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Revista EDUC-Faculdade de Duque de Caxias/Vol.

03- Nº 1/Jan-Jun 2016

COMUNIDADES DISCURSIVAS JURÍDICA E LEGAL


Diferenças e semelhanças entre os gêneros

Guilherme Lima Cardozo


Doutor em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio
Professor Adjunto de Comunicação e Expressão do
Centro Universitário Carioca (UniCarioca)
E-mail: guilhermegoldenstein@gmail.com

Resumo: Este artigo apresenta aspectos do texto jurídico, suas especificidades e interseções
com aspectos do texto legal, ambos aqui tratados como gêneros textuais. Ainda, dentro dos
gêneros citados, analisaremos duas espécies peculiares de subgêneros textuais, quais sejam o
acórdão e o texto legislativo penal, sobre cujos elementos específicos discutiremos no
decorrer da pesquisa, a fim de os colocarmos em patamares diferenciados no âmbito de seus
contextos.

Palavras-chave: Jurídico. Acórdão. Legislativo. Gêneros. Comunidades.

Abstract: This article present aspects of the legal text, its specificities and intersections with
aspects of the legal text, both here treated as textual genres. Also, within the mentioned
genres, we will analyze two peculiar species of textual subgenres, which are the judgment and
the criminal legislative text, on whose specific elements we will discuss in the course of the
research, in order to place them in differentiated levels within their contexts.

Keywords: Juridical. Judgment. Legislative. Genres. Comunities.

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1. INTRODUÇÃO

A escolha do proposto tema para análise e discussão não é aleatória. Não somente pela
riqueza material de dados acerca da natureza discursiva e textual desses gêneros, e como eles
dialogam entre si, estabelecendo relações de similaridade, diversidade e dependência, mas
também por ser uma área da qual faço parte em meu dia-a-dia, e com cujos profissionais
convivo – no concernente à área judiciária – e convivi – com respeito aos operadores
legislativos.

Ao realizar o presente estudo, veremos que ambos os gêneros possuem rigorosos


padrões de composição, obedecendo escalas hierárquicas bem definidas, através das quais
identificaremos a estreita relação entre produção e autoria, e a maneira como cada um deles
manifesta textualmente os princípios os quais colocam como base para seu funcionamento: a
clareza, a precisão e a ordem lógica da enunciação. Veremos ainda que, acerca do alcance dos
objetos em estudo, o gênero textual jurídico é bem menos abrangente que o legal, haja vista
possuir uma comunidade discursiva mais restrita, chamada por Elisabeth Linhares Catunda de
comunidade discursiva jurídica stricto sensu. Ao passo que, apesar de o texto legislativo
possuir também características formais que, de alguma forma, impeçam seu pleno
entendimento por parte da totalidade daqueles que se propuserem a lê-lo, seu público alvo
será, à mesma proporção, tanto os operadores do direito – advogados, magistrados,
promotores, etc. – quanto a população em geral, havendo no que se falar em comunidade
legislativa lato sensu com mais propriedade do que na primeira ocasião.

Em face do exposto, nosso trabalho objetiva mostrar de que forma os textos legal e
jurídico emergem como gêneros textuais, e como, e em que grau, aqueles envolvidos nos
procedimentos inerentes às suas naturezas podem ser considerados parte de uma comunidade
discursiva de fato. Para tanto, confrontaremos as literaturas acerca dos assuntos, a fim de que,
por meio das semelhanças e diferenças entre esses dois gêneros, levantemos as características
mais latentes para sua compreensão como gêneros textuais.

Por fim, faremos a análise do texto acórdão e texto legislativo penal, com o objetivo
de, enumerando suas particularidades principais, confirmá-los como subgêneros textuais dos
gêneros dos quais são integrantes, e não somente como meros procedimentos jurídicos. Para
isso, utilizaremos aqui exemplos factuais, e não meramente genéricos, para que fique
caracterizada a especificidade desses dois tipos de texto.

