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ATorá Oral dos Fariseus

Textos da Tradição de Israel


Coleção D ocumentos do mundo da bíblia

• Criação e 0 dilúvio (A):


segundo os textos do Oriente Médio antigo, W.AA.
• Flávio Josefo, uma testemunha do tempo dos apóstolos, W.AA.
• Torá oral dos fariseus (A), Pierre Lenhardt; Matthieu Collin
Pierre L e n h a rd t- Matthieu Collin

A Torá Oral dos Fariseus


Textos da Tradição de Israel

PAULUS
Título original
La Torá orale des pharisiens:
textes de la tradition d'lsrael.
© Editions du Cerf, Paris

Tradução: Nadyr de Salles Penteado


Revisão: Tiago Giraudo
Capa: Leticia Monteiro
Editoração, impressão e acabamento: PAULUS

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lenhardt, Pierre
A Torá oral dos fariseus: textos da tradição de Israel / Pierre Lenhardt.
Matthieu Collin; tradução Nadyr de Sales Penteado. - São Paulo: Paulus, 1997. -
Coleção Documentos do mundo da Bíblia.
Bibliografia
ISBN 978-85-349-0643-2
1. Fariseus 2. Judaísmo - Relações - Cristianismo 3. Tradição oral
I. Collin, Matthieu. II. Título. III. série

95-4698 CDD-222.1

índice para catálogo sistemático


1. Torá: Bíblia: Antigo Testamento 222.1

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1a edição, 1997
2areimpressão, 2018

© PAULUS - 1997

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Papel produzido
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FSC· C108975
ISBN 978-85-349-0643-2
TERRA INCOGNITA, lê-se nos mapas-múndi antigos: país
inexplorado. A literatura rabínica é um vasto mundo desconhecido
da quase totalidade dos cristãos ...
O estudo atento deste Documento dará ao leitor não somente
melhor conhecimento do meio em que viveram outrora Jesus de
Nazaré e seus discípulos, Paulo de Tarso e muitos outros; mas levará
também a uma reflexão teológica renovada sobre os vínculos que
unem Escritura e Tradição, no catolicismo. Toda a nossa concepção
da Igreja pode ser enriquecida por este trabalho de P. Lenhardt e M.
Collin; trata-se de uma colaboração considerável cuja importância
ainda não avaliamos totalmente.
Com muita frequência, permanecemos, nós, cristãos, na
ignorância do que é o judaísmo. Ora, como é possível respeitar e amar
o que não se conhece? Infelizmente, a ignorância gera inverdades
que alimentam o ódio... Que este Documento possa contribuir para
que a Tradição judaica venha a ser melhor conhecida e amada.

Hugues Cousin
PROLOGO
I
Sabe-se que, na época de Jesus, os judeus pertenciam a grupos
religiosos diversos e, às vezes, opostos; nesse caso estavam, sobre-
tudo, os fariseus e os saduceus.
Há, na teologia farisaica, um ponto fundamental, cuja impor-
tância positiva ultrapassa a controvérsia com os saduceus ou qual-
quer outro grupo: é a existência da Tradição de Israel, recebida e
transmitida como Palavra de Deus, a que os fariseus dão o nome de
Torá oral. É uma pena que esse ponto seja, frequentemente, desco-
nhecido em meio não judeu e por muitos cristãos.
Da mesma forma, o Evangelho, antes de ser consignado por
escrito, foi anunciado e pregado (ICor 15 1,11). Os fiéis acolheram
esse Evangelho oral como Palavra de Deus (lTs 2,13). Como é pos-
sível, então, que o Evangelho tenha sido anunciado como Palavra
de Deus, como Torá, por judeus a judeus? Não foi por que esses
judeus tinham uma visão da Torá, que tornava possível e compre-
ensível esse fato?
Não basta responder sim a essa pergunta; vale a pena dizer
por quê; e por que razão se deve valorizar o vínculo entre o Evan-
gelho e a Torá oral dos fariseus. É o propósito do n. 58 da coleção
Cadernos bíblicos, da Paulus (Evangelho e Tradição de Israel), cader-
no dedicado à descrição desse vínculo fundador e à exploração das
consequências para a vida cristã.
Esse caderno, escrito num a perspectiva de teologia cristã,
apoia-se sobre inúmeros textos rabínicos, discutidos e explicados
em função de sua pertinência para melhor compreensão do Novo
Testamento e aprofundamento da fé cristã. Mas os textos rabínicos
têm, com toda a evidência, sua razão de ser, seu sentido próprio,
independentemente das ressonâncias que suscitam ou deveríam
suscitar em meio cristão.11

1 As Notas da comissão da Santa-Sé para as relações com o judaísmo, de 24 de junho de


1985 (Documentation Catholique, n. 1900, 21 de julho de 1985, p. 733), 1, 3 e 4, esclarecem
que é preciso levar em conta "a fé e a vida religiosa do povo judeu, como são professadas
e vividas ainda agora", e que é necessário fazer o aprendizado dos "traços essenciais (pelos
quais) os judeus se definem a si próprios em sua vivência religiosa".

7
É para melhor manifestar a riqueza própria da Tradição de
Israel que os autores desse caderno, alunos de mestres judeus da
Universidade Hebraica de Jerusalém, propõem também o presente
Documento. Os textos que nele são apresentados serão escutados
e explicados, em primeiro lugar, e, principalmente, pelo que sig-
nificam em seu contexto próprio. No entanto, seria inútil e errado
querer abstrair da fé cristã, que é a dos autores e da maioria dos
leitores do Documento. Assim, permitimo-nos aludir a textos cris-
tãos, e mesmo citá-los e discuti-los em todas as ocasiões em que isso
pareceu necessário. Agindo assim, não se inova, aliás, de modo al-
gum, em relação ao que mestres judeus praticam já há muito tem-
po, valorizando o que a Tradição cristã, Novo Testamento e Padres
da Igreja fornecem como informação sobre o judaísmo dos primei-
ros séculos de nossa era; é o caso, por exemplo, de E. Urbach e de
J. Heinemann.
O caderno e seu Documento propõem, assim, dois encaminha-
mentos que se completam m utuamente.

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INTRODUÇÃO

A Torá, a Palavra de Deus que os mestres fariseus ensinam ao


povo de Israel, já antes do tempo do Novo Testamento, não é ape-
nas a Escritura, a Torá escrita. Compreende também, e antes de
tudo, a Tradição que deve ser denominada Torá oral.
A oralidade da Tradição é a de uma Palavra que é, na origem,
recebida de Deus, que dá e alimenta a vida. O campo da oralidade
não se reduz, pois, ao que é dito pela boca e escutado pelo ouvido;
estende-se a toda a experiência de vida.
A convicção farisaica de que a Tradição, discutida e examina-
da, deva chamar-se Torá, propagou-se em Israel, com continuidade
autêntica, até os nossos dias. Ela se expressou de muitas maneiras
e através de múltiplas formulações não passíveis de organização em
sistema, mas que revelam uma teologia consciente e coerente.
É essa teologia que desejamos apresentar numa primeira parte
a que demos o título de "A Torá oral é coerente". Os textos estu-
dados e as formulações que propõem são de épocas diversas. Jul-
gamos que é um bom procedimento ir ao encontro da oralidade
na forma em que ela própria se apresenta, e não criticá-la antes
de ouvi-la e compreendê-la. Comparando com a música, é melhor
ouvi-la antes de se dedicar à musicologia. Essa primeira parte vai
nos permitir compreender que a oralidade da Torá oral deve, com
certeza, distinguir-se da "escrituralidade" da Escritura, mas não se
define pela "não-escrituralidade". De fato, a Torá oral é, por si mes-
ma, anterior e exterior à Escritura, e independente da Escritura que
ela recebe, engloba e interpreta.
A Tradição oral não se teria imposto como Torá, contra os sadu-
ceus - para falar apenas de oponentes claramente reconhecíveis -,
se não tivesse sido entendida como tal antes da destruição do Tem-
pio, no ano 70 de nossa era. Os textos que apresentaremos na se-
gunda parte, intitulada "A Torá oral é histórica", ilustrarão o rigor e
a flexibilidade da oralidade farisaica, que se abre à novidade, quan-
do ela é fiel. É assim que se pode e se deve formular, segundo os

9
tempos e as circunstâncias, o que já existe na fé e na vida do povo.
Essas formulações permanecem orais, expressas em uma "textua-
lidade oral" que se distingue da "escrituralidade" da Escritura pela
proibição relativa de escrever a Torá oral. As anotações escritas em
matéria de Torá oral não passam de lembretes.
Na terceira parte, intitulada "A Torá oral é manifesta", apre-
sentaremos textos que revelam a vivência da oralidade da Tradição.

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I a PARTE
A TORÁ ORAL É COERENTE
Esta primeira parte tem por fim mostrar uma coerência, não
um sistema.1 Os títulos que demos para balizar o estudo não são,
intencionalmente, numerados. Precedem os textos que, estes sim,
por comodidade, são numerados. Não pretendem comandar a in-
terpretação desses textos, mas apenas facilitar o acesso a eles. A for-
mulação dos títulos é, com frequência, tirada dos textos ou inspira-
da por eles. O leitor, por si mesmo, vai perceber isso. Dependendo
dos casos e da dificuldade dos textos, a explicação e os comentários
precedem ou seguem os textos. Estes são apresentados num a tra-
dução tão literal quanto possível, com referências e paráfrases indi-
cadas entre parênteses.

A TORÁ ORAL ENGLOBA A TORÁ ESCRITA


Quando os mestres de Israel se reúnem, depois da destruição
do Templo, no ano 70 da era cristã, em torno de Rabban Yohanan
ben Zakkai, e depois, de Rabban Gamaliel, neto de Gamaliel - o
mestre de São Paulo -, sua maior preocupação é reconstruir a uni-
dade do povo em torno da unidade da Torá.
Os problemas postos pela Escritura, a Torá escrita, são secun-
dários em relação aos apresentados pela Tradição, a Torá oral. Esta,
efetivamente, marcada pelas divisões que desfiguraram o judaís-
mo antes da destruição do Templo, foi enfraquecida, mutilada pelos
massacres da guerra, pela morte de muitos mestres e discípulos,
transmissores da Torá oral.
É preciso reorganizar essa Torá oral em torno e a partir de uma
coletânea de tradições, à qual será reconhecida uma autoridade,
um valor de referência, muito especiais. Essa coletânea, chamada
Mishná (coisa estudada e ensinada por repetição), foi redigida de
forma oral pelas gerações sucessivas entre os anos 80 e 220 mais ou
menos. Publicada oralmente por seu último redator, Rabbi Yehuda,
0 Príncipe, a Mishná - "a nossa Mishná", dizem os judeus - apre-1

1 Os mestres de Israel jamais propõem um sistema. Desconfiam das generalizações.


É assim que o Rabbi Yohanan (segunda metade do século III d.C.) diz: "Não se pode
retirar das regras gerais um ensinamento absoluto, mesmo quando elas enumeram as
exceções"(T. B. Qiddushin 34a).

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senta um resumo de tradições relativas a todos os campos da vida
judaica. Certos tratados de Mishná dão enunciados importantes da
fé judaica, por exemplo, da fé na ressurreição dos mortos. Um tra-
tado distingue-se dos outros por seu caráter sapiencial e suas pre-
ocupações históricas. É o tratado ‫״‬Abot" ("Pais"), que apresenta,
efetivamente os Pais, isto é, os mestres da Torá,2 sucedendo-se a
partir de Moisés, o primeiro profeta e mestre. Vejamos o começo
dessa Mishná Abot.

