela que sustentava ardia timidamente,
temerosa de iluminar os cantos ou chegar até o alto teto, e a solidão lhe
pesava como nunca antes.
—Porque esta solidão tem muito de covardia - disse em voz alta.
Podia amaldiçoar Dougald por assustá-la muito para seguir adiante, mas
isso não era de todo verdade. Com o passar dos anos, sempre que imaginava
se reunir com sua família, o terror se mesclava com a espera.
Talvez ele tivesse elevado o terror com seus bem dirigidos sarcasmos, mas
se tivesse sido valente teria seguido adiante de qualquer modo. Abriu a porta
de seu quarto.
—Não quero te ouvir se lamentar de sua desolação nunca mais, Hannah
Alice. - Em sua imaginação viu seus avós entrando na carruagem. - Não
quando teve uma oportunidade de ouro e a deixou escapar.
A visão desapareceu quando a única e desvencilhada cadeira rangeu e
dela se levantou uma figura sombria.
Hannah gritou do susto.
—Que demônios acreditava que estava fazendo ao convidar sua
majestade ao castelo Raeburn? - perguntou Dougald em um tom grave e
furioso.
—É necessário que apareça assim de repente me assustando desta
maneira?
Colocou a mão no coração, que pulsava apressadamente. Logo levantou a
vela para iluminá-lo, com sua perene cara de irritação e seu conservador traje
negro e apertado que lhe conferiam toda aquela formalidade.
Era um homem atraente, mas não tinha paciência para suportar sua
interminável amargura e sua atitude ameaçadora; agora seu aspecto não lhe
proporcionava nenhum prazer.
—Me responda. Por que não me disse que tinha convidado à rainha?

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—Deveria me pedir que o recebesse abaixo. Além disso - Hannah o imitou,


- não queria que me importunasse.
—Se limite a responder à pergunta. Que demônios acreditava que estava
fazendo ao convidar sua majestade ao castelo Raeburn?
A pergunta saía chiando entre seus dentes apertados; um interessante
fenômeno que a Hannah teria gostado de seguir observando. Mas pela primeira
vez desde que chegou, se encontrava diante do antigo Dougald, que perdia os
estribos. O antigo Dougald só fazia lhe gritar, mas naquele tempo tampouco o
tinham etiquetado de assassino. Então respondeu com uma fria educação.
—Disse às tias que eu conhecia sua majestade, mas não quis falar comigo
para me dizer o que pensava fazer com seu desejo de conhecê-la.
—Não esperava que você enviasse um convite para visitar meu lar. -
Vocalizou cada palavra.
—Bom, não sabia, precisava saber! - Acendeu as velas e uma débil luz
caiu sobre a estreita e limpa cama, a pia lascada com o copo e os antiquados
cortinados. - Assim em lugar de fazer o que você queria, o qual teria feito se
tivesse aceitado falar comigo, fiz feliz às tias escrevendo a sua majestade.
Incluí um convite escrito para que viesse contemplar o humilde tributo que as
tias fizeram a ela e a seu reinado.
Dougald tirou do colete um luxuoso papel de cor marfim e o olhou como
se ameaçasse explodir.
De onde estava, Hannah podia ver o selo real. O educado declínio do
oferecimento de sua majestade.
A reação de Dougald ao ser o receptor de correspondência imperial a
surpreendeu.
Algumas pessoas sentem tal temor reverencial ante a rainha que são
incapazes de imaginar que possam ter um intercâmbio epistolar com um
personagem tão elevado, mas não esperava isso de Dougald.
—Sim, Dougald, admito que foi uma ousadia por minha parte, mas sua
majestade não se sentirá insultada, se for isso o que se preocupa, e o convite
das tias era encantador. Realmente deram com o tom adequado, que continha
uma mescla de entusiasmo, emoção e rogo - disse Hannah bastante encantada
pelo assombro de Dougald.
O papel vibrava ante o tremor de seus dedos.
—Esta foi sua vingança por não te escutar.
Ah! De modo que talvez não sentia temor reverencial pela carta, mas sim
estava irritado com a instigadora. Hannah compreendeu a necessidade de
escolher cuidadosamente as palavras pois, embora era certo que sua falta de
resposta lhe proporcionara a desculpa para escrever a carta, não era menos
certo que escrevera à rainha em um momento de arrebatamento.
—Vingança é uma palavra muito forte; entretanto, admito que não me
importou que constituísse uma perturbação para você. Eu não gostei que me

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tratasse de uma maneira tão desdenhosa.


—Desdenhosa? - rugiu tão forte que Hannah se sobressaltou.
Quando se recuperou, sacudiu a saia em um gesto distante de segurança
em si mesma, mas sem tirar os olhos de cima dele.
—Deus santo, Dougald, não há motivo para pensar assim! Recebeu a
resposta e isso é bom. Agora temos algo que mostrar às tias. Se sentirão
desiludidas, claro, mas uma carta da rainha deveria aliviar a ferida do rechaço.
Dougald levantou a cabeça e ficou olhando-a fixamente.
—Dougald, não sei por que se comporta deste modo. Ao menos a rainha
não aceitou! - exclamou com impaciência.
—Sim aceitou.
"Impossível!" Hannah abriu a boca para dizer isso, mas não emitiu
nenhum som.
—Sim, exatamente! - disse ele como se ela o tivesse dito. Abriu a carta e
leu: "Sua Graciosa Majestade, Vitória, Rainha da Inglaterra, aceita seu amável
convite."
Ainda muda e aturdida, Hannah sacudiu a cabeça.
—Aceitou, Hannah, aceitou. Estará aqui dentro de duas semanas! -
Dougald agitava a carta para ela. - Se dá conta do trabalho que este castelo
necessita somente para fazê-lo habitável?
E não digamos para fazê-lo apto para uma visita real!
Assentiu.
—Terei que contratar a todos os homens capacitados de muitos
quilômetros ao redor só para acabar os projetos que já começamos. - Elevou a
voz.
—Para levantar os painéis de madeira, acabar a pintura do corredor e do
salão grande, fazer as estantes da biblioteca. Acabar o novo vestíbulo e
construir uma escada para que a rainha Vitória não tenha que entrar pela
cozinha.
—Não me parece que seja para tanto - murmurou.
—A comitiva real ficará para passar a noite. A rainha, seu real consorte e
os infantes. Necessitarão acomodações, salões, um quarto para crianças que
não esteja coberto de pó e com as tábuas do chão podres pelos fungos!
—Ah!
—Ah! - zombou ele descaradamente. - Quer que falemos dos criados que
viajarão com eles, e de onde vamos pô-los?
—Não.
—Como vamos trazê-los da estação de ferrovia até o castelo se temos um
número limitado de veículos e nenhum deles tem menos de meio século de
antiguidade?
—A carreta de Alfred? - Disse em voz baixa e se encolheu assim que viu
que sua piada provocara que o seu olhar fulminante e cara de irritação se

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convertesse em um grunhido.
—No que estava pensando? - Dougald passeava de um lado a outro de seu
minúsculo dormitório. - No que estava pensando?
—Em que sua majestade não viria.
O nariz de Dougald se inflou como o de um corcel cheirando um desafio.
—Hannah, espero que esse projeto de costura seja condenadamente
maravilhoso.
Ficou horrorizada.
—Nem sequer o viu?
—Não! Por que teria que me preocupar do modo em que quatro anciãs
empregam seu tempo?
—Seriamente é odioso, Dougald! Pensei que o vira e suspeitei que
estivesse usando a tapeçaria das tias para atrair sua majestade ao castelo
atrás de sua maior glorificação pessoal.
—Usar às tias para minha glória pessoal? Isso é estúpido!
—Talvez, mas não pude perguntar isso porque nem sequer me permitiu
falar com você em particular - replicou experimentando uma satisfação imensa
ao fazê-lo.
Dougald deixou de passear e a olhou fixamente.
—Me diga que me preocupo por nada. Me diga que a tapeçaria é
magnífica.
Pensou na tapeçaria. A formosa e grande tapeçaria de vivas cores na qual
as quatro damas trabalharam durante vinte e quatro anos. Tomou ar e logo o
soltou em um longo e vacilante suspiro.
—Era.
—O que quer dizer com "era"? - perguntou em uma voz perfeitamente
serena.
—É uma... hum... tapeçaria esplêndida, muito grande, muito elogiável.
—Mas?
—Mas as tias não tinham acabado bem os traços do príncipe Alberto,
Então lhes sugeri que desmontassem essa parte. - Seu grunhido grave fez que
se calasse de repente. - Quer que as ajude a terminá-lo?
—Tem duas semanas. - A encurralara entre o armário roupeiro e a parede
e se aproximou tanto a ela que seu quente fôlego acariciou sua face. - Duas
semanas antes que sua graciosa majestade, Vitória, rainha da Inglaterra, visite
nosso pequeno castelo. Se assegure que a tapeçaria está acabada.
Queria lhe dizer que era impossível, mas seus olhos eram apenas duas
raias furiosas e... bom, certamente fosse só fúria. Usava sua proximidade para
intimidá-la, e estava conseguindo à perfeição.
Certamente sua ameaçadora postura fez que seu coração pulsasse, seus
joelhos tremessem e suas vísceras encolhessem. Não deveria escolher aquele
momento para notar seu aroma, a couro, sabão e a Dougald.

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

E retrocedeu, não porque temesse que empregasse a violência contra ela


e pusesse a mão em cima dela, mas sim porque se a tocava, teria estremecido
e suspirado e desejado mais do que devia desejar de uma besta tão
desalmada.
—A tapeçaria - disse Dougald.
—Estará acabada - ela prometeu.
Girando sobre seus calcanhares, se afastou a grandes passos e fechou a
porta de uma portada.
Hannah desabou no canto e tampou os olhos com as mãos. Onde se
meteu? Quinze dias para voltar a tecer e costurar uma tapeçaria que havia
levado vinte e quatro anos para acabar, e fazer melhor que antes?
Parecia impossível.
E, por desgraça, a tapeçaria era o menor de seus problemas. Por alguma
cruel burla da natureza, agora descobrira que por muito que Dougald a
ignorasse, por muito que a tivesse ofendido, quando ele se aproximava ainda a
fazia tremer e o desejava.
Era óbvio que a presença dela não afetava a ele do mesmo modo ou...
A porta se abriu com estrondo e Dougald voltou a entrar no quarto.
—E onde esteve?
—Onde estive? Quando? - repetiu perplexa.
—Hoje. Esta noite. Por que não estava no castelo?
Recordou os acontecimentos do dia. Seus avós. Seu desejo de falar com
eles mas sem encontrar a coragem para fazê-lo. Ela, olhando com o nariz
apertado contra a cerca como uma mendiga sem lar.
Nenhuma força da terra ia conseguir que contasse a ele onde esteve nem
o que fizera. Ele o consideraria um grande êxito. Se poria a rir.
—Era meu meio-dia livre e, portanto, não é seu assunto.
Estava orgulhosa de sua inescrutável resposta até que viu o rubor de sua
ira.
A olhava de cima abaixo.
—Se vestiu. Não a vira assim vestida desde que está aqui. - Apertou os
punhos. - Se tiver saído com esse mequetrefe sopragaitas do Seaton?
—Tampouco seria seu assunto. - Estava ciumento?, que adorável!
Voltou a se inclinar sobre ela, só que desta vez ele não estava furioso pelo
da rainha. Desta vez sua fúria era pessoal.
—Maldita seja! Claro que é assunto meu aonde vai e o que faz.
Hannah levantou o queixo.
—Por quê?
—Porque é minha esposa.
Hannah fervia de indignação, uma indignação que nascia da frustração de
seu ser.
—Quando? Faz nove anos? Hoje não, isso asseguro. Agora não. Não

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

quando nem sequer fala comigo se não for para me dar instruções ou ordens.
Retrocedeu um passo e a examinou como se a estivesse inspecionando,
aconchegada no canto.
Ela avançou e ficou olhando fixamente a aquele canalha egoísta e
presunçoso que pensava que podia controlar seu dinheiro e seu destino.
Ele a abraçou. A segurou pelo cabelo e aproximou os lábios aos seus.
Se beijaram em um torvelinho de paixão, frustração e fúria, com os corpos
apertados, e a língua de Dougald em sua boca. Maldito! Voltar a trata-la de um
modo tão insolente, como se ela fosse a mocinha de dezoito e ele, o superior
homem amadurecido. Mas agora ele não era superior; a desejava, pois seus
braços a apertavam fortemente para ele, suas mãos procuravam através das
capas de saias e anáguas até lhe encontrar as coxas e levantá-los ao redor
dele. E ela, o abraçou pela cintura com as coxas, apertou o torso contra seu
colete, o beijou com os lábios abertos pressionando com força a língua contra a
sua e desejando que as roupas que os separavam desaparecessem de um
mágico sopro.
Dougald afastou a boca da dela.
—É terrivelmente excitante.
A fez girar sobre os calcanhares e se dirigiu para a estreita cama.
—Eu não. - Mal lhe ocorria uma resposta, mas o instinto a fez se estirar
para lhe morder o lábio superior.
—Eu não sou excitante. Isto não é excitante.
—Não. - A deitou sobre o colchão enquanto lhe rodeava o corpo com as
pernas e apertava os seios contra ele. - Não digo agora, mas sim desde que
chegou, cada dia. - A olhou aos olhos.
—Caminhando como se fizesse cambalhotas pelo castelo. Subindo a
escada. Atravessando os corredores.
—Eu não faço cambalhotas. - Acariciou-lhe o cabelo com os dedos e
decidiu que deveria deixar-lhe assim comprido sempre. - Não sou um cavalo!
—Falando daquela maneira, enquanto eu trabalhava em meu escritório, e
me esforçava por te ouvir conversar com Charles.
—Ordena que não fale com ninguém, - rindo com esse trapaceiro do
Seaton.
—Você vem de uma família de trapaceiros, e é o pior de todos.
—Vestindo de um modo provocador.
—De um modo provocador! - Entrecerrou os olhos para olhar o vestido
castanho.
Ficando de joelhos, Dougald lhe levantou a saia e as anáguas até a cintura
e, como um magistrado demonstrando a culpabilidade do acusado, mostrou
seus tornozelos.
—Olhe isto. Renda nas meias!
—Nunca mostrei isso. - tirou as pantufas de pele.

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Christina Dodd
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—Sabia o da renda. Notava que estava aí. - Desabotoou-lhe o laço da


cinta.
—E o que posso fazer se desenvolveu dotes de clarividência!
—Só no que diz respeito a você. - Baixou-lhe as meias. - Só no que se
refere a você.
A estava despindo de um modo em que não a despiram em nove anos.
Nove longos anos. No mais fundo de seu ventre experimentou esse lento,
quente e profundo deslizar do desejo. Nove anos. Muito tempo.
Esteve ignorando seu corpo, dizendo a si mesma que não tinha desejos
nem necessidades nem querências. Agora, à primeira carícia de Dougald, já
estava disposta. Embaraçosamente disposta, completamente disposta e não
desejava ir mais devagar nem se refrear e certamente não pensar nisso.
—Sonhei com você - disse com a boca curvada em um lento e pícaro
sorriso, enquanto a abria com os dedos.
Hannah fechou os olhos em um excesso de desejo doce e quente.
—Sonhei que a tocava aqui - a mais leve das carícias a fazia saltar da
cama - e aqui - a acariciava com enfado - e queria te encher com todos meus
dedos.
Enquanto Dougald deslizava um dedo dentro dela, Hannah apertou o
dorso da mão contra a boca, para tentar afogar um gemido de paixão.
—Você nunca queria que a ouvisse. - Estava lhe dando uma doce
massagem com o polegar enquanto colocava e tirava um dedo uma e outra
vez. - Sempre tentava se negar o prazer.
—Só? - disse fazendo uma pausa para recuperar o fôlego - só depois que
você deixou muito claro que aquilo não era amor. Era somente um dever e...
A pressão da mão de Dougald contra seu púbis silenciou aquele discurso
cheio de ressentimento. Quando ele a tinha assim, com um dedo dentro dela
enquanto a acariciava sem cessar com a mão, Hannah já não recordava velhos
rancores. A única coisa que pensava era nele. O agarrou pelas lapelas, o atraiu
para ela e o olhou aos olhos.
—Me faça isso agora.
Dougald riu. Riu como o esnobe tolo e presunçoso que era. Até que ela
soltou uma das lapelas e deslizou a mão pelo peito dele, por cima do ventre e
baixou até o satisfatório e evidente vulto da entreperna.
Logo, quando tomou medidas e acariciou seus testículos, sua risada
cessou. Dougald entrecerrou os olhos e jogou para trás a cabeça, então
Hannah viu a tensão dos tendões do pescoço e o brilhante rubor do desejo que
iluminava suas faces.
—Me faça isso agora - repetiu.
Desta vez não riu. Se retirou um pouco, tirou as meias de tudo,
desabotoou as calças e as baixou até mais abaixo dos joelhos.
Aquela pressa agradou a Hannah e reconfortou primeiro seu orgulho e

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logo o desejo. Santo Deus!, era grande e audaz, a desejava de um modo muito
explícito, e se não a penetrasse logo...
—Dougald, por favor. - Estendeu os braços para ele.
Dougald caiu sobre ela como um animal desenfreado, sem se preocupar
por sutilezas, respondendo à exigência de Hannah de se unir com um
satisfatório instinto que fazia que a investisse impetuosamente.
Hannah ofegou. Levava tanto tempo sem ser satisfeita, estava muito
tensa. O temor que lhe fizesse mal a assaltou e logo a dor se fez realidade.
—Não - disse lhe cravando as unhas nos braços.
Dougald a olhou, a olhou como um homem que está se afogando ao que
privam do resgate. Logo reparou na expressão dela: feroz, torturada,
insatisfeita. Tragou saliva e se conteve.
—Deixa que a encha, carinho. Relaxe e me deixe entrar - ele ordenou na
voz sussurrante e cálida de um amante.
Quando lhe falava assim, ela respondia como toda criatura feminina ante
a petição de seu casal. Relaxou, acomodou o corpo ao redor do de Dougald e
ele se internou por completo nela.
Hannah gemeu. A sensação era tão boa, mas aquilo era tão mau; ele
voltava a tê-la. De novo, mas...
Dougald tampouco queria fazer aquilo. Mas aquela noite, quando sua
frustração e sua fúria desatadas se transbordaram, foi vencida toda contenção.
De modo que estava bem. Não era manipulação, era de verdade.
Hannah levantou os quadris e contraiu os músculos internos. E em uma
voz tão cálida e acariciadora como a sua lhe disse:
—Por favor, amor. Te desejo.

Capítulo 17

Dougald sabia que não devia fazê-lo. Aquilo não era o que planejara.
Planejara fazer Hannah enlouquecer de desejo enquanto ele mantinha bem
presas as rédeas de suas próprias paixões.
Então ele ditaria as condições de sua reconciliação e ela reconheceria a
seu amo.
Mas seu ardor... seu aroma... sua voz dizendo: "Por favor, amor. Te desejo."
Era fraco e precisava tomá-la. Seus instintos primitivos lhe exigiram que a
enchesse de sua semente. Ela era sua posse, seu feudo, sua esposa.
Sem elegância, sem se refrear, cedeu a sua própria paixão. Cada gota de
seu sangue, cada parte de seu corpo, lutava por penetrá-la. Entrou nela e se
retirou, entrou e se retirou várias vezes.
Debaixo dele, Hannah emitia uns ruídos parecidos com suaves miados,

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enquanto elevava e baixava os quadris ao ritmo que ele impunha, e o agarrava


muito forte com as mãos como se temesse que fosse desaparecer.
Também ele o temia. Temia que recuperassem o juízo depois que a tivesse
repleto. Estava indo muito depressa, e ele sabia. Ela não ia poder ter prazer
assim, com ele arremetendo daquela maneira, mas não podia parar, não podia
esperar.
—Depressa - insistiu ela lhe batendo no ombro com o punho fechado. -
Depressa!
Dougald redobrou seus esforços. Hannah arranhou suas costas em um
frenesi felino, se esforçando por alcançar o clímax, lhe arrancando a frustração
de seu interior do modo mais primário possível.
Mais tarde, Dougald se alegraria de ter ainda a roupa posta, mas naquele
instante não era mais que um maldito e chato estorvo. Diabos!, ainda usava a
gravata atada como uma corda ao pescoço.
Hannah estava tão formosa com o cabelo solto, esparramado sobre a
escura colcha como um fragrante rio dourado. Aqueles espantosos olhos
marrons se abriam e fechavam, ora lânguidos, ora desesperados, como se o
desejo e a necessidade liberassem uma batalha por sua alma. O vestido,
aquele estúpido vestido de cetim, lhe rodeava o pescoço por um sem-fim de
botões.
—Dougald, Dougald, Dougald.
Ouviu aquela nota em sua voz. A nota que levava nove longos anos sem
ouvir, mas ainda assim reconhecia.
No mais fundo de seu ventre, cresceu a pressão. O instinto exigia que se
internasse nela com tanta força como pudesse. Queria acabar dentro dela.
Precisava regá-la com sua semente. Mas primeiro... queria olhá-la. Precisava
vê-la.
Hannah tinha os olhos fechados e um rubor que lhe nascia na base do
pescoço e subia por ele e pelas faces, até a testa. Tinha o nariz esmagado e
abria os lábios em uma longa série de ofegos.
Os quadris arremetiam contra ele, em um gesto que exigia satisfação. As
pernas se agarravam a ele para atraí-lo contra ela.
No mais profundo de seu ser, era presa de espasmos, que a balançavam e
lhe proporcionavam a mais primária das gratificações.
Dougald se regozijava naquele primitivo furor, naquela irrefreável paixão.
Ela fora incapaz de resistir. Seu corpo estava tão ávido como o dele. Hannah
era dele.
Então Dougald não pôde esperar mais.
A esmagou contra a cama com os quadris, a segurou com as mãos e a
obrigou a aceitá-lo. Hannah se retorceu contra ele, balançada por ondas de
êxtase, exalando gemidos de prazer. Ele a invadiu, se internando tão dentro
como pôde. Seus testículos se esticaram. Logo, irrevogavelmente, gozou, a

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enchendo com sua essência. Se afundou nela, selvagem e cegamente, se


estampando nela, exigindo que reconhecesse que era dele, a coagindo
fisicamente para derrotá-la mentalmente.
E conseguiu. Cada som que Hannah emitia soava a capitulação, cada
movimento que realizava era um sinal de aceitação.
Vencera. Ela se rendeu. No momento.

Hannah relaxou sob o peso de Dougald, encantada do esgotamento, da


saciedade, a falta de consciência. Sabia que essa sensação não duraria. Em um
momento teria que abrir os olhos.
Recuperaria a consciência e lhe daria vergonha, e teria que lutar para
proteger seu orgulho e negar que se rendeu. Mas naquele instante.
Ele se ergueu um pouco para sair dela e separar com cuidado os dois
corpos.
A vergonha sobreveio a Hannah imediatamente. Juntou as pernas, clareou
as ideias, se preparou para a batalha, mas ele a estendeu de bruços sobre a
cama. Tentou se erguer para sentar, mas ele a segurou de barriga para baixo
com uma mão. Ouviu o rumor das roupas de Dougald ao se despir; girou o
pescoço para tentar ver algo e contemplou como ele tirava a gravata, o colete
e a jaqueta e os lançava pelo quarto.
—Dougald, o que...?
—Quer falar agora? - perguntou bruscamente.
Não gostou do som de sua voz.
—Não.
—Então, silêncio.
Hannah sorriu para a colcha.
O colchão se sacudiu quando ele se sentou. As botas golpearam ao cair ao
chão com um ruído surdo, primeiro uma e depois outra.
Não precisou olhar para saber que objeto tirou a seguir. Já tinha as calças
meio baixadas. Caíram ao chão com pouco esforço, voltou a subir à cama de
um salto. Com um joelho de cada lado dos quadris de Hannah, desabotoou
torpemente os botões do sutiã do vestido, o abrindo rudemente. Ela quis
protestar, temendo que lhe danificasse o vestido, mas lhe faltava o ar e não
tinha forças nem lhe ocorreu um modo elegante de fazê-lo.
Dougald se aproximou da nuca de Hannah roçando a orelha com seu
fôlego.
—Você e sua estúpida e maldita roupa. Usa tanta só para me manter
afastado de você, mas isso já não vai te servir de nada, Hannah. Quero que a
tire - lhe disse.
Ela recuperou o fôlego o suficiente para desafiá-lo.
—Não uso nada nem para o manter longe nem para o atrair. Nunca penso
em você quando me visto.

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—Esse é seu engano.


Baixou os ombros do vestido, a levantou e o baixou até a cintura, logo
tirou as mangas pelos pulsos de um brusco puxão. Ele a deixou voltar a se
acomodar no colchão e com rápida determinação lhe tirou o vestido inteiro.
Logo seguiram as anáguas, de maneira que a deixou em combinação,
espartilho e suas melhores meias de seda.
Dougald proferiu uma gargalhada áspera e dura e, com um dedo, tirou a
floreada liga.
—Deliciosa - comentou. - Uma indicação do que habita abaixo.
Passou uma mão pelas nádegas de Hannah e a esfregou como um
colecionador descobrindo um bom diamante e logo, levemente, deslizou um
dedo da base da coluna vertebral para baixo, até o lugar de máxima e
completa sensibilidade.
Ela se levantou um pouco da cama, preparada para se voltar e recebê-lo.
Mas ele a empurrou outra vez contra a cama pressionando com a mão em
suas costas. Voltou a ficar em cima dela, passou as mãos por debaixo das
axilas e agarrou carinhosa e meigamente seus seios.
Hannah fechou os olhos e apertou a face contra a colcha. Não precisava
pensar. Ainda não.
Suas mãos faziam maravilhas, a colhiam com a pressão justa, riscavam
círculos nos mamilos com os polegares e logo os apertavam com ternura entre
os dedos. A mente de Hannah começou a fabular; a poria de quatro e a
montaria por trás, e ela ficaria a miar e a arranhar como uma gata.
Estremeceu, preparada para aceitá-lo em seu interior, queria lhe exigir que
fizesse o que ela desejava.
Mas ali ela não tinha nenhum poder; ele era muito forte, muito experiente.
Uma mulher nunca podia competir com um homem naquelas circunstâncias.

Quando Hannah despertou com a primeira luz da alvorada, Dougald se


encontrava a seu lado de pé, com as calças postas, segurando as botas,
olhando com o cenho franzido. Olhando o quarto, a estreita cama... a ela.
—Este quarto é muito miserável.
A beijou na testa.
Se erguendo sobre um cotovelo, afastou o cabelo dos olhos.
—Bom dia a você também.
—Farei que a senhora Trenchard mude para um quarto melhor.
Hannah quase saiu da cama de um salto como protesto. Quase, mas como
não usava nada em cima, isso a teria deixado em clara desvantagem em
qualquer enfrentamento com Dougald.
—Não o fará! Teremos sorte se nos passar inadvertidos. - Então percebeu
do que ele havia dito. No modo em que ela respondera. Na mente dos dois,
copularam. Não se reconciliaram.

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—Dá no mesmo - disse, escolhendo as palavras, sabendo que titubearia, -


não importa se aprova ou não meu quarto. Você não voltará a entrar nele.
Parecia mais alto, mais largo, mais sombrio.
—Será, se quiser!
—Não. Sabe que não podemos voltar a fazê-lo. Se alguém nos vir seríamos
o centro de todas as falações e começariam a especular, e eu... você... nós não
queremos isso agora mesmo, não é?
Durante seu hesitante discurso, ele voltou a ser o severo e impassível
cavalheiro que conhecera em sua estadia no castelo Raeburn.
—Não.
Não podia interpretar nada a partir de sua postura ou de sua expressão.
Como se aquela noite nunca tivesse tido lugar. A intimidade podia ter sido um
produto de sua imaginação e a paixão... moveu as pernas e experimentou
umas agulhadas nos músculos internos.
A paixão entre eles fora real. Isso não podia negar. Mas a paixão entre eles
sempre fora real, e não servira de nada, à vista de seus problemas
matrimoniais. Assim...
—Não devemos voltar a fazê-lo - disse Hannah com firmeza.
—Estou de acordo.

—Dentro de duas semanas? - A senhorita Minnie procurou uma cadeira e


se deixou cair pesadamente nela. - A rainha virá dentro de duas semanas?
Um alegre murmúrio se propagou entre os criados.
—Não é maravilhoso? - Tia Spring ficou em pé, com as mãos apertadas e
os olhos brilhantes. - A rainha Vitória em pessoa virá nos ver!
—Não posso acreditar - exclamou Seaton pela quarta vez. - Pardiez, é
impossível!
Dougald estava de pé na grande sala, dando as costas a enorme lareira,
diante de uma coleção de incrédulos formada pelas tias, seu traiçoeiro
herdeiro, Charles, a senhora Trenchard, os criados do castelo e Hannah.
Hannah, sua esposa. Tinha planos tão avessos para ela! E no princípio
foram um completo êxito. A apanhara. Tinha-a posto no lugar que lhe
correspondia, a obrigara a fazer o que ele desejava e acreditava que logo a
forçaria a entrar em vereda.
Mas depois, ela se dedicara a dar a volta a tudo.
Precisava ter previsto. Precisava ter recordado sua predileção por fazer
coisas inesperadas.
Tia Isabel e tia Ethel se agarraram pelas mãos e dançaram uma valsa
enquanto os serventes mais jovens as observavam e riam.
A senhora Trenchard aplaudiu e os lacaios e as donzelas permaneceram
em silêncio, mas nada podia ocultar sua alegria ao saber que sua soberana
chegaria logo.

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Muito bem. Aquilo constituía uma advertência para Dougald do perigo que
Hannah representava, e trabalharia em consequência. Já não lhe permitiria
enviar cartas caprichosamente a nenhum lugar do país.
Nunca lhe permitiria sair a parte alguma sem acompanhamento. E ele já
não cederia a suas tentações sexuais. Era um homem com gelo nas veias.
Graças à solidão, o trabalho duro e a desolação, fizera a si mesmo a imagem
de seu pai, dedicado ao sobrenome familiar e livre da influência de nenhum
tipo de afeto. Não permitiria que Hannah fizesse renascer nele nenhuma
debilidade.
Dougald elevou a voz para chegar a todos os que o escutavam.
—São notícias maravilhosas. Teremos o privilégio de abrigar sua
majestade como convidada, mas não preciso lhes dizer que devemos nos
preparar para a visita real.
Charles olhou para Dougald de cima abaixo, como se tomasse medidas
para um traje.
—Necessitam roupa nova. Ele disse que necessitavam roupa nova.
—Daremos uma grande recepção. - Tia Spring entrecerrou os olhos. -
Convidarão a toda a região a honrar sua majestade.
—A toda a região? - Hannah voltou a cara para tia Spring. - Aqui? No
castelo Raeburn?
Os Burroughs viriam e ela por fim os conheceria. Dougald ponderou as
repercussões. Se estabeleceu ali no castelo Raeburn, se afeiçoou com as tias,
teve relações com ele. Muito bem.
Lhe permitiria conhecer seus avós.
—Os painéis. A entrada. - A senhora Trenchard levou a mão sulcada por
inumeráveis veias ao peito e olhou a seu redor com surpresa e desgosto. - O
grande salão. Devemos limpar tudo.
—Devemos restaurar tudo - lhe corrigiu Dougald.
—Os trabalhadores devem prestar especial atenção, senhor - disse
Charles, - para evitar um desastre.
Tia Isabel levou a mão à cabeça.
—Vou tingir meu cabelo.
Então sua suspeita era certa. Dougald comprovou.
—Tenta não salpicar de betume toda a pia. - Tia Ethel mediu a cintura com
as mãos. - Me pergunto se entrarei em meu melhor vestido de seda.
—Você se vê bem com qualquer coisa - a animou tia Spring.
Seaton mudou de cantinela.
—Isto é um maldito desastre. Um maldito desastre.
—Deixa de amaldiçoar, Seaton - lhe repreendeu a senhorita Minnie e,
alongando a mão para Hannah, prosseguiu: - Seriamente é certo, senhorita
Setterington? Nunca pensei que realmente fosse vir.
—Sabia que Hannah não falharia. - Tia Isabel aparou o cabelo escuro. - É

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eficiente. É uma mulher moderna.


Hannah agarrou a mão da senhorita Minnie.
—É difícil de acreditar, mas é certo.
Tia Spring agarrou a outra mão de Hannah.
—Querida, queridíssima moça, é nosso sonho feito realidade. E tudo
graças a você.
O sorriso de Hannah brotou como uma alegre flor.
—Não é graças a mim, tia Spring, a não ser a seu maravilhoso trabalho.
Vocês - fez um gesto que abrangia a todas as tias, - todas vocês são as artífices
e agora seus sonhos vão se tornar realidade.
Dougald precisava admitir que Hannah era boa com as pessoas. Sua avó a
amava e sua avó não era uma mulher fácil de agradar. Sua enfermidade
terminal precipitou suas bodas, pois desejava ver Dougald felizmente casado.
Nos meses que seguiram só estava contente quando Hannah se
encontrava com ela. Era divertido. Teve que ver sua esposa tratando a todas
aquelas anciãs para se recordar do muito que apreciou que Hannah cuidasse
de sua avó. O fez recordar e pensar que talvez... que talvez seu casamento não
esteve tão mal.
Houve momentos, quando Hannah e ele estavam sozinhos, nos que ele
esqueceu suas obrigações e ela seu ressentimento, e falaram. Simplesmente
falaram.
Se surpreendera com sua maturidade, as experiências que modelaram seu
caráter. Hannah nunca fora a típica mocinha despreocupada, igual a ele não
era o menino de papai rico normal.
Dougald perdera sua mãe, esteve isolado por um pai que não sabia nada
de carinho. O amor só trazia dor.
Hannah esteve amparada pelo amor maternal, mas nem todo o amor de
sua mãe a podia proteger das brincadeiras das pessoas cruéis, respeitáveis e
preconceituosas.
A idade os separou. O tempo pôs distância entre eles. Mas possivelmente
pudessem recuperar sua afinidade.
—Não sabia que conhecia sua majestade, senhorita Setterington. - Seaton
se aproximou de Hannah e sua voz se voltou obsequiosa. - Deve me contar
tudo o relativo a como a conheceu.
Dougald quase ouvia a voz de seu pai lhe dizer: "Isso é o que acontece
sonhar acordado, moço. Perde autoridade. Não pôde conservar a sua mulher.
Alguém acredita que pode te matar. Deixa de ser tão brando. Dê mais atenção
aos negócios."
Seu pai teria tido razão. Não era o lugar para pensar em Hannah e nos
prazeres do casamento. Ali, agora, com uma ameaça de morte pendendo sobre
sua cabeça e a rainha a caminho, precisava ser o homem no que se converteu.
—Começaremos imediatamente. - Dirigiu um olhar severo a Seaton. -

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Ninguém está isento do trabalho. Ninguém.


Tal como Dougald esperava, Seaton escapuliu. Ao cabo de uma hora lhe
chegaram notícias que Seaton tinha abandonado o castelo.
Parecia que seu herdeiro descobrira que precisava devolver numerosas
visitas que requereriam sua presença diária em outro lugar antes da visita real.
Agora Dougald só precisava tratar Hannah com a indiferença que ela
merecia.
Nunca mais se deixaria vencer pelo prazer.

Por que Hannah chegara a acreditar que ela não tinha poder? O poder que
esgrimia ante Dougald alcançava magnitudes assombrosas. Era certo que foi
necessário que ficassem a sós, foi necessário que ele estivesse nu e ela de
joelhos entre suas pernas, mas naquele momento ele se segurava à cabeceira
de Hannah com as duas mãos e se retorcia em uma agonia silenciosa porque
lhe havia dito que não a tocasse ou pararia. E ele teria vendido a alma ao diabo
para que ela deixasse de fazer o que estava fazendo.
Hannah sorriu e foi lhe beijando pelo flanco esquerdo, lambendo a fina
pele que lhe cobria o quadril, logo lhe roçou o umbigo e depositou ali um beijo.
Tinha gosto de limpo - fora a ela depois de se banhar - e o aroma de sua
excitação se mesclava com o de seu especial sabão.
Dougald aguardava, vibrando de incerteza, se perguntando se ela faria o
que pensava que ia fazer. E ela planejava fazê-lo, depois de tê-lo feito sofrer
um pouco. Ao fim e ao cabo, lhe devia um pouco de sofrimento, e que melhor
maneira de reparar sua dívida? Assim prolongou a espera, acariciando seus
músculos, deslizando as mãos por debaixo das coxas para agarrar suas
nádegas, se deleitando na firme musculatura.
Acariciou os testículos, investigou a rugosa textura, o exuberante pelo.
Não fazia só duas noites que ele a pôs de barriga para baixo na cama e a
forçou a celebrar seu próprio desmaio?
Bom, agora ela celebraria o dele.
—Você gosta? - Lhe depositou um beijo baixo, com a boca apertada na
virilha, justo por cima do triângulo de pelo.
Não respondeu, mas sim se retorceu na cama.
—Dougald? - Hannah levantou a cabeça. - Quer que pare?
—Não! Eu adoro. - Respirou fundo e seu peito se moveu com o esforço. -
Faz o que queira. O que queira.
Não queria pedir-lhe. Provavelmente pensava que ela ficaria traumatizada.
E assim teria ficado, duas noites atrás.
Mas naquelas duas noites Dougald a transportara a tais viagens sensuais
que só podia qualificar de puro hedonismo. A beijara por toda parte, a reduzira
a uma ruína choramingante, a fizera suplicar.
Ela sabia muito bem o que ele queria, e logo o daria. Voltou a beijá-lo,

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desta vez justo na base do membro, mas seguia tendo os lábios fechados.
—É isto o que quer?
—Sim. Sim, isso está bem. Mas talvez...
Exalou um lento e quente fôlego em cima dele enquanto o ouvia se
esforçar por encontrar as palavras.
—Mas talvez se usasse a língua?
—Assim? - Com lenta antecipação lhe lambeu todo o membro rígido e
ereto.
Dougald ofegou. Os músculos do braço se alongaram como se lutasse
contra o instinto de agarrar sua cabeça e lhe mostrar o que era que desejava.
—Que mais? - perguntou ela em voz baixa.
—Poderia imaginar o que eu gostaria - repôs ele também em voz baixa.
—Poderia. - Levantou a cabeça e lhe sorriu. - Mas quero ouvi-lo.
Dougald ficou olhando-a fixamente e de repente compreendeu. Franziu o
cenho, mas reconhecia a derrota quando a tinha ante o nariz. Não ia lutar com
ela naquele instante.
—Por favor, Hannah. Por favor, coloque isso na boca e... por favor? - disse
em tom lento, profundo e desesperado.
Hannah o perdoou pela falta de eloquência e lhe deu o que desejava.
Ao fim e ao cabo, aquela era absolutamente a última vez.

