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qualquer outra forma que não a publicada.
ISBN: 978-85-45581-00-0
Editora Paideusis
Fontes Cristãs
Petrópolis, Rio de Janeiro
Brasil
contato@editorapaideusis.com
www.editorapaideusis.com
Comentário ao Pai Nosso
Petrópolis
2018
Editora Paideusis
Sumário
I O Pai Nosso na Igreja Antiga
II Vida e posteridade de São Gregório
Resumo das Homilias
Gregório, Bispo de Nissa
Sobre o Pai Nosso
[p. 20] Homilia 2
Homilia 3
Homilia 4
Homilia 5
I O Pai Nosso na Igreja Antiga
Vida
São Gregório de Nissa nasceu em uma família da aristocracia rural
da Capadócia, região localizada no interior da península da Anatólia, hoje
na Turquia. Durante a Antiguidade, a Capadócia era uma região limítrofe
em aspectos culturais, apresentando uma aristocracia helenizada — fato
sobre o qual o próprio Gregório dá um eloquente testemunho — e um
restante da população semi-helenizada, falante de línguas locais que hoje
não mais existem. Ainda assim, mesmo essa aristocracia helenizada
carregava traços da rudeza de sua região de origem: os capadócios na
Antiguidade possuíam um sotaque característico e eram considerados povos
brutos. [1]
De modo geral, a Capadócia era uma região afastada do mundo
mediterrâneo com o qual frequentemente lidamos ao estudar a Antiguidade.
Com efeito, era uma região de parca urbanização, a rigor contendo uma
única cidade, a cidade de Neocesareia, ou simplesmente Cesareia, a atual
Kayseri, com o restante da população vivendo em vilas e aldeias que
pontilhavam a região, sobretudo ao longo do vale do rio Hális. As
distâncias de viagem do interior da província para os grandes centros do
mar Mediterrâneo eram longas, o frio do inverno impossibilitava até mesmo
a viagem por grandes períodos do ano, pois a neve fechava as passagens das
montanhas que impediam a comunicação com o litoral, acentuando ainda
mais esse isolamento dos grandes centros.
Essa região, contudo, vivenciou ao longo do século III uma rápida
cristianização e já se encontrava bastante cristianizada no início do século
seguinte. Prova disso se vê nas quatro grandes figuras da Capadócia que
conhecemos e que são oriundas de famílias cristãs: os irmãos Basílio e
Gregório, seu colega Gregório de Nazianzo e o líder intelectual dos arianos,
Eunômio de Cízico. Especificamente no caso do Nisseno e de seu irmão,
eles são cristãos de terceira geração, visto que sua avó já havia sido
convertida.
Como era de costume, Gregório obteve a formação tradicional em
retórica, que se esperava de qualquer cidadão de origem aristocrática no
império romano, da Grã-Bretanha ao Egito, da Espanha à Síria. Gregório,
contudo, não se deslocou até um grande orador, mas aprendeu com seu
irmão Basílio, que foi pupilo em Atenas e Constantinopla de dois dos
oradores mais famosos de sua época: Himério e Libânio. Não sabemos
muito mais que isso sobre a formação de Gregório, mas ao longo de sua
obra ele demonstra total domínio da técnica sofística e do dialeto ático da
língua grega — marcas distintivas da formação retórica do período. Além
disso, Gregório demonstra um amplo domínio da cultura filosófica do
período, dialogando com autores como Platão, Aristóteles, Plotino e os
estoicos, quase sempre de modo implícito e nunca citando nominalmente.
Como Gregório adquiriu esse conhecimento, que é superior, pelo menos em
profundidade, ao de seu irmão Basílio, é uma questão ainda sem resposta.
Outra questão sobre a educação de Gregório, que está envolvida em
um mistério ainda maior, é de onde ele obteve sua formação médica, pois
seu pensamento está em extenso diálogo com a tradição médica grega e
praticamente não há obra sua que não contenha algum tipo de analogia com
a medicina, com uma profundidade inexistente em outros autores. Alguns
até propuseram que ele tenha praticado medicina em algum momento de
sua vida, mas não temos nenhum indício disso.
Durante algum tempo Gregório praticou a retórica e foi professor da
disciplina. Imagina-se também que ele tenha sido casado e talvez até tenha
tido um filho, mas essas questões são totalmente conjecturais. No entanto,
sua irmã Macrina foi responsável por fazê-lo dedicar-se mais e mais à vida
cristã, culminando no abandono de suas ocupações seculares. Por fim, ele
foi designado pelo seu irmão para presidir a pequena diocese de Nissa, uma
localidade rural da Capadócia que viria a ficar famosa quase
exclusivamente por causa desse novo bispo, hoje não sabemos sequer onde
ficava essa localidade, que não devia ser mais do que uma pequena vila.
São Gregório, como muitos outros homens da Igreja de seu tempo,
viveu os altos e baixos da vida eclesial do quarto século. Chegou a ser
expulso e exilado da sua diocese em virtude das lutas entre arianos e
nicenos — partido que ele e seu irmão defenderam vigorosamente. O ponto
alto de uma vida com poucos eventos foi sua participação no Concílio de
Constantinopla, onde brilhou nos debates cristológicos e, graças a seus
dotes oratórios, na oração fúnebre a Melétio, ajudando seu partido na
consolidação da doutrina cristológica exposta em Niceia.
Não se sabe a data da morte de São Gregório. Sabe-se que a última
referência a ele vivo data de 396, e essa data tende a ser aceita como a data
de sua morte.
Uma vida relativamente tranquila — sobretudo se comparada à de
seu irmão, Basílio, e de seu homônimo e conterrâneo, Gregório de
Nazianzo — mostra-se agitada somente em sua extremamente produtiva
obra literária. Gregório de Nissa é, de fato, um dos mais prolíficos
escritores do Cristianismo antigo, perpassando muitos gêneros literários.
Sua obra de maior fôlego é a grande polêmica Contra Eunômio, em três
livros, onde ele refuta o pensamento neo-ariano de um eminente heresiarca
também da Capadócia que já havia polemizado com seu irmão. Além disso,
São Gregório possui uma ampla gama de opúsculos dogmáticos, sermões e
cartas. De grande importância são suas obras de caráter ascético; Gregório
não parece ter praticado a ascese ou ter entrado seriamente na vida
monástica, mas tem grande importância no desenvolvimento da teologia do
ascetismo cristão. Nessa categoria encontram-se tratados como Sobre a
Virgindade.
Gregório também foi um dos primeiros a praticar a hagiografia, com
dois textos de central importância no desenvolvimento desse gênero, as
vidas de Macrina, sua irmã, e de Gregório Taumaturgo, figura central na
cristianização da Capadócia e também influente na introdução do
pensamento de seu mestre Orígenes na sua região natal. Por fim, sua obra
exegética é extensa e rica. Ele produziu comentários ao Pai Nosso, às
Beatitudes, às Inscrições dos Salmos, ao Eclesiastes, ao Cântico dos
Cânticos. Além disso, possui obras de caráter exegético também na Vida de
Moisés e duas obras dedicadas à interpretação dos primeiros capítulos do
Gênesis: Da Criação do homem e Hexaemeron.
A obra exegética de São Gregório de Nissa é marcada pela grande
influência de Orígenes — que ele chega a citar textualmente. O sinal
característico da exegese do sábio alexandrino é a alegoria, ou seja, a
interpretação de passagens bíblicas como possuindo um significado
diferente do literal. A despeito da brevidade deste texto, vemos exemplos
desse método alegórico em muitas passagens, mormente quando ele diz
rejeitar a “interpretação literal”, ou a “leitura mais óbvia”.
Ao contrário de Orígenes, contudo, Gregório não demonstra grande
interesse por questões filológicas que dizem respeito ao estabelecimento do
texto e os refinamentos da língua hebraica, muito pouco disso está em seu
discurso. Em compensação, os princípios característicos da retórica antiga
aparecem a todo momento em seu texto, bem como as preocupações de
caráter mais filosófico tendem a prevalecer na sua exegese.
Posteridade
A fortuna crítica de São Gregório de Nissa é uma história de
mudanças e transformações. Mesmo em vida ele ficou à sombra de seus
conterrâneos Basílio e Gregório de Nazianzo, pois ambos obtiveram grande
fama e influência em vida, sendo elementos fundamentais nas controvérsias
teológicas do quarto século. De fato, São Basílio foi um bispo enérgico de
Cesareia — cidade principal da região da Capadócia — e um feroz
polemista e debatedor nas querelas arianas de sua época; já São Gregório de
Nazianzo ascendeu a um dos cargos mais elevados da Igreja: o de Patriarca
de Constantinopla, que à época era a capital do Império Romano e o grande
centro de todas as disputas religiosas do período.
Por seu turno, Gregório de Nissa teve uma vida de pouca evidência,
pois não teve uma carreira eclesiástica brilhante como seu homônimo que
saiu de Nazianzo – uma vila tão insignificante quanto Nissa – para a capital
do império. Também ele não teve uma carreira de profunda atividade
eclesiástica como seu irmão. Por certo, uma mostra significativa de sua
relativa obscuridade em vida é o fato de não sabermos a data de sua morte,
em comparação, por exemplo, aos diversos elogios fúnebres existentes para
a figura de seu irmão Basílio.
Venerado como santo ao lado de seu irmão e de seu homônimo,
Gregório sempre gozou de uma posição de menor destaque. Efetivamente,
são poucas as igrejas dedicadas a ele e mesmo na tradição iconográfica ele
não é figura frequente, isolado de seus colegas mais famosos. Dentro da
tríade de padres capadócios, tradicionalmente Gregório de Nissa ocupa um
terceiro lugar distante de Basílio — conhecido como São Basílio, o Grande
— e Gregório de Nazianzo — cuja fama também ascendeu a ponto de ser
chamado no Oriente de São Gregório, o Teólogo, alcunha compartilhada
exclusivamente com o autor do quarto Evangelho.
Isso não significa, contudo, que ele tenha passado totalmente
despercebido por esses muitos séculos que separam sua morte dos dias
atuais. Na verdade, sobretudo no Oriente grego, muitas de suas reflexões
foram retomadas por autores como São Máximo, o Confessor, e Gregório
Palamás, e tornaram-se elementos fundamentais da teologia oriental. Além
disso, a diversidade de manuscritos de suas obras testemunha que ele
sempre foi lido no mundo de fala grega.
No Ocidente, todavia, dada a inexistência de traduções antigas para
o latim, ele passou quase toda a Idade Média totalmente ignorado, e foi
apenas graças aos humanistas gregos do renascimento que sua obra
começou a ser descoberta; mas em outras línguas, como o siríaco, o
armênio e o georgiano, ele foi traduzido bissextamente — dessa maneira, a
influência da teologia do Nisseno foi sentida nas igrejas dessas tradições.
No entanto, em pelo menos um ambiente essa posição foi
completamente transformada a partir do momento em que suas traduções
surgiram no Ocidente: a Academia. Com efeito, a publicação da Patrologia
graeca de J-P Migne no século XIX permitiu uma veloz popularização de
textos dos padres gregos da Igreja que eram virtualmente desconhecidos do
público ocidental. Consequentemente, em virtude de sua sofisticação e de
seu diálogo com a tradição filosófica grega os estudiosos modernos
passaram a demonstrar um grande interesse nas reflexões de São Gregório
de Nissa.
Assim, em pouco tempo, Gregório de Nissa passou, pelo menos na
Academia, de ser o irmão menor de São Basílio para ser um dos mais
estudados dos padres antigos. De fato, alguns dos helenistas mais
importantes dos últimos tempos se dedicaram ao estudo da obra de
Gregório, nomes como Ullrich Wilamowitz von Mölendorff, Henri-Irenée
Marrou e Werner Jäger. Este último, inclusive, foi o responsável pela edição
completa de sua obra, realizada pela editora Brill, o que torna Gregório o
padre antigo mais bem editado, o único a gozar de uma edição crítica
contemporânea que no momento está quase completa, à frente até de
autores como Santo Agostinho.
