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O decréscimo dos standards probatórios para a cassação por fraude à cota de gênero - JOTA 26/10/2023 09:50

JUSTIÇA ELEITORAL

O decréscimo dos standards probatórios


para a cassação por fraude à cota de
gênero
Medidas provocam reações do Poder Legislativo que podem colocar em xeque as
conquistas até aqui obtidas

AMANDA LUIZ MAGNO


GUIMARÃES DA PINTO BASTOS
CUNHA JUNIOR

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Desde a implementação da cota de gênero de candidaturas femininas inseridas


no § 3º do art. 10 da Lei 9.504/97 (Lei 12.034/09), os partidos políticos
passaram a ter que lançar, no mínimo, 30% de candidaturas femininas nas
eleições para os cargos proporcionais. Apesar desta norma apresentar-se
como de observância compulsória, reforçando o compromisso de
enfrentamento da subrepresentatividade feminina na política, ela não contou

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com adequados mecanismos de enforcement, quer seja através da instituição


de estímulos positivos, quer seja através de instituição de sanções decorrentes
de sua implementação.

Fundadas na ideia de que o processo de registro das candidaturas apresentado


pelo partido/coligação enseja a prolação de uma decisão deWnitiva (sobre a
legitimidade dos atos partidários de escolha das candidaturas a serem inscritas
no pleito), muitas agremiações começaram a inscrever candidaturas femininas
tão-somente para permitir que mais candidaturas masculinas fossem lançadas.
Os mais diferentes expedientes foram utilizados para arregimentar
candidaturas que eram uma não-candidatura, quais sejam: a indicação de
esposas/mães/Wlhas de candidatos, o registro de funcionárias dos diretórios, a
contratação de mulheres-candidatas (mediante recompensa em dinheiro) e,
inclusive, a inscrição de mulheres que sequer sabiam estarem candidatas.

E, neste ínterim, o Parlamento permanecia em silêncio eloquente. Ante esse


estado de coisas, a Justiça Eleitoral supriu esta lacuna, mediante a
reinterpretação do conceito de fraude (a construção da chamada fraude à cota
de gênero). O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a admitir primeiro o
processamento de Ação de Impugnação de Mandato Eletivo e, depois, da
própria Ação de Investigação Judicial Eleitoral para apurar tais condutas em
dagrante descompasso com o propósito da lei.

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A política judicial Wxada, em que pese aWgurar-se legítima (sob o ponto de vista
da busca pela concretização da política aWrmativa) acarretou uma série de
problemas e perplexidades, especialmente, no tocante aos parâmetros a serem
adotados pela autoridade judicial na conWguração do ilícito e deWnição do
alcance da sanção imputada à agremiação partidária (e, por conseguinte, dos
candidatos por ele registrados, na condição de beneWciários da fraude).

A delimitação do alcance da sanção aplicada foi Wrmada no paradigmático


precedente de Valença do Piauí (REspE 193-92, julgado em 17/09/19) e
recentemente conWrmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão de
caráter vinculante (ADI 6338/DF, relatora-ministra Rosa Weber, p. em 7 de junho
de 2023). A partir de então, tem-se por deWnitivo o entendimento Wxado de que
todos os candidatos (inclusive candidatas mulheres beneWciárias da política
aWrmativa), mesmo que não haja qualquer indício sobre sua participação direta
ou anuência com a fraude reconhecida, devem sofrer as consequências
sancionadoras. Com isso, estabeleceu-se uma fórmula de responsabilização
objetiva de todos (e todas!) candidatos inscritos pela agremiação partidária,
dispensando-se quaisquer análises sobre o elemento subjetivo daqueles que
sofrem as consequências da imposição da sanção (decorrente da anulação do

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DRAP).

Diante de tal cenário, não é por demasiado reaWrmar a premissa já adotada em


outros estudos acerca do tema[1] de que a apuração às fraudes à cota de
gênero é manifestação do jus puniendi estatal, qualiWcado como direito eleitoral
sancionador, tendo em vista os objetivos perquiridos com a imposição da
restrição à elegibilidade. A demonstração de que se busca, com a imposição
das sanções pela fraude à cota de gênero, Wns retributivos ou punitivos agora
pode ser veriWcado para além das premissas implícitas do TSE sobre os casos,
mas explicitamente pelo STF na ADI 6.338[2].