Capítulo 18

De pé na pequena sala de jantar Hannah ouvia o bate-papo de animadas


vozes que procedia da sala do café da manhã. Ouvia os martelos dos
carpinteiros no salão. E no corredor observava às costureiras subir a escada
com cilindros de tecido para tapizar. A emoção ante a visita da rainha
impregnava o castelo em todos os níveis. No dia anterior,
Hannah trabalhara até bem entrada a noite para que as tias pudessem
acabar a tapeçaria rapidamente. Logo de noite ficou acordada por... por outros
motivos.
Ao se olhar em um espelho com marco de ouro que pendurava da parede,
se dirigiu um olhar pícaro.
Outros motivos que não se repetiriam.
Seu sorriso se desvaneceu.
Porque ao final, não sabia se a paixão de Dougald era falsa e sua sedução
parte de algum pernicioso plano encoberto para debilitar sua resistência e
obrigá-la a ser a esposa que ele exigia.
O trabalho e a noite sem dormir estavam cobrando seu preço e agora a
preocupação aumentava a carga. O espelho lhe devolveu um reflexo cansado,

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então ela beliscou as faces para dar um pouco de cor a elas.


De todos os modos, todo mundo era presa da excitação ante a visita da
rainha. Ninguém repararia nela.
A menos que Dougald se fixasse nela, e não sabia se, depois da última
noite, poderia aguentar o olhar dele.
Não experimentara aquela mescla de júbilo, confusão e sofrimento
desde... desde que viveram juntos como marido e mulher. Não devia se
esquecer que ele não era o homem que fora.
Mas ela tampouco era a mesma mulher. Não sabia o que ia acontecer,
mas tinha certeza que, se chegavam a se reconciliar, não o fariam nos termos
de Dougald.
Nem toda a sedução nem toda a coerção do mundo a liberariam da dor
que aquilo conduziria.
O murmúrio de vozes na sala do café da manhã ia aumentando. Precisava
entrar e confrontá-los, ao fim e ao cabo ninguém sabia o que ocorrera na noite
anterior no quarto de Dougald, salvo ela e Dougald.
E ele não diria nada que pudesse comprometê-la. Apertou os dentes. Em
todo caso, ele odiava aquela paixão obsessiva mais que ela.
Beliscou pela última vez as faces e cruzou a soleira. Passou à frente da
senhora Trenchard, que sustentava um bule fumegante, pela frente de
Dougald, que se sentava à cabeceira da mesa, e pela frente das tias e de
Seaton.
Tia Spring lia em voz alta uma folha de papel que sustentava na mão, e
falava forte para se fazer ouvir em meio do burburinho do salão.
—Tenho escrito convites para os Henderson, os Gilmore, o duque de
Nasker, são tão queridos, sempre tão gentis, o senhor MacAllister e sua nova
esposa que é muito jovem para ele, o muito ridículo velho verde!,
Sir Preston e lady Susan, os Howell, espero que ainda não esteja
encerrada, sir Day e lady, bom dia, Hannah, querida. Parece horrivelmente
cansada esta manhã.
As esperanças de Hannah de passar despercebida ao entrar foram a raia.
—Estou bem, tia Spring.
Tia Spring ignorou seus protestos.
—Não acredita que parece cansada, Dougald?
Dougald não levantou a vista de seu prato cheio.
—Tem bom aspecto.
—A senhorita Setterington está adorável como sempre, tia. - Seaton
parecia impressionado pela franqueza de tia Spring.
—Claro que está, querido. - Sem se alterar pela reprimenda de Seaton, tia
Spring deixou a lista de convidados sobre a mesa e examinou Hannah com
interesse. - As olheiras não desmerecem o atrativo de uma jovem dama.
Não acredita, Dougald?

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Dougald grunhiu, aparentemente inabalável pelas incessantes manobra


casamenteiras das tias.
Hannah se afundou na cadeira, com uma confusão descomunal.
Tia Isabel rompeu o silêncio.
—Sim, querida, as olheiras acrescentam um ar de mistério.
—Hoje tem um ar muito misterioso - disse tia Ethel.
A senhorita Minnie abriu a boca para falar, e por um momento Hannah
abrigou a esperança que aquela mulher prudente mudasse a conversação.
Mas Hannah estava destinada à decepção.
—Dougald parece cansado também - observou a senhorita Minnie. -
Ontem à noite trabalhamos até tarde preparando os menus para a recepção da
rainha.
Talvez a senhorita Setterington tenha trabalhado até bem entrada a noite
ajudando Dougald a preparar a boas-vindas da rainha.
—Sim! - exclamou tia Spring se endireitando em seu assento.
—Tem razão! - Tia Isabel sorriu alegremente.
—Um ar muito misterioso - repetiu tia Ethel.
Dougald mastigou, engoliu e limpou os lábios com uns toques de
guardanapo.
—Posso afirmar categoricamente que a senhorita Setterington e eu não
estivemos trabalhando juntos ontem à noite para preparar as boas-vindas da
rainha. A senhorita Setterington tem suas tarefas e eu tenho as minhas, e eu
não tenho nenhum interesse em trabalhar com ela - anunciou Dougald
olhando, desde sua posição central, aos comensais que se sentavam a sua
mesa.
—Dougald, isto foi muito mal educado - repreendeu tia Spring.
—Está ferindo os sentimentos de nossa querida moça - disse tia Ethel.
—Não, não me fere - Hannah se apressou em tranquiliza-las.
Dougald lhe lançou um rápido olhar. Um olhar cálido, zangado e
apaixonado que a confundiu, fez que se ruborizasse e que desejasse ter pulado
o café da manhã.
Dougald voltou a se centrar na comida que tinha à frente.
Seaton o olhou, tinha a cabeça baixa.
—Lorde Raeburn é um mal educado. A senhorita Setterington não se
merece tomar o café da manhã com um bárbaro.
Dougald levantou a vista e sorriu a seu herdeiro.
—Nem com um assassino.
Uma exclamação escapou da senhora Trenchard.
—Ele admitiu ter matado sua esposa? - perguntou tia Isabel.
Hannah contemplou seu marido. Quando lhe sorria assim, com toda
aquela feroz burla, recordava as razões que tinha para suspeitar de suas
malvadas intenções. Ali sentado, rodeado da evidência de sua riqueza e sua

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ascendência, com os olhos verdes brilhantes como o gelo e os dentes brancos


resplandecentes, tinha o aspecto de um vingativo senhor medieval.
—Não, tia Isabel, eu não assassinei minha esposa. - Não olhou para
Hannah ao dizê-lo. - Ainda.
—Ainda? - A voz de tia Isabel soou mais forte que nunca. - O que significa
ainda?
—Ainda, hummm? - A senhorita Minnie acariciou o queixo pensativa.
Dougald deixou o garfo sobre a mesa e dirigiu um olhar malicioso a tia
Isabel.
—Já sabe, se pensarem que assassinei minha esposa, seria uma crueldade
máxima por sua parte que tentassem me casar com a senhorita Setterington.
Uma coisa era conhecer suas intenções casamenteiras e outra coisa muito
diferente era falar disso. Hannah o teria amaldiçoado.
—Vamos, lorde Raeburn, elas não fizeram tal coisa - disse Hannah em vez
de o amaldiçoar.
Ninguém prestou a menor atenção a ela.
A boca de tia Isabel se abriu e se fechou. Logo vacilou.
—Eu? eu nunca tinha pensado nisso. - Enrugou o cenho enquanto
meditava sobre isso.
Dougald aguardou e logo olhou ao redor da mesa com um sorriso maléfico
nos lábios.
—Odeio ter que dizer, mas, tem razão. Muito bem. vamos supor que você
não assassinou sua esposa - suspirou tia Isabel. - Mas a ideia era tão misteriosa
e romântica.
O sorriso de Dougald desapareceu.
—O assassinato não é romântico. O assassinato é o instrumento de uma
mente fraca.
Seaton se levantou e golpeou na mesa com os nódulos.
—Eu por minha parte não vou mudar de opinião. Sua senhoria assassinou
sua esposa.
—Seaton, você sabe que é o único que diz isso porque é uma história
muito boa - comentou tia Ethel.
—O que tem de mau nisso? Um enganador sem uma história que contar
não é um enganador. - Seaton jogou um pouco para trás a cadeira e um criado
se apressou a retira-la. Vou sair para visitar os Sheraton.
Voltarei à noite. Adeus, até amanhã. - Saiu da sala muito indignado.
Dougald o vigiou de perto.
—Uma mente fraca - repetiu.
Tia Spring mordeu a unha do polegar.
—Mas Dougald, querido, você tinha uma esposa. O que aconteceu a ela?
—Esse é o mistério. - Com um breve gesto de cabeça, começou a comer
outra vez.

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Hannah esteve a ponto de dar golpes na cabeça contra a mesa. Por que
Dougald fazia aqueles comentários tão incendiários? Por que desvelava tanto e
entretanto tão pouco? Estava zombando dela e de seu ardor?
—Acaso a estava ameaçando outra vez?
Não sabia. Não sabia nada e a verdade era que, embora não havia nada
no mundo que desejasse mais que fazer amor com ele, não confiava nele.
Como podia ser assim?
Nos seis meses que viveram como marido e mulher, lhe fizera tanto dano?

Hannah se achava de pé ante a escrivaninha, enfrentando ao que era seu


marido há cinco meses.
—Desde que sua avó morreu, não tenho nada que fazer.
Dougald sorriu. Sentia um afeto puro por sua avó.
—Fez um maravilhoso trabalho durante sua enfermidade terminal. Me
contou o muito que apreciava seus cuidados. Me disse que tínhamos escolhido
à esposa correta.
As palavras cravaram muito dentro como uma espada no ventre de
Hannah. cada vez mais a realidade de seu casamento ficava a descoberto.
Tudo aquilo do que o acusara no trem resultara ser certo.
Sua avó a escolhera para ser a esposa de Dougald. Porque ele fizera o que
sua avó o aconselhara em matéria de casamento para economizar tempo e
preocupações.
Assim tinha podido se dedicar plenamente aos negócios e colher os êxitos
e as riquezas que ansiava.
—Ainda sinto falta da avó. - Dougald baixou a vista para o montão de
papéis, mas a Hannah deu tempo de surpreender um vislumbre de lágrimas
cheias de nostalgia. - Sempre podia falar com ela. Era uma mulher muito sábia.
"Agora pode falar comigo", desejara dizer Hannah, mas não o fez.
Aprendera que era inútil fazer aquele tipo de declaração. Não tinha podido
demonstrar nada a Dougald, sobretudo porque ele não dera a oportunidade.
—Eu disse o quanto estou agradecido por você ter passado tanto tempo
na enfermaria? - perguntou Dougald.
—Sim. - Tinham adiantado a cerimônia nupcial devido à má saúde de sua
avó. Hannah não lamentava isso. Enquanto a idosa senhora jazia em seu leito
de morte, agradecia saber que seu neto estava estabelecido.
—Sim, me disse isso.
—Ainda está pálida do esforço. - Abriu a gaveta de sua escrivaninha e tirou
um envelope com dinheiro. - Toma isto e vá às compras. Assim se aliviará do
aborrecimento.
Levou as mãos à costas e cruzou os dedos decidida a não aceitar aquele
envelope. Precisava fazer ele entender que com dinheiro não resolveria todos
seus problemas.

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—Não padeço de aborrecimento. Padeço de inatividade. Quando sua avó


estava doente, tinha a ela para cuidar, mas agora que se foi, preciso fazer algo.
Você me prometeu que me ajudaria a pôr uma boutique.
—É a esposa de um dos homens de negócios mais importantes de
Liverpool. Eu ficaria como um louco se abrisse uma boutique - disse com
severidade.
—Me prometeu isso!
—Não lhe prometi isso. Disse que não queria se prostituir por uma
boutique. - Deixou o envelope em cima da escrivaninha e o empurrou para ela.
—Disse que não via nenhum motivo para comprometer seus princípios em
troca de dinheiro.
Era certo. No trem, havia dito aquelas coisas. Então ele a seduzira e em
seu arrebatamento e sua pressa por casar, dera por obvio algumas coisas.
Tinha suposto que ele quereria fazê-la feliz.
Tinha suposto que confiaria em que ela sabia muito bem o que a fazia
feliz. Nunca pensou que deliberadamente ele tergiversaria suas palavras para
fazê-la dançar ao som de sua música.
—Não entendo por que te importa o que pensem os outros.
—Sou um homem jovem. A lembrança de meus anos amalucados ainda
me persegue. Se quero ter êxito, devo conseguir o respeito de meus colegas. -
Fez um gesto depreciativo.
—Não sei por que me incomodo em lhe explicar isso. Confia em mim,
querida. Eu sei o que é melhor.
—Já tem êxito.
—Não todo o que desejo. Ainda não. - Declarou seu objetivo com uma
indiferença que ocultava sua determinação. - Será feliz quando tiver meninos
que criar.
Necessito um herdeiro, sabe, e você... você quer uma família. Terá um
bebê e ele a quererá.
Odiava que dissesse aquilo. Usava o desejo que tinha de ter uma família
como uma arma contra ela.
Dougald lhe sorriu, pensando que se derretia com a ideia de um menino.
—Ainda não deixou de vir a menstruação?
—Não.
Não, graças a Deus. A ideia de criar um menino em uma casa em que não
tinha nenhuma autoridade e com um marido que não fazia o menor caso dela a
horrorizava.
—Se conseguir acabar logo esta noite, podíamos tentar fazer um menino.
Hannah sacudiu a cabeça.
—Tem uma reunião.
—É certo. - Franziu o cenho ante o calendário. - Amanhã a noite, então.
A frustração a assolou. Não podia continuar assim, com um marido que a

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tratava e a adestrava como um cachorro mulherengo.


—Se não puder ter minha boutique, ao menos me deixe me encarregar da
direção dos criados. Charles dirigiu a casa enquanto eu cuidava de sua avó, e
agora ele não quer me ceder essa responsabilidade!
Dougald ordenou uns papéis. Perdera interesse na petição de Hannah.
—A maioria das mulheres se alegrariam que as relevassem de qualquer
responsabilidade em seus lares.
"Pareço eu à maioria de mulheres? Deveria se casar com outra."
Dissera tudo aquilo antes, em inumeráveis ocasiões. Mas ele não a
escutava. Nem sequer parecia ouvi-la. Só a consentia com uma paciência
infinita e lhe dava uns tapinhas na cabeça como se fosse sua bonequinha.
—Não tenho nada a fazer. Não posso viver assim. Eu te advirto, Dougald,
se não mudar algo breve, nosso casamento está destinado ao fracasso - disse
cansativamente.
Conseguira voltar a captar sua atenção. Voltou bruscamente a cabeça,
com o rosto aceso e os olhos entrecerrados.
—Está me ameaçando?
—Estou tentando falar com você.
Dougald elevou a voz até o grito.
—Falar comigo? Já está outra vez me dando impaciência! - se controlou
visivelmente. - Não há nada a fazer. Estamos casados até que a morte nos
separe. Então tenta tirar o melhor proveito.

De modo que tirou o melhor proveito, mas não da maneira que ele
imaginara. Antes que pudesse ficar grávida e estivesse presa para sempre,
Hannah o abandonou.
Pegou o dinheiro que lhe prodigalizava como amostra de afeto ou
confiança e o abandonou.
Agora enfrentava à mesma armadilha. Olhou para a cabeceira da mesa.
Dougald se sentava ali, tranquilo, distante, inconquistável. Não falavam. Já não
lhe oferecia a compreensão nem o carinho de antes, e uma e outra vez
demonstrara que, para ele, o coito não era igual a amor. Entretanto,
compreendia o que tantas mulheres descobriram para sua consternação: o
amor não era necessário.
Quando duas pessoas tinham relações o resultado era um menino.
Então devia ser prudente. Se ele ia a seu quarto, ela precisava rechaçá-lo.
E se não fosse? bom, então tudo estaria bem.
Pelo que estava segura era que não seria ela quem iria para ele.

—Este colchão está cheio de calombos.


Enquanto Dougald mudava de postura, tentando desfazer a massa de
plumas que tinha debaixo de suas costas, se perguntou por que demônios não

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mudaram sua cama. Se Hannah ia seguir visitando sua câmara, teria que
melhorar as condições.
—Disse que não importava. - Hannah aconchegou a cabeça no peito nu de
Dougald. - Disse que de todos os modos não pregava o olho.
—E não prego o olho, mas agora estou na cama e estou incômodo.
—Suponho que podemos fazê-lo em qualquer outro lugar.
—Sua cama também tem calombos e é horrorosamente estreita.
—Não me referia a meu quarto. Queria dizer aqui. - Levantou a cabeça e
olhou a seu redor aos móveis ruinosos, logo baixou a cabeça e suspirou. - Dá
no mesmo. Tudo é horrível.
Dougald olhou a seu redor. Tinha razão. Tudo era horroroso, mas embora
quisesse não podia fazer nada. Contratara homens para devolver ao castelo
seu antigo esplendor. Tinha-os trabalhando da alvorada até o ocaso, e até
mais, com o fim de prepará-lo para a visita da rainha. Não podia perder tempo
na frivolidade de arrumar seu próprio dormitório, apesar dos prazeres que
compartilhavam ele e sua esposa, embora de maneira clandestina, nos
momentos mais escuros da noite.
Pôs cara de poucos amigos. Ainda não conseguira se impor a
autodisciplina que desejava. Quando ela foi a ele aquela noite, deveria tê-la
jogado.
Em lugar de dizer a si mesmo que, como fora ela a que tinha acudido,
aquilo representava uma vitória para ele. Sim, assim era como ele preferia
considerá-lo. Como uma vitória.
Se levantou - e a tombou de costas em sua cama.
—Posso te fazer esquecer os desconfortos - disse se inclinando sobre ela.
Ela cruzou as mãos atrás da nuca.
—Sim, faça-o. Mas esta noite definitivamente é a última vez.

Hannah abriu caminho através das escadas apoiadas na parede e as


malhas da Holanda que penduravam no corredor do andar de cima, de
caminho à oficina das tias. Costumava chegar à oficina muito cedo pela
manhã.
Então Hannah tinha um momento de tranquilidade para organizar o
trabalho de malha do dia, antes que chegassem os trabalhadores para cumprir
sua jornada trabalhista. Um momento que não estava segura de querer. Ao fim
e ao cabo, quando estava ocupada não lhe dava tempo de pensar em Dougald
e na odiosa debilidade que ele engendrava nela. Quando o sol estava alto e
seus apetites saciados, decidia se afastar dele, rechaçar seus cuidados e se
refugiar em seus princípios.
Mas cada noite da semana passada dera voltas e mais voltas na cama
sabendo que ele a aguardava justo do outro lado do corredor, que ele a
esperava com impaciência, que a desejava.

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A maioria das noites se abraçava ao travesseiro e olhava a escuridão. Mas


algumas noites se levantava da estreita e fria cama e se arrastava até a porta
de Dougald. O escuro corredor seguia estando igual de solitário, as
intermináveis salas vazias eram igualmente aterradoras, mas sua presença a
atraía como a uma mariposa noturna a chama, e como uma mariposa noturna
se abrasava em seu fogo.
Era uma loucura, mas uma loucura tão doce!
E nas noites que ela não ia a ele, ele ia a ela.
Ainda abrigava dúvidas sobre suas intenções, mas o prazer e a afinidade
se sobrepunham as velhas más lembranças. Lentamente crescia nela a
esperança que a fazia oscilar entre o júbilo e a incredulidade.
Estava se comportando como uma louca ao acreditar que podiam se
reconciliar ou estava sendo ainda mais louca ao pensar que Dougald planejava
algo mais que seu domínio?
Mas a paixão era uma coisa e o amor outra bem diferente.
Era amor aquela emoção que começava a bulir em seu interior? Não era
aquele sentimento infantil e imaturo que imaginara fazia nove anos, a não ser
um sentimento mais profundo, um sentimento que via os temores e a coragem
de Dougald, suas imperfeições e suas fortalezas, e o amava apesar de, e
devido a ele.
Mal se atrevia a pensar no que podia ocorrer se a amava.
Ao passar pela porta que conduzia até a torre, Hannah olhou para a torre
redonda. A exígua escada subia em espiral para o patamar exterior da oficina
das tias. Os simples degraus de madeira eram altos e tinham colocado um
tosco corrimão para comodidade e segurança das anciãs.
Hannah temia que a rainha Vitória desejasse ver onde se cobriu a
tapeçaria. Então se aplicara uma rápida capa de pintura às paredes
engessadas, e os carpinteiros começaram a tarefa de substituir os degraus por
outros de carvalho amaciado e fabricar um corrimão curvo de cerejeira. Ficaria
formosa quando estivesse acabada, mas por agora Hannah pisava com
cautela, provando cada tábua antes de pôr seu peso nela. Ao fim e ao cabo, o
trabalho estava se fazendo com indevida urgência e um engano podia acabar
em um acidente desnecessário.
No patamar por fim deu um suspiro de alívio. Quando as tias chegassem
para sua jornada trabalhista, na escada estariam a salvo.
A chave estava na bolsa que pendurava do cinturão de Hannah. Estava
procurando-a enquanto avançava para a porta quando lançou um grito; a
tábua se quebrara e seu pé caía no vazio.

Capítulo 19

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Dougald estava de pé em seu dormitório com as meias postas enquanto


contemplava seu lento criado.
—Se quiser que leve uma gravata corretamente atada, então sugiro que
chegue mais pontual para me ajudar a me vestir.
Alguns dos escassos cabelos de Charles flutuavam de um modo
desordenado ao redor de sua cabeça, vestia o casaco desabotoado e sua
gravata se movia ao tragar saliva.
—Senhor, houve um acidente.
O olhar de Dougald se centrou por completo naquele homem. Nunca vira
Charles tão nervoso antes. Nada o fazia perder sua tediosa compostura
francesa. E é obvio nenhum acidente que ocorresse a nenhum dos
trabalhadores.
Agarrou o casaco e o pôs.
—Que tipo de acidente? - Então caiu na conta. - Uma das tias? - O alarme
se estendia veloz por suas veias, sem prévio aviso, lhe produzindo uma
sensação desagradável. - Não, nenhuma das tias!
—E por que se preocupava tanto? Não eram realmente suas tias. Não
eram mais que um incômodo e uma responsabilidade.
—Não, senhor. Madame, a senhorita Setterington, caiu através do chão.
Atônito, Dougald falou sem pensar.
—Isso é impossível. Saiu daqui faz somente, - se mordeu a língua. Não
deveria ter dito isso, mas era certo. Acabava de deixa-lo fazia menos de uma
hora, não teve tempo suficiente para se vestir e se meter em problemas tão
cedo.
Mas Charles assentia e inclusive secava o nariz com um lenço.
Dougald deu um passo e o agarrou pelos ombros.
—Está viva?
—Oui, senhor, mas temo que sua perna...
—O que?
—Poderia estar quebrada.
—Bem. - Não, não estava bem, mas Hannah se recuperaria de uma perna
quebrada. Maldita seja, se recuperaria.
—Onde está?
—Estão levando-a a seu dormitório.
Dougald saiu ao corredor como uma exalação.
—Por favor, senhor, seus sapatos!
—Ao diabo com meus sapatos! - Mas poderia necessitá-los para chutar
algum traseiro. - Não, melhor me traz isso.
Topou com a procissão quase imediatamente. A senhora Trenchard ia à
cabeça. Uma donzela de serviço caminhava a seu lado, conduzindo uma
maleta negra. Hannah apoiava os braços sobre os ombros de dois fornidos

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criados.
Avançava a saltos, com a saia rasgada, os lábios apertados e uma luz
combativa nos olhos. Quando viu Dougald lhe soltou um sermão.
—Lorde Raeburn, deve deixar claro aos trabalhadores que, antes que se
vão de noite, tudo o relacionado com as tias tem que estar perfeitamente
seguro.
Se não tivesse subido à oficina antes que chegassem as tias, uma delas
poderia ter se machucado.
O coração de Dougald voltou a pulsar. Estava ferida; mas se já o estava
admoestando, não devia ser tão grave.
O senso comum o refreou para não agarrá-la nos braços.
—Onde se machucou?
—No pé - espetou Hannah.
Sim, ficaria bem.
—Estava no patamar que conduz à oficina das tias - prosseguiu. - Uma
tábua se rompeu sob meus pés.
Dougald voltou a cabeça para Charles. Charles lhe deu os sapatos, abriu
caminho através do grupinho e se dirigiu para a cena do acidente.
—Subi a escada com muito cuidado, mas os carpinteiros não estavam
trabalhando no patamar então uma vez ali deixei de prestar atenção.
Dougald percebeu com surpresa que a voz dela tremia.
—Me afundou o pé por completo. Logo toda a tábua cedeu e eu caí -
piscou muito rápido, - e se não me tivesse pego ao corrimão teria caído de
tudo e não teria podido me levantar porque a tábua inteira caiu também
irremediavelmente feito em pedacinhos!
Ao inferno com o senso comum. Sua indômita esposa estava chorando.
Dougald deixou cair os sapatos, afastou os criados a um lado e a segurou
nos braços com ternura. Os criados se tornaram um pouco atrás, mas nenhum
se atreveu a olhá-los com surpresa. Hannah empurrou
Dougald só um momento, logo se abraçou a ele como se fosse um porto
na tormenta. Em outras circunstâncias, ele teria desfrutado de sua
necessidade. Estava acostumado a fazê-lo, mas naquele instante, pareceu-lhe
oportuna.
—Se a senhora Trenchard não tivesse me encontrado, não sei o que teria
feito - sussurrou Hannah.
Dougald soube que devia gratidão eterna a sua governanta.
—Senhor, traga-a aqui, por favor. - A senhora Trenchard estava de pé na
soleira do dormitório de Hannah.
Levou-a até a cama, com cara de aborrecimento todo o tempo. No que
estava pensando quando decidiu alojá-la naquele lugar? Com a entrada dos
tempranos raios do sol, a habitação parecia ainda mais ruinosa que de noite.
Se Hannah precisava passar algum tempo se recuperando, aquele era um

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péssimo lugar. E por que ia ter que se recuperar? Quando falasse com os
carpinteiros, desejariam ter escolhido a profissão de jardineiro.
—Chame o médico - disse à senhora Trenchard.
—O doutor é um bêbado. - A senhora Trenchard fez um gesto à donzela e
agarrou a maleta. - Eu mesma curarei à senhorita Setterington. - Olhou
fixamente a expressão de dúvida de Dougald.
—Lhe asseguro, senhor, que minha mãe era a parteira de meia região e
também a enfermeira da senhorita Spring, e me ensinou bem. A senhorita
Setterington está em boas mãos.
Dougald vacilou, mas a senhora Trenchard parecia muito segura de si
mesma quando abriu a maleta e tirou uma série de potes de argila. Com um
direto movimento de cabeça lhe concedeu permissão.
—Muito bem.
A senhora Trenchard pôs os potes em cima da mesa, logo se deteve e
olhou a seu redor.
—Senhorita Setterington - exclamou escandalizada, - já gastou sua
provisão semanal de velas!
—E a quem importa sua provisão semanal de velas? - Dougald não sabia
do que sua governanta estava falando.
A senhora Trenchard tirou um cilindro de tecido de algodão branco.
—Dou aos criados de menor fila oito velas por semana. Isso é uma por
noite e duas para o domingo, mas dormem quatro em um quarto, de modo que
é muito. Se tomarem cuidado com a luz, podem levar a vela a casa para suas
mães. Aos criados de fila superior lhes proporciono quinze velas por semana.
Isso é duas velas por noite e três no domingo. A senhorita Setterington
excedeu o limite.
—Sim - disse Hannah. - Eu fiquei lendo até tarde.
Era mentira; ela e Dougald queimaram as velas durante as noites que
passaram juntos.
—Temia isso - disse a senhora Trenchard. Isso é o que acontece se lhes
deixar ter livros. Bom, sinto muito, senhorita Setterington, mas não terá mais
vela até o domingo.
—Claro que as terá - interveio Dougald.
—Por favor, não importa. - Discretamente, Hannah lhe deu um golpe na
coxa. - O farei melhor na semana que vem.
Como era o correto, a senhora Trenchard fez caso omisso e em troca
respondeu a seu amo.
—Como desejar, meu senhor, mas é seu sebo o que tento economizar e
isso constituirá um mau exemplo para os outros criados.
—Não se preocupe, posso pagar o sebo. - Olhou para Hannah e lhe
devolveu o olhar.
Os olhos empanados danificaram o efeito. Mulheres! Suas lágrimas

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abrandavam a qualquer homem. Se tivesse sido um homem de verdade como


seu pai, não lhe teria importado que sua mulher chorasse.
Teria permanecido impassível ante qualquer emoção descontrolada dela e
ante qualquer recriminação que lhe pudesse fazer.
Se Hannah tivesse mantido distância um pouco mais, ele teria podido
manter esse grau de indiferença. Por dizê-lo de algum jeito:
—A senhorita Setterington é mais que uma mera criada de fila superior.
—Por favor, senhor, deixe correr. - Estava claro que Hannah não queria
que intercedesse em seu nome.
Ofereceu seu lenço e Hannah o usou livremente.
A senhora Trenchard passou o cilindro de tecido à donzela.
—Começa a cortar ataduras daqui - disse. Logo levantou a cara de Hannah
e examinou o arranhão sanguinolento do queixo. - Me desculpe senhor, não o
entendi bem.
Antes que a senhorita Setterington chegasse, você deixou muito claro que
não teria privilégios especiais.
De fato, recordava que, depois de beber muito, falara bastante mal de sua
esposa.
Não é que tivesse falado de seu casamento à senhora Trenchard, o que
certamente não fizera, mas certamente a senhora Trenchard se teria
perguntado o motivo de sua virulência.
—A senhorita Setterington talvez passe a noite em claro porque as feridas
vão incomodar. - Recordando a dedicação da senhora Trenchard a tia Spring,
Dougald acrescentou:
—Ao fim e ao cabo, evitou que as tias se fizessem muito dano.
A senhora Trenchard assentiu.
—É possível, mas não posso aprovar que se infrinjam as normas. Só lhe
falta abolir o toque de silêncio.
Às vezes Dougald se perguntava se sabia o que ocorria dentro de sua
casa.
—Que toque de silêncio?
—O das nove em ponto. Os criados devem permanecer em suas
habitações para que ninguém se faça mal, na escuridão.
Não entendia nada de tudo aquilo, mas a donzela que ajudava à senhora
Trenchard o olhava do mesmo modo em que o olhavam muitas donzelas do
serviço, com um temor que roçava a histeria.
Com um brusco gesto de cabeça mostrou à garota.
—Acredita que vou mata-la?
A estúpida mocinha assentiu. Realmente assentiu.
—Pelo amor de Deus, moça, nem sequer reparei em você.
Sua impaciente resposta não pareceu apaziguá-la. De fato, abriu mais os
olhos e se separou dele.

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

—Grande maneira de tranquiliza-la! - espetou Hannah.


A senhora Trenchard deu uns tapinhas no ombro da garota.
—Vá. Já não a necessito.
—Espera! - Dougald tentou afofar o fino travesseiro debaixo da cabeça de
Hannah. - Vá a meu dormitório e traz um de meus travesseiros para a senhorita
Setterington.
A garota engoliu saliva e ficou olhando-o fixamente.
—Não, não precisa. - Hannah se ergueu se apoiando sobre o cotovelo. -
Senhor, não necessito nenhum privilégio especial. O que preciso é que a
senhora Trenchard me examine para poder voltar com as tias.
Necessitam minha ajuda para acabar a tapeçaria.
Dougald a empurrou para a cama.
—Nos ocuparemos disso mais tarde.
Necessitava uma dose de láudano, e Dougald trocou um intencionado
olhar com a senhora Trenchard. A senhora Trenchard assentiu, logo falou com a
desconcertada donzela que corria a fazer seu mandado.
—Agora, senhor, se se retirar um pouco?
—Não. - se plantou no lado mais longínquo da cama. - Fico.
—Que disparate! - exclamou Hannah. - Não pode ficar.
Dougald indicou à senhora Trenchard que procedesse.

Capítulo 20

—Tendo em conta o que podia ter lhe passado no acidente, a senhorita


Setterington teve muita sorte. - A senhora Trenchard jogou sutilmente Dougald
do dormitório de Hannah, deixando-a apoiada no travesseiro que tão
gentilmente lhe cedera enquanto bebia uma infusão sedativa sob o olhar
atento da donzela.
—Como vê, sofreu arranhões na perna e cortes nas mãos. Doerá muito a
entorse do tornozelo e as unhas que se arrancou, e se golpeou tão forte no
queixo que sofrerá fortes dores de cabeça.
O trabalho da senhora Trenchard no quarto de Hannah convencera
Dougald que a governanta sabia curar doentes. Podia confiar nela e agora se
perguntava o que Charles teria descoberto em sua busca do culpado.
—Venha comigo - ordenou, e caminharam pelo corredor com passos
longos. - Quanto tempo deverá permanecer na cama?
—No mínimo hoje, talvez amanhã também. Deverá permanecer sentada
durante alguns dias e manter o pé em alto tanto tempo como lhe for possível.
—Se assegure que o faça. - Dougald olhou à senhora Trenchard, que corria
a seu lado. Certamente aquela mulher demonstrara sua valia.

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—Você está aqui tantos anos?


—Toda a vida.
Se deteve, pegou os sapatos esquecidos e a olhou aos olhos.
—Você conhece bem sir Onslow. - Observou um brilho de cautela. Era a
reação lógica de uma criada ao ser interrogada ou possivelmente sabia algo?
—O conheço desde que era um menino.
—O qualificaria de pessoa admirável?
—É um bom homem.
O que para Dougald não queria dizer absolutamente nada. Seguiu
caminhando e ela se esforçou por lhe seguir o passo.
—É bom com os criados, gosta de meus menus e tem um bonito sorriso.
—É um sedutor - objetou Dougald.
—Isso não é nenhum crime.
Salvo quando tentava seduzir Hannah.
—Absolutamente - repôs Dougald. À senhora Trenchard gostava de Seaton,
estava claro, e talvez isso devesse constituir um ponto a favor da pequena
pústula.
—Perguntava somente porque é meu herdeiro e se algo me acontecesse ,
me pergunto que tipo de senhor seria ele.
—Seria um bom senhor - se apressou a dizer.
A senhora Trenchard não negou que algo pudesse acontecer a Dougald.
Acaso dava por certo que podia seguir o mesmo caminho de seus
predecessores?
—Mas Londres o encanta. Temo que seria um senhor ausente.
—Sim, ausente talvez, mas não indolente. - se conteve.
—Ele?
—Ele o que?
A senhora Trenchard não respondeu e Dougald se voltou para vê-la
agarrando um lado.
—O que ocorre?
A senhora Trenchard se apoiou na parede com o semblante branco como o
papel.
—Indigestão, senhor. Às vezes é como se o demônio me espremesse as
vísceras. - Procurou no bolso do avental e tirou um frasquinho.
O abriu, engoliu o conteúdo e ficou ali quieta com os olhos fechados até
que a cor lhe voltasse. Ficou rígida, fez uma reverência e disse: - Peço
desculpas, senhor. Acontece quando trabalho muito.
—Então deixe de fazê-lo.
Embora sabia bem que estava procurando problemas, não podia consentir
que a mulher caísse de cansaço.
A senhora Trenchard suspirou.
—Senhor, posso lhe ser franca?