Além disso, a maior parte dos teólogos que se dedicaram de algum
modo ao estudo dos padres gregos beberam profusamente de seus textos;
nomes como Hans Urs von Balthasar, Jean Daniélou, Henri de Lubac, entre
outros, escreveram estudos dedicados à sua obra. Por fim, mas não menos
importante, a obra de São Gregório de Nissa tem adquirido importância
cada vez maior na vida eclesial, ao menos do ocidente. Com efeito, seus
textos aparecem com uma frequência cada vez maior nas novas edições do
Breviário, e ele tem sido extensamente citado em obras como o Catecismo
da Igreja Católica, o Compêndio de Doutrina Social e outros textos
eclesiásticos.
No Brasil, em Portugal e nos demais países lusófonos, contudo, essa
crescente evidência da obra de São Gregório de Nissa ainda não foi sentida.
Verificamos uma rara quantidade de estudos sobre o autor somada a uma
ainda menor quantidade de traduções de sua obra. Com efeito, encontramos
traduções de poucos de seus textos em nossas livrarias reais e virtuais. O
propósito do selo Fontes Cristãs consiste justamente em fornecer mais
traduções dos padres e, assim, introduzir seu pensamento em nossa vida
intelectual e eclesial.
Resumo das Homilias
A primeira homilia
Como dito, a primeira homilia é devotada à definição da oração,
sua importância e o que se deve e não se deve pedir. Nesse texto, ele não
comenta nenhuma particularidade específica da oração do Pai Nosso, pois
seu fim e seu interesse é apenas o de definir a utilidade e os fins da prece.
Segundo São Gregório, a oração está esquecida pelas pessoas na vida, pois
todos consideram suas ocupações momentâneas mais importantes e deixam
essa atividade em segundo plano.
A palavra que se destaca nessa passagem é spoudé. Esse termo, cujo
primeiro significado é “pressa”, adquire um valor quase técnico na obra de
Gregório de Nissa. Ela indica principalmente o sentido de “esforço” ou
“ocupação”. Quase sempre se refere à ocupação voltada para os assuntos
que estão distantes de Deus, ou seja, as ocupações deste mundo terreno em
oposição ao mundo divino. No Comentário ao Eclesiastes, por exemplo, a
spoudé está intimamente ligada à vaidade, que é constantemente oposta ao
trabalho de Deus. Ou seja, as ocupações momentâneas, essa pressa da vida,
as spoudaí, são, na visão de São Gregório, um grande entrave para o
encontro de homem com Deus.[5]
Essa preocupação com o momentâneo é que, na opinião de São
Gregório, dá entrada ao pecado no mundo. A oração consiste tanto em dar
importância menor às ocupações quanto em pedir o auxílio de Deus em sua
vida. Por meio da oração os assuntos cotidianos são resolvidos da melhor
maneira possível, sem permitir que pecado entre na vida dos homens.
Assim, é por meio da oração que toda boa ação se concretiza de maneira
proveitosa.
Para concluir essa primeira discussão sobre a utilidade e função da
oração, Gregório compôs um hino, mostrando como em toda ocasião da
vida — na paz e na guerra, na virgindade e no casamento, entre os que
dormem e os que estão acordados — ela se faz presente e permite que a
ação seja concluída de modo mais proveitoso.
Em seguida, São Gregório define que a oração é uma retribuição da
criatura ao Criador em agradecimento aos bens concedidos. No entanto,
esses bens que Deus oferece são em excesso e, como a cada momento
somos agraciados, não seríamos capazes de retribuir as graças presentes
nem mesmo se rezássemos a todo tempo, pois, ainda assim, ficaríamos
aquém por conta dos bens passados e dos bens futuros. A conclusão, que
Gregório não chega a deixar manifesta, é de que devemos realizar a oração
a todo tempo.
Ao se aproximar do texto do Pai Nosso, do qual ele vai se ocupar no
resto da homilia, Gregório lembra o texto imediatamente anterior no
Evangelho segundo Mateus, quando Cristo rejeita o “palavreado”
(battologia) dos gentios. Gregório procede, então, para uma exegese do
sentido dessa palavra, um neologismo do texto bíblico; ele antepõe a
palavra (logos) e o palavreado (batto-logos); a primeira, uma palavra com
propósito; a segunda, apenas uma fala sem sustento, sem fim e objetivo.
A interpretação que se faz não é aquela que se poderia ter
inicialmente, isto é, de que o palavreado é apenas uma repetição mecânica
de palavras e expressões. Na verdade, Gregório interpreta o palavreado de
duas formas: a primeira é o pedido insensato, como ele nota sobre as
crianças que sonham com possibilidades absurdas e impossíveis, como
renascer, voar, tornar-se estrela e outras fantasias. A segunda, e mais séria, é
o pedido para prejudicar o adversário.
Esse recurso da oração para o ganho pessoal é visto por Gregório
como uma afronta a Deus. A grande questão que se enxerga é que ele pede
para Deus compartilhar da ira e do ódio. Ora, para a visão bastante
neoplatônica que nosso autor possui da divindade, isso é impossível, porque
a Divindade é, nessa visão, a própria definição de impassibilidade — isto é,
de não sofrer nenhum tipo de afecção — portanto, exigir que o Ser
impassível por excelência se torne irado com alguém é rebaixar a posição
de Deus. É um sacrilégio.
Gregório então tenta responder a uma objeção que ele mesmo
formula, pois existem na Bíblia diversos momentos em que há pedidos
explícitos pelo prejuízo dos inimigos. Como ele acabara de dizer que pedir
o malefício é um sacrilégio, nota-se que essa objeção é uma questão séria
para sua doutrina da oração.
A solução a que se chega é o primeiro exemplo de interpretação
alegórica. São Gregório é, de fato, um dos grandes expoentes desse tipo de
exegese e aqui está um exemplo bastante típico desse procedimento. Os
pedidos contra os inimigos são lidos como uma personificação do pecado e
da maldade — o exemplo mais claro é o do profeta Oseias, que, ao pedir
entranhas estéreis e seios secos (Os 9, 14) é interpretado como as entranhas
e os seios do pecado que estejam secos. Da mesma maneira, todos os
ataques aos pecadores e inimigos são lidos como lutas contra o pecado e os
demônios. Dessa maneira, Gregório preserva sua doutrina sobre a
impassibilidade de Deus diante do exemplo bíblico.
Por fim, a última questão tem a ver com os pedidos por bens
materiais. Segundo Gregório, esses pedidos não são totalmente condizentes
com Deus, afinal, graças à sua visão platônica, os bens espirituais são
absolutamente superiores aos físicos, e nestes estão contidas as riquezas e
as honrarias. No entanto, em diversas passagens das Escrituras encontram-
se orações pedindo esse tipo de graças. Gregório explica essas graças como
uma espécie de pedagogia que mostra o poder de Deus e vai educando os
fiéis para pedirem bens maiores e mais importantes.
Segunda homilia
A segunda homilia inicia-se com uma comparação entre as duas leis, entre o
Antigo e o Novo Testamento. Esse mesmo esquema irá se repetir no início
da terceira homilia. O conceito que está por trás dessas duas passagens é a
noção de “tipo”. No Cristianismo da Antiguidade, os acontecimentos do
Antigo Testamento são considerados “figuras” (eikónes) ou “marcas”,
“tipos” (typoi) dos acontecimentos do Novo Testamento, ou seja, o Antigo é
uma prefiguração do Novo. Assim, acontecimentos como Jonas ficar três
dias dentro da baleia são vistos como uma prefiguração da ressurreição de
Cristo; o Tau marcado nas casas dos hebreus, no Êxodo, uma prefiguração
da Cruz de Cristo, e muitas outras.
Esse modo interpretativo é uma das marcas características do
Cristianismo antigo. De fato, seu primeiro praticante, que acabou por se
tornar uma espécie de “padroeiro” da intepretação tipológica dos
Testamentos, é o próprio apóstolo Paulo. Com efeito, em muitas passagens
ele manifesta essa noção de que o Antigo Testamento é uma imagem do
Novo: [Adão] é figura [typos] daquele que devia vir (Rm 5, 14), esses fatos
aconteceram como exemplos [typoi] para nós (1Co 10, 6), isso foi dito em
alegoria [allegoroúmena] (Gl 4, 24). Desse modo, essa visão de que o
Antigo prefigura o Novo Testamento está muito bem sedimentada no
pensamento cristão.
À vista disso, Gregório mostra sua leitura tipológica de dois eventos
dos dois Testamentos: a subida de Moisés ao monte Sinai e a preparação do
encontro com Deus diante da oração. De modo interessante, embora seja
ainda uma leitura tipológica, a comparação é menos com algum aspecto
textual do Novo Testamento, e mais com as consequências da vinda de
Cristo.
O que há de comum entre os trechos é que os dois eventos são
encontros com a divindade. Moisés sobe ao Sinai para falar com Deus; o
homem que se prepara na oração também se prepara para falar com Deus.
Mas a partir daí as diferenças são marcadas por Gregório: na oração não é a
subida do monte que faz a aproximação com Deus, mas ao contrário, é o
céu que vai ao encontro do orante; não é dada a uma pessoa — como fora a
Moisés — a tarefa do encontro com Deus, mas a toda pessoa; a purificação
não é feita por fontes de água alheias, mas das “fontes dos olhos”, ou seja,
as lágrimas. Em suma, aquilo que antes era difícil e misterioso torna-se
acessível a todos a partir da Lei de Cristo.
Prece e oração
Em seguida vem uma passagem de difícil compreensão e tradução.
Gregório faz a distinção entre eukhé e proseukhé, que verti como “prece” e
“oração”. O motivo principal é que, no texto que imediatamente precede o
Pai Nosso (Gregório ainda não começou a exegese da oração propriamente
dita) apresenta a segunda palavra: hótan proseúkhesthe, “quando orardes”
(Mt 6, 5). Com essa discussão, o autor busca precisar o significado da
oração.
Em grego clássico, mas não em todos os dialetos da Antiguidade,
essas palavras são basicamente sinônimas. Na verdade, são tão sinônimas
que em muitos lugares desse tratado as edições críticas se confundem
quanto ao uso de cada uma das palavras. O texto de Migne, por exemplo,
tende a apenas usar proseukhé, e mesmo as edições de Callahan e
Boudignon-Cassin apresentam divergências em alguns lugares.
Contudo resta uma diferença básica entre esses termos que consiste
no fato de que eukhé pode significar também “promessa” — é com esse
sentido que Gregório interpreta as ocorrências bíblicas do termo. A maioria
é do Antigo Testamento, e, como ele utiliza o texto da Septuaginta, é difícil
para nós, que majoritariamente lidamos com traduções do Hebraico,
perceber nos nossos textos essa variância de sentido. Porém, a noção que
Gregório retira dos termos é que, em primeiro lugar, faz-se uma promessa e,
quando ela é atingida, dirige-se à oração em agradecimento.
