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ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

2023/2024

5.
Acerca da condição do homem moderno, a ação e o
consumo

Excertos de Hannah Arendt: The Human Condition. Chicago: The


University of Chicago Press, 1998.
“A era moderna realizou uma glorificação teorética do trabalho [labor] e 121. O trabalho
resultou numa transformação factual de toda a sociedade numa sociedade na era moderna

trabalhadora. O cumprimento do desejo [de libertação do trabalho], por


isso, assim como o cumprimento dos desejos nos contos de fadas só pode
ser auto-frustrante. Esta é uma sociedade de trabalhadores, que está em
vias de ser libertada das penas do trabalho, e esta sociedade não mais
conhece as outras atividades mais elevadas e mais significativas em razão
das quais esta liberdade mereceria ser alcançada. Dentro desta sociedade,
que é igualitária porque esta é a maneira como o trabalho faz os homens
viverem juntos, não restam classes, não há aristocracia de natureza nem
política nem espiritual […]. Mesmo presidentes, reis e primeiros-ministros
entendem os seus ofícios em termos de um emprego necessário para a vida
da sociedade […]. Estamos confrontados com uma sociedade de
trabalhadores sem trabalho, ou seja, sem a única atividade que lhes resta.
Certamente, nada poderia ser pior.”
Hannah Arendt, The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press, 1998, pp. 4-5.
122. Vita ativa I

“Com o termo vita activa proponho designar três atividades humanas


fundamentais: trabalho, obra e ação [labor, work, and action] São
fundamentais porque cada uma delas corresponde a uma das condições
básicas sob as quais foi dada ao homem a vida sobre a terra.
“O trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do
corpo humano, cujo crescimento, metabolismo e declínio final
espontâneos estão ligados às necessidades vitais produzidas e
alimentadas no processo da vida pelo trabalho. A condição humana do
trabalho é a própria vida.
…/…
“A obra é a atividade que corresponde ao caráter não natural da existência 123. Vita
ativa II
humana, que não está inserida no ciclo de vida sempre recorrente da
espécie e cuja mortalidade não é compensada por esse ciclo. A obra cria um
mundo «artificial» de coisas, claramente diferente de todo o ambiente
natural. Cada vida individual está alojada dentro dos seus limites, enquanto
que esse mundo está destinado a sobreviver e a transcender todas elas. A
condição humana da obra é a mundaneidade.
“A ação, que é a única atividade que acontece diretamente entre os homens
sem o intermediário das coisas ou da matéria, corresponde à condição
humana da pluralidade, ao facto de que os homens, não o Homem, vive na
terra e habita o mundo. Visto que todos os aspectos da condição humana
estão de algum modo relacionados com a política, esta pluralidade é
especificamente a condição da vida política – não somente a conditio sine
qua non, mas a conditio per quam.”
Arendt, The Human Condition, p. 7.
124. A natalidade

“Estas três atividades e as suas condições correspondentes estão


intimamente conectadas com a condição mais geral da existência
humana: nascimento e morte, natalidade e mortalidade. O trabalho
assegura não só a sobrevivência individual, mas a vida da espécie. A obra
e o seu produto, o artefacto humano, confere uma medida de
permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter fugaz
do tempo humano. A ação, na medida em que está empenhada em
fundar e preservar os corpos políticos, cria a condição da memória, ou
seja, da história. O trabalho e a obra, assim como a ação, estão também
radicados na natalidade, porquanto têm a tarefa de prover e preservar o
mundo para o constante influxo de recém-chegados que nascem no
mundo como estranhos, de providenciar e de contar com eles.
125. A condição da ação e da natalidade

“No entanto, de todas as três, a ação tem a conexão mais próxima


com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente
ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o
recém-chegado possui a capacidade de começar algo novo, ou
seja, de agir. Neste sentido de iniciativa, um elemento da ação e,
portanto, da natalidade, é inerente a todas as atividades
humanas. Além disso, uma vez que a ação é a atividade política
por excelência, a natalidade, e não a mortalidade pode ser a
categoria central do pensamento político, enquanto se distingue
do pensamento metafísico.”
Arendt, The Human Condition, pp. 8-9.
“O surgimento da sociedade de massas […] apenas mostra que os vários 126. O
grupos sociais sofreram a mesma absorção numa mesma sociedade que a trabalho e a
sociedade de
família anteriormente unia e absorvia; com o aparecimento da sociedade de massas
massas, o domínio do social alcançou finalmente, após vários séculos de
desenvolvimento, o ponto em que abrange e controla todos os membros de
uma comunidade dada, de modo igual e com a mesma força. Mas a
sociedade igualiza sob todas as circunstâncias, e a vitória da igualdade no
mundo moderno significa somente o reconhecimento político e legal do
facto de que a sociedade conquistou o domínio público, e que a distinção e
a diferença se tornaram assunto privados do indivíduo.
“Esta igualdade moderna, baseada no conformismo inerente à sociedade e
unicamente possível porque o comportamento substitui a ação como o
modo predominante da relação humana é, em todos os aspectos, diferente
da igualdade na antiguidade e, especialmente, nas cidades estado gregas.”
Arendt, The Human Condition, p. 41.
127. O espaço público