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Dougald olhou à governanta. Era alta, de ossos grandes, e competente, o


tipo de servente que apreciava. Não se intrometia em seu caminho, fazia seu
trabalho e nunca se aventurava a dar uma opinião.
Agora ia dá-la, e se perguntava que raros acontecimentos dos últimos dias
a levaram a dar esse passo.
—De que se trata?
—Embora outros criados se queixaram, não disse uma palavra das
mudanças que se produziram aqui porque você é o amo e se deve fazer o que
você peça.
—Exatamente.
Fraquejou um pouco.
—Mas quando a gente corre perigo, não posso fazer outra coisa mais que
falar. Há homens por toda parte todo o tempo, arrancando as coisas e as
construindo de novo, e não se tem nenhum pingo de respeito pelo passado.
Me parece que, apesar da visita da rainha Vitória, seria melhor fazer
menos e pensar antes no que se deve fazer.
—O que quer dizer?
—Por exemplo, no grande salão. Precisamente ontem surpreendi a um dos
carpinteiros pendurado nas vigas enquanto outros ficavam debaixo com uma
escada e zombavam dele.
Dougald ouvira a gritaria e saíra para ver o que ocorria. Considerara o
incidente uma mera brincadeira para aliviar a tensão de um trabalho
incessante. Mas obviamente, a senhora Trenchard levou o assunto mais a sério.
—Espero que tenha chamado a atenção deles - disse, sem revelar que
aquilo o divertia. - Detestaria que um dos homens caísse e quebrasse uma
perna.
—Mais que isso, senhor, podia ter quebrado uma das molduras. - Sacudiu
a cabeça, compungida.
—A maioria foram esculpidas no século XIV, e constituem um dos
melhores trabalhos de marcenaria desta região.
—Eu mesmo falarei com eles.
—Ao menos me consola que esses rudes homens não estejam
desmantelando também a capela.
Cada manhã depois da oração, vira a senhora Trenchard sozinha na
capela, limpando o pó e lustrando os bancos e o altar. Tinha uma grande
sensibilidade religiosa e Dougald a tranquilizou.
—Quando os homens começarem a trabalhar ali, eu pessoalmente
fiscalizarei seus trabalhos.
Se sobressaltou surpreendida.
—Mas, senhor, pensei que você não fosse trocar a capela.
—Trocá-la? Não. A venerável atmosfera que ali reina deve ser preservada.
Mas limpá-la e restaurá-la, sim.

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—Claro. - Se balançando para trás sobre seus calcanhares acrescentou: -


Então pretende restaurar a capela.
—Sua devoção diz muito de você. - Deu uns torpes tapinhas no braço dela.
- Não descuidarei o que foi há muito tempo a alma do castelo.
—Quando?
Pensou no calendário que tinha previsto.
—Logo que tenha tempo de fiscalizar as reparações antes da visita da
rainha, mas prometo me dedicar a isso assim que me seja possível. Não se
trata de transformar tudo por completo sem ordem nem concerto.
Sei faz tempo o que quero fazer no castelo Raeburn. É que simplesmente
estava concentrado em outros assuntos. - Em capturar e submeter Hannah. -
Agora tudo isso deve se fazer e rápido.
Asseguro que não haverá mais incidentes com os trabalhadores nem
acidentes como o que sofreu a senhorita Setterington.
A senhora Trenchard retorceu as mãos.
—Não quero que ninguém se faça mal.
—Ninguém se fará mal. Não se preocupe.
Vacilou um instante, como se quisesse dizer algo mais.
Dougald arqueou as sobrancelhas. Ouvira sua opinião, aquilo era mais que
suficiente. Deve ter lido em sua cara, porque a senhora Trenchard inclinou a
cabeça.
—Então irei me sentar junto à senhorita Setterington.
—Faça-o. Se necessitar algo, dê a ela. Queremos que esteja reposta
quando a rainha Vitória chegar, pois sua majestade nos honra com sua visita
em consideração à amizade que as une.
—Sim. - A senhora Trenchard deu meia volta em direção ao dormitório de
Hannah. - Você tem razão, como sempre, senhor.
Procurou um assento, calçou os sapatos e os abotoou. Em outro tempo
não muito longínquo Dougald teria acreditado nas últimas palavras da senhora
Trenchard. Durante mais anos dos que podia recordar, ele pensava que sempre
tinha razão, mas Hannah, a confiança que tinha em si mesmo, sua risada e sua
- se atreveria a dizê-lo? - inteligência começavam a fazê-lo duvidar de si
mesmo.
Era horrível para um homem de sua idade e com suas responsabilidades
duvidar de si mesmo do modo que fosse. Não gostava. Se não fosse por
Hannah, agora não vacilaria. Se não fosse por Hannah, seria feliz.
Mas teve que admitir que aquilo era uma mentira. Não fora feliz há mais
anos dos que podia contar. Desde que ela o deixou e as pessoas começaram a
lhe chamar assassino.
Embora tampouco podia recordar ter sido feliz antes. Decidido, obstinado,
pertinazmente seguro de si mesmo, sim, mas não feliz.
O que era que queria?

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Sabia a resposta; queria que Hannah o adorasse com todo seu coração, tal
como o adorava os dias antes de suas bodas.
Entretanto, nada conseguiria a afastar dele, antes que ele tivesse decidido
seu destino. Sim, quando encontrasse ao responsável por seu acidente, o
castigaria, e ninguém se atreveria a cometer outro engano.
Desceu a escada, passou pelo grande salão e a capela, e chegou a seu
escritório. Charles reunira aos carpinteiros responsáveis pelo acidente e,
conhecendo Charles, os homens estariam o aguardando em seu escritório
tremendo.
Mas Charles não estava na sala de espera e o escritório estava vazio.
Dougald franziu o cenho, logo ouviu o som de vozes que se aproximavam.
—Digo-lhe que não quero falar com sua senhoria. Me dá um pânico que
morro.
—Oui, sei, mas o senhor deseja ouvir o que tem a lhe dizer - repôs Charles
em seu tom mais tranquilizador.
—Não quero dizer.
—Prometo-lhe que não se zangará com você, Fred.
—Seu olhar basta para matar um homem, e ninguém assegura que não
tenha feito isso também.
Pela primeira vez em muitos anos, Dougald estava a ponto de estalar de
raiva. Tinha descoberto que estava farto que o acusassem injustamente de
assassinato. O assassinato de Hannah, o assassinato dos outros senhores de
Raeburn, ele nunca matara a ninguém. Nunca pôs a mão em cima de ninguém,
salvo durante uma briga justa. Entretanto, recebera seu castigo e, maldita
seja!, estava cansado que o estigmatizassem.
A voz do operário se converteu em um gemido.
—Não vê, homem? Provavelmente foi sua senhoria quem o fez.
Estigmatizado, e por um homem ao que Dougald resgatara da mais
absoluta pobreza, o levara ao castelo Raeburn e lhe dera um trabalho honrado.
Não esperava gratidão, mas um pouco de lealdade não iria mau.
Deu um passo para a porta e empregou um tom que soou como uma
chicotada.
—Provavelmente fiz o que?
Charles e o chefe dos carpinteiros se encontravam de pé dentro da capela
e Fred empalideceu.
—Senhor. - tirou a boina. - Não queria... o senhor Charles pensava que
você ainda não tinha chegado... por isso?
—Fiz o que? - repetiu Dougald.
Charles deu um empurrão em Fred.
—Entre! Não podemos falar disto aqui.
Dougald se separou da porta para deixar Fred entrar, mas não teve
piedade o bastante para se sentar ao outro lado da escrivaninha, mas sim

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ficou a passear de um lado a outro do estúdio até que Fred entrou e Charles
fechou a porta. Então, Dougald se voltou contra Fred.
—O que acredita que eu fiz?
Fred estava de pé retorcendo sua boina, claramente incapaz de falar.
—Os carpinteiros não estiveram trabalhando no patamar, senhor - Charles
informou a Dougald.
Dougald entrecerrou os olhos.
—Estiveram trabalhando na escada.
—Só na escada. Ainda não fizeram nada no patamar.
Dougald compreendeu imediatamente e sua raiva esfriou.
—Entretanto, ali é onde Hannah caiu. - Perambulava de um lado a outro. -
É possível que as pranchas estivessem podres?
O carpinteiro controlou seu nervosismo.
—Poderia ser, mas não foi isso.
—Então o que foi? - perguntou Dougald com voz suave e veemente.
—Alguém serrou um par de pranchas daqui e dali. As enfraqueceu.
Senhor, juro que não estavam assim ontem à noite, íamos começar a trabalhar
nelas esta manhã, e Rubin e eu as estudamos bem antes de ir.
Alguém tinha ferido deliberadamente à esposa de Dougald. Alguém que
sabia que a primeira coisa que sempre fazia pela manhã era subir à oficina das
tias.
Mas nem sequer sabiam que era sua esposa.
—Por que demônios alguém ia fazer uma coisa assim? - perguntou
Dougald.
Realmente não esperava uma resposta, de modo que Charles abriu a porta
e deixou que Fred saísse, logo a fechou.
—Senhor, você e madame foram indiscretos em suas visitas conjugais.
Dougald se voltou bruscamente para Charles.
—Como sabe que nós?
—Me dirigi a seu quarto para o ajudar a se vestir e ela estava saindo às
escondidas dali. No dia seguinte voltei outra vez para o ajudar a se vestir e era
você quem saía às escondidas do quarto de madame.
Me escondi no final do corredor para que nenhum criado se atrevesse a
olhar, mas senhor, esses são segredos que não se podem ocultar. Correm
rumores. Os ouvi. Os criados especulam sobre a razão pela qual você se
mostra menos intimidatorio. Veem a tensão que existe entre você e madame.
As olhada. Seus rubores. E especulam corretamente.
—Maldição!
Dougald não queria ouvir que ele fora a razão pela que atentaram contra a
vida de Hannah.
—Sim, senhor - disse Charles muito sério. - Não acredito que ninguém
possa imaginar que madame é sua esposa, mas sim certamente devem

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acreditar que se aproxima um casamento.


Se, como você sugere, foi sir Onslow quem tentou assassiná-lo para
herdar seu título?
—Disse que não acreditava que fosse Seaton. Os detetives não
encontraram prova alguma que seja culpado.
—Isso significa que ainda não o caçaram. Eu não acredito que tenha nem
o engenho nem a malícia. - As faces de Charles pareciam ainda mais flácidas. -
Mas tem um móvel, e o vi, senhor. Escapuliu pelos corredores.
Esconde coisas sob seu grande casaco. Inclusive o surpreendi saindo desta
ala.
—Poderia averiguar onde esteve?
—Não tocou nada de seu quarto, senhor, e naquele momento acreditei
inofensivo.
—Não estou convencido que não seja ele. A maior parte do tempo nem
sequer está no castelo Raeburn. Anda por aí afora de farra enquanto nós
trabalhamos.
—Então poderia ter sido um agente que trabalhasse para sir Onslow. Isso
absolveria sir Onslow de toda culpa se o declarassem assassino e se
apresentasse uma acusação.
—As faces de Charles lhe caíram até quase o decote. - Há outro incidente
que me parece curioso, mas do que não o informei.
Dougald se voltou para ele.
—Sim?
—Um dia, enquanto madame aguardava fora de seu escritório, esteve
rondando pela capela. Quando entrei, a encontrei no chão. Disse que se
golpeou na cabeça. - Charles parecia envergonhado. - No princípio não
acreditei.
—O que quer dizer com que não acreditou?
—Não havia nada com o que pudesse ter golpeado a cabeça. - Charles
encolheu um pouco os ombros. - E é uma jeune fille11. As jeune filles são um
pouco exageradas, um pouco dramáticas.
—Charles, há algo que você goste das mulheres? - perguntou Dougald,
absolutamente exasperado.
—Oui, há uma coisa que eu gosto muito. Mas não têm nenhum mérito por
isso.
Talvez, admitiu Dougald para si, Hannah tinha seus motivos para detestar
Charles.
—Mas golpeou a cabeça?
—Encontrei um pesado pedaço de moldura perto dela, se desprendeu de
algum lugar. Fizemos conjeturas sobre se teria caído das vigas, mas se tivesse
caído, o teria feito há muito tempo, pois a madeira gasta não estava limpa, e
11
Do francês: garota, donzela, menina, senhorita.

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sim negra de pó e fumaça.


Dougald observava persistentemente para Charles e a sua vez este olhava
a ele.
—O que Hannah disse disso?
—O golpe aturdiu a madame e ela não notou nada estranho. Perguntei a
um dos trabalhadores de onde saíra aquela madeira. Disse que encaixava com
a moldura das vigas.
—Charles apontou para cima com o indicador. - Das vigas do grande salão.
—Então o arrojaram.
Charles deu de ombros.
—Oui, isso suspeito.
A raiva se apoderou de Dougald como um calafrio.
—Por que não me contou isso em seguida?
—Você não queria que dissesse nenhuma palavra mais sobre madame.
Nenhuma palavra.
Charles respondeu com um indício de triunfo, atitude que Dougald tinha
castigado bem, pois recordava muito bem aquele dia em seu escritório e a
ordem que dera a Charles.
—Muito bem, Charles, mereço isso.
—Sim, senhor. - Charles respirou fundo. - Mas esse é o motivo pelo que o
aconselho que tenhamos muito cuidado com as restaurações. Temo que possa
acontecer outro acidente.
—Obrigado. - Mas Dougald nunca esqueceria que Charles contribuíra para
afastar Hannah na primeira vez. - Ainda me pergunto por que o fez.
—Você pergunta? Acaso não vê? - O acento de Charles se fazia mais forte
quando ficava nervoso. - Meu desejo mais fervente é que você e madame
voltem a estar juntos. Fiz tudo o que estava em meu poder para que isso
ocorresse.
—Por quê? - perguntou Dougald.
—Ela deve voltar e se comportar como uma autêntica esposa. Você não foi
feliz desde que se inteirou que ela estava viva e em outro lugar, mas nem lhe
ocorre pensar no divórcio. - Charles olhou para Dougald.
—Se ela não voltar com você, ao menos deveria morrer para que você
fosse livre.
Ah! Agora chegaram à raiz do assunto.
—Preferiria não ter que confrontar outra acusação de assassinato.
—Não! Senhor, não me referia a que você deveria matá-la. O fato que seja
suspeito de assassinato já o isolou da boa sociedade.
Não conseguiria se casar com outra moça mais jovem e melhor porque
seu pai acreditaria que poderia matá-la. - Charles sorriu com falsa alegria. -
Assim deve haver uma reconciliação.
—Viver comigo como minha esposa ou a matarei? Essa é uma proposição

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que toda mulher quer ouvir.


—Mas não tem que matá-la, senhor. Alguém está disposto a fazê-lo por
você.
O brusco aviso de Charles fez que Dougald se sentasse. Afundou na
poltrona e, uma vez mais, tentou confrontar a magnitude do desastre.
—Então Hannah está em perigo por minha culpa?
—Um filho nascido de você e de madame eliminaria as probabilidades que
sir Onslow herdasse. De algum jeito tem que ser sir Onslow.
Dougald podia enfrentar ao perigo. Não sentia nada mais que desprezo
pelo covarde que o assaltara e quase o mata. Mas tentar matar Hannah? Não.
Não.
—Seaton está em casa?
—Não, senhor, saiu para passar o dia em Conniff Manor.
—Quando voltar, quero falar com ele.
—Eu poderia estar presente, senhor?
Dougald intercambiou um sombrio sorriso com seu criado.
—Claro, conto com sua presença. Seaton não tem nenhum medo de mim.
—Esta indiferença por sua parte pode mudar.
—Sim. Acredito que terá que mudar. Mas até que fale com ele, faça-o
confessar, temos que velar por Hannah.
—Senhor, estive vigiando-a quando pude. Mas nem sempre é possível. Ela
revoava daqui para lá, escada acima e escada abaixo. Fala com todo mundo, é
amiga de todo mundo. - O tom depreciativo de
Charles deixava bem claro que não aprovava aquela atitude. - Aqui há
trabalhadores, estranhos. Qualquer um deles poderia ter sido contratado para
lhe fazer mal.
Ou poderia se tratar de alguém conhecido, um dos lacaios, a senhora
Trenchard, Albert?
—Você.
—Eu? - O impressionante nariz de Charles se inchou e, com o sarcástico
tom no que Charles era todo um campeão, acrescentou: - Claro, poderia ser eu.
Mas se desejasse matá-la, teria desperdiçado muitas oportunidades.
Talvez não desejasse matá-la, pensou Dougald. Talvez só desejasse voltar
a tirá-la dali. Olhou para Charles, com seu rosto caído, o nariz bulboso e os
escassos cabelos na cabeça.
Depois da última vez em que Charles se esforçou tanto para se livrar de
Hannah, como Dougald podia voltar a confiar plenamente nele?
—Tem que a afastar daqui, senhor - disse, como se Charles tivesse lido sua
mente.
—Não irá.
E Dougald não confiava o suficiente nela para lhe explicar por que devia ir.
Ela não iria - seu carinho pelas tias, sua obrigação para com a rainha, inclusive,

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possivelmente, sua paixão por ele a manteriam aqui, —além disso a Hannah
que entrara naquela casa era diferente da jovem Hannah. Ela decidia uma
linha de ação e a levava adiante com senso comum e determinação. Se decidia
que podia ajudar Dougald a encontrar o culpado, insistiria em fazê-lo. E quando
Dougald pensava em Hannah enfrentando corajosamente a esse bruto do
Seaton com sua oculta perversão, bom, ela não iria porque Dougald tampouco
o pediria.
—Não posso cuidar dela e de você, e você sabe a quem preferiria se me
encontrasse na iminência de escolher - disse Charles com desespero.
Sim, Dougald sabia e nada do que pudesse dizer mudaria a lealdade de
Charles para com ele.
—Você pode fazer que se vá. - Com as mãos sobre a escrivaninha, Charles
se inclinou para frente e olhou fixamente para Dougald com grave sinceridade.
- Você sabe como.
—Sim. - Até que Dougald tivesse identificado o culpado e se encarregasse
dele, teria que afastar Hannah dali.
Com triste resolução, abriu a última gaveta de sua escrivaninha e tirou um
maço de cartas atadas com uma fita rosa esvaída. - Mas isto será o fim de
nossa reconciliação.

Capítulo 21

As tias se agrupavam em torno do leito de Hannah e a olhavam com uma


curiosidade que rondava a desconfiança.
—Querida, volte a nos explicar como tropeçou na escada quando subia à
oficina - disse tia Isabel. - Não a ouvi bem da primeira vez. Falava
horrorosamente baixo, como se murmurasse.
Hannah não tinha murmurado; de fato, dominava a arte de falar devagar e
em voz alta para que tia Isabel pudesse ouvi-la. Mas não podia ferir a
sensibilidade da dama mais idosa, de modo que disse:
—Estava subindo uma caixa de fios novos e tropecei com a saia.
—Isso - assentiu tia Ethel.
—Que caixa velha! - comentou tia Spring.
—Por que não pediu a um criado que a subisse? - perguntou tia Isabel.
—Os criados estão muito ocupados com a construção e a limpeza, e eu
não gosto de afastar a nenhum deles de suas obrigações. Agora teria pensado
melhor nisso.
—Hannah ajeitou a descolorida camisola de flanela listrada e apontou para
a cadeira. - Não esperava convidados, mas por favor, querem sentar?
—Não, querida, estamos mais cômodas de pé - disse a senhorita Minnie.

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A senhorita Minnie queria dizer que na realidade podiam intimidá-la


melhor se permanecessem de pé a olhando escrutinadoramente. O inchaço do
tornozelo de Hannah era menos doloroso que aquele interrogatório.
Hannah se sentou erguida apoiando as costas no travesseiro e tentou
mudar de conversação.
—Obrigado pelas flores, tia Ethel. - O vaso de cristal esculpido descansava
na mesinha de noite e Hannah acariciou as delicadas pétalas de uma rosa de
cor rosada. - São preciosas.
Tia Ethel sorriu encantada; resultara fácil conquistá-la com o elogio que
acabava de fazer de suas flores.
—Trarei mais amanhã. - Tia Spring lhe deu uma dissimulada cotovelada e
lhe recordou seu dever. - Ah, sim! - Tia Ethel olhou para Hannah com o cenho
franzido.
—Estava nos contando o da queda.
—Não há nada mais a contar. - Hannah tentou dar de ombros. - Como
seguem os planos da recepção?
Tia Isabel deu uns toques no cabelo muito negro, recém tingido.
—Lorde e lady McCarn nos confirmaram sua presença, como os Dempster.
Sir Stokes e lady Gwen não o perderão e...
A senhorita Minnie a interrompeu.
—Seria mais fácil dizer que todo mundo aceitou.
—Todo mundo?
Hannah pensou em seus avós e apertou as mãos. Por fim ia conhecê-los. O
inchaço do pé ia diminuindo. Pensou que já poderia calçar sapatos na recepção
da rainha e se sentiu agradecida; queria estar perfeita quando conhecesse os
Burroughs.
Tia Isabel captou bruscamente sua atenção.
—Sim, seria mais fácil dizer isso, e claro, prepararemos comida e bebida
próprias de uma rainha. Oxalá fique bem, senhorita Setterington!
—Obrigado, estou bem. Quando a senhora Trenchard me curou esta
manhã disse que amanhã poderia me levantar usando uma bengala. - A
Hannah chateava ficar na cama. - Como vai a tapeçaria?
—Ficam menos de cinco dias para a visita de sua majestade. Não sei se
poderemos acabá-la a tempo. - Tia Spring sacudiu a cabeça com abatimento. -
Não sem a caixa de fios que necessitamos.
Ah, mas você disse que chegou! - levou um dedo ao queixo. - Onde disse
que a pôs?
Hannah alisou as dobras da saia e se perguntou por que pensava que
podia mentir a aquelas mulheres. Pela primeira vez desde que sua mãe
morreu, enfrentava a uns olhos censores e sentia o aguilhão da culpa.
—Soltei quando caí. Talvez outra pessoa a tenha recolhido.
Os fios teriam que ter chegado ontem. A caixa teria que estar em alguma

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parte do castelo, não? Que o céu a ajudasse se não chegaram ainda.


—Perguntaremos à senhora Trenchard. - A senhorita Minnie conseguiu que
uma simples frase soasse ameaçadora.
Mas Hannah aprovou a ideia. A senhora Trenchard mentiria por ela se
fosse necessário. A senhora Trenchard tampouco queria que as tias se
preocupassem.
—Sim, falarei com Judy - disse tia Spring. - Ela e eu somos como gêmeas.
Surpreendida, Hannah piscou.
—Como gêmeas? o que quer dizer?
—Minha mãe morreu, já sabe, Então sua mãe foi minha ama de leite. - Tia
Spring destacou a si mesma. - Temos a mesma idade.
—Ah, sim?
Por algum motivo, Hannah pensou que tia Spring era mais velha que a
senhora Trenchard. A senhora Trenchard era tão robusta e competente, capaz
de dirigir uma equipe de cinquenta criados, enquanto tia Spring era... tia
Spring. Vaga, excêntrica, eternamente uma menina.
Tia Spring esqueceu a busca da verdade e se aproximou da borda da cama
de Hannah para murmurar.
—Nos criaram como irmãs. Em minha juventude, a querida Judy era minha
eterna companheira. Sempre velava por mim, inclusive quando fiquei mais
velha. Inclusive depois que se casou.
Porque, se não fosse por ela, jamais teria podido ver Lawrence em
segredo.
—Senhorita Spring! - A senhora Trenchard estava de pé na soleira. - Não
diga estas coisas. Não queremos que sua reputação se macule.
—Ora! Que importância tem minha reputação? Lawrence foi meu único e
verdadeiro amor. - Logo, em uma súbita mudança ao pragmatismo, tia Spring
acrescentou: - Além disso, já sou muito velha para me casar.
A senhora Trenchard abriu caminho no pequeno e abarrotado quarto.
—Vamos, senhorita Spring, isso não é verdade. Você tem aos homens
fazendo fila para que lhes dê seu consentimento.
—Eu não vi a nenhum dos velhos caducos - disse a senhorita Minnie de
maneira cortante. - Spring assumiu que suas perspectivas de casamento
acabaram, Trenchard. Por que você não o assume também?
A senhora Trenchard claramente mordeu a língua fosse por respeito a tia
Spring ou por medo à senhorita Minnie.
—Senhorita Setterington, vim examinar seu pé. Lorde Raeburn quer saber
se poderá se levantar hoje - repôs depois de um momento de silêncio
incômodo.
—Já me lembro! - Ao recordar subitamente o objeto de seu interesse, tia
Spring cruzou os braços . Judy, como a senhorita Setterington se machucou?
—Já contei como - disse Hannah, - tropecei ao subir a escada.

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Christina Dodd
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—Eu perguntei a Judy - tia Spring a cortou, visivelmente irritada.


—Eu não estava por perto quando a senhorita Setterington caiu.
A senhora Trenchard enrolou as mãos no avental e se negou a devolver o
olhar de tia Spring.
—Você a encontrou ao pé da escada? - perguntou a senhorita Minnie.
A senhora Trenchard olhou a seu redor como se a tivessem apanhado, e
seu acento de Lancashire se fez mais agudo.
—Não exatamente ao pé.
—Já é suficiente, tias. Eu gostaria de falar com a senhorita Setterington -
Dougald disse rudemente da soleira.
Quatro pares de brilhantes olhos se fixaram nele.
—Adiante, querido - convidou tia Ethel.
—A sós - esclareceu.
—Não posso acreditar que espere que a deixemos fazer tal coisa - disse a
senhorita Minnie em seu tom mais severo.
—É de tudo indecoroso - acrescentou tia Isabel.
—Mas o permitiremos! - Tia Spring ficou em pé . - Vamos, garotas.
Deixemos a estes meninos sozinhos.
Com uma pressa indecente, as tias se encaminharam para a porta. Uma
atrás da outra passaram junto a Dougald.
Tia Isabel foi a última a sair.
—Por certo, querido, deveria ir pensando em transladar à querida Hannah
a outro quarto. Este está horrorosamente desmantelado - sussurrou tia Isabel a
Dougald. E após dirigir um rápido olhar para Hannah, acrescentou:
—Talvez a seu quarto.
Quando tia Isabel saiu do quarto, Hannah pensou em bater com a cabeça
contra a cabeceira. Já era bastante mau que Dougald pedisse para vê-la a sós,
mas que as tias consentissem?
E que tia Isabel fizesse um comentário tão mordaz! E tudo isso diante da
governanta! Hannah não se atrevia a olhar à cara da mulher.
Antes que Dougald pudesse dar um passo, tia Ethel retornou.
—Venha conosco, senhora Trenchard.
—Ela fica - disse Dougald.
Enquanto tia Ethel pigarreava, Dougald voltou a cabeça e a olhou.
Tia Ethel retrocedeu como se tivesse descoberto no rosto de Dougald o
veneno de uma serpente.
—Como quiser, senhor - disse em um sussurro assustado. E com os olhos
muito abertos lançou um olhar de compaixão para Hannah e desapareceu.
Quando Dougald deu a volta, Hannah compreendeu por que. Dougald
estava de pé na soleira como uma sólida entidade embelezada de negro com
cara sombria e uns apagados olhos verdes.
—Lorde Raeburn, algo vai mau?

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—Poderá se levantar hoje, senhora Trenchard? - perguntou Dougald,


fazendo caso omisso a Hannah.
A senhora Trenchard agarrou o pé ferido de Hannah na mão.
—Sim, senhor. Poderá.
Um notável diagnóstico, pensou Hannah, considerando que nem sequer a
olhou.
—Muito bem - disse Dougald. - Senhora Trenchard, pode ir.
—Espere. - Hannah agarrou a mão da governanta. - Chegaram os fios da
tapeçaria?
A senhora Trenchard olhou com nervosismo para Dougald, mas respondeu.
—Esta tarde. Agora estão acima na oficina.
—Se as tias perguntarem, eu os estava subindo ontem quando caí.
A senhora Trenchard assentiu, logo saiu correndo do quarto como se os
cães de Hades a perseguissem.
Algo estava acontecendo, algo que Hannah não compreendia. Se esforçou
por se voltar e pôr o pé no chão.
—Dougald, o que ocorre?
—Não se levante ainda. - Dougald não se moveu, entretanto destilava um
ar ameaçador. - Mantém o pé no travesseiro tudo o que possa. O trajeto de
trem até Londres é longo.
—O trajeto a Londres?
Hannah não voltou a se recostar outra vez, não notou o frio chão contra as
plantas dos pés. Não notou nada salvo Dougald, enchendo o vão da porta.
—Estou te enviando de volta a casa.
Hannah piscou.
—Está brincando.
—Não estou brincando.
—Então por que diz tal coisa?
—Porque terminei com você.
Hannah conteve a respiração ante uma frase tão direta, brutal e efetiva.
Estava tão equivocada.
—Terminou comigo? Terminou comigo por quê?
—Vamos, Hannah, normalmente não é tão lerda. Eu tinha meus planos e
meus planos já se cumpriram. - Sorriu, com o sorriso de um pirata que desfruta
infligindo dor. - Terminei com você.
Sensações... impressões... a confusão formava redemoinhos como um
torvelinho em seu cérebro.
—Admito que tentava te usar durante mais tempo, mas se olhe!
Hannah baixou a vista a seu desalinhado saldo de cama.
—Está decaída. Se feriu. Já não me serve na cama, não é por outra razão.
Em seu estado não pode se ocupar das tias e, quanto a nossos pequenos
arranques de paixão, bom, certamente não sinto nenhum desejo por você com

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seu aspecto.
Hannah agarrou as próprias lapelas, as elevou e as aproximou da
garganta. Ainda não compreendia e tentou dar um tom humorístico ao assunto.
—Não estou em minha melhor forma, mas...
Dougald a interrompeu sem piedade.
—E estou seguro que suspeitava de minhas intenções.
—Suas intenções?
—Deve ter se perguntado se minha paixão por você estava à altura da sua
por mim.
Dougald esticou o peito. Estava falando dos mais recônditos temores de
Hannah.
Dougald entrou no quarto e fechou a porta com força.
—Sua paixão era muito enternecedora. Muito comovedora. - Como um
depredador de passagem sigilosa, avançou até os pés da cama. - Muito
patética.
—Patética! - "O muito porco!"
—Te ocorre um adjetivo melhor para uma mulher que sente desejos por
um homem que a usa somente para se vingar?
—Isso não é certo. - Sabia que não era certo. - Está mentindo.
—Você suspeitava que a estava enrolando.
Dougald esperou até que ela admitiu.
—Sim.
—Teria que ser uma estúpida para não se dar conta e, Hannah, eu sei que
não é nenhuma estúpida. - Suas mãos se agarraram tanto aos chorões que
adornavam os pés da cama que os nódulos ficaram brancos.
—Ou ao menos, não é estúpida em nada, salvo no que diz respeito a mim.
—Outra vez. - Hannah começava a acreditar no que ele estava dizendo
com evidente desfrute.
—Sim, outra vez. Mas a primeira vez que a seduzi foi para nos casar. Desta
vez é para o divórcio.
Sentiu vontade de esbofetear seu rosto petulante. Ficar muito erguida e
adotar uma atitude desafiante. Mas ele a fez pedacinhos com sua
malevolência.
—Desta vez não me fez falsas promessas.
—Claro que não! Recorda o cuidado que pus em não te falar mais do que o
necessário durante nossos encontros noturnos.
—Por quê? porque estávamos ocupados em outras coisas.
—Porque sei o muito que detesta que faça promessas que não posso
cumprir. - Sacudiu o marco da cama e esta estralou. - É quase tão mau como
fazer votos matrimoniais e não cumpri-los.
Ela seguia sem compreender. Se negava a entender.
—Eu não deixei de cumpri-los. Você me forçou a te abandonar.

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—Poderia ter sido mais forte. Poderia ter tido mais integridade. Poderia ter
obrigado Charles a ceder. - Sua voz se fez mais grave, mais profunda, mais
intensa com cada acusação.
—Poderia ter me obrigado que a escutasse.
Hannah se sentia como se lhe tivesse dado uma bofetada.
—Mas?
—Se rendeu. Em seis meses se rendeu.
—Eu não queria. - Hannah não desejara desistir. - Não esteve bem, sabia,
mas não tinha nenhuma possibilidade de vencer a você e a Charles.
—Vencer! Não era nenhuma maldita guerra, era um casamento, e você
tinha um poder que nunca tentou usar.
Muito doída, se revolveu.
—Que poder? Não tinha nenhum poder. Tentei tudo.
—Provou com suas argúcias femininas?
Hannah as desdenhou.
—Não era honesto as utilizar.
—Honesto, diabos! - Apontou para ela com o dedo. - Seis meses, Hannah,
demorou para abandonar os mais sagrados votos que podem fazer um homem
e uma mulher. Compartilhou o leito comigo. Eu era escravo de seu corpo.
Se tivesse me falado na escuridão da noite depois de ter me feito o
homem mais feliz do mundo, faria qualquer coisa por você.
—E logo teria se queixado de manipulação.
—Provavelmente. Eu era jovem, estúpido e obstinado. - zombava dele
mesmo quando era jovem. - Mas a teria escutado e você teria tido o direito de
governar seu próprio lar, possuir sua boutique, se converter na mulher que
queria ser e a esposa com a que eu sonhava. Mas você... você foi muito
orgulhosa para utilizar as armas que tão bem esgrimia.
Só choramingava. Como se choramingar fosse muito mais honorável que
utilizar as argúcias femininas.
—Eu não choramingava! Tentava conseguir que me escutasse!
—Que escutasse suas palavras. E quando as palavras não funcionaram, o
que fez?
Engoliu saliva para evitar um estalo de pranto.
—Está tergiversando tudo. Não foi minha culpa!
—Me abandonou. Me deixou sozinho. Me deixou para que enfrentasse à
desgraça, à injustiça e às acusações de assassinato.
Dizia com muito sentimento. Via a dor que havia nele, uma dor que nunca
teria imaginado que aquele homem frio e cínico pudesse sentir. Dougald a
odiava. A culpava de suas desgraças.
—Esperei este momento durante anos, querida. - Sua voz se fez mais
suave, mais profunda e mais ameaçadora. - Anos pelo momento de me
encontrar frente a você e olhar como se quebrava em pedaços.

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Não conseguia compreender Dougald, que gotejava cumplicidade e


crueldade de uma vez. Sim, duvidara dele na noite em que chegou ao castelo
Raeburn. Sim, às vezes se perguntara se suas ameaças de mutilação e maus
entendimentos as proferia a sério. Mas em alguma parte de sua alma ainda
sentia carinho pela imagem de Dougald, nu no trem, brincando sobre seu
intenso desejo e se esforçando em satisfazê-la.
Sempre pensou que esse era o verdadeiro Dougald. Não o homem ao qual
abandonara. Não o homem que naquele momento era seu senhor.
—Planejou isso?
—Até o mínimo detalhe - respondeu sem fraquejar.
—Salvo minha queda no patamar.
Dougald afastou o olhar.
—Está segura disso?
Hannah lançou uma exclamação súbita e emocionada.
—Dougald - sussurrou. - Não queria me machucar, não é?
Quando lhe devolveu o olhar, só viu um fino fio verde em seus olhos. O
resto era negro, um buraco negro insondável e cruel que se abria não só em
sua alma, a não ser na dor, a amargura, um nada.
—Já disse antes. Já suportei que me acusassem de te assassinar. Já passei
minha temporada no inferno. Por que não teria que te matar? Enquanto não me
peguem, não vou ter pior fama que antes.
Hannah se levantou. A dor do tornozelo a agarrou despreparada. Desabou
na cama de dor e de comoção.
Dougald se aproximou dos pés de sua cama tão rápido que parecia que ia
se equilibrar sobre ela.
Hannah se encolheu, retrocedendo para a cabeceira.
Dougald sorriu, um rápido e falso movimento dos lábios para cima.
—Dito assim, o divórcio parece uma brincadeira, não é?
Não se despediria dele, tal como não se despediu daquela primeira vez,
fazia tantos anos, quando se foi a Londres.

Uma Hannah muito mais jovem aguardava no pátio da Knight Arms Inn de
Liverpool e observava como os palafreneros e os moços de estábulo subiam e
rodeavam o carro e trocavam os cavalos para o próximo lance do caminho.
Tinha passado muito tempo desde a última vez que subira em um
transporte público; desde antes que sua mãe morresse. Desde antes que
fossem a casa de Dougald.
A casa de Dougald? O lugar onde a Hannah menina acreditara que poderia
viver sempre e se sentir a salvo. O lugar onde a Hannah moça havia chegado
como uma noiva avermelhada, com a esperança de se converter por fim em
parte de uma família. Agora, aquela fria mansão de pedra cinza só lhe
recordava seus sonhos frustrados.

