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DA

DEMOCRACIA
EM PORTUGAL

GOSTOS?
DISCUTEM-SE.
Descobre o novo artigo de opinião por
Martim Dinis.

Alterações às Leis e Sistemas Eleitorais


Por Afonso Oliveira, Guilherme Mateus, Martim Dinis e
Tomás Pires

"Mas Isso Existe?" - Opressão e Sexualidade no EDIÇÃO XII


Estado Novo
Por Inês Simões
Abril de 2022
Sud de la France: "Every Man Has Two Countries - His
Own and France" - Thomas Jefferson
Por Beatriz Lourenço Pereira
CONTEÚDO
04 LÁ FORA

Secção dedicada a assuntos internacionais.

20 ESTADO DE DIREITO(S)

Secção dedicada a direitos humanos.

25 A MEU VER

Secção dedicada à opinião.

44 ( C R I A )T I V I D A D E

Secção dedicada à expressão criativa.

52 NÚCLEO MUSICAL

Secção dedicada à exploração da música.

61 ESPAÇO CULTURA

Secção dedicada a recomendações culturais.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 2


LÁ FORA

Moldávia:
Aproximação ao
Ocidente ou à Rússia?
POR PATRICIA NERUTA

Com o desmembramento da URSS e as


consequentes declarações de independência dos
Estados, a vaga da democratização pressupõe, de
acordo com Dumitru Sandu “a mudança, isto é,
uma série de situações intermediárias entre duas
situações de equilíbrio relativo, identificados por
experiência, conhecimento ou projeto. Se no caso
da transição pós-comunista, a origem é o
socialismo real dos anos 80 do século XX, e a
destinação pretendida, explícita ou implícita, é a
economia de mercado e a democracia, o
capitalismo democrático associado ao bem-estar,
à concorrência e à liberdade”.

Face à transição democrática, muitos destes


novos Estados depararam-se com várias minorias
étnicas que contribuíram para o crescimento de
movimentos separatistas dentro dos seus
territórios. Dentro dos quais, a Moldávia que
integra uma região separatista russa com
relativamente pouca ligação histórica, a
Transnístria.

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O independentismo da Transnístria atuou com Ou seja, a estratégia de Stalin consistiu em


maior força no início dos anos 90, acabando por “russificar” a Moldávia, de modo que, a população
ocorrer em 1992 um conflito armado. Atualmente esquecesse a sua nacionalidade, o seu passado e a
mantêm-se como uma região que se caracteriza sua história, no fundo quem eram como coletivo.
“sem paz e sem guerra”, sendo então um conflito Os valores que até então se assemelhavam aos do
congelado. seu país vizinho, a Roménia, foram completamente
modificados e afastados.
Geograficamente, a Moldávia fizera parte do
Principado da Moldávia, que englobou territórios As elites políticas viam no povo moldavo o
que, no presente pertencem à Ucrânia e à carecimento de lealdade ao regime, e, portanto, a
Roménia. Este território, ao longo do século XIX, população foi fortemente reprimida, através dos
foi disputado entre o Império Otomano, Russo e o encarceramentos e deportações em massa,
de Habsburgo da Áustria. Dado a subida ao poder ocorridas, nomeadamente, a junho de 1941, julho de
por parte dos bolcheviques em 1917, a Moldávia 1949 e em abril de 1951, destas vagas, sobressai a
uniu-se à Roménia, porém esta união nunca foi ocorrida em 1949, onde 11.606 mil famílias dentro
reconhecida pela Rússia. das quais 11.889 mil crianças, foram enviadas para
os campos de concentração na Sibéria.
Em 1939, a Alemanha e a URSS assinaram o Pacto
Molotov-Ribbentrop, que obrigou a Roménia a Ao mesmo tempo, a região da Transnístria,
ceder-lhes o Território, no entanto, a anexação da favorecida por Moscovo, passava por um processo
Moldávia por parte da URSS acabaria por se de modernização e deteve (e ainda detém) a maior
dissolver, quando a Roménia aliou-se à Alemanha, parte das indústrias, acabando por deter todo o
permitindo-a reconquistar não só a Moldávia como poder económico e político. Estas diferenças
também a Transnístria. regionais e o sentimento de superioridade que eles
tinham sob os moldavos, levou ao aumento de
A ocupação romena só resistiu até 1943, ano em tensões entre os dois lados.
que o Exército Vermelho avançou até ao rio Prut,
delimitando a fronteira entre a URSS e a Roménia, A questão da reunificação entre a Moldávia e a
em 1947 oficializou-se, através do Tratado Roménia voltou a ser reforçada em 1964, com o
soviético-romeno. Assim sendo, foi declarada a aparecimento de movimentos de União; estes
República Soviética Socialista da Moldávia que movimentos nacionalistas conseguiram em 1989,
compreendia a região moldava e a região da declarar o romeno como língua oficial; alterar a
Transnístria (pertencera anteriormente à Ucrânia). bandeira e o hino nacional. A Frente Popular da
Moldávia foi importante para ressuscitar a
A URSS percebeu que as populações destas duas identidade moldava que a Rússia tentou eliminar,
regiões, agora unidas, eram distintas, logo, da “russificação”, sentiu-se uma “romenização”. As
começou por criar uma identidade nova, minorias étnicas para lá do rio Nistru sentiram-se
pretendendo distanciar a população do seu ameaçadas, tal como a região da Gagauzia que se
passado: foram introduzidas políticas de migração, localiza a Sul.
para aqueles que emigrassem para a Moldávia,
sobretudo para que os russos e ucranianos se A Transnístria opondo-se aos movimentos tentou
integrassem com os nativos e o alfabeto latim foi autonomizar-se economicamente e desprender-se
substituído pelo alfabeto cirílico. das novas leis que iam sendo implementadas.

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Os moldavos não só queriam declarar Esta competição de elites nasceu da disparidade


independência da URSS como unir-se à Roménia. A de condições e estilos de vida fomentadas no
verdade é que a irmandade destes dois Estados, período soviético. A elite da Transnístria era
sempre se manteve presente. apoiada por Moscovo, enquanto a elite da Moldávia
era influenciada pela Roménia.
A 2 de setembro de 1990, a Transnístria declarou
independência e a 27 de agosto de 1991, a O curto conflito militar resultou no cessar-fogo
Moldávia desagregou-se totalmente da URSS. No entre Chisinau e Moscovo, dentro das várias
mesmo ano, Igor Smirnov foi eleito presidente na questões, Moscovo afirmou que tropas russas
região separatista. Como líder, abertamente pró seriam mobilizadas e vistas como peacemakers de
Rússia, obteve o apoio das minorias de forma a possibilitar a consolidação do poder da
ascendência russa, militarizando-se a região, em Transnístria. A constante consolidação do poder
especial, Tiraspol (capital da Transnístria), para se tornou este conflito num conflito congelado. Em
defender e assegurar o seu interesse pela 1993, a comunidade internacional atuou no
independência. processo de resolução do conflito, sob o formato
da CSCE que futuramente se passou a denominar
Em 1992, o governo em Chisinau constituiu um OSCE. A CSCE, desde 1993 passou a liderar o
exército que fizesse face às pretensões conflito, com o apoio bilateral da Rússia e da
separatistas da região russófona, Tiraspol para Ucrânia, e em 2005 juntou-se os EUA e a UE.
contrapor estas ações, formou o seu exército
composto por milícias populares, por antigos A ambição da Transnístria varia entre a
membros do 14º exército soviético e ainda com independência com o devido reconhecimento
voluntários russos e ucranianos que apoiavam esta internacional ou uma confederação flexível com
independência. Este exército somava cerca de 10 Chisinau. O conflito não demonstra qualquer tipo
mil tropas, ultrapassando o número de tropas de solução e permanece então congelado até aos
moldavas, sendo de realçar que, o 14º exército dias de hoje. Independentemente das suas
tornou-se a maior força dos separatistas e a sua aspirações separatistas, nenhum país soberano ou
razão de terem conseguido criar o seu próprio organização reconhece a Transnístria e é então
regime. caracterizada como um Estado de facto.
Em 2006, num referendo cerca de 98% dos
As razões deste conflito assentam numa eleitores eram a favor da independência e da
combinação dos efeitos da política de probabilidade de fazerem parte da Federação
nacionalidade soviética, da divisão desigual de Russa.
recursos dentro da Moldávia e dos frutos das
reformas liberais de Gorbatchov. Apesar das A comunidade internacional acusa a Transnístria
diferenças étnicas e linguísticas terem estado no de estar envolvida em inúmeros crimes,
centro da questão numa fase inicial, estas nomeadamente a lavagem de dinheiro e tráfico de
serviram sobretudo para motivar e polarizar as armas. Acrescento ainda que, a região está
tropas. extremamente favorável à criação de grupos
terroristas e de tráfico de droga.
Não foi um conflito longo, nem particularmente
mortífero, ao contrário dos conflitos que A Transnístria tornou-se um problema de
sucederam ao fim da Jugoslávia, por exemplo, segurança para a Europa, principalmente após a
sendo caracterizado, sobretudo, pela história, adesão da Roménia à União Europeia e à NATO,
geografia e essencialmente pela competição entre visto que colocou a Moldávia como vizinha destas
as elites dos dois lados. organizações.

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Andrey Devyatkov, diz-nos que existem dois tipos Dentro da UE, a Roménia expressa o apoio que
de relação entre a Rússia e os Estados que quer prestar à Moldávia. Em 2011, o então
fizeram parte da URSS, um destes tipos de relação Presidente romeno, Traian Basescu, declarou que a
é o Estado Patrão - Estado Cliente. A Transnístria Roménia não pretendia anexar a Moldávia, mas sim
e a sua situação correspondem à analogia, patrão- auxiliá-la a tornar-se um Estado membro da União
cliente; ou seja, o Estado patrão (ator mais forte) Europeia.
dá apoio económico ao Estado cliente (ator mais
fraco), em troca de apoio diplomático. A Rússia Bucareste ajuda financeiramente Chisinau, entre
neste caso fornece o gás, através da empresa 2014-2020, foram dados 89 milhões de euros, com
Gazprom, que é então vendido a baixo preço, o objetivo de modernizar o país. O governo romeno
gerando prejuízos para a MoldovaGaz. apresenta-se como defensor da Moldávia nos
vários círculos europeus e internacionais,
A orientação ideológica do Estado cliente apoiando-a nas candidaturas para várias
demonstra que a sobrevivência da Transnístria organizações internacionais, como o Conselho da
depende da proteção no domínio militar, Europa e a ONU, advogando os interesses e
económico e político da Federação Russa. posições do seu país vizinho nos organismos dos
quais faz parte.
A vantagem estratégica, no mundo pós-guerra
fria, e a competição entre o Ocidente e a Rússia A política externa romena segue o princípio de
intensificou-se, com Moscovo considerando que “uma só nação – dois Estados”, o seu objetivo é
possui o direito de influência sob esta região. Aos muito simples, a adesão da Moldávia à UE. Sente
russos, o controlo e influência alcançadas nestas que tem o dever moral de preservar a soberania e
regiões, como a Transnístria, impede com que a integridade territorial moldava, por isso vê-se na
países, como a Ucrânia e a Moldávia, administrem obrigação de ajudar politicamente e
devidamente estas áreas, influenciadas pela economicamente o seu país vizinho.
Rússia.

A Moldávia, atualmente, divide-se entre aqueles


que defendem aproximar-se de Moscovo e aqueles
que pretendem seguir os passos da Roménia e
ligar-se à UE e à NATO.

A Roménia tem uma relação especial com a


Moldávia, não só são vizinhos como lhe é
conveniente que se resolva o conflito, de forma a
conseguir reforçar e estreitar os seus laços
políticos e económicos. Apesar dos movimentos
nacionalistas de ambos os países acreditarem que
a reunificação seria a única opção viável, estes
ideais foram mais tarde implementados em
partidos políticos (AUR); acredita-se que ambos os
países soberanos devem manter fortes relações
bilaterais. A Roménia será sempre vista como um
país irmão e vice-versa.

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Devido ao conflito congelado, a europeização da


Moldávia torna-se muito difícil, a Transnístria
sufoca todo o processo e impede-a de seguir a via
do Ocidente. Desde 2007, que a UE começou a
tomar várias medidas que tivessem o intuito de
integrar a Moldávia dentro do círculo europeu; em
2008 a UE implementou Preferências Comerciais
Autónomas (PCA) para a Moldávia conseguir
exportar os seus produtos para o mercado
europeu sem restrições nem taxas.

A Rússia tentou impedir este avanço europeu,


dando-lhes a hipótese de pertencerem à União
Aduaneira Euroasiática, mas Chisinau rejeitou. A
assistência europeia para a Moldávia tem vindo a
crescer, e os vários programas alcançaram
orçamentos de 550 milhões de euros. A integração
europeia da Moldávia tem crescido, o que contribui
para aproximar o país à UE e afastar-se assim da
influência da Rússia.

Os países que integram o espaço pós-soviético


deparam-se com um clima de tensão entre a
Rússia e o Ocidente. A Moldávia é um Estado que
se encontra geograficamente entre as duas
esferas de influência, tendo uma história marcada
pelas suas relações com a Roménia e com a Rússia.
Ao mesmo tempo que se aproxima da UE, tem
ainda presença militar russa na Transnístria.

De acordo com Eugene Rumer, “a capacidade da


Moldávia em se equilibrar entre estes dois polos de
atração, deve ser um factor importante na
definição do seu futuro”, diz ainda que para o
Kremlin o avanço da UE ameaça a posição da
região separatista russa.

Em suma, o regime democrático moldavo é ainda


relativamente recente, é uma democracia que
herdou um passado soviético. Inclui por isso, a
subordinação política das instituições
governamentais. Desde as eleições legislativas de
2021, é expectável que o PAS cumpra com o que
afirmou no seu discurso de anticorrupção e que
demonstre, pragmaticamente, uma maior
aproximação à Europa, como prometido.

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Sánchez a 180.º
POR JOÃO QUARESMA

Em Março, Pedro Sánchez, provocou um terramoto


político com epicentro em terras de nuestros
hermanos, e réplicas no Magrebe. Motivo? O
abandono histórico e repentino da posição de
Madrid face ao Saara Ocidental, decidindo
oferecer respaldo ao plano marroquino datado de
2007 que prevê um estatuto de autonomia saarauí
num Reino centralizado, abatendo legítimas
esperanças de ir além e apontar à independência.

No cerne da questão está o princípio de


autodeterminação, plasmado na Carta da ONU no
artigo 1º. Tal não equivale, contrariamente à
leitura típica e leiga, à independência imediata com
base num qualquer trato cultural, mas sim ao
direito dos povos escolherem o seu estatuto
político, e o caminho a tomar para o
desenvolvimento socioeconómico.

Um caso bicudo com barbas, repercutido na UE,


que promete mais capítulos, e expõe o quão tensa
pode ser a relação entre a política doméstica,
interesses, e Direito Internacional.