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2. RESUMO DOS TEXTOS PRINCIPAIS

Para o estudo a que nos propusemos, dois foram os principais textos utilizados como
objeto de reflexão acerca do tema deste trabalho, o intitulado “Uma descrição da comunidade
discursiva jurídica”, de Elisabeth Linhares Catunda 1, onde ela faz uma análise da comunidade
em pauta, através dos seis critérios de John Swales caracterizadores de uma comunidade
discursiva 2. Dessa forma, a autora vai traçando os objetivos e propósitos dessa comunidade,
seus mecanismos de intercomunicação e participação, a seleção crescente de gêneros utilizada
pela comunidade, além de sua terminologia específica – esses dois últimos aspectos serão de
maneira mais profícua tratados aqui -, e, por fim, a estrutura hierárquica da comunidade.
Esses critérios swalesianos vão corroborar as afirmativas de que, considerada em seu restrito
âmbito, ou seja, somente entre os operadores do direito, há sim no que se falar em
comunidade discursiva jurídica.

Em contrapartida, o outro texto aqui analisado para a pesquisa, intitulado “Aspectos do


texto legislativo penal como subgênero textual”, de Mariza do Nascimento Silva Pimenta-
Bueno e Regina de S. F. Lima da Silva 3, manifesta discordância sobre classificar-se o
discurso jurídico como gênero, haja vista, no caso do Direito, haver, pelo menos, quatro
grandes áreas de atuação que constituem o alicerce em que ele se apóia: a lei, a
jurisprudência, a doutrina e a prática forense. Segundo as autoras, essas quatro áreas do
Direito seriam, de per si, gêneros, ou subgêneros de outros gêneros. A partir daí, vão se ater
às especificidades do texto legal, suas formas de articulação, seus padrões de organização, o
modo de enunciação, e, enfim, elencar as características do texto legislativo penal.

Confrontando os dois textos, confirmaremos algumas semelhanças já esperadas entre


produções de naturezas tão ímpares, como, por exemplo, os aspectos formais dentro dos quais
esses textos são escritos, o paradoxo com suas naturezas essenciais e o princípio da
publicidade, seja dos atos processuais, prevista em nossa carta magna, em seu art. 5°, inciso

1
Sousa, Socorro Claudia Tavares de; Araújo, Julio César; Rodrigues, Bernardete Biasi. Gêneros Textuais e
Comunidades Discursivas – Um diálogo com John Swales. Autêntica Editora. Belo Horizonte/MG. 2009
2
1- Os objetivos públicos e os propósitos da comunidade, os mecanismos de intercomunicação da comunidade,
os mecanismos de participação utilizados pela comunidade, o uso de uma seleção crescente de gêneros pela
comunidade, a terminologia específica da comunidade e a estrutura hierárquica da comunidade discursiva
jurídica.
3
PIMENTA-BUENO, M. do N. S. A evolução do pensamento lingüístico. 2 ed. Rio de Janeiro: Papel Virtual
Ed., 2004.

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LX 4, seja quando da impossibilidade do desconhecimento da lei 5, e ainda diferenças


marcantes entre os dois gêneros, tais quais a forma como são definidos os padrões formais dos
modos de enunciação, os aspectos sintáticos e semânticos, e principalmente a diferença de
estilo e terminologia específica entre os dois subgêneros em análise, o acórdão e o texto
legislativo penal.

Interessante também observar que entre os poderes legislativo e judiciário, mesmo


com a independência que cada um possui, há uma relação intrínseca de vinculação, sem a qual
não haveria sentido na existência um do outro. E essa “dependência” também se nos
demonstrará ao longo do trabalho.

3. UM DIÁLOGO ENTRE OS GÊNEROS

Dando continuidade ao tema, é importante que saibamos da considerável diferença


entre a comunidade discursiva jurídica e a legislativa. Em primeiro lugar, acerca dos
mecanismos de participação utilizados pelas duas comunidades discursivas em destaque, há
abismal divergência. Enquanto que, para se tornar membro da comunidade discursiva jurídica
é necessário, não somente ser bacharel em direito, como também ter sido aprovado no exame
da Ordem dos Advogados do Brasil, ou então ser aprovado em concurso público para os
cargos de Promotor de Justiça, ou Juiz de Direito, representantes do Estado, o membro da
comunidade discursiva legislativa é aquele eleito pelo povo em eleição direta, cujo
impedimento seria apenas não ser analfabeto, ou estrangeiro.