“O termo «público» significa dois fenómenos intimamente relacionados,


mas não inteiramente idênticos:
“Significa, em primeiro lugar, que tudo o que aparece em público pode
ser visto e ouvido por todos, e tem a máxima publicidade possível. Para
nós, o aparecer – algo que é visto e ouvido por outros, assim como por
nós próprios – constitui a realidade. Comparado com a realidade que
provém de ser visto e ouvido, mesmo as maiores forças da vida íntima –
as paixões do coração, os pensamentos da mente, as delícias dos
sentidos – possuem um tipo de existência incerto, nebuloso, pelo menos
até que sejam transformados, desprivatizados e desindividualizados, por
assim dizer, numa forma que lhes sirva para a aparição pública.”
Arendt, The Human Condition, p. 50.
128. Trabalho e consumo

“A revolução industrial substituiu todo o artesanato


pelo trabalho, e o resultado foi que as coisas do
mundo moderno se tornaram produtos do trabalho,
cujo destino natural é serem consumidos, ao
contrário dos produtos da obra, que é o de serem
usados.”

Arendt, The Human Condition, p. 124.


129. Uma sociedade de trabalhadores

“Diz-se frequentemente que vivemos numa sociedade de


consumo e, por isso, como vimos, o trabalho e o consumo
não são mais do que estádios de um mesmo processo,
imposto sobre o homem pela necessidade da vida, isto é
somente uma outra maneira de dizer que vivemos numa
sociedade de trabalhadores.”

Arendt, The Human Condition, p. 126.


130. A cultura de massas

“A desconfortável verdade é que o triunfo que o mundo moderno alcançou


sobre a necessidade se deve à emancipação do trabalho, ou seja, ao facto de
que foi permitido ao animal laborans ocupar o domínio público; e, contudo,
enquanto o animal laborans continua na posse desse espaço, não pode haver
verdadeiro domínio público, mas somente atividades privadas levadas a cabo
publicamente. O resultado é o que se chama eufemisticamente cultura de
massas, e o seu problema, profundamente enraizado, é uma infelicidade
generalizada, devida, por um lado, ao equilíbrio problemático entre o trabalho e
o consumo e, por outro, às exigências persistentes do animal laborans para
obter uma felicidade que só pode ser alcançada lá onde os processos da vida,
de exaustão e regeneração, de dor e alívio da dor, encontram um equilíbrio
perfeito.
…/…
131. Sobre a felicidade

“A demanda universal da felicidade e a infelicidade generalizada na


nossa sociedade (e estes são apenas os dois lados da mesma moeda),
estão entre os sinais mais convincentes de que começámos a viver
numa sociedade do trabalho a que falta trabalho suficiente para a
manter satisfeita. Porque unicamente o animal laborans, mas não o
artesão nem o homem de ação algumas vez buscaram ser «felizes»
ou supuseram que os mortais poderiam ser felizes.”

Arendt, The Human Condition, p. 133-134.


132. Sobre o significado humano
do trabalho e as máquinas

“Uma sociedade de trabalhadores, o mundo das máquinas


tornou-se um substituto do mundo real, ainda que este pseudo-
mundo não possa preencher a mais importante tarefa do
engenho humano, que é a de oferecer aos mortais um lugar onde
habitar, mais estável e permanente do que eles próprios.”

Arendt, The Human Condition, p. 152-153.


“O facto de que o homem é capaz de ação significa que o inesperado
133. Ação
pode ser esperado dele, que é capaz de realizar o que é infinitamente e
improvável. E isto é possível, por sua vez, somente porque cada homem identidade

é único, de tal modo que com cada nascimento algo de unicamente


novo vem ao mundo. No que se refere a este alguém que é único, pode-
se verdadeiramente dizer que ninguém o precedeu. Se a ação como
começo corresponde ao facto do nascimento, se ela é a atualização da
condição humana da natalidade, então a fala corresponde ao facto do
ser distinto, e é a atualização da condição humana da pluralidade, ou
seja, de viver como um ser distinto e único entre iguais.
“A ação e a fala estão tão intimamente relacionados porque o ato
primordial e especificamente humano tem, ao mesmo tempo, de conter
a resposta à questão levantada a todo o recém-chegado: «quem és
tu?»”
Arendt, The Human Condition, p. 178.

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