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Comentário ao Pai Nosso


São Gregório de Nissa
Tradução, introdução e notas: Bruno Gripp
Revisão: Juliana Amato
Capa: Júlia Máximo

@Editora Paideusis, 2018.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa publicação pode ser reproduzida ou transmitida
em qualquer forma ou qualquer meio sem a permissão por escrito do editor, nem circular em
qualquer outra forma que não a publicada.

ISBN: 978-85-45581-00-0

Editora Paideusis
Fontes Cristãs
Petrópolis, Rio de Janeiro
Brasil

contato@editorapaideusis.com
www.editorapaideusis.com
Comentário ao Pai Nosso

São Gregório de Nissa


Introdução, tradução e notas de Bruno S. Gripp

Petrópolis
2018
Editora Paideusis
Sumário
I O Pai Nosso na Igreja Antiga
II Vida e posteridade de São Gregório
Resumo das Homilias
Gregório, Bispo de Nissa
Sobre o Pai Nosso
[p. 20] Homilia 2
Homilia 3
Homilia 4
Homilia 5
I O Pai Nosso na Igreja Antiga

A oração do Pai Nosso ocupa um lugar de grande importância na


Igreja Antiga. Com efeito, existem duas versões diferentes em dois
Evangelhos, segundo Mateus e segundo Lucas. Ainda no texto canônico do
Novo Testamento, é provável que Paulo faça referência a seu uso no rito
batismal em dois momentos de suas cartas (Rm 8, 15 e Gl 4, 6). Esse uso da
oração do Pai Nosso no batismo é confirmado por um texto antigo, ainda da
era apostólica, chamado Didaquê. Essa importância deriva do fato de que a
oração é relatada como na própria figura de Jesus Cristo, formando, assim,
um elemento central e antiquíssimo da vida cristã.
A forma da oração durante todo esse período inicial exibe grande
variação. Por exemplo, os dois evangelhos apresentam formulações
diferentes: a Didaquê insere uma doxologia final e Tertuliano nos dá
indícios de uma outra variante que era rezada pelos marcionitas — um
grupo herético gnóstico — e que, curiosamente, reflete neste comentário de
São Gregório de Nissa. Em virtude da diferença entre as formulações dos
Evangelhos, duas opiniões foram expressas na Antiguidade. Orígenes, o
grande exegeta alexandrino, foi da opinião de que eram duas orações
distintas, ao passo que Santo Agostinho preferiu considerá-las variações
diferentes da mesma oração — opinião que Gregório adota implicitamente
nesse comentário e que se tornou padrão. De modo geral, a oração
tradicionalmente considerada para exegese segue a forma apresentada pelo
Evangelho segundo Mateus, um costume que permanece até hoje. Alguns,
como Evágrio Pôntico, aproveitam para comentar inclusive a doxologia
incluída pela Didaquê, já outros autores não demonstraram grande interesse
nessa questão.
Como é de se esperar, o Pai Nosso foi um texto bastante comentado
pela Igreja antiga. Talvez nenhuma outra passagem evangélica tenha sido
tão explorada na Antiguidade quanto o texto da oração do Senhor. Com
efeito, possuímos comentários mais ou menos completos de Tertuliano,
Orígenes, São Cipriano de Cartago, São Cirilo de Jerusalém, Santo
Ambrósio, São Gregório de Nisssa, Evágrio Pôntico, São João Crisóstomo,
Teodoro de Mopsuéstia, Santo Agostinho, São João Cassiano, São Pedro
Crisólogo e São Máximo, o Confessor. Essa lista compreende, com a
notável exceção de São Jerônimo, todos os grandes exegetas da Igreja
Antiga, incluindo as duas grandes escolas de interpretação, a Alexandrina e
a Antioquena, e os grandes mestres do Ocidente. Contudo, nem todos os
comentários têm o mesmo escopo: os de São Gregório de Nissa e Orígenes
são obras de maior fôlego do que outros comentários, como o de Santo
Ambrósio, que faz parte de uma obra maior, dedicada aos sacramentos.
Alguns comentários, sobretudo de autores condenados e consequentemente
considerados heterodoxos, como Teodoro de Mopsuéstia e Evágrio Pôntico,
não nos restaram na sua forma original, mas em resumos e traduções para
outras línguas — o siríaco e o copta, respectivamente.
De modo interessante cada um desses comentários revela um pouco
das características e dos interesses de seu autor. Orígenes mostra todo seu
domínio das escrituras, traçando uma multidão de paralelos e fazendo uma
verdadeira história bíblica da oração; Tertuliano avança rapidamente pelas
palavras da oração para se deter em questões de prática de oração:
genuflexão, uso de véu pelas mulheres etc. São Cipriano, também de
Cartago como Tertuliano, repete o modelo, mas está menos interessado nas
disposições práticas do que nas disposições mentais dos orantes, dessa
forma, no lugar de prescrever uso de véu, recomenda abandonar
pensamentos vãos e se preparar condignamente para o encontro com Deus
— extremamente condizente com o papel apaziguador e conciliador que
teve na Igreja de Cartago. Santo Ambrósio, comentando em um tratado
sobre os sacramentos, dedica a maior parte da sua exposição fazendo uma
leitura eucarística da expressão do “pão nosso” — leitura que está
totalmente ausente do nosso texto, por exemplo.
São Gregório de Nissa, em um dos mais extensos comentários ao
texto, demonstra suas preocupações habituais. De fato, a distância entre o
homem e Deus, a natureza da Trindade, a necessidade de o Cristão mostrar
na sua vida o que professa, a visão do pecado como uma doença da alma, a
condenação à exploração de outros homens, sobretudo à escravidão —
todos temas importantes em sua obra — estão presentes neste texto. Trata-
se, portanto, de uma boa introdução a seu pensamento, em virtude da
relativa brevidade em comparação com outras obras muito mais extensas do
autor, e a popularidade do texto que comenta.
II Vida e posteridade de São Gregório

Vida
São Gregório de Nissa nasceu em uma família da aristocracia rural
da Capadócia, região localizada no interior da península da Anatólia, hoje
na Turquia. Durante a Antiguidade, a Capadócia era uma região limítrofe
em aspectos culturais, apresentando uma aristocracia helenizada — fato
sobre o qual o próprio Gregório dá um eloquente testemunho — e um
restante da população semi-helenizada, falante de línguas locais que hoje
não mais existem. Ainda assim, mesmo essa aristocracia helenizada
carregava traços da rudeza de sua região de origem: os capadócios na
Antiguidade possuíam um sotaque característico e eram considerados povos
brutos. [1]
De modo geral, a Capadócia era uma região afastada do mundo
mediterrâneo com o qual frequentemente lidamos ao estudar a Antiguidade.
Com efeito, era uma região de parca urbanização, a rigor contendo uma
única cidade, a cidade de Neocesareia, ou simplesmente Cesareia, a atual
Kayseri, com o restante da população vivendo em vilas e aldeias que
pontilhavam a região, sobretudo ao longo do vale do rio Hális. As
distâncias de viagem do interior da província para os grandes centros do
mar Mediterrâneo eram longas, o frio do inverno impossibilitava até mesmo
a viagem por grandes períodos do ano, pois a neve fechava as passagens das
montanhas que impediam a comunicação com o litoral, acentuando ainda
mais esse isolamento dos grandes centros.
Essa região, contudo, vivenciou ao longo do século III uma rápida
cristianização e já se encontrava bastante cristianizada no início do século
seguinte. Prova disso se vê nas quatro grandes figuras da Capadócia que
conhecemos e que são oriundas de famílias cristãs: os irmãos Basílio e
Gregório, seu colega Gregório de Nazianzo e o líder intelectual dos arianos,
Eunômio de Cízico. Especificamente no caso do Nisseno e de seu irmão,
eles são cristãos de terceira geração, visto que sua avó já havia sido
convertida.
Como era de costume, Gregório obteve a formação tradicional em
retórica, que se esperava de qualquer cidadão de origem aristocrática no
império romano, da Grã-Bretanha ao Egito, da Espanha à Síria. Gregório,
contudo, não se deslocou até um grande orador, mas aprendeu com seu
irmão Basílio, que foi pupilo em Atenas e Constantinopla de dois dos
oradores mais famosos de sua época: Himério e Libânio. Não sabemos
muito mais que isso sobre a formação de Gregório, mas ao longo de sua
obra ele demonstra total domínio da técnica sofística e do dialeto ático da
língua grega — marcas distintivas da formação retórica do período. Além
disso, Gregório demonstra um amplo domínio da cultura filosófica do
período, dialogando com autores como Platão, Aristóteles, Plotino e os
estoicos, quase sempre de modo implícito e nunca citando nominalmente.
Como Gregório adquiriu esse conhecimento, que é superior, pelo menos em
profundidade, ao de seu irmão Basílio, é uma questão ainda sem resposta.
Outra questão sobre a educação de Gregório, que está envolvida em
um mistério ainda maior, é de onde ele obteve sua formação médica, pois
seu pensamento está em extenso diálogo com a tradição médica grega e
praticamente não há obra sua que não contenha algum tipo de analogia com
a medicina, com uma profundidade inexistente em outros autores. Alguns
até propuseram que ele tenha praticado medicina em algum momento de
sua vida, mas não temos nenhum indício disso.
Durante algum tempo Gregório praticou a retórica e foi professor da
disciplina. Imagina-se também que ele tenha sido casado e talvez até tenha
tido um filho, mas essas questões são totalmente conjecturais. No entanto,
sua irmã Macrina foi responsável por fazê-lo dedicar-se mais e mais à vida
cristã, culminando no abandono de suas ocupações seculares. Por fim, ele
foi designado pelo seu irmão para presidir a pequena diocese de Nissa, uma
localidade rural da Capadócia que viria a ficar famosa quase
exclusivamente por causa desse novo bispo, hoje não sabemos sequer onde
ficava essa localidade, que não devia ser mais do que uma pequena vila.
São Gregório, como muitos outros homens da Igreja de seu tempo,
viveu os altos e baixos da vida eclesial do quarto século. Chegou a ser
expulso e exilado da sua diocese em virtude das lutas entre arianos e
nicenos — partido que ele e seu irmão defenderam vigorosamente. O ponto
alto de uma vida com poucos eventos foi sua participação no Concílio de
Constantinopla, onde brilhou nos debates cristológicos e, graças a seus
dotes oratórios, na oração fúnebre a Melétio, ajudando seu partido na
consolidação da doutrina cristológica exposta em Niceia.
Não se sabe a data da morte de São Gregório. Sabe-se que a última
referência a ele vivo data de 396, e essa data tende a ser aceita como a data
de sua morte.
Uma vida relativamente tranquila — sobretudo se comparada à de
seu irmão, Basílio, e de seu homônimo e conterrâneo, Gregório de
Nazianzo — mostra-se agitada somente em sua extremamente produtiva
obra literária. Gregório de Nissa é, de fato, um dos mais prolíficos
escritores do Cristianismo antigo, perpassando muitos gêneros literários.
Sua obra de maior fôlego é a grande polêmica Contra Eunômio, em três
livros, onde ele refuta o pensamento neo-ariano de um eminente heresiarca
também da Capadócia que já havia polemizado com seu irmão. Além disso,
São Gregório possui uma ampla gama de opúsculos dogmáticos, sermões e
cartas. De grande importância são suas obras de caráter ascético; Gregório
não parece ter praticado a ascese ou ter entrado seriamente na vida
monástica, mas tem grande importância no desenvolvimento da teologia do
ascetismo cristão. Nessa categoria encontram-se tratados como Sobre a
Virgindade.
Gregório também foi um dos primeiros a praticar a hagiografia, com
dois textos de central importância no desenvolvimento desse gênero, as
vidas de Macrina, sua irmã, e de Gregório Taumaturgo, figura central na
cristianização da Capadócia e também influente na introdução do
pensamento de seu mestre Orígenes na sua região natal. Por fim, sua obra
exegética é extensa e rica. Ele produziu comentários ao Pai Nosso, às
Beatitudes, às Inscrições dos Salmos, ao Eclesiastes, ao Cântico dos
Cânticos. Além disso, possui obras de caráter exegético também na Vida de
Moisés e duas obras dedicadas à interpretação dos primeiros capítulos do
Gênesis: Da Criação do homem e Hexaemeron.
A obra exegética de São Gregório de Nissa é marcada pela grande
influência de Orígenes — que ele chega a citar textualmente. O sinal
característico da exegese do sábio alexandrino é a alegoria, ou seja, a
interpretação de passagens bíblicas como possuindo um significado
diferente do literal. A despeito da brevidade deste texto, vemos exemplos
desse método alegórico em muitas passagens, mormente quando ele diz
rejeitar a “interpretação literal”, ou a “leitura mais óbvia”.
Ao contrário de Orígenes, contudo, Gregório não demonstra grande
interesse por questões filológicas que dizem respeito ao estabelecimento do
texto e os refinamentos da língua hebraica, muito pouco disso está em seu
discurso. Em compensação, os princípios característicos da retórica antiga
aparecem a todo momento em seu texto, bem como as preocupações de
caráter mais filosófico tendem a prevalecer na sua exegese.

Posteridade
A fortuna crítica de São Gregório de Nissa é uma história de
mudanças e transformações. Mesmo em vida ele ficou à sombra de seus
conterrâneos Basílio e Gregório de Nazianzo, pois ambos obtiveram grande
fama e influência em vida, sendo elementos fundamentais nas controvérsias
teológicas do quarto século. De fato, São Basílio foi um bispo enérgico de
Cesareia — cidade principal da região da Capadócia — e um feroz
polemista e debatedor nas querelas arianas de sua época; já São Gregório de
Nazianzo ascendeu a um dos cargos mais elevados da Igreja: o de Patriarca
de Constantinopla, que à época era a capital do Império Romano e o grande
centro de todas as disputas religiosas do período.
Por seu turno, Gregório de Nissa teve uma vida de pouca evidência,
pois não teve uma carreira eclesiástica brilhante como seu homônimo que
saiu de Nazianzo – uma vila tão insignificante quanto Nissa – para a capital
do império. Também ele não teve uma carreira de profunda atividade
eclesiástica como seu irmão. Por certo, uma mostra significativa de sua
relativa obscuridade em vida é o fato de não sabermos a data de sua morte,
em comparação, por exemplo, aos diversos elogios fúnebres existentes para
a figura de seu irmão Basílio.
Venerado como santo ao lado de seu irmão e de seu homônimo,
Gregório sempre gozou de uma posição de menor destaque. Efetivamente,
são poucas as igrejas dedicadas a ele e mesmo na tradição iconográfica ele
não é figura frequente, isolado de seus colegas mais famosos. Dentro da
tríade de padres capadócios, tradicionalmente Gregório de Nissa ocupa um
terceiro lugar distante de Basílio — conhecido como São Basílio, o Grande
— e Gregório de Nazianzo — cuja fama também ascendeu a ponto de ser
chamado no Oriente de São Gregório, o Teólogo, alcunha compartilhada
exclusivamente com o autor do quarto Evangelho.
Isso não significa, contudo, que ele tenha passado totalmente
despercebido por esses muitos séculos que separam sua morte dos dias
atuais. Na verdade, sobretudo no Oriente grego, muitas de suas reflexões
foram retomadas por autores como São Máximo, o Confessor, e Gregório
Palamás, e tornaram-se elementos fundamentais da teologia oriental. Além
disso, a diversidade de manuscritos de suas obras testemunha que ele
sempre foi lido no mundo de fala grega.
No Ocidente, todavia, dada a inexistência de traduções antigas para
o latim, ele passou quase toda a Idade Média totalmente ignorado, e foi
apenas graças aos humanistas gregos do renascimento que sua obra
começou a ser descoberta; mas em outras línguas, como o siríaco, o
armênio e o georgiano, ele foi traduzido bissextamente — dessa maneira, a
influência da teologia do Nisseno foi sentida nas igrejas dessas tradições.
No entanto, em pelo menos um ambiente essa posição foi
completamente transformada a partir do momento em que suas traduções
surgiram no Ocidente: a Academia. Com efeito, a publicação da Patrologia
graeca de J-P Migne no século XIX permitiu uma veloz popularização de
textos dos padres gregos da Igreja que eram virtualmente desconhecidos do
público ocidental. Consequentemente, em virtude de sua sofisticação e de
seu diálogo com a tradição filosófica grega os estudiosos modernos
passaram a demonstrar um grande interesse nas reflexões de São Gregório
de Nissa.
Assim, em pouco tempo, Gregório de Nissa passou, pelo menos na
Academia, de ser o irmão menor de São Basílio para ser um dos mais
estudados dos padres antigos. De fato, alguns dos helenistas mais
importantes dos últimos tempos se dedicaram ao estudo da obra de
Gregório, nomes como Ullrich Wilamowitz von Mölendorff, Henri-Irenée
Marrou e Werner Jäger. Este último, inclusive, foi o responsável pela edição
completa de sua obra, realizada pela editora Brill, o que torna Gregório o
padre antigo mais bem editado, o único a gozar de uma edição crítica
contemporânea que no momento está quase completa, à frente até de
autores como Santo Agostinho.
Além disso, a maior parte dos teólogos que se dedicaram de algum
modo ao estudo dos padres gregos beberam profusamente de seus textos;
nomes como Hans Urs von Balthasar, Jean Daniélou, Henri de Lubac, entre
outros, escreveram estudos dedicados à sua obra. Por fim, mas não menos
importante, a obra de São Gregório de Nissa tem adquirido importância
cada vez maior na vida eclesial, ao menos do ocidente. Com efeito, seus
textos aparecem com uma frequência cada vez maior nas novas edições do
Breviário, e ele tem sido extensamente citado em obras como o Catecismo
da Igreja Católica, o Compêndio de Doutrina Social e outros textos
eclesiásticos.
No Brasil, em Portugal e nos demais países lusófonos, contudo, essa
crescente evidência da obra de São Gregório de Nissa ainda não foi sentida.
Verificamos uma rara quantidade de estudos sobre o autor somada a uma
ainda menor quantidade de traduções de sua obra. Com efeito, encontramos
traduções de poucos de seus textos em nossas livrarias reais e virtuais. O
propósito do selo Fontes Cristãs consiste justamente em fornecer mais
traduções dos padres e, assim, introduzir seu pensamento em nossa vida
intelectual e eclesial.
Resumo das Homilias

Como é comum em relação à obra de São Gregório, temos poucas


informações a respeito da cronologia de seus textos. O que sabemos ao
certo é que quase toda sua atividade literária foi produzida a partir da morte
de seu irmão, Basílio. Desse modo, a maioria das obras que possuímos deve
datar do período entre 377, data da morte de seu irmão, e 396, último ano
que sabemos que Gregório estava vivo. Nesse intervalo de dezenove anos
temos pouquíssimos testemunhos que nos permitem estabelecer uma
cronologia interna. Isso não impediu que se fizessem conjecturas a esse
respeito, com base no desenvolvimento do pensamento do autor.
O Comentário ao Pai Nosso foi considerado no passado como uma
das primeiras obras do autor,[2] mas recentemente houve uma mudança e os
últimos estudos apontam que as homilias apresentam características mais
típicas de uma obra mais tardia, por retrabalhar temas de textos cuja datação
é inequívoca, como o Contra Eunômio. [3]
O texto é dividido em cinco homilias. Muitos outros comentários
apresentam a mesma organização, assim são o Comentário às Beatitudes, o
Comentário ao Eclesiastes e o Comentário ao Cântico dos Cânticos.
Apenas no último texto, normalmente aceito como uma das obras tardias do
autor, Gregório escreveu um prólogo que nos dá uma explicação sobre o
modo de composição desses textos:
“Mas, visto que a maior parte eu falei na Igreja, foi
anotada por alguns de meus conhecidos por amor ao
conhecimento, deles eu tomei aquilo cuja anotação
tinha ordem, já outra parte eu adicionei aquilo cuja
adição era necessária e fiz a apresentação em forma de
homilias(...)” (GNO VI p. 13)
Essa passagem nos mostra que o texto do Comentário ao Cântico
dos Cânticos foi anotado por pessoas da assembleia e depois foi
retrabalhado pelo autor com vistas à publicação. Essa prática é comum na
Igreja Antiga e temos indício de que ela foi realizada para vários autores
antigos, como Santo Agostinho, São João Crisóstomo. A história de
Eunômio, o grande adversário de São Gregório, que começou a sua carreira
sendo um estenógrafo e ascendendo a partir desse princípio, mostra como
essa atividade era difundida e importante no Império Romano.[4]
Provavelmente as mesmas condições são válidas para o livro em
questão. Um texto anotado na Igreja posteriormente foi trabalhado pelo
autor em forma de publicação.
O comentário é dividido em cinco homilias. A primeira não discute
o texto do Pai Nosso, mas a oração, sua utilidade e sua importância. De
certo modo, o texto dessa primeira homilia pode ser interpretado como um
“tratado sobre a oração”. Esse é, inclusive, um título pelo qual todo o
comentário é conhecido em diversos manuscritos. Admitindo-se essa
interpretação, a exegese sobre o Pai Nosso torna-se apenas uma exegese
sobre a oração mais puramente cristã, e seu modelo máximo. Essa estrutura
não é exclusiva de São Gregório, pois ele está seguindo os passos de
Orígenes, que possui um texto exatamente nos mesmos moldes, e vai ser
repetido por São Máximo, o confessor.