The New York Times

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Um Pouco de Contexto… A tensão agravou menos de um mês depois,


quando Trump reconheceu a soberania marroquina
sobre o Saara, como quid pro quo pela
O Saara Ocidental é caso raro nos dias que
normalização das relações marroquino-israelitas –
correm. O conflito data de 1975, quando Espanha
um ato que, de resto, Biden não desfez; pelo
saiu da colónia por via dos Acordos de Madrid,
contrário, no mês passado fez questão de apoiar o
propondo um referendo de autodeterminação.
plano de autonomia marroquino.
Marrocos, temendo perder influência, organizou
em resposta, conjuntamente com a Mauritânia, a
Marcha Verde, ocupando o território.
Tesouros do Saara

Na prática, constitui-se ainda como a última Mas afinal, qual o interesse de Marrocos? O
colónia espanhola (e africana) – fazendo da primeiro motivo remete para os laços históricos. O
palavra de Espanha um vetor incontornável na Tribunal Internacional de Justiça reconheceu-os no
resolução do conflito – ao mesmo tempo que um parecer de 1975… mas afiançou serem insuficientes
governo saarauí, representado pela Frente para quaisquer pretensões marroquinas de
Polisário e exilado na localidade argelina de soberania.
Tindouf, luta pela emancipação perante Marrocos,
contando com o apoio inabalável dos referidos Mais que capitalizar o “marrocanismo” que Rabat
Argelinos. revê no Saara, o interesse é económico. A ZEE
marroquina poderia ser ampliada, beneficiando da
Embora o Saara seja membro-fundador da União vasta costa saarauí. A intenção de Rabat se
Africana, a ONU rotula-o como um dos “territórios expandir pelo Atlântico não é nova: foi, aliás, foco
não-autónomos” do mundo, ao lado dos “overseas de tensão também em 2020, quando o Parlamento
territories” britânicos, Nova Caledónia, Polinésia marroquino decidiu, ilegal e unilateralmente,
Francesa, Guam, Samoa Americana, Virgens estender a sua ZEE à região das Canárias,
Americanas, e Toquelau. O estatuto advém da intrometendo-se desenvergonhadamente no
Carta da ONU, cujo artigo 73º os caracteriza como domínio espanhol.
“territórios cujos povos ainda não se governam
completamente a si mesmos”. Tradução: são São águas propícias à pesca, e os mais diversos
colónias modernas. recursos que daí possam advir são chamariz
suficiente. Certo é que já desde 2014 Marrocos
Embora o Saara Ocidental seja aos olhos da ONU tem intensificado as prospeções de petróleo nas
responsabilidade espanhola, 80% do território é águas saarauís, prevendo-se a presença de
controlado de facto por Marrocos, e os restantes reservas significativas não só do ouro negro, mas
20% pela Frente Polisário. também de gás natural.

Até 2020, poucas ondas se levantavam. Todavia, Controlar a zona costeira saarauí mataria dois
nesse ano, após forças marroquinas terem coelhos com uma cajadada: Rabat garantia um
trespassado o posto fronteiriço de Guerguerat, recreio maior para explorar recursos, e impediria
junto à Mauritânia, em resposta a um bloqueio qualquer possibilidade da vizinha Argélia aceder às
saarauí numa autoestrada conectada à Mauritânia, mesmas águas.
a Frente Polisário declarou o regresso ao
confronto armado, alegando que as ações de
Rabat contrariaram o cessar-fogo de 1991
patrocinado pela ONU.

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Contudo, é em terra que está enterrado o grande Não se agrada a Gregos e Troianos…
tesouro saarauí: as maiores reservas mundiais de nem a Marroquinos e Argelinos (e
fosfato, um dos principais químicos fertilizantes no
Espanhóis).
mundo agrícola.

Partidos mais alinhados com o Governo não se


São reservas que fazem de Marrocos o maior
contiveram. Destaque para o Unidas Podemos (UP),
exportador mundial de fosfato e, por inerência à
que apelidou de “injustificável” a viragem de 180º,
relevância do fosfato no setor primário, basilar
acusando Sánchez de se colocar “ao lado de
para a sobrevivência das populações, um player
ocupantes” e denunciando a hipocrisia do Governo,
(discreto) com peso e alavancagem consideráveis
comparando a defesa dos direitos dos Ucranianos
na economia global.
ao abandono dos Saarauís.

Também Más País e ERC apressaram-se a criticar,


embora os catalães recusem queimar pontes de
diálogo. Sem grandes surpresas, no Congresso dos
Deputados, todos os partidos, do Vox ao Bildu,
isolaram o PSOE. A decisão foi ainda recebida com
uma grande manifestação na capital, tendo
milhares demonstrado apoio ao Saara.

Fora de portas, a Argélia mostrou-se “espantada”,


convocou Said Moussio, embaixador em Madrid, e
emitiu um comunicado com a China, exortando a
que se atenda ao Direito Internacional, às
resoluções da ONU e que se encontrem “soluções
africanas para questões africanas”.

O envolvimento chinês parece invulgar, mas mais


não é do que nova investida na tentativa de
granjear apoios por terras africanas, procurando
gravitar os Africanos para a sua esfera de
influência e reforçar a sua pegada internacional.
Simultaneamente, advogando soluções locais,
procura afastar as potências ocidentais dos
palcos decisórios, e encarnar como mediador
imparcial.

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Não é só uma questão espanhola… mas europeia No rescaldo da crise, diga-se, Sánchez demitira a
É impossível menosprezar a importância de então MNE, Arancha González, aparentemente
Marrocos para a UE. À cabeça, todo o setor cedendo a Mohamed VI. Prenúncio do u-turn?
agrícola europeu depende do fosfato
“marroquino”. Marrocos é também um mercado À semelhança da Turquia, principal “tampão” de
emergente para firmas europeias de defesa. migrantes, que ameaça Bruxelas constantemente
com o romper do polémico acordo firmado em
Mais do que interesses económicos, Marrocos é 2016, também Marrocos sabe que pode usar os
indispensável para as políticas de migração migrantes como trunfo para pressionar os
prosseguidas pela UE, apostando claramente na Europeus.
“externalização” e “securitização” fronteiriças: é
um “parceiro privilegiado” segundo a Política Ensinam-nos a política e a diplomacia que cada um
Europeia de Vizinhança e a Frontex atua em joga com o que tem e que interesses nacionais
Marrocos, empurrando para sul a fronteira estão acima de tudo. Nesse sentido, é lamentável
externa europeia. Rabat recebe de Bruxelas que tantas vezes aqueles que mais precisam de um
(muitos) milhões para promover “estabilidade” na porto de abrigo, de esperança, sejam equiparados
região, isto é, impedir a passagem de migrantes. a armas, os seus direitos enlameados e as suas
preces negadas por quem se acha apto a armar-se
A migração é o calcanhar de Aquiles comunitário. num qualquer Deus com poder para decidir sobre
vidas humanas. É doloroso, mas é a realidade, são
É umas das principais fontes de discórdia entre as regras do jogo que ninguém escreveu, mas às
membros e combustível para nacionalistas. É o quais todos se adaptam.
principal desafio para a UE mostrar que defende
sempre os valores liberais que apregoa, e não Vale ainda a pena referir que a decisão espanhola
apenas quando convém… Princípios deixam de o ser pode abrir um impasse energético. Cada um joga
se os escolhemos a dedo: a política migratória com o que tem, e a energia, como já ficou
europeia está constantemente sob fogo, com evidente, é um poderoso trunfo. Se países como a
acusações de violações de direitos dos migrantes Alemanha dependem da Rússia, a Península Ibérica,
e refugiados plasmados nas Convenções de especialmente Espanha, depende muito da Argélia.
Genebra – particularmente o incumprimento do É improvável que Argel vá tão longe, mas face aos
“non-refoulement” – ou de inobservância dos tempos incertos que se vivem, só a mera
critérios para classificar um país terceiro como possibilidade é um risco a não descurar.
“seguro”.
O Paradoxo Catalão que Ensombra
Assim, até pode ser advogado que este giro de Madrid
180º nada tem a ver com autodeterminação, mas
migração.
Reforço: a decisão de Sánchez é histórica, para o
bem ou para o mal, e repentina. Em boa verdade, e
Basta recordar 2021, quando Marrocos abriu as
em sua defesa, como tudo em política, qualquer
fronteiras e permitiu que uma onda de migrantes
posição adotada traz atrelados prós e contras,
varresse Ceuta e Melilla – as únicas fronteiras
dificilmente concebendo uma postura
terrestres África-UE – em retaliação à
unanimemente aceite e imune a críticas.
hospitalização em Logronho de Brahim Ghali, líder
da Frente Polisário.

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The New York Times

Mas este caso é sobretudo estranho por ser


paradoxal em diferentes níveis. Analisando
friamente o que está em causa para Espanha,
parece surpreendente a demora deste u-turn.

Por um lado, infelizmente, a crença na busca por


uma solução de dois estados parece cada vez mais
esmorecida face à situação no terreno; é cada vez
mais provável que só uma solução nos moldes da
apresentada traga estabilidade aos Saarauís,
sacrificando-se, todavia, as suas legítimas
aspirações de emancipação. Por outro, Espanha
tem de olhar para si própria.

A questão separatista só por si caracterizaria a


A sombra catalã paira e a chama independentista
postura tradicional como paradoxal, mas este u-
reluz, recordando que a maioria parlamentar na
turn também não deixa de ser paradoxal face à
Catalunha é pró-independentista. É um facto que
fragilidade do atual governo. Sánchez conta com o
as situações catalã e saarauí são diferentes, e as
UP, mas não é o BE castelhano que lhe vale uma
condições de vida de Catalães e Saarauís
maioria absoluta: juntos ficam a 22 deputados,
incomparáveis. Mas o espírito de ambas
estando dependentes das boas graças de partidos
reivindicações e os principais contra-argumentos
independentistas.
são, na sua essência, idênticos: já em 2012, José
Maria Aznar defendia a impossibilidade
As divergências entre PSOE e UP são frequentes,
constitucional da secessão catalã, já que os
tornando o desconforto constante. A isso acresce
catalães votaram a Constituição de 1978.
a economia minada pela Covid e por Putin,
dificultando consideravelmente a ação executiva.
Marrocos emprega retórica semelhante ante a
ONU, enaltecendo que o Saara nunca existiu como
A reviravolta espanhola, o seu timing, pode ser um
estado independente, tendo estado integrado no
inesperado golpe (autoinfligido) num primeiro-
seu Reino por mais de 500 anos.
ministro que já mostrou ter o condão de
ressuscitar politicamente contra todas as
Assim, cogitando racionalmente, não deixa de ser
expectativas, um golpe que azedará (mais) a
politicamente surpreendente que Espanha nunca
relação com o parceiro da coligação.
tenha, até agora, mudado de posição. Uma posição
pró-saarauí é inequivocamente uma postura pró-
Isto é tudo muito bonito, mas…
autodeterminação, o que acaba por alimentar, por
via de interpretações político-jurídicas mais ou
menos credíveis, os sonhos separatistas espanhóis, Sendo eu próprio estudante de Direito
sejam eles catalães, bascos, andaluzes ou galegos… Internacional, e firme crente no multilateralismo, o
quiçá abrindo uma caixa de Pandora pela Europa dossier saarauí é penoso. Comprova que o Direito
fora. Sacrificar as pretensões saarauís poderá ser Internacional nunca se concretizará em todo o seu
novo passo para esvaziar crises identitárias e esplendor por estar dependente da política dos
salvaguardar a unidade nacional. Estados que o escrevem.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 13


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Bismarck dizia que a política é a arte do possível.


Depende, tal como a diplomacia, de compromissos
e cedências em nome do melhor panorama
possível. Mais, depende da “big picture”. Sánchez
afirma que a sua posição não colide com a
autodeterminação; até pode ser uma meia-
verdade se a proposta for seriamente votada
pelos Saarauís, mas seja como for, estes nunca
terão a total liberdade exigida pelo artigo 1º da
Carta para escolher o seu caminho, apenas, no
melhor cenário, o livre-arbítrio para aceitar ou
rejeitar uma opção.

O cenário é claro: cede-se a vontade saarauí por


um compromisso com a estabilidade. E a “big
picture”? Uma potencial cimentação (e expansão)
da influência democrática europeia no Magrebe,
permitindo à Europa marcar pontos na nova ordem
mundial que ganha forma. Nem que para isto se
contornem Direito Internacional, resoluções
onusianas e até acórdãos do Tribunal de Justiça da
UE.

São os independentistas acordando para a


realidade. Uns puros radicais, outros sonhadores,
transportando consigo a vontade dum povo,
ousando assumir crenças e lutar por elas. Há uma
dose de loucura em todos eles, legítimos e
ilegítimos, ansiando serem mais que bestas sadias
numa visão pessoana… mas é com essa loucura que
nascem Estados e figuras.

Há algo de tentador e encantador em causas como


a saarauí: a paixão pela nação, o espírito de
unidade. Pode ser uma tentação capaz de ameaçar
o status quo, pode ser uma loucura para alguns.
Talvez nós, Portugueses, sem grande registo de
separatismos, herdeiros de um verdadeiro Estado-
nação, não compreendamos. Talvez demos a
unidade por garantida.

Mas coloque-se o leitor nos pés dos Saarauís e


questione-se: conseguiria trocar nação por
promessas de estabilidade? A cabeça, racional,
certamente… o coração, emotivo… dificilmente.

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LÁ FORA

So You Want to Talk About


What's Been Happening in...

SYRIA
BY NADA EL-MAJRI

When pro-democracy demonstrations erupted


across Syria in March 2011 by the wave of the
Arab Spring, Syria's government led by President
Bashar al-Assad, faced an unprecedented threat
to its power.

Protesters called for an end to the Assad regime's


authoritarian tactics, which have been in place
since Assad's father, Hafiz al-Assad, became
president in 1971. The Syrian government utilized
police, military, and paramilitary troops to put
down protesters. In 2011, opposition militias
formed, and by 2012, the conflict had escalated
into a full-blown civil war.

In a January 2011 conversation with The Wall


Street Journal, al-Assad was questioned if he
expected the wave of public protests sweeping the
Arab world at the time—which had previously
deposed authoritarian regimes in Tunisia, Egypt
and Libya—to impact Syria.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 15


LÁ FORA

Assad acknowledged that many Syrians had Alawites also controlled the security forces and
suffered financial pressures and that political irregular militias, which perpetrated some of the
reform had been slow and halting, but he was most heinous acts of violence against protestors
confident that Syria would be spared because his and suspected government opponents. Although
administration's anti-US and anti-Israel stance many middle- and working-class Alawites did not
aligned with the Syrian people's beliefs, whereas benefit from belonging to the same community as
the leaders who had already fallen had pursued the Assad family and may have shared some of the
pro-Western foreign policy in defiance of their protesters' socioeconomic grievances, sectarian
people's feelings. divisions were not initially as rigid as is sometimes
assumed. The political and economic elite with ties
However, only a few weeks after the interview, to the regime included members of all of Syria's
anti-regime rallies broke out, revealing that confessional groups—not just Alawites.
Assad's status was far more perilous than he was
willing to concede. In truth, the country was being
pushed toward instability by a number of long-
standing political and economic issues.

