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Prefácio

Este livro se propõe a discutir a questão feminina a partir da obra de Silvia Federici.

Silvia Federici, italiana, militante feminista, é professora emérita de filosofia política na


Universidade Hofstra, em Nova York. Grande parte de sua obra está traduzida para o
português, circula entre militantes feministas brasileiras, em grupos de discussão e no
ambiente acadêmico. É uma obra instigante e desafiadora, porque pensa o movimento
feminista vinculado às necessárias mudanças revolucionárias, pondo fim ao sistema
capitalista.

Calibã e a Bruxa, corpo e acumulação primitiva (2004); O ponto zero da revolução:


trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas (2013); Mulheres e caça às bruxas:
da Idade Média aos dias atuais (2018); e O patriarcado do salário: notas sobre Marx,
gênero e feminismo (v.1) (2020) compõem, entre outras, a tese de que a acumulação
primitiva do capital se fez com a subjugação do corpo feminino, recluso ao ambiente
doméstico como lugar de reprodução da força de trabalho.

A pesquisa de Federici, com base histórica, mostra que o período pré-capitalista de


expulsão dos camponeses de suas terras também contou com a caça aos conhecimentos
e a destruição da representação das mulheres na comunidade feudal. A doutrinação, o
disciplinamento e a violência contra as mulheres destroçaram a resistência ao poder da
burguesia.

Esta tese de Silvia Federici e de suas parceiras do movimento Coletivo Feminista


Internacional coloca para os estudiosos do feminismo o compromisso de não reduzir o
tema a uma questão particular de gênero. A obra de Federici nos convida a compreender
a subjugação da mulher no contexto do processo histórico da acumulação de capital, da
exploração do trabalho de reprodução como celeiro da força de trabalho necessária à
extração de mais valor, ou seja, a produção da mercadoria trabalhador.

O corpo da mulher é, para a autora, como a ‘fábrica’ explorada pelo capitalista. A


subordinação – financeira, sexual, moral, institucional – da mulher ao homem se faz
pelo controle do corpo e do imaginário. O controle da sexualidade feminina é ainda hoje
uma realidade. Seja pela lógica do consumo, da religião, da legislação civil, o corpo da
mulher é tratado como propriedade alheia. Deste modo, Silvia Federici destaca a

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importância do conceito Mulher e trava, em sua argumentação, uma discussão sobre a
relevância da diferença sexual.

Em seu livro mais conhecido, O Calibã e a Bruxa, mulheres corpo e acumulação


primitiva, Federici afirma que inclui na análise que faz uma série de fatores que foram
esquecidos por Marx, em O Capital, entre eles: “o desenvolvimento de uma nova
divisão sexual do trabalho; a construção de uma nova ordem patriarcal, baseada na
exclusão das mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens; a
mecanização do corpo proletário e sua transformação, no caso das mulheres, em uma
máquina de produção de novos trabalhadores.”(2017, p.26).

Federici traz para o debate aspectos históricos sobre o papel da mulher no feudalismo e
no capitalismo, demonstrando por meio de sua pesquisa, como as mulheres foram
fundamentais no processo de acumulação primitiva de capital e, na atualidade, como
celeiro do trabalho reprodutivo. Portanto, para Federici, a luta de classes é a luta pela
emancipação das mulheres.

A questão feminista colocada nessa perspectiva dá dimensão de sua relevância. Não se


trata de disputas entre sexos, não se trata de tornar o gênero como um tema entre outros.
Trata-se de explicitar que as mulheres continuam ganhando menos que os homens no
mesmo trabalho, continuam subordinadas a leis e religiões draconianas que decidem
sobre seu corpo, sobre o direito de ir e vir e de livre expressão, trata-se de que o
feminicídio é parte de nosso cotidiano.

O Brasil é um país cuja força de trabalho feminina é triplamente marginalizada e


subjugada: como assalariada precária, em trabalhos informais de cuidados e domésticas,
mal pagas, com longas jornadas; como mães desassistidas de equipamentos sociais para
seus filhos; como reprodutoras da força de trabalho – progenitoras, geram para o capital
a força de trabalho do amanhã.

Por tudo isso, chega em muito boa hora este livro organizado por Julice Salvagni, com a
contribuição de jovens pesquisadoras que analisam diferentes aspectos que envolvem a
temática da luta das mulheres na atualidade com a perspectiva emancipacionista de
Silvia Federici.

Roseli Figaro

Outubro de 2023.

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