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Já no trem com Dougald teve suas dúvidas. Inclusive antes de se casar se


perguntara se não estaria cometendo um engano.
Ao fim e ao cabo, sua mãe não se casou porque seu pai fora muito fraco
para desafiar sua família. De certo modo, Dougald se casara pela mesma
razão.
No mais fundo de seu coração, ela sempre acreditara que Dougald não a
amava. Teria gostado e desejava que fosse assim. Mas não lutara por isso.
Em sua juventude a feriram muitas vezes, amigos que voltaram as costas
à bastarda sem lar que foi.
Então aquela manhã metera na mala sua roupa mais prática, as
lembranças de sua mãe e o dinheiro que Dougald lhe dera. O dinheiro que pôs
diante dela como uma chupeta e o que conseguira reunir aquelas últimas
semanas para aquela causa precisamente: o deixar. Fugia a Londres do modo
mais rápido possível. Londres, onde podia desaparecer e não ser encontrada
jamais.
Londres, um lugar de exílio.
Então os moços de estábulos concluíram seu trabalho, Hannah se
aproximou do chofer.
—Tenho o bilhete. Esta é minha mala - apontou. - Por favor, a coloque no
carro. Quanto falta para que partamos?
O chofer a olhou de cima abaixo e ela imediatamente soube o que viu. Viu
uma jovem dama vestida com as mais elegantes roupas de luto, com um véu
no chapéu e o cabelo loiro mordiscando através do brocado.
Não tinha donzela e aquilo era uma mancha contra ela, mas, na aparência,
seu aspecto lhe infundia um selo de qualidade, pois o chofer a saudou com o
chapéu.
—Estamos preparados para partir, senhorita - disse com voz respeitosa.
—Graças a Deus - sussurrou Hannah.
Não queria que a apanhassem. Provavelmente não a apanhariam, pois
Dougald estava de viagem para Manchester. Charles ia com ele, mas estava
segura com Charles.
O ardiloso francês tinha um modo de saber tudo o que ocorria na casa e
Hannah teve que pôr todo seu engenho em jogo para que não descobrissem
que fugia.
—Sim, senhora, chegaremos a Londres a tempo para o funeral - disse o
chofer.
—Obrigado. - Depositou uma moeda na mão dele. - Você é muito amável.
O chofer abriu a porta da carruagem e gritou aos passageiros.
—Senhores, façam lugar. Tem que subir uma dama.
Um cavalheiro com aspecto de janota colocou a cabeça pela porta.
—Uma dama? O que me importa que uma dama venha conosco? Eu
estava aqui primeiro.

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O chofer o derrubou com um simples movimento.


—Fará o que lhe digo ou terá que viajar no teto.
O cavalheiro se endireitou para rugir um insulto, quando lançou um olhar a
Hannah.
Ela o olhou sem expressão alguma no rosto.
Deu um passo para ela e lhe ofereceu a mão.
—Posso ajudá-la a entrar, senhorita?
Senhora, quase o corrigiu. Senhora Pippard, mas se conteve.
—Senhorita Setterington - disse depois de pensar um instante. - Obrigado,
senhor.
Entrou no carro. No assento que olhava à frente se sentavam uma velha
mulher gordinha e uma moça de aspecto desarrumado que se agarrava à mala
que sustentava no colo. Bastou um olhar para fazer uma ideia a respeito delas:
a dama era honrada e a moça era uma senhorita de campo que se dirigia à
cidade para fazer fortuna.
—Me permitem? - perguntou, fazendo um vão e se apertando entre elas.
O janota se sentou justo diante dela.
—Então vai você a Londres, não é? Que coincidência! Eu também - disse
com um sorriso.
Hannah soube que teria que esquivá-lo. Também sabia que podia fazê-lo.
Ela não era a rica e inocente jovem dama que ele acreditava. Era uma bastarda
sem trabalho, acostumada a viajar pelos caminhos, a julgar às pessoas em um
momento e a viver de seu engenho.
Teria que fazer uso de todo seu engenho para se esconder de Dougald e
se esconder tão bem que ele nunca pudesse encontrá-la. Mas o conseguiria
como fosse. Agora era a senhorita Hannah Setterington, uma mulher solteira e
independente.
A porta do carro se fechou, o látego estalou e o carro arrancou com uma
sacudida. Hannah colocou a cabeça para fora para lançar um último olhar a
Liverpool, logo se recostou para trás e fechou os olhos.
Depois de só seis meses de casamento, tudo o que ansiara se esfumava.
Deixava atrás seus sonhos de ter um casamento, uma família e um amor, e
nunca mais voltaria a pensar neles.

Um ruído na porta a obrigou a retornar bruscamente das obscuras


lembranças ao doloroso presente.
Ali estava a senhora Trenchard com uma bengala na mão.
—Lorde Raeburn me envia para ajudá-la a fazer as malas.
—Malas? - Hannah mal podia acreditar que Dougald fosse tão brutal.
—Fazer as malas para retornar a Londres.
A última vez que Hannah deixara Dougald, tinha lhe doído, sim, mas
desejara ir preservar sua autoestima, sua vontade, sua independência. Se

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desta vez se ia, o que ficaria salvo o orgulho quebrado, um espírito abatido e
os sonhos de uma família que jamais se fariam realidade?
Os sonhos de fundar uma família com Dougald. Dougald, que demonstrara
ser cruel e malvado com cada palavra que pronunciou. Dougald, que lera seu
pensamento e todos seus temores e os utilizara para zombar dela.
Hannah franziu o cenho.
Ele a acusava de o abandonar. De fugir de seu casamento sem realmente
tentar que funcionasse.
Mas ela tentara. Tentara! E só para lhe demonstrar que estava
equivocado?
—Eu não vou a nenhuma parte - repôs.
A consternação invadiu o rosto da senhora Trenchard.
—Senhorita Setterington?
Hannah pôs o pé no chão com cuidado.
Dougald não era cruel nem malvado. Era frio, difícil e o açulavam uns
demônios que ela não compreendia. Mas nunca montaria uma armadilha para
que ela caísse! A ideia era ridícula.
—Não vou. Ele não pode me obrigar.
A senhora Trenchard umedeceu os lábios.
—Senhorita Setterington, embora lamente contrariá-la, sim, sim pode.
Fazendo caso omisso da senhora Trenchard, Hannah ficou em pé pondo a
prova a força de seu tornozelo, pondo a prova sua determinação.
A senhora Trenchard lhe mostrou uma carta.
—Escrevi isto para você, é uma carta de recomendação em que elogio
todas suas qualidades.
Hannah pegou a carta, deu uma olhada e a lançou sobre a cama. Estava
ocorrendo algo, algo que não compreendia, mas não pensava deixar às tias
antes da visita da rainha. Não pensava ir sem conhecer seus avós.
—Obrigado, senhora Trenchard, mas não vou.
—O amo sempre se sai com a sua - repôs a senhora Trenchard com um
toque de desespero na voz.
Hannah deu um passo curto e capengante. Satisfeita que seu tornozelo
aguentasse, estendeu a mão para pegar a bengala.
Dougald a estava jogando por algum motivo. Talvez fosse porque tinha
terminado com ela ou talvez ocorresse algo mais. Algo concernente a seus
avós, às tias ou à própria Hannah.
Talvez Dougald tivesse encontrado uma amante mais desejável que
Hannah, mas fosse qual fosse a razão, Hannah não deixaria Dougald até que
ele sofresse o que ela sofrera.
Quando a senhora Trenchard a deu, Hannah a olhou fixamente aos olhos.
—Nada nem ninguém vai me jogar do castelo Raeburn até que esteja
preparada para ir.

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Capítulo 22

Dougald estava de pé atrás de sua escrivaninha e contemplava


boquiaberto a impassível senhora Trenchard.
—A senhorita Setterington se atreve a me desafiar?
—Deseja que faça que os criados a levem até o carro e dali até o trem,
senhor? - A senhora Trenchard empregava o mesmo tom que poderia ter
utilizado para lhe oferecer um conhaque quente.
Dougald fez uma careta de preocupação, consciente que não levara bem a
empreitada de despachar Hannah.
Havia dito mais do que planejava fazer e o havia dito com muito
sentimento.
Tinha reprovado que ela desertasse de seu casamento. Não se propusera
dizer isso, nem sequer se precavera do muito que lhe doía sua deserção.
Mas uma vez que começou a falar, sua sentença fora condenatória,
sincera e reveladora para ambos, para ela e para ele.
—A senhorita Setterington não é tão forte para que dois criados robustos
não possam jogá-la se ordenar isso - disse a senhora Trenchard.
—Sem dúvida, mas não desejo ver como a levam a rastros enquanto as
tias choram e retorcem as mãos. - Remexeu os cabelos. - Onde está ela agora?
—Colocou suas roupas de trabalho e se dirigiu para a despensa. Disse que
a perna doía e que não podia andar mais, assim se deteve ali para contar o
faqueiro. - A senhora Trenchard sacudiu a cabeça.
—Necessita que o contem, mas eu não queria permitir-lhe senhor. É um
assunto arriscado, pôr a prata de Raeburn nas mãos de uma empregada
descontente.
Entretanto, pensei que você quereria que o notificasse seu desafio
imediatamente.
—Duvido que a senhorita Setterington desenvolva nenhuma querência
especial pela prata de Raeburn, por muito descontente que esteja. Obrigado,
senhora Trenchard, - alisou a jaqueta até ficar bem lisa.
—Eu me encarregarei deste assunto.
Quando deixou Hannah em seu quarto, teria jurado que ela ia partir, que o
conseguira, como sempre.
Mas raramente ganhava com Hannah. Hannah o frustrava uma e outra
vez, mas nesta ocasião não. Sua vida estava em jogo. Tinha-a jogado por seu
próprio bem.
Algum dia ela apreciaria sua consideração e compreenderia que a ferira
para ajudá-la.

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Ela teria que compreendê-lo, porque, para que sua linhagem familiar se
perpetuasse, necessitava uma esposa.
Entretanto, enquanto caminhava pelo corredor, sentiu uma grande
preocupação. Sim, necessitava uma esposa. Necessitava um herdeiro. Já tinha
Hannah; nos últimos dias ficara demonstrado repetidas vezes e de maneira
assombrosa que funcionavam bem na cama. Engendrariam um herdeiro, o
esperado herdeiro, dentro de muito pouco tempo.
Se deteve ante a porta aberta da despensa. A pequena peça se usava
para guardar a baixela, os uniformes dos criados, os guardanapos, cadeira de
reposição e algo que os criados pudessem necessitar.
Uma parede estava cheia de prateleiras, contra a outra se achava uma
mesa. Se ofendia muito a Hannah, ela nunca voltaria a aceitá-lo em seu leito,
pensou depois de se expor várias opções, nenhuma delas atraente.
Podia se divorciar dela e se casar com outra.
Podia fazer que todo o peso da lei recaísse sobre ela e obrigá-la a retornar
com ele.
Ou podia cortejá-la.
Cortejar Hannah teria sido perder tempo. Já era dele. Mas as outras duas
opções o repugnavam, e sabia, sem nenhum pingo de dúvidas, que nunca
encontraria outra mulher que fizesse honra a seu leito da mesma maneira que
Hannah. Quando ele e Hannah faziam amor se consumiam de paixão e de
prazer. Precisava possuir Hannah, precisava possuir sua vontade.
Para possuí-la e a sua vontade, podia, claro está, utilizar o método lógico.
Quando tivesse despachado ao velhaco que tentara matá-la, a buscaria em
Londres ou Surrey ou.
—Céus, oxalá não tivesse que persegui-la além da Inglaterra! - e lhe
explicaria que a rechaçara por seu próprio bem.
Sem dúvida Hannah lhe fecharia a porta na cara, ou preferivelmente nos
dedos.
Hannah se sentava em um tamborete, de costas para ele, olhando o
aparador. Dougald se apoiou em um canto. A prataria cobria a exígua
superfície do aparador em uma fila resplandecente, e enquanto ele a
observava, ela ia ordenando as colheres, as empilhava e as colocava junto ao
outro montão de garfos que já tinha disposto cuidadosamente em um extremo.
Umas poucas mechas de cabelo, que lhe tinham soltado do coque, roçavam
sua nuca no preciso lugar onde ele ansiava acariciar. Dougald a penetrava com
um olhar de ardente intensidade.
Mas agora, para se desembaraçar dela, sabia muito bem o que dizer. Ao
fim e ao cabo, na diatribe que lhe arrojara em seu quarto se esqueceu de dizer
uma coisa muito importante e insultante.
Com uma mão abriu a porta de um empurrão tão forte que golpeou contra
a parede.

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Hannah não se sobressaltou, simplesmente ficou quieta.


—Suponho que faz isto por suas míseras economias - disse Dougald em
um tom depreciativo e exasperante.
Hannah endireitou os ombros. Se voltou devagar para ele. Usava um
simples vestido de lã marrom e, como todo acessório, sustentava uma
deliciosa faca de carne de prata na mão.
—Lorde Raeburn - repôs ela, - do que está falando?
—De você. - Entrou no quarto. - Ainda está aqui. Disso é do que estou
falando.
—E isso o surpreende? - Hannah se voltou no tamborete até que ficou
completamente de frente a ele e, fazendo girar a faca, apoiou
despreocupadamente os cotovelos outra vez no aparador.
—Mas por que, meu senhor? Quando fiz o que você me disse?
Entrara ali com a firme determinação de representar o papel que tão bem
começara em seu dormitório e evitar assim que a vida de Hannah estivesse
ameaçada de morte.
Mas ela estava ali sentada com tanta insolência como um baderneiro de
ruas, indiferente a sua presença, a sua autoridade, a seu sacrifício.
—Desta vez vai fazer o que te digo. - Entrou e fechou a porta.
Hannah sorriu, se é que a aquilo podia chamar um sorriso.
—Mas, Dougald, sou sua esposa. Voltei com você depois de te abandonar
durante tantos anos. Certamente se alegrará que meu coração tenha
processado sua mensagem e se negue a ir.
Maldição! Havia dito as palavras equivocadas. Aquilo era o que acontecia
ter se permitido experimentar uma emoção desordenada.
E o que era ainda pior, sentiu de novo como lhe remontava essa emoção
no ventre e no coração.
—Quero que vá daqui.
—Me deixe provar minhas argúcias femininas com você. - Pestanejou com
paquera e repôs em uma voz melodiosa: - Querido, deixe ficar aqui com você
para sempre.
O exagero e o contínuo revoo da faca em sua mão danificaram a cena.
Dougald deu um passo para ela.
—Hannah, se tiver que enviar à senhora Trenchard e a alguns criados a
seu quarto para que lhe façam as malas, vai ser muito humilhante para você.
—E você vai passar muito mal para explicar sua atitude às tias, - se
levantou do tamborete. - Terá que admitir que suas lágrimas o farão sentir
muito incômodo. Tudo bem? Te parece suficiente manipulação?
—Já se acabou a época em que podia me manipular.
Não era certo, mas era muito melhor que ela não soubesse.
—As tias me necessitam.
—Têm à senhora Trenchard.

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—Com o devido respeito à senhora Trenchard, ela já tem suficientes


obrigações. - Avançou capengante para Dougald. - Sem mim, as tias não têm
nenhuma possibilidade de acabar a tapeçaria a tempo.
E sua majestade espera me encontrar aqui. Ao fim e ao cabo, fui eu quem
lhe enviou o convite.
Dougald sentiu vontade de agarrar Hannah pelos ombros e sacudi-la até
tirar essa insolência do seu corpo.
—Sua majestade mal notará sua ausência. A obsequiaremos com uma
formidável recepção a que assistirá toda a região.
—Aí está! - Apoiou a mão livre na estante e o olhou fixamente. - Deixa de
fingir, Dougald. Sei o que trata de fazer. Quer me jogar para monopolizar a
atenção da rainha.
A acusação o surpreendeu tanto que nem sequer teve que pensar em algo
insultante.
—Não seja ridícula, não necessito o patronato da rainha para acrescentar
meu prestígio.
—Então, de que se trata? Está me jogando daqui por algum motivo.
Mal pôde conter uma exclamação. Como sabia? O que era que ela sabia?
—Já expliquei o motivo. Terminei com você.
—Porque encontrou a minha substituta?
O que balbuciava?
—Sua substituta?
—A mulher com quem quer se casar.
—Eu já estou casado.
E confundido.
—Isso não representa nenhum obstáculo para um estrategista como você.
Charles procurou para você? Uma bonita jovem que saiba qual é seu lugar,
não? - Hannah moveu o braço em um gesto exageradamente desdenhoso.
—Esse é o plano, não é? Se libera de mim, consegue o divórcio e se casa
com sua pequena velhaca.
—Ao contrário do que você parece acreditar, não é fácil obter o divórcio, e
não é barato.
Dougald percebeu que aquele não era o tema que precisava debater com
sua esposa, a que estava tentando salvar e a que planejava, à larga, conservar.
—Charles o aconselhou que se liberasse de mim? Te disse o que precisava
dizer?
—Por que ia necessitar do Charles para fazer isso? - se concentrou em feri-
la outra vez, em afastá-la do castelo Raeburn. - Você não é mais que uma
simples mulher.
Seu desprezo não pareceu afetar a Hannah.
—Então está trocando a simples mulher que tem por uma panaca a quem
possa dominar.

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

—Esta conversação é uma estupidez - soltou. - Não vou voltar a casar.


—Então é o outro. - Hannah afastou o olhar, seus lábios tremiam. - A
vingança final, a maior de todas, a oportunidade de esmagar a Hannah como
um verme, para que nunca mais volte a levantar a cabeça.
Estavam a poucos centímetros e o ar que mediava entre eles se podia
cortar do ardor e da hostilidade.
—Perdeu o juízo.
—Meus avós assistirão à recepção e você não vai impedir que conheça
minha família.
Se esqueceu de seus avós. Sabia que ansiava e temia de uma vez que
chegasse o momento de se encontrar com sua família. Eles eram a pedra
angular de seu plano para manter Hannah atada a esse lugar e, em um breve
momento de clarividência, se perguntou se teria se esquecido dos Burroughs
de propósito.
Ao fim e ao cabo, odiava tanto pensar que ela podia pertencer a alguém
mais que a ele!
—É mais cruel do que nunca imaginei - disse Hannah.
—Então vá embora.
—Não penso ir.
Dougald deu outro passo. A distância entre eles era cada vez menor.
—Está pondo a prova minha paciência.
Hannah riu de maneira cáustica.
—Bobagem! Você não tem sentimentos; portanto, não tem paciência.
—Sim tenho sentimentos - repôs de maneira rotineira.
—Não. Um homem que seduz uma mulher para utilizá-la e humilhá-la não
tem sentimentos.
Hannah baixou a mão que tinha a faca e logo a segurou como arma de
ataque.
Dougald olhou a lâmina.
—Onde aprendeu a segurar assim uma faca?
—Algumas das garotas às que ensinei na Distinta Academia de Instrutoras
tinham habilidades que pensei que era melhor não questionar.
—Se aproximou dele coxeando, tanto que seus seios quase roçavam seu
peito e se apertou contra suas costelas. - Espero que isto não o faça se sentir
incômodo.
—Não. - O deixava furioso e a pegou pelo pulso com os dedos antes que
ela pudesse lhe atacar. - Suas estudantes não a ensinaram muito bem, se não
a ensinariam a não ameaçar com uma faca a menos que esteja disposta a usá-
la.
—Já me conhece. - Voltou o pulso e no tom mais sarcástico que jamais a
ouvira empregar, acrescentou: - Sou pouco perseverante.
—Não só é pouco perseverante - disse zombador. - Também é uma

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queixosa. Se queixa até que um homem não ouça nem seus próprios
pensamentos.
Hannah tentou lhe atacar com a faca, uma tentativa vã, mas enquanto
estava distraído com sua tentativa, conseguiu lhe dar um bom murro no
estômago que o deixou sem fôlego.
Parecia ter aprendido outras técnicas de defesa das garotas da academia.
Com prática, poderia resultar letal. Por sorte, não tinha prática e Dougald
queria submetê-la do modo mais rápido possível.
Tirou a faca da mão dela e a lançou contra o aparador. Ficou pregada,
tremendo, na madeira.
—Vamos. Agora poderemos falar como pessoas razoáveis.
E a abraçou e a beijou.
Hannah não queria que a beijasse. Tentou afastar a cabeça, mas Dougald
a aproximou, a reclinou contra seu braço e a beijou forçadamente enquanto
saboreava a sensação do corpo a corpo.
Se assombrou um pouco de si mesmo. Pensava que, depois de anos de
solidão e isolamento, aprendera disciplina. Considerava a si mesmo um homem
implacável, intrigante, carente de paixão, carinho e humanidade.
Conforme parecia estava equivocado. Era apaixonado, o bastante ardoroso
para fundir o aço e muito humano.
Então o mordeu, justo no lábio superior.
Dougald se tornou um pouco atrás e contemplou à mulher que ainda
abraçava.
Lhe devolveu o olhar, com o peito agitado do esforço por recuperar o
fôlego. Seus lábios, avermelhados e acariciados pelos de Dougald,
permaneciam firmes, e tinha o queixo levantado. Os olhos eram uma mescla de
cor castanha e paixões turbulentas. Teria jurado que Hannah o olhava, o
julgava e tomava uma decisão.
—Dougald, me solte neste mesmo instante ou não vou poder te despir -
ordenou ela no tom mais inflexível da instrutora mais severa do mundo.
Em um abrasador e súbito vislumbre da verdade, Dougald compreendeu
que a amava. Todo esse tempo, todos aqueles anos, disse a si mesmo que
urdia os planos e as intrigas para dar a Hannah seu castigo por ter lhe deixado
em ridículo, quando na realidade esteve apaixonado por ela todo o tempo. Não
queria submetê-la. Queria fazê-la sua.
Mas, por que se comportava daquela maneira? Por que não tirava os olhos
dele?
Que mais lhe dava! Se ia lhe despir e seduzir, embora só fosse para
distraí-lo e poder cravar uma faca no seu coração, bom, havia piores maneiras
de morrer.
Tirou a jaqueta, logo pegou uma das cadeiras da mesa que estavam ali
guardadas e a trancou sob o trinco da porta. Voltou com ela e ficou quieto para

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permitir que desabotoasse seu colete.


Dougald a ajudou e se dispunha a tirar a gravata quando o deteve com o
simples e diligente gesto de pôr as mãos em cima das suas.
—Eu quero te despir - disse Hannah.
Sua esposa acabava de pronunciar as mais belas palavras de seu idioma:
"Eu quero te despir." Estava lhe dando outra oportunidade? Estava ela
apaixonada por ele como ele estava por ela?
Não sabia, mas de algum modo lhe parecia impossível amá-la tanto que
cada fôlego, cada pulsar de seu coração, cada pensamento estivesse dedicado
a Hannah e não lhe devolvesse o olhar. Ele a amava. Ela o desejava.
Portanto, ela também o amava.
Desatou o complicado laço e lhe desabotoou o colarinho engomado.
—Há algo tão tentador quando vislumbra pela primeira vez uma
indecorosa pele masculina. É tão suave aqui - acariciou a curva que se formava
em cima de seu esterno - e dentro de pouco vai estar deliciosamente tensa.
Hannah colocou a mão pela camisa e a enterrou entre o pelo de seu peito.
No que Dougald andaria pensando para acreditar que podia jogar uma
mulher como aquela? Embora fosse por seu próprio bem.
Ela o acariciou com a palma da mão, com as pontas dos dedos,
procurando os lugares sensíveis que ele conhecia e alguns outros que ele ainda
não conhecia.
Dougald desabotoou os botões da calça.
Hannah tirou sua camisa pela cabeça e logo o beijou ao longo da clavícula
e mordiscou um mamilo.
Ele a agarrou pela cintura.
—Mulher, eu deveria?
Lhe deu as costas.
—Me desabotoar.
Assim o fez e com completa eficiência, fazendo ornamento do refrão que
diz que se terá que fazer algo, é melhor fazê-lo bem.
—Este é o vestido mais feio que tem - disse ele tratando de cercar uma
conversação.
—Me alegro que o odeie. - O vestido caiu a seus pés. - O escolhi
precisamente por isso.
Ainda estavam liberando uma encarniçada batalha e aquele aviso
reavivou seu desassossego. Ele era quem começara; ele a beijara, mas o
seguira prontamente e exigira suas roupas.
De modo que ela não ia mudar de opinião, ou sim? Não ia desaparecer e
deixá-lo só com seu desejo, e justificar suas ações dizendo que ele merecia...
ou sim? Precisava desatar seu espartilho e desabotoar suas anáguas, e isso
levaria algum tempo. Tempo que ela aproveitaria para pensar. Para recordar o
que fizera a ela desde sua chegada. Para recordar o que disse em seu quarto.

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E Dougald não queria que aquilo ocorresse.


De repente viu um montão de guardanapos de linho branco pregados e
empilhados em uma estante, antigos e ordenados, e então lhe ocorreu uma
ideia. Sem parar para pensar no acertado daquele ato, agarrou um guardanapo
por uma das pontas.
Hannah tentou dar meia volta.
—O que está fazendo?
A agarrou pelos ombros e a voltou a pôr olhando para frente, logo com um
giro de pulso converteu o guardanapo em uma longa fita e lhe tampou os olhos
com ela.
—Dougald! - exclamou subindo as mãos para tirar a faixa dos olhos.
Mas ele já estava preparado para isso. Com uma mão a afastou e com a
outra segurou os extremos do guardanapo.
—Você gostará.
Na realidade não tinha nem ideia de se gostaria ou não. Só sabia que se
não podia ver não poderia ir, e precisava tê-la nua em seus braços.
—Deve estar louco. - Mas ficou quieta enquanto ele atava o guardanapo.
—Sim, eu também começo a acreditar nisso - reconheceu. Que outra
explicação achava a suas ações?
Com mãos cuidadosas Hannah explorou a atadura que lhe tampava os
olhos.
—Não vejo nada.
Dougald se deu conta que ela cooperava com o estranho e prazenteiro
plano.
—Mas todos os outros sentidos funcionam bem, não? - Deslizou um dedo
pelo pescoço dela e desceu pelas costas.
Hannah estremeceu.
—Sim!
Em uma corrida contra o senso comum - o senso comum de Hannah, -
desabotoou o espartilho e as anáguas. Enquanto o fazia, uma alça da camiseta
escorregou por seu ombro, e ele percebeu que ela tinha colaborado;
desabotoou a camiseta, e ele aproveitou para se inclinar para frente e olhar.
Desde aquele ângulo um seio parecia diferente de um seio olhado de frente, e
o contraste fez que lhe desse vontades de fazer experimentos, de olhar de um
lado, tocá-la de cima, lambê-la!
Inclusive tendo em conta o cuidado que teve em não a machucar no pé
ferido, tirou toda a roupa dela em um tempo recorde.
Mas onde ia pô-la? A mesa era dura e estava abarrotada de coisas, o
aparador era alto e estava cheio de prataria, o chão? não. No canto. Em uma
das cadeiras da mesa com sua madeira brilhante, o respaldo reto e os braços
ligeiramente curvados.
Hannah se segurou nele enquanto a conduzia até a cadeira, velando para

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que pisasse com cuidado com o pé ferido.


—Sente-se aqui.
Hannah mediu a seu redor e logo lentamente se sentou na cadeira
enquanto ele a olhava. Viu o tremor que lhe produziu o fato de posar as
nádegas contra o frio assento de madeira. Com crescente celeridade, se livrou
da roupa que ainda tinha em cima e observou como Hannah explorava
sensualmente com as pontas dos dedos a superfície polida. Adorava tudo nela,
o fascinava.
Queria-a tanto que felizmente teria passado o resto de seus dias naquela
despensa, lhe dando prazer. A amava tanto que queria gritar seus louvores de
um lado a outro dos corredores do castelo Raeburn.
E não podia deixar que ficasse, nem lhe dizer nada, porque alguém queria
matá-la.

Capítulo 23

Privada do sentido da vista, o mundo de Hannah se reduziu, se converteu


em um lugar limitado ao tato, ao som e ao aroma. A cadeira onde Dougald a
sentara era o orgulho de qualquer artesão, com arabescos e balaústres lisos ao
tato e perfumados com cera de abelha. Sua nudez adorava a madeira, lustrosa,
brilhante e sedosa que sustentava seus membros. O chão frio sob seus pés
aliviava a dor de seu tornozelo. Descobriu que a cadeira descansava em um
canto; Hannah investigou com as mãos, apalpando as paredes que se
estendiam em cada direção. Dougald estava ali perto de pé; ouvia o leve ofego
de sua respiração e o roce de sua roupa. A olhava; podia notar o calor de seu
olhar e sentia o prazer que lhe produzia vê-la tão indefesa.
E não é que fosse indefesa. Igual a seu casamento, sua submissão era
somente uma ilusão. Podia tirar a faixa quando quisesse. Podia se levantar, se
vestir e deixá-lo, se quisesse.
Mas não queria. Isso era uma despedida. Todas aquelas vezes disseram:
"Nunca mais", mas voltavam a se encontrar no desejo furtivo. Desta vez
Hannah dizia a sério. Adorava compartilhar o prazer com Dougald.
Seu sabor, seu aroma, a urgência de seu corpo se movendo em cima e
dentro dela. Se gravou nela e nunca desejaria a outro homem.
Mas sua crueldade não tinha limite, e sua avidez de vingança corroia sua
alma. E embora agora ela estivesse desejosa de se entregar de todo coração a
seu marido, Dougald, depois do último adeus, poria fim implacavelmente à
história de amor com o homem que senhoreava Raeburn. Durante o resto de
sua vida tentaria recordar a paixão e esquecer a dor.
Consciente que Dougald devia estar quase nu, se ajeitou no assento.

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Cabeça alta, costas reta, mãos nos braços da cadeira, joelhos e pés juntos.
Se a desejava, teria que seduzi-la.
—Querida, deixa que a sirva.
Dougald se ajoelhou ante ela, como um suplicante mortal ante sua deusa.
Apertava o ventre contra os joelhos de Hannah, e lhe acariciava as coxas com
as mãos. Queria abrir as pernas dela. Insistia sutilmente, utilizando o corpo
para guiá-la.
Mas ela não queria que ele a guiasse e se reclinou para trás na cadeira,
deixando que os balaústres lhe esfriassem as costas. Levantou um braço,
voltou a cabeça para a parede e colocou a mão sob o queixo.
—Me agrade - ordenou.
Dougald riu com uma risada profunda e silenciosa.
—Como você mandar, querida.
Pegou sua mão livre, a levou aos lábios e lhe beijou cada dedo até chegar
ao mindinho. O meteu na boca até o nódulo, o chupou de um modo que
sugeria... bom, sugeria um movimento que a enchia de prazer.
Logo mordiscou a ponta. Hannah deu um salto e tentou se retirar.
—Não. Sente-se, Fique quieta. Se quiser que a agrade deve ficar quieta -
insistiu Dougald.
Assim se sentou enquanto ele beijava a palma da mão e guiava o beijo
para cima pela face interna do pulso, subia pelo cotovelo e passava por cada
sarda e curvas sensíveis. Dougald a agarrou pelos ombros.
Na escuridão, a carícia e a textura de suas pontas calosas a encantavam.
Quando se deu conta que ao voltar a cabeça tinha posto a descoberto o
pescoço para que ele o explorasse, começou a se maravilhar da sabedoria de
seu decreto.
Dougald adorava beijar sua nuca. Normalmente, quando ele deslizava os
lábios sobre a tenra pele da nuca, os dedos dos pés dela se encolhiam, a
respiração se acelerava e tentava afastá-lo.
Agora, graças às ordens explícitas de Hannah, ele tinha carta branca. Mas
deve ter notado sua apreensão porque lhe sussurrou ao ouvido:
—Confia em mim, meu coração.
Com uma mão sobre o ombro e outra na cabeça, beijou-lhe tão levemente
que mal sabia se estava ali. Mal o notou, salvo por seu aroma, essa
combinação de especiarias e couro que lhe resultava tão íntima, pelo modo em
que todo o pelo de seu corpo se arrepiava para ele, pela tensão que sentia no
ventre, pela exaltação dos mamilos.
Ela queria se voltar para ele, segurar sua cabeça com as mãos e abrir a
boca junto à dele. Queria fazer com ele o que ele fazia a ela, e muito mais.
Companheiros. Eram companheiros por toda a vida e aquela era sua
última vez.
A tristeza a invadiu, mas ele não podia ver seus olhos. Não sabia. Assim

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era melhor. Não queria que percebesse do muito que ia sentir falta dele. Hoje
ocultaria sua pena. Algum dia talvez a dor da perda desaparecesse.
Dougald jogou com uma mecha caída de seu cabelo.
—Quando vejo um só cacho de cabelo solto, me dá vontade de te soltar o
cabelo, espalhar pelo travesseiro, enterrar o rosto em seu cabelo e respirar seu
aroma. - Os dedos de Dougald vagavam por cima das maçãs do rosto de
Hannah. Acariciaram seus lábios. Seguiram a curva do queixo, desceram para o
peito e logo se separaram para segurar os seios. - Eu adoro. Quando vejo esta
curva oculta sob seu vestido, tenho vontade de ir para você, te abrir o sutiã e
contemplar de novo o mistério de seu corpo.
Aquele elogio a fez sorrir apesar de sua pena. Suas carícias a faziam
esquecer tudo salvo o desejo.
—Não há mistério algum. É o corpo de uma mulher - disse ela com voz
rouca carregada de emoção.
—Se equivoca. É seu corpo. É o mistério que eu tento desentranhar. E
quando o obtenho, sempre penso, agora a entendo. Será minha para sempre.
Logo você se levanta e se veste e já não a conheço absolutamente.
Ardente, vibrante, ansiosa, sua voz tecia um feitiço que a segurava com
tanta certeza como a escuridão. Ao lhe escutar qualquer um teria dito que a
adorava, e talvez fosse assim.
Talvez aquela involuntária adoração aguilhoasse seu orgulho e fizesse da
vingança uma necessidade para aquele homem imperioso.
—Nunca me conhecerá - sussurrou Hannah.
—Não. - Algo roçou seu mamilo: uma respiração e uns lábios suaves. -
Nunca a conhecerei de todo. Retornarei uma e outra vez até que o consiga.
—Não. - Sacudiu a cabeça e tentou se colocar frente a ele.
—Ainda não.
Lhe voltou a cara de novo e pôs uma mão sob o queixo e outra sobre o
encosto da cadeira.
Logo... nada. Ainda estava ali, mas sem se mover, mal respirando.
Estava olhando-a. Ela sabia e sem afetação soube que a visão o comovia.
—Deveria ordenar que a pintassem assim - disse Dougald.
—Não.
—Tensa, régia, gloriosa.
Hannah levantou as mãos para a atadura.
—Não.
Ele as agarrou.
—Espera. - Beijou os nódulos, logo cada palma. - Não fiz mais que
começar.
Com renovado ardor beijou um mamilo, logo com lenta fruição o meteu na
boca. O saboreou como se quisesse degustá-lo. As mãos se hospedaram nos
quadris de Hannah e acariciou o ventre com os polegares.

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De novo a assaltou o prazer, um pouco mais intenso agora, a enchendo de


calor na entreperna. Desejou que as mãos de Dougald se movessem com uma
intenção explícita por sua pele, que a boca lhe beijasse com mais desejo que o
de prová-la, que seu corpo se equilibrasse contra o dela. Queria que se
movesse sem descanso. Logo o faria. Logo tudo aquilo seria muito... um leve
gemido lhe escapou.
Por agora, deixaria crescer sua ânsia.
Dougald a beijou no ventre e em um momento de loucura permitiu que lhe
separasse as pernas. Os lábios se deslizaram para baixo. Hannah sabia o que
pretendia. Ela permitiria.
Então acariciou com os dedos o pelo mais encaracolado, a abriu e posou a
boca justo no lugar preciso. Isso apagou toda melancolia, dispersou seus
pensamentos e a coerência dos mesmos.
Conquistou o êxtase entre calafrios, experimentando um prazer tão
irresistível que quase era agonia.
A língua de Dougald se retorcia contra ela, se afundava dentro dela.
Hannah gemeu em meio do êxtase. Os lábios de Dougald a bebiam. Ela jogou
para trás a cabeça, levantou um pé, se apoiou no assento da cadeira.
Incapaz de se deter, arqueou as costas.
—Dougald. - Procurou apoio em sua cabeça. Agarrou punhados de seus
cabelos, deslizou os dedos por sua cabeleira. O aroma de sua excitação atuava
como um afrodisíaco.
—Dougald.
Ele deslizou as mãos por debaixo dela e a levantou ainda mais. Sem
trégua, seguiu o movimento de seus quadris, sem lhe dar descanso, sem mais
exigência que a rendição.
Por fim, com um grito, lhe deu o que pedia. Triunfou o instinto. Hannah mal
era consciente que suas mãos se crispavam nos braços da cadeira, apoiava as
costas nos balaústres e separava as coxas.
Só era consciente do prazer puro do êxtase, de um clímax sensual
dedicado a ela e só a ela.
Acabou, por fim acabou, e quando começava a desabar, Dougald a
invadiu. Enquanto suas nádegas descansavam na borda do assento, ele a
penetrou com urgência, a encheu com sua necessidade e voltou a conduzi-la
até o êxtase. Imediatamente o corpo de Hannah se sacudiu detento de
espasmos em seus braços e os músculos de seu interior o agarraram, exigindo
que ele desse tudo.
—Me abrace - ameaçou com voz rasgada.
Hannah levantou os braços e rodeou suas costas com eles. As pernas se
agarraram ao redor de suas coxas. Dougald se agarrou à cadeira, e seus
embates eram tão enérgicos que a cadeira se balançava e golpeava contra a
parede. Não lhe importava; escutar o ritmo de sua dissipação incrementava

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seu vigor. A atadura de Hannah caiu, o nó se desatou devido ao ímpeto.