When Assad took over the presidency from his


father in 2000, he had a reputation as a
modernizer and reformer.

However, the expectations aroused by Assad's


presidency were mostly unmet. In politics, a small
shift toward wider participation was rapidly
reversed, and Assad reverted to his late father's
authoritarian techniques, which included
widespread censorship and surveillance as well as
horrific brutality against suspected regime
opponents. Assad supervised major liberalization of
Syria's state-controlled economy, but the
improvements primarily served to enrich a network
of regime-connected crony capitalists.

On the eve of the revolt, Syrian society remained


authoritarian, with increasingly visible wealth and
privilege disparities.

The rebellion and the regime's response had a


sectarian character from the start. Many of the
demonstrators belonged to Syria's Sunni majority,
whereas the governing Assad family belonged to
the country's Alawite minority.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 16


LÁ FORA

However, as the battle progressed, sectarian Although it's unclear to say when the revolt shifted
differences became more entrenched. Assad from a largely nonviolent protest movement to a
attempted to portray the opposition as al-Qaeda- militarized insurrection, armed battles became
style Sunni Islamic fanatics and collaborators in more widespread, and by September 2011,
international conspiracies against Syria in his organized rebel militias were regularly fighting
public comments. Minorities' fears that the government troops in cities across Syria. A
predominantly Sunni opposition would carry out succession of ill-fated initiatives by international
violent reprisals against non-Sunni communities organizations to resolve the war occurred in late
were stoked by the regime's propaganda. 2011 and early 2012.

The regime retaliated with greater force as the With no clear resolution in sight, the Syrian
protests grew in power and size. In some cases, government's and rebels' international partners
this meant using tanks, artillery, and attack increased their support, providing a basis of a
helicopters to encircle cities or neighborhoods regional proxy war. In late 2012 and 2013, efforts
that had become hotbeds of protest, such as by Turkey, Saudi Arabia, and Qatar to fund and
Baniyas or Homs, and cutting off utilities and arm rebels became increasingly public.
communications. As a result, some demonstrators
took up arms against the security forces. Syrian The US, which had been hesitant to give weapons
army and tanks entered the northern town of Jisr for fear of unwittingly arming extremist jihadists
al-Shugr in June, forcing thousands of people to who might turn against the West in the future,
flee to Turkey. eventually began a small operation to train and
equip a few vetted rebel organizations. Iran and
Syria's regional neighbors and global powers began the Lebanese militant group Hezbollah continued to
to split into pro- and anti-Assad groups by the supply weaponry to the Syrian regime. Hezbollah
summer of 2011. As Assad's crackdown proceeded, began deploying its own troops into Syria to fight
the United States and the European Union became the rebels in late 2012.
increasingly critical of him, and in August 2011, US
President Barack Obama and numerous European As non-Islamist forces succumbed to exhaustion
heads of state urged for his resignation. Qatar, and infighting in 2013, Islamist militants began to
Turkey, and Saudi Arabia formed an anti-Assad take center stage. The Nusrah Front, a Syrian al-
group in the second half of 2011. Qaeda affiliate, collaborated with a number of
other rebel groups and was widely regarded as
Sanctions against top members of the Assad one of the most successful fighting units. But it
regime were quickly imposed by the US, the EU, and was quickly eclipsed by a new force: in April 2013,
the Arab League. Meanwhile, Syria's long-time Abu Bakr al-Baghdadi, the Iraqi commander of al-
supporters Iran and Russia remained loyal to the Qaeda, announced that he would unite his forces in
regime. In October 2011, Russia and China cast the Iraq and Syria under the banner of ISIL. ISIL carried
first of multiple vetoes preventing a UN Security out a series of successful operations in Syria and
Council Resolution condemning Assad's crackdown, Iraq, gaining control of a large swath of land
signaling the international divides and rivalries that spanning the Iraq-Syria border.
would prolong the crisis.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 17


LÁ FORA

Syria's Kurds, who want the right of self- Turkish troops and allied rebels have seized
government but have not fought Mr Assad's stretches of territory along Syria's northern
forces, have added another dimension to the border and intervened to stop an all-out assault
conflict. by government forces on the last opposition
stronghold of Idlib.
The Syrian Civil war started as an internal political,
religious and ethnic struggle between the regime Saudi Arabia, which is keen to counter Iranian
and the civilians, but it’s now become the target Shianinfluence, armed and financed the rebels at
for a battleground of an international proxy war. the start of the war, as did the kingdom's Gulf
Russia, which had military bases in Syria prior to rival, Qatar. Israel, meanwhile, has been so
the war, initiated an air campaign in 2015 in concerned by what it calls Iran's "military
support of Mr. Assad, which was essential in entrenchment" in Syria and shipments of Iranian
shifting the war's tide in the government's favor. weapons to Hezbollah and other Shia militias that
it has conducted air strikes with increasing
The Russian military claims that their strikes are frequency in an attempt to thwart them.
limited to "terrorists," while campaigners claim that
they often kill civilians and mainstream rebels. Iran Eleven years of war have inflicted immense
is thought to have sent hundreds of troops and suffering on the Syrian people. More than half of
spent billions of dollars to aid President Assad. Syria's pre-war population of 22 million have fled
Thousands of Shia Muslim fighters; armed, trained, their homes. Some 6.9 million are internally
and paid by Iran; fought alongside the Syrian army, displaced, with more than two million living in
largely from Lebanon's Hezbollah movement, but tented camps with limited access to basic
also from Iraq, Afghanistan, and Yemen.Initially, the services. Another 6.8 million are refugees or
United States, the United Kingdom, and France asylum-seekers abroad.
supported "moderate" rebel organizations.
Neighbouring Lebanon, Jordan and Turkey, which
Since Islamists became the dominant force in the are hosting 84% of them, have struggled to cope
armed opposition, they have prioritized non-lethal with one of the largest refugee exoduses in recent
support. Since 2014, a US-led global coalition has history. As of February 2022, 14.6 million people
carried out air strikes and deployed special forces inside Syria were in need of some form of
in Syria to assist the Syrian Democratic Forces humanitarian assistance, according to the UN,
(SDF), an alliance of Kurdish and Arab militias, in including about 5 million classified as being in
capturing territory once held by IS militants in the extreme or catastrophic need. More than 12 million
north-east and preventing the jihadist group from people are struggling to find enough food each day
rebuilding. - a 51% increase since 2019 - and half a million
children are chronically malnourished.
Turkey is a major supporter of the opposition, but
its focus has been on using rebel factions to
contain the Kurdish militia, accusing it of being an
extension of a banned Kurdish rebel group in
Turkey.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 18


LÁ FORA

The United Nations has verified that at least


350,209 civilians and combatants were killed
between March 2011 and March 2021, but it has
warned that it is an "undercount of the actual
number". The Syrian Observatory for Human Rights
(SOHR), a UK-based monitoring group with a
network of sources on the ground, had
documented the deaths of 494,438 people by June
2021.

It said at least 159,774 civilians had been killed,


with the Syrian government and its allies
responsible for most of those deaths. The group
estimated that the actual toll from the war was
more than 606,000, saying 47,000 civilians were
believed to have died of torture in government-run
prisons and that it had been unable to document
almost 53,000 reported deaths due to a lack of
information.

Syria has also been one of the countries in the


Middle East worst affected by Covid-19, although
the true extent is not known because of limited
testing capacity and a devastated healthcare
system.

Entire neighbourhoods and vital infrastructure


across the country also remain in ruins. UN satellite
analysis suggested that more than 35,000
structures were damaged or destroyed in Aleppo
city alone before it was recaptured by the
government in late 2016.
UN war crimes investigators have accused all
parties of perpetrating "the most heinous
violations".

"Syrians," a February 2021 report says, "have


suffered vast aerial bombardments of densely
populated areas; they have endured chemical
weapons attacks and modern day sieges in which
perpetrators deliberately starved the population
along medieval scripts and indefensible and
shameful restrictions on humanitarian aid".

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 19


ESTADO DE DIREITO(S)

“Mas Isso Existe?” -


Opressão e Sexualidade
no Estado Novo
POR INÊS SIMÕES

Penso que não irei surpreender ninguém ao afirmar


que, durante a altura de Estado Novo, a
homossexualidade- masculina e feminina- não era
vista com bons olhos.

Com efeito, esta era, para além de criminalizada-


algo que só deixará de ser em 1982-, considerada
uma doença, uma perversão, um desvio até.
Conquanto isto, apesar deste estatuto de crime, é
seguro dizer que a atitude prevalente, quer a nível
de autoridades, quer a nível de homossexuais em si
e seus respetivos familiares, amigos, era a de
ocultar, de como que varrer para debaixo do
tapete, não obstante, a existência de
homossexuais, sobretudo masculinos, ser mais que
conhecida, existindo até ministros gays na alçada
do próprio Salazar.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 20


ESTADO DE DIREITO(S)

Não obstante, o próprio conceito de Conquanto isto, é na sequência e na articulação do


homossexualidade, a existência de gays, lésbicas, dia 25 de abril juntamente com o dia 26 do mesmo
até mesmo bissexuais, era encarada de modo mês, por sua vez, Dia da Visibilidade Lésbica, que
diferente consoante a classe do próprio, procuro, neste primeiro ponto, abordar a situação
consoante até do género, numa tentativa de particular daquilo que era ser lésbica durante o
melhor reproduzir aquilo que a sociedade tempo de ditadura em Portugal, uma vez que aqui
patriarcal tem de pior e que é a propagação da se encontra e se conjunga a opressão não só a
existência de apenas uma sexualidade, nível sexual, como acontecia com os homens
heteronormativa, sempre a ser feita e a existir homossexuais, mas também a opressão a nível de
entre um homem e uma mulher, nunca entre dois género, decorrente da visão patriarcal da
homens, muito menos entre duas mulheres. sociedade e das instituições que a compõem e que
dela fazem parte e que, por isso. percecionam a
Efetivamente, ser homossexual durante a altura de mulher apenas à medida e construída para o
Estado Novo era, na sua maioria, viver no espetro homem, o ser do sexo masculino, não podendo ter
do oculto e da clandestinidade, não havendo, por sequer existência por si própria, muito menos, uma
sinal, muitas pessoas homossexuais assumidas. sexualidade apenas e somente sua, sem qualquer
tipo de ligação ao mesmo.
Era, portanto, algo que deveria ser escondido, mas
que o poderia ser, não obstante, feito melhor por
uns do que por outros, consoante a disponibilidade
financeira que tinham ao seu dispor, já que ser um
gay ou uma lésbica oriundo de uma família dita
burguesa, dita estereótipo daquilo que deveria ser
a família perfeita de Estado Novo, não simbolizava
o mesmo que ser homossexual numa família pobre,
sem quaisquer tipo de recursos financeiros, sendo
aí as hipóteses de repercussões- sobretudo, a nível
de prisão ou julgamento e, até mesmo, ida ou
internamento na chamada Mitra de Lisboa ou
qualquer outro tipo de hospitais para submissão às
chamadas terapias de conversão, de entre as
quais, eletrochoques- muito maiores.

A estigmatização a nível societal era, por isso,


situação recorrente, algo que resvalava, por sua
vez, na autoestigmatização destes próprios, na
tentativa de se mudarem e alterarem, pois eram
portadores de uma “doença” que precisava, por
sua vez, de ser curada.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 21


ESTADO DE DIREITO(S)

De facto, ser lésbica durante a altura de Estado Era, assim, impensável que alguma mulher não
Novo era, essencialmente, não o ser. Era quisesse ser mãe, ter filhos, uma família. Enfim,
perguntar-se mesmo “Mas isso existe?”, pois, com seguir aqueles que eram os princípios cardinais do
efeito, as mulheres lésbicas, as ditas sáficas, Estado Novo. Esta subversão, com efeito, era
quando julgadas ou presas, eram-no teoricamente sentida não apenas por parte dos próprios homens
punidas de forma igual aos homens, mas, na e mulheres heterossexuais que, pelas razões já
verdade, a acusação principal era de mencionadas, não encaravam o lesbianismo com
transformismo, ou seja, era por se apresentarem e bons olhos, mas também por parte dos próprios
vestirem como homens, não necessariamente pela homens gays, muito fruto da misoginia
sua sexualidade em si- ou seja, até aqui o seu internalizada existente, de ser negada à mulher
“desvio” era oculto, na tentativa de fazer crer que uma história apenas sua, sendo que, mesmo
o mesmo não existe. quando assumidas, esta história era reconstruída
aos olhos de uma visão heterossexual, de amigas e
E porquê é uma boa questão a perguntar, e companheiras, nunca percecionada na sua
também uma fácil de responder: segundo a visão totalidade de escolha e emancipação plena.
heteronormativa e patriarcal da sociedade, o
homem é, quase que dizendo, a sua personagem Como diz São José de Almeida no seu livro
principal. Tudo é para si construído e feito à “Homossexuais no Estado Novo”: “duas mulheres
medida e o mesmo é a personificação da podem viver juntas vinte anos que são sempre
sexualidade reprodutora e procriadora, útil, que amigas”.
todos devem almejar seguir.
Tal aconteceu, efetivamente, ainda antes do
Assim sendo, conseguimos facilmente depreender tempo de Estado Novo com o próprio Fernando
o porquê da marginalização dos próprios homens Pessoa que louvava e idolatrava António Botto-
homossexuais, uma vez que não seguem este poeta homossexual-, por acreditar que aquele era
paradigma, e, mais importante ainda, da própria o ideal masculino, por, na altura, ser mesmo
marginalização da mulher lésbica que, já por não moderno, inovador e progressista falar de homens
ser homem, não se insere no cânone, vivendo sim à homossexuais, mas ao mesmo tempo não menciona
sombra dele, mas, mais ultrajante ainda, pode Judith Teixeira, também poeta lésbica, provando o
dizer-se, por pôr em causa e em risco o próprio seu simultâneo machismo e conservadorismo.
paradigma, dado que este seu desvio e esta sua
perversão, é um risco para a manutenção e O mesmo acontece anos mais tarde com Alice
preservação da principal tarefa e função da Moderno e Virgínia Quaresma, respetivamente,
mulher que, à altura, deveria ser casar e ser mãe. escritora e jornallista feminista, cuja
homossexualidade nunca foi devidamente
À mulher, portanto, era negada sequer qualquer reconhecida, sendo até, posteriormente, ocultada
existência de sexualidade que pudesse apenas ser em póstumas biografias, não obstante, no caso de
para si e para obtenção e busca de prazer, uma Alice Moderno, a mesma ter tido uma relação com
sexualidade que não fosse útil, eficiente, acima de uma mulher que durou mais de 40 anos. A questão
tudo, procriadora- quem era, por sinal, a mesma do lesbianismo, portanto, e em particular, era algo
para achar que lhe era permitida uma escolha? do reino do não dito e do não percecionado,
bastando até ver que o único homossexual
assumido na altura de Salazar era um homem-
Mário Cesariny de Vasconcelos-, não havendo
nenhuma mulher.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 22


ESTADO DE DIREITO(S)