A primeira homilia
Como dito, a primeira homilia é devotada à definição da oração,
sua importância e o que se deve e não se deve pedir. Nesse texto, ele não
comenta nenhuma particularidade específica da oração do Pai Nosso, pois
seu fim e seu interesse é apenas o de definir a utilidade e os fins da prece.
Segundo São Gregório, a oração está esquecida pelas pessoas na vida, pois
todos consideram suas ocupações momentâneas mais importantes e deixam
essa atividade em segundo plano.
A palavra que se destaca nessa passagem é spoudé. Esse termo, cujo
primeiro significado é “pressa”, adquire um valor quase técnico na obra de
Gregório de Nissa. Ela indica principalmente o sentido de “esforço” ou
“ocupação”. Quase sempre se refere à ocupação voltada para os assuntos
que estão distantes de Deus, ou seja, as ocupações deste mundo terreno em
oposição ao mundo divino. No Comentário ao Eclesiastes, por exemplo, a
spoudé está intimamente ligada à vaidade, que é constantemente oposta ao
trabalho de Deus. Ou seja, as ocupações momentâneas, essa pressa da vida,
as spoudaí, são, na visão de São Gregório, um grande entrave para o
encontro de homem com Deus.[5]
Essa preocupação com o momentâneo é que, na opinião de São
Gregório, dá entrada ao pecado no mundo. A oração consiste tanto em dar
importância menor às ocupações quanto em pedir o auxílio de Deus em sua
vida. Por meio da oração os assuntos cotidianos são resolvidos da melhor
maneira possível, sem permitir que pecado entre na vida dos homens.
Assim, é por meio da oração que toda boa ação se concretiza de maneira
proveitosa.
Para concluir essa primeira discussão sobre a utilidade e função da
oração, Gregório compôs um hino, mostrando como em toda ocasião da
vida — na paz e na guerra, na virgindade e no casamento, entre os que
dormem e os que estão acordados — ela se faz presente e permite que a
ação seja concluída de modo mais proveitoso.
Em seguida, São Gregório define que a oração é uma retribuição da
criatura ao Criador em agradecimento aos bens concedidos. No entanto,
esses bens que Deus oferece são em excesso e, como a cada momento
somos agraciados, não seríamos capazes de retribuir as graças presentes
nem mesmo se rezássemos a todo tempo, pois, ainda assim, ficaríamos
aquém por conta dos bens passados e dos bens futuros. A conclusão, que
Gregório não chega a deixar manifesta, é de que devemos realizar a oração
a todo tempo.
Ao se aproximar do texto do Pai Nosso, do qual ele vai se ocupar no
resto da homilia, Gregório lembra o texto imediatamente anterior no
Evangelho segundo Mateus, quando Cristo rejeita o “palavreado”
(battologia) dos gentios. Gregório procede, então, para uma exegese do
sentido dessa palavra, um neologismo do texto bíblico; ele antepõe a
palavra (logos) e o palavreado (batto-logos); a primeira, uma palavra com
propósito; a segunda, apenas uma fala sem sustento, sem fim e objetivo.
A interpretação que se faz não é aquela que se poderia ter
inicialmente, isto é, de que o palavreado é apenas uma repetição mecânica
de palavras e expressões. Na verdade, Gregório interpreta o palavreado de
duas formas: a primeira é o pedido insensato, como ele nota sobre as
crianças que sonham com possibilidades absurdas e impossíveis, como
renascer, voar, tornar-se estrela e outras fantasias. A segunda, e mais séria, é
o pedido para prejudicar o adversário.
Esse recurso da oração para o ganho pessoal é visto por Gregório
como uma afronta a Deus. A grande questão que se enxerga é que ele pede
para Deus compartilhar da ira e do ódio. Ora, para a visão bastante
neoplatônica que nosso autor possui da divindade, isso é impossível, porque
a Divindade é, nessa visão, a própria definição de impassibilidade — isto é,
de não sofrer nenhum tipo de afecção — portanto, exigir que o Ser
impassível por excelência se torne irado com alguém é rebaixar a posição
de Deus. É um sacrilégio.
Gregório então tenta responder a uma objeção que ele mesmo
formula, pois existem na Bíblia diversos momentos em que há pedidos
explícitos pelo prejuízo dos inimigos. Como ele acabara de dizer que pedir
o malefício é um sacrilégio, nota-se que essa objeção é uma questão séria
para sua doutrina da oração.
A solução a que se chega é o primeiro exemplo de interpretação
alegórica. São Gregório é, de fato, um dos grandes expoentes desse tipo de
exegese e aqui está um exemplo bastante típico desse procedimento. Os
pedidos contra os inimigos são lidos como uma personificação do pecado e
da maldade — o exemplo mais claro é o do profeta Oseias, que, ao pedir
entranhas estéreis e seios secos (Os 9, 14) é interpretado como as entranhas
e os seios do pecado que estejam secos. Da mesma maneira, todos os
ataques aos pecadores e inimigos são lidos como lutas contra o pecado e os
demônios. Dessa maneira, Gregório preserva sua doutrina sobre a
impassibilidade de Deus diante do exemplo bíblico.
Por fim, a última questão tem a ver com os pedidos por bens
materiais. Segundo Gregório, esses pedidos não são totalmente condizentes
com Deus, afinal, graças à sua visão platônica, os bens espirituais são
absolutamente superiores aos físicos, e nestes estão contidas as riquezas e
as honrarias. No entanto, em diversas passagens das Escrituras encontram-
se orações pedindo esse tipo de graças. Gregório explica essas graças como
uma espécie de pedagogia que mostra o poder de Deus e vai educando os
fiéis para pedirem bens maiores e mais importantes.

Segunda homilia
A segunda homilia inicia-se com uma comparação entre as duas leis, entre o
Antigo e o Novo Testamento. Esse mesmo esquema irá se repetir no início
da terceira homilia. O conceito que está por trás dessas duas passagens é a
noção de “tipo”. No Cristianismo da Antiguidade, os acontecimentos do
Antigo Testamento são considerados “figuras” (eikónes) ou “marcas”,
“tipos” (typoi) dos acontecimentos do Novo Testamento, ou seja, o Antigo é
uma prefiguração do Novo. Assim, acontecimentos como Jonas ficar três
dias dentro da baleia são vistos como uma prefiguração da ressurreição de
Cristo; o Tau marcado nas casas dos hebreus, no Êxodo, uma prefiguração
da Cruz de Cristo, e muitas outras.
Esse modo interpretativo é uma das marcas características do
Cristianismo antigo. De fato, seu primeiro praticante, que acabou por se
tornar uma espécie de “padroeiro” da intepretação tipológica dos
Testamentos, é o próprio apóstolo Paulo. Com efeito, em muitas passagens
ele manifesta essa noção de que o Antigo Testamento é uma imagem do
Novo: [Adão] é figura [typos] daquele que devia vir (Rm 5, 14), esses fatos
aconteceram como exemplos [typoi] para nós (1Co 10, 6), isso foi dito em
alegoria [allegoroúmena] (Gl 4, 24). Desse modo, essa visão de que o
Antigo prefigura o Novo Testamento está muito bem sedimentada no
pensamento cristão.
À vista disso, Gregório mostra sua leitura tipológica de dois eventos
dos dois Testamentos: a subida de Moisés ao monte Sinai e a preparação do
encontro com Deus diante da oração. De modo interessante, embora seja
ainda uma leitura tipológica, a comparação é menos com algum aspecto
textual do Novo Testamento, e mais com as consequências da vinda de
Cristo.
O que há de comum entre os trechos é que os dois eventos são
encontros com a divindade. Moisés sobe ao Sinai para falar com Deus; o
homem que se prepara na oração também se prepara para falar com Deus.
Mas a partir daí as diferenças são marcadas por Gregório: na oração não é a
subida do monte que faz a aproximação com Deus, mas ao contrário, é o
céu que vai ao encontro do orante; não é dada a uma pessoa — como fora a
Moisés — a tarefa do encontro com Deus, mas a toda pessoa; a purificação
não é feita por fontes de água alheias, mas das “fontes dos olhos”, ou seja,
as lágrimas. Em suma, aquilo que antes era difícil e misterioso torna-se
acessível a todos a partir da Lei de Cristo.

Prece e oração
Em seguida vem uma passagem de difícil compreensão e tradução.
Gregório faz a distinção entre eukhé e proseukhé, que verti como “prece” e
“oração”. O motivo principal é que, no texto que imediatamente precede o
Pai Nosso (Gregório ainda não começou a exegese da oração propriamente
dita) apresenta a segunda palavra: hótan proseúkhesthe, “quando orardes”
(Mt 6, 5). Com essa discussão, o autor busca precisar o significado da
oração.
Em grego clássico, mas não em todos os dialetos da Antiguidade,
essas palavras são basicamente sinônimas. Na verdade, são tão sinônimas
que em muitos lugares desse tratado as edições críticas se confundem
quanto ao uso de cada uma das palavras. O texto de Migne, por exemplo,
tende a apenas usar proseukhé, e mesmo as edições de Callahan e
Boudignon-Cassin apresentam divergências em alguns lugares.
Contudo resta uma diferença básica entre esses termos que consiste
no fato de que eukhé pode significar também “promessa” — é com esse
sentido que Gregório interpreta as ocorrências bíblicas do termo. A maioria
é do Antigo Testamento, e, como ele utiliza o texto da Septuaginta, é difícil
para nós, que majoritariamente lidamos com traduções do Hebraico,
perceber nos nossos textos essa variância de sentido. Porém, a noção que
Gregório retira dos termos é que, em primeiro lugar, faz-se uma promessa e,
quando ela é atingida, dirige-se à oração em agradecimento.

Pai
Finalmente, São Gregório adentra na exegese da oração. E ele começa com
uma discussão sobre o termo “pai”. Para compreender melhor o significado
e o que Gregório quer dizer com sua exegese temos de estar cientes das
profundas influências neoplatônicas que cercam o autor. Com efeito,
embora seja difícil saber se São Gregório chegou a estudar filosofia
formalmente, isto é, com um professor da disciplina, é bastante evidente
pelas suas obras que ele leu com grande avidez tanto Platão quanto autores
que se influenciaram em Platão. Isso se revela sobretudo na sua preferência
pela imagem da ascensão para identificar a aproximação do homem com
Deus. Nessa passagem ele identifica chamar Deus de “pai” com uma subida
do plano terrestre até o céu e além. Essa imagem é bem característica da
Antiguidade, visto que a ciência antiga imaginava que o mundo terrestre era
exclusivamente o mundo da decadência e do passageiro e que além da Lua
estava o mundo da incorruptibilidade e da estabilidade, em um estado,
consequentemente, quase divino. Além desse mundo encontra-se a
realidade última de Deus. De acordo com esse pensamento, a metáfora da
ascensão já está presente no Fedro de Platão (246 a) e torna-se um ponto
comum da filosofia neoplatônica, sendo especialmente cara a Plotino.[6]
Dessa maneira, o neoplatonismo enxerga a divindade como algo
totalmente transcendente a esse mundo. Da mesma maneira, a realidade
humana é vista por Gregório como totalmente diferente da natureza divina.
Por isso a expressão “pai” é vista quase como um paradoxo, dado o
afastamento das duas naturezas.
Com efeito, Gregório afirma que é necessária uma grande
preparação para se fazer essa aproximação, porque a pessoa que não é pura
e, de modo contrário, vive no erro ao chamar “pai” na oração — não invoca
o pai celeste, mas, como ele diz, o subterrâneo, ou seja, o Diabo. Todo
cristão, portanto, deve se esforçar para se tornar digno dessa apelação por
meio da perfeita preparação do orante.
Em seguida, como um contraponto a essa visão, Gregório insere um
tema importantíssimo da sua teologia e que marca uma quebra, de algum
modo, com esse afastamento entre as duas naturezas. Agora ele se ocupa
com a localização, os céus. O ponto mais importante nessa discussão é que
o céu é visto como a pátria originária do homem, um tema caríssimo a
Orígenes do qual São Gregório faz uma leitura ortodoxa.[7]
Essa passagem serve como uma interpretação alegórica da parábola
do filho pródigo. Com efeito, Gregório identifica esse texto com a história
da raça humana que foi criada com Deus no Paraíso, mas o abandonou. O
homem hoje está afastado de Deus, mas ele pode se arrepender e retornar à
sua pátria celeste. O afastamento entre Deus e homem não é espacial,
portanto, esse retorno, como Gregório bem nota, pode ser realizado
instantaneamente, bastando o reconhecimento e a escolha de se afastar do
mundo terrestre. Com isso ele indica o mal.
Assim, nessa homilia os temas filosóficos caros ao Nisseno
manifestam-se de modo claro. Em primeiro lugar, há uma distância muito
grande entre o homem e Deus, em virtude da diferença de natureza. No
entanto, essa distância não é espacial, e, dessa maneira, pode ser transposta
imediatamente, quando o homem recusar e se afastar do mal.

Terceira homilia
A terceira homilia começa de modo semelhante à segunda. Gregório
estabelece uma interpretação tipológica do Antigo Testamento. Neste caso,
ele é ainda mais evidente, ao citar uma passagem bíblica da Carta aos
Hebreus que já explicita esse modo de interpretação.
A homilia começa com uma descrição da indumentária do sacerdote
levítico quando ele vai se dirigir ao Tabernáculo e ao Santo dos Santos, em
seguida, ele retoma toda essa descrição e a interpreta em relação à
economia do Novo Testamento. Jesus deixa de conduzir uma única pessoa e
permite que todos tenham parte nesta graça – um tema que já havia
aparecido na homilia anterior. E o adorno deixa de ser um formado por
elementos alheios à pessoa, mas cada item da indumentária recebe um
correspondente moral: as virtudes no lugar da túnica, a consciência no lugar
do ouro, os mandamentos no lugar das pedras e tudo que se segue. Por fim,
o santuário deixa de ser um lugar físico e passa a ser o pensamento do fiel e,
no lugar de uma vítima alheia, a própria pessoa se oferece como sacrifício.
Então Gregório usa o restante da homilia para interpretar os dois
pedidos subsequentes da oração. Uma primeira questão que ele coloca é
que, à primeira vista, esses pedidos não são os que se esperaria;
normalmente, diz Gregório, espera-se que a pessoa que luta neste mundo
contra o pecado tenha outro tipo de pedido e, com efeito, ele menciona
várias passagens dos Salmos com preces mais condizentes a essa situação.
Mas, na sua opinião, esses dois pedidos têm um significado mais profundo,
que indica que o homem é fraco para o bem e necessita antes da aliança
com Deus.
O primeiro desses pedidos, Santificado seja vosso nome, é
interpretado de maneira bastante peculiar a São Gregório. Ele foca a leitura
na ideia de que a pessoa que professa ser cristã vai indicar por meio de suas
ações aquilo que a religião professa. Porém, se essa pessoa vive uma vida
ruim, cheia de pecados, sua religião vai ser vista pelos pagãos como se
preconizasse os pecados que ela comete. Dessa maneira, o cristão que tem
uma vida ruim pode ser visto como um blasfemador do nome de Deus.
Portanto, pedir santificado seja vosso nome significa pedir para que a vida
do cristão seja uma glorificação do nome de Deus, ou seja, é um pedido
para que as ações do cristão sejam condizentes com Deus.
Já o segundo pedido, Venha a nós o vosso Reino, tem uma
interpretação mais alongada e complexa. No primeiro momento, Gregório
considera que deve ser interpretado como um pedido para que se efetue o
domínio do Senhor, porque não há outra maneira de o homem se afastar do
mal sem a cooperação imediata de Deus.
Mas há uma segunda interpretação que ele tira a partir do Pai Nosso
presente no Evangelho segundo Lucas. Essa apresentação da segunda
versão da mesma oração é surpreendente por uma diversidade de motivos.
Em primeiro lugar, Gregório ainda não havia se ocupado dessa oração e em
nenhum momento ele busca harmonizar ambas e colocá-las em comparação
senão aqui. Isso mostra como nosso autor está distante de ser um exegeta
moderno do texto bíblico, pois, ao contrário da maioria das intepretações
modernas, sejam elas piedosas, tradicionais, modernistas ou críticas,
Gregório demonstra praticamente nenhum interesse no contexto da
passagem e em suas relações com outros textos. Com efeito, trata-se de uma
maneira de ver o texto bastante diversa da moderna.
Além disso, ao observar o texto bíblico que possuímos, podemos
perceber que não consta o versículo citado por São Gregório. A tradução da
Bíblia de Jerusalém segue fielmente o texto grego e apresenta venha o teu
Reino, e todas as outras traduções a seguem de modo mais ou menos literal,
mas aqui o Nisseno cita “venha o vosso espírito santo sobre nós e nos
purifique”. Na verdade, quando consultamos a edição crítica de referência
do texto do Novo Testamento, a de Nestle-Aland, podemos ver no aparato
crítico que realmente existe a lição e que ela está presente no evangelho de
Marcião – um dos grandes heresiarcas do século II – e em Gregório de
Nissa. Ademais, essa lição está presente em apenas dois manuscritos: o 162
e o 700, e está presente também no texto do comentário de São Máximo, o
Confessor. Mas como são cerca de quatro mil manuscritos ao todo, e, como
já vimos, muitas leituras dos padres da igreja, não são grandes os indícios
em favor dessa leitura.
Embora até haja quem argumente em favor da autenticidade da
leitura proposta por Gregório, de modo geral considera-se que é uma glosa
— isto é, uma explicação à margem, que foi introduzida no texto de alguns
manuscritos, mesmo que isso tenha acontecido bem no início da tradição,
dada sua atestação já no século II. Ou seja, calhou que Gregório recebesse
um manuscrito bíblico que contivesse essa lição bastante singular.[8]
A partir desse mote, Gregório vai iniciar uma discussão dogmática
até o fim da homilia. A questão central é sobre o status do Espírito Santo.
Uma das contendas mais importantes do período consistia na divindade do
Espírito Santo. Na época, havia algumas figuras, chamadas de
pneumatômacos ou macedonianos, que negavam a divindade do Espírito
Santo. Contra eles, São Basílio de Cesareia já havia escrito um de seus
textos mais importantes: o Tratado sobre o Espírito Santo. É contra essa
escola teológica que a passagem é dedicada. A argumentação é a seguinte:
como no Evangelho segundo Lucas o “espírito” aparece no lugar do
“reino”, consequentemente eles são sinônimos — se é assim, não é possível
colocar o Reino na posição de governado, logo, o Espírito é parte da
divindade.
Em seguida, Gregório emenda com uma discussão sobre a natureza
da trindade. Trata-se, talvez, da contribuição mais importante da teologia
capadócia para a história do dogma cristão. Gregório divisa três operações:
obra, ação e potência. A obra de cada um dos elementos da Trindade é
diferente: o Espírito purifica, Cristo faz a purificação, mas a ação é a
mesma: purificar. Se a ação é a mesma, a potência é a mesma e,
consequentemente, a natureza é a mesma. Com isso, Gregório quer provar
que as três pessoas da Trindade possuem uma única Natureza.
A discussão ascende para a identidade de natureza entre Pai e Filho,
que Gregório, como bom teólogo niceno, vê como a mesma. Daí ele afirma
que a Trindade tem uma única natureza, mas Pai, Filho e Espírito Santo,
ainda que com essa mesma natureza, possuem características singulares. A
do Pai é a de existir sem causa; a do filho, é a de vir do Pai; e a do Espírito,
a de proceder do Pai e do Filho.
As pessoas cientes da querela do filioque podem se assustar com
uma afirmação tão categórica de uma disputa tão contenciosa. Não quero
aqui fazer teologia ou discutir um ponto tão complexo e polêmico, mas
apenas expor o que o texto de São Gregório diz. De fato, o texto em questão
não está afastado dessa querela. Com efeito, em uma passagem do texto a
asserção da procedência do Espírito é enunciada categoricamente como
vinda também do Filho. Obviamente, essa afirmação tão forte da posição da
Igreja Romana não passou em branco pelos manuscritos e é possível
identificar na tradição sinais do constrangimento que esse trecho criou.
Todos os manuscritos mais antigos contêm essa lição, em alguns ela aparece
rasurada por uma mão mais recente, e a tradução siríaca também dá
testemunho da sua presença; ou seja, todos os dados textuais apontam tanto
para a existência dessa leitura, quanto para o embaraço que ela cria.[9]
John Callahan, o editor da GNO, preferiu não afirmar a
autenticidade dessa lição e a colocou entre colchetes em sua edição. No
prólogo ele argumenta que essa afirmação não é condizente com a teologia
de São Gregório e cita Werner Jäger e mesmo teólogos romanos como
testemunhas da inautenticidade dessa passagem. Na opinião do editor, essa
leitura falsa foi introduzida em algum momento bem cedo da tradição
manuscrita. Dessa maneira, na versão original desta tradução, antes de
termos recebido o texto crítico de Boudignon e Cassin, adotamos a leitura
excludente, mas, como a nova edição apresenta a passagem sem colchetes,
afirmando categoricamente sua autenticidade, adotamos a leitura da nova
edição. Isso não significa uma posição teológica, apenas fidelidade ao que
os manuscritos apresentam. É possível, de fato, que a lição seja falsa, mas
não temos dados textuais que o provem.[10]