Pai
Finalmente, São Gregório adentra na exegese da oração. E ele começa com
uma discussão sobre o termo “pai”. Para compreender melhor o significado
e o que Gregório quer dizer com sua exegese temos de estar cientes das
profundas influências neoplatônicas que cercam o autor. Com efeito,
embora seja difícil saber se São Gregório chegou a estudar filosofia
formalmente, isto é, com um professor da disciplina, é bastante evidente
pelas suas obras que ele leu com grande avidez tanto Platão quanto autores
que se influenciaram em Platão. Isso se revela sobretudo na sua preferência
pela imagem da ascensão para identificar a aproximação do homem com
Deus. Nessa passagem ele identifica chamar Deus de “pai” com uma subida
do plano terrestre até o céu e além. Essa imagem é bem característica da
Antiguidade, visto que a ciência antiga imaginava que o mundo terrestre era
exclusivamente o mundo da decadência e do passageiro e que além da Lua
estava o mundo da incorruptibilidade e da estabilidade, em um estado,
consequentemente, quase divino. Além desse mundo encontra-se a
realidade última de Deus. De acordo com esse pensamento, a metáfora da
ascensão já está presente no Fedro de Platão (246 a) e torna-se um ponto
comum da filosofia neoplatônica, sendo especialmente cara a Plotino.[6]
Dessa maneira, o neoplatonismo enxerga a divindade como algo
totalmente transcendente a esse mundo. Da mesma maneira, a realidade
humana é vista por Gregório como totalmente diferente da natureza divina.
Por isso a expressão “pai” é vista quase como um paradoxo, dado o
afastamento das duas naturezas.
Com efeito, Gregório afirma que é necessária uma grande
preparação para se fazer essa aproximação, porque a pessoa que não é pura
e, de modo contrário, vive no erro ao chamar “pai” na oração — não invoca
o pai celeste, mas, como ele diz, o subterrâneo, ou seja, o Diabo. Todo
cristão, portanto, deve se esforçar para se tornar digno dessa apelação por
meio da perfeita preparação do orante.
Em seguida, como um contraponto a essa visão, Gregório insere um
tema importantíssimo da sua teologia e que marca uma quebra, de algum
modo, com esse afastamento entre as duas naturezas. Agora ele se ocupa
com a localização, os céus. O ponto mais importante nessa discussão é que
o céu é visto como a pátria originária do homem, um tema caríssimo a
Orígenes do qual São Gregório faz uma leitura ortodoxa.[7]
Essa passagem serve como uma interpretação alegórica da parábola
do filho pródigo. Com efeito, Gregório identifica esse texto com a história
da raça humana que foi criada com Deus no Paraíso, mas o abandonou. O
homem hoje está afastado de Deus, mas ele pode se arrepender e retornar à
sua pátria celeste. O afastamento entre Deus e homem não é espacial,
portanto, esse retorno, como Gregório bem nota, pode ser realizado
instantaneamente, bastando o reconhecimento e a escolha de se afastar do
mundo terrestre. Com isso ele indica o mal.
Assim, nessa homilia os temas filosóficos caros ao Nisseno
manifestam-se de modo claro. Em primeiro lugar, há uma distância muito
grande entre o homem e Deus, em virtude da diferença de natureza. No
entanto, essa distância não é espacial, e, dessa maneira, pode ser transposta
imediatamente, quando o homem recusar e se afastar do mal.
Terceira homilia
A terceira homilia começa de modo semelhante à segunda. Gregório
estabelece uma interpretação tipológica do Antigo Testamento. Neste caso,
ele é ainda mais evidente, ao citar uma passagem bíblica da Carta aos
Hebreus que já explicita esse modo de interpretação.
A homilia começa com uma descrição da indumentária do sacerdote
levítico quando ele vai se dirigir ao Tabernáculo e ao Santo dos Santos, em
seguida, ele retoma toda essa descrição e a interpreta em relação à
economia do Novo Testamento. Jesus deixa de conduzir uma única pessoa e
permite que todos tenham parte nesta graça – um tema que já havia
aparecido na homilia anterior. E o adorno deixa de ser um formado por
elementos alheios à pessoa, mas cada item da indumentária recebe um
correspondente moral: as virtudes no lugar da túnica, a consciência no lugar
do ouro, os mandamentos no lugar das pedras e tudo que se segue. Por fim,
o santuário deixa de ser um lugar físico e passa a ser o pensamento do fiel e,
no lugar de uma vítima alheia, a própria pessoa se oferece como sacrifício.
Então Gregório usa o restante da homilia para interpretar os dois
pedidos subsequentes da oração. Uma primeira questão que ele coloca é
que, à primeira vista, esses pedidos não são os que se esperaria;
normalmente, diz Gregório, espera-se que a pessoa que luta neste mundo
contra o pecado tenha outro tipo de pedido e, com efeito, ele menciona
várias passagens dos Salmos com preces mais condizentes a essa situação.
Mas, na sua opinião, esses dois pedidos têm um significado mais profundo,
que indica que o homem é fraco para o bem e necessita antes da aliança
com Deus.
O primeiro desses pedidos, Santificado seja vosso nome, é
interpretado de maneira bastante peculiar a São Gregório. Ele foca a leitura
na ideia de que a pessoa que professa ser cristã vai indicar por meio de suas
ações aquilo que a religião professa. Porém, se essa pessoa vive uma vida
ruim, cheia de pecados, sua religião vai ser vista pelos pagãos como se
preconizasse os pecados que ela comete. Dessa maneira, o cristão que tem
uma vida ruim pode ser visto como um blasfemador do nome de Deus.
Portanto, pedir santificado seja vosso nome significa pedir para que a vida
do cristão seja uma glorificação do nome de Deus, ou seja, é um pedido
para que as ações do cristão sejam condizentes com Deus.
Já o segundo pedido, Venha a nós o vosso Reino, tem uma
interpretação mais alongada e complexa. No primeiro momento, Gregório
considera que deve ser interpretado como um pedido para que se efetue o
domínio do Senhor, porque não há outra maneira de o homem se afastar do
mal sem a cooperação imediata de Deus.
Mas há uma segunda interpretação que ele tira a partir do Pai Nosso
presente no Evangelho segundo Lucas. Essa apresentação da segunda
versão da mesma oração é surpreendente por uma diversidade de motivos.
Em primeiro lugar, Gregório ainda não havia se ocupado dessa oração e em
nenhum momento ele busca harmonizar ambas e colocá-las em comparação
senão aqui. Isso mostra como nosso autor está distante de ser um exegeta
moderno do texto bíblico, pois, ao contrário da maioria das intepretações
modernas, sejam elas piedosas, tradicionais, modernistas ou críticas,
Gregório demonstra praticamente nenhum interesse no contexto da
passagem e em suas relações com outros textos. Com efeito, trata-se de uma
maneira de ver o texto bastante diversa da moderna.
Além disso, ao observar o texto bíblico que possuímos, podemos
perceber que não consta o versículo citado por São Gregório. A tradução da
Bíblia de Jerusalém segue fielmente o texto grego e apresenta venha o teu
Reino, e todas as outras traduções a seguem de modo mais ou menos literal,
mas aqui o Nisseno cita “venha o vosso espírito santo sobre nós e nos
purifique”. Na verdade, quando consultamos a edição crítica de referência
do texto do Novo Testamento, a de Nestle-Aland, podemos ver no aparato
crítico que realmente existe a lição e que ela está presente no evangelho de
Marcião – um dos grandes heresiarcas do século II – e em Gregório de
Nissa. Ademais, essa lição está presente em apenas dois manuscritos: o 162
e o 700, e está presente também no texto do comentário de São Máximo, o
Confessor. Mas como são cerca de quatro mil manuscritos ao todo, e, como
já vimos, muitas leituras dos padres da igreja, não são grandes os indícios
em favor dessa leitura.
Embora até haja quem argumente em favor da autenticidade da
leitura proposta por Gregório, de modo geral considera-se que é uma glosa
— isto é, uma explicação à margem, que foi introduzida no texto de alguns
manuscritos, mesmo que isso tenha acontecido bem no início da tradição,
dada sua atestação já no século II. Ou seja, calhou que Gregório recebesse
um manuscrito bíblico que contivesse essa lição bastante singular.[8]
A partir desse mote, Gregório vai iniciar uma discussão dogmática
até o fim da homilia. A questão central é sobre o status do Espírito Santo.
Uma das contendas mais importantes do período consistia na divindade do
Espírito Santo. Na época, havia algumas figuras, chamadas de
pneumatômacos ou macedonianos, que negavam a divindade do Espírito
Santo. Contra eles, São Basílio de Cesareia já havia escrito um de seus
textos mais importantes: o Tratado sobre o Espírito Santo. É contra essa
escola teológica que a passagem é dedicada. A argumentação é a seguinte:
como no Evangelho segundo Lucas o “espírito” aparece no lugar do
“reino”, consequentemente eles são sinônimos — se é assim, não é possível
colocar o Reino na posição de governado, logo, o Espírito é parte da
divindade.
Em seguida, Gregório emenda com uma discussão sobre a natureza
da trindade. Trata-se, talvez, da contribuição mais importante da teologia
capadócia para a história do dogma cristão. Gregório divisa três operações:
obra, ação e potência. A obra de cada um dos elementos da Trindade é
diferente: o Espírito purifica, Cristo faz a purificação, mas a ação é a
mesma: purificar. Se a ação é a mesma, a potência é a mesma e,
consequentemente, a natureza é a mesma. Com isso, Gregório quer provar
que as três pessoas da Trindade possuem uma única Natureza.
A discussão ascende para a identidade de natureza entre Pai e Filho,
que Gregório, como bom teólogo niceno, vê como a mesma. Daí ele afirma
que a Trindade tem uma única natureza, mas Pai, Filho e Espírito Santo,
ainda que com essa mesma natureza, possuem características singulares. A
do Pai é a de existir sem causa; a do filho, é a de vir do Pai; e a do Espírito,
a de proceder do Pai e do Filho.
As pessoas cientes da querela do filioque podem se assustar com
uma afirmação tão categórica de uma disputa tão contenciosa. Não quero
aqui fazer teologia ou discutir um ponto tão complexo e polêmico, mas
apenas expor o que o texto de São Gregório diz. De fato, o texto em questão
não está afastado dessa querela. Com efeito, em uma passagem do texto a
asserção da procedência do Espírito é enunciada categoricamente como
vinda também do Filho. Obviamente, essa afirmação tão forte da posição da
Igreja Romana não passou em branco pelos manuscritos e é possível
identificar na tradição sinais do constrangimento que esse trecho criou.
Todos os manuscritos mais antigos contêm essa lição, em alguns ela aparece
rasurada por uma mão mais recente, e a tradução siríaca também dá
testemunho da sua presença; ou seja, todos os dados textuais apontam tanto
para a existência dessa leitura, quanto para o embaraço que ela cria.[9]
John Callahan, o editor da GNO, preferiu não afirmar a
autenticidade dessa lição e a colocou entre colchetes em sua edição. No
prólogo ele argumenta que essa afirmação não é condizente com a teologia
de São Gregório e cita Werner Jäger e mesmo teólogos romanos como
testemunhas da inautenticidade dessa passagem. Na opinião do editor, essa
leitura falsa foi introduzida em algum momento bem cedo da tradição
manuscrita. Dessa maneira, na versão original desta tradução, antes de
termos recebido o texto crítico de Boudignon e Cassin, adotamos a leitura
excludente, mas, como a nova edição apresenta a passagem sem colchetes,
afirmando categoricamente sua autenticidade, adotamos a leitura da nova
edição. Isso não significa uma posição teológica, apenas fidelidade ao que
os manuscritos apresentam. É possível, de fato, que a lição seja falsa, mas
não temos dados textuais que o provem.[10]
Quarta Homilia
A quarta homilia começa com um outro aspecto característico da obra de
Gregório de Nissa: as comparações médicas. De fato, seu vocabulário e
seus conhecimentos médicos são surpreendentes para alguém que não teve
formação especializada no assunto. É frequente, ao ler suas obras, encontrar
palavras que aparecem somente na literatura técnica e em mais nenhum
outro autor, e praticamente todo texto contém algum tipo de alusão,
comparação ou explicação retiradas da medicina. Assim, houve quem
supusesse que ele teve algum tipo de formação em medicina, mas isso é
altamente improvável. O que é mais plausível é que ele tenha sido um
homem muito lido, mas sem revelar explicitamente essa leitura em sua
obra.