A partir daí, concluímos que existe, socialmente, uma diferença entre os membros das
referidas comunidades, o que de fato influenciará também nas produções textuais dos
mesmos.

3.1. Objetivos e propósitos das comunidades

O Direito tem a sua origem na autoridade estatal, portanto, os membros de alta


envergadura hierárquica no meio jurídico – promotores, juízes e desembargadores –
representam o Estado na tríade da relação processual (anexo 1), enquanto que os membros da
comunidade discursiva legislativa representam a população frente ao Estado. Segundo o
primeiro critério de John Swales, observamos no texto de Catunda que um dos principais

4
CF/88, art. 5°, LX: a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade
ou o interesse social o exigirem.
5
LICC, art. 3°: Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.

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objetivos da comunidade discursiva jurídica é ser conforme as leis. Então, em verdade, existe
essa extrema ligação entre ambas, pois quem elabora as leis, frequentemente, é o poder
Legislativo, e quem as executa é o Judiciário. Pode-se dizer que, o texto legislativo é uma
garantia que o indivíduo tem contra o arbítrio do Estado, representado pelo membro do
judiciário.

Todavia, o principal propósito de ambas as comunidades através de seus textos é a


coação social: é através dessa coação que elas fazem com que a sociedade respeite as leis que
ela mesma – por intermédio dos membros do legislativo, eleitos pelo povo – instituiu. A letra
da lei coage a intenção do ato desvalorado, a voz da Justiça coage a conseqüência do ato
cometido em detrimento do dispositivo legal. Nesse caso específico, há um constante diálogo
entre as duas comunidades.

3.2. Os mecanismos de intercomunicação da comunidade discursiva jurídica

Conforme vimos na seção passada, a comunidade discursiva jurídica se utiliza das leis
produzidas pelo Poder Legislativo para manter a autoridade do Estado, no caso daqueles que
o representam, e também para exigir reparação de danos, causados em situações de conflito,
no caso de advogados. Porém, não são somente as leis contidas nos códigos que regerão o
comportamento dos envolvidos nos processos jurídicos. Há, como bem citaram Silva e
Pimenta-Bueno, a jurisprudência, que é constituída pelas manifestações reiteradas dos
Tribunais, ao interpretarem e aplicarem as leis aos casos concretos que são levados ao Poder
Judiciário, e a doutrina, que consiste na reflexão teórica empreendida pelos juristas, nas obras
que escrevem, ou em seus pronunciamentos e pareceres sobre temas jurídicos polêmicos.

Esses dois últimos representam formas de articulação interna e externa do texto


jurídico, pois, como veremos a seguir, principalmente nas petições iniciais – peça incipiente
de um processo – tanto a jurisprudência como a doutrina serão objeto de uso, constituindo um
padrão para tal espécie de texto.

Mas, como toda comunidade discursiva, especialmente em meios profissionais, há a


necessidade de prover incremento de informações, canalizar a inovação, manter o sistema de
crenças e valores da comunidade, entre outros. E na comunidade em análise esses critérios são
extremamente obedecidos, haja vista os vastos mecanismos utilizados por ela, resumidos no
Diário Oficial, materialização do princípio da publicidade.

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Relacionaremos o dito aqui nesta seção com as próximas linhas, concernentes às


formas como se articulam interna e externamente os textos legais.

3.3. Formas de articulação do texto legal

Uma das características do texto legal é o fluxo que ele estabelece com outros textos
da mesma natureza, buscando a remissão perfeita, a fim de que o texto possa sanar
integralmente a dúvida acerca do assunto daquele que o lê. Essas articulações podem ser
internas, como quando um artigo de lei se refere a outro, dentro do mesmo Código, como por
exemplo:

a) Código Civil – Art. 1.223. Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do
possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196.