Quarta Homilia
A quarta homilia começa com um outro aspecto característico da obra de
Gregório de Nissa: as comparações médicas. De fato, seu vocabulário e
seus conhecimentos médicos são surpreendentes para alguém que não teve
formação especializada no assunto. É frequente, ao ler suas obras, encontrar
palavras que aparecem somente na literatura técnica e em mais nenhum
outro autor, e praticamente todo texto contém algum tipo de alusão,
comparação ou explicação retiradas da medicina. Assim, houve quem
supusesse que ele teve algum tipo de formação em medicina, mas isso é
altamente improvável. O que é mais plausível é que ele tenha sido um
homem muito lido, mas sem revelar explicitamente essa leitura em sua
obra.
No entanto, a comparação entre saúde do corpo e saúde da alma é
um clássico da patrística. A visão de que Cristo age como um médico nos
homens é uma das marcas tradicionais do Cristianismo antigo. Da mesma
maneira que, na medicina grega antiga, uma pessoa fica doente pela
confusão dos humores no corpo, o homem depois da queda ficou com as
paixões desarranjadas e, assim, caiu doente. Cristo, então, vem como o
verdadeiro médico curar e restaurar a ordem da alma dos homens. Desse
modo, a tarefa do Cristianismo é curar a humanidade “desorganizada” pelo
pecado.[11]
Assim, as virtudes contrárias aos vícios adquiridos na queda agem
como purgantes e restauradores da correta situação. E é como um pedido
para a realização dessa ação que São Gregório interpreta o seja feita a vossa
vontade, pois, de acordo com sua visão, o homem é fraco para a realização
do bem e só consegue fazê-lo com a cooperação divina.
A expressão que completa o versículo, assim na terra como no céu,
é utilizada de mote para exemplificar o universo do Nisseno. De acordo
com seu raciocínio, que está em linha com boa parte do pensamento da
época, pagão e cristão, a vida racional, isto é, dos seres que têm a
capacidade do raciocínio, existe em duas formas: a corpórea, que é
caracterizada pelos homens, e a incorpórea, que, para os cristãos, é
caracterizada pelos anjos (os pagãos aceitavam uma gama maior de seres,
incluindo deuses, demônios, arcontes etc.). Assim, o pedido para que a
vontade ocorra tanto na terra quanto no céu é visto por São Gregório como
um pedido para que todo o universo se conforme à vontade divina.
Essa divisão entre seres corpóreos e incorpóreos emenda
imediatamente na discussão sobre o pão nosso. De fato, uma grande
diferença entre as duas naturezas, a corpórea e a incorpórea, é que a
primeira não tem nenhuma necessidade, ao passo em que, para não morrer,
o homem precisa continuamente de alimento.
Gregório, então, em uma passagem que alude bem claramente ao
seu Comentário ao Eclesiastes, contrasta o pão com toda a série de desejos
luxuosos: ouro, pedras preciosas, prata, rebanhos, liderança política, fama,
glória etc. Ele retoma a mesma imagem que apareceu em seu outro livro: a
serpente como uma metáfora para o prazer, pois este, como o réptil, uma
vez que se insinua em uma fresta, é impossível livrar-se dele. Da mesma
maneira, o homem, quando dá entrada ao mínimo de prazer, escancara toda
a abertura para todos os outros vícios.
De acordo com Gregório, a alimentação é um desses caminhos de
entrada. A partir do luxo na alimentação a pessoa é arrastada a todas as
formas de prazeres possíveis. Assim, a melhor atitude é não dar nenhuma
entrada para o prazer na alma, e o pedido do pão se adequa a esse
pensamento, pois com isso a pessoa se contenta com o que é necessário ao
sustento e não permite que lhe entre no pensamento nenhum prazer que,
como um efeito em cascata, vai produzir sequencialmente os outros.
A homilia se encerra com um comentário sobre o hoje da oração do
Senhor. Segundo Gregório, essa palavra é inserida para mostrar que a
preocupação com o sustento diz respeito apenas ao presente, mas que o
cristão deve se ocupar de mais coisas, com os bens da alma, que são para o
futuro e a eternidade.

Quinta Homilia
A Quinta Homilia se detém mais intensamente na exegese do perdão das
dívidas do que na tentação, que fica para um pequeno apêndice no final.
A exegese desse pedido é talvez a passagem mais original de todo o
texto de São Gregório. Vamos ver as diversas etapas da interpretação. O
primeiro raciocínio diz que, para se aproximar, o homem deve assumir uma
semelhança com Deus, e, como o ato de perdoar os pecados é uma
característica particular da divindade, quem o faz assume de certa forma a
natureza divina. Trata-se do desenvolvimento do conceito de theosis, tão
caro ao cristianismo oriental; ou seja, o caminho da vida cristã é a
assimilação com Deus.
Mas ele avança ainda mais na exegese, porque há uma relação
temporal em que o perdão do pecado que o homem efetua torna-se uma
dívida de Deus com o homem. Ou seja, uma vez que o homem foi capaz de
consumar esse perdão, ele pode, em contrapartida, requisitar o perdão de
Deus de volta, exigindo que Deus imite o homem na ação do perdão.
Gregório está ciente que essa relação não é de igualdade, pois as
transgressões do homem contra Deus são sempre, ele argumenta, maiores
do que a de um homem contra seu irmão, mas o homem faz aquilo que sua
natureza permite.
A partir dessa discussão é elaborada a sua doutrina do pecado
ancestral. Com efeito, ele começa a enumerar toda a série de pecados que o
homem tem contra Deus. Começa falando do afastamento do ser humano
do Criador, a deserção — no original, a metáfora militar é mais explícita —
para o Diabo (Gregório sempre prefere dizer o “Adversário”). Com isso
acarretou o abandono do lar paterno, a corrupção da marca divina e da
imagem de Deus na alma humana. Consequentemente, o homem como
coletividade é punível por essas transgressões.
Com isso em mente, ele comenta passagem do Evangelho sobre o
jovem rico que diz guardar os mandamentos desde a juventude. Uma pessoa
nessa situação pode pensar que não há necessidade de pedir o perdão das
dívidas, mas mesmo os grandes nomes da história bíblica, como Elias,
Pedro, Paulo, João Batista têm a mesma dívida natural. De fato, como todos
os homens abandonaram a morada paterna no Éden, todos partilham da
mesma natureza decaída e, da mesma forma, todos precisam pedir perdão
por suas transgressões. Ou seja, não há homem sem pecado, mesmo os
maiores.
Depois de comentar sobre o pecado comum, Gregório inicia um
longo catálogo sobre as várias instâncias de pecados particulares. Dada a
nossa natureza, com efeito, ele argumenta que é impossível que o homem
não peque de alguma forma. Então ele oferece uma lista baseada nos
pecados suscitados nos sentidos do corpo: olhos, ouvidos, paladar, tato —
curiosamente o olfato não foi incluído nessa lista. Em seguida, ele insere os
pecados da alma, surgidos a partir da vaidade, da arrogância.
Todo esse catálogo de pecados serve para São Gregório afirmar que
a vida humana está completamente imiscuída no pecado e que, por isso,
devemos sempre invocar a Deus o perdão. O pecado contra o homem é
sempre pequeno diante do pecado contra Deus, e para ilustrar isso Gregório
parafraseia a parábola do servo ingrato (Mt 18, 21-35).
Essa lembrança dá o mote para um tema bastante caro na obra do
Nisseno: a condenação da escravidão. Com efeito, São Gregório é
seguramente o autor antigo mais veementemente contrário à escravidão,
sendo, na opinião de um estudioso do assunto,[12] a denúncia mais veemente
da escravidão até o movimento abolicionista na era moderna. A razão que
nosso autor dá é que uma dignidade humana comum existe e que a
escravidão não faz parte da natureza, sim do costume e da lei. Com isso, ele
afirma que a escravidão não faz parte do plano divino.
Por fim, com pouco tempo restante, São Gregório dedica algumas
linhas para comentar o final da oração Não nos deixeis cair em tentação,
mas livrai-nos do maligno. Para o autor, “tentação” é também um nome do
mal. Dessa maneira, “maligno” e “tentação” são sinônimos. A solução para
isso é se afastar do mundo, evitando assim as tentações que surgem nele.

O texto e a tradução
Quando começamos a tradução desta obra, ainda em 2017, havia apenas
uma edição crítica do Comentário ao Pai Nosso, a feita por John Callahan,
que faz parte da Gregorii Nysseni Opera, publicada pela editora Brill em
1992. Essa coleção foi iniciada no início do século XX pelo famoso
helenista alemão Werner Jäger e constitui na edição padrão da maioria dos
textos de São Gregório.
Até então, de fácil acesso havia apenas a edição publicada pelo
padre francês Jacques-Paul Migne, no século XIX. Mas os objetivos de seu
editor eram muito diferentes dos que um acadêmico busca. Com efeito, ele
desejava disponibilizar de modo barato e compreensivo textos dos padres
da igreja para a melhor educação do clero católico francês. Com isso, ele
não empreendeu publicações meticulosas, mas, via de regra, contentou-se
em reeditar textos e traduções antigas. No caso de São Gregório, a edição e
a tradução latina que Migne utiliza é a editio princeps, de Claude Morell,
publicada originalmente na França em 1615, com uma segunda edição em
1638.
Como era de se esperar, a edição de Callahan apresenta enormes
avanços em relação à edição de Morell. Com efeito, o desenvolvimento da
filologia nos quase quatrocentos anos que as separam não é desprezível. A
nova é uma verdadeira edição crítica, isto é, feita por meio da comparação
da diversa tradição manuscrita — os editores renascentistas normalmente
eram obrigados a se conformar com os textos que existiam em suas
bibliotecas nacionais — e fazendo uma seleção filologicamente informada
das melhores leituras de cada passagem. De fato, somente por uma
verdadeira edição crítica podemos chegar a um conhecimento mais preciso
do que o autor quis dizer, pois ela revela as diferentes escolhas que o editor
fez e as possibilidades que a tradição manuscrita oferece. Assim, ela
fornece recursos aos tradutores e estudiosos para compreender a razão
dessas escolhas e aceitá-las ou rejeitá-las.
Mais que na tradição clássica pagã, a tradição textual patrística
exige um trabalho detido. Os motivos são duplos. Em primeiro lugar, os
manuscritos do Comentário ao Pai Nosso de São Gregório citados na
edição de Callahan chegam a 18, enquanto os manuscritos totais chegavam
ao número de 60, hoje sabe-se da existência de mais dez manuscritos.
Apenas por comparação, a edição crítica de Ésquilo elaborada por Gilbert
Murray elenca um total de doze manuscritos, nem todos contendo as sete
tragédias que possuímos dele. Como cada edição exige o trabalho de
comparação minuciosa entre vários manuscritos, o trabalho aumenta muito
em complexidade quando se aumentam as fontes.
Em segundo lugar, a natureza dogmática do cristianismo faz que
muitas vezes haja modificações para harmonizar a palavra de um santo
padre com a posição doutrinal que se considera ortodoxa — pelo menos a
que o copista considerava ortodoxa. Este texto tem um exemplo bastante
espinhoso ao final da terceira homilia, onde São Gregório diz de modo
explícito que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. De fato, nessa
passagem, a tradição textual revela que a partir do século X os manuscritos
têm a tendência de apagar essa referência — inclusive recorrendo a rasuras
em textos mais antigos. Com efeito, é justamente nesse período que a
querela do filioque, isto é, sobre a procedência do Espírito Santo, anima as
disputas dogmáticas entre o Ocidente e o Oriente.
Em 2018 foi feita uma nova edição crítica do texto, preparada por
Matthieu Cassin e Christian Boudignon, publicada pelas Éditions du CERF.
Obtive uma versão prévia deste texto antes de sua publicação, em fevereiro
deste ano. Essa nova edição crítica apresenta, segundo a minha contagem,
240 lições textuais diferentes da edição anterior de Callahan. Na introdução
ao texto explica-se que se adotou um princípio editorial diferente,
privilegiando as lições siríacas e dando mais valor aos manuscritos
considerados “marginais”, chegando a essa grande variação de leituras.
Sem querer adentrar em questões textuais muito espinhosas, as
famílias de texto consideradas mais novas adotaram uma tendência a serem
mais prolixas, ampliando um texto originalmente mais breve. Além disso,
há uma tendência, comentada pelos editores como “plus grégorien que
Grégoire”, de se inserir comentários encontrados em outras obras de
Gregório.
Porém, como a tradução já tinha sido feita e revisada antes da
disponibilização desse novo texto, adotamos uma revisão ulterior onde nos
circunscrevemos a selecionar as diferenças que facilitassem a leitura, mas,
de modo geral, damos preferência à nova edição. Sobretudo na passagem
dogmática ao fim da terceira homilia, as diferenças entre as duas edições
são bastante pronunciadas. Mais importante: Cassin e Boudignon
escolheram não fugir da polêmica e aceitaram a leitura controversa a
respeito da procissão do Espírito Santo, inescapável do ponto de vista da
crítica textual.
Sobre a organização do texto, é importante ressaltar que ele
originalmente era dividido somente em cinco homilias. Essa divisão,
inserida em todos os manuscritos, é ainda marcada com uma doxologia ao
final de cada uma delas. Além disso, não há nenhuma marca divisória nos
manuscritos. A edição de Callahan introduziu parágrafos, sem contudo
fornecer qualquer tipo de numeração ou subdivisão interna. Esses
parágrafos são demasiadamente longos: não é incomum existirem
parágrafos de cinco ou seis páginas. A nova edição de Cassin e Boudignon
usa uma paragrafação mais generosa e insere títulos de seções e sub-seções
para facilitar a leitura. Não seguimos as mesmas divisões da edição dos
franceses, mas adotamos um procedimento parecido.
Por fim, em relação à citação, ainda não há uma maneira universal
de citar a obra de São Gregório. De modo geral duas formas são
consagradas no Ocidente: a primeira consiste em citar as colunas do texto
grego segundo a edição de J-P Migne. Essa opção tem a vantagem de
aproveitar a elevada disponibilidade dessa edição, mas, como explicamos,
trata-se de uma edição bastante antiga e defasada. A segunda consiste em
citar de acordo com a edição da Gregorii Nysseni Opera, que é o modo que
utilizamos. Pois assim, mesmo que se tenha edições distintas, é possível
encontrar a mesma passagem ao se fazer referência a essa paginação. Esse
procedimento é amplamente utilizado para autores antigos, como
Aristóteles e Platão, mas também para autores modernos, como Rousseau,
Kant e Hegel. Para simplificar essa referência inserimos no texto, entre
colchetes, o número das páginas da edição de Callahan. Assim, pode-se
facilmente fazer a referência a partir desse número, lembrando que se trata
do volume 7.2 das obras completas de São Gregório de Nissa.
Gregório, Bispo de Nissa
Sobre o Pai Nosso

Homilia 1

1. Proêmio
[p. 5] O divino Verbo mostra-nos um ensino da oração, através do qual
instrui aos discípulos que buscam com diligência o conhecimento, como
convém tornar familiar o ouvido divino por meio das palavras da prece. Eu,
de modo ousado, adicionaria um pouco ao que está escrito, não porque se
deve instruir a presente assembleia como se deve rezar, mas porque se deve
sempre rezar, algo que os ouvidos da maioria talvez ainda não tenham
recebido. Afinal, esta santa e divina atividade — a oração — tem estado
esquecida e largada na vida da maioria das pessoas.

2. Utilidade da oração
A esse respeito, portanto, parece-me primeiro ser conveniente, o quanto
possível, dar testemunho com a palavra de que se deve sempre perseverar
na oração, como diz o Apóstolo (Rm 12, 12). Quem dera [p. 6] seja
possível dar ouvidos à voz divina enquanto ela nos ensina o modo como se
deve dirigir ao Senhor a prece! Pois vejo que todos se ocupam bastante na
vida presente, uma coisa se sucedendo a outra na alma; mas o bem da
oração não está nos pensamentos dos homens.
O mercador madruga para o comércio, compete com os colegas de
profissão em expor a mercadoria aos compradores para que se antecipe à
necessidade do cliente, e, se adiantando aos outros, vende a mercadoria. Da
mesma maneira também o comprador se adianta ao outro tendo em vista
não perder o negócio e corre não para o sagrado, mas para o mercado.[13] E
assim todas as pessoas têm o mesmo desejo de lucro e competem para
chegar ao próximo, e assim a hora da oração é furtada por causa das
ocupações e trocada pelo comércio.
Assim também é o artesão, assim também as pessoas que se ocupam
das palavras, assim o réu, assim o jurado, cada um está inteiro nos assuntos
concretos de momento e, pendendo para a ocupação, esquece-se do trabalho
da oração, julgando a ofício de Deus um prejuízo para o projeto que está à
sua frente. De fato, o artesão, diante dos assuntos presentes, considera um
negócio demorado e inútil a aliança com Deus, e por isso abandona a
oração e deposita as esperanças em suas mãos, descuidando-se de Quem lhe
deu as mãos. Da mesma maneira, também a pessoa que endireita o discurso
com cuidado não considera quem forneceu a palavra, mas, como se o
colocasse nessa natureza de criador, olha para si mesmo, se devota às
ocupações dos ensinamentos e considera que não advirá nada de bom na
cooperação com Deus, julgando a; ocupação preferível à prece. Do mesmo
modo todos os empregos restantes [p. 7] rejeitam o contato da alma com os
assuntos melhores e celestes pela preocupação com os assuntos corporais e
terrestres.
Por isso o pecado é tão grande ao longo da vida, sempre crescendo
nas esperanças de mais e mais, sempre atingido por todas as ocupações
humanas. Por isso o esquecimento de Deus domina a todos e o bem da
oração não toca junto com os homens suas ocupações. A ganância
acompanha o comércio e ganância é idolatria (Cl 3, 5). Assim, o agricultor
não calcula o emprego no campo com as necessidades, mas sempre estende
a ocupação para ter mais e dá uma grande entrada para o pecado em seu
trabalho, estendendo-se sobre os limites dos terrenos alheios. É a partir daí
que nascem as rivalidades intratáveis: nas fronteiras dos campos as pessoas
indispõem-se umas com as outras, essas também dominadas pela doença
semelhante da ganância. E daí vêm as iras e as inclinações para o mal, e daí
as tentativas de crime e assassinato contra os outros muitas vezes têm
origem. Da mesma maneira as ocupações nos tribunais servem aos
multifacetados pecados, encontrando milhares de advogados para injustiças.
E o juiz ou voluntariamente faz pender a balança da justiça em razão do
lucro ou, involuntariamente, iludido pela habilidade dos que distorcem a
verdade, confirma a injustiça. E quem vai falar dos diversos casos
particulares pelos quais o pecado, de modo complexo e variado, imiscui-se
na vida humana? E a causa disso é nada mais do que os homens não
acolherem a aliança com Deus no lugar das ocupações momentâneas.

3. A oração impede o pecado


Se a oração tivesse precedência sobre as ocupações, o pecado não
encontraria entrada [p. 8] na alma. Quando a lembrança de Deus está
assentada no coração, tornam-se vãos os propósitos do adversário, pois a
justiça sempre intervém nas disputas. A oração afastaria do pecado
inclusive o agricultor, fazendo aumentar um pouco mais os frutos da terra,
de modo a nunca mais o pecado entrar acompanhado do desejo de mais.
Assim o viajante, assim a pessoa enviada para o exército ou um casamento,
assim qualquer pessoa que tem vontade de algo, se agir com a oração e no
bom caminho, estará afastada do pecado, sem nada contrário arrastar a alma
para as ações passionais. Pois se ficar completamente afastado de Deus,
dedicado somente às ocupações, é forçoso que essa pessoa, por estar fora de
Deus, esteja completamente no Adversário. E está afastada de Deus a
pessoa que não se une a Ele por meio da oração. Portanto, é necessário
primeiro que sejamos ensinados com a razão que é necessário orar sempre,
e não esmorecer (Lc 18, 1).
O hino à oração[14]
De fato, é da oração que vem a permanência com Deus, e a pessoa que está
com Deus está afastada do Adversário.

A oração é a guarda da prudência,


escola da ira,
proteção contra a vaidade,
purificadora do rancor,
destruição da inveja,
morte da injustiça,
correção da impiedade.

A oração é a força dos corpos,


a direção da casa,
a ordem da cidade,
poder do reino,
troféu da guerra,
segurança da paz,
reunião dos separados,
permanência dos unidos.

A oração é o selo da virgindade,


a fé do casamento,
a proteção dos viajantes,
guarda dos que dormem,
coragem dos despertos,
fertilidade dos agricultores,
salvação dos náufragos.
A oração é advogada dos réus,
liberação dos presos,
refrigério dos que padecem,
alívio dos doentes,
alegria dos felizes,
consolação dos sofredores,
coroa dos noivos,
festa dos aniversariantes,
túmulo dos moribundos.

A oração é conversa com Deus,


[p. 9] contemplação das coisas invisíveis,
certeza dos desejos,
igualdade com os anjos,
sucesso para o bem,
afastamento dos males,
correção dos pecados,
desfrute do presente,
sustento das esperanças. (cf. Hb 11, 1)

A oração transformou a baleia em casa para Jonas (cf. Jn 2, 1);


conduziu Ezequias das portas da morte até a vida (cf. 2Cr 32, ss);
fez a chama dos três jovens transformar-se em um vento de orvalho
(cf. Dn 3, 50);
estabeleceu a vitória aos Israelitas contra os Amalecitas (cf. Ex 17,
11);
e matou cento e oitenta e cinco mil assírios em uma só noite com
uma espada invisível (2Cr 19, 35).

É possível descobrir milhares de exemplos além destes, pelos quais


é evidente que nada é superior à oração dentre aquilo que é honrado na
vida.