Ser lésbica, portanto, era, assim, um desafio à Contudo, tanto este movimento, como esta
própria ordem estabelecida, era revelia no seu vontade de mudança, duraram pouco tempo e
melhor e era, no entender das normas e rapidamente se aniquilou ou, pelo menos, fez
paradigmas que tenho vindo a procurar explicar, mostrar que a revolução não tinha sido feito para
uma dupla estigmatização consignada e atribuída reivindicações deste cariz, como ficou
não só pela sexualidade que se percecionava como demonstrado pelas palavras do General Galvão de
desviante, pervertida, mas também pelo próprio Melo, membro da Junta de Salvação Nacional, que
género que as carregava, que era entendido como disse claramente que a mesma não tinha sido feita
menor, incapaz de algo mais para além da sua para homossexuais e prostitutas andarem a fazer
entendida função biológica e parteira, de reivindicações.
subserviência para com aquela que deveria ser a
sua contraparte masculina. Talvez tal situação, conjugada aos fatores já
proferidos, possa também explicar o porquê de
Deste modo e passando agora ao meu outro mulheres lésbicas não se afirmarem coletivamente,
tópico, seria de esperar que esta subversão e nem no seio de organizações feministas existentes
ditadura também sexual que se fez sentir durante na altura, como sendo o MLM, Movimento de
o tempo de ditadura, não sendo, portanto, apenas Libertação das Mulheres, cuja ação se prendia
uma questão- neste caso em específico- de mera sempre a reivindicações feministas, do foro da
liberdade, mas sim de autodeterminação e de violência doméstica ou da legalização do aborto,
formação e de construção de uma identidade mas nunca com a defesa dos direitos das lésbicas,
própria, se fizesse findar com o fim deste período pois como refere uma antiga ativista do grupo: “No
e com o prosperar da Revolução dos Cravos e da MLM não havia lésbicas assumidas”.
liberdade.
Com efeito, e como explica o próprio António
Conquanto isto, e agora passando para uma Serzedelo no seu artigo “Homossexualidade: Antes,
abordagem relativa à homossexualidade feminina e e Depois, de Abril de 1974”, foi um choque quando
masculina, esta deixou apenas de ser considerada após a Revolução os homossexuais começaram a
crime em 1982, tendo sido criminalizada, portanto, sair à rua, pois os mesmos continuavam, e
durante grande parte do século XX, remontando já continuariam por ainda mais algum tempo, sem
à 1.ª República e à menção dos homossexuais como visibilidade na sociedade portuguesa.
sendo “vadios” ou “mendigos”. Esta, então,
perspetiva e maneira de encarar os homossexuais De facto, a homossexualidade durante o período
como “doentes”, “bichas”, “maricas” era algo que de ditadura era clandestinidade, era a ida a bares,
claramente marcava a sociedade portuguesa e que cafés, discotecas específicas, era como que a
nem as promessas de liberdade e de igualdade do procura da felicidade no meio de toda a opressão
25 de abril conseguiram abalar ou questionar. existente, opressão esta que, não obstante ter
terminado a nível político, perdurou, então, na
Efetivamente, no imediato do pós-revolução, em sociedade, com as ideias de desvio, perversão e
maio de 1974, surge o MAHR, isto é, o Movimento doença ainda a marcarem muito o paradigma da
de Ação de Homossexuais Revolucionários, de altura e a forçarem muitos gays, lésbicas,
entre os quais fazia parte António Serzedelo, bissexuais a viverem escondidos, reprimidos na sua
considerado o mais antigo ativista da causa verdadeira identidade.
LGBTQ+ em Portugal, e em cujo manifesto,
intitulado “Liberdade para as minorias sexuais” se
lia: “Viva a homossexualidade, viva a Revolução!”.

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ESTADO DE DIREITO(S)

Expresso

Uma situação, portanto, muito particular, onde


estes mesmos filhos destas elites se vestiam de
forma peculiar, eram viajados e se comportavam
de maneira diferente, mas sem nunca
verdadeiramente admitirem ou expressarem quem
realmente eram ou queriam ser.

A partir daí, diz São José de Almeida, advêm então


os primeiros movimentos conscientes de ativismo
pelos direitos gays, de criação de uma verdadeira
identidade homossexual.

De entre alguns exemplos, surgiram nos anos 90


entidades como o Grupo de Trabalho Homossexual,
do Partido Socialista Revolucionário; surgiu
também, em 1996, a ILGA- Portugal, uma das
principais organizações, atualmente, no que à
defesa dos direitos LGBTQ+ diz respeito.

Desde então, claro está, muitas foram as


conquistas já conseguidas, no entanto, o caminho
para as alcançar tem sido certamente longo e é
um que ainda não está completo.

Por sinal, esta democratização da Com efeito, daqui se depreende que, não obstante
homossexualidade e as primeiras tentativas de a mudança de regimes e a obtenção de liberdades
começar a criar uma identidade e uma cultura conseguidas desde 1974, é um facto que estas não
coletiva gay em Portugal, apenas começaram, foram universais e homogéneas no seu alcance,
então, não só no decorrer da descriminalização da provando que a mudança de mentalidades é um
homossexualidade em 1982, mas também com o dos maiores obstáculos neste âmbito e que pode
momento que muitos chamam ser marcante e ser, inclusive, castradora para quem dela é alvo, na
ponto fulcral nesta vivência e que foi a morte de medida em que há um entender e o criar de um
António Variações, em 1984, cujo simbolismo passa problema que na verdade não o é, mas em redor
pela morte de uma geração mais tardia de do qual se criam estigmas, preconceitos, medo do
homossexuais que ainda viviam numa situação de que é diferente, medo do que não se insere, então,
elites, sujeitos à situação de estigmatização, de na visão dita heternormativa, de família e
não existência, sem qualquer lugar de fala- o tal estereótipo perfeito de uma sociedade patriarcal,
reino do “não-dito”. cujo regime de Estado Novo era expoente máximo.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 24


A MEU VER

Alterações às Leis e
Sistemas Eleitorais
POR AFONSO OLIVEIRA, GUILHERME MATEUS,
MARTIM DINIS, TOMÁS PIRES

Introdução

Com a poeira das eleições legislativas de 30 de


Janeiro de 2022 finalmente assente e com um
novo, ainda que incumbente no sentido partidário,
governo de maioria absoluta em funções, é da
opinião deste grupo de redatores que se trata de
uma altura propícia para fazer regressar a
discussão de um dos temas mais complexos da
nossa democracia, a questão de alterações às leis
e sistemas eleitorais portugueses.

Para efeito de um breve contexto, tem-se um


sistema eleitoral como um mecanismo que
transforma os votos dos eleitores em cargos e
mandatos políticos. Diferentes países atuam com
diferentes leis e sistemas, e a sua escolha é
geralmente influenciada por uma série de fatores
históricos, sociais, étnicos, culturais e religiosos.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 25


A MEU VER

No caso português muito foi discutido, debatido e Citando Dieter Nohlen, não existem sistemas
até apresentado como forma de proposta no perfeitos, e é nosso objetivo dar a conhecer
Parlamento e espaço público sobre as leis e ambas as faces da moeda ao leitor, para que este
sistemas que, na sua generalidade, vigoram se possa informar, refletir e decidir sobre aquilo
inalteráveis no decorrer dos nossos 48 anos de que considera necessário para o país.
democracia. Deve ter-se em conta que, para
grandes alterações aos sistemas e leis eleitorais, é Tomás Pires - Voto Eletrónico
necessária uma forte concordância maioritária do
poder político, poder político esse eleito pelos
Numa sociedade cada vez mais interconectada e
mesmos sistemas e leis que se propõe aqui alterar.
dependente das novas tecnologias, juntamente
No entanto, em tempos recentes, a questão
com o projeto de transição digital que tanto se
premente centra-se em até que ponto as nossas
ouve falar em Portugal e no resto da Europa, não
leis e sistemas, no que diz respeito a algo tão
poderíamos deixar de falar sobre o Voto Eletrónico
fulcral como a eleição dos nossos representantes,
aquando das alterações aos Sistemas e à Lei
podem coexistir com um mundo radicalmente
Eleitoral.
diferente daquele que conheciam os legisladores
que introduziram pela primeira vez essas mesmas
Este tema apresenta-se como controverso e como
leis e sistemas. Coloca-se a questão de se, de
tudo, tem os seus prós e contras, que serão
facto, estas leis e sistemas beneficiam e protegem
analisados, tanto na base das opiniões do
a nossa democracia, ou se estão ultrapassadas,
Professor Nuno Sampaio e da Deputada Isabel
engolidas pela imensidão das novas tecnologias, de
Oneto, bem como pela nossa própria pesquisa.
novos sistemas e do desenvolvimento.

Em primeiro lugar, o voto eletrónico divide-se em


Para responder a esta e outras perguntas,
duas correntes, o voto eletrónico presencial,
procurou juntar-se uma colectânea de diferentes
necessitando, como o nome indica, que o eleitor se
propostas sobre alterações às leis e ao sistema
desloque a uma mesa de voto; e o voto eletrónico
eleitoral português.
não presencial, que poderá ser efetuado à
distância, por exemplo, através da Internet.
Devemos um grande agradecimento à Sra.
Deputada Isabel Oneto, pelas suas sugestões , pela
De acordo com o “ACE – The Electoral Knowledge
sua disponibilidade e pela sua experiência, tendo
Network” e o “Pew Research Center”, em 2020,
partilhado connosco temas que certamente darão
209 dos 227 países analisados utilizavam boletins
uma discussão benéfica para o funcionamento da
de voto em papel, ou seja, por outras palavras,
nossa democracia. Queremos também agradecer
apenas cerca de 10% dos países utilizavam formas
ao Professor Nuno Sampaio, que nos concedeu o
de voto eletrónico.
seu tempo e o seu profundo conhecimento para
que nos fosse possível trazer ao leitor este artigo.
Um dos principais argumentos a favor do Voto
Eletrónico passa pela eficiência e simplicidade do
Como nota final, procurou-se, ao longo da
processo, permitindo poupar tempo no processo
exposição das diferentes sugestões neste artigo,
eleitoral, especialmente no que toca à precisão e
colocar tanto do bom como do mau destas
tempo do processo da contagem de votos.
alterações.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 26


A MEU VER

Além disso, surge a questão da luta contra a O ex-ministro da administração interna, Eduardo
abstenção, com ambos os entrevistados Cabrita, diria mesmo que esta experiência “seria
defendendo que uma certa modernização do uma aproximação” ao que o governo gostaria de
sistema eleitoral permitiria reduzir a abstenção, empregar em todo o território nacional.
mas de que forma?
Esta experiência com o Voto Eletrónico não foi a
Tanto o Professor Nuno Sampaio como a Deputada única em território nacional. Segundo a Comissão
Isabel Oneto consideram que a modernização do Nacional de Eleições (CNE), outras quatros
sistema eleitoral através do Recenseamento experiências ocorreram em 1997, 2001, 2004 e
Eletrónico ajudaria a lutar contra a abstenção, 2005.
permitindo o eleitor votar fora da área onde se
encontra recenseado. Isto permitiria ainda, como Destaca-se a ocorrida em 2005, para as eleições
ambos os entrevistados denotaram, evitar os legislativas, onde se deu o voto eletrónico
problemas que ocorreram nas últimas eleições presencial nas Freguesias de Conceição (Covilhã),
legislativas com os votos do círculo da Europa, Santa Iria da Azóia (Loures), São Sebastião da
com o Professor Nuno Sampaio, exemplificando a Pedreira, Santos-o-Velho e Coração de Jesus
Itália como um exemplo. (Lisboa), bem como o voto eletrónico não
presencial disponibilizado para os imigrantes
A Itália, como o Professor referiu, a nível externo portugueses através duma plataforma de voto na
para os imigrantes italianos, utiliza o voto Internet.
eletrónico, que permite agilizar todo o processo.
Segundo a CNE, esta experiência demonstrou, a
Como a Deputada Isabel Oneto evidenciou, o nível do voto eletrónico presencial, um incremento
recenseamento eletrónico através da expressivo a nível da adesão, facilitando ainda o
desmaterialização dos cadernos eleitorais foi alvo voto dos eleitores invisuais, permitindo-lhes votar
dum projeto-piloto no distrito de Évora nas sem acompanhamento (em 2019 foi introduzido o
eleições europeias de 2019, onde, segundo o Portal boletim em braille, permitindo o voto de forma
do Eleitor, foram empregues 50 mesas de voto autónoma).
eletrónico em 23 freguesias dos 14 conselhos de
Évora, permitindo que os eleitores podem exercer Apesar das vantagens atrás referidas vários
o seu voto em qualquer dessas 50 mesas, sem a problemas se levantam, o principal sendo o da
obrigatoriedade de estar na zona em que se segurança e legitimidade dos votos.
encontram recenseados. Um dos principais argumentos usados contra os
Votos Eletrónicos é a possibilidade de estes
“O projeto-piloto tem, na sua conceção, a poderem ser corrompidos, de diversas formas,
desmaterialização dos cadernos eleitorais do tanto por ação de agentes externos, tanto
Distrito de Évora, que permite a descarga dos governos estrangeiros; como empresas; hackers;
eleitores online, garantindo a unicidade do voto grupos terroristas; ou até mesmo certos partidos
(um eleitor – um voto); por seu turno, o voto ou governos que desejem alcançar/permanecer no
eletrónico é exercido num sistema informático governo por meios ilícitos; ou até mesmo, a nível
completamente autónomo dos cadernos eleitorais, “interno”, por erro das próprias máquinas, que por
garantindo assim a confidencialidade do voto” defeito de fabrico ou funcionamento podem falhar.
(Portal do Eleitor)

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 27


A MEU VER

Atualmente, existem alguns exemplos destas


ocorrências perpetuadas por vários tipos de
agentes.

Como o Professor Nuno Sampaio indicou, temos o


que se passou na Estónia, onde existe a
possibilidade de se votar num sistema de voto
eletrónico não presencial através da Internet. Além
da Estónia, este sistema é também empregue na
Suíça, Arménia e Canadá.

Segundo a explicação dada pela secção “Insider”


do Diário de Notícias, este sistema (apelidado de
“I-Voting) foi implementado em 2005 e realiza-se
entre o 10º e o 4º dia antes das eleições, podendo
o voto ser mudado várias vezes, contando apenas
a última mudança. Neste sistema, os Estónios
descarregam um programa que analisa os
computadores por malware que ponha em causa a
legitimidade do voto, com os eleitores confirmando
a sua identidade através do Cartão de Cidadão ou
um Certificado Mobile, com o voto sendo
encriptado e enviado para os servidores estatais.

A Estónia é altamente digitalizada, com todo o seu


sistema eletrónico baseando-se em fortes
sistemas de confirmação de identidades e
registos, contando ainda com uma base e um
sistema de transação de dados altamente
sofisticado.