1. Mishná Abot i, 1-2


* gibbel M oisés recebeu* a Torá no Sinai e a trans-
* mesarah m itiu* a Josué. Josué transm itiu-a aos
A nciãos e os Anciãos a transm itiram aos
Profetas. Os Profetas transm itiram -na aos
h om en s da Grande A ssem bléia. Estes dis-
seram três coisas: "Sede ponderados no
exercício da justiça; suscitai m uitos disci-
pulos; fazei um a cerca ao redor da Torá".
Sim eão, o Justo, estava entre os últim os
da Grande A ssem bléia. Dizia ele: "O m un-
do repousa sobre três coisas: a Torá, o Cul-
* 'abodah to* e os atos [recíprocos] inspirados pelo
* gemilut hasadin amor*".

Existe outra versão, mais pormenorizada, desse resumo da his-


tória da Tradição de Israel. Ela aparece numa coletânea paralela
à Mishná Abot, chamada Abot-de-Rabbi Nathan.3 Porém, detalhes e
variantes não mudam nada ao laconismo dessas formulações tradi-
cionais. Esse laconismo nos impõe alguns esclarecimentos.
Deus não é mencionado. De fato, o ponto de partida que deve
ser marcado pelos homens. Antes de ser transmitida por Moisés e
seus sucessores, ela é recebida (de Deus). Denominar Deus seria
não apenas inútil, mas inábil.

‫ נ‬Os mestres íariseus, que transmitem a Torá de Deus, Torá de Moisés (Is 7,6.10),
são chamados na Mishná (Ediyot 1,4) "Pais do mundo". No contexto da oração, os
patriarcas Abraão, Isaac e Jacó é que são chamados Pais. Também é dos patriarcas que
se trata quando, nos textos rabínicos, aparece a distinção entre o "mérito dos Pais" e a
"retribuição dos mandamentos".
5 Abet de-Rabbi Nathan, versões A e B, cap. 1 "Leçons des Pêres du monde", tradução
francesa de E. Smilevitch, coleção Les Dix Paroles, Paris: Verdier, 1983. Esta versão
interessante é estudada no Caderno Bíblico n. 51, p. 30.

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Trata-se da Torá simplesmente, não da Torá escrita e da Torá
oral, ao passo que o texto subentende, como veremos, que o tema
é, antes de tudo, a Torá oral.
Josué e os Anciãos precedem os Profetas. Isso, em linhas ge-
rais, conforma-se ao que está escrito no Pentateuco; no entanto,
não teremos a preocupação de justificar essa coerência através de
citações da Escritura. O que conta é a visão de conjunto, resumida
de maneira radical. Depois dos Profetas, cuja atuação é reconhecida
até a volta do Exílio, passa-se aos "homens da Grande Assembléia";
esta procede de Esdras, Neemias e seus companheiros e correspon-
de ao Conselho dos Anciãos, mencionado em 1 Macabeus (12,6.35;
14,19.28; cf. Eclo 7,7), e acabará por se tom ar o Sinédrio da épo-
ca romana, mencionado no Novo Testamento. O resumo despreza
todos os pormenores anedóticos, para ensinar o essencial: há uma
ligação histórica, real e não mítica, entre Moisés, o primeiro mes-
tre - o mestre de todos, aquele a quem os judeus chamam "Moisés,
nosso Mestre" -, e os antepassados dos mestres fariseus que apare-
cem na continuação da Mishná, depois de Simeão, o Justo.
O laconismo significa a oralidade da Torá oral, de várias ma-
neiras.
• O resumo, por si só, é mais fácil de guardar na memória que
os pormenores.
• A oralidade supõe conhecidos os pormenores, as introduções
e os complementos que serão dados verbalmente pelo mestre, pai
ou irmão do destinatário da mensagem; por exemplo, que Deus
existe e que ele deu sua Torá no Sinai, segundo o que está escrito
no livro do Êxodo etc.
• O resumo que insiste sobre a historicidade da transmissão da
Torá supõe que se trate, antes de tudo, da transmissão da Tradição
propriamente dita, a Torá oral. Sem dúvida - haveremos de ver
-, a Torá oral dos fariseus sabe e ensina que a própria Escritura é
Tradição e é transmitida por Tradição.4 Mas aqui, a Mishná, por sua
concisão, insiste mais sobre a corrente de transmissão do que sobre
a Torá transmitida. Isso só será entendido se a intenção principal for
a de justificar a autenticidade da Torá oral, dependendo, de modo
muito especial, mais do que a Torá escrita, da legitimidade da su-
cessão dos mestres.

4 T. B. Niddash 45a. Os discípulos do Rabbi Aqiba dizem que "toda a Torá é regra de
Moisés desde o Sinai" (cf. adiante o comentário sobre o texto n. 13).

15
Por mais lacônico que seja, esse início da Mishná Abot nos en-
sina um vocabulário e uma teologia que merecem, também eles,
algumas explicações.
• O vocabulário da recepção/transmissão (Qabbalah / Massorah)
é o da Tradição oral dos fariseus. Ele se aplica, antes de tudo, à
recepção/transmissão dessa Torá oral mesma, e aparece, com mui-
ta frequência, na literatura rabínica. Convém observar que São
Paulo utiliza esse vocabulário para transmitir a Tradição que rece-
beu quanto à ceia do Senhor (ICor 11,23) e quanto ao Evangelho
(ICor 15,1 ss). Deste último contexto, decorre que Paulo emprega o
vacabulário farisaico da recepção/transmissão para "anunciar" pre-
cisamente o Evangelho oral que ele "prega", tanto ele quanto os
outros apóstolos (cf. Cadernos bíblicos n. 51, p. 65).
• A primeira Mishná, a que chega às três coisas ditas pelos ho-
mens da Grande Assembléia, parte da Torá recebida - poderiamos
dizer "objetiva" - independente, em sua origem, de Israel e de toda
a humanidade. Mas essa Torá é recebida para ser transmitida por
homens a outros homens. Sem dúvida, é a mesma Torá que, re-
cebida, vai ser transmitida, flá, porém, uma passagem obrigatória
através da subjetividade do homem que recebe e transmite. Essa
passagem pode ser mínima, quando se trata da Torá escrita; pode
consistir apenas em um gesto da mão que transmite o texto escrito,
ou no esforço do olho que lê ou da voz que faz os ouvintes escuta-
rem o texto. Essa passagem mínima já é, se for consciente, a Torá
oral, como veremos. Deve-se perceber, para além desse mínimo,
que a transmissão por meio de homens exige, em nome da fideli-
dade, uma flexibilidade inovadora que é, de modo muito especial,
o fato da Torá oral. É assim que, muitos séculos depois de Moisés,
seus sucessores ensinam três coisas que provavelmente não foram
ditas de forma literal por Moisés, mas que são ensinadas como pro-
cedentes dele e que são Torá. Dessas três coisas, que mereceríam ser
estudadas pormenorizadamente, conservemos apenas a prescrição
central: "Suscitai muitos discípulos". Tal ensinamento supõe que a
Torá seja, antes de tudo, a Torá oral. É mesmo necessário ter dis-
cípulos, para transmitir só a Torá escrita? A Torá escrita terá valor
para Israel, se não for lida e interpretada - o que depende da orali-
dade e, segundo os fariseus, da oralidade da Torá oral?
• A segunda Mishná, a que apresenta as três coisas ditas por
Simeão, o Justo, revela a oralidade de maneira ainda mais direta.

16
A Torá, sobre a qual se diz aqui que se desenvolve em culto
e ações recíprocas inspiradas pelo amor, é sem dúvida a mesma
Torá, recebida e transmitida, de que se trata na Mishná anterior.
Mas essa Torá é apresentada como a Torá "subjetiva", vivida pelos
homens e mulheres de Israel, individualmente e em comunidade.
Ela deve ser vivida em duas direções:
- Uma direção vertical, pode-se dizer, que é a do culto, do
serviço divino nos sacrifícios realizados no Templo e na oração do
coração;
- Uma direção horizontal, das relações sociais realizadas na
reciprocidade do amor ao próximo.
Evidentemente, trata-se da vivência de toda a Torá, de uma
Torá atualizada que se inspira nos ensinamentos recebidos da Torá
objetiva, escrita ou oral. Essa Torá vivida é oral, não necessária-
mente porque pronuncia palavras, mas porque é a Torá ativa para
aquém da Escritura que ela interroga, e para além da Escritura que
ela cumpre na exegese e na ação (cf. textos n. 9ss; Cadernos bíbli-
cos n. 51, p. 28ss).
Embora esse primeiro texto não mencione a Torá oral nem
tenha tido, provavelmente, a intenção de escondê-la sob uma for-
mulação calculada, revela, por seu laconismo radical e sua limpi-
dez, a existência de uma Torá oral que engloba a Torá escrita; o que
torna possível que a Torá simplesmente seja recebida, transmitida
e vivida.

A TORÁ ORAL PRECEDE A ESCRITURA; ELA É PREFERÍVEL


A Torá oral é o código fundamental da aliança; ela revela a elei-
ção de Israel e certifica sua separação dos outros povos.
A partir do tempo em que a Escritura, Palavra de Deus, serve
de norma de vida para Israel, ela é incessantemente lida, comenta-
da e atualizada em vista da prática. Na época do Novo Testamento,
já existem muitas interpretações que se ordenam em duas grandes
categorias:
- A atualização que justifica ou mantém a Halaca, isto é, o en-
sinamento autorizado em matéria de prática, de comportamento;
- A atualização que ilumina a Hagadá, isto é, o ensinamento
teológico, espiritual, homilético, encarregado de m anter a fé e a
esperança do povo.

17
A Escritura é objeto de pesquisa (Midrash), cuja intensidade só
se compreende se é realmente Deus que se procura encontrar em
sua Palavra.
Os mestres fariseus exercem essa atividade, divulgam-na no
meio do povo e a mantêm pela liturgia sinagogal. Para esses mes-
tres, a exegese, o Midrash, seja de Halaca, seja de Hagadá, faz parte
da Torá oral. A reorganização da Torá oral, que se traduz, em primei-
ro lugar, pela redação da Mishná, como vimos, comporta também
a reunião mais ou menos sistemática de coletâneas exegéticas. As
mais antigas dessas coletâneas e as tradições mais antigas que elas
reúnem distinguem-se pelo laconismo, pelo estilo alusivo e outros
traços de sua oralidade, que destacaremos na terceira parte. Cole-
tâneas mais recentes, que podem ter sido compostas na Terra de Is-
rael, por volta dos séculos VII e VIII, sem dúvida, transmitem ainda
tradições antigas e algumas formulações arcaicas, que atestam sua
oralidade original. Mas elas refazem também por escrito, num estilo
que já é um estilo escrito, o dado imemorial que atualizam.
O texto que estudaremos agora é tirado do Midrash Tanhuma,
na versão corrente dessa coletânea. A redação é tardia, escrita a
partir de elementos antigos. Ela já não respeita com exatidão os
nomes dos mestres. Dá, sem distinguir o novo do antigo, as atuali-
zações exegéticas que lhe parecem importantes.
A formulação tardia tem a vantagem de dar a conhecer pres-
supostos fundamentais de que viviam as gerações anteriores, com
certeza, sem necessidade de explicá-los.

2. Tanhuma Ki Tissa s / Ex 34,27 Ed. Eshkol p. 429-430

(Ex 34,27) E o Senhor disse a Moisés: "Es-


creve estas palavras" [...] é o que disse a Es-
critura (Os 8,12): A in d a q u e eu lh e tivesse
escrito um g ra n d e n ú m ero d e en sin am en -
to s da m inh a Torá, não seria ela con side-
rada com o algo estran h o? O Rabbi Yehu-
dah bar Shalom disse: "Quando o Santo,
b en d ito seja, disse a Moisés: 'Escreve [...]‫׳‬,
M oisés ped iu que tam bém a Mishná fos-
se feita por escrito. Mas o Santo, bendito
seja, previa que as nações do m undo iriam
traduzir a Torá, lê-la em grego e dizer: 'Is-
rael som os nós'.