4. A oração é dar graças a Deus


Mas seria ocasião de nos ocuparmos da própria oração. Ainda avançamos
muito pouco no texto, porque, dentre os muitos e variados bens que
possuímos da graça divina, como resposta para o que recebemos somente
isto: recompensar o benfeitor com a oração e o agradecimento. Considero,
portanto, que, mesmo se em toda a vida prolongarmos a conversa com Deus
em agradecimento e prece, estaremos tanto aquém da dignidade de
retribuição quanto se não tivéssemos desejado retribuir nada ao benfeitor
desde o princípio.
Em três partes o espaço temporal é medido: o passado, o presente e
o futuro. Nessas três, as ações do Senhor estão compreendidas. Se você
pensar no presente, [p. 10] é n’Ele que você vive; se pensar no futuro, Ele é
a esperança do que é aguardado; se pensar no passado, você não existe
senão a partir d’Ele. Você já foi agraciado antes de existir, por ter recebido a
existência d’Ele, e enquanto existe é agraciado, n’Ele vivendo e se
movendo, como diz o apóstolo (At. 17,28). As esperanças das coisas futuras
dependem dessas graças. Você é senhor somente do presente. Mesmo se
você não deixar de agradecer um minuto, dificilmente vai retribuir as graças
do presente, sem encontrar uma retribuição das dívidas nem do futuro e
nem do passado. Eu não falo todo dia, nem mesmo a maior parte do dia
dedicado a Deus no tempo livre.
Hino ao Criador

Quem estendeu a terra para mim?


Quem transformou a natureza úmida em passável pela inteligência?
Quem fixou para mim o céu como uma abóboda?
Quem acendeu para mim a tocha do sol?
Quem enviou as fontes nos abismos?
Quem preparou os caminhos para os rios?
Quem subjugou para mim o serviço dos animais irracionais?
Quem me fez — areia irracional — participar da vida e do
pensamento?
Quem moldou este barro na imagem do caráter divino?
Quem reconduziu a imagem divina, perdida em mim pelo pecado,
de volta à graça antiga?
Quem trouxe de volta a primeira bem-aventurança a mim, que
estava expulso do Paraíso e distante da árvore da vida e escondido pelo
abismo da vida material?
Não há quem entenda (Rm 3, 11), diz a escritura.

Certamente [p. 11], observando tudo isso, retribuiremos com um


agradecimento incessante e interminável em toda a extensão da vida. Mas
agora quase toda a natureza humana despertou somente para a natureza
material. Seu esforço é com esse fim. Nela está a vontade. Em torno dela é
que estão tanto a lembrança quanto a esperança. A natureza humana está
desperta e sem sono diante do desejo de mais em toda atividade em que é
possível descobrir o excedente. Seja com relação à honra e à fama, seja
tendo a ver com a riqueza em dinheiro, seja com relação à doença da ira, de
todas as maneiras a natureza visa mais nesses assuntos. Já diante dos
verdadeiros bens de Deus nenhuma palavra nem dos visíveis, nem dos
prometidos.

5. O que não pedir na oração


Mas seria a oportunidade de observar o sentido das palavras da oração, à
medida do possível. Pois é evidente que é melhor alcançar o que queremos
por meio do aprendizado de como convém fazer o pedido. Qual é o
ensinamento? Ele diz: Nas vossas orações, não useis de palavreado, como
os gentios, porque imaginam que é pela multidão de palavras que serão
ouvidos (Mt 6, 7). Talvez aí esteja clara a compreensão do ensinamento,
expondo para nós da forma mais nua e sem necessitar de nenhuma
compreensão mais refinada, apenas investigar o que significa a expressão
“vãs repetições”, a fim de que, ao aprender o sentido, fiquemos distantes do
que se proíbe. Parece-me, portanto, ser prudente e rebaixar a futilidade
daquelas pessoas que mergulham nos desejos vãos — e para isso cunhou
esse neologismo[15] — em confrontação com a insensatez daquelas pessoas
que derramam os desejos em atividades inúteis e vãs. De fato, a palavra
prudente e inteligente, que visa a utilidade, [p. 12] diz-se propriamente
como palavra. Já aquela palavra que se escorre em desejos sem sustentação
por meio do prazer sem base não é palavra, mas apenas um “palavreado”,
como uma pessoa interpretando de forma mais refinada[16] diria do
pensamento: insensatez, despautério, tolice e qualquer outra coisa que tenha
o mesmo significado.
O que, então, o texto nos aconselha? O texto nos aconselha a não
padecer, na ocasião da oração, do mesmo que ocorre no pensamento das
crianças. Pois como aquelas, incompletas no pensamento, não concebem
em suas opiniões como aconteceria de acordo com suas capacidades, mas
criam para si sucessos extraordinários, apresentando tesouros, matrimônios,
reinos e grandes cidades chamadas pelo nome delas[17] — acreditam, em seu
pensamento, até ser verdade isso que a vaidade de seus pensamentos
assinala. Existem alguns que até supõem algo até mais pueril do que essa
vaidade, e, ultrapassando os limites da natureza, ganham asas, ou brilham
ao modo dos astros, ou levam montanhas nas mãos, ou fazem do céu sua
estrada, ou sobrevivem por milhares de anos, voltando a ser jovens depois
de velhos, ou tantas coisas assim que o coração traz aos mais infantis —
pensamentos vazios como bolhas de sabão — assim como nos negócios do
dia a dia, a pessoa que não considera como poderia acontecer algo bom para
o seu intento, mas fantasia nos desejos vãos e é insensato e desgraçado,
desperdiçando com esses sonhos o tempo de intentar fazer alguma coisa
efetiva. Dessa mesma maneira, a pessoa que se alonga no período da oração
não com vista ao que é para benefício da alma, mas que se digna a dispor
Deus aos ímpetos apaixonados do pensamento, é, verdadeiramente, um
falastrão, fala de modo insensato, [p. 13] e ora para que Deus se torne
colaborador e serviçal de suas vaidades.
Mas o que digo? Aproxima-se alguém de Deus pela oração e, não
compreendendo no pensamento a altura do poder ao qual chega, insulta sem
perceber a grandeza com preces inoportunas e baixas. Como aquela pessoa
que, seja por excesso de pobreza, seja por caipirice, considera valiosos os
vasos de cerâmica; em seguida, aproximando-se de um rei que pediu para
reunir todas as riquezas, ele, obedecendo ao pedido real, julga que quem
molda cerâmica desse valor faz algo que é digno do rei. Assim também o
ignorante, ao se valer da oração, não se eleva à altura de Quem dá, mas
deseja rebaixar a força divina ao nível baixo e terrestre de seus desejos.
Graças a isso estende seus ímpetos a quem observa o coração, não para que
Ele trate os movimentos inconvenientes do pensamento, mas para que Ele
se torne inferior, para que o mau ímpeto chegue, assim, à realização por
meio da colaboração de Deus. Visto que ele sofre e meu coração está hostil,
“batei nele”, diz a Deus, só não chega a gritar: “que tenhais a minha paixão
e que minha maldade vá até vós”.
Pois como nas lutas humanas não é possível vir em auxílio de um
lado sem ao mesmo tempo acentuar a ira contra o adversário, da mesma
maneira é evidente que quem direciona Deus contra o inimigo, chama-O
para compartilhar a ira. Isso é rebaixar a divindade até a paixão, dispô-La
contra o homem e transformar a boa natureza em uma estupidez bestial.
Assim é a pessoa que é louca por renome, assim é a pessoa que deseja ter
sempre mais em arrogância, o que se apressa para a vitória nos julgamentos,
a [p. 14] pessoa que se esforça para a coroa nos jogos atléticos, a pessoa que
busca a glória no teatro, muitas vezes também a pessoa que se derrete na
paixão ensandecida dos jovens. Todos estes não dirigem suas orações a
Deus para que fiquem distantes da doença que os domina, mas para que sua
doença vá para o limite. De fato, cada um, julgando um infortúnio não
alcançar seus objetivos, ora de modo vão ao suplicar a Deus para que Ele se
torne colaborador da doença de sua mente. E o mais difícil de tudo é que
desejam mover Deus em direções opostas, dividindo a Sua ação em
crueldade e benevolência, suplicando generosidade e favor para eles e
invocando-No para que se mostre raivoso e duro para com os seus inimigos.
Que insensatez! Se Deus é duro, nem sempre é benigno para ti. Se Ele se
mostra compassivo com você, de acordo com a sua esperança, como ele
mudaria para o seu adversário, transformando a compaixão em crueldade?

6. Os profetas e a oração
Mas a resposta a essa indagação está próxima do sofisma. Pois logo expõem
as falas da profecia para a defesa da maldade deles mesmos: Davi
desejando o desaparecimento do pecador (Sl 91, 8; 103, 35) e pedindo a
vergonha e humilhação dos inimigos (Sl 82, 10; 9, 4); Jeremias desejando
ver a vingança de Deus contra seus opositores (Jr 20, 12); Oséias pedindo
que sejam dados aos inimigos entranhas estéreis e seios secos (Os 9, 14). E
reúnem muitas coisas semelhantes que são encontradas esporadicamente
nas Santas Escrituras, arranjando a necessidade de se rezar contra os
inimigos [p. 15] e de fazer da bondade de Deus cooperante com sua
maldade. Mas quanto a nós, como de princípio, cessemos esse palavreado
vão, levados de tal ímpeto para o lado oposto, exporemos os motivos de
cada uma das passagens lembradas.

7. Os inimigos dos profetas e santos são o mal em si


Nenhum dos verdadeiramente santos que são infusos do Espírito
Santo – cujas falas foram escritas segundo o arranjo divino para a
orientação das pessoas que lhes seguiriam – será mostrado ocupando-se de
algum mal, mas todo o objetivo das palavras visa a correção da maldade
naturalmente congênita. Assim, portanto, a pessoa que pede que não haja
doentes e não haja miseráveis não pede a morte das pessoas, mas deseja o
desaparecimento da doença e da miséria; da mesma maneira, cada um dos
santos, ao ter em suas orações o desaparecimento do que é odioso e hostil,
dá aos mais incultos uma impressão de que estão enraivecidos e irritados
com alguns homens.
De fato, quando o Salmodista, ao dizer que os pecadores se afastem
da terra e que os ímpios nunca mais existam (Sl 103, 35), ora para que o
pecado e a impiedade se afastem da terra. Pois não é que um homem seja
inimigo do homem, mas o movimento do desejo para o mal estabeleceu
naturalmente a união com a disposição ao ódio. Portanto, deseja-se que o
mal seja afastado, mas o homem não é o mal: como seria o mal a
semelhança com o bem? Assim, mesmo se deseja a vergonha e a
humilhação dos inimigos mostra a você o volume dos inimigos que
combatem invisivelmente a vida humana.
Sobre esses assuntos, Paulo relata de maneira mais evidente,
dizendo que nossa luta é contra os Principados, contra as Autoridades,
contra os Dominadores deste mundo, contra o princípio espiritual [p. 16]
da maldade nas regiões celestes (Ef 6, 12). Pois é observando os planos
demoníacos – por meio dos quais são trazidos aos homens as más
consequências do pecado: eventos de ira, ímpetos de desejo, condições de
inveja, ódio, arrogância e outros males semelhantes – que o grande profeta,
ao rezar contra esses inimigos, ora para que a alma de cada pessoa
voluntariamente caia em vergonha. Isso é o mesmo que orar para que ela se
salve. Pois a vergonha pela queda segue naturalmente a quem perde a luta,
da mesma maneira segue ao vencedor a alegria pela vitória. E a forma da
prece mostra que se trata disso. Fiquem envergonhados e humilhados os
que buscam minha alma! (Sl 34, 4). De fato, não ora contra os que planejam
a retirada de riquezas ou os que disputam os limites da terra, ou que
demonstram alguma maldade contra seu corpo, mas os que planejam contra
a alma. O que é o plano contra a alma? O que além de alheamento de Deus?
Uma alma humana alheia-se de Deus de nenhum outro modo que não pelo
comportamento passional. Portanto, uma vez que a divindade é impassível,
tudo o que ocorre de maneira passional afasta-se da convivência com Deus.
Portanto, ele pede a vergonha dos adversários para que não sofra isso. Isso
não é nada mais do que orar para a vitória deles contra os inimigos — os
inimigos são as paixões.
Assim, Jeremias, com ardor pela piedade, e naquela época o rei
tendo caído na idolatria, e os próximos [p. 17] estando afetados junto com
ele, o profeta não cuidou de uma paixão particular, mas leva o pedido por
toda a comunidade dos homens, julgando deixar mais prudente toda a
humanidade com o ímpeto contra a impiedade. Da mesma maneira também
o profeta Oséias, ao ver a maldade prosperar entre os israelitas, condena à
esterilidade e quer que os seios perversos do pecado fiquem secos para que
não deem à luz e nem nutram o mal aos homens. Por isso o profeta diz: Dê-
lhes, senhor, entranhas estéreis e seios secos! E se algum outro dos santos
for descoberto tendo alguma qualidade ou aparência de ira, ele está visando
essa compreensão que bane o mal e não destrói o homem. Deus não fez a
morte (Sb 1, 13). Você ouve a negação? Como então vai pedir a morte de
seus próprios inimigos invocando a Deus, que é alheio à atividade da
morte? E Ele não se alegra na destruição dos viventes. Mas a pessoa que
fala de modo vão e movimenta contra seus inimigos particulares a
benevolência de Deus ordena que Ele se alegre com as desgraças humanas.

8. Pedidos de bens materiais


Mas, diz-se, alguns deram valor a poder, riqueza e honras, fazendo uso da
prece para isso, e são considerados amados por Deus por causa dessa
fortuna. Alguém poderia dizer: “portanto, como você vai nos impedir de
levar a Deus pedidos de tais graças?”. Mas é evidente que tudo está ligado à
vontade divina e esta vida de agora é dirigida do alto e ninguém contradiria
a esta palavra. Nós aprendemos as outras razões destas correções da prece,
não que Deus distribui estes bens a quem pede, [p. 18] mas que por meio
disso se assegurou a fé em Deus entre os antigos, e para que, aos poucos
aprendendo com a experiência que Deus dá ouvidos aos suplicantes nos
menores pedidos, ascendamos então ao desejo das graças mais elevadas e
dignas de Deus. Da mesma maneira que vemos acontecer com nossos filhos
que, enquanto estão agarrados ao peito materno, buscam da genitora apenas
o quanto a natureza permite, quando a criança amadurece e adquire a
capacidade de falar, despreza o peito, mas busca algo semelhante, seja um
adorno, seja um manto ou algo assim que agrada ao olhar das crianças. E
quando chega à idade e cresce em corpo e compreensão, então, depois de
abandonar todos os desejos infantis, pede aos pais aquilo que convém à vida
adulta. Assim também Deus, ao acostumar o homem a sempre olhar para
ele, muitas vezes não ignora sequer os menores pedidos, para que chame
para os desejos mais elevados quem encontrou graça nos menores. E você,
portanto, se se tornou pela providência divina reconhecido e famoso por sua
riqueza ou adquiriu outra coisa que se busca nesta vida — poderio, bens,
fama —, considera que o objetivo da benevolência nesses assuntos é ser
indício da capacidade de Deus nos grandes assuntos, para que, por meio da
obtenção das brincadeiras infantis, você dirija ao Pai as maiores e mais
perfeitas preces. E são essas que trazem lucro à alma.

9. O dom particular de Deus


De fato, também seria uma das ações mais irracionais aproximar-se de Deus
e pedir ao eterno o que for temporário, ao celeste [p. 19] o terreno, ao
elevado o baixo, a Quem presenteia o reino dos céus pedir esta riqueza
terrestre e mesquinha, para Quem agracia o que não pode ser retirado pedir
o uso breve do alheio, cuja perda é necessária, o gozo é temporário, e o
arranjo é perigoso.
De modo conveniente Ele apresenta a estranheza ao dizer: “como os
gentios”. Pois ocupar-se das aparências é característico das pessoas que
supõem que não terão nenhuma expectativa para a vida futura, nenhum
medo do julgamento, nenhuma ameaça da Geena, nenhuma expectativa de
bens nem outra coisa do que se espera da ressurreição. São pessoas que, à
maneira dos animais, vendo na vida presente aquilo que agracia à garganta,
ao estômago ou às restantes delícias passionais do corpo, consideram que
isso está no quinhão dos bens; seja por estarem à frente de alguns e serem
julgados superiores aos restantes, seja por dormirem com muitos talentos[18]
ou outra forma de engano na vida. São pessoas às quais se alguém falar
sobre a esperança futura vão achar que é uma tolice, falando do Paraíso, do
Reino, da estadia nos céus e esses assuntos. Portanto, visto que é próprio
dos que não têm esperança se agarrarem à vida presente, o texto diz ser
característico dos gentios os excessos e vaidades da vontade, que os
amantes dos prazeres julgam que obterão para si por meio da prece, essas
pessoas que julgam, ao continuarem ligadas ao que é ruim, fazer da
divindade uma aliada para o que não se deve. De fato, acham, ele diz, que
na sua tagarelice serão ouvidos. Mas aprendemos pelo que investigamos o
que não se deve pedir, qual prece convém dirigir a Deus vamos ouvir nas
homilias seguintes, pela graça do nosso senhor Jesus Cristo, a quem sejam a
Glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém.
[p. 20] Homilia 2

Pai nosso, que estais no céu

1. Proêmio: as duas leis


Quando o grande Moisés aproximou o povo israelita da iniciação no monte,
não os julgou dignos da teofania antes de legislar a purificação do povo
com castidade e aspersões, e nem assim ficaram tranquilos diante a aparição
da potência divina, mas a todo momento ficavam assombrados pela
aparição: pelo fogo, pelas nuvens, pela fumaça, pelas trombetas, e voltando-
se uns para os outros julgaram o seu legislador digno de ser o intermediário
da vontade divina, porque a força deles não era suficiente para se aproximar
de Deus e perceber a aparência divina.
Já o nosso legislador, nosso Senhor Jesus Cristo, estando a ponto de
nos conduzir à graça divina, não nos apresentou no texto um monte Sinai
envolto em nuvens negras e fumegando com fogo, nem purificou a alma
com três dias de castidade ou água que lava a sujeira, e nem, ao abandonar
toda a comunidade nas partes baixas, a um único agraciou a subida ao cume
do monte — aquele envolto em nuvens negras que velam a glória de Deus.
Ao contrário: primeiro, no lugar do monte, conduz o céu a si mesmo,
fazendo-o alcançável aos homens por meio da virtude. Em seguida nos faz
não apenas espectadores da potência divina, mas também participantes e, de
algum modo, leva as pessoas que Dele se aproximam à semelhança com a
natureza superior. E nem com nuvens [p. 21] esconde a glória elevada para
que seja de difícil visão aos que procuram, mas com a brilhante luz do
ensinamento transforma a escuridão em clareza para os puros de coração e
fá-los enxergar a glória indizível. Agracia-nos de purificar com água não de
fontes alheias, mas da água que flui em nós mesmos, seja se fala das fontes
dos olhos, seja da consciência pura do coração, que traz nenhuma impureza
do vício anterior. Estabelecendo a purificação não com o afastamento do
encontro legítimo dos casais, mas com o afastamento de toda disposição
material e passional, assim conduz por meio da oração a Deus. Pois esta é a
força dessas palavras, pelas quais aprendemos não alguns sons emitidos em
sílabas, mas a intenção da ascensão a Deus alcançada por meio da vida
elevada.

2. Prece e oração
É possível, através das próprias palavras da prece, compreender o mistério
divino. Ele diz quando orardes (Lc 11, 2). Não falou “quando fizerdes
preces”, mas “quando orardes”, para obter previamente o que convém no
pedido antes de se aproximar a Deus pela oração. Qual é a diferença entre
as palavras? A prece é a promessa de alguém que se dedica à piedade; já a
oração é um pedido de bens, por meio de súplicas, dedicado a Deus.[19]
Portanto, visto que há uma necessidade de franqueza quando nos
aproximamos de Deus e fazemos nossas súplicas pelo que é correto,
forçosamente a prece procederá para que, depois de nos aperfeiçoarmos,
então nos julguemos dignos de receber o que Deus deseja para nós. Por isso
o profeta diz que: hei de cumprir para ti as preces que [p. 22] meus lábios
enviaram (Sl 65, 13-4) e fazei e cumpri-as ao senhor nosso Deus (Sl 75,
12). Em muitos lugares das escrituras é possível ver esse significado da
prece, a fim de que saibamos que ela é, como está dito, promessa de oferta
em agradecimento. Já a oração indica a aproximação a Deus depois do
cumprimento das promessas. O texto, portanto, nos ensina a não pedir nada
de Deus antes de ofertá-Lo com algo que Lhe seja grato. Primeiro deve-se
dirigir preces, e depois orar, assim, como alguém poderia dizer, a
semeadura deve vir antes da lavoura. Portanto, é necessário primeiro
depositar as sementes da prece e assim, depois que as sementes tiverem
crescido, colher por meio da oração a graça em resposta. Então, como não
haverá intercessão na franqueza se essa aproximação não vier depois de
uma prece e uma graça, então, forçosamente a prece será conduzida antes
da oração.