No entanto, a comparação entre saúde do corpo e saúde da alma é
um clássico da patrística. A visão de que Cristo age como um médico nos
homens é uma das marcas tradicionais do Cristianismo antigo. Da mesma
maneira que, na medicina grega antiga, uma pessoa fica doente pela
confusão dos humores no corpo, o homem depois da queda ficou com as
paixões desarranjadas e, assim, caiu doente. Cristo, então, vem como o
verdadeiro médico curar e restaurar a ordem da alma dos homens. Desse
modo, a tarefa do Cristianismo é curar a humanidade “desorganizada” pelo
pecado.[11]
Assim, as virtudes contrárias aos vícios adquiridos na queda agem
como purgantes e restauradores da correta situação. E é como um pedido
para a realização dessa ação que São Gregório interpreta o seja feita a vossa
vontade, pois, de acordo com sua visão, o homem é fraco para a realização
do bem e só consegue fazê-lo com a cooperação divina.
A expressão que completa o versículo, assim na terra como no céu,
é utilizada de mote para exemplificar o universo do Nisseno. De acordo
com seu raciocínio, que está em linha com boa parte do pensamento da
época, pagão e cristão, a vida racional, isto é, dos seres que têm a
capacidade do raciocínio, existe em duas formas: a corpórea, que é
caracterizada pelos homens, e a incorpórea, que, para os cristãos, é
caracterizada pelos anjos (os pagãos aceitavam uma gama maior de seres,
incluindo deuses, demônios, arcontes etc.). Assim, o pedido para que a
vontade ocorra tanto na terra quanto no céu é visto por São Gregório como
um pedido para que todo o universo se conforme à vontade divina.
Essa divisão entre seres corpóreos e incorpóreos emenda
imediatamente na discussão sobre o pão nosso. De fato, uma grande
diferença entre as duas naturezas, a corpórea e a incorpórea, é que a
primeira não tem nenhuma necessidade, ao passo em que, para não morrer,
o homem precisa continuamente de alimento.
Gregório, então, em uma passagem que alude bem claramente ao
seu Comentário ao Eclesiastes, contrasta o pão com toda a série de desejos
luxuosos: ouro, pedras preciosas, prata, rebanhos, liderança política, fama,
glória etc. Ele retoma a mesma imagem que apareceu em seu outro livro: a
serpente como uma metáfora para o prazer, pois este, como o réptil, uma
vez que se insinua em uma fresta, é impossível livrar-se dele. Da mesma
maneira, o homem, quando dá entrada ao mínimo de prazer, escancara toda
a abertura para todos os outros vícios.
De acordo com Gregório, a alimentação é um desses caminhos de
entrada. A partir do luxo na alimentação a pessoa é arrastada a todas as
formas de prazeres possíveis. Assim, a melhor atitude é não dar nenhuma
entrada para o prazer na alma, e o pedido do pão se adequa a esse
pensamento, pois com isso a pessoa se contenta com o que é necessário ao
sustento e não permite que lhe entre no pensamento nenhum prazer que,
como um efeito em cascata, vai produzir sequencialmente os outros.
A homilia se encerra com um comentário sobre o hoje da oração do
Senhor. Segundo Gregório, essa palavra é inserida para mostrar que a
preocupação com o sustento diz respeito apenas ao presente, mas que o
cristão deve se ocupar de mais coisas, com os bens da alma, que são para o
futuro e a eternidade.
Quinta Homilia
A Quinta Homilia se detém mais intensamente na exegese do perdão das
dívidas do que na tentação, que fica para um pequeno apêndice no final.
A exegese desse pedido é talvez a passagem mais original de todo o
texto de São Gregório. Vamos ver as diversas etapas da interpretação. O
primeiro raciocínio diz que, para se aproximar, o homem deve assumir uma
semelhança com Deus, e, como o ato de perdoar os pecados é uma
característica particular da divindade, quem o faz assume de certa forma a
natureza divina. Trata-se do desenvolvimento do conceito de theosis, tão
caro ao cristianismo oriental; ou seja, o caminho da vida cristã é a
assimilação com Deus.
Mas ele avança ainda mais na exegese, porque há uma relação
temporal em que o perdão do pecado que o homem efetua torna-se uma
dívida de Deus com o homem. Ou seja, uma vez que o homem foi capaz de
consumar esse perdão, ele pode, em contrapartida, requisitar o perdão de
Deus de volta, exigindo que Deus imite o homem na ação do perdão.
Gregório está ciente que essa relação não é de igualdade, pois as
transgressões do homem contra Deus são sempre, ele argumenta, maiores
do que a de um homem contra seu irmão, mas o homem faz aquilo que sua
natureza permite.
A partir dessa discussão é elaborada a sua doutrina do pecado
ancestral. Com efeito, ele começa a enumerar toda a série de pecados que o
homem tem contra Deus. Começa falando do afastamento do ser humano
do Criador, a deserção — no original, a metáfora militar é mais explícita —
para o Diabo (Gregório sempre prefere dizer o “Adversário”). Com isso
acarretou o abandono do lar paterno, a corrupção da marca divina e da
imagem de Deus na alma humana. Consequentemente, o homem como
coletividade é punível por essas transgressões.
Com isso em mente, ele comenta passagem do Evangelho sobre o
jovem rico que diz guardar os mandamentos desde a juventude. Uma pessoa
nessa situação pode pensar que não há necessidade de pedir o perdão das
dívidas, mas mesmo os grandes nomes da história bíblica, como Elias,
Pedro, Paulo, João Batista têm a mesma dívida natural. De fato, como todos
os homens abandonaram a morada paterna no Éden, todos partilham da
mesma natureza decaída e, da mesma forma, todos precisam pedir perdão
por suas transgressões. Ou seja, não há homem sem pecado, mesmo os
maiores.
Depois de comentar sobre o pecado comum, Gregório inicia um
longo catálogo sobre as várias instâncias de pecados particulares. Dada a
nossa natureza, com efeito, ele argumenta que é impossível que o homem
não peque de alguma forma. Então ele oferece uma lista baseada nos
pecados suscitados nos sentidos do corpo: olhos, ouvidos, paladar, tato —
curiosamente o olfato não foi incluído nessa lista. Em seguida, ele insere os
pecados da alma, surgidos a partir da vaidade, da arrogância.
Todo esse catálogo de pecados serve para São Gregório afirmar que
a vida humana está completamente imiscuída no pecado e que, por isso,
devemos sempre invocar a Deus o perdão. O pecado contra o homem é
sempre pequeno diante do pecado contra Deus, e para ilustrar isso Gregório
parafraseia a parábola do servo ingrato (Mt 18, 21-35).
Essa lembrança dá o mote para um tema bastante caro na obra do
Nisseno: a condenação da escravidão. Com efeito, São Gregório é
seguramente o autor antigo mais veementemente contrário à escravidão,
sendo, na opinião de um estudioso do assunto,[12] a denúncia mais veemente
da escravidão até o movimento abolicionista na era moderna. A razão que
nosso autor dá é que uma dignidade humana comum existe e que a
escravidão não faz parte da natureza, sim do costume e da lei. Com isso, ele
afirma que a escravidão não faz parte do plano divino.
Por fim, com pouco tempo restante, São Gregório dedica algumas
linhas para comentar o final da oração Não nos deixeis cair em tentação,
mas livrai-nos do maligno. Para o autor, “tentação” é também um nome do
mal. Dessa maneira, “maligno” e “tentação” são sinônimos. A solução para
isso é se afastar do mundo, evitando assim as tentações que surgem nele.
O texto e a tradução
Quando começamos a tradução desta obra, ainda em 2017, havia apenas
uma edição crítica do Comentário ao Pai Nosso, a feita por John Callahan,
que faz parte da Gregorii Nysseni Opera, publicada pela editora Brill em
1992. Essa coleção foi iniciada no início do século XX pelo famoso
helenista alemão Werner Jäger e constitui na edição padrão da maioria dos
textos de São Gregório.
Até então, de fácil acesso havia apenas a edição publicada pelo
padre francês Jacques-Paul Migne, no século XIX. Mas os objetivos de seu
editor eram muito diferentes dos que um acadêmico busca. Com efeito, ele
desejava disponibilizar de modo barato e compreensivo textos dos padres
da igreja para a melhor educação do clero católico francês. Com isso, ele
não empreendeu publicações meticulosas, mas, via de regra, contentou-se
em reeditar textos e traduções antigas. No caso de São Gregório, a edição e
a tradução latina que Migne utiliza é a editio princeps, de Claude Morell,
publicada originalmente na França em 1615, com uma segunda edição em
1638.
Como era de se esperar, a edição de Callahan apresenta enormes
avanços em relação à edição de Morell. Com efeito, o desenvolvimento da
filologia nos quase quatrocentos anos que as separam não é desprezível. A
nova é uma verdadeira edição crítica, isto é, feita por meio da comparação
da diversa tradição manuscrita — os editores renascentistas normalmente
eram obrigados a se conformar com os textos que existiam em suas
bibliotecas nacionais — e fazendo uma seleção filologicamente informada
das melhores leituras de cada passagem. De fato, somente por uma
verdadeira edição crítica podemos chegar a um conhecimento mais preciso
do que o autor quis dizer, pois ela revela as diferentes escolhas que o editor
fez e as possibilidades que a tradição manuscrita oferece. Assim, ela
fornece recursos aos tradutores e estudiosos para compreender a razão
dessas escolhas e aceitá-las ou rejeitá-las.
Mais que na tradição clássica pagã, a tradição textual patrística
exige um trabalho detido. Os motivos são duplos. Em primeiro lugar, os
manuscritos do Comentário ao Pai Nosso de São Gregório citados na
edição de Callahan chegam a 18, enquanto os manuscritos totais chegavam
ao número de 60, hoje sabe-se da existência de mais dez manuscritos.
Apenas por comparação, a edição crítica de Ésquilo elaborada por Gilbert
Murray elenca um total de doze manuscritos, nem todos contendo as sete
tragédias que possuímos dele. Como cada edição exige o trabalho de
comparação minuciosa entre vários manuscritos, o trabalho aumenta muito
em complexidade quando se aumentam as fontes.
Em segundo lugar, a natureza dogmática do cristianismo faz que
muitas vezes haja modificações para harmonizar a palavra de um santo
padre com a posição doutrinal que se considera ortodoxa — pelo menos a
que o copista considerava ortodoxa. Este texto tem um exemplo bastante
espinhoso ao final da terceira homilia, onde São Gregório diz de modo
explícito que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. De fato, nessa
passagem, a tradição textual revela que a partir do século X os manuscritos
têm a tendência de apagar essa referência — inclusive recorrendo a rasuras
em textos mais antigos. Com efeito, é justamente nesse período que a
querela do filioque, isto é, sobre a procedência do Espírito Santo, anima as
disputas dogmáticas entre o Ocidente e o Oriente.
Em 2018 foi feita uma nova edição crítica do texto, preparada por
Matthieu Cassin e Christian Boudignon, publicada pelas Éditions du CERF.
Obtive uma versão prévia deste texto antes de sua publicação, em fevereiro
deste ano. Essa nova edição crítica apresenta, segundo a minha contagem,
240 lições textuais diferentes da edição anterior de Callahan. Na introdução
ao texto explica-se que se adotou um princípio editorial diferente,
privilegiando as lições siríacas e dando mais valor aos manuscritos
considerados “marginais”, chegando a essa grande variação de leituras.
Sem querer adentrar em questões textuais muito espinhosas, as
famílias de texto consideradas mais novas adotaram uma tendência a serem
mais prolixas, ampliando um texto originalmente mais breve. Além disso,
há uma tendência, comentada pelos editores como “plus grégorien que
Grégoire”, de se inserir comentários encontrados em outras obras de
Gregório.