18
E, d e fato, até agora, a coisa continua em
suspenso. O Santo, b en d ito seja, disse às
nações: "Vós dizeis que sois m eus filhos;
não sei. Na realidade, aqueles a quem são
confiados os m eu s m istérios, esses são
m eus filhos".
D o que se trata? Trata-se da M ishná que
foi dada oralm ente e, tu d o isso, cabe a ti
tirar [da Escritura] por interpretação".
O Rabbi Yehudah bar Shalom disse: "O
Santo, b en d ito seja, disse a Moisés: 'Que
pedes? Que a M ishná seja feita por escri-
to? Mas, então, o que distinguiria Israel
das nações? Como foi d ito (Os 8,12): A in -
da q u e eu lh e tiv e sse escrito um g ra n d e
n ú m ero d e en sin a m en to s da m in h a Torá,
en tã o ce rta m e n te ela seria considerada
com o algo estranho. D á-lhes, pois, a Escri-
tura* por escrito e a M ishná por transm is-
são oral'".
O Midrash, homilético, explica o sentido dos versículos-chave
da Escritura, segundo a ordem das perícopes lidas nos Sabás e nas
festas, na sinagoga.
Chegando a Ex 34,27, a explicação começa, pelo que se chama
"abertura";5 pela abertura do sentido das palavras: "Escreve estas
palavras". A abertura se faz recorrendo a Os 8,12 que, ouvido com
atenção, sugere outra coisa, que não a que é percebida na primeira
escuta.
Ao ser ouvido pela primeira vez, o versículo diz, sobretudo, o
seguinte: “É inútil escrever-lhe o grande número de ensinamentos
da minha Torá; esse grande número será considerado como algo
estranho" (cf. Bíblia de Jerusalém). O Senhor se queixa de que essa
Torá, embora largamente divulgada por escrito, permanece estra-
nha a Israel.
Mas é possível, com um pouco de imaginação - e devemos
tê-la se, por amor, nos interessarmos por todos os sentidos que a
Palavra de Deus pode ter -, ouvir outro tom na queixa do Senhor.

5 A abertura consiste em esclarecer um versículo principal, o do início da perícope da


leitura litúrgica (Torá ou Profetas), por meio de um versículo tirado de outra parte da
Escritura, particularmente dos Hagiógrafos (ou dos Escritos: terceira parte da Bíblia,
depois da Torá e dos Profetas). Ver texto η. 11 e Cadernos bíblicos, n. 51, p. 21.

19
A modalidade do verbo hebraico, ao invés de significar: "É inútil es-
crever", pode querer dizer: "Se eu escrevesse, se eu tivesse escrito".
Temos então a interpretação-tradução que demos no texto citado
integralmente (Uma tradução é sempre uma interpretação).
Ouvido e entendido assim, Oseias abre o sentido de Ex 34,27:
"Escreve estas palavras". As palavras que são escritas, a Torá escrita,
são apenas uma parte, a parte minoritária, do conjunto das palavras
que foram ditas.
Na terceira parte, voltaremos às características manifestas da
oralidade da Torá oral. Temos uma, na maneira pela qual a exegese
rabínica valoriza a entonação na leitura e na escuta de um versí-
culo.
Porém, o que nos interessa aqui é a teologia da oralidade. A
cena descrita em nome de Rabbi Yehudah bar Shalom ressalta uma
afirmação capital: no início, todas as palavras foram ditas oralmen-
te. É em uma segunda fase que uma parte dessas palavras, a Escri-
tura (miqra) foi posta por escrito. Assim, a Torá oral precede crono-
logicamente a Torá escrita.
É claríssimo que a anterioridade cronológica decorre de uma
anterioridade ontológica: o que atesta a especificidade da aliança
de Deus com seus filhos é a Torá oral. O que está escrito só pode
ser secundário e posterior. Evidentemente, a relativização não pode
comportar nenhum a desvalorização da Torá escrita. Esta é ordena-
da à Torá oral, dependente desta última, sem lhe ser subordinada.
A abertura, cujo desenvolvimento é atribuído ao Rabbi Yehu-
dah bar Shalom (fim do séc. IV), é tardia. A menção desse mestre
no Midrash Tanhuma, como dissemos, não oferece nenhum a garan-
tia. Ela confirma somente o fim do século IV, se tanto, como termi-
nus a quo. Essa época já podería ser aquela em que se reage contra
os cristãos que se apoderaram da Escritura e se consideram o novo
Israel, e mesmo o verdadeiro Israel.
É a polêmica tardia com o cristianismo que impele o judaísmo,
nesse texto, a valorizar a oralidade da Torá. Tem-se afirmado com
coerência que a anterioridade cronológica da Torá oral é a condição
de sua prioridade ontológica.
O Talmude de Jerusalém, num conjunto de redação anterior ao
Midrash Tanhuma, vai nos fornecer uma precisão importante.

20
3. Talmude de Jerusalém Peah II, 6 17a
I .......‫ג‬
O Rabbi Haggai em n om e do Rabbi She-
m u el bar Nahman: "Foram ditas palavras
oralm ente e outras foram ditas por es-
crito. Não saberiam os quais são as prefe-
ríveis se não estivesse escrito (Ex 34,27):
* Lit. pela boca P orqu e fo i em virtu de* d esta s palavras
q u e fiz aliança con tigo e com Israel. Assim
se en ten d e que as palavras orais são pre-
feríveis".

A formulação é ousada. Poderia levar a crer que a Escritura tem


condição inferior à da Tradição. Não é nada disso, como dissemos
acima. O que está em jogo é a coerência da Torá e a possibilidade
de atualizá-la ou, se é possível dizer assim, de "fazê-la funcionar".
Para que a Torá oral, levada pela comunidade, possa dizer a última
palavra, convém que tenha dito a primeira palavra.
A necessidade prática e teológica, sustentada pelo Espírito San-
to, leva a afirmar com toda a segurança que a Torá oral é anterior à
Torá escrita; que a oralidade precede a "escrituralidade". Essa con-
vicção da Tradição de Israel - não hesitemos em observar - tem a
vantagem de ser conforme à realidade. É bem normal, independen-
temente de toda inspiração e de toda teologia farisaica, que o oral
preceda o escrito.6
Na teologia farisaica, essa anterioridade fundamenta uma pre-
ferência e uma precedência.
Acabamos de ver no Talmude de Jerusalém que a preferência
era dada à Torá oral, porque foi em virtude desta que a aliança
fora concluída. Mais adiante voltaremos a esse ponto, a respeito do
poder que a exegese, como Torá oral, exerce em face da Escritura,
para interpretá-la e cumpri-la. Notemos que a preferência é afirma-
da aqui, por assim dizer, de maneira absoluta, anterior a toda con-
sequência prática para a vida do povo, na linha da eleição, isto é, de

f‫ ׳‬O fato de o oral preceder o escrito é uma evidência da qual a própria Escritura é
testemunha. É de admirar que alguns eruditos se esforcem para provar, pela Escritura,
a antiguidade e a anterioridade da Tradição. Na realidade, a evidência não tem de
ser provada, mas manifestada através de exemplos, quando é possível. Sem dúvida,
a Escritura pode provar utilmente, não a anterioridade da Torá oral como tal, mas a
antiguidade desta ou daquela Tradição, no interior da Torá oral.

21
uma preferência inspirada pelo amor. É a Torá oral que permite a
Deus reconhecer seus filhos que conhecem seus mistérios. Em uma
versão paralela do Midrash Tanhuma (versão corrente), encontra-
mos as linhas que vamos ler, no fim da passagem que corresponde
ao texto n. 2.

4. Tanhuma Buber Ki Tissa s/ Ex 34,27 Ed Eshkol p. 116


(Ex 34,27) E o Sen h or d isse a M oisés: "Es-
c re v e p a ra ti estas palavras..." É o que dis-
se a Escritura (Os 8,12): Se eu lh e tivesse
escrito o g ra n d e n ú m ero d e en sin a m en to s
da m in h a Torá, n ão seria ela considerada
com o algo estran h o? Quando o Santo,
b en d ito seja, acabou por dar a Torá, ele a
disse a M oisés, na ordem: Escritura, Mish-
ná, Hagadá e Talmude, com o está dito:
(Ex 20,1): E D eus pro n u n cio u to d a s estas
palavras. M esm o o que perguntaria a seu
m estre discípulo experim entado, o Santo,
bendito seja, disse-o a M oisés nessa hora,
com o está dito: E D eus p ro n u n cio u to d a s
estas coisas. Quando M oisés a conheceu,
o Santo, b en d ito seja, lhe disse: "Vai, en-
sina-a a m eus filhos!" Moisés lh e disse:
"Mestre do m undo, escreve-a para teus
filhos!" Ele lh e disse: "Eu bem gostaria
de dá-la a eles por escrito, m as é eviden-
te d iante de m inha face que as nações do
m undo terão d om ín io sobre eles, tom á-
-la-ão deles e m eus filhos serão com o as
nações do m undo. Assim, pois, dá-lhes a
Escritura por escrito, e a Mishná, a Haga-
dá e o, Talm ude oralm ente". E o Senhor
disse a Moisés: E screve para ti: é a Escritu-
ra. P orqu e fo i em v irtu d e de·, a Mishná e
o Talm ude é que fazem a separação entre
Israel e as nações do m undo.

Essa versão, tardia em relação à do Midrash Tanhuma corrente,


acentua a polêmica e emprega aqui a palavra-chave ‫״‬separação"; a
palavra que caracteriza a situação de Israel em relação às nações.
Assim, a oralidade não é imposta a Israel somente para que ele se

22
distinga dos outros povos. Porque é oral, a Torá atesta, pela separa-
ção conveniente, a própria identidade de Israel.7

A TORÁ ORAL TRANSMITE A TORÁ ESCRITA


E INTERPRETA TODA A TORÁ
Acabamos de ver que a Torá oral engloba e precede a Torá es-
crita. Aparecia também nos textos citados que é em virtude das
palavras da Torá oral que subsistem as da Escritura. Na realidade já
sabemos, pois, que a Torá oral transmite a Torá escrita e interpreta
toda a Torá.
Porém, observando mais atentamente, ainda não sabemos
como são concebidas essa transmissão e essa interpretação. A ques-
tão é importante, pois ela se apresenta bem antes de aparecer 0
cristianismo, na época em que se defrontam fariseus e saduceus.
Os elementos do conflito, que não se reduzem à teologia, são, no
entanto, essencialmente teológicos. Divergências sobre a existência
e 0 papel dos anjos, sobre o financiamento do holocausto perpétuo,
desavenças por causa do calendário e da liturgia, tudo isso já foi
bem estudado e não será tratado aqui, apesar de todo o interesse
que havería em mostrar quanto esses temas de conflito são secun-
dários, comparados ao que incide sobre a relação entre Escritura e
Tradição. É esse conflito que começaremos a estudar no texto que
se segue. É a partir dessa oposição fundamental que poderemos
localizar outros aspectos importantes da coerência farisaica, parti-
cularmente o laço intrínseco que existe entre a oralidade da Torá
oral e a ressurreição dos mortos ensinada pelos fariseus (cf. Textos
n. 18ss).