3. Deus, pai de quem?


Portanto, quando isso já estava efetuado, o senhor diz aos discípulos:
quando orardes, dizei “Pai nosso que estais nos céus”. (Mt 6, 8) Quem há
de me dar asas como de pomba? (Sl 75, 12) diz em algum lugar do saltério
o grande Davi. Eu mesmo diria, ousando valer-me da mesma expressão:
“quem há de me dar aquelas asas para ser capaz nas alturas da grandeza
dessas palavras de voar no pensamento, de modo a abandonar toda a terra e
atravessar todo o ar que está difuso no meio? Perceber a beleza etérea,
alcançar os astros e observar toda a ordem que está nele?” [p. 23] E não
permanecer lá, mas atravessar por meio deles e de tudo o que é móvel e
ficar distante de tudo o que é transitório e encontrar a natureza fixa, a força
imóvel, que se baseia em si mesma, que tudo conduz e traz consigo aquilo
que está em existência, tudo o que depende da vontade indizível da
sabedoria divina. Para que, distante de tudo o que é alheio e passageiro,
estando com o pensamento na condição imóvel e fixa da alma, primeiro me
acostumar pela inteligência à natureza imóvel e inalienável e, em seguida,
invocar com essa apelação familiaríssima e dizer: ‘Pai!’”.
De quanta coragem o falante precisa? Quanta franqueza?[20] Quanta
consciência para que, ao compreender Deus, à medida do possível, levado
desde as apelações que se referem a Ele até a compreensão do indizível e
aprendendo que a natureza divina, o que ela é de verdade, é bondade,
santidade, alegria, força, glória, pureza, eternidade, sempre e do mesmo
modo em sua natureza, e ao compreender tudo que se pensa assim sobre a
natureza divina através das divinas escrituras e através dos pensamentos
familiares, então você ousará emitir uma tal frase e assim nomear de seu
pai?
É evidente que, se tiver um pouco de inteligência — ao olhar para si
— não ousaria proferir essa expressão e dizer: “Pai”. De fato, o Pai, que é
naturalmente bom, não tem a capacidade de dar à luz a má escolha, e nem o
santo àquilo que é impuro na vida, tampouco [p. 24] o inalienável ao que é
pervertido, e nem o pai da vida ao que está morto pelo pecado, nem o puro
e inatingível a quem está desfigurado nas paixões, nem o benfeitor ao
arrogante e tampouco quem é visto em todo bem a aqueles que são
descobertos em algum mal. Pois se alguém, ao olhar a si mesmo ainda
carente de purificação e reconhecendo sua condição pecaminosa e cheia de
manchas e marcas de males, antes de limpar-se de tantos e tão grandes
males, se coloca na família de Deus e diz: “Pai” — o injusto ao justo, o
impuro ao puro, essas palavras seriam uma insolência explícita e um abuso,
se dissesse que Deus é pai da sua própria impureza. Pois a expressão “pai”
indica a causa do que existe em si. Portanto, o perverso acusa, se diz que
Deus é seu pai, a consciência de que Ele é o responsável e líder do que lhe é
próprio. Mas não há nenhuma a relação entre a luz e as trevas (2 Co, 6,
14), diz o apóstolo, mas a luz se assemelha à luz, o justo ao justo, o belo ao
belo e o imortal ao imortal. Os contrários sempre têm relação com os
semelhantes. Se, portanto, alguém é pesado de coração, como dizem as
escrituras, e, ao buscar a mentira, tem a coragem de usar as palavras da
oração, saiba que este chama de pai não o celeste mas o subterrâneo, [p. 25]
que é propriamente mentiroso e pai da mentira que se estabeleceu em cada
pessoa, ele mesmo pecado e pai do pecado (Jo 8, 44). Por isso as pessoas
que sofrem na alma com as paixões são chamadas de filhas da ira pelo
apóstolo (Ef 2, 3), e a pessoa que se afasta da vida é chamado de filho da
perdição (2 Ts 2, 3), e a pessoa que é fraca e efeminada é chamada de filho
de crianças desertoras (1 Sn 20, 30).[21] Da mesma maneira, de modo
contrário, as pessoas limpas na consciência são chamadas de filhos da luz e
do dia (1 Ts 5, 5), e outros de filhos da força (Lc 16, 8), que se encorajaram
diante da força divina. Portanto, quando o Senhor nos ensina a chamar Deus
de “Pai” na oração, não nos parece fazer nada mais do que legislar a vida
mais elevada e sublime. Pois a Verdade não nos ensina a mentir a ponto de
dizer o que não somos e nomear o que não nos tornamos, mas para que, ao
chamar de nosso pai o que é imortal, justo e bom, confirmemos na vida a
proximidade. Você vê a necessidade de quanta preparação, de quanta vida,
quanta e tamanha preparação a ponto de chegar a esta medida de liberdade?
A nossa consciência ter sido alçada a ponto de ousarmos falar a Deus:
“Pai?”. Pois se você olhar para as riquezas ou estiver ocupado nos enganos
da vida, ou buscar a fama entre os homens, ou se perder nos desejos mais
passionais, e em seguida tiver essa oração na boca, o que você acha que
haveria de dizer quem observa a tua vida [p. 26] e que ouve a oração? Acho
que ouço tais palavras como se fosse de Deus dizendo a uma tal pessoa:
“Você, morto na vida, chama de ‘Pai’ o Pai da imortalidade? Por que você
suja, com a sua voz imunda, o nome puro? Por que você mente com o
verbo? Por que você violenta a natureza que não pode ser suja? Se você é
meu filho, deveria marcar sua vida sempre com meus bens. Não reconheço
a imagem da minha natureza em você. As marcas são do adversário. Que
comunhão há entre a luz e as sombras? Que relação há entre a vida e a
morte? Que familiaridade entre o naturalmente puro e o imundo? É grande
a distância entre o benfeitor e o arrogante. Não se pode misturar os
contrários do piedoso e do cruel. É outro o pai da maldade que há em você.
Minha progênie se embeleza com os bens paternos, o piedoso é filho de
piedoso, o alheio à morte é filho do imortal, e quem é completamente bom é
filho do bom e o justo do justo. Eu não sei quem vocês são”. Portanto, é
arriscado ousar falar esta oração antes de corrigir a vida e chamar Deus de
seu pai.

4. Pátria originiária
Mas ouçamos novamente as palavras da oração — quem dera pudéssemos
ter a compreensão nos recônditos da mente por meio de uma repetição mais
frequente. Pai nosso, que estais no céu. Prova-se por meio das palavras do
começo da oração que é necessário se familiarizar de modo mais ordenado
com Deus na vida de virtude. Parece-me que o texto sinaliza uma
interpretação mais profunda; pois talvez provoque em nós uma lembrança
da pátria da qual caímos e da família da qual fomos expulsos.
De fato, também na narrativa sobre o jovem que se afastou do [p.
27] lar paterno e exilou-se na ocupação de porqueiro, o texto mostra a
desgraça da vida humana ao contar em forma de narrativa o afastamento e a
prodigalidade; e ele o reconduz para a herança que tinha no começo não
antes de tomar consciência de sua desgraça e voltar a si e preparar as
palavras de contrição. Essas têm uma certa relação com as palavras da
oração, pois então ele diz: Pai, pequei contra o céu e contra ti (Lc 15, 21),
ele não insere na confissão o pecado contra o céu sem ser convencido de
que o céu é a pátria que ele ofendeu ao deixar. Por isso o cuidado dessa
confissão faz que também o pai seja acessível a ele a ponto de correr para
ele e saudá-lo com um beijo no pescoço — o que indica a conexão lógica de
quem caiu pela boca ao homem que, pela transmissão do evangelho, sai do
primeiro jugo da lei e a chacoalha para fora de si — e coloca em volta dele
a túnica, não outra, mas a primeira, da qual se desnudou por meio da
desobediência esse homem que se viu nu em todo lado pela prova do
proibido (cf. Gn 3, 7). O anel em volta da mão através da imagem da pedra
indica a retomada da imagem. Ele deixa os pés seguros com as sandálias,
para que não caia na picada da serpente ao se aproximar da sua cabeça com
o calcanhar nu.
Portanto, como então o retorno do filho mais jovem para a casa
paterna tornou-se o motivo da benevolência do pai — o céu é essa casa,
contra quem ele diz ao pai ter pecado — assim, também ali parece que o
senhor nos ensina a invocar o pai no céu e a fazer a lembrança da boa
pátria, a fim de [p. 28], ao produzir um desejo mais veemente das belezas
do céu, colocar você no caminho que leva de volta à pátria. E o caminho
que conduz a natureza humana ao céu não é nenhum outro do que a fuga e
separação dos males terrenos, e o propósito da fuga desses males não parece
ser outro que não a semelhança com Deus. Assemelhar-se a Deus é tornar-
se justo, santo, bom e qualidades semelhantes. Se alguém fizer para si as
marcas disso, à medida do possível, retornará automaticamente, sem
esforço, para a região celeste a partir da vida terrena. Pois a separação entre
o homem e o divino não é espacial de modo a necessitarmos de alguma
máquina ou mecanismo para emigrarmos deste plano carnal e terreno, grave
e pesado, para vida incorpórea e intelectiva; mas ela é intelectual, tão logo a
virtude estiver afastada do mal, depende somente da escolha do homem a
favor do que seu desejo inclinar. Portanto, visto que não há nenhum esforço
em escolher o bem, o sucesso sucede a escolha do que se decidiu, é possível
estar logo no céu, bastando que acolha Deus no pensamento. Pois se, como
diz o Eclesiasta: Deus no céu, tu estás colado a Deus (Ecl 5, 1), é forçoso
que quem está atado a Deus esteja no lugar onde Ele está. Portanto, ao dizer
na oração que Deus é seu pai, ele ordena nada menos do que assemelhar-se
à vida condigna a Deus com o pai celeste [p. 29], como também de modo
mais evidente para todos ele recomenda ao dizer: deveis ser perfeitos como
o vosso pai celeste é perfeito (Mt 5, 28).

5. Como se aproximar de Deus?


Se examinarmos o significado desta oração, seria o momento de preparar
nossas almas para uma vez ousar retomar essas palavras na boca e dizer
livremente: “Pai nosso, que estais no céu”. Pois assim são evidentes as
marcas da semelhança com Deus, pelas quais é possível tornar-se filho de
Deus — Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de
Deus (Jo 1, 12), a pessoa recebe Deus em si ao retomar a perfeição para o
bem — de modo semelhante são também alguns sinais particulares da
marca do malvado, nas quais alguém que tornou-se filho de Deus não pode
estar, trazendo a imagem da natureza adversária. Você quer conhecer as
particularidades do sinal do malvado? A inveja, o ódio, a calúnia, a
vanglória, a avareza, o desejo passional, as doenças da fome de glória — a
forma do adversário se distingue por tais características. A pessoa queimada
com essas marcas, ao invocar “pai”, qual pai vai escutar? É evidente que
aquele que tem relação com quem invoca; e este não é o celeste, mas o
subterrâneo, cujos sinais de proximidade ele carrega, esse sempre vai
retribuir a sua própria progênie. Portanto, a oração do homem perverso,
enquanto ele estiver na maldade, torna-se invocação do diabo — e a voz do
homem que está afastado do mal e que vive no bem invoca o bom pai.
Portanto, quando nos aproximamos de Deus, antes investiguemos a vida, se
algo digno da progênie divina [p. 30] trazemos em nós. Quem dera nos
encorajemos com estas palavras. Pois quem ordenou a dizer “pai” não
perdoa dizer mentira. Portanto, a pessoa que vive de modo digno à progênie
divina olha para a cidade celeste, nomeando como pai o rei dos céus e a sua
pátria é a beatitude celeste. O que visa o objetivo do conselho? A pensar
nos assuntos superiores, aos quais Deus pertence (Cf. Cl 3, 2). É lá que é
necessário estabelecer as fundações da sua morada; lá se deve depositar os
tesouros; para lá se deve transportar o seu coração, onde estiver o tesouro,
também lá está o coração (Mt 6, 21). Deve-se sempre olhar para a beleza
do pai e embelezar a sua alma segundo o esse modelo. Porque Deus não faz
acepção de pessoas (Rm 2, 11), diz a escritura. Que esta sujeira fique
afastada também da sua aparência. A divindade é pura de inveja e de toda
marca de paixão. E tampouco que essas paixões marquem você, nem a
inveja, nem a vaidade, nem outra das sujeiras imundem a beleza da forma
divina. Se você estiver assim tenha coragem de invocar com a voz familiar
a Deus e nomear o senhor de tudo como seu próprio pai. Você será visto
com olhos paternos, você será envolto com a túnica divina, será adornado
com o anel, reconciliará os pés no caminho do alto com as sandálias
evangélicas, será restabelecido na pátria celeste, em Cristo Jesus, nosso
senhor, a quem a glória e o poder são para os séculos dos séculos. Amém.
Homilia 3
“Santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino”

1. Proêmio: a indumentária das duas leis


A lei que contém a sombra dos bens futuros (Hb 10, 1) e anuncia em alguns
enigmas a verdade por meio de figuras, quando conduz ao Santo dos Santos
o sacerdote que vai rezar para Deus, primeiro limpa essa pessoa com
purificações e aspersões. Em seguida,[22] depois de adorná-lo com a túnica
sacerdotal de ouro e púrpura, fabulosamente ornada com o restante brilho
da cor, e de cingir em volta dele o peitoral e de atar as campainhas da borda
da túnica com romãs e flores, e de apertar por cima do éfode o manto,
adornar a cabeça com o diadema e aspergir sobre a cabeça perfume, assim o
Senhor conduz o sacerdote ao Santo dos Santos para que ele cumpra os ritos
secretos.
Já o legislador espiritual, nosso senhor Jesus Cristo, desnudando a
lei dos véus corporais e deixando evidentes os enigmas das figuras,
primeiro ele não separa um de todos e o conduz ao diálogo com Deus, mas
a todos agracia essa capacidade de igual maneira, propiciando a graça
comum do sacerdócio aos que o desejam. Em seguida, não elabora a beleza
do sacerdote com um adorno alheio, concebido de alguma tinta ou trabalho
de tecelagem, mas envolve um adereço familiar e natural; no lugar da túnica
púrpura variegada ele decora com as graças das virtudes. Embeleza também
o peito não com ouro terreno, mas com a consciência pura e imaculada, ao
ornar a beleza do coração. [p. 32] Harmoniza o brilho das pedras caras
também neste peitoral; essas pedras são os brilhos dos mandamentos
sagrados, como parece ao apóstolo (Rm 7, 12). Também assegura a parte da
perna, cuja beleza é a forma dessa vestimenta. Você não ignora que o véu da
prudência é um adorno desta parte. Ao pendurar nas franjas da vida as
romãs espirituais, as flores e as campainhas — e essas seriam consideradas
provavelmente os elementos visíveis da vida na virtude para que a
caminhada nesta vida se torne distinta — ao atar as franjas no lugar da
campainha a palavra de bom som da fé, no lugar de romã a preparação
oculta da esperança futura, escondida pela vida amarga, no lugar das flores
a graça florescente do Paraíso, e é assim que o Senhor conduz ao santuário
e ao santo dos santos do templo. E esse santuário não é um objeto e nem
feito por mãos humanas, mas o tesouro recôndito do pensamento se ele
verdadeiramente não permite passagem[23] para o vício e é inalcançável aos
maus pensamentos. Orna a cabeça com o pensamento nos assuntos celestes,
não marcando com imagens de letras e com folhas de ouro, mas imprimindo
o próprio Deus com o pensamento principal. Espalha pela cabeça o perfume
preparado internamente pela própria alma. Quanto a vítima sacrificial
arranja para oferecer a Deus por meio dos ritos místicos nenhum outro do
que ele mesmo. Pois a pessoa que conduz dessa maneira para esse
sacerdócio, tendo morrido no pensamento da carne [Rm 8, 6] pelo punhal
do espírito, que é a palavra de Deus [Ef 6, 17], este aplaca Deus quando
está em seu templo, [p. 33] consagrando a si mesmo por meio de um tal
sacrifício e oferecendo seu próprio corpo como um sacrifício vivo, santo,
agradável a Deus [Rm 12, 1].
Mas alguém vai dizer, talvez, que essa não é a leitura mais fácil do
sentido da oração que temos de interpretar agora, e pensa que nós não
ajustamos tais palavras de modo familiar com o texto presente. Portanto
novamente se deve lembrar dos primeiros ensinamentos da oração. De fato
a pessoa que se prepara de tal modo a ousar chamar Deus francamente de
seu “pai”, essa pessoa precisamente está vestida com a túnica que o texto
descreveu, ressoa em suas campainhas, floresce nas romãs, brilha no peito
com os raios dos mandamentos, traz nos ombros os patriarcas, no lugar nos
nomes transformando as suas virtudes em ornamento próprio, embeleza a
cabeça com a coroa da justiça [2 Tm 4, 8], tem o cabelo untado com o
perfume celeste e torna-se acostumado aos santuários celestes, que
verdadeiramente nunca dão passagem a qualquer pensamento profano e são
a eles inatingíveis.

2. Santificado seja o vosso nome


O texto mostrou como convém preparar bem a pessoa que se consagra; de
resto seria apropriado examinar o pedido que ordenou a pessoa que
estivesse dentro do santuário dirigir para Deus. Pois o sentido literal me
parece fornecer uma compreensão fácil da oração. Ele diz: Santificado seja
o vosso nome e Venha a nós o vosso reino. “O que isso tem a ver com a
nossa necessidade?” Algum homem poderia dizer isso, ou ao fustigar-se por
causa do pecado em razão da conversão ou para que evite que o pecado
domine e, por causa disso, invoca Deus para uma aliança, tendo sempre nos
olhos a pessoa que sofre por causa das tentações. [p. 34] Daí as iras
desviam o pensamento do homem ordenado, de lá os desejos por coisas
desordenadas distensionam corda da alma; de outro lado a ganância traz
cegueira à visão do coração; a vaidade, a arrogância, o ódio e o catálogo
restante das paixões que combatem contra nós, como um grupo de inimigos
que nos cerca e conduz o perigo derradeiro para a alma.
Em seguida, a pessoa que se esforça para acabar com esses males
por meio da melhor aliança, de quais palavras teria a maior necessidade?
Não seriam aquelas do grande Davi: Que eu seja liberto dos que me odeiam
(Sl 68, 15) e que retirem-se os meus inimigos para trás (Sl 6, 11) e Dê-me
auxílio na opressão (Sl 59, 12; 107, 13) e quantas coisas assim pelas quais
se estabelece a aliança com Deus contra os opositores?
Mas o que diz a lei da oração? Santificado seja o vosso nome — se
isso não fosse dito por mim, seria possível o nome de Deus não ser santo? E
Venha a nós o vosso reino. O que está afastado do poder de Deus, que
encompassa com a palma da mão todo o céu, como diz Isaías (Is 40, 12),
que segura a terra, que domina na mão toda a natureza úmida, que segura
nos braços toda fundação mundana e supermundana? Portanto, se é sempre
sagrado o nome de Deus e nada escapa ao poder do senhorio de Deus, mas
domina tudo e não tem necessidade de uma adição de santificação o Ser de
que nada se carece e que é perfeito, qual é a intenção da prece Santificado
seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino? Por acaso talvez o texto
ensine algo na forma da oração, que a natureza humana é fraca para a
fundação de um bem e, por isso, [p. 35] não teríamos nada disso pelos
nossos esforços se não fosse pela correção do bem em nós pela aliança
divina? O elemento principal de todos os bens em minha vida está
glorificado no nome de Deus. Que se nos torne esse sentido mais familiar
pelo contrário.

3. Viver o mal é blasfemar


Ouvi em algum lugar as Santas Escrituras condenando aqueles que se
tornam responsáveis pela blasfêmia contra Deus. Diz-se: Ai daqueles por
quem meu nome é blasfemado entre os povos (Is 52, 5). O sentido é o
seguinte: aquelas pessoas que ainda não creram na Palavra da Verdade
observam na vida dos que o acolheram a fé no mistério. Portanto, quando o
nome da fé está presente, mas a vida contradiz o nome, seja recaindo em
idolatria por meio da ganância, seja degradando-se por meio de bebedeiras
e festas, seja rolando na sujeira da prodigalidade à maneira de um porco, a
palavra logo está pronta da parte dos infiéis, não voltando a crítica para a
escolha dos que vivem de forma ruim, mas como se o mistério ensinasse a
fazer tais coisas. Que não aconteça que tal pessoa iniciada nos mistérios
divinos seja abusiva, gananciosa, ladra, ou outro desses males se o pecado
não lhes é lícito. Por isso a palavra estende-lhes uma difícil ameaça, ao lhes
dizer Ai daqueles por quem meu nome é blasfemado entre os povos!
Se isso for considerado, seria a hora de compreender o que pode ser
dito de modo contrário. Pois creio que, antes de tudo, é preciso honrar e
fazer disso o elemento principal da oração, ou seja, não blasfemar em
minha vida o nome de Deus, mas glorificá-lo e santificá-lo. [p. 36]
Portanto, diz a prece, seja santificado o nome invocado do teu
senhorio, para que os homens vejam as boas obras e honrem o pai que está
nos céus (Mt 5, 16). Quem está tão bestificado e irracional a ponto de, ao
ver a vida pura, corrigida por meio da virtude, nas pessoas que creem em
Deus, limpa de toda sujeira do pecado, alheia a toda concepção de mal,
brilhante na prudência, distinta na sabedoria, portando-se corajosamente
diante dos ataques das paixões, nunca amolecida pelas doces paixões
corporais, afastada o máximo possível do luxo, da moleza e do relaxamento
para a vaidade, tomando parte da vida tanto quanto for necessário, pisando
a terra na ponta dos pés, sem estar mergulhado nos gozos dos prazeres desta
vida terrena, mas acima de todo engano que surge dos sentidos, combatendo
na carne em favor da vida incorpórea, considerando como a única riqueza a
posse da virtude, como a única nobreza a familiaridade com Deus, uma
única dignidade e um único poderio — dominar a si mesmo e não estar
escravizado pelas paixões humanas, preocupado na extensão da vida
material, apressando-se — como as pessoas que sofrem no mar — para
dirigir-se ao porto do descanso... Portanto, quem, ao olhar uma pessoa
assim não vai glorificar o nome invocado por essa vida?
Assim, a pessoa que diz na oração Santificado seja o vosso nome ora
com a força do que foi dito: “que eu seja irrepreensível em colaboração com
a vossa ajuda, justo, piedoso, afastado de toda má ação, fale a verdade,
trabalhe a justiça, ande na correção, brilhe na prudência, seja adornado pela
imortalidade, embelezado pela sabedoria e pela prudência, [p. 37] pense nos
assuntos do alto, despreze os terrenos, distinga-me pela vida digna dos
anjos”. Tais e quais intenções estão contidas neste breve pedido que diz
através da oração a Deus “Santificado seja o vosso nome”. Pois não há
outra forma de o homem glorificar a Deus que não seja a sua virtude dar
testemunho da causa dos bens pela força divina.