Seus olhares se cruzaram. Hannah viu o rosto de seu amado, os formosos
olhos verdes salpicados de ouro, o nariz, afilado e curto, as maçãs do rosto
salientes, a mandíbula obstinada e o longo e lustroso cabelo negro com
mechas brancas. E percebeu que ela estava chorando. Não sabia por que.
Muito prazer, muita paz. Muito e nunca mais.
—Querida - disse ele com convicção, sem afastar o olhar. Ele estava
reclamando tudo. - Querida.
Ela era dele, sua para sempre.
Ele era dela, seu para sempre.
Naquele momento chegaram ao clímax juntos, fortemente abraçados,
dando tudo um ao outro. Hannah recebeu com agrado o manancial de sua
semente, a calidez, a umidade em seu interior. Por fim o tinha.
Por fim lhe dera a possibilidade de ter um filho dele.
—Querida - repetiu. Pouco a pouco foi desabando em cima dela. A
acariciou na nuca, enxaguou as lágrimas de suas faces. - Querida - voltou a
repetir em voz mais baixa, mas não menos vibrante.
Se fundiram em um, sem desejos de se separar, mas por fim, ele saiu de
seu corpo e se ajoelhou ante ela.
—Hannah, tinha esquecido.
Colheu com delicadeza o pé ferido e lhe deu um tenro beijo na curva do
mindinho.
—Pobre pé. - Dougald lhe acariciou a parte torcida com dedos cuidadosos.
- Tão arroxeado! - E a surpreendeu ao posar a palma da mão plana contra seu
peito. - Pobre Hannah. Tão valente!
Apertou os dentes para conter o repentino e urgente desejo de soluçar
forte. Tanto significava para ela sua admiração?
Não, mas a debilidade que a dor produzia lhe dava vontade de soluçar.
Tragou saliva com força.
—Tinha me esquecido de minha entorse, assim suponho que não deve ser
tão grave.
Dougald baixou a vista para o pé que segurava com carinho.
Estava pensando. OH, Deus, ela quase podia ouvir seus pensamentos! Ela
quase sabia o que ia dizer e nada podia evitar que se preparasse para a
profunda pena que se aproximava.
Ficando direito, Dougald a examinou, nua, exausta, depois de ter amado
até não poder mais.
—Depositarei o dinheiro em sua conta se for.
As lágrimas de Hannah secaram. Estava em condições de falar e o fez em
um tom firme.
—Não tem por que se preocupar. Quando a rainha Vitória se for, o
abandonarei outra vez. E nesta ocasião, quando for, será para não retornar

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jamais.

Capítulo 24

Dougald se sentou ante seu escritório, com as mãos pregadas, e prestou


atenção às vozes de quem se aproximavam através da capela.
—Não pode me obrigar a fazer isto! Como se atreve a me pôr as mãos em
cima, francês asqueroso? Vou fazer que lhe deem umas chicotadas!
Dougald reconheceu uma nota aguda de pânico na voz de Seaton. Charles
fazia bem seu trabalho, que consistia em colocar o medo no corpo de Seaton.
Agora Charles faria seu papel.
—Sir Onslow, sinto muito. Não tenho escolha. Meu senhor me ordenou que
o trouxesse até aqui e quando falho, ele... - Charles deixou que sua voz se
convertesse em um fio até se extinguir.
—Meu senhor é um amo duro. Sir Onslow. Não me atrevo a lhe
desobedecer.
—Já quase amanheceu!
—Me ordenou que o levasse ante sua presença no mesmo instante em que
retornasse de Conniff Manor. - Charles abriu com o pé a porta do escritório e
com um gesto liberou Seaton e de uma vez o empurrou dentro da sala.
—Senhor, aqui está sir Onslow.
Dougald não se levantou, nem sequer se moveu. Sabia muito bem o
aspecto que tinha. A última escuridão da noite se apropriou do escritório e tudo
estava sumido nela, exceto ao redor das velas que colocara cenograficamente
em torno dele. As chamas iluminavam seu cabelo escuro e prateado, a jaqueta
negra, a gravata negra, a expressão severa e os olhos brilhantes.
Se Seaton recordasse a reputação de assassino que tinha Dougald, isso
estaria bem. Se Seaton acreditasse que estava enfrentando ao próprio diabo,
melhor que melhor.
Seaton tentara matar Hannah ele teria que confessar. Pagaria muito caro.
—Sente-se.
Com um gesto lento que arrancou brilhos de luz nas pedras preciosas dos
anéis que adornavam seus dedos, Dougald lhe indicou uma cadeira de respaldo
reto situada no meio da sala.
Seaton vestia uma jaqueta escura de bom corte, um colete xadrez e umas
calças xadrezes combinando, botas lustradas e o alfinete de gravata de
diamantes que tanto se parecia com o de Dougald.
Só o cabelo desalinhado revelava os rigores da viagem de carruagem;
suas mechas, normalmente cuidadosamente penteadas, estavam
desordenadas pelo vento.

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Aquela besta medíocre; não era de estranhar que tivesse passado


despercebido durante tanto tempo e tantos assassinatos.
Agora contemplava a impressionante cena posta por Dougald.
—Toda esta exibição de força é para me impressionar? - perguntou com
lábios trêmulos e o nariz bem alto.
Dougald não sabia se admirava sua audácia ou o condenava por sua
estupidez. Ao final daquela reunião ele teria certeza.
—Charles, ajuda sir Onslow a sentar.
—Já me sento eu sozinho! - Seaton aprendera a respeitar as chaves de
luta de Charles.
Muito tarde. Charles lhe retorceu o braço as costas e o empurrou para a
cadeira.
Seaton caminhou nas pontas dos pés para aliviar a pressão.
—Ai, ai, ai - gemia enquanto caminhava. Logo, assim que Charles o
liberou, alisou os punhos e acrescentou: - Não era necessário.
—Peço desculpas, senhor. - Charles se inclinou e esfregou as mãos, uma e
outra vez. - Como o rumor do assassinato se difundiu em qualquer parte, faço o
que me ordena meu amo.
Seaton ficou direito de repente.
—De modo que esse é o motivo de toda esta cena? Que eu tenha ido
apregoando o conto de suas tendências maritais assassinas por aí?
Porque o asseguro que posso ter acrescentado uns quantos detalhes, mas
a maioria das pessoas já tinha ouvido a história.
—Claro que não, Seaton. - Uma vez mais, Dougald ficou sentado,
absolutamente quieto. - Não é o bastante importante para mim para que me
afete o que vai dizendo por aí.
—Bom, espero que não! - Ao perceber o insulto muito tarde, Seaton
ruborizou. - Então, o que estou fazendo aqui?
—São suas outras atividades as que me chamaram a atenção.
—Ou... outras atividades?
Dougald percebeu do perto que estava de lançar mão da violência quando
teve que se esforçar por permanecer na cadeira.
Queria sacudir Seaton até que perdesse aquela insolente atitude, e uns
quantos dentes, e confessasse tudo. Quando confessasse deixaria de lhe saltar
os dentes a...
Respirou devagar para se acalmar. Não se tratava de uma vingança. Era
somente prevenção e tratava de manter Hannah a salvo e afastar qualquer
perigo que ameaçasse sua vida. Porque a amava.
Embora não pudesse tê-la, a amava.
—Seaton, não pode continuar alegremente com suas atividades e passar
sempre despercebido.
Seaton se remexeu intranquilo na cadeira, logo levantou outra vez seu

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nariz arrebitado.
—Não... não sei do que me fala.
Dougald intercambiou um olhar com Charles. O gesto de Seaton fora tão
eloquente como uma confissão de culpabilidade, mas Dougald queria uma
verdadeira confissão, queria os detalhes, queria capturar aos conspiradores e
ouvir o que Seaton planejara. Como Hannah insistira em ficar até depois da
visita da rainha, Dougald precisava saber tudo.
—É muito tarde. Estou cansado. Charles diz que me ponho muito
desagradável quando estou cansado. Espero que não me entretenha aqui
muito tempo ou me esgotará a paciência - disse Dougald, depois de uma
prolongada e silenciosa pausa durante a qual Dougald observou Seaton se
mover intranquilo um par de vezes mais.
—É melhor que confesse ante o amo antes que se enfureça - disse Charles
se inclinando para Seaton em tom obsequioso.
O olhar de Seaton voava de um a outro interrogador, um olhar que tinha
um pouco de incerteza.
—É isso o que o fez matar a sua esposa? Um arrebatamento de ciúmes?
—Não, senhor. Não estava ciumento absolutamente - repôs Charles
esfregando outra vez as mãos.
Dougald mal conservava a circunspeção. Charles estava desfrutando
muito com tudo aquilo. Dougald também teria desfrutado se a situação não
fosse tão séria.
—Charles, ultrapassou seus limites.
Charles retrocedeu para a parede mais afastada.
Depois de lhe dirigir um olhar longo e severo, Dougald voltou a centrar sua
atenção em Seaton.
—Bom, quero sua confissão e a quero já. Que estupidez esteve tramando?
Seaton olhou para Charles e logo para Dougald.
—Nada. Eu não estive...?
Dougald começou a ficar em pé.
Charles soltou uma exclamação.
Seaton mudou de tom e de intenções.
—Quer dizer... eu não acreditei que você soubesse?
Dougald voltou a se sentar.
—Confessa.
—Devolverei tudo - disse Seaton endireitando as costas aumentada pelas
ombreiras.
Não foi necessário que Dougald fingisse confusão.
—Devolver tudo?
Seaton segurou a própria testa.
—Foi esse colar que me deu de presente, não? Que peguei da senhora
Grizzle?

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Christina Dodd
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Sem compreender ainda, Dougald olhou fixamente para Seaton, seu


distante primo, o homem que estava confessando o crime equivocado.
Charles se encarregou do interrogatório.
—Você pegou um colar da senhora Grizzle?
Seaton olhou a seu redor e caiu na conta que fizera hipóteses incorretas.
Voltou a tentar.
—Não se trata do colar? Então foram os vasos. Os apreciados vasos Ming
de lady McCarn? Eram muito grandes, mas ante semelhante desafio não sei
como podiam esperar que não me sentisse tentado.
Dougald se recuperou o suficiente para articular as palavras e alinhavar
ideias.
—Pegou os valiosos vasos Ming de lady McCarn. Os roubou ?
—Não os roubei. Roubar é uma palavra muito feia. Eu colecionei os vasos.
Ficam preciosos em meu dormitório. - Era evidente que Seaton não sabia o que
fazer com a expressão atônita de Dougald e, em uma manobra de diversão
muito própria dele, jogou a culpa a ele.
—É sua culpa, lorde Raeburn, que eu precisasse decorar meu próprio
quarto. Não pode esperar que um homem delicioso resida nesse quarto tão
espantoso e não se incomodou em me fazer um quarto digno de mim.
—Me pareceu que primeiro devia arrumar as habitações comuns. -
Dougald percebeu que se estava desculpando ante um ladrão e deu um golpe
na mesa. - Redecorar seu quarto não explica o fato que roubou um colar.
Suponho que vendeu a jóia para conseguir dinheiro.
Seaton levou a mão ao peito.
—Sou um cavalheiro. Não vendo as coisas que coleciono!
Desconcertado, Dougald tentou esclarecer.
—Você fica com elas?
—Claro.
—O que faz com elas?
—As olho. - Quando Seaton comprovou que Dougald lhe permitiria seguir
vivendo, relaxou. Se reclinou para trás na cadeira e em tom de bate-papo
relatou:
—Tenho uma coleção muito extensa. Pode vir vê-la quando quiser.
Se Seaton queria distrair Dougald, estava fazendo um trabalho
desconcertante.
—Ainda tem tudo.
—Claro.
—Então aceito sua oferta. Devolverá tudo.
Seaton abriu uns olhos como pratos e se sentou muito rígido, com as mãos
crispadas.
—Não diz a sério? A quem?
—A seus proprietários.

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O pânico se apoderou de Seaton e transpareceu em sua voz.


—As pessoas não compreenderão. Pensarão mal de mim.
Charles usou seu tom mais tranquilizador.
—Um mestre como você será capaz de restituir os objetos para que seus
proprietários acreditem que simplesmente os tinham extraviado.
—Mas eu não os tenho.
—Pode fazê-lo você mesmo ou o farei eu por você.
Ante a ameaça nada sutil de Dougald, Seaton soluçou.
—As joias? As cerâmicas? Os quadros?
—Quadros?
Dougald imaginou Seaton desprendendo um enorme quadro da parede, o
ocultando sob seu casaco e saindo às escondidas.
—Eu disse quadros? - Seaton enxugou os olhos com um lenço de renda. -
Me referia a...
—Os quadros também. - Dougald não sabia se ria ou arremedava as
lágrimas de Seaton.
—Isto é um ultraje!
—Não poderia estar mais de acordo. - Obviamente os criados precisavam
conhecer aquela "inocente" peculiaridade de Seaton.
—Não tenho por que me submeter a tal indignidade.
—Terá que fazê-lo se quer continuar vivendo aqui. - Ao menos um dos
vizinhos de Dougald devia ter notado que as "perdas" guardavam relação com
as visitas de Seaton.
Seaton tirou as luvas do bolso e as golpeou contra sua mão.
—Semelhante crueldade e falta de refinamento provocaria outra mancha
em sua reputação.
—Se tenho sobrevivido aos rumores de assassinato, que você se esmerou
em difundir, acredito que poderei sobreviver à ignomínia de jogar de casa a
meu patife herdeiro.
—Dougald não podia imaginar que tipo de rumores se produziriam depois
da marcha de Seaton.
Seaton ficou em pé.
—Patife: que palavra mais espantosa! Muito bem. Farei o que deseja, mas
o que acontecer será sua responsabilidade!
Charles abriu a porta e Seaton saiu a grandes passos.
Enquanto Charles fechava a porta, Dougald apoiou a cabeça nas mãos.
Estava cansado e preocupado. Pela primeira vez em muitos anos não sabia o
que fazer.
—Charles, acredita que Seaton nos pôs uma atadura nos olhos?
—Voltarei a falar com os detetives - repôs Charles de modo enigmático.
Dougald levantou a cabeça e olhou a seu ajudante de câmara, exigindo
em silêncio uma resposta melhor.

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Charles consentiu em dar-lhe.


—Não, senhor. Suspeito que sir Onslow é somente isso do que você acaba
de acusá-lo: um trombadinha de pouca monta.
—Não temos nenhum outro suspeito.
—Deverá seguir velando por madame.
—Como sempre - proclamou Charles.
Outra suspeita menor assaltou Dougald.
—Suponho que o alfinete de gravata de diamante que Seaton usa e se
parece tanto ao meu, é o meu.
—Pensei que o tinha extraviado.
Dougald captou o olhar cínico e divertido de seu criado.
—De todos os modos, eu nunca gostei.

Capítulo 25

O tempo do prazer tinha acabado para ela. Hannah se sentava com ar


taciturno no sol vespertino da oficina das tias e costurava os retalhos da cara
do príncipe Alberto. Nunca mais voltaria a sentir o peso de um homem, a
pressão de seu peito contra o dela, os sons, os aromas, os roces, a
proximidade!
—Isto é o sobrecenho do príncipe Alberto, não o queixo! - A senhorita
Minnie arrebatou a malha das mãos de Hannah.
A senhorita Minnie estava muito carrancuda aquele dia.
Hannah mudou de cadeira e se sentou perto de tia Spring.
—Me enfia a agulha, querida? - pediu-lhe esta.
A primeira vez que Hannah abandonara Dougald, e com ele as relações
sexuais, se comportou firmemente porque, agora se dava conta, fora muito
torpe para perceber o que estava deixando para trás.
Agora sabia. O roce da barba matutina quando lhe lambia os seios. A
textura do pelo áspero nas mãos quando acariciava seu peito. Fios sedosos de
sua juba faziam cócegas em seu rosto quando ele a beijava.
E Dougald permitira que Charles cortasse seu cabelo!
Para ter um aspecto correto ante sua majestade, dissera Charles.
Para o pesar dela, pensou Hannah.
—Essa cor não, querida. - Tia Spring mostrou o fio de ouro. - Este outro. O
que tem na cabeça?
Hannah piscou.
—Não importa. - Tia Spring lhe deu um empurrãozinho. - Pedirei a uma das
donzelas que me enfie a agulha.
Hannah se dirigiu para os teares.

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Mas se Dougald fora feliz naqueles últimos quatro dias, Hannah vira,
maldita a graça!, poucas amostras disso. Pelo contrário parecia gasto, como se
tivesse pouca paz e até menos sono.
Isso era o que Hannah esperava; que fosse desgraçado! Esperava que
cada vez que a visse na mesa do café da manhã, cada vez que a ouvisse
chamar as tias, cada vez que pensasse nela, se sentisse culpado, aflito,
zangado... mas não podia mentir a si mesma. Na realidade, o que queria que
sentisse eram as torturas da carne. Esperava que a olhasse e o membro se
levantasse e se enchesse.
Deus sabia que Hannah se vestiu para incitar os ingovernáveis instintos de
Dougald. Cada noite ficava acordada até tarde, dando pontos nas suas
camisolas, baixando os decotes, entrando as cinturas, acrescentando um
babado de renda às anáguas ou as cintas-ligas. Cada dia se assegurava que ele
se fixasse no decote, no tornozelo, em seu sorriso. Dougald nunca saberia o
que sofria quando o via, e imaginava quão vazia sempre estaria sua carne,
pensava em como murcharia e se faria velha sozinha, sem o consolo de um
marido, de um amante, de Dougald.
Os pedais golpeavam a um ritmo infernal e as lançadeiras voavam
enquanto Isabel e tia Ethel teciam os últimos retalhos da tapeçaria da rainha.
Os ombros das anciãs se moviam, tinham os olhos injetados em sangue,
mas os lábios firmes demonstravam sua determinação. Em dois dias, justo
antes das doze, a rainha Vitória chegaria em um vagão acondicionado para a
realeza. Com ajuda das donzelas, que iam em sua busca e aproximavam algo
que as tias pudessem necessitar, e de Hannah, que organizava e lhes dava
uma mão, a tapeçaria estaria acabada e penduraria da parede do salão
grande, majestático e em todo seu esplendor.
Hannah estava satisfeita de ter completado seu encargo, e nos interlúdios
imaginava, com o mais fraco dos sorrisos, como podia atormentar ainda mais
Dougald. Precisava se apressar; faltava pouco tempo, contudo, para abandonar
o castelo Raeburn. Faltava pouco tempo para voltar a ver a rainha, para que
apresentassem aos Burroughs e lhes dissesse quem era ela.
Entrecerrou os olhos. Seria melhor que Dougald desse de boa vontade o
maço de cartas de amor como prova de seu parentesco ou se veria obrigada a
ficar até que o fizesse.
Hannah riu amargamente.
O tear de tia Ethel diminuiu o ritmo.
—O que lhe faz tanta graça, querida?
Hannah ficou olhando-a.
—Como?
Tia Ethel lhe deu um recorte de malha que logo colocariam na tapeçaria.
—Querida, seus bordados são tão delicados. Minnie desenhou uma coroa
para que a bordemos na tapeçaria. Gostaria de trabalhar nela?

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—Claro que sim, senhora, estou aqui para as ajudar. - Hannah agarrou a
tapeçaria e afundou a agulha já enfiada na malha.
Dougald entregaria as cartas de amor que seu pai tinha escrito a sua mãe
porque deixara bem claro que faria algo para se desembaraçar dela.
Segundo Dougald, o abandonara, não tentara realmente fazer que seu
casamento funcionasse.
O qual simplesmente demonstrava que esse homem tinha uma atadura
nos olhos, pois ela havia feito todo o possível para que seu casamento
funcionasse e nada do que ele havia dito lhe tinha gerado a mais mínima
dúvida de que seus esforços tinham sido supremos. Sem dúvida. Nem a menor
duvida.
A culpa de tudo era dele. Sempre!
—Querida, o que está fazendo? Se supõe que deve ser uma coroa de ouro
maciço e não uma pepita.
Tia Ethel lhe tirou das mãos a tapeçaria enquanto Hannah piscava atônita.
Um rápido olhar demonstrava que seu bordado era pouco menos que perfeito,
sim, mas ela considerava que as tias estavam sendo grandemente ingratas
com seus esforços para ajuda-las. Bom!, possivelmente esteve um pouco
distraída, mas certamente...
A lançadeira de tia Isabel diminuiu o ritmo.
—Senhorita Setterington, querida, pode ir a qualquer outro lugar? Me irrita
quando fica aqui sentada em estado contemplativo. Se mova, moça! A rainha
está para chegar!
Hannah dirigiu sua atenção a tia Isabel.
—A irrito?
Algo em sua expressão deve ter alarmado às duas anciãs, porque tia Ethel
murmurou.
—Vê? Já conseguiu.
Tia Isabel gesticulou com as mãos.
—Não, não, não é irritar. É somente que quando tenho um pouco de fome
tudo me irrita.
—E tia Isabel deve estar faminta porque esteve tão zangada como o gato
do coronel - disse tia Ethel.
—Me faria um favor, senhorita Setterington, se fosse procurar à senhora
Trenchard e comprovasse que está preparando o chá.
—Uma das donzelas?
—Não, nenhuma das donzelas! - Tia Isabel se refreou. - Quero dizer, lhe
juro que as donzelas se dão um passeio, com as mentes em seus desbaratados
assuntos amorosos, e nunca transmitem a mensagem, e estamos desfalecidas
de fome. Por favor, senhorita Setterington, confiamos em você.
Aquilo tinha sentido para Hannah.
A senhorita Minnie e tia Spring ficaram em pé, se aproximaram dos teares

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e a observaram sair da sala em busca da senhora Trenchard.


—Caminha bem - anunciou tia Ethel. - O tornozelo lhe sanou bem.
—Sim, mas está amargurada. - Tia Spring levantou a agulha com o fio de
ouro pendurado. - Agora temos a Dougald e a Hannah amargurados.
—Tive que repassar todo o trabalho que ela fez durante os últimos dois
dias e não temos tempo para isso. - A voz da senhorita Minnie era de absoluta
exasperação.
—Juraria que quando torceu o tornozelo perdeu a razão - comentou tia
Ethel.
—Talvez deveríamos sentar a ambos e lhes soltar um bom sermão - disse
tia Isabel contraindo o queixo.
Tia Spring deu uns tapinhas no ombro de tia Isabel.
—Vamos, querida, não devemos nos intrometer.
—Sim devemos - opinou a senhorita Minnie. - Se não voltarem a ser eles
mesmos logo, definitivamente nos intrometeremos. - Convenceu a todas com
um olhar franco. - Por favor, recordem meu convencimento.
—Minnie, você o disse, isso é o mais agradável que já ouvi - repôs tia
Ethel.
—Nunca a menos que esteja segura de ter a razão. - A senhorita Minnie
esboçou um sorriso de profunda complacência que raramente empregava. -
Agora, voltemos para o trabalho, senhoras. Temos que acabar a tapeçaria da
rainha.

Charles viu Hannah descer a escada.


—Senhorita Setterington, tenho uma mensagem para você da parte de
sua senhoria.
Hannah olhou de cima abaixo ao ajudante de câmara de Dougald. Estava
um degrau abaixo dela, lhe oferecendo uma magnífica visão de sua calva.
Ultimamente lhe esteve rondando muito.
Tinha-o surpreendido observando-a enquanto caminhava pelos corredores,
tinha-o visto vigiando-a enquanto falava com Seaton, inclusive a acompanhara
desde seu dormitório até o salão do café da manhã.
Se tivesse estado de humor para se preocupar por isso, aquela tola e
obsessiva vigilância e sua presença constante a teriam incomodado. Mas o que
importava que seu antigo inimigo a odiasse por não abandonar seu amo, tal
como ele mesmo ordenara? Muito em breve se iria e Charles encontraria para
Dougald uma verdadeira esposa, uma esposa que fosse inocente, total e
respeitosa. E estúpida.
E feia. E estéril. Com uma veia mesquinha oculta.
Aquela ideia a fez sorrir por dentro.
—Pensei que sua senhoria saíra para inspecionar os jardins.
Logo desejou ter tido a boca fechada porque se não a importava, não tinha

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por que recordar as obrigações de Dougald.


—Oui, mademoiselle Setterington, mas uma das donzelas me entregou
isto e me pediu que o desse a você. - Deu-lhe um papel dobrado. - Como sabe,
minha vida é servir a você e ao amo.
Hannah se perguntou se uma sonora gargalhada estaria totalmente fora
do lugar, logo pensou que requeria muito esforço.
—Muito bem.
Aceitou a nota a contra gosto e a guardou no bolso do avental.
—Não vai lê-la?
—Não está selada, de modo que estou segura que já a tem lido. O que diz?
Charles ficou firme de um salto.
—Não leio as cartas do amo a sua querida esposa.
—Chist! - Hannah olhou a seu redor.
Em um dos degraus superiores uma donzela esfregava e encerava. No
corredor um criado colocava uma escada, para limpar o pó da cornija. Se
tinham ouvido Charles identificá-la como a esposa de Dougald, não deram
mostras disso.
—Madame, não podemos guardar seu título em segredo. Todo mundo
deveria sabê-lo, e logo.
—Não até que tenha ido.
—Você não se irá.
—Claro que irei.
Charles se aproximou dela e baixou a voz.
—Sua senhoria não pode se casar com outra mulher devido aos
vergonhosos rumores de seu assassinato. Se se divorciar dele, será caro e
penoso, e ele tampouco poderá se casar. Assim, em qualquer caso, você deve
ficar.
Hannah observou como tremiam os expressivos orifícios do nariz dele.
Charles queria que ficasse? Que raro! Entretanto... por que ia dizer isso se não
era certo?
Sabia a resposta. Ela queria ir e Charles convertia em política desejar o
contrário a sua vontade.
Hannah soprou.
—Isso é completamente impróprio de uma dama - admoestou Charles.
—Tenho que encontrar à senhora Trenchard. - Dando as costas ao
pomposo cretino, desceu correndo a escada.
—Na nota, sua senhoria expressava seu desejo de vê-la imediatamente -
gritou Charles.
Hannah caminhou para trás pelo corredor para lhe dizer:
—Ele nem sempre consegue o que deseja.
—Se dependesse de mim ?
Dobrou a esquina e, ao entrar no grande vestíbulo reluzente, a voz de

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Charles se esfumou. Sempre precisava dizer a última palavra?


Entretanto diminuiu o passo. a curiosidade a açulava. Por que Dougald
tinha lhe enviado uma nota? Tirou-a do bolso. Mal tinha falado com ela nos
últimos dias, e agora se incomodou de lhe escrever uma nota e enviar-lhe dos
jardins. O que significava aquilo? Era uma drástica tentativa de se
desembaraçar dela antes que sua majestade chegasse?, ou talvez ansiava
pedir seu perdão ou lhe suplicar que ficasse?
Com muita cautela, como se a nota fosse um cão que pudesse morder,
desdobrou o papel e leu a simples mensagem.

"Hannah, venha a sala da torre desta ala. Tenho uma ideia para a visita da
rainha e desejo consultá-la com você."

Não era um insulto nenhuma súplica. Ficou contemplando a fina caligrafia


negra. Era somente uma petição para que o ajudasse. Consultar com ela?
"consultá-la com você".
Dougald nunca desejara consultar nada com ela, então o que significava
aquilo? Era uma espécie de desculpa? Queria estar com ela a sós para suplicar
que o perdoasse?
Que raro lhe parecia aquilo. Que absurdo!
Mas gostou da ideia que Dougald lhe suplicasse, então Hannah voltou
sobre seus passos.
Claro que não pensava perdoá-lo. Não merecia seu perdão, aquele homem
estúpido a considerava a principal responsável por sua separação. E não era
certo. Simplesmente não era certo.
Ao se aproximar da escada procurou Charles, mas desaparecera. Soltou
um suspiro de alívio; não queria que soubesse que cedera e lera a nota de
Dougald. Se deteve e voltou a lê-la.
Por que a chamara na torre desta ala?
Hannah passou ante a donzela da escada.
Talvez tivesse ocorrido a Dougald que podia levar a rainha Vitória até o
alto da torre para lhe mostrar a vista.
Enquanto atravessava os corredores desta ala, Hannah só viu um criado
que transportava um balde de água saponácea.
Talvez Dougald ouvira o muito que a rainha Vitória gostava das lendas
locais. Talvez tivesse ocorrido a ele a descabelada ideia de contar a história da
esposa de lorde Raeburn, uma mulher que amara de maneira imprudente, seu
marido a encarcerara e morrera ao saltar da torre. Não era má ideia; o
pitoresco relato provavelmente encantaria sua majestade.
Hannah nunca esteve na torre; o relato da ira do antigo lorde Raeburn com
sua jovem esposa era muito parecido a sua própria história, e Hannah teve
muito cuidado de se ocupar de seus assuntos sem pisar nesse lugar. Mas agora

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a porta da escada da torre estava aberta, e quando cruzou a soleira se sentiu


transportada ao século XV.
Tolices românticas, claro, mas as tias usaram a torre da ala oeste durante
anos, com o qual tinha um aspecto muito cuidado, ao contrário que a torre do
este. A torre do oeste tinha gesso nas paredes e uma escada de madeira não
mais velha que a própria tia Spring. Naquela torre, a única iluminação chegava
através das alongadas frestas da pedra, vestígios dos dias em que os arqueiros
rechaçavam os ataques. Na meia penumbra, a escada de caracol se pegava
aos rugosos silhares12 da parede. Os próprios degraus pareciam ter visto lorde
Raeburn arrastando a sua noiva francesa até sua prisão. E a aquela prisão se
chegava não por um patamar novo e uma escada civilizada, mas sim por um
alçapão e uma precária escada de madeira de mão. Toda a estrutura parecia
estar revestida de uma antiga pátina arrepiante. A luz da câmara superior
brilhava somente tenuemente e em seu interior o mais seguro era que o
fantasma de lady Raeburn chorasse a seu amante perdido.
Hannah estremeceu. Tolices românticas, sem dúvida, mas não gostava
daquele lugar.
Fosse o que fosse que Dougald queria lhe consultar, a resposta era "não".
À rainha Vitória não gostaria de contemplar a vista, não gostaria de ouvir o
relato da esposa de lorde Raeburn e, o que era mais importante, não gostaria
de subir aquela precária escada. Hannah tampouco tinha nenhuma vontade de
subir por ela, mas a curiosidade foi mais forte.
Dougald já estava ali acima?
Sobreveio-lhe a lembrança do acidente e subiu cada degrau medindo-o
com cuidado. Ainda lhe doía um pouco o tornozelo; sua cautela se ia fazendo
mais intensa à medida que subia.
Se Dougald estava na torre, não teria que ter dado mostras de sua
presença? Hannah não estava sendo precisamente silenciosa. Ao se aproximar
ao final, chamou-lhe.
—Lorde Raeburn? - Logo, enquanto punha a mão na escada, acrescentou: -
Dougald?
Não houve resposta, mas na nota não disse que estaria ali quando ela
chegasse. Devia ter lhe esperado ao pé da escada e subir com ele? Com muito
cuidado se agarrou ao corrimão e arrancou um rangido ao subir cada degrau.
Quando colocou a cabeça na sala da torre, se deu conta que a câmara era
idêntica à oficina das tias em tamanho, mas em todos outros aspectos estava
abandonada, sem usar, triste e vazia. Não havia rastro de Dougald.
Subiu os últimos degraus. Tinham levado alguns móveis desvencilhados
até ali. As pranchas do chão estavam desprovidas de tudo, inclusive até de pó.
As janelas estavam sem vidro nem cortinados e só tinham venezianas para se
proteger das inclemências do tempo. O teto de palha era mais fino em alguns
12
Silhares: Pedra em que se assenta o cortiço das abelhas.

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lugares; o sol caía com exiguidade sobre as bolinhas que vagavam sem
propósito.
Hannah pensou que ela era uma mulher sensata e séria, mas a idade e o
vazio alimentavam uma pena profundamente arraigada em sua alma.
As faces abertas do alçapão lhe produziam dor no tornozelo e
prudentemente a fechou. Se movendo com o sigilo de um enfermo em um
funeral, se aproximou da janela que dava ao sul e abriu o fecho das
venezianas.
Se abriram de par em par e a luz do sol alagou a sala. O sentimento de
abandono se fez mais intenso. Dali divisava o lado vazio do castelo, onde não
cresciam jardins nem passeava ninguém.
Aquela torre tinha pago o preço de sua má fama.
Quis olhar mais à frente, ver o panorama que se abria além daquela sala.
Mas recordava muito bem a queda que havia da janela de seu dormitório e
aquela era mais alta, muito mais alta.
Então retrocedeu, e elevou o olhar para o horizonte. Viu a neblina azulada
do céu sobre o oceano e logo as ondas que lambiam a praia, as onduladas
colinas e os vales e campos que brilhavam com o primeiro broto da primavera.
Poderia chegar a fazer de Lancashire seu lar. Poderia chegar a amar essa
combinação de terra e mar. Não só era potencial, realmente a amava.
Amava aquele lugar, e retornaria... se tudo ia bem e seus avós a
aceitavam. E Dougald estaria ali, no castelo Raeburn, talvez casado com outra
mulher, talvez se afundando em sua própria amargura.
Hannah não podia salvá-lo. Nem sequer podia salvar a ela mesma.
Reclinada contra o marco da janela, cruzou os braços e contemplou
fixamente a vista. Como odiava ter que admiti-lo! Entretanto que bem fazia
mentir para si mesma? O certo era, e a ironia era, que as mentiras que disse a
si mesma aos dezoito anos eram certas. Aos dezoito anos se entregou a
Dougald porque o amava. E agora, no castelo Raeburn, se entregou a Dougald
porque seguia amando-o.
Não importava quão furiosa ela estivesse nem o dano que lhe tivesse
feito, não importava quem era o responsável pelo fracasso de seu casamento,
Hannah sempre o amaria.
O chiado metálico de uma dobradiça fez que se voltasse de súbito.
Dougald estava ali, lhe estendendo um pedaço de papel.
—Hannah? O que quer? - perguntou, com o cenho tenso e um olhar
receoso.

Capítulo 26

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—Hannah? O que ocorre? Parece estranha. - Dougald avançou para ela e


se deteve a poucos centímetros. Ficou direito para parecer estirado e quando
falou empregou seu tom mais pretensioso.
—Seja o que for que tenha a dizer, será melhor que seja importante. Não
tenho muito tempo se queremos ter o caminho de entrada preparado antes
que sua majestade chegue.
—Pensei que estivesse fiscalizando o jardim - disse, logo amaldiçoou a si
mesma por sua estupidez. Era somente que ele parecia estar a ponto de
abraçá-la. Tinha lhe dirigido a palavra sem estar obrigado pelas exigências
sociais. Ele fora a seu encontro, mas. - Eu não pedi que viesse. Foi você quem
me pediu isso .
—Asseguro que não. - Abriu a nota e a mostrou.
Hannah a leu:

"Dougald, se reúna comigo na torre desta ala. Tenho que te contar algo
muito importante."

—Esta não é minha letra.


—Ah, não? - Franziu o cenho e a inspecionou. - Se você diz, mas como eu
ia saber? Não é que me escrevesse cada semana quando estava no
estrangeiro.
Reprimiu o impulso de estrangulá-lo e tirou a nota do bolso.
—Esta é a sua.
Dougald a leu.
—Não é minha letra - disse em tom cortante. - Mas como você ia saber? Eu
não podia te escrever, não sabia onde estava.
Que maneira de provocá-la!
—Subi aqui porque pensava que queria me consultar algum detalhe sobre
a visita da rainha. Devia ter me dado conta que você não era uma pessoa tão
lógica para me pedir minha opinião só porque sua majestade e eu nos
conhecemos e poderia saber algo a respeito de suas preferências.
—E você adora me recordar isso. Enrugou a nota que tinha na mão e a
jogou no chão. - Me abandonou e arrumou isso tão bem por sua conta que
agora é uma mulher independente e com amigos da mais alta linhagem.
Enquanto que eu fiquei no norte da Inglaterra e granjeei uma reputação de
assassino. - Colocou uma mão a cada lado dela sobre a parede. - Seu
assassino.
Ela também enrugou a nota e a jogou no peito dele em um gesto explícito
e mesquinho, reconhecido livremente por ela mesma, que aliviou muito seu
chateio.
—Não estou alardeando - talvez um pouco, - e não é culpa minha que você
não negasse que tinha me matado.

