5. Acerca da condição do homem moderno, a ação e o consumo
Excertos de Hannah Arendt: The Human Condition. Chicago: The
University of Chicago Press, 1998. “A era moderna realizou uma glorificação teorética do trabalho [labor] e 121. O trabalho resultou numa transformação factual de toda a sociedade numa sociedade na era moderna
trabalhadora. O cumprimento do desejo [de libertação do trabalho], por
isso, assim como o cumprimento dos desejos nos contos de fadas só pode ser auto-frustrante. Esta é uma sociedade de trabalhadores, que está em vias de ser libertada das penas do trabalho, e esta sociedade não mais conhece as outras atividades mais elevadas e mais significativas em razão das quais esta liberdade mereceria ser alcançada. Dentro desta sociedade, que é igualitária porque esta é a maneira como o trabalho faz os homens viverem juntos, não restam classes, não há aristocracia de natureza nem política nem espiritual […]. Mesmo presidentes, reis e primeiros-ministros entendem os seus ofícios em termos de um emprego necessário para a vida da sociedade […]. Estamos confrontados com uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, ou seja, sem a única atividade que lhes resta. Certamente, nada poderia ser pior.” Hannah Arendt, The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press, 1998, pp. 4-5. 122. Vita ativa I
“Com o termo vita activa proponho designar três atividades humanas
fundamentais: trabalho, obra e ação [labor, work, and action] São fundamentais porque cada uma delas corresponde a uma das condições básicas sob as quais foi dada ao homem a vida sobre a terra. “O trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento, metabolismo e declínio final espontâneos estão ligados às necessidades vitais produzidas e alimentadas no processo da vida pelo trabalho. A condição humana do trabalho é a própria vida. …/… “A obra é a atividade que corresponde ao caráter não natural da existência 123. Vita ativa II humana, que não está inserida no ciclo de vida sempre recorrente da espécie e cuja mortalidade não é compensada por esse ciclo. A obra cria um mundo «artificial» de coisas, claramente diferente de todo o ambiente natural. Cada vida individual está alojada dentro dos seus limites, enquanto que esse mundo está destinado a sobreviver e a transcender todas elas. A condição humana da obra é a mundaneidade. “A ação, que é a única atividade que acontece diretamente entre os homens sem o intermediário das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao facto de que os homens, não o Homem, vive na terra e habita o mundo. Visto que todos os aspectos da condição humana estão de algum modo relacionados com a política, esta pluralidade é especificamente a condição da vida política – não somente a conditio sine qua non, mas a conditio per quam.” Arendt, The Human Condition, p. 7. 124. A natalidade
“Estas três atividades e as suas condições correspondentes estão
intimamente conectadas com a condição mais geral da existência humana: nascimento e morte, natalidade e mortalidade. O trabalho assegura não só a sobrevivência individual, mas a vida da espécie. A obra e o seu produto, o artefacto humano, confere uma medida de permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter fugaz do tempo humano. A ação, na medida em que está empenhada em fundar e preservar os corpos políticos, cria a condição da memória, ou seja, da história. O trabalho e a obra, assim como a ação, estão também radicados na natalidade, porquanto têm a tarefa de prover e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados que nascem no mundo como estranhos, de providenciar e de contar com eles. 125. A condição da ação e da natalidade
“No entanto, de todas as três, a ação tem a conexão mais próxima
com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de começar algo novo, ou seja, de agir. Neste sentido de iniciativa, um elemento da ação e, portanto, da natalidade, é inerente a todas as atividades humanas. Além disso, uma vez que a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade pode ser a categoria central do pensamento político, enquanto se distingue do pensamento metafísico.” Arendt, The Human Condition, pp. 8-9. “O surgimento da sociedade de massas […] apenas mostra que os vários 126. O grupos sociais sofreram a mesma absorção numa mesma sociedade que a trabalho e a sociedade de família anteriormente unia e absorvia; com o aparecimento da sociedade de massas massas, o domínio do social alcançou finalmente, após vários séculos de desenvolvimento, o ponto em que abrange e controla todos os membros de uma comunidade dada, de modo igual e com a mesma força. Mas a sociedade igualiza sob todas as circunstâncias, e a vitória da igualdade no mundo moderno significa somente o reconhecimento político e legal do facto de que a sociedade conquistou o domínio público, e que a distinção e a diferença se tornaram assunto privados do indivíduo. “Esta igualdade moderna, baseada no conformismo inerente à sociedade e unicamente possível porque o comportamento substitui a ação como o modo predominante da relação humana é, em todos os aspectos, diferente da igualdade na antiguidade e, especialmente, nas cidades estado gregas.” Arendt, The Human Condition, p. 41. 127. O espaço público
“O termo «público» significa dois fenómenos intimamente relacionados,
mas não inteiramente idênticos: “Significa, em primeiro lugar, que tudo o que aparece em público pode ser visto e ouvido por todos, e tem a máxima publicidade possível. Para nós, o aparecer – algo que é visto e ouvido por outros, assim como por nós próprios – constitui a realidade. Comparado com a realidade que provém de ser visto e ouvido, mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do coração, os pensamentos da mente, as delícias dos sentidos – possuem um tipo de existência incerto, nebuloso, pelo menos até que sejam transformados, desprivatizados e desindividualizados, por assim dizer, numa forma que lhes sirva para a aparição pública.” Arendt, The Human Condition, p. 50. 128. Trabalho e consumo
“A revolução industrial substituiu todo o artesanato
pelo trabalho, e o resultado foi que as coisas do mundo moderno se tornaram produtos do trabalho, cujo destino natural é serem consumidos, ao contrário dos produtos da obra, que é o de serem usados.”