As remissões externas podem acontecer de forma explícita ou tácita, como nos


exemplos que se seguem:

b) Código Eleitoral – Art. 5° Não podem alistar-se eleitores:

I – os analfabetos; (Revogado pelo art. 14, § 1°, “a”, da Constituição/88)

c) Código Penal – Conhecimento prévio de impedimento

Art. 237 – Contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a
nulidade absoluta:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.

No exemplo a) vimos que a referência a um texto legal de um outro código é explícita,


enquanto no exemplo b) essa menção é implícita, já que somente no Código Civil, art. 1.521,
poder-se-á ter ciência acerca dos impedimentos para o casamento. Portanto, vimos que, assim
como a comunidade discursiva jurídica se utiliza de seus próprios textos – como a doutrina e a
jurisprudência – para canalizar as informações, bem como para produzi-las, no texto legal
existe da mesma forma essa articulação intensa entre elementos de sua própria natureza, a fim
de tornar completa a informação ali obtida.

3.4. Padrões formais de organização estrutural dos textos legal e jurídico

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Nesta seção analisaremos algumas semelhanças nos padrões formais de organização


dos textos legal e jurídico, tomando como exemplos a parte preliminar de um texto legal,
segundo as prescrições do art. 3°, caput, da Lei Complementar 95/1998, que rege a elaboração
e a redação das leis em nosso ordenamento jurídico, e uma petição inicial padrão, parte
primeira de um processo, onde o advogado expõe o ocorrido, fundamenta-se em lei e faz seu
pedido ao magistrado.

a) LEI COMPLEMENTAR N° 95, DE 26 DE FEVEREIRO DE 1998

b) Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme


determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal(...)

c) O PRESIDENTE DA REPÚBLICA faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu


sanciono a seguinte Lei Complementar:

d) Art. 1° A elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao


disposto nesta Lei Complementar.

e) Parágrafo Único: As disposições desta Lei Complementar aplicam-se, ainda, às


medidas provisórias e demais atos normativos referidos no art. 59 da Constituição
Federal(...)

A estrutura do texto legal é extremamente detalhada, haja vista a existência de um


artigo de lei determinando a maneira como uma lei deve ser redigida, diferentemente
da petição inicial, onde são os próprios modelos anteriores que determinam como ela
deve ser elaborada.

A parte preliminar do texto legal, conforme a), é a epígrafe, a qual apresenta o


título designativo da espécie normativa, escrita em caracteres maiúsculos, o respectivo
número e o ano da promulgação; no exemplo b), temos a ementa, que indica o objeto
da lei, de modo conciso; no preâmbulo, exemplo c), vemos o órgão competente para a
prática do ato e sua base legal; após, no exemplo d), temos o objeto da lei, e,
finalmente em e), vemos o âmbito em que a lei é aplicada. Logo, devido a esse rigor
estrutural, é pouco provável que um projeto de lei se torne lei se não obedecer a esses
padrões, pois antes de se tornar um texto legal, o projeto passa pela sanção de outros
órgãos, como por exemplo, pela sanção do chefe do Poder Executivo da instância em
que o projeto foi elaborado.

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Diferentemente, apesar de obedecerem a padrões formais em sua estrutura


bastante rígidos, alguns elementos do processo jurídico podem fugir dessa
padronização, e, por isso, serem objeto de repúdio entre os próprios organizadores do
direito.

Conforme já falado, a probabilidade de um texto legal conter, por exemplo,


erros de português, é quase nula, porquanto passa por uma série de procedimentos até
sua devida promulgação. Ao passo que, dentro do gênero jurídico, não há uma revisão
cíclica do material produzido. O que há é um acordo de formalidade tácito, expresso
pela prática forense dos operadores do direito.

Sob os padrões devidos, uma petição deve ser redigida desta forma (anexo 2):

a) EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DO JUIZADO


ESPECIAL CÍVEL DA COMARCA DE (...)

b) Qualificação do autor da petição, e de seu advogado.

c) Título da ação

d) Qualificação do réu

e) Acerca dos fatos

f) Do fundamento jurídico

g) Do pedido

Entretanto, como não há uma “fiscalização” quanto à forma com que o autor dos
gêneros em pauta os escreve, há possibilidade de desvios à norma (anexo 3).