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—Do que me teria servido? Ninguém teria acreditado em mim, salvo


aqueles poucos que aproveitariam a ocasião para rir de mim porque nem
sequer tinha podido conservar minha esposa em casa.
Deveria aproveitar esta ocasião para te atirar pela janela? - Sua voz se
extinguiu e franziu o cenho.
—Adiante, fanfarrão. Tenta e me atire pela janela. Outra esposa Raeburn
assassinada. Outra história que acrescentar à lenda do Conde de Raeburn? - De
repente lhe ocorreu algo e se deteve.
—Dougald, se você não me escreveu a nota e eu não escrevi a sua, por
que estamos aqui acima?
—Maldição! - Saltou para o alçapão e se deteve de repente. - Está
fechado.
Hannah se aproximou devagar.
—Fechado. Quem o fechou?
Ajoelhado, Dougald lutou com a argola.
—Essa é a questão, não acredita?
Não lhe importou seu tom. Dougald atuava como se soubesse algo, algo
que hesitava em revelar.
—Dougald do que está falando? O que está passando?
Se preparou e puxou forte sem lhe responder.
—Dougald, quem enviou as notas?
Se colocando sobre o alçapão, primeiro olhou uma longa e arranhada
jaula, logo ao pequeno aparador e ao leve mobiliário da torre.
—O mesmo que tenta matar ao conde de Raeburn e a sua esposa.
Levantou a mão e logo a deixou cair.
—Esses somos você e eu. - De repente Hannah entendeu aquela
espantosa semana. - Você e eu.
—Exato - assinalou. - Por favor, me aproxima essa mesa?
Hannah olhou a simples mesinha de madeira com a perna quebrada.
—O que vai fazer com essa mesa? Agora se preocupa com a decoração?
—Pegarei a quem quer que coloque a cabeça pelo alçapão.
—Ah!
A mesa era pequena e leve, e foi muito inteligente por parte de Dougald
pensar nisso.
—Enquanto isso, estou usando meu peso para impedir que entrem.
Agarrou a mesa e a aproximou.
—Mas ninguém sabe que sou sua esposa, salvo...
—Não é Charles. - Colocou a mesa junto ao alçapão e retrocedeu com
cuidado. - Eu gostaria que esquecesse esse doentio pré-julgamento que tem
contra ele.
—Doentio? Charles me deu essa nota. Ele precisava saber que não era sua
letra.

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Christina Dodd
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The Governess Brides 03

Dougald mal a olhou.


—O perguntaremos quando o virmos, mas estou seguro que deve haver
uma explicação lógica.
Parecia um pai pondo a mais paciente das vozes, mas Hannah reconhecia
sua tática. Estava tentando distraí-la.
—Alguém está tentando matar ao Conde de Raeburn? e lhe deram uma
boa surra. Alguém tentou te matar?
—Hahm? sim. - Levantou a mesa com uma mão. - Mas não sei por que nos
trancou aqui.
O horror e a fúria se mesclaram em sua mente.
—Para me dar tempo para chegar até o final de tudo isto!
—Agora sabe tudo - repôs Dougald, com a vista fixa no alçapão.
—De verdade? Tentaram te matar outras vezes?
—Não, mas fui muito cuidadoso. - Dirigiu-lhe um sorriso. - Graças a você,
não tive que sair de excursão a cavalo pelas noites.
O sorriso era outra tentativa de distraí-la, mas nada a impediria de chegar
até a verdade daquele assunto.
—Depois que caí pelo patamar, se deu conta que alguém ia também atrás
de mim, e não queria que me fizessem mal, então tentou me afastar.
—Sim! - Dougald se sentia visivelmente aliviado de que o compreendesse.
- Essa é a pura verdade.
Hannah lhe deu um murro inesperado nas costelas e depois disso um duro
gancho na face.
Dougald deixou cair a cadeira e cambaleou para trás.
—Animal! Me fez passar um inferno!
—Com as melhores intenções!
—Então eu não seria nenhum alvo e você sim - se ouviu dizer a si mesma.
Estava gritando.
—Sabia que a mim não conseguiriam fazer mal e temia por você - disse
em tom de superioridade, tocando ligeiramente a própria face.
—Não conseguiriam te ferir? - perguntou. - É que não lhe fizeram mal
quando aqueles homens lhe deram essa surra?
—Primeiro me dispararam.
Aquela confissão fez que Hannah se detivesse de repente.
—Dispararam em você?
Dougald olhou para o alçapão para evitar o olhar de Hannah.
—Sim, e agora deixei que nos apanhassem aqui!
Outra vez foi presa da fúria, agora com um rugido. Hannah descarregou
uns golpes sobre ele, mas não murros muito fortes a não ser um rítmico
tamborilar feminino no peito, nos braços e onde pôde.
Dougald aguentou e tentou esquivá-la.
—Estúpido novilho - clamou contra ele. - Velhaco. Inútil...

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Christina Dodd
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Ao final Dougald segurou seus punhos.


—Não é tão mau.
—Por isso me disse aquelas coisas. Estava tentando me jogar longe daqui
para que não me fizessem mal.
Dougald teve o senso comum de parecer arrependido.
—Sim.
O arrependimento não era suficiente. O arrependimento não repararia o
dano que fizera na sua alma, no coração.
—Quem acredita que sou? Uma espécie de refugo flácido e tremulo que se
desintegra ao primeiro sinal de perigo?
—Isso não é o que eu pensava. - Dougald olhava o alçapão.
—Acredita que sou uma covarde. - Se debatia para se liberar para poder
voltar a bater nele. - Acredita que ia deixar que enfrentasse a um assassino
enquanto eu fugia para a cidade?
—Hannah. - ainda segurando seus punhos, a abraçou por trás, rodeou-lhe
a cintura com os braços e segurou os punhos. - A última coisa que acredito é
que seja uma covarde. Acredito que é muito valente e isso não a beneficia.
Temia que fizesse algo amalucado como perseguir o vilão ou se interpor entre
uma pistola e eu.
—Não me adule. - As lágrimas fluíram a seus olhos. Lágrimas de frustração
e escárnio, disse a si mesma. Não lágrimas de dor.
—Me disse aquelas coisas, me destruiu... e acredita que dizer que era por
minha segurança basta para te desculpar?
—um assassino podia ter te capturado e te ameaçar.
Compreendeu tudo rapidamente.
—E precisava me sacrificar pelo bem do nome dos Pippard.
Dougald soltou seus punhos.
—É isso o que acredita?
Piscou para secar as lágrimas dos olhos e o olhou.
—Quando me deu motivo para pensar de outra maneira?
Se enfrentaram, adversários ainda e para sempre. Talvez seu cepticismo
lhe tivesse doído; Hannah não podia saber. Só sabia que estavam apanhados
em uma torre legendária encantada pelos fantasmas de todos os casamentos
malditos dos anteriores senhores de Raeburn e, a menos que ocorresse um
milagre, também eles se somariam a infame e ininterrupta estirpe.
—Dougald, disse que tinha me atraído a Raeburn para me utilizar e que,
como já o fizera, já não me queria.
—Eu não? - Estendeu as mãos como se quisesse agarrá-la. - Isso não era
absolutamente verdade.
—Seria bonita a verdade, para variar.
—Não pensará assim quando lhe contar isso. - Sua risada continha um
escondido aspecto amargo, embora Hannah não podia dizer a quem ia dirigido.

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Christina Dodd
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—A encontrei em Londres e a trouxe aqui por um motivo: para que fosse


minha esposa. Mas primeiro planejava te obrigar a que se apaixonasse por
mim. Logo a dominaria a meu desejo.
—Está muito seguro de si mesmo, não acredita? - O problema era que
possivelmente o tinha obtido, mas não pensava dizer. O que o fez mudar de
opinião?
—Ainda a desejava. - Suas palavras soaram ásperas e precipitadas. - E não
era minha intenção. Pensei que nada podia jogar por terra a disciplina que com
tanto esmero tinha cultivado, mas você o fez.
Desde o primeiro momento, detestava o modo em que você me fazia.
Nem sequer podia pronunciar a palavra.
—Sentir?
Sacudiu a cabeça. Não como uma negação mas sim como desprezo a sua
própria vulnerabilidade.
—Ainda a desejo - repôs bruscamente com um intenso fulgor nos olhos
verdes.
Hannah esperava sentir prazer mas, em troca, descobriu que nunca tinha
duvidado realmente do desejo de Dougald.
Quanto ao amor, inclusive na primeira paixão de seu casamento,
desconfiara do amor de Dougald, e por um bom motivo. Se casou com ela por
seus próprios interesses. Embora lhe tivesse carinho, amava mais o dinheiro,
as riquezas e o poder. Agora o tempo e a solidão deixaram cicatrizes em uma
alma beligerante, e converteram seu desafio em amargura, e injustiça.
—Mas ainda segue me culpando por te abandonar?
O fulgor de seus olhos se apagou. Seus elegantes lábios se converteram
em uma fina linha. Uma vez mais parecia o frio senhor sem emoções que a
recebera em seu castelo, ameaçara assassina-la, e coisas piores.
Como não respondeu, aquilo foi resposta suficiente para ela.
—Não foi culpa minha que nosso casamento se acabasse. Como pode
acreditar que é minha culpa? - protestou em voz baixa.
Dougald seguia sem dar nenhuma explicação. Se negava a admitir que
estava equivocado.
Outro olhar a sua expressão fria fez Hannah mudar de ideia. Se negava a
"aceitar" que estava equivocado.
O rangido de uma dobradiça ressoou forte no revelador silêncio.
Preocupada e distraída, Hannah olhou a seu redor, uma vez, duas vezes.
O alçapão estava se levantando.
Hannah assinalou para ele.
—Dougald? Quem?
Dougald a afastou a um lado de um empurrão. Aterrissou no tornozelo
débil e com um grito caiu sobre um joelho. A dor lhe queimava através dos
maltratados músculos e tendões, mas se recuperou antes de cair de tudo.

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Se agarrou ao batente da janela e se apoiou nele para ficar outra vez de


pé, a tempo de ver a cadeira se fazendo pedacinhos contra o alçapão.
Alfred. O grande, saudável e sujo Alfred cambaleou e logo voltou à carga,
empunhando uma pistola.
Com um rápido gesto Dougald o agarrou pelo cabelo e o pescoço e o
arrastou para dentro da sala da torre. Como um trol que tivesse caído em uma
armadilha, Alfred uivou, com um brilho enlouquecido em seus pálidos olhos
azuis. A pistola cuspiu fogo; o trovão retumbou nos muros de pedra. Uma
rajada de fios negros e sangue vermelho explodiu no ar em cima do ombro de
Dougald.
—Maldito seja! - Dougald retrocedeu.
Agora a pistola de um só tiro não lhe resultava de nenhuma utilidade,
assim Alfred teria que lutar, e golpeou Dougald com o cano ainda fumegante.
Entretanto, Dougald arrastou Alfred com ele, para a janela aberta.
Hannah quis gritar de terror; gotas de sangue salpicavam o chão. Dougald
estava ferido. Alfred descarregou um golpe na têmpora de Dougald, que
cambaleou como um homem em perigo, e Alfred conseguiu escapar dele.
Dougald necessitava ajuda. Hannah correu para eles, atirou um golpe em
Alfred de um lado que o esmagou contra a parede.
Alfred pinçou no bolso de sua puída jaqueta e tirou outra pistola.
—Não! - Com as duas mãos estendidas, Hannah o empurrou.
A pistola se agitou grosseiramente.
—Ela me vai matar! - exclamou Alfred, endireitando o cano da arma e
apontando diretamente para Hannah.
Enquanto o dedo de Alfred apertava o gatilho, Dougald o empurrou pela
janela. O tiro ressoou no teto e arrancou um pedaço de palha que choveu sobre
suas cabeças.
Mas Dougald e Hannah observavam horrorizados como Alfred caía em
silencio da torre.
Hannah voltou a cabeça antes que topasse contra o chão.
—Que Deus tenha piedade de sua alma!
—Não sei se Deus chegará sequer a vê-lo. - Dougald coçou a cabeça. -
Pelo assassinato dos dois antigos senhores de Raeburn e por ter tentado nos
assassinar imagino que receberá sua condenação.
Hannah pensou nos acontecimentos que tiveram lugar nos últimos
minutos.
—Não foi Alfred quem cometeu esses crimes - disse com convencimento.
—Não. Ele só não. - Pálido e suarento, Dougald se reclinou na parede. -
Temo que não nos resgatarão. Ninguém o viu cair.
—Dougald! - Hannah abraçou a seu marido e ele a abraçou a sua vez, e a
sensação dos braços deste a seu redor deu uma calidez que não experimentara
em dois dias. Muito tempo, e agora estava ferido.

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—Sente-se.
—Sim. - Fechou devagar os olhos e desabou no chão. - Devo pensar.
Presa do desespero, Hannah tentou levantá-lo, mas pesava muito e a dor
do tornozelo se reavivou, assim se viu arrastada ao chão com ele. Hannah
recostou a cabeça no colo de Dougald e choramingou.
—Está morto? - Tomou o pulso no pescoço.
Pulsava acelerado sob seus dedos.
—Não, não está morto. - Declarar o que era óbvio lhe produziu uma rara
espécie de consolo.
A cabeça de Dougald pendurava de lado no torso de Hannah.
—Se permitir que Dougald viva - disse Hannah, fazendo um desesperado
pactuo com o Todo-poderoso, - serei o tipo de esposa que ele sempre quis. -
Passou-lhe as mãos pelos ombros, mas não conseguia encontrar o buraco de
bala. Mas vira aquela explosão de fios e aquelas gotas de sangue, então
procurou de novo. - Farei tudo o que ele me diga, se permitir que siga, -
procurou o lugar onde a bala o tinha ferido - respirando.
O olhou à cara. Ele a contemplava através daqueles olhos maravilhosos e
penetrantes.
—Poderia repetir isso, por favor, com a mão sobre uma Bíblia?
A bala fatiara a parte carnuda do ombro por cima da clavícula e saído a
um milímetro de onde penetrara. Sabia que lhe doía; mas sem dúvida não o
matara.
—Mas, se mal está ferido!
Dougald se moveu para ficar a vontade.
—Queima-me como um demônio.
—Não tente me enredar, lorde Raeburn. Foi pior essa surra que lhe deram.
Tentou afastar a cabeça, mas ele rodeou sua cintura com o braço. Ao cabo
de um momento de se debater com pouco entusiasmo, Hannah cedeu. Porque
estava sangrando embora a ferida já estivesse enfaixada.
Porque a luta com Alfred a assustara tanto que lhe arrebatara o pouco
juízo que restava. Porque era Dougald, e o amava.
A néscia da Hannah, apaixonada durante anos por um homem que a
queria e odiava querê-la, e logo culpada porque lhe pareceu que aquele acordo
era injusto e o abandonou.
—Você não merece uma boa esposa.
Ele recostou a cabeça mais perto de seu seio.
—Eu não quero uma boa esposa. Quero a você.
—Se supõe que é uma adulação?
—Acaso não a adula?
Era triste admitir, mas sim, a adulava o ouvir dizer que a queria como
esposa apesar de sua inépcia para viver a tradicional vida de casada ou
inclusive suportá-la, bom, sentiu vontade de rir.

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Mas conservou a calma. Estiveram brigando antes que Alfred entrasse e o


que acabava de ocorrer ilustrava amplamente a idiotice que Dougald
cometera. Como esposa, era seu dever destacar isso.
—Se interpôs entre a pistola e eu.
—Claro. - se ergueu dolorosamente sobre um cotovelo. Os olhos de ambos
estavam ao mesmo nível e ele a olhava com uma comovedora solenidade.
—Não importa o que acredite, Hannah, eu não a sacrificaria pelo nome dos
Pippard.
Hannah fez caso omisso daquele gesto comovedor e de sua solenidade, e
se concentrou em deixar bem claro seu argumento.
—Mas você não queria que eu me interpusesse entre você e uma pistola.
Acaso o que fez é melhor?
—Eu sou um homem.
Piscou com desdém.
—Será que as pessoas com partes pendentes estão melhor equipadas
para deter uma bala?
Dougald baixou as longas e escuras pestanas.
—Asseguro que neste momento não me pendura nenhuma de minhas
partes - disse em um tom de absoluta sinceridade.
Hannah tentou falar. Respirou fundo e voltou a tentar. O desdém e um
agudo sentido da justiça nada puderam contra o fato de compreender que
nenhuma briga nem nenhum disparo poderiam evitar que a desejasse.
E quando lhe sorriu, se perguntou insensatamente se o desejo seria
suficiente.
—Não deveria correr o risco de perder a vida - conseguiu gaguejar por fim.
—Não vou discutir com você por isso, Hannah. - Agarrou-lhe a mão e a
beijou. - Se equivoca. Simplesmente aceita. Mas, neste caso, a honra exigia
que a salvasse. Está em perigo por minha culpa.
—Estava em perigo.
Dougald suspirou.
—Eu gostaria que isso fosse certo mas Seaton ainda anda solto. Ele é
quem me disse que viesse à torre. Deve ser o assassino.
—Isso acredita e não desconfiou dele?
As faces de Dougald se avermelharam um pouco.
—Tinha decidido que não era ele, e então acreditei que você me pediu que
nos víssemos, eu... bom, fui um estúpido.
Gostava de ver aquela vermelhidão e saber que tinha acudido correndo
por ela.
—Se equivoca. Não é Seaton. - Hannah olhou pela janela para o lugar onde
Alfred desaparecera.
—Mas eu sei quem é.

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Capítulo 27

O braço de Dougald adormecera e notava o batimento na ponta dos


dedos, embora pensou que o problema de seus dedos se devia mais ao desejo
de agarrar Hannah e rapta-la que a qualquer reação devida à ferida.
—Não seja ridícula - declarou sinceramente.
É obvio, Hannah discutiu com ele.
—Por que ia ser ridícula? Não recorda o que Alfred disse antes de cair pela
janela? "Ela vai me matar." Estava mais assustado dela que de cair.
Enquanto desciam pela escada da torre, Dougald mantinha o braço
firmemente obstinado ao de Hannah. Ao fim e ao cabo, ela ainda coxeava, e
depois da refrega na torre se movia com muito cuidado e se inclinava para o
corrimão.
—Estou de acordo em que pode ser uma mulher quem desse ordens a
Alfred - repôs Dougald.
—Mas por que fechar o alçapão conosco dentro? Uma vez que nos
déssemos conta que estávamos encerrados, nos daria tempo de preparar uma
estratégia.
—Fala no plural? - ela adorava levar o mérito do que ele planejara. - Era eu
quem estava armado com uma mesa.
Hannah franziu o cenho, contrariada.
—Não superou o de ser meu superior, meu senhor pavão?
—Vigia onde pisa - ele aconselhou. - O corrimão está algo solto aqui.
Dougald olhou para baixo. A escada de caracol ocultava a vista de boa
parte do chão. Poderia ter alguém escondido nas sombras do final da tarde,
embora não vira nem ouvira nada.
Também notou que fecharam a porta que conduzia até a torre. fora Alfred
ao subir? Ou havia alguém mais com a intenção de disparar neles quando a
atravessassem?
Se Hannah era consciente do perigo, ocultava sua preocupação com o
ardente interesse de o convencer que tinha razão.
—Pode ser que a mulher nos seguisse até acima das escadas, fechasse o
alçapão e fosse procurar a seu conspirador para que este nos matasse - disse
em seu tom mais persuasivo.
—Por quê? Uma pistola funciona igual de bem nas mãos de uma mulher.
—Mas teria desenquadrado seu plano.
—Como sabe qual era seu plano?
Hannah deu de ombros.
—Porque eu teria feito o mesmo.
Dougald nunca disse nada tão convencido como quando repôs:

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—Hannah, às vezes me assusta.


Se deteve para olhá-lo.
—Igual a você me assusta . Embora depois da cena que acabamos de
viver acima na torre, não voltarei a me perguntar nunca mais se quer me
matar.
—Certamente hoje não.
Hannah sorriu e começou a descer outra vez.
—Essa mulher queria nos fazer passar por um desses casamentos
malditos dos nobres Raeburn. Alfred dispararia em você primeiro e logo me
jogaria pela janela.
—Alfred não teria podido te jogar pela janela. Não era um homem jovem.
Assim teria usado essa segunda pistola com você.
—Não, essa era de reposto. E eu diria que a ia necessitar. Alfred era o
bastante corpulento para me enfrentar e vencer.
Dougald recordou a constituição de Alfred; era um homem corpulento e
alto.
Entretanto, o surpreendeu que estivesse comprometido. Nunca teria
pensado que aquele aldeão ocioso de olhos apagados e mãos trêmulas
pudesse fazer parte de um complô para assassinar aos senhores do castelo
Raeburn.
Entretanto, a perspectiva de que Alfred pudesse ter posto a mão em cima
de Hannah fez Dougald estremecer.
Hannah não parecia esperar uma resposta. Simplesmente se aconchegou
ainda mais contra ele.
—Depois que disparasse em você e me atirasse pela janela, poria a pistola
em sua mão. Quando viesse à tona quem era eu, todo mundo diria que você
tinha me jogado pela janela e se suicidara de um disparo.
Dougald estava horrorizado.
—Hannah, tem uma mente criminal.
Durante uns segundos parecia meditar sobre o que ela acabava de dizer.
—Suponho. Prefiro pensar que tenho uma mente analítica.
—E o que há do fato que Seaton me desse a nota que me fez ir ao alto da
torre? Isso prova que ele é o instigador do plano para nos tirar o castelo
Raeburn.
Hannah respondeu a seu ceticismo com não pouca graça.
—Bom, Charles, me dê a nota! - imitou a voz de Seaton. - Ham! - E após
dizer isto mostrou a língua.
Dougald quis se vingar agarrando a língua em sua boca, mas Hannah
insistiu em que se comportassem com a precaução lógica e procurassem o
verdadeiro assassino.
Ela queria participar da busca, o qual demonstrava que ele teve razão em
lhe ocultar a verdade durante tanto tempo como fosse possível.

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Mas maldição!, se o assunto tinha esperado tanto, podia esperar um


pouco mais enquanto ele levava Hannah a seu dormitório e se entregava a
todas as fantasias que fora incapaz de levar a prática durante aqueles últimos
dias.
Charles deve ser muito inocente. - Se não era, então Dougald devia sê-lo
ainda mais. - O buscaremos e perguntaremos quem lhe deu a nota.
—E encontraremos Seaton e perguntaremos quem lhe deu a nota. -
Replicou Hannah.
—Se não tiver mais remédio!
—Não sei como pôde chegar a pensar que era Seaton.
—Ele é o herdeiro.
—Não quer o título. - Sacudiu a cabeça ante a falta de percepção de
Dougald. - É um afeminado; só quer mexericar e brincar, não quer a
responsabilidade que suporta o legado.
Dougald não respondeu por que não queria dizer a ela que, a grandes
traços, a evidência se ajustava a sua descrição. Os três cavalheiros detetives
seguiram Seaton em suas visitas.
Sua única atividade suspeita fora a de "encontrar" o colar perdido da
senhora Grizzle entre os almofadões de um sofá e ser aclamado como um
herói.
Dougald e Hannah chegaram abaixo sem nenhum incidente, e ele
examinou a zona em busca de esconderijos e armas. Não havia nada; nenhum
lugar onde se esconder e nada que ele pudesse utilizar para se defender.
Soltou o braço com o que segurava Hannah e com serenidade lhe deu
instruções.
—Fique aqui - e se dirigiu para a porta.
Hannah murmurou algo. Uma frase que ele não chegou a escutar.
Com a mesma serenidade, retornou com ela e negou com o dedo diante
de seu nariz.
—Nem tente, não vai me ajudar. Não vou deixar que te deem um tiro.
—Não me deram nenhum tiro - disse ela em um enérgico sussurro.
—Porque eu a salvei - repôs Dougald. Esperou até que a expressão de
obstinação se assentou em seu rosto, logo voltou a negar com o dedo.
—Ela não está aqui. O que poderia nos fazer ela nos corredores do
castelo? Esperará e voltará a tentar outro dia - murmurou depois de assentir
com um grunhido e um breve movimento de cabeça.
—Talvez tenha razão. - Lhe deu um breve e forte beijo nos lábios. - Mas,
apesar de tudo, deixa que tome precauções.
Agarrou o trinco, abriu a porta e o amplo corredor da ala este se estendeu
ante ele. Portas se abriram em salas vazias, mas Dougald supôs que Hannah
tinha razão.
Ao fim e ao cabo, tal e como Hannah suspeitava, por que ia se arriscar a

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matá-los no castelo em plena luz do dia? Não tinha nem ideia de que se
delatou ante Hannah.
Com esse pensamento em mente, Dougald caiu na conta que Hannah o
convencera.
—Tem razão - admitiu. - A senhora Trenchard é a assassina.
—Sim - repôs Hannah, sem denotar na aparência a generosidade de
semelhante concessão, - e estive pensando. A prova está na capela.
—Na capela? Por que na capela?
—Me custou uma dor de cabeça demonstrar que toda a trama se centra
na capela.
Com um sobressalto, Dougald recordou o que Charles disse. Alguém
golpeara Hannah na capela.
—Claro.
—Além disso, se minha triste teoria for certa, em que outro lugar podia
estar a prova?
Recordou a atitude protetora que tinha a senhora Trenchard com a capela,
se encarregando da limpeza ela mesma, e do que lhe havia dito a respeito de
suas restaurações.
Se interessou pelas intenções que Dougald tinha com respeito à capela. Se
interessou muito.
—Tenho um plano - exclamou Hannah.
Segurando-a pelo braço, Dougald a levou pelo corredor.
—Me conte.
Quando terminou de contar ele sacudiu a cabeça.
—Não. Tem que haver um modo melhor.
—Talvez o haja, mas agora mesmo não me ocorre nada melhor, e não fica
muito tempo antes da visita da rainha. Seria uma autêntica falta de etiqueta se
um de nós é assassinado antes de sua chegada.
—Não posso discutir isso, mas devo te advertir que ainda tenho minhas
dúvidas com respeito a suas deduções. Observei que a senhora Trenchard tem
muito carinho a Seaton.
—Como a maioria das mulheres!
Dougald não gostou desse comentário.
—Por quê? É somente o cachorrinho mais fraco da isca de peixe.
—É encantador, sempre conhece as últimas fofocas e gosta das mulheres.
—Também eu gosto das mulheres.
—E estava acostumado a ser encantador. Talvez possa voltar a cultivar
esse traço de seu caráter. - Lhe dirigiu um descarado sorriso. - Mas mexericar?
Acredito que não.
Pode pôr cara de poucos amigos ou pode mexericar, e nos últimos nove
anos aperfeiçoou a arte de pôr cara de poucos amigos.
Pôs cara de poucos amigos.

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—Eu gostava mais quando se preocupava que pudesse te matar.


O sorriso desapareceu do rosto de Hannah.
—Ainda estou preocupada, mas por um motivo inteiramente diferente.
"Por que motivo?" Quis perguntar o que era que desenhava uma
expressão pensativa em seu rosto, mas não era o momento. Não até que
tivessem arrumado esse outro assunto.
—Então acredita que a senhora Trenchard atacou aos lordes com objetivo
de conseguir o título para Seaton - disse Hannah.
—Sim.
—Se trata mais de um crime pela terra e pelo dinheiro que um crime pela
honra e a lealdade?
—Tem mais lógica.
—Porque a terra e o dinheiro se veem e a honra e a lealdade são efêmeros
- disse em um tom zombador.
Sabia que Hannah estava a ponto de lhe estender uma armadilha, mas
ainda não via onde ia lhe fincar o dente.
—Semelhante honra e semelhante lealdade são raras.
—Entretanto, por honra e lealdade você se pôs diante de uma bala.
"E por amor", deveria dizer. Confessar e deixar que ela ficasse a rir ou a
chorar ou o que lhe desse vontade. Mas não pôde. Aquela súbita compreensão
era muito recente. Ainda não tinha chegado o momento.
Ficavam muitas meias verdades e feridas passadas entre ambos. E talvez,
só talvez, ela não ficasse a rir nem a chorar, mas se sentiria algo violenta por
ele. Depois de tudo, uma vez o tinha amado.
Que penoso era tentar reavivar uma ternura antiga! Assim se limitou a
dizer:
—É minha esposa.
—Honra e lealdade - declamou triunfante.
—É uns votos que eu respeito. - Não pôde evitar dizer.
Depois dessas palavras Hannah ficou muito calada.
Não o perdoara que a acusasse de abandoná-lo. Como não o perdoara tê-
la abandonado.
Dougald a olhou de soslaio. Com mechas de seu cabelo derramando ao
redor de seu rosto e aqueles solenes e rasgados olhos castanhos, seguia tendo
um aspecto magnífico. A amava a mais não poder.
Adorava que olhasse aos olhos, mesmo que ele estivesse zangado.
Adorava seu sarcasmo. Adorava a ternura que tinha com as tias. Adorava seus
seios, sobretudo o pequeno decote que mostrava agora mesmo.
A amava tanto, sem lhe importar as antigas feridas e um futuro funesto,
que precisava salvá-la.
Ele, que aprendera a ter segurança em si mesmo e uma determinação
férrea, temia o fracasso naquele empenho. Cometera falhas, enganos

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intoleráveis ao interpretar seu caráter e sua motivação.


—Olhe. Aí está nossa presa - disse Hannah brandamente, enquanto se
aproximavam da ampla escada que descia ao nível principal.
—Seaton.
Dougald respirou fundo. Mal podia suportar a visão de Seaton, com suas
calças azuis xadrez, combinando com o colete e seu alfinete de gravata
roubado.
Seaton também os viu.
—Vejo que se encontraram - gritou. Observou o modo em que Dougald
sustentava o braço de Hannah e lhes proporcionou um carinhoso sorriso. - Se
tagarela muito que há dois pombinhos na região.
—Sei perfeitamente de onde sai o falatório - disse Dougald com uma
ênfase lenta e amarga.
Ainda consciente de seu encontro a meia-noite, Seaton se moveu a um
lado.
—Não sou o único fofoqueiro ao que convidaram a uma festa, sabe!
Hannah acariciou o braço de Dougald como se fosse um cão que
precisasse ser domesticado.
—Claro que não, Seaton. Mas você é o melhor.
—Bom, sim - murmurou Seaton olhando de esguelha para Dougald.
Hannah prosseguiu.
—Lorde Raeburn estava se perguntando quem teria dado a você a nota
que escrevi.
—Uma das donzelas - respondeu Seaton.
—De onde a tirou?
Seaton abriu exageradamente os olhos.
—Você a deu, suponho.
Dougald reatou o interrogatório.
—Por que a donzela não me entregou isso diretamente?
—Disse que a senhora Trenchard queria que trabalhasse dentro e ambos
estavam fora.
—Aceitou de bom grado me entregar isso para ter a oportunidade de lê-la
- interveio Dougald bruscamente.
Seaton não se ofendeu o mais mínimo.
—Um homem tem que saber o que acontece a seu redor.
Dougald odiava fazer aquilo, mas não tinha outro plano. Seaton lhe dera
uma pista e Dougald responderia. Precisava encontrar ao assassino antes que
a rainha Vitória chegasse.
—Quer saber o que está acontecendo? - perguntou em seu tom mais rude
e aborrecido. - Eu te direi o que está acontecendo. Não estou satisfeito com o
modo em que a senhora Trenchard preparou a capela.
—OH, Dougald! - Hannah lhe deu um apertão no braço.

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—A... capela? - Seaton inclinou a cabeça.


—Sim, a capela - repetiu Dougald. - Tem que estar perfeita para a visita de
amanhã de sua majestade.
—Como sabe, sir Onslow, eu conheço pessoalmente sua majestade. -
Desta vez Hannah estava alardeando descaradamente, mas com um propósito.
—A rainha Vitória desejara rezar uma oração e não podemos nos sentir
envergonhados por nosso templo.
—Querida, querida - disse tristemente Seaton. - Temo que a velha senhora
Trenchard está nos falhando. Já sabe que teve esses ataques.
—Faz muito tempo que os sofre? - perguntou Hannah.
—Anos, mas estão se agravando. - Seaton deu uns leves golpes no próprio
peito. - O coração, suspeito, mas não deixará suas tarefas. Salvo a de cuidar
das tias. - Deu de presente a Hannah um sorriso.
—Então deve estar agradecida a você, senhorita Setterington.
—Nunca me expressaram gratidão de semelhante maneira - replicou
Hannah.
Dougald se apressou a falar.
—A senhora Trenchard limpou tudo ela mesma, mas a primeira coisa que
farei amanhã pela manhã é ordenar aos trabalhadores que substituam os
painéis da parede que estão podres. Logo todas as donzelas e os criados
polirão cada banco, cada degrau, cada candelabro. - Dougald deu um
empurrãozinho carinhoso em Hannah para que se encaminhasse para a oficina
das tias.
—Mas Seaton, confio em sua discrição. Sobretudo que a senhora Trenchard
não se inteire do que planejei.
—Não o direi!
Dougald e Hannah observaram Seaton descer pela escada.
—Me pergunto quanto demorará para ir buscá-la - murmurou Hannah.
—Se eu gostasse de apostar, eu diria que em menos de uma hora.

Durante uma hora Dougald e Hannah, as tias e Charles ficaram sentados


esperando na escuridão. Também Seaton, que já se inteirou do descobrimento
do cadáver de Alfred aos pés da torre, e quando foi se encontrar com Dougald
se deu conta que tinha um assento de primeira fila para o maior escândalo
acontecido desde que o marquês de Bersham descobrisse que sua mulher era
bígama.
Dougald o permitiu se aproximar - temia o que Seaton pudesse fazer se o
deixasse acampar a suas costas, - mas Dougald o ameaçou de esquarteja-lo se
bisbilhotasse muito.
Todo mundo se sentava no extremo mais afastado da capela, à direita,
longe do muro com os vitrais. Dougald notava o banco duro sob as nádegas e
embora tivessem enfaixado sua ferida, ainda sentia dores agudas no ombro.

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Christina Dodd
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Hannah se reanimava intranquila a seu lado. Ele se perguntava o que


pensariam as tias depois que Hannah lhes tivesse pedido que ficassem ali sem
falar até que acontecesse algo, sem que tivesse explicado o que.
Também se perguntou por que deixara que Hannah o convencesse que
convidassem às tias. Teria preferido fazer tudo aquilo sozinho, mas ela parecia
se obstinar em que as damas anciãs os acompanhassem.
Todos aqueles preparativos pressagiavam o desastre, mas tomou a
precaução de dar uma arma a Charles.
O próprio Dougald estava alerta, como um guerreiro imóvel aguardando a
batalha.
—Que acredita que vamos descobrir? - murmurou ao ouvido de Hannah.
Ela respondeu igual de baixinho.
—Papéis de algum tipo. Lembranças. Possivelmente inclusive um
certificado de casamento.
Talvez ela tivesse razão. Depois de tudo, não tinha outras respostas.
Ao final, Hannah adormeceu com a cabeça recostada em seu ombro. Uma
das tias roncava sonoramente.
O relógio do grande salão deu as nove. O toque de silêncio dos criados
começara quando Dougald viu a débil luz de uma única vela e ouviu os passos
vacilantes de uma mulher.
Sacudiu Hannah ligeiramente para que despertasse. Alguém deve ter feito
o mesmo com a pessoa que roncava, pois os roncos cessaram com um bufo.
A senhora Trenchard entrou. A única chama iluminava seu rosto e Dougald
se deu conta que suas antigas faces gordinhas estavam agora descarnadas.
Vestia um traje negro e um avental, e se movia como uma mulher que tivesse
muito clara sua missão, uma mulher que conhecia tão bem a capela à luz do
dia como às escuras.
Comovido, Dougald caiu na conta que sua mulher devia estar certa. A
senhora Trenchard fora para se desfazer das provas. Mas que provas? Que
papel ou lembrança podia ser tão importante para matar a tantos lordes?
Tudo estava em perfeito silêncio. A única vela de pouco servia para
iluminar a escuridão. A senhora Trenchard não parecia ter descoberto a quem a
estava observando. Toda sua atenção estava centrada em um só lugar, na
parede esquerda perto do altar. O lugar onde golpearam Hannah lhe fazendo
perder os sentidos.
A senhora Trenchard se ajoelhou. Colocou a vela no chão junto aos joelhos.
Tirou uma pequena alavanca de um bolso e a inseriu sob o deteriorado painel
de madeira até arrancá-lo. Levantou a vela e iluminou as curvas da parede, e
em seu interior, Dougald pôde ver uma caixinha de madeira.
Já tinha o bastante. A mulher devia ter enlouquecido. Era o momento de
capturar a criminosa e acabar com a série de assassinatos que escureciam o
castelo Raeburn.

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—Senhora Trenchard, o que você está fazendo? - disse com voz lenta e
paciente.
A mulher soltou uma exclamação de surpresa, logo se voltou tão depressa
que Dougald piscou atônito. Sustentava a vela em alto e na outra mão
empunhava uma pistola, com a que apontou a ele... e a Hannah.
Seaton ficou a coberto.
As tias lançaram outra exclamação.
Hannah tentou se interpor entre Dougald e o cano da pistola.
Ele a empurrou para pô-la atrás dele.
Com uma voz tremula, tia Spring perguntou:
—Judy, foi aqui onde enterrou a meu bebê?