Partindo-se desse pressuposto, decisões como essa, que acabam por afetar
direitos políticos fundamentais e a própria soberania popular, deveriam contar
com uma intransigente observância às regras do devido processo legal e
convencional para sua aplicação. Todavia, além da fórmula de
responsabilização objetiva que se instaurou, chama-se atenção para um
decréscimo no nível de standard de prova exigido para imposição da cassação
desde o Caso de Valença do Piauí/PI (REspE 193-92), utilizando como
irrefutável exemplo a cassação dos candidatos eleitos para a Câmara Municipal
de Itaiçaba/CE (REspE 0600392-82, julgado em 27/04/23).

No precedente inaugural os elementos Wxados seriam indicativos de fraude,


cabendo à autoridade judicial a análise das circunstâncias do caso concreto
para a imposição da sanção de desconstituição do registro da chapa inscrita
nas eleições proporcionais. Para chegar a conclusão acerca da fraude da
agremiação deveriam ser aferidas situações como “a ausência ou votação
diminuta, a ausência de campanha nas redes sociais, despesas eleitorais
reduzidas e inexistência de propaganda impressa”, circunstâncias estas que
deveriam ser sopesadas em seu contexto de aplicação.

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No entanto, a Corte Superior empreendeu uma signiWcativa mudança sobre o


standard de prova a ser exigido para a conWguração da fraude. Aqueles fatores
que, antes eram considerados indicativos da fraude, passam a ser adotados
como presunção jure et de jure da ocorrência de fraude, sendo guindados à
condição de que sempre[3] demonstram a ocorrência do ilícito. Esta força
probante persiste ainda que, na mesma circunscrição eleitoral, encontremos
outros candidatos (do gênero masculino) com votação similar inexistente (ou
inexpressiva), e que tenham abandonado suas candidaturas (sem evidências de
atuação nas redes sociais).

Neste breve ensaio, reaWrmamos o que já foi dito em outras oportunidades de


que a existência de tais elementos não pode levar à conclusão inequívoca de
que restou conWgurada a fraude à cota de gênero. Esta aWrmação conclusiva se
assenta a partir da (re) aWrmação de duas premissas centrais a serem
observadas no âmbito da jurisdição eleitoral.

Uma primeira, decorrente da imprescindibilidade que sejam observados os


princípios constitucionais e convencionais do direito sancionador, que não se
coaduna com a tarifação probatória por meio da qual a presença dos inícios
gera a “presunção de fraude”, elementos considerados suWcientes para a
conWguração do ilícito eleitoral. Aceitar essa conclusão importa em substancial
malversação das regras do devido processo legal. Com um agravante, decisões
como estas legitimam uma atuação expansiva da jurisdição eleitoral assentada
em dagrante e ininterrupto decréscimo signiWcativo no nível de robustez de
prova exigido para imposição das gravosas sanções.

A segunda, relativa às consequências desestabilizadoras para a democracia e


para a própria política aWrmativa a superveniência de decisões judiciais que
cassam candidatas eleitas por ofensa à cota de gênero, o que está a exigir uma
redexão crítica sobre as premissas teóricas (e suas consequências) que

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remontam aos emblemáticos casos de José de Freitas, também do Piauí


(REspE 1-49 e 24342, julgados em 04/08/15 e 16/08/16 respectivamente).

Uma fórmula que acarreta, inevitavelmente, na cassação de mulheres pela cota


de gênero na política. Mulheres estas eleitas, muitas vezes, sem qualquer apoio
partidário e depois acabam sendo penalizadas pelas atitudes ou, ao menos,
negligência das agremiações[4]. Ou seja, um absoluto contrassenso, uma
autofagia da ação a7rmativa e um desincentivo à participação das mulheres[5].