W T. B. Sabá 30 b-31 a
1.. .
Nossos m estres ensinaram: "Um hom em
deveria sem pre ser h u m ild e e afável com o
Hillel e nunca ser intransigente e im pa-
cien te com o Sham m ai [...]"‫־‬
A conteceu que um pagão se apresen-
tou d ia n te d e S h am m ai e p ergu n tou :

7 A Torá, sobretudo a Torá oral, é a Torá de Israel, do povo separado das nações. Em
princípio, é proibido ensinar a Torá, principalmente a Torá oral, aos não-judeus. Mas
esse princípio conhece todas as exceções exigidas pelo papel de testemunha de Deus,
confiado a Israel.

23
* plural da palavra "Quantas Torot* tendes?". Ele respon-
Torá deu: "Duas: a Torá escrita e a Torá oral".
Ele disse: "Quanto à Torá escrita, eu creio
em ti; quanto à Torá oral, não creio. Faz de
m im um prosélito, sob a condição de m e
ensinares apenas a Torá escrita". Sham-
m ai enfureceu-se contra ele e, irado, ex-
pulsou-o. O pagão apresentou-se, então,
d iante de Hillel. Este o tornou prosélito.
No prim eiro dia, H illel lh e ensinou: "Ale-
* primeiras letras do ph, beth, gim el, daleth".* No dia seguinte,
alfabeto hebraico apresentou-lhe as coisas ao contrário. Dis-
se o pagão: "Mas on tem não m e disseste
isso!". H illel lh e disse então: "Portanto, tu
confias em m im ? Confia tam bém no que
diz respeito à Torá oral". De novo aconte-
ceu que um pagão se apresentou d iante de
Sham m ai e disse: "Faz de m im um prosé-
lito, sob a condição de m e ensinares toda a
Torá, enquanto m e m an ten ho sobre um a
perna só". Sham m ai exp u lsou -o com um
bastão de agrim ensura que tinha na mão.
Ele se apresentou d iante de Hillel. Este o
tornou prosélito. H illel lhe disse: "O que
é odioso para ti, não o faças a teu próxi-
mo; isto é toda a Torá e o resto não passa
de com entário; vai e estuda [...]". Algum
tem p o depois, esses pagãos que se tinham
tornado prosélitos encontraram -se em
* a comunidade de um m esm o lugar e disseram: "A intransi-
Israel na medida em
que ela introduz no gência im p acien te de Sham m ai quis nos
mundo futuro expulsar do m undo*, m as a h u m ild e paci-
ência de H illel nos aproxim ou e conduziu
* Shekinah sob as asas da Presença Divina*".

As duas historietas contadas fazem parte de toda uma série,


cujo objetivo é ilustrar a humildade e a paciência de Hillel.s
É típico da literatura rabínica, e da Tradição oral da qual ela é
o reflexo, que ensinamentos importantes estejam encravados em
conjuntos que escapam a qualquer sistematização. Pontos essenciais8

8 Precisamente porque é humilde, Hillel está na linha de seu mestre Moisés. Aliás, ele
é apresentado como um novo Moisés. Cf. Sifre Deuteronômio s/ Dt 34,7 Pisq 357, p.
429; Midrash Tannaim s/ Dt 34,7 = Texto n. 26.

24
à vida de Israel, quanto à prática e à fé, surgem assim como por aca-
so. O todo é comparável a um oceano, a cuja superfície emergem,
aqui e ali, pontas de iceberg. É preciso alegrar-se com essas preciosas
emergências. Ver, sobretudo, que há um iceberg sob a emergência e,
principalmente, jamais dizer que um iceberg não existe porque não
emerge no lugar e no tempo em que se esperava. Na verdade, ele
pode emergir em outro local e mais tarde, sem perder o interesse
nem a pertinência quanto ao lugar e ao tempo que são do interes-
se do crente e do pesquisador, por exemplo no que diz respeito ao
Novo Testamento.
Como isso foi esclarecido no início deste Documento, não te-
mos agora a intenção de determinar o tempo em que foi formulada
a teologia farisaica da oralidade, o que será estudado na segun-
da parte. No entanto, destaquemos desde logo que os termos Torá
oral/Torá escrita não aparecem em Flávio Josefo, nem no Novo Tes-
tamento. Convém, pois, ter certa prudência e não atribuir, apres-
sadamente, a Hillel e a Shammai formulações que talvez ainda não
tivessem sido aceitas no tempo deles. Quanto à teologia que se ex-
prime nessas historietas, não vemos qualquer razão plausível para
deixar de atribuí-la a Hillel.
Notemos, em primeiro lugar, que as perguntas feitas pelos
candidatos à conversão não são inocentes . Supõem, ambas, um
contexto de divergência entre fariseus e saduceus. Por que se per-
guntaria: "Quantas Torot tendes?" se não se soubesse que os fari-
seus ensinam que há duas Torot, o que é flagrantemente contrário à
teologia saduceia? Quanto à segunda historieta, é menos evidente,
mas haveremos de ver que se trata também da aceitação da postura
farisaica por parte do candidato.
A primeira historieta ressalta que a Escritura não pode dispen-
sar um mínimo de oralidade. Para que a Palavra de Deus escrita seja
entendida, é necessário lê-la e, antes de tudo, aprender a lê-la. Ora,
a leitura, que supõe o conhecimento do alfabeto, só poderá ser feita
se houver um mestre competente e digno de confiança. Isso quer
dizer que a Torá escrita é transmitida pela Torá oral. De fato, como
poderia um mestre conduzir à Palavra de Deus escrita, se a sua Pa-
lavra oral, por mais elementar que seja, não for o início da Palavra
de Deus? Por outro lado, seria concebível que a Palavra de Deus
escrita, a partir do momento em que é lida, deixe de ser Palavra de

25
Deus? O meio oral que transmite e que recebe a Escritura é, pois,
desde o contato com a Escritura, Palavra de Deus.
Sem dúvida, é possível, hoje, e já na época de Hillel, ler a Es-
critura e entender alguma coisa, sem recorrer de modo nenhum à
Torá oral, instruindo-se, por exemplo, junto a um herege ou a um
pagão competente. Mas de quem terão, esses "mestres", recebido
sua "competência", senão, definitivamente, de um mestre respon-
sável da Torá oral? E se se trata de um saduceu de boa-fé, que en-
sina a Escritura como Palavra de Deus, quais serão as condições de
seu ensinamento? Se ele pretende que esse ensinamento é autên-
tico, sem ter, por isso, condição de transmissão da Torá oral, como
pode querer transmitir a Escritura, a partir do momento que ela, na
medida que é ensinada, deixa de ser Escritura?
Tudo isso está compreendido, subentendido na primeira histo-
rieta, de louvor à paciência de Hillel. Na realidade, deve-se mais ad-
mirar o laconismo de seu ensinamento, que mostra que a Escritura
só pode ser conhecida por uma Tradição digna de confiança. Essa
Tradição transmite a Escritura e a interpreta, a começar pelo nível
mais elementar, o da Escritura como objeto: sinais escritos sobre
um suporte material, alfabeto etc. Torá e confiança andam juntas.
Ora, a confiança supõe um meio vivo, uma relação de mestre para
discípulo. A oralidade deve estender-se para aquém e para além das
palavras pronunciadas e transmitidas oralmente. É uma realidade
vivida em comunidade, entre pessoas que ela põe em contato atra-
vés de uma palavra reconhecida como Palavra de Deus, pronuncia-
da ou não, a partir da Escritura ou com referência a esta.
Se restasse algum problema em admitir a legitimidade da Torá
oral, que transmite a Torá escrita e que interpreta essa mesma Torá
escrita, seria preciso lembrar o que vimos acima (cf. textos n. 1-4),
a respeito da anterioridade cronológica e ontológica da Torá oral.
Na verdade, é insuficiente dizer que a Torá escrita vem depois da
Torá oral; deve-se dizer que a Torá escrita provém da Torá oral. Se a
Torá escrita recebe tanto da Torá oral, por que não admitir que ela
só pode dar o que a Torá oral lhe confiou e quer reencontrar nela,
no momento da interpretação e da atualização?
A segunda historieta, como a primeira, apela para os recur-
sos da sabedoria popular e suas imagens. Aqui está um candidato
apressado. Por ironia, ele não sabe que sua pressa ousada corres-
ponde exatamente à possibilidade farisaica de resumir toda a Torá

26
em poucas palavras, e com rapidez. De fato, a Torá se resume na
condição de compreender e estudar; o que ordena Hillel: "Vá e es-
tude!‫״‬.
Para um fariseu, a expressão "toda a Torá" significa: Torá es-
crita e Torá oral. É a de Paulo, em Gaiatas (5,14). Essa fórmula
se distingue, com certeza, de "a Torá e os Profetas" ou "a Lei e os
Profetas" (Mt 7,12; 22,40). Na verdade, porém, essas fórmulas dis-
tintas correspondem a uma mesma realidade quanto ao conteúdo.
"A Torá e os Profetas" significa, sem dúvida, a Escritura, e toda a
Escritura. Para os fariseus, contudo, a Escritura, em parte ou em
sua totalidade, só pode ser entendida na e pela Torá oral. "Toda a
Torá", como "a Torá e os Profetas", significa mesmo a totalidade da
Revelação: Escritura e Tradição. Certamente, o candidato apressado
ainda não sabe disso e não tem, de início, nenhum a intenção de
saber. Ao contrário do primeiro candidato, que se opõe, insolente,
aos fariseus, recusando a Torá oral, o segundo candidato, igualmen-
te atrevido, coloca-se do lado dos fariseus, porque supõe que eles
possam resumir-lhe com rapidez a Torá inteira.
Admiremos, de novo, o laconismo de Hillel que, não apenas
resume toda a Torá em poucas palavras, mas afirma, por sua res-
posta, que a Torá pode ser resumida. O que ele não diz, mas está
implícito, é que a Torá oral precisamente pode resumir toda Torá. A
regra de ouro: "Não faças aos outros o que é odioso para ti", expres-
sa em aramaico, sem nenhum a referência à Escritura é, antes de
tudo, com toda a evidência, um resumo da Torá oral. Como a regra
de ouro de Jesus em Mt 7,12, dita positivamente, "Tudo aquilo que
quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles", sem citação
escriturística, o resumo de Hillel supõe uma teologia da Torá oral
que tem o poder de resumir, em vista da atualização exigida pela
comunidade, segundo as circunstâncias. Para tornar-se prosélito e
entrar na aliança, a melhor atualização é resumir tudo no amor do
próximo.
Em outros casos, tudo será resumido no amor de Deus e do
próximo e é possível apoiar o resumo sobre a Escritura: o amor de
Deus, no início do Shema Israel (Dt 6 ,4 5 ‫ ;)־‬o amor do próximo, em
um versículo do Levítico (19,18), como faz Jesus nos Evangelhos
(Mc 12,29-31 e paralelos). Em outras circunstâncias e em face de
outras prioridades, poder-se-á dizer que toda a Torá fala da ressur-
reição (cf, texto n. 22).