Apesar destes softwares, a Estónia é uma


constante vítima de ataques informáticos por
parte do Governo Russo, o qual pretende atingir
as várias entidades da Sociedade Civil, Política,
Económica e Financeira. Como o Professor Nuno
Sampaio indicou, o Voto Eletrónico Estónio não
escapa a estas tentativas, com o Kremlin
tentando-o alterar a seu favor. No entanto, o
sistema eleitoral eletrónico Estónio tem resistido a
estes ataques, com o país cooperando com a
“cyber-force” militar dos Estados Unidos da
América em 2020, de forma a preparar as eleições
americanas contra futuros ataques externos.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 28


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A própria Rússia, em 2021, adotou um sistema de Além disto, o Estado Português gastaria milhões,
voto eletrónico não presencial (online) que se não só na sua compra/desenvolvimento, bem como
destinou para mais de 16 milhões de eleitores (que em ações de formação ou na contração de
preferiam votar remotamente), para as eleições do técnicos especializados (caso a sofisticação de tal
Duma (Câmara Baixa do Parlamento Russo). Este máquina exija).
sistema foi contestado pelos vários críticos, que
indicam que não é transparente nem detém bons Em conclusão, o voto eletrónico, como disse no
sistemas de verificação identitária, já os vários início, é um tópico controverso, que apresenta
candidatos derrotados acusam o Vladimir Putin de vantagens e desvantagens, desvantagens estas
ter utilizado este sistema para facilitar a que poderão pôr em causa todo o processo
manipulação dos votos. democrático.

Os Estados Unidos da América, como o Professor Não obstante, ambos os entrevistados, bem como
Nuno Sampaio indicou, têm vários Estados que os estudos realizados, demonstram a possibilidade
utilizam o Voto Eletrónico Presencial. Em 2012, de facilitarmos o voto através duma maior
surgiram vários rumores e vídeos que punham em digitalização das próprias mesas, através de
causa a legitimidade das máquinas de voto, cadernos eleitorais desmaterializados que
incluindo um vídeo que mostrava uma máquina que permitiriam combater eficazmente a abstenção,
transformava um voto no Barack Obama para um bem como facilitar os votos dos imigrantes.
voto no ex-candidato republicano Mitt Romney.
Não se sabe ao certo se este erro foi da máquina Outra opção para a modernização do nosso
ou se esta foi manipulada. sistema eleitoral, que me parece bastante prática
e fazível de momento, demonstrando-se,
Existe ainda o problema da pressão social, simultaneamente, como um case-study para o
exemplificada pelo Professor, ou seja, amigos e resto do País, é a utilização do voto eletrónico
familiares, poderão acompanhar o voto eletrónico presencial nos dois círculos eleitorais estrangeiros
não presencial, pressionando para certas decisões, (semelhante ao que se faz em Itália).
pondo em causa o princípio base da Democracia, o
“Voto Secreto”. Se no futuro, se decidir pelo uso do voto
eletrónico, quer seja apenas a nível externo, ou a
Na questão ambiental e financeira do tema, apesar também a nível interno, é importantíssimo investir
do Estado Português gastar milhões de euros em nas “infraestruturas digitais” e na sua “cyber
papel (reciclável) para elaborar os boletins de voto, segurança”, de forma séria e concreta; bem como
com muitos deles acabando por não ser usados, e cooperar e aprender com os nossos parceiros mais
com todos os milhões de boletins acabando por ser evoluídos no tema, como a Estónia.
enviados para o lixo (ao menos são reciclados), não
podemos esquecer que as máquinas de voto,
apesar de poderem ser reutilizadas, acabam por
ter um impacto ambiental elevado, tanto pelo seu
gasto energético, bem como pelos componentes
que utilizariam.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 29


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Afonso Oliveira - Sistema de Voto Para cada círculo eleitoral, um partido pode

Preferencial, Uma Alternativa Que apenas eleger no máximo 14 deputados, sendo que,
então, é necessário que o partido leve a cabo
Garanta Maior Representação
eleições internas para estes lugares, caso existam
deputados a mais. Traduzindo, os membros do
Durante a conversa do Da Democracia Em
próprio partido, antes de competirem com os
Portugal com o Professor Nuno Sampaio, foi
partidos rivais, disputam entre si a presença
lançada pelo próprio a discussão de um sistema
nestas listas. Estas disputas são denominadas de
eleitoral diferente, utilizado na Finlândia, e
eleições primárias.
designado de sistema de voto preferencial.

Para as eleições, os candidatos são nomeados pelo


Este trata-se de um sistema que, ainda que não
seu partido. No entanto, uma lei aprovada em 1975
radicalmente, difere daquele em voga em Portugal,
permite que um indivíduo, caso conte com o apoio
diferenças que vão desde o ato eleitoral em si ao
de pelo menos 100 finlandeses, se possa
funcionamento das suas listas partidárias, ou seja,
candidatar e formar uma associação eleitoral.
a organização dos deputados de cada partido
candidatos à Eduskunta, o Parlamento finlândes,
Mas é no próprio ato da votação que os sistemas
entre outras.
diferem largamente. Enquanto que no sistema
português, o eleitor, no caso das eleições
É um sistema proporcional, à semelhança do
legislativas, vota ao assinalar o partido da sua
português, que beneficia a representatividade dos
preferência, e os candidatos são escolhidos pelo
eleitores no Parlamento. Ainda que se verifique que
partido naquilo a que se chama de lista fechada,
este sistema beneficia ligeiramente os maiores
ou seja, o eleitor, ainda que vote e escolha o
partidos, permite uma participação política de
partido, não escolhe diretamente o indivíduo para
média relevância dos partidos mais pequenos, e,
o representar, no sistema finlândes os cidadãos
como tal, daqueles que estes representam.
podem escolher o seu ou a sua representante.

Nas suas eleições legislativas, divide-se o país em


Atribuem-se os votos de forma individual ao
15 círculos eleitorais. Destes, 14 elegem entre 6 e
candidato, e, durante a votação, os eleitores
33 deputados para o Parlamento, de acordo com
finlandeses deparam-se com os nomes e números
os números da população em cada círculo.
correspondentes dos diversos candidatos,
diferindo do ato eleitoral português, onde apenas
Portanto, quanto maior a população, maior o
estão assinalados os partidos. É também
número de deputados a ser eleitos, ainda que as
interessante referir que, neste sistema, nenhum
diferenças entre círculos não sejam esmagadoras
candidato tem assegurada a sua eleição, nem
como é o caso de outros sistemas e países.
mesmo o próprio líder de um partido.
É também de referir uma grande diferença entre o
sistema finlandês e o português, que diz respeito a
Ainda que acrescente alguma complexidade ao ato
uma limitação imposta ao número de deputados.
eleitoral, este sistema permite sem qualquer tipo
de dúvida que os eleitores se possam sentir muito
mais representados no Parlamento, já que são eles
que escolhem quem são os candidatos eleitos e
não os partidos.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 30


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No entanto, este sistema traz as suas Se remontarmos ao século passado, ainda que na
complicações e adversidades. Primeiro, a Revisão Constitucional de 1997 tenha sido
proporcionalidade a mais pode causar problemas, acordado entre os dois maiores partidos
tal como a falta de estabilidade governativa. É por portugueses (PS e PSD) que o sistema eleitoral
isso que os governos finlandeses se caracterizam português poderia compreender entre 180 a 230
por coligações, dado ser praticamente impossível deputados, a verdade é que uma possível redução
obter-se uma maioria absoluta. Mas estas do atual limiar máximo nunca foi realizada,
coligações obrigam a acordos extensos, por vezes tampouco a mudança de outras características
demorados, e onde são necessárias diversas fundamentais, como o número ímpar de deputados
cedências. totais, em consequência da falta de entendimento
entre os dois principais partidos.
Para além disso, existe também a possibilidade de
o parlamento poder ficar dividido numa multidão Neste contexto tem sido o PSD, de um lado, a
de partidos de pequena dimensão, e o próprio propor consecutivamente a diminuição controlada
sistema, em si, abre a porta a que partidos de e equilibrada de deputados e, do outro, o PS a não
correntes anti-democráticas ganhem acesso ao acordar com essa mesma transformação,
parlamento com relativa facilidade e que, com isso, argumentando que retiraria o sentido do princípio
adquiram expressão e notoriedade no seu país. São da proporcionalidade, sendo que a última grande
riscos que, ainda que possam ser mitigados, irão única alteração significativa na mecânica do
sempre estar presentes num sistema com estas sistema eleitoral, para além da lei da paridade, foi
características. a anterior diminuição no número de deputados
constituintes da Assembleia da República de 250
Pode dizer-se, então, que este é um sistema deputados para 230 deputados.
incomum dentro daquilo que se pode observar na
generalidade das democracias europeias que Ora, a redução do número de deputados é, acima
primam pela proporcionalidade, exibindo as suas de tudo, uma questão matemática, do equilíbrio
vantagens e desvantagens. entre a proporcionalidade, representatividade e
governabilidade, que, tal como uma manta
Martim Dinis - Diminuição do Número protetora, qualquer modificação na estrutura do

de Deputados sistema eleitoral português poderá evocar um


desequilíbrio nocivo ao seu próprio funcionamento,
criando novas pontas soltas num sistema que,
Com o aparecimento de novas forças políticas no
como qualquer outro, não é perfeito,
panorama político português, de uma nova
apresentando diversas falhas.
estruturação da vida político-social nacional e da
existência de determinados fenómenos
Ao analisarmos a proposta chumbada do Partido
impactantes, a diminuição do número de
Chega, apresentada em 2020, tendo a mesma
deputados, assim como muitas outras temáticas,
apontado para uma diminuição do número mínimo
tem entrado novamente em força no espaço
de deputados na casa dos 80 deputados (restando
público de debate, ainda que não seja um tópico
apenas 100 deputados no hemiciclo parlamentar) e
particularmente recente.
sendo ela uma das propostas mais defendidas pelo
partido no espaço de debate público, conseguimos
facilmente identificar várias consequências
prejudiciais ao funcionamento da democracia em
Portugal, colocando em risco o próprio sentimento
parlamentarista.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 31


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Primeiramente, sem o cumprimento de uma nova Contudo, se partirmos de um pressuposto


revisão constitucional, devido ao limite mínimo de diferente, alterando as componentes elementares
180 deputados, anteriormente referido no artigo, e estruturais do sistema e mantendo a ideia dos
a proposta cai, desde logo, por terra, tornando 100 deputados, a preservação do princípio da
impossível alcançar um estado provável de proporcionalidade passa a ser, à primeira vista,
execução. concebível. Isto, se convertermos os atuais 22
círculos nacionais para um só círculo único
Mas mesmo se ignorarmos a realidade nacional.
constitucional, o Professor Nuno Sampaio
argumenta: “Ao reduzirmos o número de Tal metodologia pode ser encontrada no Knesset
deputados, mantendo todas as outras (Parlamento Israelita), que nomeia 120 deputados
componentes constantes, estamos a comprometer num círculo único nacional, ainda que o mesmo
a proporcionalidade”, acrescentando que: “com aconteça devido à composição extremamente
este fenómeno, os primeiros partidos a sair complexa, a nível religioso, político, étnico e social,
prejudicados desta radical alteração eleitoral são, da sociedade israelita, procurando que todas as
efetivamente, os partidos pequenos, de menor fações sejam harmoniosamente representadas. Na
expressão eleitoral.” prática, a governabilidade é constantemente posta
em causa, com os partidos moderados sob pressão
Desta forma, a Assembleia da República tornar- e controlo político dos partidos mais extremados.
se-ia uma assembleia pouco representativa das
diversas correntes políticas e de opinião das mais Como resultado (e agora voltando ao sistema
variadas problemáticas nacionais, favorecendo português), a impactante falta de teor da
automaticamente os dois principais partidos com governabilidade, juntamente ao efeito de bola de
maior percentagem de votos, caracteristicamente neve, pois tal como referiu o Professor Nuno
centristas. Ao concretizar-se essa proposta, não Sampaio: “No dia em que tivéssemos 100
há dúvidas que a mesma rapidamente cairia num deputados, 80 já poderiam não chegar, 70 já
efeito contrário ao predefinido. poderiam ser demais (...), ou seja, o final dessa
lógica defendida por determinados partidos é de
Outros tipos de fenómenos políticos também que, desde que tenhamos um governo que lidere
estariam presentes, consagrando-se diretamente bem um povo, para quê ter lá parlamento ou uma
uma nova realidade de contestação, que em vez de democracia liberal?”, levaria a mais um falhanço
se dar dentro da Casa da Democracia Portuguesa, hipotético de uma alteração deste calibre no
estaria vigente numa ótica de contestação de rua. sistema eleitoral português, possivelmente
danificando-o irreversivelmente.
Um exemplo de ocorrências similares, pode ser
observável em França, que ao ter um sistema Neste sentido, outras propostas, exemplarmente a
maioritário de segunda volta, servindo de filtro do PSD em 2021, que propunha uma redução de 15
para controlar a ascensão de forças mais deputados, juntamente a uma modificação do
extremistas ou radicais ao parlamento, passa a número de círculos eleitorais e a introdução de um
mobilizar essas mesmas forças para um contexto círculo de compensação, além de se localizarem
de rua, e não de debate político parlamentar. numa ética realista, são muito mais cuidadosas
pela defesa da proporcionalidade.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 32


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Conclui-se, desta forma, que uma diminuição do Com o primeiro voto, “Erststimme”, o eleitor
número de deputados em Portugal, não só é pouco escolhe o seu candidato preferido a representar o
provável devido à fraca vontade política (pelo seu distrito eleitoral, sendo que a Alemanha tem
menos enquanto esta for a atual constituição 299 distritos eleitorais, com estes representantes,
partidária do Parlamento Português), como poderá eleitos por voto direito, a traduzirem-se em
danificar o tão defendido princípio da metade dos assentos parlamentares. A outra
proporcionalidade. metade é definida pelo segundo voto,
“Zweitstimme”, focado em listas partidárias, dando

Sistema Alemão ao eleitor alemão a possibilidade e liberdade de


votar num determinado candidato do partido X e,
ao segundo voto, votar na lista do partido Y.
Na sequência da Revisão Constitucional de 1997,
uma possível reforma mais invasiva do sistema
O sistema eleitoral alemão também é reconhecido
português veio a debate, com a temática do
pela utilização do método da cláusula barreira,
sistema misto a ganhar uma posição de destaque.
comumente denominada de cláusula de exclusão ou
O atual panorama político veio, por via de um
cláusula de desempenho, sendo esta uma
certo número de falhas do presente sistema
disposição legal que restringe a atuação e
eleitoral, por um lado, reavivar o debate de uma
presença parlamentar de um partido que não
possível reforma estruturalmente avançada e, por
alcance um determinado valor percentual de votos,
outro, procurar métodos internacionais vantajosos
não ganhando, desta forma, representação
à situação vigente.
parlamentar no Bundestag (Parlamento Alemão) os
partidos alemães que não alcançarem, no mínimo,
O sistema alemão surge, assim, como um dos
5% dos votos (à exceção de partidos que
principais sistemas alternativos ao português, uma
representam minorias).
solução que, segundo alguns especialistas, reúne
as características basilares e fundamentais para
Devido ao conturbado passado histórico do país,
um melhor aproveitamento dos votos e da tão
esta exigência de votação mínima tem como
importante representação parlamentar: o sistema
principal efeito o impedimento da entrada de
misto, de representação proporcional, com
pequenos partidos de pendor extremista. Outros
atributos únicos.
países europeus como a Espanha, Suécia, Noruega
ou Polónia possuem igualmente este dispositivo,
Por vezes, o sistema misto chega a ser visto como
sendo também importante de mencionar que a
“o melhor dos dois mundos”, onde se vota em listas
Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa
proporcionais, assegurando a pluralidade de
recomenda que a cláusula não seja superior a 3%.
representação social e multipartidarismo e, ao
mesmo tempo, é possível escolher o nosso
Transposto ao sistema eleitoral português, uma
deputado preferido, nos círculos locais.
das maiores dificuldades, no caso de apostar num
sistema misto deste caráter, situa-se na forma
Ao ir votar, o eleitor possui o direito de votar em
como seriam desenhados os novos círculos
duas instâncias diferentes.
uninominais e se os partidos iriam estar a favor ou
contra, não só dessa mesma mudança de sistema,
mas principalmente de possíveis mudanças nos
círculos eleitorais.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 33