4. Venha a nós o vosso reino


O texto seguinte ora para que o reino do céu chegue. Mas então agora se
digna a fazer o Rei de tudo ser rei, o que sempre é o que é, o que é imóvel
em qualquer mudança? Portanto, o que a prece deseja ao invocar o reino de
Deus? O verdadeiro sentido seria conhecido pelos mistérios ocultos que o
espírito da verdade revela. Quanto a nós, temos tal interpretação sobre a
frase: a verdadeira força e potência de tudo é única, acolhe o domínio acima
de tudo e governa não por um poderio violento e tirânico, subjugando os
súditos com suas ordens por meio de medos e obrigações. Com efeito,
convém que a virtude seja livre de todo medo e sem um senhor, escolhendo
o bem por uma opinião voluntária. E o ponto principal de todo bem é
deixar-se administrar pela potência criadora da vida.
Visto que, portanto, a natureza humana afastou-se do bom
julgamento por meio do engano, a nossa escolha tende ao adversário, a vida
dos homens é dominada por todo tipo de mal, e a morte está misturada à
natureza por milhares de caminhos — pois toda forma de vício [p. 38]
torna-se, para nós, um caminho para a morte — e, visto que somos detidos
em uma tal tirania como se por carcereiros ou inimigos, estamos
escravizados pela morte por meio dos ataques das paixões, fazemos bem em
rogar que o reino de Deus chegue a nós.
De fato, não há outra forma de livrarmo-nos do perverso domínio da
perdição sem que a força criadora de vida traga de volta seu poderio sobre
nós. Portanto, se oramos para que o reino venha sobre nós, suplicamos a
Deus com força: “que eu me afaste da perdição, que eu seja liberto da
morte, que eu me solte das cadeias do pecado, que a morte não reine sobre
mim, que a tirania do pecado não mais se efetue em nós, que a guerra não
me domine e nem me leve prisioneiro por meio do pecado; mas que venha
sobre mim o vosso reino para que se afastem de mim as paixões que agora
dominam e reinam, melhor do que para que tragam para mim o não-ser.
Pois como a fumaça vai embora, assim as paixões irão embora, e como a
cera se derrete (Sl 67, 3), assim serão lavadas as sujeiras. Nem uma fumaça
dissipada no ar deixa um sinal de sua natureza particular e tampouco se
descobre cera tão logo ela se lança ao fogo, mas também ela, ao fazer
crescer a chama em si, é transformada em vapor e ar e a fumaça se esvai em
completo desaparecimento; assim, se o reino de Deus vier sobre nós, tudo
que agora domina sobre nós será removido.
As trevas não suportam a presença da luz; a doença não permanece
quando a saúde toma lugar; as paixões não agem quando a impassividade
está presente; [p. 39] foi-se embora a morte, não se enxerga a perdição
quando a vida reina em nós e a imortalidade tem o poder. Venha a nós o
vosso reino é a doce expressão, pela qual dirigimos este pedido diretamente
ao Senhor: “que se dissolva a legião adversária; que desapareça a falange
dos estrangeiros; que seja retirada da carne a guerra contra o espírito; que o
poder real apareça para mim, a mão angélica, os milhares corretos, a
miríade dos que se colocaram à vossa direita, para que caiam do lado do
adversário o milhar dos inimigos. O opositor é grande, para os que estão
vazios da vossa aliança é terrível e invencível, mas apenas enquanto estiver
sozinha a pessoa combatida, pois quando o vosso reino aparecer fogem
correndo a dor, o sofrimento e o lamento, e vêm a vida, a paz e a alegria”.

5. O espírito é reino
Talvez a expressão seja interpretada de modo mais claro por Lucas:[24] a
pessoa que se julga digna da vinda do reino grita pela aliança com o
Espírito Santo. Pois naquele evangelho se diz, no lugar de venha a nós o
vosso reino, venha o vosso espírito santo sobre nós e nos purifique.[25] O
que dirão quanto a isso as pessoas que são agressivas contra o Espírito
Santo? Com que subterfúgio vão transformar a dignidade do reino em
baixeza de escravidão?[26] Pois o que Lucas chama de Espírito Santo, [p. 40]
Mateus chamou de “reino”, como eles introduzem a ideia de uma natureza
criada do Espírito, assinalando-o como reinado no lugar de reinante? A
criatura é serva, e servidão não é reino. Mas o Espírito Santo é o Reino; e,
se ele é o Reino e governa sempre, não é governado, portanto está afastado
da comunhão da criação. Afinal, o que governa não é governado; e o que
não é governado não é criatura, pois servir é próprio da criatura. Portanto,
se o espírito é o reino, como ele é contado junto com a natureza governada?
Como as pessoas que jamais aprenderam a orar não estão de acordo quanto
ao reino — pessoas que não sabem quem é que limpa e quem sustenta a
autoridade do reino? Venha o Espírito Santo e que ele nos purifique.
Portanto, a capacidade do Espírito Santo é própria e especial e sua ação é
limpar e retirar os pecados. Pois aquilo que é puro e sem sujeira não precisa
de quem limpe.[27]

6. A unidade de potência indica a unidade de natureza


[p. 41] O Apóstolo dá testemunho da mesma capacidade do Unigênito. Ele
diz: Depois de ter realizado a purificação dos pecados; sentou-se nas
alturas à direita do pai (Hb 1, 3). Portanto, a obra de cada um é única: do
espírito que purifica o pecado, e de Cristo, o criador da purificação dos
pecados. A ação de ambos é única e a potência é sempre a mesma, pois toda
ação é o resultado de uma potência. Se, portanto, tanto a ação quanto a
potência são únicas, como é possível supor uma diferença de natureza
naquilo em que não descobrimos nenhuma diferença em potência e ato?
Pois como não é possível nas particularidades do fogo — quando ambas, a
de iluminar e a de queimar, são iguais e semelhantes — conceber alguma
diferença de substância, assim uma pessoa sensata, depois de aprender na
divina escritura que é única a ação, não seria convencida a supor uma
diferença de natureza entre o Filho e o Espírito.

7. Discussão sobre a natureza da Trindade


Mas está demonstrado nas opiniões dos piedosos que a natureza do pai e do
filho é única: não é possível nomear o que é de natureza diferente pela
invocação de “Deus”, como não se diz de um banco que é filho do
marceneiro, e nenhuma pessoa sensata diria que o pedreiro deu à luz a casa,
mas com a designação de filho e de pai indica-se a união na [p. 42]
natureza. É totalmente necessário, quando os dois possuem intrinsecamente
a unidade, que não tenham nenhuma diferença entre si a fim de que, se o
Filho está unido ao Pai segundo a sua natureza e o Espírito Santo não se
mostra alheio à natureza do filho por meio da unidade das ações,
consequentemente a natureza da Santa Trindade se mostre única, a
identidade especial observada de cada uma das pessoas[28] não se confunde e
nem as particularidades modificam-se respectivamente a ponto de a
particularidade da pessoa do Pai transferir-se para o Filho ou o Espírito, ou
a do filho se ajustar novamente a uma das outras pessoas, ou a
especificidade do Espírito manifestar-se com o Pai e o Filho. Mas na
comunhão da natureza observa-se distinta a separação das particularidades.
É próprio do Pai existir sem causa; isso não se pode ver no Filho e no
Espírito. De fato, particular do Filho é que tenha vindo do Pai, como diz a
escritura (Jo 16, 28), e o espírito procede de Deus, da parte do pai (Jo 15,
26). Mas como a existência sem causa, sendo uma qualidade única do Pai,
não se pode ajustar ao Filho ou ao Espírito, da mesma maneira, do
contrário, a existência causada, o que é própria do Filho e do Espírito, não
tem a natureza de se observar no Pai. Sendo comum ao Filho e ao Espírito
ser gerado, para que não se observe uma confusão é possível descobrir uma
diferença distinta entre as particularidades deles. De fato, o Filho é
chamado de unigênito do Pai pela Santa Escritura (Jo 1, 14), e até aqui o
texto manteve a particularidade a Ele. [p. 43] E o Espírito Santo também se
diz vir do pai e testemunha-se também do filho. Pois se alguém não tem o
Espírito de Cristo, essa pessoa não lhe pertence. Portanto, o Espírito, que
tem Deus como origem, é espírito de Cristo. E o Filho, vindo de Deus, não
é e nem se diz do Espírito, e tampouco a sequência das relações é
conversível para ser possível inverter a expressão de modo igual, da mesma
maneira que se diz que o Espírito é de Cristo, assim também Cristo se
nomear do Espírito. Pelo fato de essa particularidade distinguir de modo
claro e inconfundível um do outro, e a identidade quanto a ação dar
testemunho da comunidade da natureza, a compreensão piedosa da
divindade se fortalece por meio de ambos para se numerar a Trindade por
meio das pessoas e a não separar em partes heterogêneas.

8. A luta contra o Espírito


Qual é a loucura das pessoas que lutam contra o Espírito e são da opinião de
que o Senhor é escravo? A eles nem mesmo Paulo é digno de crença ao
dizer: Pois o senhor é o Espírito (2 Co 3, 17, 18). Talvez eles julguem o
“Venha a nós” como destruidor do valor? Em seguida não dão ouvidos ao
grande Davi ao trazer o Pai para si e gritar: Venha nos salvar (Sl 79, 3)? Se
a vinda do Pai é salvadora, como a vinda do Espírito é vergonhosa? Por
acaso fazem da limpeza dos pecados um sinal do rebaixamento da
dignidade? Mas dê ouvidos aos judeus infiéis que gritam que [p. 44]
perdoar os pecados é particular somente de Deus — falando do Pai. Por que
diz essa blasfêmia? (Mc 2, 7) Quem pode perdoar pecados senão somente
Deus? Portanto, se perdoa pecados o Pai, o Filho tira o pecado do mundo e
o Espírito Santo limpa das sujeiras do pecado aqueles que ele encontra, o
que dirão aqueles que combatem a própria vida? Mas venha a nós o Espírito
Santo e que ele nos limpe e nos faça receptíveis aos elevados e divinos
pensamentos que se mostram para nós através da oração que foi dada pelo
Salvador, a quem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém.
Homilia 4
“Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”

1. Proêmio
Eu ouvi uma pessoa que pratica a arte médica explicar a natureza da
condição saudável, talvez o que ele disse não esteja fora do nosso objetivo
também no que diz respeito à saúde da alma. Com efeito, ele delimitou o
afastamento do ponto médio dos elementos do nosso corpo como o início e
causa da condição das afecções.[29] E, do contrário, ele disse que a
restauração de volta para a condição normal e natural é a cura da causa da
moléstia. E por isso julgava ser necessário observar qual dos elementos em
desarranjo pela sua predominância deixa desajustada [p. 45] a contribuição
dos outros elementos para a saúde do corpo. Assim, se o elemento quente
predomina é necessário fazer uma aliança com o elemento dominado e
umedecer o elemento seco, para que, pela carência de um dos elementos,
não se perca e apague o calor no corpo por consumir a si mesmo; da mesma
maneira, se algum dos outros elementos que observamos em nós ultrapassar
o limite, é necessário levantar-se contra o que está em excesso, travando
uma aliança da arte médica com o elemento carente. Tão logo essas ações
são feitas e nada impedindo o equilíbrio dos elementos, a saúde é
reconduzida ao corpo e a natureza não mais se dispõe de forma anômala em
seu equilíbrio.
Qual é o propósito desse longo proêmio? Talvez esse exame não
esteja distante do objetivo e tampouco afastado do estudo do momento. De
fato, cabe a nós examinar o versículo[30] Seja feita a vossa vontade. Por
causa disso lembrei-me da investigação da arte médica e quero deixar mais
claro pelo que vou dizer em seguida.
2. Seja feita a vossa vontade
Houve uma época em que natureza humana estava em condição intelectual
saudável, quando seus elementos — falo das afecções da alma — estavam
equilibradamente misturados em nós de acordo com a proporção da virtude.
Mas desde que o elemento desiderativo passou a predominar, a condição
considerada oposta — que é o autocontrole — passou a ser dominada pelo
elemento excessivo, e não havia o que impedisse o movimento desmedido
do desejo para o que não era devido. A partir disso, a doença mortal, o
pecado, estabeleceu-se na natureza humana. O verdadeiro médico das
paixões da alma, que veio à vida dos homens por causa dos que estavam
mal, ao enfraquecer a causa da doença com as intenções da oração, [p. 46]
reconduz-nos à saúde intelectual. O caminho na vontade divina é a saúde da
alma, como, do contrário, afastar-se da vontade divina é uma doença da
alma que termina em morte.
Portanto, visto que adoecemos ao abandonar o bom regime no
Paraíso, quando nos locupletamos além da medida do veneno da
desobediência e, por causa disso, a natureza foi dominada por essa doença
perversa e mortal, veio o verdadeiro médico que cura o mal segundo a regra
da medicina, através dos elementos contrários, e por isso liberta da doença
as pessoas que foram acometidas da moléstia (porque se afastaram da
vontade divina) com a ligação à vontade de Deus. Pois as palavras da
oração são uma terapia da doença que surge na alma.
De fato, ora como se estivesse dominada por dores na alma a pessoa
que diz seja feita vossa vontade. A salvação dos homens é a vontade de
Deus. Então, visto que estamos nesta condição para dizer a Deus “seja feita
também em mim a vossa vontade” é totalmente necessário antes denunciar
aquela vida que estava afastada do desejo de Deus e relatar na confissão
isto: “uma vez que a vontade contrária agiu mal em mim antes na vida e
tornei-me servidor do mau tirano, como um carrasco que cumprisse a
punição do inimigo em meu prejuízo, por causa disso, tende compaixão da
minha perdição e dai que a vossa vontade aconteça em mim. Afinal, como
as trevas desaparecem quando a luz é introduzida na escuridão das
cavernas, da mesma maneira, quando a vossa vontade ocorrer em mim todo
o movimento perverso e equivocado de minha escolha será inexistente”.
Pois a [p. 47] prudência vai apagar o ímpeto desmedido e passional do
pensamento. A humildade consumirá a vaidade; a medida curará a doença
da ambição, o bem do amor expulsará o grande catálogo de males
contrários; tão logo que ele ocorra em nós o ódio se afasta, a inveja, a
cólera, o movimento irado, a condição irascível, a traição, a hipocrisia, o
rancor, o ímpeto de retribuição, o calor do sangue, o olhar vingativo.
Toda multidão de tais males desaparece com a condição amorosa.
Assim a ação da vontade divina expulsa a dupla idolatria — por “dupla”
entendo a loucura pelos ídolos e o desejo de prata e ouro, que a palavra da
profecia nomeou como ídolos dos povos (Sl 113, 12). Então, seja feita a
vossa vontade, para que se apague a vontade do diabo.
Por que oramos para que venha para nós uma boa escolha de Deus?
Porque a natureza humana é fraca para fazer o bem, por ter sido de uma vez
danificada por meio da perversidade. Pois o homem não vai ao mal e
retorna ao bem com a mesma facilidade, como também é possível perceber
esse processo nos corpos, porque de forma não semelhante e não com igual
facilidade o saudável é acometido em doença e o doente fica saudável. Pois
a pessoa enquanto está saudável frequentemente por causa de uma única
ferida alcança o pior dos perigos, um único momento ou ataque de febre
desarranja toda a harmonia do corpo, uma breve prova de veneno provoca a
morte ou por pouco não faz isso, e, por uma picada de um réptil ou por uma
ferroada de um animal venenoso, ou por uma escorregadela, por uma
queda, um ataque de glutonaria em excesso ou por outro acontecimento
semelhante, imediatamente segue-se ou doença [p. 48] ou morte. Mas o
afastamento da doença vem com quantos cuidados e difíceis técnicas
médicas, se é que vem?
Por isso, quando vem a nós o ímpeto para o mal, não há necessidade
de cooperação, visto que a maldade se completa espontaneamente em nossa
vontade; mas se a tendência recai para o bem, há necessidade de que Deus
leve o desejo a termo. Por isso dizemos que “visto que a vossa vontade é a
prudência, eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado (cf Rm 7,14),
com a vossa força que essa boa vontade seja efetuada em mim”. Assim
também a justiça, a piedade, o alheamento das paixões; pois a expressão da
“vontade” compreende todas as virtudes de forma geral, e tudo que se
compreende particularmente por bem é contemplado na vontade de Deus.

3. Assim na terra como no céu


Mas o que quer a adição do texto: Assim na terra, como no céu? Talvez o
texto pareça indicar uma das mais profundas doutrinas e fazer um
ensinamento sobre a intenção piedosa no estudo sobre a Criação.
O que quero dizer é isto: toda criatura racional está separada na
natureza incorpórea e corpórea. Existe a natureza angélica, que é
incorpórea, e a outra forma somos nós, os homens. Portanto, uma é
intelectiva, e assim está afastada do corpo pesado — e com isso falo do
corpo rígido e que cai para a terra, procede para o mundo superior, e mora
nos lugares leves e etéreos em natureza delgada e imóvel; já a outra, por
causa da relação do nosso corpo com o elemento terreno, como um
resquício da lama, necessariamente partilha da vida terrena.
Não sei o que a vontade divina planejou com isso, adaptando toda a
criação para si, de modo [p. 49] a nem o mundo inferior ficar sem parte da
elevação celeste e nem o céu ficar completamente sem relação com o
mundo terreno; para que houvesse por meio da criação humana uma relação
entre cada um dos elementos que são vistos em ambos os mundos: o
intelectual da alma, o que parece ser parente e próximo das potências do
céu e que habita em corpos terrestres, e esta carne telúrica, que vai se mudar
com a alma o espaço celeste na restauração de tudo. Como diz o Apóstolo:
seremos arrebatados com eles nas nuvens para o encontro com o senhor
nos ares. E assim estaremos para sempre com o Senhor (1 Ts 4, 17).
Portanto, seja por isso, seja por algo além disso pela intenção da
sabedoria de Deus, toda a natureza racional, separada nesta dupla vida, está
dividida: a parte incorpórea participando da bem-aventurança celeste, a
envolvida pela carne na terra por causa da familiaridade com ela. Então o
desejo do bom e do belo é parte essencial de cada uma das naturezas, e o
Senhor de tudo criou igualmente a capacidade autônoma, autossustentável e
livre de qualquer constrição, para administrar com uma escolha livre tudo
que está honrado com razão e pensamento.
Mas a vida superior purifica todo vício, nada do que se considera em
contrário convive neste ambiente; já todo movimento e disposição passional
perpassa a vida inferior, onde está a natureza humana. Por isso, o texto
divinamente inspirado estabelece a vida no céu das potências santas livre de
vício e limpa de qualquer sujeira do pecado. Todo mal que está distante do
bem por causa desse afastamento [p. 50] colocou-se em torno desta vida vã
como um borrão ou restolho, do qual a humanidade é suja por desprezar a
luz divina da verdade, impedido por causa de tais trevas.
Se, então, a vida superior é impassível e sem mistura, e o sofrimento
desta vida de aqui está untado de diversas paixões e dificuldades, é evidente
que a vida superior, por estar limpa de todo mal, efetua-se na boa vontade
de Deus — onde não há mal é forçosamente necessário que haja o bem — e
a nossa vida, decaída da participação dos bens, decaiu também da vontade
divina. Por isso na oração aprendemos a limpar a nossa vida do mal dessa
maneira, para que, de acordo com a semelhança da vida celeste, também em
nós viva-se sem impedimentos a vontade de Deus, como se alguém
dissesse: como em tronos, soberanias, principados, autoridades (Cl 1, 16)
e em toda potência sobreterrena acontece a vossa vontade, sem nenhum
vício impedir a ação do bem, assim também seja efetuado em nós o bem a
fim de que, estando livre de todo vício, aconteça a vossa vontade entrando
em nossas almas.