Não se está a negar, em hipótese alguma, a importância das políticas


aWrmativas e da preservação das conquistas até aqui obtidas, tampouco da
necessidade de resistência frente aos ataques sistemáticos (e seus meios
inventivos) empreendidos por partidos (fortemente masculinizados) que
insistem em sonegar às mulheres que ocupem espaços de poder. Todavia, esse
propósito legítimo não pode ser implemento à custa de uma diminuição
progressiva de exigências probatórias suWcientes para a imposição de sanções
tão gravosas aos direitos políticos fundamentais, as quais, para além da
dimensão subjetiva dos afetados, importam em distorção das escolhas
empreendidas pelo sufrágio popular.

Além disso, e não à toa, medidas como essas tomadas de forma


desproporcional e, não raras vezes, punindo mulheres legitimamente eleitas,
provocam reações do Poder Legislativo que podem colocar em xeque as
conquistas até aqui obtidas. É o que vimos com a tentativa de anistia às
fraudes pelas cotas e a minirreforma eleitoral que se debateu e pretendeu
reduzir de 30% para 15% a cota de candidaturas.

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[1] CUNHA, A. G. da; BASTOS JÚNIOR, L. M. P. Fraudes à Cota de Gênero na


Perspectiva do Direito Eleitoral Sancionador. Resenha Eleitoral, Florianopolis, SC, v.

24, n. 1, p. 57–84, 2020. Disponível em:


https://revistaresenha.emnuvens.com.br/revista/article/view/5 Acesso em: 30
ago. 2023.

[2] […] 4. A transposição das disposições constitucionais e legais para o mundo

factual não prescinde, na atual conjuntura social, de um arcabouço sancionatório


adequado e eSciente que possibilite, ainda que por meio da coerção estatal, a
transformação de condutas, em ordem a proporcionar no domínio
fenomenológico a igualdade entre homens e mulheres […]

[3] […] 6. A partir do leading case do caso de Jacobina/BA (AgR–AREspE 0600651–

94, red. para o acórdão ministro Alexandre de Moraes, DJE de 30.6.2022), a


jurisprudência deste Tribunal tem reiteradamente assentado que “a obtenção de
votação zerada ou píWa das candidatas, a prestação de contas com idêntica

movimentação Wnanceira e a ausência de atos efetivos de campanha são


suScientes para evidenciar o propósito de burlar o cumprimento da norma que
estabelece a cota de gênero, quando ausentes elementos que indiquem se tratar de
desistência tácita da competição” (REspEl 0600001–24, rel. Min. Carlos Horbach,

julgado em 18.8.2022). […] (RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 060039282,


Acórdão, Relator(a) Min. Sergio Silveira Banhos, Publicação: DJE – Diário de Justiça
Eletrônico, Tomo 96, Data 18/05/2023)

[4] SANTANO, Ana Cláudia. Crônicas de uma mulher cassada pela cota de gênero
da política: uma proposta de redexão que não se embasa no direito, mas nas
vivências das mulheres na política no interior do Brasil real. Disponível em:

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https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/cronicas-de-uma-

mulher-cassada-pela-cota-de-genero-da-politica-03042023

[5] SILVEIRA, Marilda de Paula. As candidatas eleitas, apesar das candidaturas


Sctícias, também devem ser cassadas? Disponível em:
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-candidatas-eleitas-apesar-

das-candidaturas-Scticias-tambem-devem-ser-cassadas-03092019

AMANDA GUIMARÃES DA CUNHA – Especialista em Direito Eleitoral e em Ciências Penais;


membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político. Autora do livro “Direito eleitoral
sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial” da editora Tiran Lo Blanch,
juntamente com o Dr. Luiz Magno Pinto Bastos Júnior email: amandacunha@edu.univali.br
LUIZ MAGNO PINTO BASTOS JUNIOR – Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina, com pós-doutorado em direitos humanos pela Universidade MCGill
Montreal/Canadá. Professor universitário (UNIVALI e UFSC) e advogado eleitoralista. Membro
fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP). Autor das obras
“Constitucionalismo para além da Constituição: permeabilidade, diálogo e convergência “e
“Direito Eleitoral Sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial”.

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