Capítulo 28

A vela começou a tremer e a senhora Trenchard baixou a arma.


Dougald relaxou os músculos doloridos pela tensão. Já lhe dispararam uma
vez aquele dia e com isso era o suficiente.
Tia Spring ficou em pé e se aproximou da senhora Trenchard. Se ajoelhou
junto à parede e tocou a caixa marrom.
—Meu bebê está dentro?
—OH, santo céu! - sussurrou Hannah enquanto se afundava em seu
assento.
A um gesto de Dougald, Charles correu ao escritório para trazer mais luz
e, quando retornou, os dois candelabros que levava iluminaram o lugar.
Seaton ficou em pé, com as costas apoiada contra a parede do fundo
como se acabasse de perceber que, depois de tudo, não queria ser testemunha
daquela cena. Tia Isabel se sentou, com os olhos fixos na amarga cena e o
lenço sobre a boca. Tia Ethel chorava sem fazer ruído. A senhorita Minnie se
aproximou de tia Spring como se tentasse emprestar sua fortaleza à minúscula
idosa.
—Se... senhorita Spring? - gaguejou a senhora Trenchard. - O que você
está fazendo aqui?
—Vim porque Hannah me pediu, Judy. A querida moça queria que
estivesse aqui e agora sei por que. - Tia Spring lhe sorriu docemente. - Sempre
quis saber o que aconteceu com meu bebê.
Me alegro que ela descanse aqui, na capela de minha família. Judy, a pôs
aqui?
A senhora Trenchard olhou as penalizadas, acusadoras e horrorizadas
caras a seu redor e logo fixou o olhar em tia Spring.
—A coloquei aqui. Sim, coloquei aqui.

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Tia Spring tirou a pistola da mão da senhora Trenchard e, sem olhá-la, a


passou à senhorita Minnie.
—Sempre foi tão boa comigo!
Dougald pegou a pistola das mãos da senhorita Minnie e a descarregou
com cuidado.
—Eu não queria ser boa com você - disse a senhora Trenchard a tia Spring.
- Você não gosta de nada.
—Sei. - Tia Spring resgatou a vela das trêmulas mãos da senhora
Trenchard e a deixou no banco. - Mas, mesmo assim, foi boa comigo.
A senhora Trenchard retorcia o avental com suas grandes mãos
danificadas pelo trabalho.
—Minha mãe me obrigava a ser boa com você.
—Sua mãe era uma mulher adorável.
—Não admira que pense isso. - A senhora Trenchard parecia abatida,
acovardada ante a pequena tia Spring. - Ela a queria mais que a mim.
—Isto é horrível. - Hannah se adiantou para deter a senhora Trenchard.
Tia Spring lhe fez um gesto para que se afastasse.
—Sente-se, Hannah.
Sua voz era firme, em nada se parecia com a tia Spring que Dougald
conhecera.
Hannah se sentou.
A senhorita Minnie assentiu e lhe dirigiu um compungido sorriso.
—Sua mãe me mimava porque eu não era esperta como você. - Tia Spring
acariciou o ombro da senhora Trenchard. - Como eu a invejava por sua altura e
sua força!
Dougald caiu na conta de que, embora tia Spring pudesse ser um pouco
esquecida, compreendia mais do que ele acreditava. Se sentou junto à Hannah.
—Não, senhorita Spring, não tinha por que. Não tinha por que me invejar
nada. - A senhora Trenchard respirou pesadamente. - Cresci ouvindo todo o
tempo:
"Ajuda à senhorita Spring. Dê à senhorita Spring. Não incomode à
senhorita Spring."
—Que cansativo deve ter sido para você - disse tia Spring com voz
apaziguadora.
—Quando fui o suficiente velha, parti e me casei.
—O senhor Trenchard parecia um homem agradável. - Tia Spring levantou
as sobrancelhas com expressão interrogante.
—Foi uma decepção - disse sinceramente a senhora Trenchard. - Não me
tirou daqui. Simplesmente vadiava todo o dia e me dizia: "Faz feliz à senhorita
Spring. Assim não terei que trabalhar."
De modo que então tinha a duas pessoas me dando ordens todo o tempo.
A minha mãe e ao Trenchard, usando a mim e adorando a você. Você ficou

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mais velha. Tinha trinta e dois anos e não podia encontrar marido.
Me consolava pensando que você ficara para titia. Eu tinha um homem,
mas para o que me servia? Então você... você conheceu o senhor Lawrence.
Era bonito, forte e valente.
Tia Spring sorriu ao recordá-lo.
—Sim, era.
—Tudo o que eu não tinha. Guardava muito ressentimento contra você, um
ressentimento que me roia as vísceras. Me alegrei de dispor seus encontros
secretos.
—Agradeço sua ajuda.
—Já sei. Você só via bondade em mim.
—Querida?
—Não. Não fui boa. Só esperava que seu irmão os surpreendesse e a
jogasse do castelo. Em troca, sabe o que aconteceu? O senhor Lawrence lhe
fez um filho. - A senhora Trenchard levou a mão aos olhos e soluçou.
—Eu não podia ter filhos. Em todos aqueles anos de casamento, meu
corpo nunca germinou. Mas você... sua gravidez avançava cada dia mais. Sua
senhoria, seu irmão, enviou o senhor Lawrence à guerra, mas mesmo assim
você seguia sendo feliz, acariciando o segredo de seu ventre. Você estava
radiante de felicidade, e nem sequer a perspectiva de sua desonra
compensava minha infelicidade.
As lágrimas discorriam pelas rosadas e enrugadas faces de tia Spring.
—Judy, você não é a responsável pelo que ocorreu.
—Eu lhe desejava o pior. Queria que toda sua felicidade se acabasse.
Os gelados dedos de Hannah se fecharam convulsivamente nos de
Dougald, que segurou suas mãos e as esquentou entre as dele.
—Se desejar algo mal pudesse pôr fim a uma gravidez, Trenchard, teria
muitas mulheres sem filhos - comentou a senhorita Minnie.
A senhora Trenchard pareceu não ouvi-la. Só falava com tia Spring e só
escutava a ela.
—Foi minha culpa. Eu não fazia mais que odiá-la. Imaginei que morria e o
bebê também, em lugar disso, chegou a notícia da morte do senhor Lawrence.
Eu não queria lhe fazer mal.
Tentei que tudo voltasse para seu lugar. Seriamente, mas a notícia a
impressionou tanto que perdeu ao bebê.
—Judy, querida, não foi sua culpa. - Tia Spring tentou abraçar à senhora
Trenchard.
A senhora Trenchard escapou dando um passo atrás.
—Ajudei minha mãe em seu parto. Deu a luz uma doce menina,
perfeitamente formada, mas muito pequena para viver.
—Recordo. - A voz de tia Spring tremia.
—Minha mãe me deu isso para que a enterrasse. Disse que a enterrasse

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em terra sagrada para que fosse ao céu, mas que a escondesse para que
ninguém descobrisse jamais sua existência.
Disse que se o fazíamos bem, ninguém nunca conheceria sua desonra, e
poderia se casar e ser feliz.
—Mas eu não podia me casar com ninguém. - Tia Spring enxugou as
lágrimas com dedos trêmulos. - Amava Lawrence, e ele estava morto.
—Eu fracassei. Envolvi ao bebê, o meti em minha caixa de costura e o
trouxe aqui. Pensei que estaria seguro. Protegi o bebê de qualquer um que
tentasse descobri-lo. Protegi a você, senhorita Spring.
—Por fim a senhora Trenchard levantou a vista de tia Spring e lançou um
olhar desdenhoso a Hannah. - Mas essa bastarda intrometida encontrou o
lugar!
Hannah se equilibrou para a senhora Trenchard.
Dougald a segurou pelo braço.
Como se nada tivesse ocorrido, a senhora Trenchard acabou:
—E agora, por culpa dela, você nunca se casará. Nunca será feliz.
Hannah se acomodou em seu assento, mas a sacudiam tremores
esporádicos, como se lhe tivessem disparado nas vísceras.
Dougald nunca a vira reagir com tanta veemência, mas tampouco antes
ouvira ninguém chamá-la bastarda.
—Está louca - murmurou para Hannah. - A ninguém importa do que a
chamou.
—A mim sim. - Hannah o olhou fixamente, logo afastou a cara. - Louca ou
não, sim me importa.
Tia Spring agarrou as mãos da senhora Trenchard nas suas e a olhou aos
olhos.
—Judy, querida, matou a todos os condes de Raeburn?
—De modo que compreende - murmurou Dougald a Hannah.
—Pobre tia Spring - respondeu Hannah com um sussurro. - Ter que
confrontar isto agora.
A senhora Trenchard respondeu a tia Spring sem vacilação.
—Eu não matei a todos. Não matei nem a seu irmão nem aos filhos de seu
irmão. Mas aos outros dois, sim. Iam destroçar a capela para restaurá-la. Não
podia permitir.
—Judy, matar às pessoas é algo mau, muito mau - disse tia Spring.
—Sei. - A senhora Trenchard parecia impaciente com a amável instrução
de tia Spring. - Mas já estava condenada por matar Lawrence e ao bebê. Que
importavam outros?
Tia Spring sacudiu os dedos da senhora Trenchard.
—Tem que me prometer que não voltará a matar nunca mais, nem sequer
por meu bem.
A senhora Trenchard assentiu.

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—Não o farei, senhorita Spring.


—Agora, Judy, acredito que deveria ir descansar.
—Sim, preciso descansar. - Se movendo com a lenta letargia de uma velha
arpía, a senhora Trenchard se levantou do chão e se foi.
Na capela reinou um silêncio assustador e triste.
—Não devia me intrometer - murmurou Hannah finalmente.
—Não tinha outra escolha. - Dougald se voltou para ela. - Me nego a que
me assassinem pela razão que seja.
A vela transformou o cabelo de Hannah em ouro fundido, deu a seus olhos
um ar de mistério e a tocou com um fulgor etéreo. Mas Hannah não era etérea
e os problemas que existiam entre eles não se resolveriam tão facilmente.
Precisavam falar.
Dougald não queria. Embora fosse fácil cuspir as verdades em um
momento de ira, aquela conversação tiraria à luz verdades, confissões e
inclusive emoções dolorosas.
Mas se não se comunicassem, voltariam a se separar. E isso era algo que
ele não podia suportar.
Hannah levantou a cabeça, com os olhos abertos e alarmados.
—Dougald, o que ocorre?
—Temos que...!
—Lorde Raeburn, não deveria enviar alguém para que prendesse à
senhora Trenchard? - perguntou Seaton em voz alta e nervosa.
Dougald sentiu vontade de sacudir Seaton. Aquela noite queria estar livre
de suas obrigações como senhor do castelo Raeburn.
Durante umas horas, queria ficar a sós com sua esposa para falar e logo,
se tudo fosse bem, a encheria de prazer até se fundir com ela para sempre.
—Essa mulher matou aos dois condes de Raeburn - insistiu Seaton. - Tem
que prendê-la.
Dougald olhou às tias. A senhorita Minnie, tia Ethel e tia Isabel se
sentavam no chão junto a tia Spring. Tia Spring, que fora o catalisador de
tantos acontecimentos horríveis, e que agora chorava por seu bebê, seu amor
perdido e sua velha amiga. Dougald olhou para Charles, que sustentava ainda
dois candelabros e parecia tão horrorizado pelos emotivos acontecimentos
como só Charles podia parecer.
Olhou para Hannah, cujas lágrimas ainda tremiam nas pontas das
pestanas. E pensou na velha mulher alquebrada que inclusive agora descia os
degraus de pedra que conduziam à cozinha.
Dougald era o senhor. O bebê devia ser tirado dali e colocado em um
ataúde adequado. Teriam que chamar o capelão para que se ocupasse de tia
Spring.
A senhora Trenchard... teria que decidir o que fazer com a senhora
Trenchard. Aquela noite, Dougald não podia evitar suas obrigações.

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Sua conversação com Hannah teria que esperar.


—Charles, pode seguir à senhora Trenchard?
Charles colocou o candelabro em uma mesa e saiu apressadamente da
capela.
—Não tem por que se preocupar. A senhora Trenchard não te fará mal, e
duvido que vá escapar antes da manhã - disse Dougald a Seaton.

Capítulo 29

Os funerais tinham acabado. Os enfermos se foram. Só ficavam as flores


com seus caules caídos e seu aroma murcho. As flores, Dougald e Hannah.
Se sentavam um ao lado do outro, sós na capela, sem se tocar, enquanto
o incômodo silêncio se alongava tanto que Hannah se perguntou se seria capaz
de simular uma emergência e escapar pela porta.
—Um dia triste - comentou Dougald, por fim.
—Não sei. Hoje enterraram algo mais que o bebê da senhora Trenchard e
tia Spring - disse Hannah, agradecida que Dougald tivesse falado por fim.
Dougald se voltou para ela, com as sobrancelhas arqueadas e a cara
pálida.
—Que mais?
Hannah se deu conta que, depois dos acontecimentos da noite anterior - o
descobrimento do pequeno ataúde, a confissão da senhora Trenchard, o
desmaio que sofrera, sua funesta queda pela escada,
—Dougald tinha motivos para se alarmar ao ouvir que enterraram alguma
coisa mais sem seu conhecimento.
—Só me referia que a tia Spring, e a todas as terras de Raeburn, tiraram
um peso de cima. O mistério está resolvido, a mancha dissolvida e amanhã
será outro dia.
—Sorriu-lhe com a esperança de que lhe devolvesse o sorriso. - Amanhã
receberemos à rainha da Inglaterra.
—Graças a você, querida. - Dougald não sorriu e seu elogio formal a
deixou gelada. - Porque você escutou quando tia Spring falou de seu amor
perdido.
Dougald vestia um traje negro e tinha uma expressão implacável. A
relaxação que reinava entre eles na noite anterior se esfumou e ela não sabia
por que.
Vira a transformação de Dougald na capela aquela noite. A esteve olhando
concentrado, prestando atenção só a ela. Então Seaton falara e o Dougald que
a segurava pela mão, que a escutava quando falava, que respeitava sua
opinião, se esfumou. Em seu lugar aparecia o antigo, remoto, responsável

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Dougald, senhor da herdade e mestre da organização.


Se arrependeria do que lhe dissera ontem? Das verdades que revelara? Ela
disse algo que tivesse feito Dougald pensar no muito que se arrependia de seu
casamento?
Tentava lhe dizer que se fosse naquele mesmo dia?
Por sua parte, Hannah se comportava como qualquer esposa que
estivesse a ponto de ser repudiada. Se sentava serenamente, com as costas
reta e as mãos no colo, e se esforçava por pôr uma expressão agradável.
Em resumo, se comportava com dignidade e graça.
—Tia Spring é um pouco desorientada, mas não está louca. Ontem à noite
chorou sobre ambos os cadáveres, hoje os enterrou no panteão familiar, e logo
estará acima com as demais tias dando os toques finais à tapeçaria.
—Então você gosta de minha tia Spring? - perguntou Dougald.
—Muito. - Hannah observou como o sol da tarde filtrava seus raios através
dos vitrais de cores e riscava raias escarlates e douradas no traje negro de
Dougald e em seus queridos traços.
—As tias são adoráveis, e nenhuma delas pareceu especialmente
surpreendida pelo relato do bebê de tia Spring.
—Ela o tinha contado.
—Isso não é o tipo de coisas que conta uma mulher. É difícil falar de algo
tão doloroso, mas a verdade está aí se você a escuta.
—Está dizendo que eu não escutei? - perguntou ele, bruscamente.
Aquela atitude tão à defensiva surpreendeu muito a Hannah.
—Não de tudo.
—Provavelmente é certo. Meu pai nunca escutava e eu tive que me
esforçar por ser como ele. Até recentemente fora bastante bem. - se inclinou
para frente, com os cotovelos apoiados sobre as coxas, e contemplou o altar.
—Minha avó te explicou alguma vez algo sobre meu pai e eu?
Hannah ficou sem respiração. Dougald ia falar dele, do passado, a ela.
—Não, em realidade, quando lhe perguntava, me dizia que seu pai era um
santo e que, como filho de santo, você foi um santo - repôs, se esforçando em
manter um tom humorístico.
Dougald riu, como se supunha que devia fazer, mas não a olhou.
—Seguro. Minha avó acreditava que sua função na família era a de
pacificadora e criadora de ícones, e se precisava mentir para cumprir seu
dever, seria uma mentira bem intencionada.
Hannah se fixou nas mãos de Dougald. Estavam crispadas e tinha os
nódulos brancos da tensão. Era-lhe difícil, tão difícil, que lhe deu vontade de
dar uns tapinhas na mão e dizer que não se preocupasse.
Mas não o fez. Ele queria lhe dizer algo. Na realidade desejava manter
uma conversação que não se visse interrompida por uma briga ou uma ferida
de bala.

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—Eu já suspeitava que não era o santo que sua avó pretendia - disse
Hannah.
—Não terá que falar mal dos mortos, mas tive minhas razões. - Sua boca
recuperou a habitual dureza.
—Não me lembro de minha mãe. Minha avó me deu todo o afeto, mas
meu pai era um tirano que não sentia nenhum amor por mim nem nenhum
interesse pelo que eu fazia, salvo aquilo que contribuía positivamente para
elogiar o nome da família.
—De modo que se rebelou.
—Já ouviu os rumores.
—Alguns - admitiu. - Faz anos, e mais recentemente de boca de Seaton.
—Seaton. - Dougald sorriu, mas não com simpatia. - Se ele tivesse
conhecido os detalhes, teria jantado fora durante anos.
—Tão horrorosos são os detalhes?
—Meu pai insistia no trabalho duro e na abstinência. Eu zombava dele.
Minha avó não deixava de dizer tolices sobre a honra da família e a tradição.
Eu o odiava. Tudo o que dizia me parecia passado de moda e restritivo.
Eu sabia o que queria, e não era a vida de um homem de negócios,
sempre com seu traje negro e a gravata ao redor do pescoço. - Muito sério,
Dougald tocou a própria gravata tão formalmente atada.
—Não, minha família era rica, então eu queria me dedicar à boa vida.
Quando tinha quinze anos, cada noite bebia até perder o sentido, fumava
charutos até cheirar mal e visitava as mais refinadas prostitutas.
Era todo um homem, um homem duro.
Hannah não podia imaginar Dougald levando uma vida tão desenfreada.
Levantou o olhar para topar com o olhar incrédulo de Hannah fixo nele e
acrescentou:
—Até que meu pai cortou a mensalidade.
Hannah fez uma careta.
—Não podia acreditar. Não podia acreditar que tivesse feito aquilo comigo.
O odiava tanto.
—Compreendo.
A olhou fixamente.
—Você?
—Eu também tive um pai - se explicou. - Ele não se casou com minha
mãe.
—Talvez quis, mas não pôde desafiar a seus pais.
—Os avós que conhecerei amanhã.
Quase desejou poder evitar esse encontro até que tivesse desenvolvido
mais confiança em si mesma, um espírito mais forte, ou que ao menos o pior
de sua tormenta emocional tivesse passado.
—Grande casal fazemos! - disse Dougald em seu tom mais pessimista.

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—Não o diga tão alegremente!


Não respondeu não a sua jocosidade.
—De modo que retornou a casa?
—Eu? Eu não. Meu pai estava tentando que retornasse de joelhos. E eu
estava decidido a que não o conseguisse.
Hannah imaginava ao Dougald, mais jovem, se engasgando de orgulho.
—Vivia com seus amigos?
—Quando o dinheiro da família se acabou, não ficou nenhum amigo.
Não parecia amargurado, mas a deserção de seus amigos deve ter
ensinado ao jovem uma brutal lição.
—O que fez?
Dougald dirigiu a Hannah um olhar de soslaio.
—Afundei. Era um canalha de primeira ordem. Dirigia um bando de
valentões.
Brigávamos contra outros valentões, atacávamos a qualquer dandi o
bastante louco para se aventurar a sair depois de que escurecesse e
roubávamos qualquer coisa que tivéssemos à mão, e, quando me pegaram?
—Sua voz se extinguiu.
O coração de Hannah deu um salto. Enforcavam aos ladrões!
—O pegaram?
—O magistrado teve que me mostrar a forca antes que me rendesse e
enviasse uma mensagem a meu pai, - se endireitou e com total
inexpressividade acrescentou: - Meu pai morreu da impressão. Levou a mão ao
coração e desabou.
Hannah se sentou melancólica e tentou imaginar como influenciara o
sentimento de culpabilidade em um moço impressionável.
—Charles pagou ao magistrado um suculento suborno e me tirou do
cárcere. Me levou a casa para ver meu pai, e ali estava, no ataúde.
—Que horror! - sussurrou.
Dougald ficou olhando as flores, que murchavam no vaso.
—Os funerais sempre me fazem pensar em meu pai.
Hannah por fim compreendeu tudo.
—Culpa a si mesmo por sua morte.
—E com certa razão.
Os cabelos de Hannah se puseram de ponta de indignação.
—Claro que com certa razão, mas não foi sua culpa! Era só um moço. Ele
devia ter mostrado coragem, e se em um primeiro momento não o conseguiu,
teria tido que insistir.
Deveria ir te buscar e convencer que retornasse. Ele triunfara como
empresário. Teve que ser um golpe para seu orgulho. Em lugar disso morreu
sem sequer te ver.
Dougald a olhou, com a boca torcida em um sorriso pícaro.

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—Por isso sempre colabora com os orfanatos, e encontra trabalhos


decentes para os homens das ruas e as mulheres dos asilos?
—Tenho muito que reparar.
—Já me parecia que ocultava uma veia bondosa. - Apoiou a cabeça sobre
seu ombro, logo ficou muito rígida. - Entretanto, sempre foi um homem de
negócios implacável.
—Porque queria ser melhor que meu pai, sim. Mas também tinha
dezesseis anos quando tomei as rédeas do negócio. Se não tivesse sido
desumano, os "amigos" de meu pai teriam me apagado do mapa.
Hannah tentou falar. Precisava falar, lhe contar o que descobrira naqueles
últimos dias.
Mas ele interpretou mal sua tentativa.
—Não tente me dizer que, se tivesse sabido, teria ficado. Não o teria feito.
Eu estava decidido a superar meu pai em todos os aspectos possíveis, incluído
o de besta desumana.
Com o tempo a teria afugentado - disse Dougald com profunda
sinceridade.
Hannah tentou voltar a falar.
Mas ele fez gestos para que se calasse.
—Você era muito jovem para me dirigir. Não tinha mãe nem amigos nem
ninguém que te dissesse o que devia fazer ante um homem cabeça-dura e
estúpido. Não devia me casar com você sendo você tão jovem.
Esse foi meu engano.
—Maior engano que me mentir sobre minha boutique? - soltou ela por fim.
Dougald ficou olhando-a e quando observou sua impaciência pôs a mão no
seu ombro e se recostou no banco.
—Começa a me doer a ferida!
—A mim também.
Dougald ficou direito.
—O tornozelo?
—Não. - Desta vez tocava a ela voltar a cara à frente e falar para as flores.
- A ferida que me infligiu quando disse que o abandonei sem tentar salvar
nosso casamento.
—Ah! - Dougald tentou apagar a dor de Hannah e assumir toda a
responsabilidade. - Formava parte de meu plano para te afastar.
—A parte apoiada na realidade. - Hannah voltou a olhar para ele. - Não me
minta, Dougald. Reconheço a verdade imediatamente. Passei muitos anos
tentando justificar minha fuga ante mim mesma. Sabia que fizera mal.
—Era jovem.
—Outras mulheres contraíram votos matrimoniais aos dezoito anos e os
mantiveram. Fui porque queria ir antes de estar grávida de seu filho.
Dougald deu um salto, quase como se o tivesse alcançado outra bala.

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—Parece razoável.
—Sim. Sim, era. Mas o certo é que, sob meu ingênuo assombro, se
moviam os fantasmas de meu passado. Sempre me sussurravam ao ouvido. -
Com um tremulo suspiro admitiu:
—Nunca acreditei que nosso casamento durasse.
O rosto de Dougald se converteu na fria máscara do homem de negócios e
o senhor de Raeburn.
—Já vejo.
—Não, não entende. Você e eu não podíamos estar pior emparelhados.
Você, com tanto que demonstrar. Eu, sabendo que nenhum homem me
quereria eternamente.
A máscara dele caiu, deixando ver um homem confuso.
—Que não a quereria? Eu a queria todo o tempo. Tanto que me dava
vergonha. Temia perder o controle. Não sabia?
—Não, e se tivesse sabido, não teria servido de nada. O que eu tinha
vivido era que nenhum lar no mundo durava. Não para mim.
—Eu permiti que Charles dirigisse nosso lar, então nunca foi seu lar.
—Mas você tinha razão ao dizer que podia ter enfrentado a ele e ganhar.
Tinha as armas. Só que pensei que não fazia sentido. - Hannah ouvira o relato
de Dougald, lhe comovera a verdade, e queria lhe oferecer a verdade em troca.
Mas era duro. Doía como doem as antigas lembranças. Mesmo assim, falou,
sem fazer caso do tremor de sua voz.
—Minha mãe... você conheceu minha mãe.
—Uma boa mulher.
—Sim, e me criou o melhor que pôde. Me rodeou de amor. Tentou me fazer
orgulhosa e forte, mas teve que me deixar enquanto ia trabalhar. - Tentou lhe
sorrir.
—Sabe?, as primeiras palavras que lembro ter ouvido foram: "Né,
bastarda, deixa isso!" Minha babá não se recordava de meu nome. Tampouco
se recordava do de seus filhos. Então eu fui: "Né, bastarda!"
Dougald se agarrou ao banco que tinham à frente.
—Sua mãe sabia disso?
—Claro que não, e não o contei. - Recordou as vezes que desejara contar
mas reconhecera a carga que sua mãe levava . - Que outra alternativa lhe teria
ficado?
—Nenhuma. - Dougald franziu o cenho. - Mas não entendo o que tem isto
a ver com nosso casamento. Nunca me preocupou que fosse legítima ou não.
Eu nunca a reprovei isso. Teria matado a qualquer um que o tivesse feito.
—Por mim? - Endireitando a coluna, Hannah lhe expôs a difícil pergunta: -
Ou porque ninguém devia caluniar sua esposa?
—Por você... por que... nunca? - Gaguejou até se calar. - Eu... não sei,
Hannah. Inclusive naquele tempo, quando era um jovem egoísta, nem tudo o

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fazia por orgulho.


Mas... mas me importa um nada o que outros possam pensar de você. A
única coisa que me importa é o que eu acredito, e eu acredito que é uma
mulher extraordinária.
Hannah gargalhou um pouquinho.
—Agora eu acredito também.
—Que é uma mulher extraordinária?
—Que não se importa o que pensem outros.
—Então acredite nisto também: só uma mulher extraordinária poderia ter
me feito desistir de minha planejada vingança.
Uma boa declaração, uma declaração que ela entesouraria. Dougald
resplandecia de sinceridade, com mais brilho que as cores do vitral. Estava
orgulhoso dela e, se o desejava, podiam deixar de falar já.
Já disseram muito. Hannah não tinha por que contar-lhe tudo. Não
precisava revelar todas as vergonhosas evocações.
—Sei quem sou - repôs. - Sei o que tenho feito. Conheci e abandonei a um
flutuante empresário em um mundo de homens. Me dou conta que cresci e não
sou a mesma garota que abandonou a você e a nosso casamento.
Dougald fora tão valente que ela não podia ser menos. Não se separaria
dela se lhe mostrava os horríveis segredos que guardava encadeados na
masmorra de sua alma? Se separaria dela?
Quis rir, mas se conteve. Talvez seus horríveis segredos não residissem em
sua alma, a não ser em suas vísceras, pois tinha espasmos no estômago que
protestava quando se dispôs contar a verdade.
—Diz que sou extraordinária, se você o diz, não vou discutir com você.
—Esta é minha Hannah - aprovou Dougald.
Quando descobrisse quem era realmente, provavelmente lhe daria as
costas. Umedecendo os lábios, Hannah concluiu:
—A maioria dos dias.
—Sabia que precisava haver alguma armadilha.
—Às vezes, alguém diz algo e todo o temor e a culpabilidade me assaltam
como uma onda. Quando era uma menina, fazia amigos com muita cautela. Eu
gostava. Ríamos juntos. Comíamos juntos. Eu pensava "desta vez será
diferente" e logo ficavam contra mim assim que se inteiravam. - Hannah tentou
lhe olhar, mas embora tivesse tido com aquele homem a maior intimidade que
qualquer mulher pode ter, era impossível manter o olhar. Se deu conta que a
intimidade física não podia se comparar com o fato de compartilhar
pensamentos, lembranças, sentimentos.
—Não pode bater em um cão cada dia sem que mais cedo ou mais tarde o
ataque.
Dougald se reclinou para trás para observá-la com esse olhar enigmático e
cúmplice.

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—Ontem à noite pensei que ia saltar ao pescoço da senhora Trenchard.


Tinha a esperança que não o tivesse notado. Pobre Hannah! Dougald
notava tudo.
—Fazia muito tempo que não o ouvia: bastarda. Me chamou bastarda.
Tocou a testa, os lábios, a garganta. Com aqueles gestos revelava seu
nervosismo, mas não podia evitar. Precisava se mover, precisava sacudir a dor
de cima, ou toda sua velha ira cresceria nela.
Temia que a possuísse e voltasse a ser a jovem Hannah outra vez:
desesperada por agradar, temerosa de um rechaço, sempre em busca de um
lar e de uma família própria.
—Acreditava que o tinha superado. - Deixando cair as mãos no colo, disse
com uma voz grave e intensa:
—Mas quando a senhora Trenchard me chamou disso, só queria fazê-la
calar antes que todo mundo se inteirasse... antes que todos me dessem as
costas.
—Todos?, as tias não lhe dariam as costas. A adoram.
—Sei, sei! Mas não podia pensar, só queria brigar ou fugir.
—Ah! - Agora compreendia. - Como fez comigo.
—Temi que me fizesse mal. À medida que ia me apaixonando mais e mais
de você, me dava conta que quando me desse as costas minha dor seria
devastadora. - Agora lhe doía contar o vulnerável e assustada que esteve.
E saber que, com ele, ainda se sentia assim. - Quase me fez um favor
quando me negou a boutique. Meu sonho não estava destruído por completo.
Me deu a desculpa que andava procurando.
A desculpa para te deixar.
Dougald se levantou e voltou a sentar.
—Meu Deus, nunca teríamos podido estar juntos.
—Não. - Se alegrava que compreendesse a verdade e sabia que também
ela era consciente disso. Fora culpa de ambos o fim de seu casamento. - Antes
eu precisava aprender que podia fazer amigos, que não era somente a pobre
pequena bastarda que o mundo desprezava. Você?, você precisava aprender
que não queria ser como seu pai.
—Eu não aprendi que não queria ser como meu pai. Só aprendi que,
graças a você, não podia ser como ele. Como podia ser frio, indiferente, pouco
carinhoso, quando tinha a você que me replicava bruscamente e me
importunava e me levava aos picos da paixão? - Segurou carinhosamente as
mãos dela e as esfregou contra as suas. - Há um sábio refrão que diz que
nunca pode cruzar o mesmo rio pela segunda vez.
Pode voltar para a borda, no mesmo lugar, mas a água que ali estava já
fluiu até o mar. Nós estamos na borda de um rio e já estivemos ali, mas não é o
mesmo rio.
—Tampouco somos as mesmas pessoas. - Hannah lhe devolveu o apertão

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na mão. - Eu gostaria de voltar a cruzar o rio com você.


Um sorriso se expandiu pelo rosto de Dougald. Um sorriso aberto, um
sorriso que unia ao velho e encantado Dougald com o Dougald novo e
taciturno.
—Está me pedindo que me case com você?
Hannah ficou imóvel. Durante um momento recordou como ele maquinara
sua vingança contra ela. A lembrança de sua magoante diatribe surgiu na
memória e irrompeu como um drama no cenário de sua mente.
Se agora se rendia a ele, ele teria ganho. Seria sua para sempre, e ele
poderia feri-la quando tivesse vontade.
Mas o Dougald que segurava suas mãos teve fé nas crenças de Hannah.
Lhe mostrara como era ele no passado. Escutara quando ela falava. Embora
não compreendia, inclusive recebera uma bala que ia destinada a ela.
Precisava lhe devolver essa fé. Talvez não fosse amor ou só era paixão,
mas era Dougald, e Hannah queria a ele.
Assim respirou fundo e disse:
—Recorda quando me disse que queria que me apaixonasse por você para
poder me submeter a suas exigências como marido?
Dougald respondeu com receio.
—Sim.
—Bom... a metade de seu plano teve êxito.
Compreendeu imediatamente. A abraçou e a estreitou forte, apoiando a
face no cabelo de Hannah.
—Me fez mais feliz do que fui em toda minha vida. Eu gostaria de poder
esperar, - ficou em pé e a obrigou a se levantar com ele. - Venha.
A arrastou fora do banco e a levou até a parte dianteira da capela. A
colocou diretamente diante do altar e ocupou seu lugar ao lado dela.
Já esteve no altar com ele em outra ocasião. Então os bancos estavam
ocupados pelas melhores famílias de Liverpool, ela ia embelezada com um
vestido do mais delicado veludo azul, e um sacerdote ocupava o púlpito.
Nesta ocasião a capela estava vazia de testemunhas, vestia um vestido
negro de luto e só os dois sabiam o que foi dito naquele dia, mas compreendeu
o que ele se propunha.
Desta vez os votos seriam reais.
Segurando outra vez as mãos dela, se voltou para ela e a olhou à cara
durante um longo momento.
—Houve vezes durante esta semana que pensei que nunca voltaria a
amar. Despertava com a esperança de te ver. Me deleitava com a lembrança
de seu sorriso. Caminhava pelos corredores imaginando que você andava
comigo.
Minha alma sangrava cada vez que a via... o revoo da renda, o cetim de
seu decote, sua cintura fina, Dizia a mim mesmo que só a queria em minha

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cama, mas cada dia me aproximava mais à verdade.


A queria como esposa.
Hannah deveria ter se sentido radiante de triunfo. Tentara lhe fazer sofrer
e o conseguira. Mas Dougald já sofrera bastante em sua vida e ela não voltaria
a lhe fazer sofrer jamais.
Os olhos de Dougald eram solenes; a voz, profunda e vibrante.
—Quero falar com você. Quero te escutar. Quero caminhar com você e
sim, a quero em minha cama. Isso é o que quero hoje. Isso é o que quererei
dentro de cem anos. Se promete ser minha esposa para sempre, eu dobrarei a
sua felicidade. Por favor, Hannah, será minha?
Quis dizer que ele fora tudo para ela, seu guardião, seu amante, seu
marido. Durante anos ele era o homem de cuja lembrança fugia. Durante anos
fora o homem que ela recordava.
Desde que entrara no castelo Raeburn, ele fora seu justo castigo, seu
defensor, e nada mais e nada menos que seu homem.
Mas mal podia falar. A única coisa que pôde fazer foi lhe agarrar o rosto
entre as mãos e, o olhando à cara com os olhos cheios de lágrimas, sussurrar:
—Para sempre. Sou tua para sempre.

Capítulo 30

O trem tinha chegado. A rainha Vitória estava a caminho na carruagem


que havia trazido desde sua casa de Liverpool, e Hannah entrava no recém
construído vestíbulo da planta principal do castelo.
—Está chovendo. Como se atreve a chover hoje dentre todos os dias?
—Isto é a Inglaterra - replicou Dougald. - Sua majestade já se molhou
antes.
Hannah lhe dirigiu um olhar que dizia abertamente o que pensava sobre
seu senso comum, e esperou que as tias entrassem e ficassem em fila.
Dougald não sabia o que alegrava mais a Hannah, a perspectiva de dar de
presente a sua majestade a tapeçaria ou saber que seus avós estariam
presentes na recepção que seguiria a este ato.
Certamente desfilava de um lado a outro da fila de tias, lhes soltando um
discurso que teria orgulhado ao Nelson, e lhes passava revista uma a uma para
comprovar se vestiam apropriadamente.
As tias, benditas elas, estavam tão nervosas que o permitiam.
Dougald seguiu Hannah enquanto as beliscava, as punha direitas e em
geral lhes dava um susto de morte, e ao passar sorriu a cada uma delas.
—O veludo carmesim vai muito bem com sua constituição, tia Isabel. O
azul reforça a cor dos seus olhos, tia Ethel. Tia Spring - agarrou as mãos dela e

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as separou, - as florzinhas rosadas sobre a malha branca são tão alegres.