27
Pode-se resumir toda a Torá, porque precisamente a Torá, gra-
ças à Torá oral, é uma plenitude coerente e dinâmica. Por meio da
Torá oral, da oralidade vivida por homens e mulheres em cada épo-
ca da história de Israel, a Torá pode ser reconhecida como completa
e perfeita (cf. texto n. 35).
O texto que acabamos de ler apresentou-nos um ensinamento
conhecido: o do amor do próximo. Sem dúvida, devemos ter feito
o esforço de observar que esse ensinamento posto na boca de Hillel
manifestava uma teologia farisaica e pressupunha a existência de
uma Torá oral. Para explicar o aparecimento desse preceito na boca
de Hillel, não nos podemos contentar em falar da manifestação de
uma cultura universal. O fato de que a Tradição põe a regra de ouro
na boca de Hillel, assim como na boca de Jesus, pode e deve signifi-
car, antes de tudo, a menos que haja prova em contrário, que Hillel
e Jesus realmente ensinaram a regra de ouro. Não são, necessária-
mente, autênticas só as palavras dos mestres que se opõem às idéias
recebidas no meio e no tempo deles, sejam elas internacionais ou
não.
Quanto a Hillel, a regra de ouro não é ensinada, por assim di-
zer, por si mesma; é ensinada porque permite resumir toda a Torá, o
que ensina que a Torá é interpretada pela Torá oral. Aqui, portanto,
não se trata de um ensinamento internacional de atribuição duvi-
dosa, mas, sim, especificamente farisaico, posto na boca de Hillel.
Na segunda parte, discutiremos a historicidade dessa atribuição a
Hillel. Contentemo-nos, no caso, de valorizar a especificidade deste
ensinamento que se apoia na Torá oral.
Para reforçar este ponto, isto é, que independentemente do
conteúdo a Torá oral transmite e interpreta a Torá escrita, parece-
-nos útil apresentar dois textos concernentes ao toque do chifre de
carneiro (shofar), tradicional na liturgia do Ano Novo judaico (Rosh
Ha-Shanah).
A Escritura, considerada em si mesma, independentemente da
Tradição, não faz senão alusões insignificantes a esse rito: Lv 23,24:
"No sétimo mês, o primeiro dia do mês será para vós dia de re-
pouso, comemoração com som de trombeta, santa assembléia". Nm
29,1: "No sétimo mês, no primeiro dia do mês, tereis uma assem-
bleia santa; não fareis nenhum a obra servil. Será para vós um dia
de toques de trombeta".

28
A Tradição, que conhece e organiza com pormenores o toque
do shofar, não hesita em fazer falar o próprio Deus, pela boca deste
ou daquele mestre, de modo a exprimir a convicção de que o rito é
de condição revelada.
Vejamos o texto tradicional que passa revista a certo número
de ritos da Páscoa, de Pentecostes, da festa das Tendas e do Rosh Ha-
-Shanah.

6. T. B. Rosh Ha-Shanah 16 b
1.,Ϊ
Foi ensinado: o Rabbi Yehudah disse em
n om e do Rabbi Aqiba: "Por que razão a
Torá disse: ‫׳־‬Trazei um feixe na Páscoa?‫׳‬
Porque a Páscoa é o tem p o da colheita.
O Santo, b en d ito seja, disse: ‫׳‬Trazei dian-
te de m im um feixe, na Páscoa, d e m odo
que a colheita dos cam pos vos seja aben-
çoada'. E por que disse a Torá: 'Trazei dois
* outro nome de pães na Conclusão*?'. Porque a Conclusão
Pentecostes é o tem p o dos frutos das árvores. O Santo,
(Dt 16,13) b en d ito seja, disse: ‫׳‬Trazei d iante de m im
dois pães na Conclusão, d e m od o que os
frutos das árvores vos sejam b en d itos‫׳‬. E
por que disse a Torá: 'Fazei um libação de
* a festa das Tendas (lRs água na Festa*?‫׳‬. O Santo, bendito seja,
8,2; Dt 16,13; cf, Jo 7,37) disse: ‫׳‬Fazei d iante d e m im um a libação
de água na Festa, de m od o que as chu-
vas do ano vos sejam abençoadas, e direis
d iante d e m im no R osh H a-Shanah as Re-
* chifre de carneiro alezas, as M em órias e os Shofars*, as Rea-
(Ex 19,16; 20,18) lezas para que m e estabeleçais Rei sobre
vós, as M em órias para que vossa m em ória
suba d iante d e m im para o bem; e por que
m eio? Pelo Shofaf".
O Rabbi Abbahu disse: "Por que tocam
um sh ofar d e carneiro?'‫׳‬. O Santo, bendi-
to seja, disse: "Tocai d iante d e m im um
sh ofar de carneiro, para que eu m e lem bre
* termo técnico que em vosso favor da ligadura* d e Isaac, filho
designa o sacrifício de de Abraão, e que eu o atribua a vós com o
Isaac (Gn 22,29); como
Isaac, Jesus foi atado se vos tivésseis atado vós m esm os diante
(Jo 18,12-24) d e mim".

29
O feixe da Páscoa (Lv 23,15), os pães de Pentecostes (Lv 23,17)
são previstos pela Escritura. Porém, as razões do rito não são indi-
cadas por ela.
A libação de água na festa das Tendas não é mencionada na Es-
critura, e ainda menos sua razão de ser. Quanto a Rosh Ha-Shanah,
a Escritura fala de toque, mas não diz que o toque é de chifre de
carneiro (cf. Lv 23,24).
Há lacunas, portanto, e a Torá oral vem preenchê-las. Ela dá
as razões que a Escritura não dá, fazendo falar o próprio Deus. Isto
mostra bem que a Torá oral é Palavra de Deus; ela interpreta a Es-
critura quando esta diz alguma coisa, e fala em nome de Deus, só
ela, quando a Escritura não diz nada.
Essas ausências ou insuficiências da Escritura são uma dificul-
dade muito conhecida, atestada pela Mishná na Tradição anônima
que se segue:

7. Mishná Hagigah 1,8


A dissolução dos votos voa no ar e não
tem sobre o que se apoiar. As h a la k o t do
Sabá, sacrifícios festivos e utilizações sa-
crílegas (Lv 5,14-16), são com o m ontanhas
presas a um fio de cabelo, pois consistem
em pouca Escritura e m uitas H alakot. Os
* o culto, os sacrifícios julgam entos, os trabalhos*, as regras de
pureza, im purezas e nudezes, têm sobre o
que se apoiar; são corpos da Torá.

A dificuldade reaparece mais tarde, provavelmente em conse-


quência dos ataques dirigidos pelos caraítas9 contra a Tradição rabí-
nica em relação ao toque do shofar, rito particularmente importante
e complexo, quase sem base "escriturística".
Vejamos a questão posta por uma comunidade de Kairuan, no
início do século XI, e a resposta dada pela autoridade consultada.

9 Seita judaica que, a partir do século VIII, opõe-se às autoridades rabínicas e só admite
como Torá a Escritura. Atualmente, restam no mundo apenas algumas centenas de
caraítas, quase todos reunidos em Israel.

30
8. Responso de Rab Hai Gaon s/ Rosh Ha-Shanah 34 a
Otzar ha-Geonim p. 60-62
MISHNÁ 4,9: A ordem dos toques é a se-
guinte: três vezes três toques; a duração
do toq u e longo d eve ser a d e três toques
repicados; a duração do toq u e repicado
d eve ser a de três toques entrecortados
[···]
GEMARA 34 a: O Rabbi Abbahu in stitu iu
em Cesareia que h ou vesse um toq u e lon-
go, três toques entrecortados, um toque
repicado e u m toq u e longo [...]
* título inspirado por SI QUESTÃO dirigida a Rab Hai Gaon*, de
47,5 (Geon Yaaqob = a abençoada m em ória, a respeito dos to-
vaidade de Jacó) e dado
aos presidentes das aca- ques d e sh ofar in stitu íd os p elo Rabbi Ab-
demias rabínicas dos bahu [‫״‬.]
séculos VII ao XI. Que nosso Senhor nos exp liqu e [com o é],
pois trata-se d e toques que nos causam,
tod os os anos, dificuldades e discussões.
Rogam os a nosso Senhor - que ele viva
eternam ente! -, que nos exp liqu e em se-
guida qual era a situação antes da decisão
[do Rabbi Abbahu], com o se d eve inter-
pretar a discussão talm údica sobre esse
p on to e com o encontrar, para as palavras
dos diferentes m estres, um a solução que
nos satisfaça e pela qual desapareçam to-
das as dúvidas. RESPOSTA. A ssim pensa-
m os nós: Não é necessário passar por essa
grande dificuldade sobre esse p on to, pois
a norm a pela qual satisfazem os às nos-
sas obrigações e cum prim os a von tad e de
nosso Criador é justa e clara. Nós a tem os
em m ãos, herdada, triplicada, transm iti-
* qabbalah da e recebida na Tradição* d e pais para
filhos, ao longo d e gerações seguidas, em
Israel, d esd e os dias dos profetas até ago-
ra. O que fazem os, isto é: tocam os o sho-
far sentados, segundo o costu m e e toca-
m os o sh ofar d e pé, segundo a ordem das
bênçãos, três vezes três toques; é a norm a
que tem valor legal e que é difundida em
tod o o Israel. E, d esd e que isso está ago-

31
ra estabelecido, em nossas m ãos, e que se
trata de um a regra de M oisés d esd e o Si-
* Halaca le-Moshe mi Sinai nai* segundo a qual, se agirmos de acordo
com ela, terem os cum prido a obrigação e
toda dificuldade já está afastada. E se um
h om em diz que sendo o principal o toque
"longo, entrecortado, longo", é sem valor
o "longo, repicado, longo"; ou que o to-
que "longo, repicado, longo" é o principal
e "longo, entrecortado, repicado, longo"
é sem valor, com eçarão a refutá-lo, dizen-
do: de on d e sabem os que nos foi m anda-
do tocar nesse dia? E o próprio princípio
da Torá escrita, de on d e sabem os que ela
é a Torá d e M oisés, escrita por ele, que a
recebeu da boca do Todo-Poderoso? D e
on d e sabem os isso, senão da boca do povo
de Israel? Pois bem , os que testem u n ham
a Torá são as testem u n has de que, de fato,
cum prim os nossa obrigação. Porque isso
foi transm itido na Tradição, da boca dos
profetas, com o regra d e M oisés d esde o
Sinai; é um a situação majoritária que vale
por tod a a M ishná e tod o o Talmude. E,
acim a de tu d o, há um a prova a partir do
princípio "Sai e vê o que o p ovo faz". Isto
é a base e o apoio. D epois, consideram os
tu d o o que foi d ito na M ishná e no Talmu-
de a esse respeito...

Assim, mil anos depois de Hillel, Rab Hai Gaon volta à justifi-
cação fundamental da Torá oral: a Torá oral, a que ele chama Tra-
dição, é o que permite o conhecimento da Escritura. Para Hillel, a
Torá oral torna possível resumir toda a Torá através do amor ao pró-
ximo. Para Hai Gaon, ela permite que se saiba, com pormenores,
como executar o toque do shofar no Rosh Ha-Shanah. A resposta de
Hai Gaon, tardia, tem para nós a vantagem de apresentar, em toda
a sua extensão, a dificuldade e a ousadia da resposta: é coerente, no
interior de Israel, confiar na Tradição que transmite a Escritura e a
explica. Aqueles que, de fora, atacam a Tradição, são incoerentes ao
usar a Escritura, porque a própria Escritura é Tradição (cf. comentá-
rio sobre o texto n. f3). Observemos também a fórmula transmitida

32
por Rab Hai, a partir do Talmude da Babilônia. "Sai e vê o que o povo
faz" (Berakot 45a). Voltaremos a essa fórmula porque ela exprime o
poder dado ao povo de dizer a Torá através da prática habitual (cf.
comentários sobre os textos n. 16-17).

A TORÁ ORAL CUMPRE A TORÁ ESCRITA


Transmitir, interpretar, não chegam a manifestar o laço estreito,
orgânico, que une Torá oral e Torá escrita. Esse laço, no qual se vê
a manifestação de uma força divina, não é de simples contiguidade
ou conaturalidade. É um vínculo de articulação transformadora. A
Torá oral, que recebe a Escritura, deixa-se interrogar pela Escritura
que ela interroga. O contato dinâmico, cuja iniciativa pertence à
Torá oral, resulta em um enriquecimento dessa mesma Torá, graças
ao completamento da Escritura que ela realiza.
Vejamos isso a partir de dois textos, tirados da mais antiga cole-
ção de tradições exegéticas que possuímos sobre o livro do Levítico.