Porém, como a tradução já tinha sido feita e revisada antes da
disponibilização desse novo texto, adotamos uma revisão ulterior onde nos
circunscrevemos a selecionar as diferenças que facilitassem a leitura, mas,
de modo geral, damos preferência à nova edição. Sobretudo na passagem
dogmática ao fim da terceira homilia, as diferenças entre as duas edições
são bastante pronunciadas. Mais importante: Cassin e Boudignon
escolheram não fugir da polêmica e aceitaram a leitura controversa a
respeito da procissão do Espírito Santo, inescapável do ponto de vista da
crítica textual.
Sobre a organização do texto, é importante ressaltar que ele
originalmente era dividido somente em cinco homilias. Essa divisão,
inserida em todos os manuscritos, é ainda marcada com uma doxologia ao
final de cada uma delas. Além disso, não há nenhuma marca divisória nos
manuscritos. A edição de Callahan introduziu parágrafos, sem contudo
fornecer qualquer tipo de numeração ou subdivisão interna. Esses
parágrafos são demasiadamente longos: não é incomum existirem
parágrafos de cinco ou seis páginas. A nova edição de Cassin e Boudignon
usa uma paragrafação mais generosa e insere títulos de seções e sub-seções
para facilitar a leitura. Não seguimos as mesmas divisões da edição dos
franceses, mas adotamos um procedimento parecido.
Por fim, em relação à citação, ainda não há uma maneira universal
de citar a obra de São Gregório. De modo geral duas formas são
consagradas no Ocidente: a primeira consiste em citar as colunas do texto
grego segundo a edição de J-P Migne. Essa opção tem a vantagem de
aproveitar a elevada disponibilidade dessa edição, mas, como explicamos,
trata-se de uma edição bastante antiga e defasada. A segunda consiste em
citar de acordo com a edição da Gregorii Nysseni Opera, que é o modo que
utilizamos. Pois assim, mesmo que se tenha edições distintas, é possível
encontrar a mesma passagem ao se fazer referência a essa paginação. Esse
procedimento é amplamente utilizado para autores antigos, como
Aristóteles e Platão, mas também para autores modernos, como Rousseau,
Kant e Hegel. Para simplificar essa referência inserimos no texto, entre
colchetes, o número das páginas da edição de Callahan. Assim, pode-se
facilmente fazer a referência a partir desse número, lembrando que se trata
do volume 7.2 das obras completas de São Gregório de Nissa.
Gregório, Bispo de Nissa
Sobre o Pai Nosso
Homilia 1
1. Proêmio
[p. 5] O divino Verbo mostra-nos um ensino da oração, através do qual
instrui aos discípulos que buscam com diligência o conhecimento, como
convém tornar familiar o ouvido divino por meio das palavras da prece. Eu,
de modo ousado, adicionaria um pouco ao que está escrito, não porque se
deve instruir a presente assembleia como se deve rezar, mas porque se deve
sempre rezar, algo que os ouvidos da maioria talvez ainda não tenham
recebido. Afinal, esta santa e divina atividade — a oração — tem estado
esquecida e largada na vida da maioria das pessoas.
2. Utilidade da oração
A esse respeito, portanto, parece-me primeiro ser conveniente, o quanto
possível, dar testemunho com a palavra de que se deve sempre perseverar
na oração, como diz o Apóstolo (Rm 12, 12). Quem dera [p. 6] seja
possível dar ouvidos à voz divina enquanto ela nos ensina o modo como se
deve dirigir ao Senhor a prece! Pois vejo que todos se ocupam bastante na
vida presente, uma coisa se sucedendo a outra na alma; mas o bem da
oração não está nos pensamentos dos homens.
O mercador madruga para o comércio, compete com os colegas de
profissão em expor a mercadoria aos compradores para que se antecipe à
necessidade do cliente, e, se adiantando aos outros, vende a mercadoria. Da
mesma maneira também o comprador se adianta ao outro tendo em vista
não perder o negócio e corre não para o sagrado, mas para o mercado.[13] E
assim todas as pessoas têm o mesmo desejo de lucro e competem para
chegar ao próximo, e assim a hora da oração é furtada por causa das
ocupações e trocada pelo comércio.
Assim também é o artesão, assim também as pessoas que se ocupam
das palavras, assim o réu, assim o jurado, cada um está inteiro nos assuntos
concretos de momento e, pendendo para a ocupação, esquece-se do trabalho
da oração, julgando a ofício de Deus um prejuízo para o projeto que está à
sua frente. De fato, o artesão, diante dos assuntos presentes, considera um
negócio demorado e inútil a aliança com Deus, e por isso abandona a
oração e deposita as esperanças em suas mãos, descuidando-se de Quem lhe
deu as mãos. Da mesma maneira, também a pessoa que endireita o discurso
com cuidado não considera quem forneceu a palavra, mas, como se o
colocasse nessa natureza de criador, olha para si mesmo, se devota às
ocupações dos ensinamentos e considera que não advirá nada de bom na
cooperação com Deus, julgando a; ocupação preferível à prece. Do mesmo
modo todos os empregos restantes [p. 7] rejeitam o contato da alma com os
assuntos melhores e celestes pela preocupação com os assuntos corporais e
terrestres.
Por isso o pecado é tão grande ao longo da vida, sempre crescendo
nas esperanças de mais e mais, sempre atingido por todas as ocupações
humanas. Por isso o esquecimento de Deus domina a todos e o bem da
oração não toca junto com os homens suas ocupações. A ganância
acompanha o comércio e ganância é idolatria (Cl 3, 5). Assim, o agricultor
não calcula o emprego no campo com as necessidades, mas sempre estende
a ocupação para ter mais e dá uma grande entrada para o pecado em seu
trabalho, estendendo-se sobre os limites dos terrenos alheios. É a partir daí
que nascem as rivalidades intratáveis: nas fronteiras dos campos as pessoas
indispõem-se umas com as outras, essas também dominadas pela doença
semelhante da ganância. E daí vêm as iras e as inclinações para o mal, e daí
as tentativas de crime e assassinato contra os outros muitas vezes têm
origem. Da mesma maneira as ocupações nos tribunais servem aos
multifacetados pecados, encontrando milhares de advogados para injustiças.
E o juiz ou voluntariamente faz pender a balança da justiça em razão do
lucro ou, involuntariamente, iludido pela habilidade dos que distorcem a
verdade, confirma a injustiça. E quem vai falar dos diversos casos
particulares pelos quais o pecado, de modo complexo e variado, imiscui-se
na vida humana? E a causa disso é nada mais do que os homens não
acolherem a aliança com Deus no lugar das ocupações momentâneas.
6. Os profetas e a oração
Mas a resposta a essa indagação está próxima do sofisma. Pois logo expõem
as falas da profecia para a defesa da maldade deles mesmos: Davi
desejando o desaparecimento do pecador (Sl 91, 8; 103, 35) e pedindo a
vergonha e humilhação dos inimigos (Sl 82, 10; 9, 4); Jeremias desejando
ver a vingança de Deus contra seus opositores (Jr 20, 12); Oséias pedindo
que sejam dados aos inimigos entranhas estéreis e seios secos (Os 9, 14). E
reúnem muitas coisas semelhantes que são encontradas esporadicamente
nas Santas Escrituras, arranjando a necessidade de se rezar contra os
inimigos [p. 15] e de fazer da bondade de Deus cooperante com sua
maldade. Mas quanto a nós, como de princípio, cessemos esse palavreado
vão, levados de tal ímpeto para o lado oposto, exporemos os motivos de
cada uma das passagens lembradas.
2. Prece e oração
É possível, através das próprias palavras da prece, compreender o mistério
divino. Ele diz quando orardes (Lc 11, 2). Não falou “quando fizerdes
preces”, mas “quando orardes”, para obter previamente o que convém no
pedido antes de se aproximar a Deus pela oração. Qual é a diferença entre
as palavras? A prece é a promessa de alguém que se dedica à piedade; já a
oração é um pedido de bens, por meio de súplicas, dedicado a Deus.[19]
Portanto, visto que há uma necessidade de franqueza quando nos
aproximamos de Deus e fazemos nossas súplicas pelo que é correto,
forçosamente a prece procederá para que, depois de nos aperfeiçoarmos,
então nos julguemos dignos de receber o que Deus deseja para nós. Por isso
o profeta diz que: hei de cumprir para ti as preces que [p. 22] meus lábios
enviaram (Sl 65, 13-4) e fazei e cumpri-as ao senhor nosso Deus (Sl 75,
12). Em muitos lugares das escrituras é possível ver esse significado da
prece, a fim de que saibamos que ela é, como está dito, promessa de oferta
em agradecimento. Já a oração indica a aproximação a Deus depois do
cumprimento das promessas. O texto, portanto, nos ensina a não pedir nada
de Deus antes de ofertá-Lo com algo que Lhe seja grato. Primeiro deve-se
dirigir preces, e depois orar, assim, como alguém poderia dizer, a
semeadura deve vir antes da lavoura. Portanto, é necessário primeiro
depositar as sementes da prece e assim, depois que as sementes tiverem
crescido, colher por meio da oração a graça em resposta. Então, como não
haverá intercessão na franqueza se essa aproximação não vier depois de
uma prece e uma graça, então, forçosamente a prece será conduzida antes
da oração.
4. Pátria originiária
Mas ouçamos novamente as palavras da oração — quem dera pudéssemos
ter a compreensão nos recônditos da mente por meio de uma repetição mais
frequente. Pai nosso, que estais no céu. Prova-se por meio das palavras do
começo da oração que é necessário se familiarizar de modo mais ordenado
com Deus na vida de virtude. Parece-me que o texto sinaliza uma
interpretação mais profunda; pois talvez provoque em nós uma lembrança
da pátria da qual caímos e da família da qual fomos expulsos.
De fato, também na narrativa sobre o jovem que se afastou do [p.
27] lar paterno e exilou-se na ocupação de porqueiro, o texto mostra a
desgraça da vida humana ao contar em forma de narrativa o afastamento e a
prodigalidade; e ele o reconduz para a herança que tinha no começo não
antes de tomar consciência de sua desgraça e voltar a si e preparar as
palavras de contrição. Essas têm uma certa relação com as palavras da
oração, pois então ele diz: Pai, pequei contra o céu e contra ti (Lc 15, 21),
ele não insere na confissão o pecado contra o céu sem ser convencido de
que o céu é a pátria que ele ofendeu ao deixar. Por isso o cuidado dessa
confissão faz que também o pai seja acessível a ele a ponto de correr para
ele e saudá-lo com um beijo no pescoço — o que indica a conexão lógica de
quem caiu pela boca ao homem que, pela transmissão do evangelho, sai do
primeiro jugo da lei e a chacoalha para fora de si — e coloca em volta dele
a túnica, não outra, mas a primeira, da qual se desnudou por meio da
desobediência esse homem que se viu nu em todo lado pela prova do
proibido (cf. Gn 3, 7). O anel em volta da mão através da imagem da pedra
indica a retomada da imagem. Ele deixa os pés seguros com as sandálias,
para que não caia na picada da serpente ao se aproximar da sua cabeça com
o calcanhar nu.