—Eu gosto - repôs tia Ethel. - Não acredita que é muito cedo, depois dos
funerais, não é?
Assistiram a dois funerais em um dia e uma celebração no dia seguinte
parecia um pouco peculiar.
—Acredito que os funerais são circunstâncias extraordinárias e a visita da
rainha é um momento especial.
A sua majestade não gostaria de ter a sensação que se intromete em
nosso luto, e nós não queremos que ela se sinta incômoda por uma situação
desnecessária.
—Isso eu disse a Spring, senhor - disse a senhorita Minnie.
—É muito sábia - respondeu Dougald. - E devo te dizer que está adorável
com essa seda cinza.
A senhorita Minnie alisou a saia.
—Faz anos que não a usava. Está um pouco antiquada.
—Mas, com o tipo que você tem, fica muito graciosa embora a moda seja
antiga.
Dougald olhou como as tias formavam um grupinho e riam e
conversavam; logo se aproximou do arco da entrada onde Hannah estava de
pé com os braços cruzados e os punhos apertados.
—Como o tem feito? - perguntou.
—O que? - Sorriu.
—Conseguir que relaxem. O estive dizendo, mas não me fizeram nenhum
caso.
—Não o entendo. - Acariciou uma mecha de cabelo dourado. - Te disse
quão formosa está hoje?
Hannah relaxou os punhos.
—Seu vestido é perfeito para uma visita da rainha. Nunca teria me
ocorrido que essa cor dourada combinasse tão bem com seu cabelo.
Um breve sorriso adornou os lábios de Hannah e baixou o olhar.
—Eu gosto.
—O brilho da seda contribui o toque de elegância preciso na moda severa.
—Sou alta. As rendas ficam ridículas.
—Tem um estilo maravilhoso. - A agarrando pela mão a conduziu até a
porta da rua, uma dessas portas de madeira duplas com uma janela superior e
outra a cada lado.
Depois de dar um tapinha no ombro dos criados que vigiavam o caminho,
Dougald disse a Hannah: - Imagine que é sua majestade e que acaba de entrar
no castelo Raeburn. O que pensaria?
Hannah olhou a seu redor e ele fez o mesmo. O meticuloso trabalho dos
carpinteiros, gesseiros e pedreiros não dava nenhuma sensação de ter se
acabado a toda pressa.

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O chão de mármore rosado se estendia com lisura do vestíbulo até a


madeira nobre do corredor principal. Os marcos de madeira lavrada brilhavam
de polidos que estavam, e a pintura de cor creme embelezava as paredes.
—É adorável - repôs Hannah.
—Acredito que deveríamos recobrir o interior dos arcos com folha de ouro,
quando tivermos tempo, claro.
Hannah levantou a vista.
—Sim.
—Estou especialmente satisfeito do detalhe de mármore da nova escada
exterior. É uma pena que sua majestade não perceba isso com a chuva.
Hannah agasalhou os ombros com o xale de franjas.
—Dougald, está tentando deliberadamente me tranquilizar?
Sabia que era muito esperta.
—Deu certo?
Por um momento, Hannah pareceu se debater entre a risada e a ira, mas
seu senso de humor ganhou a encarniçada batalha. Riu a contra gosto.
—É um patife.
—Um patife adorável.
—Deixa de sorrir. - Hannah olhou a seu redor. - Todo mundo vai se inteirar
do que estivemos fazendo ontem à noite.
—Deixa que se inteirem!
—Ainda não sabem que estamos casados.
—Isso eu gosto o bastante. Não havia feito nada ilícito desde... bom, da
última vez que o fizemos.
—Na semana passada.
Hannah pensou que o homem merecia se consumir de amor pelo modo
em que a tinha manipulado, embora fosse por uma boa causa, assim enquanto
se afastava se permitiu lhe lançar um olhar sedutor por cima do ombro.
Não teve ocasião de praticar os olhares de paquera, mas aquele pareceu
efetivo porque Dougald ficou direito, perdeu o sorriso e a seguiu a grandes
passos até o lugar onde se encontravam as tias.
—Estou tão emocionada - disse Hannah em um tom muito menos formal.
—Está segura que a sua majestade gostará da tapeçaria? - perguntou tia
Ethel pela quinta vez.
—É a tapeçaria mais maravilhosa que vi em minha vida - disse Hannah. -
Só um tolo não gostaria da tapeçaria, e a rainha Vitória não é nenhuma tola.
—Nós também estamos tão excitadas! - disseram as tias em coro depois
de intercambiar uns olhares.
Seaton dobrou a esquina derrapando.
—Chego tarde?
—Não - respondeu Hannah.
Ficou surpreendida olhando a vestimenta de Seaton. Enquanto outros

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homens vestiam cores circunspetas e sombrias para receber sua soberana,


Seaton passeava ostentoso como um pavão em uma combinação de
esmeralda, amarelo e azul escuro.
—Querida senhorita Setterington, me apresentará a sua majestade? -
suplicou a Hannah lhe fazendo sua melhor reverencia.
—Quando o protocolo o permita, sim. - O protocolo seria quando a rainha
Vitória necessitasse um pouco de entretenimento. - Mas possivelmente deveria
esperar no grande salão.
—Como quiser, senhorita Setterington! - repôs com olhos brilhantes,
estirando o colete de cetim xadrez.
Hannah sorriu quando se afastou.
—É encantador - exclamou.
—É um cretino - respondeu Dougald.
O criado que vigiava quase tropeçou quando chegou para anunciar:
—Senhor, estão aqui. Uma dúzia de carruagens, cheias.
Um grande revoo explodiu entre a servidão; a cada grupo lhe tinha
atribuído um posto e cumpriam tenazmente com sua obrigação esperando ver
sua rainha. O mordomo abriu a porta.
Os lacaios, com seu guarda-chuva, se apressaram a sair e descer as
escadas vestidos com seus melhores librés e sabendo que teriam a honra de
escoltar a algum membro da família real.
Um jovem muito afortunado fora escolhido para segurar o guarda-chuva
maior em cima de sua majestade a rainha, e tremia da honra que lhe fizeram.
Hannah pensava que a emoção só podia ser um modo de aliviar a tensão
para a família e para o pessoal.
A visita da rainha inadvertidamente distraíra a atenção da morte da
senhora Trenchard e do descobrimento da filha de tia Spring. Durante as
próximas semanas, só se falaria de sua majestade, da família real e da
recepção.
As tias correram a forma uma vez mais, e Hannah ocupou seu lugar à
frente dessa fila. Dougald não conhecia sua majestade, então Hannah saudaria
primeiro à rainha e logo o apresentaria.
Dougald estava sozinho de pé junto à porta aberta; era um atraente
homem alto e austero de uma dignidade inusitada e um aspecto físico
imponente.
Hannah sabia muito bem. Na noite anterior explorara cada músculo, cada
nervo, cada milímetro de sua pele. Realmente deveria ter dormido mais, mas
de que valia o sono quando se estava apaixonada?
—Sua majestade.
As palavras de Dougald, sua reverência, obrigaram Hannah a voltar a
centrar sua mente no vestíbulo, de onde nunca deveria se afastar.
A rainha deixou o casaco nas mãos do mordomo. Era uma mulher pequena

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de cabelo negro e pele branca, que estava somente a seis anos fazendo o
papel de rainha, mas já deixara rastro na nação.
Adorava seu marido, que adorava a seus dois filhos, e levavam uma vida
familiar exemplar. Na realidade, Hannah percebeu com assombro que sua
majestade voltava a estar grávida.
Hannah olhava com avidez o inchado ventre de sua majestade. Por algum
motivo, a gravidez lhe parecia um estado muito desejável.
Avançou e lhe fez uma reverência.
—Sua majestade.
—Senhorita Setterington. - Com um carinhoso sorriso, a rainha Vitória lhe
estendeu a mão. - Me alegro de voltar a vê-la.
O príncipe Alberto estava junto a ela e atrás dele se estendia uma fila de
infantes pelas mãos de suas babás, damas de companhia e cavalheiros da real
câmara, todos embainhados em seus casacos, que subiam pesadamente os
degraus, entravam no vestíbulo e jorravam no chão.
—Sua majestade, me alegro muito de voltar a vê-la. - Consciente que
precisava se apressar, para que todo mundo pudesse entrar, Hannah se voltou
para Dougald.
—Sua majestade, me permite lhe apresentar ao Dougald Pippard, conde
de Raeburn?
—Lorde Raeburn, me alegro de lhe conhecer.
A rainha Vitória caminhou para as tias. Dougald a acompanhou.
—É um prazer conhecê-la. Posso lhe apresentar às damas por cujo
trabalho você está aqui?
Hannah se afastou, mas observava com orgulho enquanto as tias
cativavam à rainha e ao príncipe Alberto. Os convidados continuaram
entrando, as tias conduziram à rainha Vitória para o grande salão onde
pendurava a tapeçaria acabada atrás de uma cortina e Hannah dirigiu aos
convidados e aos serventes para que a visita transcorresse com a maior fluidez
possível.
Ao final, notou que quatro dos convidados ficavam quietos a seu lado. Se
voltou para eles, preparada para lhes mostrar o caminho para o grande salão
quando viu .
—Charlotte!
A antiga lady Charlotte Dalrumple, cofundadora da Distinta Academia de
Instrutoras, sorria encantada. E a...
—Pamela!
A antiga senhorita Pamela Lockhart, outra cofundadora da Distinta
Academia de Instrutoras, abraçou Hannah.
—Sua majestade nos pediu que viéssemos para te fazer uma surpresa!
Não está surpreendida?
—Estou... aniquilada.

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Hannah quase não podia falar da emoção. Aquelas eram suas amigas, as
duas pessoas, entre todo mundo, com quem compartilhara insipidezes e
tribulações, alegrias e triunfos.
Enquanto Hannah recebia o abraço mais forte de Charlotte, seu coração
estava transbordando de alegria.
Por cima do ombro viu o visconde Ruskin as olhando com um adorado
orgulho que só o marido do Charlotte podia sentir.
O marido de Pamela, lorde Kerrich, riu enquanto as três mulheres se
olhavam entre si, voltavam a se abraçar e se afastavam de novo.
—Não posso acreditar que estejam aqui. - Hannah tentou fazer uma
reverência a ambos os cavalheiros sem deixar de abraçar a suas amigas. -
Estou tão emocionada. Tão contente. Tudo saiu tão bem.
OH, Charlotte! Pamela!
Ruskin cruzou os braços sobre seu enorme peito.
—É bom contemplar a emoção das mulheres.
—Eu que o diga! - Kerrich levantou o monóculo e fiscalizou ao grupinho. -
Raramente se veem tão boas amigas.
Hannah não prestou atenção neles. Ambos eram homens atraentes, mas
arrogantes e propensos a uma grandiosa segurança em si mesmos e a uma
incrível rabugice.
O único traço que os salvava, em sua opinião, era a devoção incondicional
que sentiam por suas esposas.
Isso, e o fato de que Charlotte, com tranquila segurança, e Pamela, com
aberta franqueza, dirigiam a seus maridos quando os homens ficavam muito
repelentes.
No outro extremo do corredor, Hannah ouvia o tom carinhoso de Dougald
no discurso de boas-vindas.
Na realidade, poderia se dizer que os maridos de Charlotte e Pamela
estavam cortados pelo mesmo padrão que Dougald.
Hannah examinou a suas amigas mais de perto.
—Charlotte, Pamela? desculpem minha curiosidade, mas as duas estão
grávidas?
Suas amigas intercambiaram olhadas.
—Sim - disse Pamela.
—Acreditamos que nossos bebês nascerão na mesma época. - Charlotte se
deu uns leves golpes no abdômen ligeiramente aumentado.
Grávidas? durante só um momento, Hannah se perguntou se devia lhes
confessar sua própria suspeita.
Descartou a ideia. Tentar explicar ali no vestíbulo? e ao fim e ao cabo,
Dougald devia ser o primeiro a ouvir.
—São notícias de primeira ordem. Muitas, muitas felicidades - disse em
troca.

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—Quando sua majestade recebeu seu convite, nos convidou a acompanhá-


la imediatamente - explicou Charlotte.
Pamela se aproximou de Hannah e sussurrou:
—É obvio, aceitamos, mas não só pelo prazer de sua companhia. Confesso
que sentíamos curiosidade sobre qual fora seu destino, depois de descobrir que
levava tanto tempo casada.
Hannah abriu a boca, mas não soube o que dizer. Ela e Dougald não
falaram de quando nem onde anunciar seu casamento.
Na realidade, na noite anterior fora uma longa e tenra consumação, não
de sua paixão, mas sim de seu amor.
Embora Hannah não tinha podido deixar de notar que Dougald nunca
pronunciara as palavras. Dougald disse todo o resto, e era uma miserável
ingrata ao esperar mais, mas sentia certa incerteza.
Começava a tentar esclarecer uma situação que não se podia explicar
facilmente quando tia Isabel colocou a cabeça pela esquina do grande salão e
gritou:
—Senhorita Setterington, estamos esperando por você.
—Temos que entrar. - Hannah escapuliu.
—Salva - ouviu Pamela murmurar.
Dentro do grande salão, uma nova e magnífica cortina de veludo púrpura
cobria a parede. Dougald se encontrava diante dela, com a rainha e o príncipe
Alberto.
As tias estavam em uma fileira, com as mãos pregadas na cintura e os
olhos cintilantes.
A senhorita Minnie fez um gesto a Hannah para que se aproximasse.
—Devemos ter à senhorita Setterington conosco. É nossa mais querida
moça.
Hannah não pensava que as tias pudessem voltar a fazê-la ruborizar, mas
o elogio da senhorita Minnie e os carinhosos olhares das demais conseguiram
avermelhar suas faces.
Avançou através da multidão impaciente para se colocar junto às tias.
Como tinham disposto, tia Spring avançou um passo e fez uma reverência
à rainha Vitória.
—Querida majestade - disse em sua voz mais feliz. - Quando você nasceu,
minhas companheiras e eu estávamos tão emocionadas pela aparição de uma
nova princesa real que decidimos fazer algo em sua honra.
Enquanto passavam os anos, seguíamos sua vida com júbilo e interesse. A
coroaram, se casou, teve à pequena princesa e ao príncipe, e durante todo
este tempo trabalhamos para lhe fazer um presente.
A nós, a todos nós, gostaríamos de lhe oferecer o presente que você sabe.
—Seria uma honra para mim - disse a rainha Vitória.
Dougald fez um gesto aos dois criados, que retiraram a cortina para

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mostrar a tapeçaria.
Os cavalheiros e as damas soltaram uma exclamação, logo o grande salão
ficou em completo silêncio.
A grande obra se estendia pela parede como uma surpreendente amostra
de mestria em uma sala o bastante grande e cheia de história para lhe fazer
justiça. O azul real estava salpicado de estrelas amarelas, uma lua de prata e
um sol de ouro. As joias, radiantes esmeraldas, safiras e rubis, se derramavam
da arca. Rosas vermelhas, brancas e rosadas se entrelaçavam com a borda, e
no próprio centro estava a rainha Vitória, resplandecente em seu traje da
coroação, com Alberto, cujos traços foram tecidos de novo, a seu lado.
Inclusive Hannah, que já vira a tapeçaria, que trabalhara nela e se
preocupou por ela, não pôde evitar se impressionar.
As tias olhavam fixamente à rainha.
A rainha olhava fixamente a tapeçaria.
E sua majestade guardou silêncio durante tanto momento que Hannah
começou a se preocupar.
Por fim, a rainha reagiu e se voltou para as tias.
—Senhoras, trabalharam nisto durante vinte e quatro anos? - disse com
voz tremula.
—Meses mais ou meses menos - repôs tia Spring. - Devo lhe confessar que
não teríamos nos emocionado tanto se você tivesse sido um príncipe.
Sua declaração provocou as tosses de alguns dos espectadores e Hannah
teve que reprimir um sorriso.
A rainha Vitória estendeu as mãos.
—Me comove sua amabilidade, sua generosidade. Sua imaginação e sua
habilidade não têm comparação. Em meu nome e no de gerações de ingleses
que entesourarão esta tapeçaria, estou encantada de aceitar este presente.
—A tapeçaria terá um lugar de honra no Buckingham Palace - disse o
príncipe Alberto.
A um gesto de Hannah, as tias se congregaram ao redor da rainha para
segurar as mãos dela e, indevidamente, todas a chamaram querida.
—A senhorita Setterington tinha razão. Sua majestade não é nenhuma
tola. - Anunciou tia Isabel a Dougald com sua voz mais clara.

Capítulo 31

Tia Isabel levava todo o dia fazendo pronunciamentos retumbantes e não


ia falhar a Dougald agora.
—Querido, parece que a seus vizinhos não preocupa tanto sua reputação
de assassino.

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—Fez um gesto ao redor da multidão que se estendia até fora do grande


salão e se pulverizavam por todas as câmaras do castelo Raeburn. - Vieram
todos.
—E eu lhes dou as boas-vindas - Dougald respondeu simplesmente,
consciente que ao menos alguns daqueles vizinhos o estavam ouvindo.
—Sim, isto é um triunfo para todos nós. - Tia Isabel não deixara de sorrir
durante todo o dia. Se aproximou de Dougald e realmente baixou a voz para
perguntar:
—Acredita que terão ouvido os rumores sobre o bebê de Spring?
—Com certeza que sim.
—Mas não importa, não é? Olhe a nossa querida moça conversando com
nosso próprio monarca. Sua majestade adora Spring. Os vizinhos nem sequer
se atrevem a desprezá-la. - Tia Isabel deu um gole em sua taça.
—Frívolos bastardos.
Dougald percebeu que tia Isabel bebera muito ponche.
Tia Ethel se aproximou deles e se agarrou ao braço de tia Isabel.
—Minnie me envia para te buscar. Sua majestade quer voltar a falar
conosco.
Tia Isabel lançou um sorriso a Dougald.
—Eu também gosto de sua majestade.
Dougald pegou a taça da mão dela.
—Sim, estou seguro que gosta.
Dougald suspeitava que a rainha Vitória adorava que a chamassem
"querida" e a tratassem com o inocente desembaraço daquelas intrometidas
mulheres às que chamava suas tias.
—Dougald querido - disse tia Ethel, - a querida Hannah está ali de pé
sozinha. Talvez seja tímida. Por que não vai resgata-la?
Dougald sabia que tia Ethel não acreditava que Hannah fosse tímida.
Estava se fazendo de casamenteira outra vez... ou ainda pretendia fazê-lo.
Ele também sabia que Hannah não era tímida; estava preocupada.
Enquanto iam chegando os convidados à recepção, ia olhando à cara um a um,
procurando seus avós.
Até o momento não tinham chegado, mas ainda era cedo, e a chuva
punha as estradas muito difíceis.
Entretanto, aproveitou a ocasião para estar com Hannah.
—Farei isso, tia Ethel - respondeu e, pegando uma taça de champanha de
um criado que passava, se aproximou de Hannah para lhe oferecer um humilde
presente para sua deusa.
Hannah estava de pé em meio da mais esplendorosa recepção que jamais
se viu em Lancashire e retorcia as mãos.
—Chegam tarde. Por que chegam tarde?
—As estradas estão enlameadas e ficam difíceis. - Dougald estirou os

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dedos de Hannah e colocou a taça neles.


Ela a olhou como se nunca tivesse visto uma taça de champanha.
—E se não virem?
—Virão. - A Dougald não cabia dúvida. Viriam andando se não tinham mais
remédio. Ele mesmo se encarregou deste assunto. Levantou o olhar e viu o
mordomo, que fazia gestos a ele.
—De fato, acredito que já devem estar aqui.
Hannah ficou petrificada, olhando para o nada.
—Vão lhe amar. - Tirou a taça dela e pôs a mão sobre seu braço. - Como
todos a amamos.
Sem mover a cabeça, Hannah o olhou.
—Me amam?
—Sim, amamos. - Pôs a mão em cima da de Hannah. - Todos a amamos.
Tia Spring devia estar esperando aos Burroughs, pois se desculpou ante a
rainha e correu ao lado de Dougald e Hannah.
—Vamos, queridos. - Deu-lhes instruções e os conduziu para o casal idoso
que agora se achava na entrada. - Alice, Harold, me alegro de voltar a lhes ver.
- Apertou a face com a da senhora Burroughs e deu um rápido abraço ao
senhor Burroughs. - Quero lhes apresentar a duas pessoas muito importantes.
Dougald Pippard, nosso querido Conde de Raeburn, e a senhorita Setterington,
minha querida dama de companhia.
Os Burroughs mal jogaram uma rápida olhada a Dougald e ficaram
olhando de maneira escrutinadora para Hannah.
Hannah lhes devolveu o olhar em silêncio.
Dougald reconhecia o medo quando o via. Sua querida esposa estava
paralisada, temerosa que uma vez mais se visse rechaçada pela gente que
mais necessitava que a agasalhassem.
Ele era em parte responsável por sua apreensão, assim tentaria emendá-
lo.
—Se me permitem acrescentar, a senhorita Setterington é filha da
senhorita Carola Thomlinson - disse, fazendo uma reverência.
À senhora Burroughs sacudiu um violento tremor quando se aproximou de
Hannah e a olhou à cara.
—É você. Sabia que era. Vejo meu filho em sua cara. - Abraçou a sua neta,
muito mais alta que ela. - OH, minha querida moça, boas-vindas a casa!
Por um momento, Hannah ficou imóvel. Cruzou seu olhar emocionada com
o de Dougald.
—Obrigado, obrigado - disse com uma risada abafada.
Alto, de cabelo grisalho, digno, o senhor Burroughs envolveu as duas em
seu abraço.
Dougald e tia Spring os contemplaram durante um momento, logo tia
Spring puxou a manga da jaqueta de Dougald.

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—Aos Burroughs certamente parece encantar a senhorita Setterington.


—Certamente parece.
Dougald aguardou. Tia Spring podia ser esquecida, mas no referente à
gente, Dougald se precavera que era uma tocha.
—Disse que era a filha da senhorita Carola Thomlinson - disse tia Spring.
—Isso.
—Parece-me recordar que esse é o nome de uma jovem dama que tinha
uma relação sentimental com seu filho.
—Sim.
—Que adorável! - Tia Spring observava o encontro com as mãos fechadas
em cima de seu coração. - Espera até que o conte às garotas.
Correu de novo para o grupo que rodeava sua majestade.
A pequena cena estava chamando a atenção dos vizinhos, assim depois
dos primeiros e emotivos momentos, o senhor Burroughs se separou do abraço.
—Agradecemos pelo pacote de cartas que você nos enviou - disse
dirigindo um olhar penetrante a Dougald. - Mas não necessitávamos nenhuma
prova da origem de Hannah.
É de minha altura e a semelhança com o nosso filho é surpreendente.
—Enviou-lhes as cartas? - Hannah ainda abraçava a sua avó, mas o sorriso
que dirigiu a Dougald não deixava nenhuma dúvida de sua gratidão.
Tampouco deixava ao senhor Burroughs nenhuma dúvida.
—Você quererá voltar com seus convidados - disse com voz áspera. -
Nossa neta nos mostrará essa famosa tapeçaria do qual todo mundo fala.
Dougald reconheceu a ordem de desterro. Arqueou as sobrancelhas, em
espera do consentimento de Hannah; quando lhe fez um gesto com a cabeça,
respondeu com uma reverência, se desculpou e voltou a falar com lorde Kerrich
e o visconde Ruskin. Gostava.
Os dois homens demonstravam um notável senso comum no modo em
que tratavam a suas esposas, que, pelo Dougald podia dizer, eram tão
engenhosas e espertas como Hannah.
Só homens com um caráter excepcional podiam dirigir a mulheres como
aquelas.
Hannah observou Dougald se afastar, logo, orgulhosa e tímida, indicou-
lhes com um gesto que se dirigissem ao grande salão.
—A tapeçaria está aqui.
Caminhou com seus avós para a longa parede onde se exibia.
—É formoso! - exclamou a senhora Burroughs.
O senhor Burroughs piscava assombrado.
—Santo Deus, sempre pensei que Spring e seu grupo de bruxas não eram
mais que umas velhas loucas, salvo essa senhorita Minnie, que me parecia que
era louca e carrancuda.
Mas vejo que na realidade estavam costurando algo em seu estudo acima.

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Hannah ficou tensa. Lentamente voltou a cara para o senhor Burroughs.


—Senhor, eu não toleraria que ninguém fizesse comentários grosseiros
sobre você, e você é somente meu avô. Tia Spring e suas companheiras, sem
mais motivo que o de sua bondade, me acolheram em seu seio, e não tolerarei
que ninguém as menospreze diante de mim - disse Hannah em seu tom mais
frio.
—Bom... bom... - balbuciou o senhor Burroughs. - Jovem dama, você...
você...
A senhora Burroughs ficou ao lado de Hannah.
—É uma autêntica jovem dama com admiráveis sentimentos, Harold, e
você sabe. O que vais fazer sobre isto?
O senhor Burroughs olhou fixamente a sua esposa.
Ela devolveu o olhar.
Ele as olhou às duas.
—Eu também vejo uma semelhança entre vocês duas, Alice. - Inclinou a
cabeça com a postura rígida de um general. - Peço desculpas, Hannah. Não
devia ser tão franco.
—Grosseiro - corrigiu Hannah.
—Harold, você foi grosseiro - insistiu a senhora Burroughs.
—Sim. Grosseiro. Rogo mil perdões. - Voltou a inclinar a cabeça. - Não o
farei mais.
—Estou segura que não - respondeu Hannah. - O agradeço.
A senhora Burroughs abraçou Hannah.
—Você e Harold são iguais! Não posso esperar para ouvir as brigas que
vão ter.
Tia Ethel se aproximou.
—Me alegro de lhes ver, senhor e senhora Burroughs. - Com um
expressivo olhar ao senhor Burroughs, acrescentou: - À rainha gosta de sua
tapeçaria.
E se afastou, mas não muito.
—De maneira que não está louca, não é? - perguntou o senhor Burroughs
ao vazio.
—Perceptiva seria uma palavra melhor. - Hannah mudou de tema. - Talvez
goste de uma taça de champanha depois da viagem?
—Sim, eu adoraria. Obrigado, querida - a senhora Burroughs sorriu.
—Champanha, puaj! - O bigode do senhor Burroughs tremeu de desdém. -
Que tolice! Não sei como a alguém podem gostar das borbulhas no vinho. Onde
tem uma boa cerveja inglesa?
Hannah os conduziu para a mesa onde se dispôs um refresco.
—Uma cerveja para o senhor Burroughs - ordenou ao criado, e ofereceu à
senhora Burroughs uma taça de champanha.
Seaton fez sua aparição, com um sorriso estabelecido nos lábios. Inclinou

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a cabeça ante os Burroughs e logo agarrou a mão de Hannah.


—Obrigado pela apresentação. Sua majestade foi muito gentil, e admirou
energicamente meu conjunto. Obrigado, senhorita Setterington. Repito,
obrigado e obrigado.
Hannah esboçou o primeiro sorriso sincero do dia.
—De nada, Seaton.
Seaton se foi outra vez, dando saltos da alegria que esse dia lhe tinha
proporcionado.
A multidão começou a fluir ao redor da mesa do refresco, mas Hannah
suspeitava que o senhor Burroughs falava sem se importar quem pudesse lhe
ouvir. Parecia um homem a quem não convencia a sutileza.
—Hannah, sei que se pergunta por que a temos negligenciado todos estes
anos.
—Não, absolutamente - repôs Hannah educadamente. "Todo o tempo."
—Tolices. Claro que deve estar se perguntando isso. É nossa neta.
O que significava que devia responder com sinceridade ou ao menos no
que se referia ao senhor Burroughs.
—Sim, senhor, me perguntei isso.
—Quando recebemos o pacote de cartas de lorde Raeburn, nos
surpreendeu. - Aceitou a jarra de cerveja que o criado lhe oferecia.
A senhora Burroughs voltou a apertar o braço de Hannah.
—Não tínhamos nem ideia que nosso querido moço escrevesse à senhorita
Thomlinson depois de que ela abandonasse a região.
—Leu essas cartas? - perguntou o senhor Burroughs.
—Não, senhor, não tive o prazer.
Embora Hannah não soubesse se em realidade seria um prazer ou a maior
tortura de sua vida.
—Segundo as cartas, Henry planejava se encontrar com sua mãe e casar
com ela.
Hannah soltou uma baforada de ar que esteve contendo dolorosamente.
—Mas até que tivéssemos lido suas palavras, não suspeitávamos que a
senhorita Thomlinson estivesse esperando um filho. - O senhor Burroughs
contemplou a espuma marrom que se formava em cima da cerveja.
—Pensei que precisava detê-los antes que... bom, é óbvio que não o fiz.
Teria gostado que meu filho me contasse isso. Oxalá tivesse superado seu
amor. Estava tão abatido, bebia muito e morreu tão de repente.
—Deu um gole, logo olhou a sua esposa. Tirou um pedaço quadrado de
linho branco engomado e olhou a sua esposa. - Alice, eu gostaria que se
lembrasse de levar sempre com você um lenço.
—Sim, querido. - A senhora Burroughs secou as faces.
O senhor Burroughs olhou Hannah aos olhos.
—Se tivéssemos sabido de sua existência, teríamos ido procurar a você e

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a sua mãe e as teríamos levado a nossa casa imediatamente.


Hannah lhe devolvia o olhar também diretamente aos olhos.
—Obrigado, senhor, por isso.
Por anunciar que a queriam. Por dizer que também teriam aceito sua mãe
em sua casa.
A senhorita Minnie deu um tapinha no ombro de Hannah.
—Vejo que conhecem nossa querida moça - disse ao senhor e à senhora
Burroughs. - É a melhor jovem que conhecemos.
—Sim, claro que o é. - O senhor Burroughs olhou à senhorita Minnie. - É
nossa neta.
A senhorita Minnie lhe devolveu o olhar com os olhos muito abertos.
—Não graças a você!
Hannah se moveu com calma para mediar entre eles.
—Senhorita Minnie, você ou alguma das tias me necessitam?
A senhorita Minnie olhou para Hannah com o cenho franzido, logo relaxou.
—Não, querida. Sua majestade está circulando entre os vizinhos, é tão
amável e gentil, e acredita que temos que estar perto dela se por acaso nos
necessita.
—Com um sorriso inocente dirigido ao senhor Burroughs, se dirigiu para as
outras tias.
—Queria ouvir o que estávamos dizendo - disse com impaciência o senhor
Burroughs. - Posso as chamar intrometidas sem despertar sua ira, Hannah?
—Não - respondeu Hannah. - Eu tampouco deixaria que chamassem a
você velho mandão carrancudo.
A senhora Burroughs interveio.
—Isso é justo.
—Como avô seu que sou, deverás viver na nossa casa conosco - anunciou
o senhor Burroughs levantando a voz para que o ouvissem as tias.
—OH, não! - exclamou tia Ethel.
Hannah se assustou.
—O que? por quê?
—Não é decente que nossa neta trabalhe.
Hannah ficou a pensar em uma resposta. Era evidente que o senhor
Burroughs considerava sua profissão como uma desgraça. Ela não o sentia
assim.
O trabalho que fizera nos últimos anos a ensinara a ter resistência,
eficiência e confiança em si mesma.
—Além disso, Hannah, você não está casada. Não deveria viver sob o
mesmo teto que um solteiro. É escandaloso - disse a senhora Burroughs com
sua voz suave e própria de uma dama.
Agora Hannah estava absolutamente desconcertada. Tinha pensado
somente no momento de conhecer seus avós. Nunca parou a pensar em que

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teria que lhes explicar certos acontecimentos de sua vida.


Entretanto, o senhor Burroughs não pareceu encontrar nada raro em seu
silêncio. Com um brusco gesto de afeto lhe estreitou os ombros e logo a soltou.
—Então virá conosco agora mesmo.
A senhora Burroughs agarrou uma mão de Hannah e lhe deu uns tapinhas.
—Sim, neta, já não terá que abrir caminho no mundo você sozinha.
Pela primeira vez, Hannah compreendeu as pressões às que seu pai
enfrentou. Se queria a seus pais, o qual era indubitável, teve que estar dividido
entre esse amor e o que sentia por sua mãe.
E, embora Hannah desprezasse a escolha que fez, compreendia bem a
luta entre o amor a uma mulher e a preocupação pela família.
—Temo que não é possível para mim ir viver com vocês. Aqui se necessita
a alguém para cuidar das tias, e... existem outros fatores.
—Sinto ter que lhe dizer isso mas isso afetará a sua delicada constituição.
- Seu avô pôs cara de poucos amigos e retorceu o bigode entre os dedos. - Mas
esse moço, o novo lorde Raeburn, não é uma boa influência.
—A voz do senhor Burroughs retumbou. - Lembro que circulavam rumores
sobre ele quando era jovem. É um homem dissipado, é de uma família simples
e dizem que matou a sua esposa.
Hannah percebeu de quão cansada estava de ouvir isso quando perdeu os
estribos.
—Não matou a sua esposa.
—Vamos, Hannah! - Sua avó a olhava docemente aos olhos. - Deve confiar
em seu avô, ele sabe melhor que você. Sempre sabe. E você não pode saber se
lorde Raeburn matou ou não a sua esposa.
—Sim... eu posso saber. - Hannah pronunciou com claridade para que seu
avô pudesse ouvi-lo. - Sou sua esposa.
Os Burroughs a olharam com olhos muito abertos e a mandíbula
desencaixada.
A senhorita Minnie soltou um grito de alegria.
O resto das tias lançou um gemido.
Hannah se ergueu.
—Estou casada há quase dez anos. Ele não me matou, eu fugi. Fomos
muito estúpidos mas agora nos reconciliamos e ficarei aqui no castelo Raeburn
e teremos uma família.
Seu avô expressou sua desaprovação com um ruído que repetiu um par de
vezes.
As mãos de sua avó revoaram e foram parar no braço do senhor
Burroughs.
Ambos levantaram o olhar da cara de Hannah a um lugar situado em cima
do ombro de Hannah.
Uma mão posou em sua cintura. Era Dougald. Não precisava se voltar para

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saber que era ele. Reconheceu seu aroma, seu calor, sua presença. Respirava
com ele. Seu coração pulsava com ele. Eram realmente um.
—Senhor Burroughs, é muito tarde para lhe pedir a mão de Hannah, mas
prometo que a honrarei todos os dias de minha vida.
—A sinceridade de Dougald fluía como um bálsamo sobre a ofensa do
senhor Burroughs e a consternação da senhora Burroughs.
—A perdi uma vez e nunca voltarei a fazer nada para perdê-la. Amo-a.
—De verdade? - Hannah se voltou para ele. - De verdade?
—O que quer dizer - Dougald parecia surpreso - com "de verdade"?
—Nunca me disse isso.
—E que acredita que era tudo aquilo que lhe disse ontem na capela?
—Foi precioso. - Acariciou a face dele, admirando a estrutura das maçãs
do rosto e a leve sombra da barba. - Sempre me lembrarei com carinho desse
momento.
—Mas quer ouvi-lo com todas as letras. - A abraçou pela cintura. - Te amo,
Hannah.
—Eu também te amo - confessou Hannah em um sussurro.
—Eu acreditava, - o senhor Burroughs murmurava. - Vá impressão... vá
dia!
—Mas são boas emoções - acrescentou a senhora Burroughs ao balbuceio
do senhor Burroughs.
—Sim. Boas. Nem todos os dias vem a tona que alguém tem uma neta,
felizmente casada! - O nevoeiro lhe arrepiou de maneira ameaçadora enquanto
dirigia seu olhar a Hannah. - É feliz?
—Muito, senhor.
O senhor Burroughs assentiu.
—E com o conde do lugar. Moço, aqui tem um tesouro. Trata-a bem ou se
verá comigo.
O súbito estalo de lágrimas surpreendeu Hannah e a obrigou a procurar
seu lenço. Nunca, jamais, nem sequer durante os dias de seu casamento, teve
a alguém a apoiando.
Agora tinha a seus avós e eles eram tudo com o que ela sonhara.
Sua avó viu as lágrimas e isso fez brotar as suas também.
—OH, minha doce moça! - Abriu os braços e se abraçaram de maneira
espontânea, soluçando e rindo ao mesmo tempo.
—Que tolas são as mulheres! - A voz do senhor Burroughs soava um pouco
mais rouca do que o habitual. - Sempre chorando pelas coisas mais
insignificantes. Senhoras, se supõe que são felizes!
E estreitou a mão de Dougald.
—Somos. - A senhora Burroughs usou seu lenço de renda para secar os
olhos. - Vê? - Dirigiu um sorriso a seu irascível marido.
—Agora temo que vão ter que nos desculpar. - Dougald utilizou seu próprio

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lenço para enxugar a cara de Hannah. - Sua majestade, a rainha Vitória, quer
falar com minha esposa.
Enquanto ela e Dougald se afastavam, Hannah pensou que o favor real
certamente não prejudicaria a conexão com seus avós, de fato, inclusive podia
favorecer as relações familiares entre os Burroughs e a ovelha negra de seu
marido.
Charlotte e Ruskin, Pamela e Kerrich se achavam de pé junto ao príncipe
Alberto e a rainha Vitória, e trocaram agradados sorrisos quando viram
Dougald e a Hannah se aproximar juntos e apaixonados.
Mas as cabeças se voltaram quando a voz de tia Isabel soou claramente
através do salão.
—Minnie, vou te pagar o que devo. Estão casados. Ganhou a aposta. Mas a
ninguém vai gostar que fanfarroneie por isso.

FIM

Comunidade: http://www.orkut.com.br/Community?
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Grupo: http://groups.google.com.br/group/tiamat-world?
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Blog: http://tiamatworld.blogspot.com/

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