4. O pão nosso de cada dia nos dai hoje


Mas como alguém pode sugerir, em contrário: “e como é possível que as
pessoas que receberam a vida pela carne realizem a pureza nas forças
incorpóreas, pois a alma é rebaixada pelas necessidades corporais em
milhares de preocupações?”. Por isso me parece, como para resolver essa
dificuldade, solucionar com as palavras seguintes essa aparência de
dificuldade por causa das preocupações presentes. Pois imagino que Ele
queira colocar para nós uma doutrina por meio destas palavras onde se
ordena pedir o pão nosso de cada dia, porque a capacidade da natureza de
se contentar com pouco e ser moderada [p. 51] se harmoniza com a
autossuficiência no conceito de impassibilidade. De fato, o anjo não pede a
Deus em suas orações o apoio do pão pelo fato de possuir uma natureza que
não tem necessidade disso. Mas o homem foi ordenado a pedir porque
aquilo que é vazio sempre carece do que o complete, a estrutura da vida
humana é fluida e transitória, e busca reviver para não se perder. Portanto, a
pessoa que olha para o serviço da natureza e não se perde em nada distante
do necessário através de preocupações vãs não está muito abaixo da vida
angelical, imitando com sua frugalidade a falta de necessidades dos anjos.
Por isso fomos ordenados a buscar aquilo que basta para a
conservação da natureza corporal, ao dizer a Deus: “dá o pão — não luxo
ou riqueza, não mantas purpúreas, não o adorno de ouro, não o brilho das
pedras, não a prataria, não a riqueza da terra, não o domínio sobre exércitos,
não a hegemonia sobre cidades e povos, não rebanhos de cavalos e bois e
grande multidão de outro tipo de gado, não riqueza de escravos, não a
distinção nas ágoras, não as placas comemorativas, não imagens, não
tecidos de seda, não espetáculos musicais, nem nada destas coisas pela
quais a alma se afasta da preferível preocupação divina — mas o pão”.
Você vê a amplitude da filosofia, quantas doutrinas que estão
contidas em uma breve expressão? Grita claramente pelas palavras ao que
dão ouvidos que: “Cessai, ó homens, de perder seus desejos em coisas vãs!
Cessai [p. 52] de aumentar os ímpetos de sofrimentos em vós mesmos. A
dívida que existe na tua natureza é pequena. Tu deves alimento à tua carne,
algo moderado e fácil de se adquirir se vês a necessidade. Por que
multiplicas o que deves? Por que subjugas a ti mesmo com tais despesas,
conseguindo prata e minando ouro e buscando a matéria diáfana? Para que
se delicie por meio disso este constante credor — o estômago, cuja
necessidade é o pão, que preenche a carência do corpo. Mas tu vais às
Índias e te aventuras em mar de bárbaros e entregas-te em navegações
anuais para alimentar prazerosamente com estes bens, sem perceber que as
sensações dos prazeres somente vão até o palato. Da mesma maneira o que
é de bela aparência, de bom odor, de bom gosto fornece um prazer breve e
inoportuno aos sentidos; depois do palato é indistinta a diferença entre o
que se consome, tudo tem mesmo valor, afastando a natureza do mau-odor.
Tu vês o limite da culinária? Vês o resultado da gastronomia? Pede o pão
por causa da necessidade da vida, a natureza te fez devedor disso ao corpo.
Mas tudo que se encontra nas delícias dos que vivem no luxo, são como as
semeaduras do joio. A semente do senhor é o trigo, e do trigo vem o pão; o
luxo é o joio, que foi semeado pelo inimigo junto com o trigo. Mas os
homens, ao deixarem de conduzir a natureza pelo que é necessário
realmente se perdem, como diz o texto, com as preocupações pelo que é vão
[p. 53], e ficam incompletos enquanto a alma se ocupa nesses assuntos
continuamente”.

5. A serpente
Talvez Moisés pareça-me instruir tais doutrinas por meio de enigmas,
quando colocou a serpente como símbolo do prazer pelo paladar para Eva.
De fato, dizem que este animal — a serpente —, quando introduz a cabeça
na fresta à qual se insinua, não se puxa facilmente pela cauda, pois as
escamas impedem naturalmente o movimento contrário de uma força que
arrasta para trás; e seu avanço é desimpedido quando as escamas se esvaem
na relva, o regresso é impossível, arrastada pelas placas da pele. Com isso,
imagino, o texto mostra que é necessário estar de guarda ao prazer que se
insinua e adentra as costas da alma e a bloqueá-lo o máximo possível de
entrar nas frestas da vida. Pois assim a vida humana ficaria puramente
segura da intromissão das feras. Se conseguisse alguma entrada em nós, e
assim a nossa vida harmoniosa fosse destruída, a serpente do prazer ficaria
de tocaia nos espaços do pensamento, e aí sua expulsão seria difícil por
causa das escamas. Ao ouvir “escamas” deve-se entender por enigmas os
múltiplos ataques dos prazeres.
Em um sentido geral um único animal é a paixão dos prazeres; as
múltiplas e variadas formas de prazer, que se imiscuem por meio dos
sentidos na vida humana, são as escamas em volta da serpente, que
pontuam com a grande variedade de paixões. Portanto, se você quer escapar
da convivência com o animal, tenha cuidado com a cabeça, isto é, a
primeira entrada do mal, [p. 54] é para esse fim que nos leva o enigma do
mandamento do Senhor: Ele terá cuidado com a tua cabeça, e tu terás
cuidado com o calcanhar dele (Gn 3, 15);[31] não dê entrada ao réptil que se
arrasta para o interior e do primeiro começo traz todo o seu volume.
Permaneça no que é necessário; que a saciedade das necessidades seja o
limite da sua preocupação em viver. Se o conselheiro de Eva falar com você
sobre a beleza da visão ou o prazer do paladar, e você buscar em lugar de
pão a iguaria feita por meio de um tal tipo de prazer, em consequência, por
meio disso você estaria conduzindo seu desejo para fora dos limites da
necessidade, nessa hora você veria a serpente se arrastando despercebida e
continuamente para o excesso.
Com efeito, ao se arrastar da alimentação necessária até a gulodice,
vai para o prazer nos olhos, buscando prataria brilhante e servidores
delicados, utensílios de prata, tapetes macios, véus diáfanos e entremeados
de ouro, cadeiras, trípodes, lavanderias, crateras, taças, copos, vasos, bacias,
lanternas, incensórios e coisas assim. De fato, por meio disso o desejo pelo
excesso se introduz. Para que meios para tais desejos não faltem, há
necessidade de rendas pelas quais o que se deseja será adquirido. Portanto é
necessário chorar por tal pessoa e lamentar a associação e muitos tornarem-
se miseráveis por se afastarem da situação natural, para que, por meio das
lágrimas deles, a tragédia da mesa se evidencie. Visto que a serpente se
enrolou com estes desejos e encheu [p. 55] o ventre com essa opinião,
consequentemente vai levar, ao se arrastar e depois de se locupletar, até a
loucura sem limite. E este é o último dos males humanos. Para que nada
disso aconteça, limite a vida com a simplicidade do pão, ao buscar o
alimento feito para ti pela própria natureza. O que é isso? A boa consciência
(cf. 1 Tm 4, 2-3), que dá prazer no pão com a justa compreensão. Se você
quer se comprazer com os sentidos da garganta, que seja seu tempero a
fome e não deixe que a saciedade siga à saciedade e que o apetite se
abrande com a bebedeira. Mas que os suores do mandamento tenham
precedência sobre a alimentação: Com suor e sofrimento comerás teu pão
(Gn 3, 19). Nisso você vê a primeira receita gastronômica do texto bíblico.

6. O pão de Deus
Basta para você ocupar a mente até essa necessidade; melhor nem mesmo
que você ocupe a alma com as preocupações sobre o pão. Mas diga a quem
tira o pão da terra, diga a quem alimenta os corvos, a quem dá alimento a
toda carne, a quem abre a mão e enche todo animal de boa vontade que: De
vós vem a minha vida (Sl 144, 16), que venha de vós também o ímpeto de
viver. Dê o pão, isto é, tenha a alimentação a partir de um esforço justo.
Pois se Deus é justiça, a pessoa que se alimenta a partir da ambição não tem
seu pão de Deus. Você mesmo é senhor da oração. Se a prosperidade não
vem de outros, se a produção não vem de lágrimas, se ninguém passou
fome com a sua saciedade, se ninguém não sofreu com a sua fartura, [p. 56]
este pão é de Deus, o fruto é da justiça, a espiga é da paz, limpa e pura das
sementes do joio. Mas, se ao trabalhar os frutos alheios, tendo nos olhos a
injustiça e controlando com tabuinhas a propriedade injusta; se, ao fazer
isso, você disser para Deus: “dai o pão”, é outro quem vai escutar a sua voz,
não Deus. A natureza adversária colhe o fruto da injustiça; a pessoa que
trabalha a justiça recebe o pão de Deus, o que lavra a injustiça é alimentado
por quem descobriu a injustiça.
Portanto, olhando para sua consciência, dessa maneira eleve a prece
sobre o pão para Deus, sabendo que não há relação de Cristo com Beliar
(cf. 2 Co 6, 15). E se você dá presentes da injustiça, esse presente é
pagamento de um cão e salário de prostituta (Dt 23, 19); se você se torna
famoso por ambição com doações, vai ouvir o profeta enojado com a oferta
de tal origem: que me importam vossos inúmeros sacrifícios? diz o Senhor,
estou farto de holocaustos de carneiros, gordura de cordeiros, sangue de
touros e bodes não quero. O sacrifício, ele diz, é abominação para mim (Is
1, 11). Em outra passagem, quem sacrifica um bezerro é considerado como
quem mata um cachorro. Portanto, se você tem o pão do Senhor, isto é, de
trabalhos justos, é possível viver dos frutos da justiça.

7. Hoje
É bela também a adição de “hoje”. Pois, ele diz, o pão nosso de cada dia
nos dai hoje. Esta expressão é sozinha outra lição de filosofia, para que se
aprenda, pelo que se diz, que [p. 57] a vida humana é efêmera e diária.
Somente o presente é próprio de cada um. A esperança do futuro permanece
desconhecida — de fato, não sabemos o que dia de hoje trará (Pr 27, 1).
Por que sofremos em antecipação pelo que não se sabe? Por que passamos
mal com as preocupações sobre o futuro? Ele diz: a cada dia basta seu mal
(Mt 6, 34); e por “mal” ele entende os sofrimentos. Por que nos afligimos
com o amanhã? Por isso, através da ordem do hoje Ele proíbe que você se
preocupe com o amanhã, ao dizer quase textualmente: “aquele que te dá o
dia também dá o necessário ao dia”. Quem faz o sol girar? Quem faz
desaparecerem as trevas da noite? Quem mostra para você os raios da luz?
Quem faz o céu girar para que o astro luminoso esteja sobre a terra? Aquele
que dá para você tantos e tais bens necessita da sua cooperação para
preencher a sua carne com o que falta de necessário? A natureza dos seres
irracionais dedica quanto de preocupação à própria vida? Quais são as
plantações dos corvos? Quais são os celeiros das águias? A vontade divina
não é um único apoio para vida a todos, por cuja vontade domina tudo? Seja
vaca, burro ou outro dos animais irracionais, eles não têm uma filosofia
autodidata naturalmente, estão bem dispostos no presente e não têm
nenhuma preocupação pelo futuro? Já nós precisamos de um conselho para
compreender a transitoriedade e efemeridade da vida da carne. Não somos
ensinados pelos acontecimentos dos outros? Não somos sensatos com a
própria vida? Em que se alegra o rico de sua grande posse, que se vangloria
com as esperanças sem fundamento, limpando, construindo, ajuntando, se
refestelando, guardando em celeiros por grandes períodos de anos na
vaidade das esperanças? Uma única noite não prova que toda essa
esperança de sonhos [p. 58] é um sonho vão plasmado em vaidade?
A vida do corpo pertence somente ao presente. Já a vida que jaz na
esperança é própria da alma. Mas o pensamento dos homens erra sobre o
uso de cada uma das duas, a vida corporal se alonga com as esperanças, a
vida da alma é arrastada para a fruição dos assuntos presentes. Por isso,
forçosamente havendo e persistindo a esperança, a alma, ao se ocupar das
aparências, aliena a si mesma; apoiando-se nas esperanças sem fundamento
não toma domínio e nem tem essas aparências. Então, que sejamos
ensinados por meio do presente conselho sobre o que é necessário pedir
para hoje, e o que se deve esperar do futuro. O pão é parte da nossa
necessidade cotidiana; e o reino, da bem-aventurança esperada — ao dizer
“pão” compreende-se toda a necessidade corporal. Portanto, se pedimos tal
coisa, fique claro ao pensamento de quem ora que a ocupação centra-se no
momentâneo; mas se é de um dos bens da alma, o pedido visa o constante e
imperecível, para o que mais se ordena aos orantes olharem, como em uma
necessidade maior quando a primeira se consegue. Ele diz pedi o Reino e a
justiça, e todo resto será acrescentado a vós (Mt 6, 33), em Cristo Jesus,
Nosso Senhor, a quem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém.
Homilia 5
Perdoai nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos
devedores.

1. Perdoai nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos


devedores.
[p. 59] O texto veio avançar para o ponto mais alto da virtude. Pois ele
sublinha pelas palavras da oração como deseja que a pessoa que ora a Deus
seja, quase não mais se mostrando nos limites da natureza humana, mas
assemelhando-se a Deus por meio da virtude, a ponto de essa pessoa
parecer outra ao fazer aquilo que só Deus pode fazer. Pois o perdão das
dívidas é próprio e particular de Deus; de fato foi dito que Ninguém pode
perdoar pecados a não ser Deus (Mc 2, 7). Então, se alguém reproduzir os
sinais da natureza divina em sua própria vida, torna-se de algum modo
aquilo cuja imitação mostrou manifestamente. Portanto, o que ensina o
texto? Primeiro por meio das obras tomar a coragem de falar e, assim, pedir
o esquecimento dos erros passados.

2. A semelhança com Deus


Fala-se isto na nossa face com a expressão: “quem se aproxima do benfeitor
seja um benfeitor; do bom seja bom; do justo seja justo, afaste o mal ao se
aproximar de quem afasta o mal, benevolente de quem é benevolente, e
todo o resto da mesma forma, do útil, do razoável, de que dissemina os bens
e todo mundo que dispensa compaixão; e se algo visa o divino,
assemelhando-se a cada uma dessas qualidades por meio da escolha, assim
obtenha para si a franqueza da oração. [p. 60]
Portanto, assim, não há como o perverso se associar com o bom, e
nem quem vaga em pensamentos impuros ter comunhão com o puro e
limpo, assim separa-se a rudeza de quem se aproxima da benevolência de
Deus. Então, a pessoa que se porta com amargor com o cliente por causa de
dívidas, do mesmo modo se separa da benevolência de Deus.
Pois que comunhão há entre a benevolência e a crueldade? Entre a
benfeitoria e a selvageria? E entre o restante que tem origem no adversário
e a antítese do mal, em que não toma parte a maldade, em virtude do qual a
pessoa que se ocupa do Único está totalmente separada do adversário? De
fato, já que a pessoa que nasceu para a morte não está na vida, e a pessoa
que participa da vida está afastada da morte, é totalmente necessário que a
pessoa que se aproxima da benevolência de Deus esteja afastada da
crueldade. Já a pessoa que estiver afastada de tudo que se considera no
pecado torna-se, por causa dessa condição, de algum modo, Deus, depois de
efetuar em si mesmo aquilo que o texto observa sobre a natureza divina.
Você é capaz de ver em que tamanho o Senhor alça os ouvintes por meio
das palavras da oração, transformando de algum modo a natureza humana
para a divina e ordenando que as pessoas que se aproximam de Deus se
tornem deuses?
Ele diz: “por que, de maneira servil, envergado pelo medo e
flagelado na tua consciência, te aproximas de Deus? Por que te excluis da
franqueza que existia previamente na liberdade da alma e que desde o
princípio estava uma essência da natureza? Por que bajulas em palavras
quem não se pode adular? Por que diriges palavras servis e aduladoras a
quem [p. 61] olha para as obras? Existe em ti tudo que é útil, da parte de
Deus, para teres o pensamento de um homem livre. Torna-te tu mesmo teu
próprio juiz, dá a ti mesmo o voto libertador. Buscas o perdão das dívidas
com Deus? Liberta tu, e Deus confirma. Pois o julgamento do semelhante,
do qual tu és senhor, torna-se o teu julgamento, qual ele for; pois aquilo que
sabes sobre ti mesmo, isso foi confirmado por meio do julgamento divino”.

3. Deus imitando o homem


Mas como se revelaria de modo condigno a magnanimidade da fala divina?
O pensamento ultrapassa a explicação das palavras: perdoai nossas dívidas,
assim como nós perdoamos nossos devedores. De fato, aquilo que me leva a
pensar é ousado até mesmo de ter na mente, mais ousado é revelar o sentido
na fala. O que é que se diz? Como Deus se dispõe para imitação às pessoas
que fazem o bem, como diz Paulo: Sede meus imitadores, como eu mesmo o
sou de Cristo (1 Co 11, 1), dessa maneira, no sentido oposto, deseja que a
sua condição seja um modelo do bem para Deus; e a ordem natural é
invertida de algum modo a ousar e, da maneira que o bem se completa em
nós pela imitação do divino, assim desejar que Deus imite nossas ações
quando efetuamos algum bem, para que diga também você a Deus: “aquilo
que fiz, fazei vós também; que o senhor imite também o servo, que o rei de
tudo imite o pobre e o miserável: perdoei o devedor, vós não o pedistes?
Tive compaixão pelo súplice, [p. 62] não afastai vós o suplicante, enviei de
volta meu devedor contente, que o vosso também o torne; não fazei o vosso
endividado mais abatido do que o meu; talvez os dois retribuam aos seus
devedores, que se confirme de ambos um perdão igual aos negociantes — o
meu e o vosso. O meu devedor é esse homem, o vosso sou eu; a opinião que
tinha sobre ele, mantende a mesma sobre mim: livrei, livrai; perdoei,
perdoai, mostrei uma grande compaixão ao meu igual, vós, que sedes por
natureza benevolente, imitai a benevolência. Eu afirmo que são mais graves
os meus erros contra vós do que os que foram cometidos contra mim por
aquela pessoa, mas pensai em uma coisa: o quanto estais acima em todo
bem; de fato, vós sois capaz de, pelo excesso do vosso poder, repartir de
modo proporcional a piedade aos pecadores. Demonstrei uma pequena
benevolência, pois a natureza não vai além; mas vós, o quanto quiserdes,
vossa potência não impede a graça”.

4. Por que até mesmo os santos têm de pedir perdão pelos pecados?
Mas vamos considerar de modo mais diligente a expressão presente da
oração, quem dera fôssemos acompanhados para a vida elevada através da
compreensão do pensamento! Investiguemos, então, quais são as dívidas
que a natureza humana tem, quais são aquelas de que somos capazes de
perdão. Pois a partir do conhecimento disso poderíamos ter uma
compreensão razoável do excesso dos bens divinos. Portanto, daí façamos a
contagem das transgressões humanas contra Deus. A primeira punição que
o homem deveu a Deus foi porque afastou-se do criador [p. 63] e desertou
para o Adversário, tornando-se um desertor do senhor natural e rebelde; em
segundo lugar, porque trocou a liberdade absoluta pela perversa servidão do
pecado, e preferiu ser tiranizado pela força corruptora no lugar de conviver
com Deus.
Mas ao não olhar para a beleza do criador e se voltar para a fealdade
do pecado, a segunda opção seria escolhida por quem? O desprezo dos bens
divinos e a preferência pelas iscas do mal foi designada a qual porção da
punição? O desaparecimento da imagem, a corrupção da marca divina que
foi plasmada na primeira fundação, a perda da dracma (cf. Lc 15, 8-11), o
abandono da mesa do pai, a familiaridade com a malcheirosa vida dos
porcos (cf. Lc 15, 12-16), a perda da riqueza honrada e tais pecados que se
pode ver através das escrituras e do pensamento. Que valor seria calculado?
Portanto, visto que a humanidade é passível de punição a Deus por tantos e
tais crimes, o texto parece nos ensinar pela lição da oração a de modo
algum ter liberdade na conversa com Deus como se tivesse a consciência
pura, mesmo se estiver afastado o máximo possível dos pecados humanos.
De fato, alguém que foi ensinado nos mandamentos por toda sua vida ao
modo daquele jovem rico, talvez possa se vangloriar da mesma maneira
sobre sua vida e dizer a Deus: tudo isso tenho guardado desde minha
juventude (Mc 10, 20) e [p. 64] supor consigo mesmo que, por jamais ter
errado contra os mandamentos, não se adequa totalmente ao pedido de
libertação das dívidas, porque este somente se ajusta aos que pecaram. Mas,
diz ele, que esta frase somente convém e se faz necessária à pessoa imunda
por causa da luxúria, ou que cai na idolatria por meio da ganância, e a toda
pessoa que está manchada na consciência da alma por algum pecado é belo
e conveniente refugiar-se na piedade. Mas se fosse o grande Elias, ou o
maior dos gerados por mulher,[32] no espírito e na força de Elias, ou Pedro
ou Paulo, ou João[33] ou algum outro dos que deram testemunho do maior
pelas Santas Escrituras, para que usariam dessa expressão que pede perdão
pelas dívidas, pessoas que não têm nenhuma dívida de pecado?