Quanto aos textos jurídicos, cabe-nos observar, além dos padrões estruturais, a
maneira hierárquica como são elaborados. Conforme dito, a petição inicial representa o
primeiro passo de um processo, portanto, é o primeiro elemento da hierarquia. Após uma série
de acontecimentos, onde o primeiro é o despacho do juiz, seguido da contestação da parte ré,
documentos comprobatórios, enfim, temos a sentença do magistrado, que, à primeira
instância, é o elemento último de um processo. Hierarquicamente, uma sentença, por ser
elaborada por um membro de escala superior a um advogado, merece ainda mais formalidade,

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o que Marcuschi chama de “aspecto formulaico” dos gêneros jurídicos, haja vista não haver
espaço para a criatividade do produtor, devido às regulamentações do sistema. Uma sentença,
em um grau maior que a petição, apresenta aspecto formal e padronizado (anexo 4), porém,
diferentemente do texto legal, como não necessita de etapas para que se torne oficial, existe
possibilidade de que esses padrões sejam quebrados, tornando essas sentenças, e
principalmente os seus produtores, objeto de preconceito dentro da comunidade discursiva
(anexo 5).

3.5 Padrões formais de enunciação e terminologia específica

Algumas diferenças são mais acentuadas entre os dois textos em debate neste trabalho,
como a obtenção da clareza e da precisão. No texto legal, há preferência pelo uso de e
expressões em seu uso comum, enquanto que no texto jurídico há um acentuado uso de
arcaísmos, brocardos latinos e termos jurídicos, mostrando a especificidade lexical dentro
dessa comunidade e seu alto teor de conservadorismo lingüístico. Segundo Bezerra, 1998;
Cornu, 2000; Damião, 2000; Bittar, 2001, o fato de a legalidade dos textos jurídicos ser
diretamente condicionada à escrita faz com que a formalidade ganhe espaço e, de certa
maneira, mantenha a hierarquização da comunidade e afaste a linguagem jurídica da
ordinária, e isso, de certa maneira, também se aplica à comunidade discursiva legislativa. A
diferença reside, talvez, no fato de as leis serem feitas para ser cumpridas pela sociedade,
enquanto que petições, sentenças, recursos, acórdãos, sejam especificamente direcionadas a
operadores do direito.

Outra diferença seria o uso nos textos legais das mesmas palavras na expressão das
mesmas idéias, evitando-se o emprego de sinonímia, ao passo que nos textos jurídicos há um
rigor em evitar-se a repetição de palavras. Além disso, há bastante o uso de conectivos que
localizam o leitor no texto, como “anterior”, “seguinte”, enquanto que o texto legal prefere
designar expressamente o dispositivo objeto da remissão.

Acerca dos modos de expressão, os textos jurídicos são de natureza descritiva, narram
os fatos, decidem ou não pela homologação de um acordo ou de uma pena, pedem
reapreciação de pedido, e confirmam ou retificam uma decisão anterior. Ao contrário, os
textos legais usam da imperatividade em seu discurso, principalmente no que concerne ao
Direito Público, onde a vontade soberana do Estado se impõe, em nome do interesse público.
Percebe-se uma freqüência no uso do verbo dever, ou do uso do verbo poder precedido de

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não, no lugar do verbo poder; ocorrência de estruturas iniciadas por é obrigatório, em vez de
é permitido.

Devido ao fato de que a lei se reporta a situações em tese, e não a situações concretas,
existe nos textos legais uma abstração, ao contrário dos textos jurídicos, que versam sobre
questões factuais, verídicas, sendo necessária a menção de sujeitos. Isso também nos remete à
outra característica do texto legal: a impessoalidade/generalidade. Nele há ausência de
qualquer referência a autor da norma, bem como a receptor da mesma, pois, conforme muitos
artigos de lei, ela se dirige a toda pessoa, todo aquele, etc. Há, em alguns casos, referência a
uma classe genérica de pessoas, como em o menor, os tutores, o adquirente, ou àqueles que se
encontram em determinada situação, como em o militar em serviço ativo, a pessoa natural
sem residência habitual, etc., mas nunca a um sujeito especificamente.