Portanto, como então o retorno do filho mais jovem para a casa
paterna tornou-se o motivo da benevolência do pai — o céu é essa casa,
contra quem ele diz ao pai ter pecado — assim, também ali parece que o
senhor nos ensina a invocar o pai no céu e a fazer a lembrança da boa
pátria, a fim de [p. 28], ao produzir um desejo mais veemente das belezas
do céu, colocar você no caminho que leva de volta à pátria. E o caminho
que conduz a natureza humana ao céu não é nenhum outro do que a fuga e
separação dos males terrenos, e o propósito da fuga desses males não parece
ser outro que não a semelhança com Deus. Assemelhar-se a Deus é tornar-
se justo, santo, bom e qualidades semelhantes. Se alguém fizer para si as
marcas disso, à medida do possível, retornará automaticamente, sem
esforço, para a região celeste a partir da vida terrena. Pois a separação entre
o homem e o divino não é espacial de modo a necessitarmos de alguma
máquina ou mecanismo para emigrarmos deste plano carnal e terreno, grave
e pesado, para vida incorpórea e intelectiva; mas ela é intelectual, tão logo a
virtude estiver afastada do mal, depende somente da escolha do homem a
favor do que seu desejo inclinar. Portanto, visto que não há nenhum esforço
em escolher o bem, o sucesso sucede a escolha do que se decidiu, é possível
estar logo no céu, bastando que acolha Deus no pensamento. Pois se, como
diz o Eclesiasta: Deus no céu, tu estás colado a Deus (Ecl 5, 1), é forçoso
que quem está atado a Deus esteja no lugar onde Ele está. Portanto, ao dizer
na oração que Deus é seu pai, ele ordena nada menos do que assemelhar-se
à vida condigna a Deus com o pai celeste [p. 29], como também de modo
mais evidente para todos ele recomenda ao dizer: deveis ser perfeitos como
o vosso pai celeste é perfeito (Mt 5, 28).
5. O espírito é reino
Talvez a expressão seja interpretada de modo mais claro por Lucas:[24] a
pessoa que se julga digna da vinda do reino grita pela aliança com o
Espírito Santo. Pois naquele evangelho se diz, no lugar de venha a nós o
vosso reino, venha o vosso espírito santo sobre nós e nos purifique.[25] O
que dirão quanto a isso as pessoas que são agressivas contra o Espírito
Santo? Com que subterfúgio vão transformar a dignidade do reino em
baixeza de escravidão?[26] Pois o que Lucas chama de Espírito Santo, [p. 40]
Mateus chamou de “reino”, como eles introduzem a ideia de uma natureza
criada do Espírito, assinalando-o como reinado no lugar de reinante? A
criatura é serva, e servidão não é reino. Mas o Espírito Santo é o Reino; e,
se ele é o Reino e governa sempre, não é governado, portanto está afastado
da comunhão da criação. Afinal, o que governa não é governado; e o que
não é governado não é criatura, pois servir é próprio da criatura. Portanto,
se o espírito é o reino, como ele é contado junto com a natureza governada?
Como as pessoas que jamais aprenderam a orar não estão de acordo quanto
ao reino — pessoas que não sabem quem é que limpa e quem sustenta a
autoridade do reino? Venha o Espírito Santo e que ele nos purifique.
Portanto, a capacidade do Espírito Santo é própria e especial e sua ação é
limpar e retirar os pecados. Pois aquilo que é puro e sem sujeira não precisa
de quem limpe.[27]
1. Proêmio
Eu ouvi uma pessoa que pratica a arte médica explicar a natureza da
condição saudável, talvez o que ele disse não esteja fora do nosso objetivo
também no que diz respeito à saúde da alma. Com efeito, ele delimitou o
afastamento do ponto médio dos elementos do nosso corpo como o início e
causa da condição das afecções.[29] E, do contrário, ele disse que a
restauração de volta para a condição normal e natural é a cura da causa da
moléstia. E por isso julgava ser necessário observar qual dos elementos em
desarranjo pela sua predominância deixa desajustada [p. 45] a contribuição
dos outros elementos para a saúde do corpo. Assim, se o elemento quente
predomina é necessário fazer uma aliança com o elemento dominado e
umedecer o elemento seco, para que, pela carência de um dos elementos,
não se perca e apague o calor no corpo por consumir a si mesmo; da mesma
maneira, se algum dos outros elementos que observamos em nós ultrapassar
o limite, é necessário levantar-se contra o que está em excesso, travando
uma aliança da arte médica com o elemento carente. Tão logo essas ações
são feitas e nada impedindo o equilíbrio dos elementos, a saúde é
reconduzida ao corpo e a natureza não mais se dispõe de forma anômala em
seu equilíbrio.
Qual é o propósito desse longo proêmio? Talvez esse exame não
esteja distante do objetivo e tampouco afastado do estudo do momento. De
fato, cabe a nós examinar o versículo[30] Seja feita a vossa vontade. Por
causa disso lembrei-me da investigação da arte médica e quero deixar mais
claro pelo que vou dizer em seguida.
2. Seja feita a vossa vontade
Houve uma época em que natureza humana estava em condição intelectual
saudável, quando seus elementos — falo das afecções da alma — estavam
equilibradamente misturados em nós de acordo com a proporção da virtude.
Mas desde que o elemento desiderativo passou a predominar, a condição
considerada oposta — que é o autocontrole — passou a ser dominada pelo
elemento excessivo, e não havia o que impedisse o movimento desmedido
do desejo para o que não era devido. A partir disso, a doença mortal, o
pecado, estabeleceu-se na natureza humana. O verdadeiro médico das
paixões da alma, que veio à vida dos homens por causa dos que estavam
mal, ao enfraquecer a causa da doença com as intenções da oração, [p. 46]
reconduz-nos à saúde intelectual. O caminho na vontade divina é a saúde da
alma, como, do contrário, afastar-se da vontade divina é uma doença da
alma que termina em morte.
Portanto, visto que adoecemos ao abandonar o bom regime no
Paraíso, quando nos locupletamos além da medida do veneno da
desobediência e, por causa disso, a natureza foi dominada por essa doença
perversa e mortal, veio o verdadeiro médico que cura o mal segundo a regra
da medicina, através dos elementos contrários, e por isso liberta da doença
as pessoas que foram acometidas da moléstia (porque se afastaram da
vontade divina) com a ligação à vontade de Deus. Pois as palavras da
oração são uma terapia da doença que surge na alma.
De fato, ora como se estivesse dominada por dores na alma a pessoa
que diz seja feita vossa vontade. A salvação dos homens é a vontade de
Deus. Então, visto que estamos nesta condição para dizer a Deus “seja feita
também em mim a vossa vontade” é totalmente necessário antes denunciar
aquela vida que estava afastada do desejo de Deus e relatar na confissão
isto: “uma vez que a vontade contrária agiu mal em mim antes na vida e
tornei-me servidor do mau tirano, como um carrasco que cumprisse a
punição do inimigo em meu prejuízo, por causa disso, tende compaixão da
minha perdição e dai que a vossa vontade aconteça em mim. Afinal, como
as trevas desaparecem quando a luz é introduzida na escuridão das
cavernas, da mesma maneira, quando a vossa vontade ocorrer em mim todo
o movimento perverso e equivocado de minha escolha será inexistente”.
Pois a [p. 47] prudência vai apagar o ímpeto desmedido e passional do
pensamento. A humildade consumirá a vaidade; a medida curará a doença
da ambição, o bem do amor expulsará o grande catálogo de males
contrários; tão logo que ele ocorra em nós o ódio se afasta, a inveja, a
cólera, o movimento irado, a condição irascível, a traição, a hipocrisia, o
rancor, o ímpeto de retribuição, o calor do sangue, o olhar vingativo.
Toda multidão de tais males desaparece com a condição amorosa.
Assim a ação da vontade divina expulsa a dupla idolatria — por “dupla”
entendo a loucura pelos ídolos e o desejo de prata e ouro, que a palavra da
profecia nomeou como ídolos dos povos (Sl 113, 12). Então, seja feita a
vossa vontade, para que se apague a vontade do diabo.
Por que oramos para que venha para nós uma boa escolha de Deus?
Porque a natureza humana é fraca para fazer o bem, por ter sido de uma vez
danificada por meio da perversidade. Pois o homem não vai ao mal e
retorna ao bem com a mesma facilidade, como também é possível perceber
esse processo nos corpos, porque de forma não semelhante e não com igual
facilidade o saudável é acometido em doença e o doente fica saudável. Pois
a pessoa enquanto está saudável frequentemente por causa de uma única
ferida alcança o pior dos perigos, um único momento ou ataque de febre
desarranja toda a harmonia do corpo, uma breve prova de veneno provoca a
morte ou por pouco não faz isso, e, por uma picada de um réptil ou por uma
ferroada de um animal venenoso, ou por uma escorregadela, por uma
queda, um ataque de glutonaria em excesso ou por outro acontecimento
semelhante, imediatamente segue-se ou doença [p. 48] ou morte. Mas o
afastamento da doença vem com quantos cuidados e difíceis técnicas
médicas, se é que vem?
Por isso, quando vem a nós o ímpeto para o mal, não há necessidade
de cooperação, visto que a maldade se completa espontaneamente em nossa
vontade; mas se a tendência recai para o bem, há necessidade de que Deus
leve o desejo a termo. Por isso dizemos que “visto que a vossa vontade é a
prudência, eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado (cf Rm 7,14),
com a vossa força que essa boa vontade seja efetuada em mim”. Assim
também a justiça, a piedade, o alheamento das paixões; pois a expressão da
“vontade” compreende todas as virtudes de forma geral, e tudo que se
compreende particularmente por bem é contemplado na vontade de Deus.
5. A serpente
Talvez Moisés pareça-me instruir tais doutrinas por meio de enigmas,
quando colocou a serpente como símbolo do prazer pelo paladar para Eva.
De fato, dizem que este animal — a serpente —, quando introduz a cabeça
na fresta à qual se insinua, não se puxa facilmente pela cauda, pois as
escamas impedem naturalmente o movimento contrário de uma força que
arrasta para trás; e seu avanço é desimpedido quando as escamas se esvaem
na relva, o regresso é impossível, arrastada pelas placas da pele. Com isso,
imagino, o texto mostra que é necessário estar de guarda ao prazer que se
insinua e adentra as costas da alma e a bloqueá-lo o máximo possível de
entrar nas frestas da vida. Pois assim a vida humana ficaria puramente
segura da intromissão das feras. Se conseguisse alguma entrada em nós, e
assim a nossa vida harmoniosa fosse destruída, a serpente do prazer ficaria
de tocaia nos espaços do pensamento, e aí sua expulsão seria difícil por
causa das escamas. Ao ouvir “escamas” deve-se entender por enigmas os
múltiplos ataques dos prazeres.
Em um sentido geral um único animal é a paixão dos prazeres; as
múltiplas e variadas formas de prazer, que se imiscuem por meio dos
sentidos na vida humana, são as escamas em volta da serpente, que
pontuam com a grande variedade de paixões. Portanto, se você quer escapar
da convivência com o animal, tenha cuidado com a cabeça, isto é, a
primeira entrada do mal, [p. 54] é para esse fim que nos leva o enigma do
mandamento do Senhor: Ele terá cuidado com a tua cabeça, e tu terás
cuidado com o calcanhar dele (Gn 3, 15);[31] não dê entrada ao réptil que se
arrasta para o interior e do primeiro começo traz todo o seu volume.
Permaneça no que é necessário; que a saciedade das necessidades seja o
limite da sua preocupação em viver. Se o conselheiro de Eva falar com você
sobre a beleza da visão ou o prazer do paladar, e você buscar em lugar de
pão a iguaria feita por meio de um tal tipo de prazer, em consequência, por
meio disso você estaria conduzindo seu desejo para fora dos limites da
necessidade, nessa hora você veria a serpente se arrastando despercebida e
continuamente para o excesso.