9. Sifra s / L e v 26,3 Ed. Weiss 110c


(Lv 26,3) Se vos co n d u zird es seg u n d o as
* Yakol m in h a s prescriçõ es [.‫ ]״‬É possível* que se
trate dos m andam entos? Quando a Es-
critura diz (Lv 26,3): [.‫ ]״‬e se gu ardardes
m e u s m a n d a m e n to s e os p ra tica rd es [.‫]״‬,
os m andam entos são m encionados. Pois
* meqayyem bem , com o é que eu cumpro* [a frase]; se
vos co n d u zird es seg u n d o as m in h a s p res-
crições? C onform ando-vos à Torá.
Do m esm o m od o diz a Escritura (Lv
26,14): M as se n ão M e ou virdes. É possível
que se trate dos m andam entos? Quando
a Escritura diz (Lv 26,14) e n ão praticar-
d es to d o s estes m a n d a m e n to s , os m anda-
m en tos são m encionados. Pois bem , com o
é que eu cum pro [a frase] m a s se n ã o m e
o u vird es? C onform ando-vos à Torá.
A dialética dessa passagem é desconcertante. De fato, o versí-
culo que se quer esclarecer (Lv 26,3) não apresenta, ao ouvi-lo pela
primeira vez, nenhum a dificuldade: "Se vos conduzirdes segundo
as minhas prescrições e guardades meus mandamentos e os prati-
cardes".

33
Na realidade, não se sabe exatamente o que significa "Se vos
conduzirdes segundo as minhas prescrições", a menos que se trate
dos mandamentos e de sua prática. Mas, se é disso que se trata, o
versículo é redundante, o que é difícil de admitir, uma vez que se
trata da Torá.10 Convém, pois, pesquisar o objetivo de "Se vos con-
duzirdes segundo as minhas prescrições". É o que faz o Midrash. A
dialética não é aqui um exercício gratuito, mas um método experi-
mentado, praticado pelos que buscam intensamente porque dese-
jam encontrar.
Trata-se de achar um sentido prático no início do versículo "Se
vos conduzirdes segundo as minhas prescrições". Encontrar esse
sentido é "cumprir" a Escritura, isto é, "fazer com que seja sólida",
dar a ela uma consistência que ela não tem enquanto não ensina
nada que empenhe o seu leitor. O sentido proposto, que não é ja-
mais imposto como exclusivo na Tradição de Israel, está nisto: "Se
vos conduzirdes segundo as minhas prescrições, conformando-vos
à Torá". Esse sentido é discutível, mas tem sua razão de ser na co-
erência pela qual a Torá oral é responsável. Antes de agir, antes de
praticar os mandamentos, é preciso dar-se ao trabalho de se orien-
tar no sentido prescrito pela Torá. É necessário estudar, informar-se
e formar-se. A prática sem estudo não é segura. Como disse o Rabbi
Aqiba em Yavné: "O estudo é muito importante, pois leva à ação"
(Sifre Deutéronome s/ Dt 11/13 Pisq 41, p. 85. Cf. Cahier Évangile, n.
73, p. 43).
A questão posta pela Torá oral ("Como é que eu cumpro" a
Escritura? ou "o que é que eu cumpro" com a Escritura?) revela o
vínculo orgânico, intrínseco, que liga a Torá oral à Torá escrita. A
interpretação da Tradição não é somente uma transmissão - o que
ela é antes de tudo. Não se limita a um comentário ou a uma ex-
plicação - o que, sem dúvida, ela é. É a demonstração sem a qual a
Escritura não vive.
Essa primeira passagem salta de Lv 23,6 a Lv 26,14, na segunda
parte da conclusão da "Lei de Santidade", e propõe para o segundo
vínculo, o mesmo cumprimento que para o primeiro.

10 O pressuposto é de que tudo conta na Escritura, mesmo o yod ou iota, mesmo o


menor traço, segundo a visão de Rabbi Aqiba (cf. texto n. 13) e a de Jesus (segundo
Mt 5,18).

34
Dissemos que nenhum sentido encontrado pelo Midrash é ex-
clusivo. É o que mostra a segunda passagem, que segue, tirada da
mesma coletânea, que "cumpre" diferentemente o Lv 26,14.

10. Sifra 5/ Lv 26,14 Ed. Weiss 111b


(Lv 26,14) Mas se não m e o u vird es [...]
[isto quer dizer: se não ouvirdes] o Mi-
* midrasch hakamim drash dos Sábios*. Ou será p ossível, então,
que se trate do que está escrito na Torá?
Quando a Escritura diz (Lv 26,14): [...] E se
não p ra tica rd es to d o s estes m a n d a m en -
tos, é m en cionado o que está escrito na
* meqayvem Torá. Pois bem , com o é que eu "cumpro"*
[a frase]: M as se não m e o u vird es? [Com-
preen d en d o que isso quer dizer:] se não
ouvirdes o Midrash dos Sábios.

Observemos que, nessa segunda passagem, a Torá oral, antes


de se empenhar na dialética do versículo, apresenta em primeiro
lugar o seu sentido: Ouvir o Senhor é ouvir a Torá oral, a inter-
pretação autorizada dada pelos Sábios, pelos Mestres. Não ouvir o
Senhor é não ouvir o Midrash dos Sábios. Assim, vê-se de que modo
a dialética, através da pergunta: "Como cumpro"? ou "O que é que
eu cumpro?", ressalta fortemente o ensino proposto.
Quanto ao conteúdo, está particularmente conforme ao que
nos preocupamos em demonstrar: o cumprimento da Torá escrita
pela Torá oral. Esse cumprimento se faz pela exegese autorizada
dos Sábios, o Midrash Hakamin, que esclarece e sustenta a prática
dos mandamentos. Ora, é a própria Escritura, corretamente inter-
pretada, que ensina isso. Não se trata, aqui, de uma exegese sutil
em demasia. De fato, quando se lê a Escritura que diz: "Se não
me ouvirdes", é coerente ensinar que ouvir é precisamente ouvir a
Torá oral que dá, através do Midrash Hakamim, uma interpretação
segura da Escritura. Era isso que já significava a primeira passagem
sobre Lv 26,3 ("Conformando-vos à Torá"). Na verdade, o estudo
da Torá não se faz de qualquer maneira. Deve ser responsável e
levar à ação. Faz-se estudando primeiro, e com prioridade, o que
ensinam os Sábios; o que ensinam de maneira privilegiada, não
exclusiva, a respeito da Escritura. Os dois textos que acabamos de

35
ver apresentam, como base da ação, o estudo e o cumprimento que
ele torna possível.
Deve-se, pois, distinguir vários níveis no cumprimento da Es-
critura. No primeiro nível, há um cumprimento pela exegese, que
faz compreender no que a Escritura introduz. No segundo nível,
deve-se cumprir a Escritura pela ação, agindo em conformidade
com o que a exegese ensinou. É aí que a Torá oral se torna plena-
mente Torá vivida. O último nível, para que tudo seja cumprido, é o
cumprimento das promessas proféticas na história da salvação. Esse
terceiro e último cumprimento da Escritura, de que voltaremos a
falar, não anula o da exegese, nem o da ação. Tampouco os subs-
titui. Por outro lado, não forma um todo com eles; não se limita a
prolongá-los; traz, na sua natureza, um excedente de alegria que se
pode saborear, antecipadamente, em meio aos piores sofrimentos."
É claro que "o cumprimento" - vocabulário e realidade - está
muito presente no Novo Testamento; por exemplo, no Evangelho
de Mateus (sobretudo em Mt 5,17) e também ao longo do Evange-
lho de João (com - como ponto culminante - as últimas palavras de
Jesus em Jo 19,30). Poderiamos mostrar que, no Novo Testamento,
os três níveis de cumprimento - exegese, ação, história da salvação -
estão presentes juntos, ou seja, misturam-se estreitamente entre si.

A TORÁ ORAL MANIFESTA A UNIDADE


EA DIVINDADE DE TODA A TORÁ
Não valería a pena procurar o cumprimento da Escritura, cujas
dimensões acabamos de determinar, se a Torá, pelo que ela é, não
permitisse realizá-lo.
Há casos em que a Torá oral, ocupando-se de exegese, ma-
nifesta de maneira fulgurante o que é a Torá total, unidade entre
Escritura e Tradição. Vejamos o caso mais antigo cujo vestígio foi
guardado pela literatura rabínica.1

11 No lexto n. 83 (T. B. Berakot 61b), o Rabbi Aqiba, que havia feito uma exegese
de Dt 6,5 (primeiro nível do cumprimento), cumpre essa exegese na ação (segundo
nível): ele dá a sua vida por amor a Deus. No texto n. 71 (T. B. Makkot 24 a-b), ri
porque a promessa profética da felicidade (Zc 8,4) está se cumprindo (terceiro nível, o
da história da salvação). Cf. Cadernos bíblicos n. 51, p. 22-23.

36
11. Talmude de Jerusalém Hagigah I I 77 b
p ■Á

M eu pai, Abuyah, era um a das grandes


personalidades d e Jerusalém . Tendo che-
gado o dia em que eu devia ser circunci-
dado, ele convidou todas as grandes per-
sonalidades de Jerusalém e instalou-as
num a casa. Colocou Rabbi Eliezer e Rabbi
Yehoshua em outra casa. Quando os con-
vidados acabaram d e com er e beber, co-
m eçaram a bater palm as e a dançar. Rabbi
Eliezer disse a Rabbi Yehoshua: "Enquan-
to estes passam o tem p o à sua m aneira,
vam os passá-lo à nossa".
Começaram então a dedicar-se às palavras
da Torá passando da Torá aos Profetas e
dos Profetas aos Hagiógrafos*. D esceu do
* os Escritos céu um f ° g ° que os envolveu. M eu pai,
Abuyah, disse: "Meus Mestres! Viestes
para pôr fogo em m inha casa?". Eles res-
ponderam : "Deus nos livre! Mas nós está-
vam os sentados fazendo um colar* com as
* horzim palavras da Torá. Passávam os da Torá aos
Profetas e dos Profetas aos Hagiógrafos,
e eis que essas palavras se tornaram ale-
gres com o eram quando foram dadas no
Sinai, e o fogo com eçou a lam bê-las com o
as lam bia no Sinai. E, de fato, quando es-
sas palavras foram, pela prim eira vez, da-
das no Sinai, foram dadas n o fogo, com o
está d ito (Dt 4,11): E a m ontanha ardia em
fogo até o centro do céu. Meu pai, A buyah
disse-lhes então: "Meus Mestres! com o é
essa a força da Torá, se este filho perma-
necer vivo, eu o consagrarei ao estu do da
Torá".

Essa narrativa, transmitida por Elisha ben Abuyah ao Rabbi


Meir, seu discípulo,12 descreve uma cena cujo quadro é Jerusalém,
antes da destruição do Templo, por volta do ano 60 do primeiro

12 O Rabbi Meir, discípulo do Rabbi Aqiba, também foi discípulo de Elisha ben Abuya.
Depois que este se tornou herege, o Rabbi Meir, como bom discípulo, tentou até o fim
trazê-lo de volta à Torá.