A MEU VER

Sobre isso, o Professor Nuno Sampaio menciona o Guilherme Mateus - Círculos Eleitorais
risco de “gerrymandering”, definindo-o: “quando (Caso de Estudo: CDS-PP Legislativas
algum partido quer utilizar, em proveito próprio, o
2022)
desenho dos círculos eleitorais”. Num país com 308
concelhos, de que forma teríamos metade dos
A Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974,
deputados num círculo nacional ou em círculos
decorreu numa vaga de democratização e veio
regionais de representação proporcional, com a
terminar o regime autoritário que vigorava e
outra metade a pertencer a círculos uninominais?
iniciar o longo processo de implementação e
cumprimento do Estado de Direito e a democracia,
A solução não parece ter uma resposta
veio devolver ao povo não só o poder do qual tinha
verdadeiramente convincente, dadas as
sido privado mas também os direitos inerentes dos
dificuldades acrescidas para efetuar uma
quais tinham sido privados. Ainda para mais, a
mudança positiva.
formulação de uma nova Constituição, a de 1976,
que até hoje vigora veio consolidar esta nova era
Outra dificuldade de aprendizagem referente ao
pós-Estado Novo que até hoje perdura.
sistema alemão, deve-se ao facto de Portugal ser
um dos países que estabeleceu,
Uma das primeiras prioridades foi o
constitucionalmente, a prática do método da
estabelecimento de um sistema eleitoral, a criação
cláusula barreira como proibida, não podendo
de um canal através do qual as opiniões e
efetivar uma percentagem mínima nacional de
preferências dos eleitores pudessem ser
representação.
expressas, e que constitui uma das bases de
qualquer democracia representativa.
A única forma de mudar esta realidade estaria
presente numa revisão constitucional, alinhada
No entanto, os sistemas eleitorais não são todos
com outras possíveis reformas adicionais, sendo
iguais, podendo ser mistos, de representação
que a alteração do estado da cláusula barreira,
maioritária ou proporcional. Portugal, assombrado
normalmente, vem acompanhada de outras
pelo seu histórico de opressão política, decidiu
alterações fundamentais.
optar pelo rumo da representação proporcional,
através do qual se pretende maximizar a
Apesar de, na teoria, o sistema alemão conter
representatividade de uma panóplia de opiniões
múltiplas atrações performativas que poderiam vir
políticas, envolvendo cada uma destas no processo
a beneficiar o sistema eleitoral português, na
de decisão.
prática, a atratividade dessa mesma possibilidade
corre o risco de cair por terra, sob dificuldade de
(Subentende-se que existem mínimos para tal
ação direta e, principalmente, devido à falta de
participação na vida política – a cláusula barreira,
uma proposta que reúna as condições mínimas,
um instrumento que estabelece quais os mínimos
necessárias e realistas para essa alteração.
dimensionais requeridos para que se possa
Podemo-nos inspirar, mas dificilmente poderemos
participar em Parlamento, combatendo
recriar, proporcionalmente e adaptado à nossa
diretamente a dispersão excessiva da
realidade, um sistema como o alemão.
representação.)

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 34


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Com isto não pretendo desvalorizar de forma Tal foi o caso do CDS-PP. Mas como? Como é que
alguma sistemas de representação maioritário, num sistema eleitoral onde a pluralidade e
pelo que, segundo o cientista político Giovanni diversidade de opinião política é tão prezada, a
Sartori, não existe um sistema eleitoral ótimo, um preferência de quase 1%, 1 em cada 100, seja
sistema cujas vantagens ofusquem por completo descartada?
as desvantagens independentemente das
circunstâncias, e a adoção de um sistema eleitoral Não é isto uma lacuna da proporcionalidade? De
varia de acordo com o contexto, tal como o que se acordo com o professor Nuno Sampaio, uma
pretende atingir – mais representatividade ou solução para esta questão seria a criação de um
mais governabilidade. círculo nacional de compensação, isto é, novos
parâmetros para os círculos eleitorais de maior
Em sistemas de representação proporcional, a dimensão, efetivamente reduzindo a quantidade de
eleição de deputados pode ocorrer de algumas deputados que podem eleger, o que não só
maneiras, mas em Portugal, concretamente, tal beneficia os círculos mais pequenos do país como
ocorre através de listas fechadas. Mas o que são valoriza o voto.
listas fechadas?
Por outro lado, Nuno Sampaio afirma: “não
Também conhecido como voto em lista, a lista podemos querer, ao mesmo tempo, aumentar a
fechada torna o voto exponencialmente mais proporcionalidade (…) e, ao mesmo tempo, não
impessoal, pelo que o eleitor não vota num correr o risco de ter uma AR demasiado
candidato em específico mas num partido político fragmentada que coloque dificuldades à formação
que apresenta um conjunto de candidatos de governos.”
ordenados hierarquicamente para cada um dos
círculos eleitorais. Também partidos como o PSD e a IL concordam
com a implementação de um círculo nacional de
Em Portugal existem 20 círculos eleitorais, compensação tal como é evidenciado pelas
definidos através de critérios demográficos: os seguintes propostas
distritos – 18 em território continental e outros 2 1)
em território insular. Partindo com os votos https://rr.sapo.pt/noticia/politica/2021/07/23/psd-
coletados por distrito, recorremos ao método da propoe-reducao-para-215-deputados-e-circulo-
média mais alta de Hondt para definir a nacional-de-compensacao/247260/
quantidade de deputados eleitos por distrito. Por 2)
fim, os resultados de cada um dos distritos seriam https://iniciativaliberal.pt/legislativas2019/propost
somados e um resultado surge. as/circulos-uninominais-com-circulo-de-
compensac%CC%A7a%CC%83o/
Vistos os básicos olhemos agora para o que se
sucedeu no dia 30 de janeiro de 2022. Após um No entanto, apesar de crer que esta opção
longo dia de eleição, os votos de todo o país são poderia ser discutida, o Professor Nuno Sampaio
contados e reportados à CNE – Comissão Nacional acha difícil implementar uma mudança desta
de Eleições – para apuramento. magnitude, segundo o mesmo: “acho que devemos
ter uma atitude prudente porque não vejo que seja
À medida que os resultados são divulgados aos com facilidade (…) que 2/3 dos eleitos se coloquem
eleitores, estes são tomados por surpresa quando de acordo para que isso acontece (…) os principais
observam que um partido em específico, que prejudicados são os que ficaram de fora da AR e
apesar de acumular mais de 86 mil votos, não esses não vão ter voto”.
elegeu nenhum deputado para a Assembleia da
República.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 35


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Oscars 2022
POR ANTÓNIO CEBOLA, MARIA SALOMÉ CURTO

Pelo terceiro ano consecutivo, vimos a cerimónia


de entrega dos Oscars em conjunto, ou melhor,
vimos os filmes nomeados para as mais
importantes categorias e, separados por 89,3 km,
vimo-la ao mesmo tempo. Contudo, este ano, a 94ª
cerimónia dos Academy Awards que teve lugar no
dia 27 de março no Dolby Theater em Los Angeles,
Califórnia, decorreu na véspera de duas
frequências, o que significou um atraso na nossa
sessão para o dia 30 de março. Escusado será
dizer que, embora tenhamos tentado fugir a
qualquer spoiler, é impossível ficar totalmente
isolado dos meios de comunicação e de pessoas no
geral.

Esta cerimónia foi marcada pelo retorno ao seu


modelo tradicional, após uma 93º, em 2021, que,
devido à pandemia de COVID-19, deixou muito a
desejar: sem espaço para piadas e qualquer tipo
de entretenimento para além da boa disposição da
atriz (roubada pela Academia múltiplas vezes)
Glenn Close. Veja-se que consideramos o “modelo
tradicional” uma cerimónia repleta de glamour,
humor e momentos musicais.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 36


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Veja-se que consideramos o “modelo tradicional” Existem vinte e três categorias, das quais nós
uma cerimónia repleta de glamour, humor e vimos, por completo, dez, porém, para efeitos
momentos musicais. Ademais, foi marcada pelo deste texto, nem da totalidade dessa parte vamos
chocante momento protagonizado pelo ator Will falar; na realidade, focar-nos-emos apenas nas
Smith, pela vitória do ator surdo Troy Kotsur na três principais: Melhor Filme, Melhor Atriz Principal
categoria de Melhor Ator Secundário e da e Melhor Ator Principal. Note-se que não é por não
realizadora Jane Campion na categoria de Melhor falarmos das outras que concordamos com tudo o
Realizador, a qual foi vencida por uma mulher pelo que foi atribuído.
segundo ano consecutivo, mesmo sendo esta uma
categoria dominada por homens. Melhor Filme: CODA

Este ano, também, caracterizou-se pela


A lista de nomeados para esta categoria deixava
celebração de três grandes marcos do cinema de
muito a desejar comparado com anos anteriores.
Hollywood — James Bond, The Godfather e Pulp
Mesmo com grandes produções como Dune ou
Fiction —, onde foi possível contar com a presença
Don’t Look Up e com elencos de renome que
de alguns dos atores mais icónicos desses filmes
originaram performances marcantes como em King
numa viagem ao passado. Contou-se, ainda, com a
Richard ou Belfast, os filmes presentes nesta
presença da atriz e cantora Liza Minnelli para a
categoria desapontaram quando considerando o
entrega do Oscar de Melhor Filme, acompanhada
conjunto total. Culpe-se talvez os argumentos —
por Lady Gaga, atriz que devia ter recebido uma
originais e adaptados.
nomeação na categoria de Melhor Atriz Principal
com o seu papel em House of Gucci.
Por isso, era expectável que a adaptação do filme
original francês A Família Bélier subisse ao palco
Por fim, Mila Kunis, célebre atriz de origem
para receber a mais importante estatueta da
ucraniana, subiu ao palco para apresentar Reba
noite. Embora não seja um vencedor que ficará
McEntire, intérprete da música nomeada
para a História como um dos melhores de sempre,
“Somehow You Do”, momento em que aproveitou
é certo que ficará para a História como uma outra
para deixar uma mensagem de apoio ao seu país,
barreira que a Academia ultrapassou.
tendo a Academia feito a sua parte ao apresentar
formas de auxiliar o povo ucraniano.
À semelhança de Parasitas em 2020, CODA fez
reforçar a superação do obstáculo da linguagem,
O maior derrotado da noite foi o filme The Power
mostrando a importância da diversidade em
of the Dog de Jane Campion que, em onze
Hollywood e de como atores considerados
nomeações, apenas venceu uma. Por sua vez, o
“incapacitados” para o dia a dia conseguiram
maior vencedor foi Dune de Denis Villeneuve que
trazer ao ecrã a história mais interessante e
levou para casa seis das dez estatuetas para que
cativante, assim como apresentar algumas das
estava nomeado.
atuações mais expressivas e intensas do ano.

Todavia, na nossa humilde opinião, nem todas lhe


Desta forma, cremos que se possa ter aberto,
foram bem atribuídas, por exemplo, na categoria
novamente, um novo caminho para uma maior
de Melhor Efeitos Visuais, na qual o claro vencedor
diversidade e inclusividade em Hollywood.
deveria ter sido o filme Spider-Man: No Way Home
ou na categoria de Melhor Banda Sonora que
deveria ter sido entregue ao filme Encanto.

The New York Times

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 37


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Para nós, o outro filme que poderia ter vencido Apesar de estarmos a remar contra uma maré de
esta categoria era King Richard dadas as críticas positivas face a esta prestação, ambos
performances soberbas do elenco, nomeadamente, consideramos que a atriz fez um trabalho que,
Will Smith e Aunjanue Ellis (nomeada para a embora a possa ter colocado fora da sua zona de
categoria de Melhor Atriz Secundária), conforto, resultou numa tentativa desastrosa de
acompanhadas de um igualmente fascinante reimaginar um ícone adorado por milhões, a
enredo acerca de caminho para o estrelato de Princesa Diana.
duas das maiores tenistas atuais, Venus e Serena
Williams. Percebemos quais eram as intenções mas, ao
mesmo tempo, consideramos que há coisas que
Melhor Atriz Principal: Jessica não devem ser feitas pois com facilidade o retrato

Chastain feito da Lady Di pode ser interpretado como uma


ridicularização da mesma. Pelo menos, foi isso que
sentimos…
Após 3 nomeações atribuídas pela Academia,
Jessica Chastain recebeu, finalmente, aquilo que
merecia com a atuação em The Eyes of Tammy
Faye. A nosso ver, esta atuação foi fenomenal e
permitiu, a quem ainda não tinha compreendido,
constatar a capacidade desta atriz como
profissional e o range que a mesma apresenta.

A verdade é que, para qualquer ator ou atriz na


indústria, nunca é fácil interpretar uma
celebridade que muitos, maioritariamente nos
Estados Unidos, acompanharam nas suas casas, e,
verdade seja dita, Jessica Chastain conseguiu
fazê-lo de forma exímia, tendo estado
irreconhecível ao longo do filme graças à equipa
que ganhou também o Oscar na categoria de
Melhor Maquilhagem e Penteado. Destacamos
também a química que conseguiu estabelecer com
Andrew Garfield que, para além desses momentos,
pouco acrescentou ao filme.

Na nossa opinião, a única grande competição para


vencedora era Nicole Kidman em Being the
Ricardos. Por outro lado, quer Olivia Colman, quer
Penélope Cruz deram atuações merecedoras de
uma nomeação mas sem a capacidade de levar
para casa a estatueta. Contudo, o mesmo não
aconteceu com Kristen Stewart em Spencer.

The New York Times

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 38


A MEU VER

The New York Times

Destacamos, ainda, o quão ridículo foi a ovação em


pé por parte da plateia. Parece que agora só
sabemos criticar comportamentos rudimentares e
violentos por detrás de ecrãs…

Como referimos anteriormente, este é apenas um


curto comentário às três principais categorias da
noite, tendo a cerimónia sido muito mais que isto.
Tome-se, por exemplo, a forma hilariante e exímia
como o trio de anfitriãs — Amy Schumer, Regina
Hall e Wanda Sykes — conduziu a noite, trazendo
uma lufada de ar fresco à cerimónia. Outro aspeto
que devemos também destacar é a nomeação do
estilista português Luís Sequeira na categoria de
Melhor Guarda Roupa pelo seu trabalho no filme
Nightmare Alley (um dos nomeados para Melhor
Melhor Ator Principal: Will Smith
Filme).

