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língua escondida a norte

de Portugal
A opinião de
Quando andamos pela Europa, estamos habituados a que ninguém nos
compreenda quando falamos português. Ora, há um povo que percebe o
que dizemos, mas nós nem notamos...
Quando vamos à Galiza, nem sempre reparamos que, além do castelhano, há
por lá outra língua. E, no entanto, essa língua está bem visível em muitos locais.
Por exemplo, nas placas da estrada. Sempre com cuidado (não vá bater no carro
da frente), repare na «Rede de Estradas do Estado» por cima da castelhana «Red
de Carreteras del Estado».

Se não puder ir lá ver ao vivo, deixo aqui uma foto para ajudar (o nome da
«autopista» está em castelhano, mas a indicação da rede está nas duas línguas):
Placa créditos: DR
Depois, os nomes das terras estão em galego. A população sempre usou estes
nomes, mas, durante algum tempo, os nomes nas placas da estrada foram
escritos em castelhano. Hoje, não é isso que acontece. Os topónimos galegos
são escritos, oficialmente, em galego: «A Coruña», «A Guarda», «Ourense»,
entre tantos outros.

Continue pela estrada. Os cartazes publicitários estão, em muitos casos, em


castelhano. Mas nem todos. Como distinguir as duas línguas? Bem, para um
português, não é difícil: o galego está muito, mas muito próximo do
português… Em vez de «aeropuerto», temos «aeroporto». Em vez de «leche»,
temos «leite». Se andar por uma loja galega, talvez encontre expressões como
«Servizo ao Cliente» em vez de «Servicio al Cliente».
Em muitos casos, temos as duas línguas lado a lado. Se quiser sair de algum
sítio, procure a «salida» — ou a «saída» (e note que a avenida é «do Camiño
Francés» e não «del Camino Francés»…):

Placa créditos: DR
Na oralidade, há momentos em que as duas línguas se misturam na mesma
frase. Há também muitas pessoas que falam castelhano no dia a dia,
principalmente entre os mais jovens. E, no entanto, como quase todos os
galegos conhecem o galego, compreendem com pouca dificuldade aquilo que
um português diz. É por isso que digo: na Galiza, faça o esforço de não falar em
castelhano — afinal, somos portugueses, os maiores especialistas ibéricos em
não falar espanhol!

Já que podemos usar a nossa própria língua, proponho também: quando ouvir
um galego a falar galego, oiça com atenção. É verdade que os sons são
diferentes, há alguma dificuldade inicial… Mas, escondidos por baixo das vogais
mais abertas, de consoantes que nos lembram o castelhano, de um ritmo
diferente das frases, temos muitos dos nossos verbos, muita da nossa
gramática. Temos também palavras bem populares, que saem da boca dos
galegos sem dificuldade: «medrar», «auga», «xantar» — esta última palavra é o
nosso «jantar», que o galego escreve com «x» e come por volta da hora do
nosso almoço.

É verdade que, na escrita, há alguns elementos que estranhamos: os «x» onde


nós usamos «j» ou «g», os «ñ» e os «ll» a aproximarem-se da ortografia
castelhana, os «z» onde nós usamos o «ç». Esta é a ortografia oficial do galego,
ensinada nas escolas, e as diferenças que tem em relação à nossa ortografia não
impedem que um português leia um texto galego. No entanto, perante tanta
proximidade entre galego e português, alguns galegos preferem usar uma
ortografia mais próxima da portuguesa. São os reintegracionistas e escrevem as
palavras assim: «jantar», «Corunha», «filho», «língua», «caminho»…

Donde vem esta proximidade entre galego e português? Quando D. Afonso


Henriques criou o nosso reino, o que se falava nas ruas era já uma língua bem
distante do latim e essa língua (a que ainda ninguém dera o nome de
português) era falava tanto a norte como a sul do Minho — e assim continuou
pelos séculos fora. Quando a capital se estabeleceu em Lisboa, o português-
padrão afastou-se, gradualmente, dos usos galegos e nortenhos, mas a
proximidade nunca desapareceu e é, ainda hoje, especialmente visível entre o
que se fala na Galiza e o que se fala no Norte de Portugal.

A proximidade linguística tornou-se, isso sim, muito discreta: não só os galegos


falam e usam muito castelhano, apesar da sobrevivência da sua língua na
oralidade, como nós temos alguma dificuldade em distinguir o galego na fala,
por termos hoje uma fonética muito diferente.

A fonética é diferente, mas as palavras são tão nossas que arrepiam... Os


galegos até se atrevem a usar a palavra «saudade»!
Esta pequena crónica é um convite para conversar e ler: afinal, conversar é
muito bom — e ler é medrar. Sem ter de usar o famoso portunhol, podemos
conversar com os galegos. Sem ter de aprender uma língua nova, podemos ler
galego. A proximidade é inegável e as diferenças são deliciosas. Da próxima vez
que for a Vigo, é verdade que ouvirá muito mais espanhol do que galego. Mas
experimente falar em português: verá que quase todos nos entendem. Depois,
entre numa livraria. Pegue num livro das estantes da literatura galega. Leia um
ou dois parágrafos. Irá descobrir que tem uma literatura inteira ao seu dispor,
no original.

Continue a viagem: procure uma aldeia galega. Converse com quem lá anda.
Terá uma grande surpresa! É até possível que alguém lhe diga, ao despedir-se,
neste mês de dezembro, uma frase galega: «Boas Festas!»

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na


página Certas Palavras. A crónica acima é uma revisão de crónica anterior.

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