Arendt, The Human Condition, p. 124.
129. Uma sociedade de trabalhadores
“Diz-se frequentemente que vivemos numa sociedade de
consumo e, por isso, como vimos, o trabalho e o consumo não são mais do que estádios de um mesmo processo, imposto sobre o homem pela necessidade da vida, isto é somente uma outra maneira de dizer que vivemos numa sociedade de trabalhadores.”
Arendt, The Human Condition, p. 126.
130. A cultura de massas
“A desconfortável verdade é que o triunfo que o mundo moderno alcançou
sobre a necessidade se deve à emancipação do trabalho, ou seja, ao facto de que foi permitido ao animal laborans ocupar o domínio público; e, contudo, enquanto o animal laborans continua na posse desse espaço, não pode haver verdadeiro domínio público, mas somente atividades privadas levadas a cabo publicamente. O resultado é o que se chama eufemisticamente cultura de massas, e o seu problema, profundamente enraizado, é uma infelicidade generalizada, devida, por um lado, ao equilíbrio problemático entre o trabalho e o consumo e, por outro, às exigências persistentes do animal laborans para obter uma felicidade que só pode ser alcançada lá onde os processos da vida, de exaustão e regeneração, de dor e alívio da dor, encontram um equilíbrio perfeito. …/… 131. Sobre a felicidade
“A demanda universal da felicidade e a infelicidade generalizada na
nossa sociedade (e estes são apenas os dois lados da mesma moeda), estão entre os sinais mais convincentes de que começámos a viver numa sociedade do trabalho a que falta trabalho suficiente para a manter satisfeita. Porque unicamente o animal laborans, mas não o artesão nem o homem de ação algumas vez buscaram ser «felizes» ou supuseram que os mortais poderiam ser felizes.”
Arendt, The Human Condition, p. 133-134.
132. Sobre o significado humano do trabalho e as máquinas
“Uma sociedade de trabalhadores, o mundo das máquinas
tornou-se um substituto do mundo real, ainda que este pseudo- mundo não possa preencher a mais importante tarefa do engenho humano, que é a de oferecer aos mortais um lugar onde habitar, mais estável e permanente do que eles próprios.”
Arendt, The Human Condition, p. 152-153.
“O facto de que o homem é capaz de ação significa que o inesperado 133. Ação pode ser esperado dele, que é capaz de realizar o que é infinitamente e improvável. E isto é possível, por sua vez, somente porque cada homem identidade
é único, de tal modo que com cada nascimento algo de unicamente
novo vem ao mundo. No que se refere a este alguém que é único, pode- se verdadeiramente dizer que ninguém o precedeu. Se a ação como começo corresponde ao facto do nascimento, se ela é a atualização da condição humana da natalidade, então a fala corresponde ao facto do ser distinto, e é a atualização da condição humana da pluralidade, ou seja, de viver como um ser distinto e único entre iguais. “A ação e a fala estão tão intimamente relacionados porque o ato primordial e especificamente humano tem, ao mesmo tempo, de conter a resposta à questão levantada a todo o recém-chegado: «quem és tu?»” Arendt, The Human Condition, p. 178.