Possivelmente, esta era a vitória mais esperada da Por último, à semelhança do que afirmámos numa
noite. A interpretação de Will Smith de Richard iniciativa conjunta o ano passado, este ano foi
Williams em King Richard foi intensa e emotiva e, novamente possível perceber o “novo” rumo que
ao contrário do que alguns afirmam, demonstrou, Hollywood está a seguir, adaptando-se à “nova”
com a aprovação das irmãs Williams, a importância realidade digital.
da sua pessoa para elas compreenderem e se
prepararem para o mundo machista, racista e Com isto realçamos o crescimento constante da
elitista em que iriam entrar. presença de produções originais de plataformas
de streaming na indústria do cinema, onde a
Na nossa opinião, a probabilidade de outro autor realidade passa da sala de cinema para o sofá de
ficar com o título de Melhor Ator Principal era casa.
muito baixa.
Passado quase um mês desde a cerimónia,
Contudo, tal não desculpa nem justifica o momento começamos já a pensar naquilo que queremos e
rude e totalmente desnecessário protagonizado esperamos ver para o próximo ano. Brevemente,
pelo mesmo na cerimónia: a agressão ao vivo a os nossos desejos passam (i) pela preservação do
Chris Rock. Além de ter sido uma situação, glamour e entretenimento da cerimónia deste ano,
acreditamos nós, embaraçosa para Rock que, sendo, para isso, necessário bons anfitriões, (ii) por
note-se, reagiu maravilhosamente, foi também um melhores argumentos — originais e adaptados —
abalo para a Academia. Para nós, a resposta que sejam mais cativantes e impressionantes, (iii)
deveria ter sido mais rápida e envolvido uma maior pela continuação do derrube de barreiras, (iv) por
punição, por exemplo, a não atribuição do prémio novas caras talentosas e (v) por menos violência e
ao ator. conformismo.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 39


A MEU VER

Gostos?
Discutem-se.
POR MARTIM DINIS

Se o título deste meu desabafo desse vida a um


vídeo do YouTube, arriscar-me-ia a ser acusado de
clickbait, já que não me identifico, nem nunca me
identifiquei, com determinadas preposições
elitistas de que a melhor música é aquela que
apresenta mudanças de compassos rítmicos de 5
em 5 segundos, com dezenas de microtons
incorporados e múltiplas técnicas envolvidas. Para
bem da minha criação, e também para vossa sorte,
não é esse o meu propósito, nem a minha
convicção (desculpem fãs dos Dream Theater).

Ainda assim, sinto que, como integrante de uma


geração ocidentalizada e multicultural, de pouca
ética e cultura musical, caímos na falsa e
propagandista ideia de que os gostos não se
discutem, de que o valor da música, quando
transposto ao que uma pessoa ouve, não é
discutível.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 40


A MEU VER

Como se a música fosse uma paleta de cores e nos O primeiro erro universalizado (vá se lá saber
contentássemos com a discussão de “qual é a tua porquê) foi, desde logo, considerar que esse tal
cor favorita?”, onde obviamente o verde não é gosto de superior condição é dado à unicidade e
objetivamente “melhor” que o encarnado, não singularidade, pelo qual permanece, até aos dias
existindo uma forma empírica de assim o afirmar de hoje, o tradicional embate direto entre “o meu
(exceto em alguns casos). Na música, tal como em gosto” e “o teu gosto”, abrigando à existência de
qualquer outro tipo de arte, é possível tecer tal um gosto capital, uma competição de pódio.
afirmação. Ou melhor, costumava ser possível.
Ora, a partir do momento em que passamos a
A verdade é que, ainda que a noção de “gosto definir o gosto como um sentido de estética
musical” possa advir de alguma subjetividade, é caracteristicamente politeísta, podendo existir
incorreto definir a mesma como sendo totalmente diferentes gostos de similar elevação e outros
subjetiva, não se tratando apenas da questão se gostos de semelhante debilitação, uma parte do
existe ou não arte de melhor ou pior qualidade, ideal subjetivista cai por terra, porque ao mesmo
mas sim do facto do gosto musical ser um tempo que é aceite a existência de uma hierarquia,
exercício de contínua de exploração, idêntico ao é rejeitada a preposição de que, para essa
exercício físico ou mental, e dessa mesma hierarquia existir, é diretamente necessária a
exploração possuir algum valor moral e ético, e conceção de um gosto único supremo que assuma
não apenas meramente aleatório ou abstrato. o topo da pirâmide.

Claro que os nossos gostos estão sujeitos a um Se seguirmos o ideal subjetivista e pós-modernista,
número inimaginável de variáveis, onde basta que uma pessoa que não seja particularmente atraída
uma pessoa nasça na parte contrária do mundo, à cultura musical, que apenas consuma os hits
ou que pertença a uma classe social diferente, comerciais com mais plays no Spotify, juntamente
para os seus gostos, tal como qualquer outro às repetições incessantes dessas mesmas canções
atributo intelectual, serem fortemente de rádio, tem um gosto indiscutivelmente e
influenciados e, na maioria das vezes, qualificavelmente similar à de um verdadeira
desfigurados. amante de música, ouvinte de tudo e mais alguma
coisa, ecleticamente desenvolvido e com uma boa
Alguém que nasça no meio do deserto no Mali, não cultura musical às suas costas. Duas noites por
só não terá, muito provavelmente, acesso à música semana no Urban, três horas diárias de stories de
como a maioria de nós, como os seus próprios Instagram e, com sorte, meia dúzia de álbuns
estilos musicais prediletos serão diferentes ouvidos (às três pancadas) por ano, tornaram-se o
(exceto se estivermos a falar dos Tinariwen). Para Santo Graal incontestável do estado musical atual.
mitigar o relativismo e para eu próprio não me
alongar no que não é prioritário, gostava de me Teremos que aceitar, então, que o desenho que fiz
direcionar necessariamente num só objeto de aos 5 anos de uma zebra, que mais parece um cão
estudo, como a juventude ou sociedade com problemas nas costas, tem a mesma
portuguesa no seu todo, a título de exemplo, que importância objetiva que “A Criação de Adão” de
apesar de apresentar desigualdades em diversas Michelangelo, ou que a gravação que fiz ontem no
frentes, é minimamente coesa e homogénea ao telemóvel a tocar uma riff de guitarra na minha
ponto da esmagadora maioria dos seus pedaleira loop às 3 da manhã, está
integrantes partirem de um pressuposto mínimo hierarquicamente ao mesmo nível que o álbum
similar. “Paranoid” dos Black Sabbath.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 41


A MEU VER

O gosto estético de alguém que sempre viveu com O problema deste falso enigma é que a arte,
a música ao seu lado, sempre explorou até ao independentemente da vertente, não é um antro
limite toda a digna criação artística do homem, de taumaturgia, um círculo perfeito de talento
maturando e especificando as suas preferências, impalpável e metafisicamente abstrato. A arte
influenciado por alguns e influenciando outros, é tanto pode ser boa, como pode ser má, existindo
resumido, segundo uma ótima de intangibilidade, ao uma clara área cinzenta, dado a relativa
inconcebível ideal de igualdade inclusiva. subjetividade, mas tendo, nos seus extremos,
peças de relevo intemporais que ficaram para
Como todos sentimos algo quando ouvimos música sempre eternizadas, e peças de lamentável
e como os nossos sentimentos são impossíveis de insuficiência artística, que os nossos sucessores
determinar objetivamente, através de uma escala históricos certamente não se recordarão.
ou atribuição de valores objetivos, a subjetividade
dita o fim de qualquer tentativa ou interpretação Como os gostos musicais advêm diretamente da
concreta. música que consumimos, naturalmente afinadas ao
contexto local, temporal e intelectual, e como nem
Por outras palavras, tudo perde valor porque tudo música é merecedora do mesmo valor ético e
é igual, não há arte pior que outra, logo não moral, só posso consumar que, por muitas
existem gostos piores que outros, sendo que variáveis que possam existir, os gostos podem ser
chegamos à segunda conclusão principal: se a determinados por alguma objetividade,
subjetividade total dos gostos artísticos for principalmente numa geração altamente
aceite, então aponta para a total subjetividade do homogénea e pouco educada artisticamente,
valor e qualidade artística. Se a total subjetividade havendo uma média medíocre de noção estético-
for negada moderadamente, passa a existir uma auditiva, entre extremos de elevada e baixa
diferença entre valor, qualidade e propósito compreensão.
objetivo da arte.
Mais uma vez, esta não é uma tentativa de
superiorizar coercivamente e pessoalmente o que
é bom e humilhar de forma gratuita o que é mau. É
sim uma tentativa de aceitar, naturalmente, que
da mesma forma que todos nós temos
preferências temáticas diferentes, não podemos
esperar que, em todas essas temáticas, tenhamos
um nível de compreensão e intelectualidade similar.
O ser humano nasce com aptidão para desfrutar
da dádiva musical, mas não nasce
automaticamente com um gosto musical
desenvolvido, levando à conclusão de que,
equivalente ao impacto que certas mudanças
sociais e regionais podem ter no gosto de alguém,
o próprio não é imutável, sobrevindo um claríssimo
desenvolvimento contínuo de pesquisa, de
maturação, de investimento temporal e, acima de
tudo, de entrega de espírito.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 42


A MEU VER

Não esquecendo que todas estas aprendizagens A técnica e a teoria podem ser ferramentas para
práticas e, de certa forma, espirituais e estimular a virtude artística, mas o dom da
transcendentes, são moldadas puramente pelas excelência só é alcançável quando pomos a
opções do individuo, podendo o ambiente familiar, sentimentalidade à frente da racionalidade
círculo de amigos ou sociedade em que vive ter um teórico-técnica, quando voltamos a ser humanos
impacto direto, mas, ainda assim, supondo que o imperfeitos outra vez.
individuo dispõe de capacidade de escolha, que é
livre de ouvir a música que queira ouvir. Para mim, o bom gosto musical é aquele que, da
mesma forma que não se rende à precariedade e à
E porque uma frase, por vezes, vale mais do que ignorância, tampouco é objeto de elitismo,
um livro inteiro (neste caso, artigo): “The arts racionalismo ou do contemporâneo
objectify subjective reality and subjectify outward pseudointelectualíssimo pós-modernista.
experience of nature. Art education is the
education of feeling, and a society that neglects it O bom gosto musical é o servo além-fronteiras de
gives itself up to formless emotion. Bad art is um explorador incansável, um eclético aguerrido
corruption of feeling”, Susanne Langer. que combate pela sua sobrevivência, um ascético
espiritual, mas humanamente modesto. O bom
Não obstante, a questão seguinte virá, gosto musical não precisa de se afirmar aos
naturalmente, com base em outra abordagem outros, não precisa, nem consegue, ser perfeito,
radical, desta vez musicocrata, uma visão mas precisa de tempo para se educar, não só a si,
excessivamente dotada de racionalidade. mas a todos nós, pois a individualidade não vale de
nada se não servir para vivenciar
A música é criada e vivenciada a partir de comunitariamente os que precisam tanto da arte,
extensões do nosso estado de espírito, de uma como de comida ou de água.
conjuntura predestinada a um sentimento que nos
transcende e que se não for adulterado por Os gostos discutem-se, não por humilhação ou
presenças malignas, sejam elas quais forem, tem a superiorização, mas porque a boa música, à
possibilidade de se expandir e de se semelhança de qualquer outra arte, é merecedora
metamorfosear infindavelmente. Todavia, durante de dignificação.
todo este processo, a relação entre o ser humano
e a música não está interligada devido à
racionalidade, mas sim a partir da sua própria
natureza humana e animal, da sua biologia e da sua
longa evolução histórica.

Os históricos da música clássica, possuidores de


um vasto repertório técnico e teórico, foram
senhores da ternura, da angústia, da beleza e do
sofrimento, não porque a sua genialidade foi
medida pela complexidade (ou falta dela) das suas
peças, mas sim porque o ser humano comum não
consegue passar ao lado das emoções que
penetram instintivamente e diretamente no seu
coração.

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(Cria)tividade

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(Cria)tividade

M e n i n o d e
C a r v ã o
POR CRISTIAN BANCU

Da árvore das belas flores


Esticado, arranco um ramo
Escondo-o num pano
Envolto em duas cores
Branco, porque o pano era limpo
Preto, porque disse que era.
Por mais sujo que o deixasse o tempo
Ele cheirava a primavera.

Cheirava a manhã de orvalho


Cheirava a zum-zum de abelhas.
Brilhavam os cabelos grisalhos
Das nossas eternas velhas
Que tecem, e tecendo falam
Do porquê de não estarem caladas
É que as velhas bem embalam
Os bebés em contos de fadas.
O que mais queremos é silêncio
Depois dum inverno só de berros
É que a fome também tem disso,
E Satanás urge por mais enterros.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 45


(Cria)tividade

Flocos de fria neve assentes


Na íris dos que ficaram de olho aberto
Mirando o mundo sem ver nada.
O mundo é casa e o céu é teto.

Por isso que a morte nos pesa tanto


Somos anjos com um tiro na asa
E os nossos filhos choram
Quando os pais saem de casa.
Sou um menino de carvão
À força enfiado na terra.
De joelhos escavo o chão
E aguardo a Primavera.

O Inverno não se aquece sozinho


Temos mães por cuidar
E os comboios não marcham
Com um leve sopro de ar
Nem os ricos enriquecem
Se a máquina não for bombando
Nem há pão em cima da mesa
Se não continuar escavando

Sei que quando vou pras minas


Deixo as unhas lá enterradas
E a carne exposta à terra
Resulta em infeções mal-tratadas.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 46


(Cria)tividade

Mas por mais que queira chorar


Esforço-me em controlar a mente
Porque sei que carvão molhado
É carvão que não acende.

Quão irónico chega a ser


Que aqueles que de mim precisam
Quando chego a sair da mina
É sobre eles que os meus pés pisam.
Sou um menino de carvão
E fui perdendo o sorriso
Mas sei bem o que é honrar
Os irmãos sobre os quais piso

As irmãs, os pais, os filhos


Os avós e os netos
Que fecharam os seus olhos
E perderam os seus tetos.
Deslocado ao cemitério
Finalmente, choro em paz
Tenho casa e tenho teto
Já não tenho os meus pais

Limpo as lágrimas ao pano


E pouso o ramo na sepultura.
Já não é hábito, nem tradição.
Se há cultivo, há cultura.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 47


(Cria)tividade

SUD DE
LA
FRANCE
"Every man has two countries - his own and France."
- Thomas Jefferson
POR BEATRIZ LOURENÇO PEREIRA

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(Cria)tividade

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(Cria)tividade

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(Cria)tividade

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NÚC
LEO
MUSI
CAL

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Spotify

NÚC
LEO
MUSI
CAL

“1944”, Jamala
POR PATRICIA NERUTA

O tema "1944", composto pela cantora ucraniana


com descendência tártara, foi inspirado na
história da sua bisavó, que fora deportada sob o
regime de Stalin. Com a sua entrada no festival da
Eurovisão em 2016 e ter consequentemente ganho
o concurso somando 534 pontos, a lírica de Jamala
compara "the state of helplessness” intemporal do
povo tártaro, em relação não só à sua deportação,
como à anexação da Crimeia em 2014 pela Rússia.
Para além, destes dois acontecimentos históricos,
junto à dupla, o massacre que se deu em Bucha.