4. O ACÓRDÃO E O TEXTO LEGISLATIVO PENAL COMO SUBGÊNEROS

Conforme dito nos parágrafos anteriores, textos legislativo e jurídico possuem


semelhanças e diferenças. Aqui trataremos de dois subgêneros diferenciados dentre os seus,
onde o acórdão será o retrato da extrema formalidade e conservadorismo dos textos jurídicos,
e o texto penal um diferencial no que diz respeito a aspectos sintáticos e semânticos de suas
estruturas.

Quando falamos na terminologia específica da comunidade discursiva jurídica,


citamos as instâncias textuais inferiores a esta em questão. O acórdão é o texto produzido pela
elite do Poder Judiciário, os desembargadores, quando a sentença de um juiz é objeto de
recurso. O que veremos nos exemplos abaixo é a utilização de uma linguagem específica,
cheia de arcaísmos e brocardos latinos, o que evidencia de certa a hierarquização dessa
comunidade, conferindo status aos seus produtores:

a) Em antigo acórdão o STF já assentava: “Código Civil, art. 1.525. Cód. Proc. Pen., art.
66. Actio civilis ex delicto...” (ACTJC09)

b) ...examinar a existência ou inexistência do fumus boni juris, e do periculum in mora.


(ACTJC12)

c) ...de modo a não fugir do compromisso devido ao princípio contido na cláusula pacta
sunt servanda...(ACTJC10)

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Segundo Catunda, há uma crença dentro da comunidade discursiva jurídica que diz
que quanto mais o operador do direito usar termos em latim, brocardos e arcaísmos, mais
domínio dessa ciência ele detém. Por isso, o índice de freqüência de uso de brocardos e
termos latinos, por parte dos produtores do acórdão, é significativo.

Já os textos legislativos penais, como dissemos, contém em sua formulação peculiares


características sintáticas e semânticas. Em primeiro lugar, esses textos não versam sobre
quaisquer bens jurídicos, mas sobre aqueles mais valorados socialmente, daí haver uma
restrição nos campos semânticos por eles recobertos. Em segundo, esses textos possuem
aspectos formais diferentes dos outros textos legais. Tais normas são introduzidas pelo tipo
penal ao qual a norma se referirá, é o chamado nomen júris. Após, vem a descrição detalhada
de uma conduta desvalorada socialmente, seguida pelo sinal de dois pontos e, na linha
subseqüente, pela palavra Pena, acompanhada de um hífen, depois do qual é feita a
cominação da sanção a que, em tese, quem cometer a conduta proibida se sujeita. Segue
exemplo:

Corrupção passiva

Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora
da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa
de tal vantagem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

Além de observarem as características da imperatividade, abstração e impessoalidade,


as normas penais incriminadoras, segundo Pimenta-Bueno e Silva, exigem uma
informatividade mais radical do que outras espécies de textos legislativos, pelas
conseqüências mais gravosas que as mesmas terão para os que as violarem.

No que concerne aos aspectos sintáticos, observemos que os verbos assumem posição
central no enunciado, aparecem primeiro e no infinitivo, além de, em muitas vezes, em longas
séries, como no caso a seguir:

Receptação

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Art. 180 – Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio,
coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba
ou oculte:

Pena – Reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Importante também ressaltar que há um elevado número de complementos expressos e


de adjuntos, mas, em face da abstração, não menciona-se sujeito:

Ex: Código Penal – Art. 219 – Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou
fraude, para fim libidinoso: [...], onde “mulher honesta” complementa o verbo anterior,
especificando o tipo de raptada, “mediante violência, grave ameaça ou fraude”, é adjunto
adverbial de modo, e “para fim libidinoso” o adjunto adverbial de finalidade.