Com efeito, ao se arrastar da alimentação necessária até a gulodice,
vai para o prazer nos olhos, buscando prataria brilhante e servidores
delicados, utensílios de prata, tapetes macios, véus diáfanos e entremeados
de ouro, cadeiras, trípodes, lavanderias, crateras, taças, copos, vasos, bacias,
lanternas, incensórios e coisas assim. De fato, por meio disso o desejo pelo
excesso se introduz. Para que meios para tais desejos não faltem, há
necessidade de rendas pelas quais o que se deseja será adquirido. Portanto é
necessário chorar por tal pessoa e lamentar a associação e muitos tornarem-
se miseráveis por se afastarem da situação natural, para que, por meio das
lágrimas deles, a tragédia da mesa se evidencie. Visto que a serpente se
enrolou com estes desejos e encheu [p. 55] o ventre com essa opinião,
consequentemente vai levar, ao se arrastar e depois de se locupletar, até a
loucura sem limite. E este é o último dos males humanos. Para que nada
disso aconteça, limite a vida com a simplicidade do pão, ao buscar o
alimento feito para ti pela própria natureza. O que é isso? A boa consciência
(cf. 1 Tm 4, 2-3), que dá prazer no pão com a justa compreensão. Se você
quer se comprazer com os sentidos da garganta, que seja seu tempero a
fome e não deixe que a saciedade siga à saciedade e que o apetite se
abrande com a bebedeira. Mas que os suores do mandamento tenham
precedência sobre a alimentação: Com suor e sofrimento comerás teu pão
(Gn 3, 19). Nisso você vê a primeira receita gastronômica do texto bíblico.
6. O pão de Deus
Basta para você ocupar a mente até essa necessidade; melhor nem mesmo
que você ocupe a alma com as preocupações sobre o pão. Mas diga a quem
tira o pão da terra, diga a quem alimenta os corvos, a quem dá alimento a
toda carne, a quem abre a mão e enche todo animal de boa vontade que: De
vós vem a minha vida (Sl 144, 16), que venha de vós também o ímpeto de
viver. Dê o pão, isto é, tenha a alimentação a partir de um esforço justo.
Pois se Deus é justiça, a pessoa que se alimenta a partir da ambição não tem
seu pão de Deus. Você mesmo é senhor da oração. Se a prosperidade não
vem de outros, se a produção não vem de lágrimas, se ninguém passou
fome com a sua saciedade, se ninguém não sofreu com a sua fartura, [p. 56]
este pão é de Deus, o fruto é da justiça, a espiga é da paz, limpa e pura das
sementes do joio. Mas, se ao trabalhar os frutos alheios, tendo nos olhos a
injustiça e controlando com tabuinhas a propriedade injusta; se, ao fazer
isso, você disser para Deus: “dai o pão”, é outro quem vai escutar a sua voz,
não Deus. A natureza adversária colhe o fruto da injustiça; a pessoa que
trabalha a justiça recebe o pão de Deus, o que lavra a injustiça é alimentado
por quem descobriu a injustiça.
Portanto, olhando para sua consciência, dessa maneira eleve a prece
sobre o pão para Deus, sabendo que não há relação de Cristo com Beliar
(cf. 2 Co 6, 15). E se você dá presentes da injustiça, esse presente é
pagamento de um cão e salário de prostituta (Dt 23, 19); se você se torna
famoso por ambição com doações, vai ouvir o profeta enojado com a oferta
de tal origem: que me importam vossos inúmeros sacrifícios? diz o Senhor,
estou farto de holocaustos de carneiros, gordura de cordeiros, sangue de
touros e bodes não quero. O sacrifício, ele diz, é abominação para mim (Is
1, 11). Em outra passagem, quem sacrifica um bezerro é considerado como
quem mata um cachorro. Portanto, se você tem o pão do Senhor, isto é, de
trabalhos justos, é possível viver dos frutos da justiça.
7. Hoje
É bela também a adição de “hoje”. Pois, ele diz, o pão nosso de cada dia
nos dai hoje. Esta expressão é sozinha outra lição de filosofia, para que se
aprenda, pelo que se diz, que [p. 57] a vida humana é efêmera e diária.
Somente o presente é próprio de cada um. A esperança do futuro permanece
desconhecida — de fato, não sabemos o que dia de hoje trará (Pr 27, 1).
Por que sofremos em antecipação pelo que não se sabe? Por que passamos
mal com as preocupações sobre o futuro? Ele diz: a cada dia basta seu mal
(Mt 6, 34); e por “mal” ele entende os sofrimentos. Por que nos afligimos
com o amanhã? Por isso, através da ordem do hoje Ele proíbe que você se
preocupe com o amanhã, ao dizer quase textualmente: “aquele que te dá o
dia também dá o necessário ao dia”. Quem faz o sol girar? Quem faz
desaparecerem as trevas da noite? Quem mostra para você os raios da luz?
Quem faz o céu girar para que o astro luminoso esteja sobre a terra? Aquele
que dá para você tantos e tais bens necessita da sua cooperação para
preencher a sua carne com o que falta de necessário? A natureza dos seres
irracionais dedica quanto de preocupação à própria vida? Quais são as
plantações dos corvos? Quais são os celeiros das águias? A vontade divina
não é um único apoio para vida a todos, por cuja vontade domina tudo? Seja
vaca, burro ou outro dos animais irracionais, eles não têm uma filosofia
autodidata naturalmente, estão bem dispostos no presente e não têm
nenhuma preocupação pelo futuro? Já nós precisamos de um conselho para
compreender a transitoriedade e efemeridade da vida da carne. Não somos
ensinados pelos acontecimentos dos outros? Não somos sensatos com a
própria vida? Em que se alegra o rico de sua grande posse, que se vangloria
com as esperanças sem fundamento, limpando, construindo, ajuntando, se
refestelando, guardando em celeiros por grandes períodos de anos na
vaidade das esperanças? Uma única noite não prova que toda essa
esperança de sonhos [p. 58] é um sonho vão plasmado em vaidade?
A vida do corpo pertence somente ao presente. Já a vida que jaz na
esperança é própria da alma. Mas o pensamento dos homens erra sobre o
uso de cada uma das duas, a vida corporal se alonga com as esperanças, a
vida da alma é arrastada para a fruição dos assuntos presentes. Por isso,
forçosamente havendo e persistindo a esperança, a alma, ao se ocupar das
aparências, aliena a si mesma; apoiando-se nas esperanças sem fundamento
não toma domínio e nem tem essas aparências. Então, que sejamos
ensinados por meio do presente conselho sobre o que é necessário pedir
para hoje, e o que se deve esperar do futuro. O pão é parte da nossa
necessidade cotidiana; e o reino, da bem-aventurança esperada — ao dizer
“pão” compreende-se toda a necessidade corporal. Portanto, se pedimos tal
coisa, fique claro ao pensamento de quem ora que a ocupação centra-se no
momentâneo; mas se é de um dos bens da alma, o pedido visa o constante e
imperecível, para o que mais se ordena aos orantes olharem, como em uma
necessidade maior quando a primeira se consegue. Ele diz pedi o Reino e a
justiça, e todo resto será acrescentado a vós (Mt 6, 33), em Cristo Jesus,
Nosso Senhor, a quem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém.
Homilia 5
Perdoai nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos
devedores.
4. Por que até mesmo os santos têm de pedir perdão pelos pecados?
Mas vamos considerar de modo mais diligente a expressão presente da
oração, quem dera fôssemos acompanhados para a vida elevada através da
compreensão do pensamento! Investiguemos, então, quais são as dívidas
que a natureza humana tem, quais são aquelas de que somos capazes de
perdão. Pois a partir do conhecimento disso poderíamos ter uma
compreensão razoável do excesso dos bens divinos. Portanto, daí façamos a
contagem das transgressões humanas contra Deus. A primeira punição que
o homem deveu a Deus foi porque afastou-se do criador [p. 63] e desertou
para o Adversário, tornando-se um desertor do senhor natural e rebelde; em
segundo lugar, porque trocou a liberdade absoluta pela perversa servidão do
pecado, e preferiu ser tiranizado pela força corruptora no lugar de conviver
com Deus.
Mas ao não olhar para a beleza do criador e se voltar para a fealdade
do pecado, a segunda opção seria escolhida por quem? O desprezo dos bens
divinos e a preferência pelas iscas do mal foi designada a qual porção da
punição? O desaparecimento da imagem, a corrupção da marca divina que
foi plasmada na primeira fundação, a perda da dracma (cf. Lc 15, 8-11), o
abandono da mesa do pai, a familiaridade com a malcheirosa vida dos
porcos (cf. Lc 15, 12-16), a perda da riqueza honrada e tais pecados que se
pode ver através das escrituras e do pensamento. Que valor seria calculado?
Portanto, visto que a humanidade é passível de punição a Deus por tantos e
tais crimes, o texto parece nos ensinar pela lição da oração a de modo
algum ter liberdade na conversa com Deus como se tivesse a consciência
pura, mesmo se estiver afastado o máximo possível dos pecados humanos.
De fato, alguém que foi ensinado nos mandamentos por toda sua vida ao
modo daquele jovem rico, talvez possa se vangloriar da mesma maneira
sobre sua vida e dizer a Deus: tudo isso tenho guardado desde minha
juventude (Mc 10, 20) e [p. 64] supor consigo mesmo que, por jamais ter
errado contra os mandamentos, não se adequa totalmente ao pedido de
libertação das dívidas, porque este somente se ajusta aos que pecaram. Mas,
diz ele, que esta frase somente convém e se faz necessária à pessoa imunda
por causa da luxúria, ou que cai na idolatria por meio da ganância, e a toda
pessoa que está manchada na consciência da alma por algum pecado é belo
e conveniente refugiar-se na piedade. Mas se fosse o grande Elias, ou o
maior dos gerados por mulher,[32] no espírito e na força de Elias, ou Pedro
ou Paulo, ou João[33] ou algum outro dos que deram testemunho do maior
pelas Santas Escrituras, para que usariam dessa expressão que pede perdão
pelas dívidas, pessoas que não têm nenhuma dívida de pecado?
6. Os pecados particulares
Mas isso foi dito como se alguém, ao refletir a leitura comum, interpretasse
o texto que agora examinamos. Se alguém buscar o verdadeiro sentido da
expressão, não julgo que tenhamos necessidade de atribuir o sentido à
comunhão da natureza; pois a consciência do que foi vivido por cada um é
suficiente para se fazer um necessário pedido de piedade. Pois imagino que,
por nossa vida ser vivida de muitos modos, certa vez de acordo com a alma
e a inteligência, outra vez de acordo com os sentidos do corpo, é difícil ou
completamente impossível não ser levado por alguma paixão ao pecado.
O que digo? Uma vez que a vida de fruição corporal [p. 67] é
fornecida aos nossos sentidos, e a vida da alma é observada no ímpeto do
pensamento e no movimento da escolha, quem é tão elevado e nobre de
espírito a ponto de, por meio de ambos os modos de viver, ficar afastado da
sujeira do pecado?
Do pecado dos olhos, quem? Do descontrole do ouvido, quem?
Alheio ao prazer bestial da comida? Quem está limpo do toque pecaminoso
com o tato? Quem não conhece o enigma quando as escrituras dizem que a
morte adentrou por janelas (cf. Jr 9, 20)? De fato, os sentidos, por meio dos
quais a alma, ao espiar os assuntos exteriores concebe a opinião, são
chamados de “janelas” pelas escrituras, que o texto diz abrirem entrada para
a morte. Verdadeiramente, os olhos muitas vezes tornam-se entrada de
muitas mortes, seja vendo alguém irado e ficando influenciado com a
mesma paixão, seja vendo alguém feliz além da medida e inflamando-se em
inveja, ou vendo alguém arrogante e recaindo em ódio, ou vendo alguma
matéria agradável ou uma constituição mais bela quanto a forma e recaindo
no desejo do que lhe agrada.