5. O pecado comum de todos os homens


Mas para que, ao observar isso, não seja arrogante à maneira daquele
fariseu que não reconheceu o que era na sua natureza — pois, se tivesse
sabido que era um homem, teria aprendido pelas santas escrituras que sua
natureza não estava limpa do pecado, ou que ela diz que não é possível
encontrar a vida nem de um dia dos homens afastada de uma mancha —
portanto, para que não surgisse uma tal paixão na alma da pessoa que se
aproxima de Deus pela oração, o texto recomenda não olhar para os
sucessos, mas repetir a lembrança das dívidas comuns, das quais também
ele compartilha, uma vez que compartilha do mesmo quinhão da natureza, e
[p. 65] requerer ao juiz que ele agracie anistia das transgressões.
De fato, enquanto viver em nós Adão, todos nós homens, enquanto
nos virmos em nossa natureza estas túnicas carnais e as folhas efêmeras
desta vida material, que perversamente atamos a nós mesmos a partir do
momento em que nos despimos das vestes eternas e brilhantes, trocando os
mantos divinos pelas roupas de luxo, famas, honras efêmeras e a breve
segurança da carne, e até olharmos o lugar da maldade onde fomos
condenados a habitar, quando nos voltarmos para o oriente — não porque
somente ali Deus é observado, pois Ele estando sempre em toda parte não
se compreende particularmente em nenhum lugar; pois ele contém o todo de
forma igual, mas como no oriente está nossa primeira pátria, falo da
permanência no Paraíso, de onde decaímos: Deus criou um Paraíso em
Éden, no oriente (Gn 2, 8). Portanto, quando olharmos para o oriente e
tomarmos lembrança no pensamento do banimento dos locais luminosos e
orientais da bem-aventurança, provavelmente emitiremos uma tal
expressão, nós, que estamos obscurecidos pela perversa figueira da vida,
que fomos expulsos dos olhos de Deus, que desertamos para a serpente,
aquela que come a terra e se arrasta no chão e vai sobre o peito e seu ventre
e aconselha-nos a fazer o mesmo: a gozar do que é terreno [p. 66] e a fazer
o coração rastejar em pensamentos rasteiros e rasos e a andar sobre o
ventre, isto é, gastar a vida na fruição sensível.
Portanto, quando estivermos nessa situação, em seguida, na maneira
daquele homem desesperado depois do grande sofrimento que suportou
cuidando dos porcos, quando retornarmos a nós mesmos e tomarmos
consciência do pai celeste, utilizaremos bem de expressões como perdoai as
nossas dívidas. Assim, mesmo se for Moisés, ou Samuel ou outro dos que
se sobressaem na virtude, considera-se não menos condizente a ele essa
expressão, pois, visto que é homem, tem comunhão da natureza de Adão, e
também tem comunhão com a queda. De fato, visto que, como diz o
apóstolo, em Adão todos morremos (1 Co 15, 22), convém uma fala comum
a todos que morreram junto com Adão e que seja conveniente como
arrependimento, para que, tendo nos sido dada a anistia das nossas
transgressões com a graça, novamente sejamos salvos pelo Senhor, como
diz o apóstolo (Cf. Ef 2, 5).

6. Os pecados particulares
Mas isso foi dito como se alguém, ao refletir a leitura comum, interpretasse
o texto que agora examinamos. Se alguém buscar o verdadeiro sentido da
expressão, não julgo que tenhamos necessidade de atribuir o sentido à
comunhão da natureza; pois a consciência do que foi vivido por cada um é
suficiente para se fazer um necessário pedido de piedade. Pois imagino que,
por nossa vida ser vivida de muitos modos, certa vez de acordo com a alma
e a inteligência, outra vez de acordo com os sentidos do corpo, é difícil ou
completamente impossível não ser levado por alguma paixão ao pecado.
O que digo? Uma vez que a vida de fruição corporal [p. 67] é
fornecida aos nossos sentidos, e a vida da alma é observada no ímpeto do
pensamento e no movimento da escolha, quem é tão elevado e nobre de
espírito a ponto de, por meio de ambos os modos de viver, ficar afastado da
sujeira do pecado?
Do pecado dos olhos, quem? Do descontrole do ouvido, quem?
Alheio ao prazer bestial da comida? Quem está limpo do toque pecaminoso
com o tato? Quem não conhece o enigma quando as escrituras dizem que a
morte adentrou por janelas (cf. Jr 9, 20)? De fato, os sentidos, por meio dos
quais a alma, ao espiar os assuntos exteriores concebe a opinião, são
chamados de “janelas” pelas escrituras, que o texto diz abrirem entrada para
a morte. Verdadeiramente, os olhos muitas vezes tornam-se entrada de
muitas mortes, seja vendo alguém irado e ficando influenciado com a
mesma paixão, seja vendo alguém feliz além da medida e inflamando-se em
inveja, ou vendo alguém arrogante e recaindo em ódio, ou vendo alguma
matéria agradável ou uma constituição mais bela quanto a forma e recaindo
no desejo do que lhe agrada.
O ouvido abre as janelas para a morte deste modo: pelo que se ouve
muitas paixões são acolhidas na alma: medo, dor, ira, prazer, desejo,
descontrole do riso e semelhantes.
Já a fruição do paladar é mãe, como se poderia dizer, de males
particulares; de fato, quem não sabe que é praticamente uma raiz das
transgressões da vida o descontrole da boca? Dela dependem o luxo, a
embriaguez, a gulodice, [p. 68] o descontrole sobre a dieta, o fastio, a
saciedade, as festas, a decadência bestial e irracional nas paixões
desonrosas.
Igualmente, o sentido do tato é o último de todos os que causam o
pecado: pois tudo o que se faz no corpo entre os amantes dos prazeres são
doenças do sentido do tato, cujas particularidades seria trabalhoso de se
relatar, e tampouco seria conveniente de se misturar às palavras mais
elevadas as acusações contra o tato.

7. O pecado da alma
O enxame de transgressões na alma e na escolha, que texto seria capaz de
contar? É de dentro, do coração dos homens, que saem as intenções
malignas (Mc 7, 21) e adiciona o catálogo daquilo que nos desfigura. Se,
portanto, as redes dos pecados estão à nossa volta de tal maneira em todos
os lados, por meio de todos os sentidos, através dos movimentos, pelos
movimentos centrais da alma, como diz a Sabedoria: quem há de se
vangloriar de ter um coração puro (Pr 20, 9)? Quem vai estar limpo da
sujeira? (Jó 14, 4) Como Jó dá testemunho.
O prazer imiscuído na vida humana de forma variada e
multifacetada é a sujeira da pureza da alma, por meio da alma e do corpo,
dos pensamentos, dos sentidos, dos movimentos propositais, das ações
corporais. Portanto, quem tem a alma pura desta mancha? Como não foi
tocado pela vaidade, como não foi pisado pelo pé da arrogância, que a mão
pecadora não incitou, cujo pé não correu ao vício; que o olho não sujou com
o desordenado; e o ouvido destreinado não deixou imundo, o paladar não
ocupou para seus fins, e o coração não permaneceu inerte diante dos
movimentos para a vaidade? Portanto, visto que [p. 69] tudo isso de
perverso está em nossa volta, mais difícil para os mais bestializados, mais
suportável aos mais sensatos, sempre e de toda forma se fazem presentes
aos que compartilham a natureza e também a comunhão nos pecados, por
isso, ao nos dirigirmos a Deus por meio da oração, invocamo-nO para
perdoar nossas dívidas.
Contudo, essa expressão é inconsequente e não alcança os ouvidos
divinos se a nossa consciência não está de acordo que a concessão de
misericórdia seja um bem. Pois a pessoa que julga convir a Deus a
benevolência — pois não se dignaria a se aproximar com o inconveniente e
incorreto se não julgasse que conviesse — é obrigado a confirmar com as
próprias obras seu julgamento sobre o que é bom, para que não se escute tal
coisa da parte do Justo Juiz: “Médico, cura a ti mesmo (Lc 4, 23). Tu me
invocas para ser benevolente, algo que tu mesmo não concedes para os teus
próximos. Pedes o perdão das dívidas. De que maneira, então, sufocas o teu
devedor? Tu pedes na oração que seja apagado o contrato contra ti, tu
mesmo que guardas com cuidado os registros dos subordinados. Pedes corte
nas dívidas tu mesmo que faz crescer o empréstimo por meio dos juros. O
teu devedor na prisão e tu na oração? Aquele sofre com as dívidas e você se
digna a pedir o perdão das tuas dívidas? A tua oração não é ouvida, visto
que a voz do sofredor fala mais alto. Se libertares a dívida corporal, também
serão libertas as correias da tua alma. Se perdoares, serás perdoado. Julgas a
ti mesmo, legislas sobre ti mesmo, levando o voto do alto contra ti mesmo
pela disposição com o subordinado”.

8. Os pecados contra você são pequenos perto dos nossos pecados


contra Deus
Parece-me que o Senhor emite um tal ensinamento também em outra
passagem [p. 70], apresentando esta doutrina de forma narrativa. Na
narrativa há um rei seguro de seu poder e conduz os servos ao julgamento e
busca o reconhecimento do que foi administrado por cada um. Um dos
devedores, ao ser trazido e encontrando benevolência, porque, ao se jogar a
seus pés, fez uma súplica para não pagar o dinheiro; em seguida, contra seu
colega se comportou de forma amarga e dura por uma dívida moderada,
com isso ele fez o rei ficar irado com sua dureza contra o colega; e ordenou
que os seus guardas o expulsassem com toda sua família da casa do rei, e
contra ele estendeu a punição até que pagasse a punição digna (cf. Mt 18,
21-35).
De fato, verdadeiramente, são alguns óbolos, coisa barata e de fácil
contagem diante de milhares de talentos, as dívidas dos nossos irmãos
conosco em comparação com as nossas dívidas com Deus. Sempre é um
dano o ímpeto de violência que surge em alguém, ou a maldade de um
escravo, ou o plano para a morte corporal; em seguida você é estimulado no
fogo do coração para se defender disso e busca toda ideia para a punição
dos sofrimentos passados. Você não pensa, se o coração arde contra o
escravo, que não é natureza, mas o poder que separou a humanidade em
escravo e senhor.
O administrador de tudo estabeleceu que a natureza irracional
servisse ao Homem, como diz o profeta que sob os pés tudo colocaste, [p.
71] ovelhas e bois, todos, e as aves e as feras e os peixes (Sl 8, 7-9), a estes
chamou de escravos, ao dizer em outro lugar da profecia: fornecendo
alimento às bestas e plantas para a escravidão para os homens (Sl 103).[34]
Já ao homem com a graça autônoma adornou, de modo a ter a
mesma parte que você na dignidade da natureza a pessoa que é subjugada
por costume ou lei. Nem veio de você, nem vive em você e nem possui suas
capacidades corporais e espirituais porque recebeu de você. Por que você
ferve tanto no coração quando alguém age de maneira despreocupada, ou
fica ausente, ou demonstra no rosto desprezo a você, é necessário olhar para
ele, que nasceu como você, pelo senhor que moldou você e conduziu pela
geração e fez você partícipe de todos os espetáculos no mundo, o Senhor
que apresenta o sol para nosso prazer e nos agraciou com todos os ímpetos
da vida desde seus elementos, da terra, do fogo, do ar e da água, que
forneceu a graça intelectual, os sentidos, e o conhecimento que distingue o
belo do feio? Como você é diante de tal Senhor, por acaso obediente e
inerme e não se afasta do senhorio? Mas você não fugiu para o pecado?
Não desertou pelo perverso senhorio? Não trocaste pelo teu deserto a
morada do Senhor quando você a abandonou, na qual você foi designado
para trabalhar e guardar? [p. 72] Os pecados enumerados não são com
testemunho do Deus que está em toda parte e tudo observa que você os
pratica, diz ou pensa? Em seguida, sendo de tal modo e devedor de tanto,
julga ser grande coisa agraciar o irmão se esquece com paciência algum dos
pecados que ele fez contra você? Se vamos dirigir a Deus o pedido por
misericórdia e perdão, preparemos na consciência a franqueza, para
apresentar a vida como advogada desta expressão e dizer verdadeiramente
que “assim como nós perdoamos os nossos devedores”.
9. Não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do Mal
O que quer dizer o texto que segue ao que vimos? Julgo ser necessário não
passar ao largo disso sem observar que, sabendo com o que oramos
conduzamos o pedido com a alma e não só com a boca. Não nos deixeis
cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Irmãos, qual é a força dessas
palavras? Parece-me que de forma variada e diferente o senhor dá nome ao
mal, de acordo com as diferentes ações perversas chama-o de muitos
nomes: caluniador (Mt 4, 1),[35] Belzebu (Mt 12, 24), Mamon (Mt 6, 24),
senhor do mundo (Jo 14, 30), matador do homem (Jo 8, 44), maligno (Mt
13, 19), pai da mentira (Jo 8, 44) e coisas semelhantes. Talvez, então, um
dos nomes imaginados para o mal seja também a “tentação”, e a
continuação do que é dito assegura esse significado para nós. De fato,
depois de dizer não nos deixeis cair em tentação, adiciona o “livrai-nos do
Maligno”,[36] como se [p. 73] significasse o mesmo através de cada um dos
nomes. Pois se a pessoa que jamais cai em tentação está sempre afastada do
Perverso, e a pessoa que cede ao pecado necessariamente está com o
Maligno, logo, a tentação e o Maligno são únicos no que tange ao
significado.
Portanto, o que este ensinamento da oração nos ordena? A ficarmos
afastados daquilo que se observa neste mundo, como se diz em outro lugar
aos discípulos: todo o mundo está sob o poder do Maligno (1 Jo 5, 19).
Portanto, quem deseja estar afastado do Maligno necessariamente banirá a
si mesmo do mundo. Pois a tentação não tem espaço para atar-se à alma se
não, como uma isca, apresentasse essa ociosidade mundana ao Maligno e
oferecesse em um anzol aos mais ávidos.
Talvez o significado fique mais claro para nós através de outros
exemplos. Muitas vezes o mar está revolto pela ressaca, mas não para os
que estão afastados de lá. O fogo é destruidor, mas somente a quem ele
toca. A guerra é terrível, mas apenas aos que têm algo com o exército.
Assim como a pessoa que escapa das desgraças da guerra pede para não cair
nela, também a pessoa que teme o fogo pede para não ficar perto dele,
também a pessoa que teme o mar pede não ser forçada a navegar, assim
também a pessoa que teme o ataque do Maligno vai pedir não ficar perto
dele. Visto que, como já foi dito, o texto diz que o mundo está nas mãos do
Maligno, os ataques das tentações estão nas atividades mundanas, bem e
convenientemente a pessoa que suplica livrar-se do Maligno pede para ficar
distante das tentações. Pois não engole o anzol quem não puxa a isca por
curiosidade. Mas digamos ao nos levantarmos também nós a Deus Não nos
deixeis cair em tentação, [p. 74] isto é, nos males da vida, mas livrai-nos do
mal que adquiriu força neste mundo, que dele sejamos libertos pela graça de
Cristo, a quem a força, a glória junto com o pai e o espírito santo agora,
sempre e nos séculos dos séculos. Amém.

[1]
Sobre a região da Capadócia à época de São Gregório de Nissa, ver Van Dam, R. Kingdom of
Snow: Roman Rule and Greek Culture in Cappadocia. Philadelphia, 2002.
[2]
Por exemplo Jeam Daniélou “La Chronologie des sermons de Grégoire de Nysse” Recue des
Sciences Religieuses 29.; Canévet Grégoire de Nysse et l’herméneutique biblique. Étude des rapports
entre le langage et la connaissance de Dieu. Études Augustiniennes 99, 1983; Anthony Meredith
“Origen and Greogry of Nyssa on the Lord’s Prayer” The Heythrop Journal 43 (2002).
[3]
A recente edição das Homilias por Seguin, Cassin e Boudignon (2018) aponta na introdução para
essa datação mais tardia.
[4]
Sobre os sermões de Santo Agostinho e sua composição ver Brown, P. “’Dialogues with the
Crowd’
The Rich, the People, and the City in the Sermons of Augustine” in: Through the Eye of an Needle:
Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the West, 350-550 A. Princeton, 2014.
Sobre Eunômio ver Vaggione, P. Eunomius of Cyzicus and the Nicene Revolution. Oxford, 2003.
[5]
GNO V, p. 281 ss.
[6]
Sobre a ascensão em Plotino ver Brandão, B. “A Noção de Ascensão em Plotino” Dois Pontos
vol. 10, no. 2 2013.
[7]
Embora seja difícil caracterizar o pensamento de Orígenes em virtude do estado fragmentário de
suas obras mais polêmicas e de traduções que não foram totalmente fiéis, parece que o autor
considerava que as almas humanas eram anjos de alguma forma decaídos e que iriam, no fim dos
tempos, ser restaurados ao estado original. São Gregório adota essa visão do estado beatífico original,
mas não interpreta como se os homens tivessem sido originalmente figuras angelicais; ele faz uma
leitura mais literal, seguindo de perto a visão do Gênesis do Paraíso, do erro de Adão e da queda
decorrente. Sobre a doutrina origeniana ver Daniélou, J. Origène, Paris, 1949.
[8]
Sobre a leitura marcionita de Lucas ver Leaney, R. “The Lucan Text of the Lord’s Prayer (LK xi
2-4)” Novum Testamentum 1(2), 1956.
[9]
Sobre a questão textual dessa passagem, ver os comentários de Cassin e Boudignon na introdução
mais recente edição das Homilias para as Sources Chrétiennes (pp. 156-160, 2018).
[10]
Sobre a questão do filioque e a teologia dos padres capadócios, ver Moreschini, C. “Oservazioni
sulla pneumatologia dei Cappadoci: preannunci del Filioque?” in Gagliardi, M. (ed.) Il filioque: A
mille anni dal sua inserimento nel Credo a Roma. Roma, 2015.
[11]
A respeito dessa questão em Gregório de Nissa, ver o artigo de Alexopoulos, L. “Medicine,
Rhetoric and Philantropy in Gregory of Nyssa’s second sermon ‘On the love of the poor” θεολογία
3/2015, bem como Nicolae, J. “’Christus predicator/medicator: Homiletical, Patristic and modern
elements of Theologia medicinalis” European Journal of Science and Theology, vol 8. Setembro
2012.
[12]
Garnsey, P. Ideas of slavery from Aristotle to Augustine. Oxford, 1996 p. 243.
[13]
Gregório de Nissa faz um trocadilho entre eukterion (oratório) e praterion (mercado). Tentei
manter alguma semelhança entre as palavras.
[14]
A disposição em versos dessa oração, que é analisada inclusive em seus aspectos rítimicos por
Cassin e Boudignon na sua edição recente (pp. 90 -103) foi originalmente proposta por Perrone em
La Preghiera secondo Origine: L’impossibilitá donata. Milão, 2005 p. 590-1, n. 1911.
[15]
No texto grego da Bíblia, Jesus utiliza uma palavra nova, battologia, para indicar o palavreado
dos que oram.
[16]
No original se diz “de forma mais grega”. A questão aqui é que o termo grego da Bíblia não é um
termo erudito, refinado e, portanto, pouco aceito pelos oradores da época. São Gregório de Nissa era,
além de bispo, um esteta da língua grega, então ele “corrige” o termo bíblico com expressões mais
refinadas e aceitas pelos padrões da oratória grega.
[17]
Como Alexandria, Antioquia, Constantinopla, as diversas Cesareias etc.
[18]
Talento é uma medida de peso da Antiguidade, aproximadamente 20 kg. Também significa o
valor equivalente ao mesmo peso em prata, portanto, um valor bastante considerável.
[19]
Gregório de Nissa demora-se pouco nessa discussão porque ele está aproveitando a definição
feita por Orígenes em seu comentário ao Pai Nosso.
[20]
A palavra que traduzi por “franqueza” é parrhesía. Esse termo tem uma história longa, significa
inciio9almente a liberdade de fala que caracteriza os membros da assembleia política,
posteriormente, no mundo cristão, vem a significar a liberdade de fala com Deus através da oração,
como nessa passagem.
[21]
As traduções diretas do hebraico são diferentes nesta passagem, mas Gregório de Nissa só
demonstra conhecimento da tradução grega dos Setenta.
[22]
Toda a passagem que segue é reminiscente da descrição da roupa do sacerdote em Ex .28.
[23]
Gregório faz um trocadilho de difícil tradução pois ádyton significa “templo” em grego, mas seu
sentido original é “lugar onde não se pode entrar”. Ele explora os dois significados nessa passagem.
[24]
A nova edição de Cassin retira a menção ao evangelista. Decidi mantê-la por facilitar a
compreensão da passagem.
[25]
Nessa passagem, Gregório de Nissa utiliza uma variante do texto do Evangelho de Lucas que não
está presente no textus receptus, e também não foi adotada pelas edições críticas modernas. Essa
variante provavelmente é uma glosa do texto original.
[26]
Aqui Gregório se aventura em uma breve polêmica dogmática contra teólogos que afirmavam
que o Espírito Santo era uma criatura e, portanto, inferior.
[27]
O texto de Callahan insere ainda a seguinte frase: “Mas o texto evangélico dá testemunho de que
somente a Deus é possível retirar o pecado. Portanto, aquele que deu testemunho de sua capacidade
de retirar os pecados também deu testemunho da sua divindade.”
[28]
O termo aqui utilizado para “pessoa” é ὑπόστασις, o termo consagrado pelos padres capadócios
para designar a variação interna à trindade. No pensamento dos padres capadócios é feita a separação
entre οὐσία, que seria a própria natureza de algum ente, e ὑπόστασις, que seria uma manifestação
dessa οὐσία. Assim, as pessoas da trindade são vistas não como três substâncias diferentes, mas três
manifestações de uma única substância.
[29]
Gregório faz referência à teoria dos humores, que é a doutrina médica padrão da medicina grega
antiga. Por motivos ainda não totalmente conhecidos, Gregório exibe um profundo conhecimento e
interesse na medicina, em suas obras referências médicas são comuns.
[30]
A divisão em versículos não existia na Bíblia de Gregório, mas eu introduzi o termo para facilitar
a compreensão.
[31]
O texto da Septuaginta utilizado por São Gregório é bastante diferente das traduções do
Hebraico.
[32]
João Batista, cf. Lc 1, 17; Mt 11, 11.
[33]
João Evangelista, ou o Teólogo.
[34]
O último versículo não está no original hebraico e consta somente das edições da septuaginta. Na
edição crítica de Rahlfs ele está na ordem diferente, antecedendo a primeira parte (fornecendo
alimento às bestas). E, além disso, Gregório lê de maneira diferente da tradicional. Os tradutores
entendem escravidão (δουλεία) de um modo figurado, no sentido de “serviço”. Já Gregório aproveita
o sentido literal para o seu argumento.
[35]
Esse é o sentido primeiro de diabolos, que gerou a palavra “diabo”.
[36]
Utilizo a tradução da Bíblia de Jerusalém para deixar mais clara a argumentação de Gregório.

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