37
século de nossa era, tempo não muito afastado daquele do Pente-
costes lucano (At 2,1-16).
A junção das palavras da Escritura em colar (harizah) é um
processo pelo qual a Torá oral - aqui o Midrash - apreende e mani-
festa a unidade transcendente da palavra de Deus. Essa transcen-
dência é percebida como o foi no Sinai, no fogo e na alegria, uma
alegria religiosa que não exclui o temor e o tremor.13
O simbolismo do colar remete ao Cântico dos Cânticos (1,10)
em que a amada - Israel, segundo a Tradição - é assim louvada:
"Que beleza tuas faces entre os brincos, teu pescoço com colares".
É exatamente assim: o Israel vivo, como Torá oral, manifesta sua
beleza a partir da Torá escrita, apreendida por intuição, como uma
obra de arte.
A harizah é apenas um processo, entre outros, utilizado pelo
Midrash. No entanto, esse processo tem um lugar privilegiado, pois
é empregado toda vez que a comunidade quer ensinar um ponto
importante da fé de Israel; por exemplo, a ressurreição dos mortos
(cf. texto n. 21).
O texto que acabamos de ver tem ressonância na Tradição que
Lucas transmite no último capítulo do seu Evangelho. Jesus faz uma
harizah, um colar, com as palavras da Torá escrita (Lc 24,27.44),
para abrir o espírito de seus ouvintes à compreensão das Escrituras
(Lc 24,45) que falam de seus sofrimentos, de sua ressurreição no
terceiro dia; e a proclamação, em seu nome, a todas as nações, co-
meçando por Jerusalém, da conversão para a remissão dos pecados
(Lc 24,47).
Segundo essa Tradição lucana, Jesus ensina, como mestre da
Torá oral, o essencial da mensagem evangélica da qual os cristãos
deverão ser testemunhas (Lc 24,48). Jesus, graças à harizah, con-
segue fazer perceber a unidade e a divindade de toda a Torá sobre
esses pontos fundamentais do Evangelho, como prova o coração
ardente dos discípulos de Emaús (Lc 24,32). Tal narrativa mostra
quanto o Evangelho tira a sua força da Torá oral, que fala pela boca
do mestre vivo. Esse mestre, que cumpre a Escritura por sua exege-
se, é aquele que a cumpre também, na ação, morrendo por amor;

13 Na segunda bênção que precede o Shema Israel da manhã, a oração quotidiana pede
a Deus: "Unifica nosso coração para que ele ame e tema o teu Nome".

38
pela sua ressurreição, finalmente, ele inaugura o fim da história da
salvação em conformidade com as Escrituras.
A exegese - compreende-se facilmente por que - nem sempre
consegue manifestar que ela é Torá. Nem sempre chega a conven-
cer. Veremos, aliás, que a Torá oral, da qual ela faz parte, conhece
seus limites e impõe que ela não os ultrapasse.
De qualquer maneira, também é necessário que o povo possa
agir e avançar na história, sem ser indevidamente dependente da
exegese, de sua lentidão, de suas dificuldades metodológicas e das
rivalidades entre exegetas. Todas essas rivalidades são conhecidas
em Israel e fartamente atestadas pela literatura rabínica. Assim, a
exegese é Torá oral e conserva, de qualquer modo, um lugar muito
importante. Convém agora esclarecer que esse lugar varia, segundo
a visão que se tem da Torá dentro da teologia comum dos fariseus.
Já chamamos a atenção sobre a importância do circuito de Ya-
vné e das elaborações desse circuito.
Dois grandes mestres dominam o campo exegético de Yavné,
nos últimos anos do primeiro século de nossa era: Rabbi Ishmael e
Rabbi Aqiba. Fixando as intuições e os métodos recebidos de seus
mestres, de antes da destruição do Templo, eles modelam, de forma
definitiva, dois tipos de exegese decorrentes de duas visões diferen-
tes da Torá.
Para os dois mestres, a visão comum fundamental é de que a
Torá vem do "céu", segundo Ex 20,22. Mas, a partir daí, as posições
divergem. Para Rabbi Ishmael, "a Torá falou segundo a linguagem
dos homens" (Sifré Números sl Nb 15,31 Pisq. 112, p. 121); ela não
deve ser valorizada em todos os seus detalhes. A exegese, racional,
estabelece relações entre a Escritura e a vida do povo. A Escritura,
graças à exegese, justifica e confirma a prática muito mais do que
a fundamenta.
É diferente quanto a Rabbi Aqiba. Na sua maneira de ver, a
Torá, expressa em linguagem hum ana, guarda a transcendência de
sua origem; ela foi escrita no fogo, segundo as palavras do Salmo
29,7: "A voz do Senhor que grava com chispas de fogo" (Mekilta de
Rabbi Ishmael s/ Ex 20,18, p. 235). A exegese deve valorizar todos os
detalhes da Escritura, as letras mais pequeninas e os menores tra-
ços. Através da exegese, a Escritura fundamenta e inspira a prática.
Essa visão da Torá, que é, aliás, a de Jesus, segundo o Evangelho
de Mateus (Mt 5,18), não fixa qualquer limite para a exegese. Esta

39
poderia, legitimamente, mostrar a perfeita correspondência de toda
a Torá oral com toda a Torá escrita.14 Porém, mesmo para Rabbi
Aqiba, a exegese é limitada pelo fato de que ela é parte da Torá oral
e que a Torá oral deve ser mais ampla que a Escritura e sua inter-
pretação.
Rabbi fshmael e Rabbi Aqiba, tanto pelo que disseram quanto
pelo que se disse deles, manifestam duas qualidades ou capacidades
da Torá, que podem ser assim formuladas:
- A Torá oral, se for necessário, contorna, suplanta, desenraíza
a Torá escrita.
- A Torá é regra de vida oralmente revelada a Moisés no Si-
nai. Vejamos em primeiro lugar Rabbi Ishmael enunciar o primeiro
ponto; depois, Rabbi Aqiba e seus discípulos formularem o segun-
do.

A TORÁ ORAL, SE FOR NECESSÁRIO,


CONTORNA, SUPLANTA, DESENRAÍZA A TORÁ ESCRITA
Esse poder da Torá oral e a maneira pela qual ele é expresso,
no texto que vamos ver, correspondem à visão de Rabbi Ishmael.
Aliás, é ao Rabbi Ishmael que é atribuída a formulação no texto e
no paralelo que dele existe, como vamos esclarecer.

12. T. B. Sotah 16a


t <
O Rabbi Yohanan disse em n om e do Ra-
* 'oqebet bbi Ishmael: Em três pon tos a Halaca su-
*miqra planta* a Escritura*.
A Torá diz (Lv 17,13):[....] com terra; a Ha-
laca diz: com qualquer coisa.
A Torá diz (Nm 6.5): com a navalha·, a Ha-
laca diz: com qualquer coisa.
A Torá diz (Dt 24,1): com um livro·, a Haia-
ca diz: com qualquer coisa.
Rashi sobre Sotah 16a (,oqebet)

* ,oqeret
[A Halaca] p isoteia a Escritura e im p ed e
que ela fique em pé. A Halaca desenraí-
za* a Escritura. Em três pon tos a regra de

14 Essa perfeita correspondência vem do fato de que "a Torá é perfeita", segundo o
SI f9,8. Mas essa perfeição, que é a da Torá em si, não é suscetível de manifestação
automática pela exegese, ainda que esta, feita em comunidade, seja a Torá oral.

40
Halaca le-Moshe mi-Sinai M oisés d esd e o Sinai* vem e desenraíza o
versículo.

É claro que neste texto a palavra "Torá" significa a Torá escrita,


distinta da Torá oral, que é chamada Halaca, porque aqui se trata
de prática.
Nos três casos, a Torá oral - no caso a Halaca - ensina que se
pode satisfazer a obrigação mencionada pela Escritura, através de
uma prática mais ampla do que a indicada pela Escritura ouvida
pela primeira vez. Pode-se, pois, ser fiel à Torá cobrindo o sangue
com outra coisa que não "com terra", e de modo análogo quanto ao
voto do nazireato e ao ato de repúdio.
Há um conflito entre a prática, a Torá oral, e a Escritura. Su-
pondo que não haja solução para esse conflito, deve-se reconhecer
à Torá oral o direito de passar por cima, de prevalecer sobre a Es-
critura.
As palavras utilizadas em nosso texto - "suplanta", "desenra-
íza" (‘oqebet, ‘oqeret) - provêm de raízes similares por suas primei-
ras consoantes. É preciso acrescentar a palavra "contorna" (,oqefet),
que consta da versão paralela transmitida pelo Talmude de Jerusalém
Qiddushin 1,2 59d - também em nome do Rabbi Ishmael. Observe-
mos, de passagem, que a semelhança das raízes poderia refletir a
oralidade das tradições transmitidas, que utilizam palavras seme-
lhantes para o ouvido.
Do ponto de vista do conteúdo, devemos ser reconhecidos a
Rashi,15 não somente por nos fornecer uma variante suplementar -
"desenraíza" -, mas, sobretudo, por mostrar a audácia do que trans-
mite a Torá oral em nome do Rabbi Ishmael: a Halaca desenraíza a
Escritura. A Halaca autorizada, a que tem a condição de "regra de
Moisés desde o Sinai", tem esse poder. Mais adiante voltaremos, de
várias maneiras, e essas "regras de Moisés desde o Sinai" (cf. texto
n. 13). Digamos, no caso, que se trata de uma regra imemorial con-
siderada revelada e que, por isso, é reconhecida como tendo origem
e valor mosaicos.
O poder dado à Torá oral é soberano. Já sabíamos que a Torá
oral era preferível. Seria preciso também levar a coerência ao ponto

15 Rashi: O Rabbi Shelomo ben Itsaq, Troyes, 1040-1105, o mais célebre comentador
de toda a Bíblia e de todo o Talmude de Babilônia. Cf. Pierre Lenhardt, "art. Rachi", em
Catholicisme, fase. 55, 1989, col. 422-425.

41
de dizer que, em caso de conflito, a Torá oral contorna, suplanta ou
desenraíza a Escritura.
Em relação a isso, é secundário constatar que a coisa dita é dita
assim uma única vez, segundo duas variantes. Também importa
pouco que o Rabbi Ishmael tenha mencionado apenas três casos.
Um único caso teria bastado para exprimir a teologia em questão.
Destaquemos também que o Rabbi Ishmael, de acordo com sua
compreensão da Torá, teria tido os meios de resolver o conflito de
outra maneira. Seu modo de ver e seus métodos racionais compor-
tam a atuação de um princípio bem conhecido como proveniente
dele, segundo o qual "a Torá falou conforme a realidade presente"
(.Mekilta de Rabbi Ishmael s/ Ex 22,21, p. 313). Assim, a realidade
corrente é de que se cubra com terra o sangue de um animal morto
em caçada. Mas a Torá, que prescreve que se cubra esse sangue,
não quis dizer que era preciso cobri-lo exclusivamente com terra.
Mencionando a terra, a Torá falou segundo a realidade presente ou
corrente. A razão humana, aplicando-se à Torá, pode, assim, gene-
ralizar; é o que faz a Halaca, ensinando que se pode cobrir o sangue
com qualquer coisa.
Os casos apresentados são pouco numerosos e de m enor im-
portância, como seríamos tentados a considerar. Na realidade, a
Torá oral, em sua sabedoria, contenta-se com pouco para ensinar
muito: quando é necessário, a Torá oral suplanta a Escritura. Não
deveria haver conflito entre elas; mas, como é possível haver, a
Torá oral deve ensinar que pode, se for preciso, "desenraizar a Es-
critura". Na maioria das vezes, na vida de todo dia, as necessidades
da prática fazem com que deixemos de consultar a Escritura de
modo permanente, sem nos apoiar muito sobre a exegese. De fato,
"contorna-se" com frequência a Escritura, deixada prudentemente
de lado, enquanto não se tiver os meios de tirar dela um apoio ade-
quado à prática.
Para terminar, observemos que, na gama "contornar, suplan-
tar, desenraizar", não há a palavra "anular", empregada por Jesus
contra certos fariseus, segundo Mc 7,13: "Anulais assim o manda-
mento de Deus com a vossa Tradição, por vós transmitida". Trata-
-se, no entanto, da mesma realidade: conflito entre a Escritura e a
Tradição, a qual, segundo a teologia farisaica, prevalece como auto-
ridade prática sobre a Escritura. A polêmica evangélica não atinge
esse ponto, sem dúvida aceito por Jesus, que reconhece que "os

42
fariseus sentaram-se na cátedra de Moisés" (Mt 23,2). Aqui, no
campo bem problemático da prática dos votos, Jesus se põe a cer-
tos fariseus que propõem como Torá oral suas decisões discutíveis.
Contra eles, Jesus se apresenta na qualidade de mestre da Torá oral
e decide que, em matéria de votos, a Torá oral deve interpretar o
Decálogo (Ex 20,12: "Honra teu pai e tua mãe"), segundo o que ele
diz: "em primeira audição" ou 'literalm ente". Jesus não se opõe à
Torá oral como tal, mas ensina, no interior da Torá oral, como se
deve interpretar, no caso dos pais, a Torá escrita (cf. comentário do
texto n. 35).
Rashi, em seu precioso comentário, permitiu que encontrásse-
mos de novo "a regra de Moisés desde o Sinai", e isso num contexto
centrado em Rabbi fshmael. Vejamos agora como uma Tradição so-
bre o Rabbi Aqiba possibilita a melhor compreensão do que é essa
"regra de Moisés desde o Sinai".