Os Tártaros são um povo muçulmano de língua


turca, que governaram a Crimeia até ao século
XVIII, antes desta ser anexada pelo Império Russo.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 53


NÚC
LEO Ao mesmo tempo, a Rússia pretendia realizar

MUSI políticas de “detatarização” na Crimeia: destruir os

CAL
principais monumentos, censurar obras tártaras e
russificar a península.

A partir de 1956, os sentimentos de injustiça e de


incompreensão propulsionaram o nascimento de
movimentos nacionalistas e apesar da constante

A 22 de abril de 1944, Lavrenty Beria, comissário repressão, conseguiram sobreviver durante o

da NKVD, acusara o exército tártaro de desertar o período da URSS.

Exército Vermelho, “the treacherous actions of the


Crimean Tatars against the Soviet people”, apesar Conseguiram assim, reforçar a identidade política

destes lutarem nas primeiras frentes de guerra e tártara, e sobretudo criar um forte sentimento de

de participarem nos vários movimentos comunidade e de um pensamento uníssono em

partidários. relação ao passado. Já em 1988, durante a


perestroika, milhares de tártaros regressaram

A 10 de maio, o Comité de Defesa dirigido por ilegalmente à Crimeia, independentemente das

Stalin publicou um decreto em que ordenava a declarações hostis da Rússia; em 2002,

deportação em massa dos tártaros da Crimeia. A regressaram cerca de 260 mil tártaros à

deportação foi feita então, sob o pretexto da península.

acusação de deserção como a da colaboração


coletiva com o Exército Nazi. De acordo com Beria
e Stalin, a tamanha traição justificara o exilio e o
genocídio.

De 18 a 20 de maio de 1944, cerca de 200 mil


tártaros foram deportados para o Uzbequistão,
Cazaquistão, Tajiquistão e para a zona dos Montes
Urais. Os que não sobreviviam à viagem, morriam
de fome, sede, frio ou das doenças que
rapidamente se espalhavam. Apesar das falsas
acusações, os homens tártaros que se mobilizaram
para a guerra foram deportados para os campos
de trabalho da Sibéria.

Os deportados tártaros, viveriam dentro de um


regime altamente punitivo e controlador, em que
durante treze anos, os seus direitos e liberdades
foram suprimidos.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 54


NÚC
LEO
MUSI
CAL

Em qualquer manifestação de poder feito pela


Rússia, e principalmente à negação dos seus atos,
tanto com o massacre em 2022 como com a
deportação em 1944, Jamala escreve, “Where is
your mind?/ Humanity cries/ You think you are
gods/ But everyone dies / Don't swallow my soul/
Our souls”. A música representa então, o
renascimento do povo tártaro, povo este sofrido
que se agarrou à sua pátria. Dor esta, passada
para as próximas gerações.

O refrão, “Yaşlığıma toyalmadım” (I did not enjoy


my youth) / “Men bu yerde yaşalmadım” (I was not
able to live in this place), provém da música “Ey
Güzel Qırım” (Ó bela Crimeia) que é geralmente
cantada aquando é feita a homenagem daqueles
que viveram a vida no exílio, e que não puderam
passar a sua juventude junta dos seus e do que
lhes pertence. Sendo uma memória histórica
recente, esta ainda está marcada na memória
coletiva dos tártaros da Crimeia; fora um
atentado à sua identidade, tanto física como
simbólica.

O intuito de Jamala terá sido de prestar tributo


aqueles que morreram nas mãos do regime russo,
como de relembrar o passado e de onde são as
suas raízes

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 55


Spotify

NÚC
LEO
MUSI
CAL

“Heavy Rocks”, Boris


POR MARTIM DINIS

A música, à semelhança de qualquer outra arte, é o


espelho de uma determinada sociedade, dos
contrastes sociais que a mesma apresenta, assim
como dos seus traumas nacionais e possíveis
influências exteriores.

É um aglomerado de realidades e sensações, uma


verdade sem réplica que, acertada à sensibilidade
apropriada, pode ser entendida como um todo,
como algo maior que si própria.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 56


NÚC
LEO Uma amostra da mais pura diversidade de quem

MUSI ouviu de tudo e produziu esse todo num só

CAL
elemento de tração real, de apreço aos diferentes
estados de espírito, permitindo a conquista
categórica de uma crueza que nos atira de um
carro em andamento, ainda que a queda não deixe
de ser, confortavelmente e antagonicamente,
aprazível. É a ironia da vida, encontrar conforto

Desde o city-pop de um país cada vez mais em tudo o que é sítio.

ocidentalizado, às profundezas do movimento


underground alternativo, que se pautou pelo A banda japonesa Boris, criada em Tóquio e de

fascínio na anti-música conceptual e em muitos nome inspirado na primeira música do álbum

outros estilos igualmente pouco convencionais, é “Bullhead”, dos Melvins, é reconhecida pela sua

difícil passar ao lado da inimaginável vastidão peculiar sonoridade, misturando e explorando

musical que o Japão nos tem presenteado ao longo todos os cantos do alternativo, tendo lançado, até

do tempo, uma cultura capaz de causar invidia a à data, 27 álbuns em 30 anos de atividade. O seu

qualquer outra e que, lamentavelmente, teve a nascimento foi fruto de uma geração presenteada

infelicidade de ser erradamente perpetuada como por uma rápida mudança de desenvolvimento

mais uma cópia barata da música ocidental e dos nacional e por diversas subculturas assentes na

seus respetivos movimentos alternativos. comunidade musical japonesa, respeitando o


background psicadélico dos anos 70 e provindo

Seria impossível estar mais longe da verdade, dada mais diretamente da posterior cena noise ou, como

a propensão à inovação dentro deste país de alguns entendidos o chamam, “japanoise”.

contrastes, onde o futurismo toquiano de arranha-


céus reluzentes choca diretamente com o noizu da A escolha do “Heavy Rocks”, lançado a 24 de maio

cultura underground, das caves e sombras desses de 2011, deve-se ao facto deste álbum não viver à

mesmos blocos de cimento. volta de um só género musical, ou até de um só

De Miki Matsubara a Hanatarash, de Mariya estilo musical, como alguns dos seus antecessores

Takeuchi a Gerogerigegege, (“Absolutego” (1996) de drone-metal experimental,

de Boris a…. “Feedbacker” (2003) de noise-rock ou “Akuma No


Uta” (2003) de stoner-rock/sludge-metal), sendo

De Boris a Boris. mais uma coletânea do vasto repertório estilístico


da banda, do que um álbum fiel a uma única

Pois bem, esta contextualização de pouco serviria vertente central.

se o álbum em questão não fosse produto direto,


não só de uma vasta e apurada mélange de
influências, como de uma rigorosa e complexa
representação da vivência geracional nipónica.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 57


NÚC
LEO Contundo, é a meio do álbum que esta contagiosa

MUSI erupção de energia cessa de forma extremamente

CAL
abruta, como se tivesse carregado no shuffle do
Spotify e fosse de “No Fundo dos Teus Olhos de
Água” da Lena d’Água a “Partir Para Ficar” dos
Linda Martini, uma volta de 360 graus.

À primeira vista, a “Missing Pieces” quase que

É uma mistura de cores sonorizada, capaz de corta o momentum do álbum, com uma balada

atribuir emotividade e energia a um obscuro empática idêntica às do grunge, seguida de um

visivelmente degradante e depressivo, um colete arrebentamento intermediário de feedback

refletor de pessoas, jovens, vivências e carências. antipático.

E de que melhor forma começar, senão pelo forte Mas se nos focarmos somente na sua

tom inicial que, à luz da sua distinção, é imagem de magnificência individual, rapidamente nos

marca da banda: os riffs de guitarra de stoner- rendemos à contagiante intermitência melancólica

metal, desta vez com a especial participação de que, talvez mal comparada, é similar ao cover dos

Ian Astbury, vocalista dos The Cult, dando uma Nirvana da música “D-7” (originalmente dos

adicional abertura à feição gótica e produzindo um Wipers), visto que por volta dos 6 minutos de

início de álbum que serve de aviso aos que música, encontramos a tão aguardada expansão

chegaram aqui de paraquedas. do noise, um terramoto ruidoso que roça o harsh-


noise, subgénero do noise, caracterizado pela sua

Não ficando atrás, a segunda faixa “Leak – distinta violência sonora e muitas vezes utilizado

Truth,yesnoyesnoyes” (sim, os nomes também são na discografia dos Boris, tendo até Merzbow, o

alternativos) pode até ser considerada como uma mais aclamado artista do género, participado num

das tracks mais idiossincráticas de toda a álbum de colaboração com a banda em 2020.

discografia do trio, em virtude da não-familiar


produção lo-fi e das sui generes melodias vocais Ironicamente, estes 13 minutos de total angústia

que, a meu ver, extraem inspiração dos primeiros existencial, são prosseguidos por “Key”, um

álbuns dos Dinosaur Jr, recordando a sonoridade intervalo de música ambiente com uma ligeira

de “Cats in a Bowl”, a título de exemplo. inspiração industrial, servindo tanto de respiração


contrastante após a intensidade da música

Para completar este autêntico kickstarter de Rock anterior, como de filler, preparando a próxima

‘n’ Roll, é nos ainda apresentada “GALAXIANS”, uma aventura musical, “Window Shopping”.

lacónica explosão punk-rocker, inaugurada com a


tradicional distorção buzzsaw e acompanhada por
uma rápida e perspicaz batida, assumindo toda a
intensidade e fazendo jus ao seu nome, sendo que
é a única música, em todo o álbum, escrita em
letras maiúsculas.

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 58


NÚC
LEO Este slow-burner melódico, de vozes letárgicas e

MUSI guitarras distintivamente do doom-metal, é

CAL
representativo da deterioração e da
desmoralização de um ser já debilitado,
acarretando às suas costas tudo aquilo que
testemunhámos precedentemente. Ao contrário do
“Missing Pieces”, este bracejar de emoções não se
expressa na detonação ruidosa, mas sim numa

Conduzida por guitarras de distorção sludgy e constante dição da sua fisionomia amarga, sem

crunchy, salta à atenção o peculiar trabalho vocal explosões nem efeitos especiais, somente a

feminino japonês, muito presente em bandas manifestação de total transparência. Um final

femininas de pop-rock dos anos 80 e 90, triste, para quem vê muitos filmes, e um real final,

evocando-me à lembrança as ilustres Shonen Knife, para quem não os vê.

particularmente o seu cover do “When You Sleep”,


dos My Bloody Valentine. Esta é a mais clara Em tom de brincadeira, até costumo dizer que a

indicação, ainda que de menor dimensão se última música do álbum, “Czechoslovakia”, tem uma

compararmos a outros elementos, do emprego de sonoridade idêntica à dos créditos finais de

uma linhagem mais poppy e harmoniosa, da sua qualquer filme de ação. Similarmente a “Key”,

respetiva suavidade e da fraturante sendo que ambas são fillers instrumentais, tem um

contraposição que faz à ríspida modulação desígnio mais pontuacional do que propriamente

invulgar do noise. Dois extremos, duas realidades individual, como se um fosse uma vírgula e o outro

diferentes, dois opostos que coexistem. um ponto final.

É, da mesma forma, o último resquício de


coloração deste hino ao sortimento, um último
adeus, entoado do topo da Tokyo City Hall, que
precede ao prenunciado surgimento de um
espectro obscuro, uma natureza personalizada
numa geração que, em sua parte, se viu
desorientada, encurralada em expectativas não
concretizadas, tomando uma entidade amoral e
sobrenatural.

Embora não disponha da anterior espontaneidade


de transição, o casamento perfeito entre a
influência do post-punk e do post-hardcore
(skramz), uma amálgama entre Gang of Four e
Amanda Woodward (referindo-me à banda e não à
personagem do Melrose Place), dá o contexto
necessário para que “Tu, La La” anteverta,
exemplarmente, a segunda faixa com dois dígitos
de tempo, “Aileron”, o pico do outro lado deste
álbum.

The New York Times

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 59


NÚC
LEO
MUSI
CAL

O segredo da grandiosidade deste álbum deve-se,


especialmente, ao que enunciei no final do meu
artigo sobre o “Hyperview” dos Title Fight,
presente na décima edição do jornal, ainda que de
forma dissemelhante.

Ao considerar o “Hyperview” como o equilíbrio


medido entre a dormência de quem para no tempo
e o suicídio de quem é suscetível a transições
progressistas, não previ a existência de uma 4º via:
a do equilíbrio desmedido entre esses mesmo dois
extremos. Um equilíbrio que não assegura a
vivência, mas que testa o seu próprio destino, que
sai à rua em dia de bombardeamento, que se
apresenta de tal forma que, recolhendo a história
do passado e desembaraçando o seu novo vício de
exploração, é violentamente elevado ao choque de
realidades.

São os altos e baixos da vida de qualquer um, uma


possível autodestruição que, transposta às
vivências de muitos nós, apenas destrói se
tivermos esse azar. Se o destino, para quem
acreditar nele, assim o ditar...

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 60


espaço

cultura

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 61


sugestões
IMDB

“Milada”
POR MADALENA OLIVEIRA

Milada (2017) conta a história de Milada Horáková,


uma influente figura da política checa na primeira
metade do século XX. Nascida no Império Austro-
Húngaro, em Praga, em 1901, vive a conturbada
fase que a Checoslováquia atravessou nesta
época.

Com a queda do nazismo, torna-se relevante ao


ser eleita deputada pelo Partido Nacional Social
Checo. Porém, crescia outra ameaça à liberdade e
à democracia, abandonando o cargo no golpe
comunista de 1948. Encorajada a sair do país, não
o faz, mantendo-se politicamente ativa. Acusada
de preparar um golpe contra o regime, é torturada
pela política secreta, forçada a confessar atos de
traição e condenada à morte.

Figuras como Churchill, Einstein ou Eleanor


Roosevelt intercederam pela diminuição da pena,
mas acabaria enforcada em 1950.

Milada lutou, entre outras causas, pela igualdade


salarial entre homens e mulheres, pelo auxílio
financeiro de crianças, pela preservação da
democracia na Checoslováquia. Apaixonada pelo
valor da liberdade, não se restringiu por ideologias,
lutando pelo seu povo oprimido pelo nazismo e pelo
comunismo.

Filme impactante, que inspira a lutar pela


democracia, pela liberdade e pelos nossos valores.

“No one should be imprisoned or made


to die for their beliefs." - Milada
Horáková

Da Democracia em Portugal | Abril de 2022 | Edição XII | Pág. 62


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