A formulação das normas penais toma como base condutas ilícitas, daí a importância
que esses verbos com valoração negativa assumem ao iniciar o período. Estando eles no
infinitivo, refletem o caráter abstrato das normas, e a imperatividade das mesmas. A ausência
de sujeito se dá por conta da impessoalidade das leis, ou por serem destinadas a todas as
pessoas, ou um grupo de pessoas em determinada situação, como vimos anteriormente. E
mesmo nos casos onde aparece o sujeito do verbo – casos raros -, os mesmos surgem após o
verbo. A longa sequência de verbos, como no exemplo acerca da receptação, é conseqüência
da maior informatividade que essas leis precisam ter, em comparação com as outras, daí as
minuciosas enumerações de ações semelhantes e, às vezes, até sinônimas ao primeiro verbo,
com objetivo de instruir de maneira precisa o leitor.

Por fim, falando sobre os aspectos semânticos do texto legislativo penal, convém
destacar que, não por tratar de matéria de crime, os verbos possuem todos eles
intrinsecamente um conteúdo de desvalor. Por esse ponto de vista, podemos dizer que em
certos casos o desvalor reside no resultado da conduta – momento em que a carga negativa
estará repartida entre o verbo e seus complementos/adjuntos, como no caso de morte ou
homicídio -, e não na conduta em si – ocasião em que o desvalor está totalmente depositado
no verbo (ex.: invasão de domicílio).

Portanto, há o que se falar em quatro classes de verbos nesses textos, os negativos, os


negativos moldáveis, os neutros, e os positivos moldáveis, os quais seguem, respectivamente,
nos exemplos abaixo:

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a) Caluniar b) abusar c) fazer d) realizar

No exemplo a), o verbo apresenta negatividade intrínseca integral, não há como


utilizá-lo, complementando-o com algo positivo. Em b), o verbo apresenta carga negativa em
“abusar da condição de sócio para fins ilícitos”, mas admite complementos positivos, como
em “abusar de agrados”. Em c), há um verbo de semântica indefinida, vaga, onde os seus
complementos decidirão, então, se possuem aspecto negativo ou positivo. Já em d), temos um
verbo que se caracteriza pela expectativa positiva que ele impõe, todavia, dependendo do
complemento, pode também se moldar a um aspecto negativo, como em “realizar operação de
crédito, sem devida autorização...”.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo os critérios de Swales, a comunidade discursiva jurídica – tomada como uma


comunidade stricto sensu - pode ser considerada como uma comunidade discursiva de fato. Já
a comunidade discursiva no âmbito legislativo, por, mais claramente, suas produções textuais
incidirem diretamente na vida dos indivíduos em geral – comunidade discursiva lato sensu -,
não poderia ser considerada como tal.

Acerca do acórdão e do texto legislativo penal, pudemos confirmar suas condições de


subgêneros textuais, haja vista conterem particularidades bastante destacadas em suas
essências. Este por apresentar especificidades formais altamente protocolizadas,
peculiaridades sintáticas e restrições fortemente marcadas no campo semântico, aquele por
vincular-se à constituição de uma comunidade discursiva própria, o que lhe garante o estatuto
de gênero textual.

6. REFERÊNCIAS BIBLIÓGRAFICAS

BHATIA, Vijay Kumar. Legal discourse in professional settings. In___: Analysing genre:
language use in professional settings. New York: Longman Publishing, 1993

PIMENTA-BUENO, M. do N. S. A evolução do pensamento lingüístico. Parte 1: Dos


Gregos à Modernidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Papel Virtual Ed., 2004.

________________e SILVA, R. S. F. L. Aspectos do texto legislativo penal como


subgênero textual.

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SOUSA, Socorro Claudia Tavares de; araújo, Julio César; RODRIGUES, Bernardete Biasi.
Gêneros Textuais e Comunidades Discursivas – Um diálogo com John Swales. Autêntica
Editora. Belo Horizonte/MG. 2009 – Uma descrição da comunidade discursiva jurídica, por
Elisabeth Linhares Catunda.

TOLEDO, F. A. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

VADE MECUM, 2ª edição, Ed. América Jurídica, 2006.

Anexo 1

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Anexo2

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Anexo 3

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Anexo 4

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Anexo 5

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Revista EDUC-Faculdade de Duque de Caxias/Vol. 03- Nº 1/Jan-Jun 2016

Anexo 6

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