O ouvido abre as janelas para a morte deste modo: pelo que se ouve
muitas paixões são acolhidas na alma: medo, dor, ira, prazer, desejo,
descontrole do riso e semelhantes.
Já a fruição do paladar é mãe, como se poderia dizer, de males
particulares; de fato, quem não sabe que é praticamente uma raiz das
transgressões da vida o descontrole da boca? Dela dependem o luxo, a
embriaguez, a gulodice, [p. 68] o descontrole sobre a dieta, o fastio, a
saciedade, as festas, a decadência bestial e irracional nas paixões
desonrosas.
Igualmente, o sentido do tato é o último de todos os que causam o
pecado: pois tudo o que se faz no corpo entre os amantes dos prazeres são
doenças do sentido do tato, cujas particularidades seria trabalhoso de se
relatar, e tampouco seria conveniente de se misturar às palavras mais
elevadas as acusações contra o tato.
7. O pecado da alma
O enxame de transgressões na alma e na escolha, que texto seria capaz de
contar? É de dentro, do coração dos homens, que saem as intenções
malignas (Mc 7, 21) e adiciona o catálogo daquilo que nos desfigura. Se,
portanto, as redes dos pecados estão à nossa volta de tal maneira em todos
os lados, por meio de todos os sentidos, através dos movimentos, pelos
movimentos centrais da alma, como diz a Sabedoria: quem há de se
vangloriar de ter um coração puro (Pr 20, 9)? Quem vai estar limpo da
sujeira? (Jó 14, 4) Como Jó dá testemunho.
O prazer imiscuído na vida humana de forma variada e
multifacetada é a sujeira da pureza da alma, por meio da alma e do corpo,
dos pensamentos, dos sentidos, dos movimentos propositais, das ações
corporais. Portanto, quem tem a alma pura desta mancha? Como não foi
tocado pela vaidade, como não foi pisado pelo pé da arrogância, que a mão
pecadora não incitou, cujo pé não correu ao vício; que o olho não sujou com
o desordenado; e o ouvido destreinado não deixou imundo, o paladar não
ocupou para seus fins, e o coração não permaneceu inerte diante dos
movimentos para a vaidade? Portanto, visto que [p. 69] tudo isso de
perverso está em nossa volta, mais difícil para os mais bestializados, mais
suportável aos mais sensatos, sempre e de toda forma se fazem presentes
aos que compartilham a natureza e também a comunhão nos pecados, por
isso, ao nos dirigirmos a Deus por meio da oração, invocamo-nO para
perdoar nossas dívidas.
Contudo, essa expressão é inconsequente e não alcança os ouvidos
divinos se a nossa consciência não está de acordo que a concessão de
misericórdia seja um bem. Pois a pessoa que julga convir a Deus a
benevolência — pois não se dignaria a se aproximar com o inconveniente e
incorreto se não julgasse que conviesse — é obrigado a confirmar com as
próprias obras seu julgamento sobre o que é bom, para que não se escute tal
coisa da parte do Justo Juiz: “Médico, cura a ti mesmo (Lc 4, 23). Tu me
invocas para ser benevolente, algo que tu mesmo não concedes para os teus
próximos. Pedes o perdão das dívidas. De que maneira, então, sufocas o teu
devedor? Tu pedes na oração que seja apagado o contrato contra ti, tu
mesmo que guardas com cuidado os registros dos subordinados. Pedes corte
nas dívidas tu mesmo que faz crescer o empréstimo por meio dos juros. O
teu devedor na prisão e tu na oração? Aquele sofre com as dívidas e você se
digna a pedir o perdão das tuas dívidas? A tua oração não é ouvida, visto
que a voz do sofredor fala mais alto. Se libertares a dívida corporal, também
serão libertas as correias da tua alma. Se perdoares, serás perdoado. Julgas a
ti mesmo, legislas sobre ti mesmo, levando o voto do alto contra ti mesmo
pela disposição com o subordinado”.
[1]
Sobre a região da Capadócia à época de São Gregório de Nissa, ver Van Dam, R. Kingdom of
Snow: Roman Rule and Greek Culture in Cappadocia. Philadelphia, 2002.
[2]
Por exemplo Jeam Daniélou “La Chronologie des sermons de Grégoire de Nysse” Recue des
Sciences Religieuses 29.; Canévet Grégoire de Nysse et l’herméneutique biblique. Étude des rapports
entre le langage et la connaissance de Dieu. Études Augustiniennes 99, 1983; Anthony Meredith
“Origen and Greogry of Nyssa on the Lord’s Prayer” The Heythrop Journal 43 (2002).
[3]
A recente edição das Homilias por Seguin, Cassin e Boudignon (2018) aponta na introdução para
essa datação mais tardia.
[4]
Sobre os sermões de Santo Agostinho e sua composição ver Brown, P. “’Dialogues with the
Crowd’
The Rich, the People, and the City in the Sermons of Augustine” in: Through the Eye of an Needle:
Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the West, 350-550 A. Princeton, 2014.
Sobre Eunômio ver Vaggione, P. Eunomius of Cyzicus and the Nicene Revolution. Oxford, 2003.
[5]
GNO V, p. 281 ss.
[6]
Sobre a ascensão em Plotino ver Brandão, B. “A Noção de Ascensão em Plotino” Dois Pontos
vol. 10, no. 2 2013.
[7]
Embora seja difícil caracterizar o pensamento de Orígenes em virtude do estado fragmentário de
suas obras mais polêmicas e de traduções que não foram totalmente fiéis, parece que o autor
considerava que as almas humanas eram anjos de alguma forma decaídos e que iriam, no fim dos
tempos, ser restaurados ao estado original. São Gregório adota essa visão do estado beatífico original,
mas não interpreta como se os homens tivessem sido originalmente figuras angelicais; ele faz uma
leitura mais literal, seguindo de perto a visão do Gênesis do Paraíso, do erro de Adão e da queda
decorrente. Sobre a doutrina origeniana ver Daniélou, J. Origène, Paris, 1949.
[8]
Sobre a leitura marcionita de Lucas ver Leaney, R. “The Lucan Text of the Lord’s Prayer (LK xi
2-4)” Novum Testamentum 1(2), 1956.
[9]
Sobre a questão textual dessa passagem, ver os comentários de Cassin e Boudignon na introdução
mais recente edição das Homilias para as Sources Chrétiennes (pp. 156-160, 2018).
[10]
Sobre a questão do filioque e a teologia dos padres capadócios, ver Moreschini, C. “Oservazioni
sulla pneumatologia dei Cappadoci: preannunci del Filioque?” in Gagliardi, M. (ed.) Il filioque: A
mille anni dal sua inserimento nel Credo a Roma. Roma, 2015.
[11]
A respeito dessa questão em Gregório de Nissa, ver o artigo de Alexopoulos, L. “Medicine,
Rhetoric and Philantropy in Gregory of Nyssa’s second sermon ‘On the love of the poor” θεολογία
3/2015, bem como Nicolae, J. “’Christus predicator/medicator: Homiletical, Patristic and modern
elements of Theologia medicinalis” European Journal of Science and Theology, vol 8. Setembro
2012.
[12]
Garnsey, P. Ideas of slavery from Aristotle to Augustine. Oxford, 1996 p. 243.
[13]
Gregório de Nissa faz um trocadilho entre eukterion (oratório) e praterion (mercado). Tentei
manter alguma semelhança entre as palavras.
[14]
A disposição em versos dessa oração, que é analisada inclusive em seus aspectos rítimicos por
Cassin e Boudignon na sua edição recente (pp. 90 -103) foi originalmente proposta por Perrone em
La Preghiera secondo Origine: L’impossibilitá donata. Milão, 2005 p. 590-1, n. 1911.
[15]
No texto grego da Bíblia, Jesus utiliza uma palavra nova, battologia, para indicar o palavreado
dos que oram.
[16]
No original se diz “de forma mais grega”. A questão aqui é que o termo grego da Bíblia não é um
termo erudito, refinado e, portanto, pouco aceito pelos oradores da época. São Gregório de Nissa era,
além de bispo, um esteta da língua grega, então ele “corrige” o termo bíblico com expressões mais
refinadas e aceitas pelos padrões da oratória grega.
[17]
Como Alexandria, Antioquia, Constantinopla, as diversas Cesareias etc.
[18]
Talento é uma medida de peso da Antiguidade, aproximadamente 20 kg. Também significa o
valor equivalente ao mesmo peso em prata, portanto, um valor bastante considerável.
[19]
Gregório de Nissa demora-se pouco nessa discussão porque ele está aproveitando a definição
feita por Orígenes em seu comentário ao Pai Nosso.
[20]
A palavra que traduzi por “franqueza” é parrhesía. Esse termo tem uma história longa, significa
inciio9almente a liberdade de fala que caracteriza os membros da assembleia política,
posteriormente, no mundo cristão, vem a significar a liberdade de fala com Deus através da oração,
como nessa passagem.
[21]
As traduções diretas do hebraico são diferentes nesta passagem, mas Gregório de Nissa só
demonstra conhecimento da tradução grega dos Setenta.
[22]
Toda a passagem que segue é reminiscente da descrição da roupa do sacerdote em Ex .28.
[23]
Gregório faz um trocadilho de difícil tradução pois ádyton significa “templo” em grego, mas seu
sentido original é “lugar onde não se pode entrar”. Ele explora os dois significados nessa passagem.
[24]
A nova edição de Cassin retira a menção ao evangelista. Decidi mantê-la por facilitar a
compreensão da passagem.
[25]
Nessa passagem, Gregório de Nissa utiliza uma variante do texto do Evangelho de Lucas que não
está presente no textus receptus, e também não foi adotada pelas edições críticas modernas. Essa
variante provavelmente é uma glosa do texto original.
[26]
Aqui Gregório se aventura em uma breve polêmica dogmática contra teólogos que afirmavam
que o Espírito Santo era uma criatura e, portanto, inferior.
[27]
O texto de Callahan insere ainda a seguinte frase: “Mas o texto evangélico dá testemunho de que
somente a Deus é possível retirar o pecado. Portanto, aquele que deu testemunho de sua capacidade
de retirar os pecados também deu testemunho da sua divindade.”
[28]
O termo aqui utilizado para “pessoa” é ὑπόστασις, o termo consagrado pelos padres capadócios
para designar a variação interna à trindade. No pensamento dos padres capadócios é feita a separação
entre οὐσία, que seria a própria natureza de algum ente, e ὑπόστασις, que seria uma manifestação
dessa οὐσία. Assim, as pessoas da trindade são vistas não como três substâncias diferentes, mas três
manifestações de uma única substância.
[29]
Gregório faz referência à teoria dos humores, que é a doutrina médica padrão da medicina grega
antiga. Por motivos ainda não totalmente conhecidos, Gregório exibe um profundo conhecimento e
interesse na medicina, em suas obras referências médicas são comuns.
[30]
A divisão em versículos não existia na Bíblia de Gregório, mas eu introduzi o termo para facilitar
a compreensão.
[31]
O texto da Septuaginta utilizado por São Gregório é bastante diferente das traduções do
Hebraico.
[32]
João Batista, cf. Lc 1, 17; Mt 11, 11.
[33]
João Evangelista, ou o Teólogo.
[34]
O último versículo não está no original hebraico e consta somente das edições da septuaginta. Na
edição crítica de Rahlfs ele está na ordem diferente, antecedendo a primeira parte (fornecendo
alimento às bestas). E, além disso, Gregório lê de maneira diferente da tradicional. Os tradutores
entendem escravidão (δουλεία) de um modo figurado, no sentido de “serviço”. Já Gregório aproveita
o sentido literal para o seu argumento.
[35]
Esse é o sentido primeiro de diabolos, que gerou a palavra “diabo”.
[36]
Utilizo a tradução da Bíblia de Jerusalém para deixar mais clara a argumentação de Gregório.