A TORÁ É REGRA DE VIDA REVELADA


ORALMENTE A MOISÉS NO SINAI
O texto que veremos vai utilizar todos os recursos da arte po-
pular, para nos fazer compreender a grandeza única do Rabbi Aqi-
ba, mas também o limite de sua teologia que não é mais do que
uma teologia entre outras.
O testemunho dado por Rab16 utiliza a linha fantástica de pre-
ferência a qualquer precisão "histórica", no sentido em que falamos
hoje de exatidão "histórica". Trata-se de fazer compreender o que
foi Rabbi Aqiba para seus discípulos e o que continua a ser para
sempre, apesar de seus limites: um novo Moisés.

13. T. B. Menahot 29 b
Rab Yehudah disse em n om e d e Rab: "Na
hora em que M oisés subiu ao céu, encon-
trou o Santo, b en d ito seja, que estava
sentado e guarnecia as letras com coroas.
Ele lh e disse: 'M estre do universo! Q uem
obriga tua mão?'. D isse ele: 'Virá um ho-
m em , no fim d e m uitas gerações; ele se

,‘‫ י‬Abba Arika, chamado Rab: "Mestre", simplesmente; fundou em 219 a Academia de
Sura. Ele havia recebido, em terra de Israel, de seu mestre Rabbi Yehudah, o Príncipe,
as melhores tradições sobre o Rabbi Aqiba.

43
chamará Aqiba ben Joseph e d e cada pon-
* li-derosh to deduzirá por interpretação* m onta-
* halakot nhas e m ontanhas d e determ inações prá-
ticas*'. Ele lh e disse: 'M estre do universo!
M ostra-m e esse h o m em ‫׳‬. D isse-lhe ele:
'Torna a descer!'. Ele foi, sentou-se no fim
de oito fileiras e, sem saber o que diziam ,
sentia-se abatido. Mas eis que Aqiba che-
gou a certo p on to, e seus discípulos lhe
perguntaram: 'Rabi, d e on d e tiras isso?'.
E ele respondeu: 'É um a regra d e M oisés
* Halaca le-Moshe mi- d esd e o Sinai*‫׳‬. Então o espírito de M oisés
-Sinai se revigorou e, ten d o voltad o para ju n to
do Santo, b en d ito seja, disse: 'M estre do
universo! Tens um h om em com o ele e dás
a Torá por m eu in term éd io!‫׳‬. Ele lh e disse:
'Cala-te; esse é m eu p en sam en to‫׳‬. D isse
ele: 'M estre do universo! Tu m e m ostraste
a sua Torá, m ostra-m e a sua recom pensa'.
Ele lh e disse: 'Torna a descer!‫ ׳‬Ele desceu
e viu que retalhavam a sua carne com o
sobre o balcão de um açougueiro. Ele lhe
disse: 'M estre do universo! Essa Torá e
essa recom pensa!'. Ele lh e disse: 'Cala-te.
Esse é m eu pensam ento"‫׳‬.

Esse conto não deixa nada ao acaso. É preciso divertir-se e es-


pantar-se com Moisés, de ver o Mestre do universo perder seu tem-
po, enfeitando letras da Torá com coroas. Isso serve, é claro, para
ensinar o amor alegre com o qual se devem escrever os rolos da
Torá e ler a Escritura. Se Deus cuida disso, quanto mais os homens
devem cuidar da Torá, lê-la, copiá-la, interpretá-la e cumpri-la! O
valor dos traços e das pontas ornamentais é ressaltado como base
da exegese de Rabbi Aqiba. Isto tem plena ressonância nas palavras
de Jesus em Mt 5,18 que, também ele, valoriza os i e os pontos nos
/, todos os pormenores que se tornarão realidade, o que correspon-
de ao "cumprimento" de que já falamos.
É bom precisar que, de fato, Rabbi Aqiba é conhecido por ter
tirado conclusões exegéticas, seguindo seu mestre Ish Gamzo, de
mínimos detalhes da Escritura. Isso não quer dizer que ele tenha
realmente conseguido tirar "montanhas e montanhas" de interpre-
tações de cada traço, ponta ou coroa das letras da Torá. Isso quer

44
dizer que por si só, por sua origem divina e pela transcendência
que fica no texto gravado por chispas de fogo (cf. Sl 29,7), a Torá
escrita tem importância em todos os seus pormenores. Essa manei-
ra de ver é boa e justa, uma vez que o próprio Deus a fundamenta,
modelando a Escritura em todos os seus detalhes. Mas ao mesmo
tempo, a Tradição inspirada, no caso Moisés, faz uma crítica e uma
autocrítica. Uma crítica a respeito de Rabbi Aqiba: "montanhas e
montanhas" talvez seja um pouco demais, sobretudo quando o pró-
prio Moisés não compreende essas explanações. Uma autocrítica,
pois a Torá oral, em seu conjunto - e não somente a exegese de
Rabbi Aqiba - ensina explanações que Moisés não compreendería
se voltasse.
Essas críticas, explícitas ou implícitas, são feitas com amor e
humor, com profunda simpatia por Moisés e seu discípulo Aqiba,
pelos discípulos de Rabbi Aqiba. Elas estão a serviço de um ensino
positivo concernente à condição da "regra de Moisés desde o Sinai".
Trata-se de uma regra, de uma norma da prática ou da fé, para a
qual não existe nenhum a base "escriturística". A pergunta técnica
de seus discípulos: "Rabbi, de onde tiras isso?‫״‬, significa: "Onde en-
contras justificativa, a partir da Escritura, para essa regra que nos
ensinas e que Moisés não compreende?". O Rabbi Aqiba dá, para
essa pergunta, a resposta técnica: "É uma regra de Moisés desde o
Sinai", uma regra sobre a qual sabemos, por Tradição, que nunca
teve justificativa ou suporte "escriturístico".
Não se trata aqui de um conflito que seria, para a Torá oral,
ocasião de "contornar" ou de "desenraizar" a Escritura. É a própria
estrutura da Torá. Ela é una, composta de uma Torá oral e de uma
Torá escrita, constituída, antes de tudo, pela Torá oral, que prece-
de e engloba a Torá escrita. Se é assim, deve haver nela "regras de
Moisés desde o Sinai", que precederam a Escritura e foram transmi-
tidas e explanadas, permanecendo sempre fora da Escritura. Isto é
possível e deve ser possível para que o edifício da Torá dos mestres
se m antenha de pé e se desenvolva.
Isso pode ser representado com a ajuda de um esquema. Se, a
partir da origem mosaica representada por um ponto A, a Torá se
desenvolve sob a forma de um cone, que é a Torá oral, os três cubos
que representam a Escritura (Pentateuco, Profetas, Hagiógrafos)
estão no interior do cone e deixam ao seu redor um largo espaço.
Por esse espaço podem passar as "regras de Moisés desde o Sinai",

45
representadas pela setas. Essas regras partem de Moisés porque são
teologicamente mosaicas. De fato, elas podem ter aparecido depois
de Moisés e se desenvolvido para além de Moisés, sem jamais en-
contrar a Escritura. É mais tarde, com a experiência do tempo, que
se reconhece tratar-se, no caso delas, de regras boas para a comu-
nidade; far-se-á, então, subir a linha até Moisés. Não é necessário
que Moisés compreenda; mas é necessário que seu nome seja pro-
nunciado pela comunidade responsável. Então, Moisés voltará à
calma e a regra será realmente revelada, praticada com confiança
pela comunidade.
Aqui também a Torá oral é soberana. Ela é cada vez mais ampla
que a Escritura que ela engloba e à qual não precisa fazer referên-
cia, em todo caso. Quando o contato entre Escrita e Tradição oral é
necessário, faz-se o que é preciso para que seja fecundo. Se houver
conflito, de qualquer maneira é a Torá oral que terá a última palavra.
Vê-se também que a Torá oral engloba, não somente a Escri-
tura, mas ainda a exegese, a parte da Torá oral que interpreta a Es-
critura. Mesmo o Rabbi Aqiba, cuja exegese podería justificar prati-
camente tudo na Torá oral, deve aceitar e ensinar a seus discípulos
que a exegese nada tem que dizer em relação às "regras de Moisés
desde o Sinai".

Como já acontecera com o ensinamento do Rabbi Ishmael, en-


contramos, a partir do ensinamento do Rabbi Aqiba, uma realidade
fundamental: independentemente do núm ero de "vitórias" da Torá
oral sobre a Escritura, ou das "regras de Moisés desde o Sinai", é
necessário que exista a possibilidade dessas "vitórias" ou dessas "re-

46
gras", para que a Torá oral tenha os meios de funcionar e de fazer
funcionar toda a Torá: Escritura e Tradição.
Vimos que o Rabbi Ishmael, segundo sua maneira de ver a
Torá, dispõe de um meio para resolver os conflitos entre Escritura
e Tradição. Esse meio era a aplicação do princípio: "A Torá falou
da realidade existente". O Rabbi Aqiba, por sua vez, segundo seu
modo de considerar a Torá, não se perturba pela existência das "re-
gras de Moisés desde o Sinai". Essas regras, sem dúvida, limitam o
campo de sua exegese, mas ele ensinou - e seus discípulos repeti-
ram diante dele - que toda a Torá, Escritura e Tradição, é "regra de
Moisés desde o Sinai" (T. B. Niddah 45a).
A concepção de cada um dos dois mestres, Rabbi Ishmael e Ra-
bbi Aqiba, continua conhecida e modelar em Israel. Graças a eles,
os princípios segundo os quais "a Torá falou em conformidade com
a realidade existente" e "toda a Torá é regra de Moisés desde o Si-
nai" dão à Torá todos os meios de que ela precisa, nas duas direções
fundamentais seguintes:
- A primeira direção é a da conüança que é preciso ter na razão
hum ana em matéria de Torá e de exegese.
- A segunda direção é a da convicção que se deve ter de que
toda a Torá, cumprida em comunidade e de maneira responsável, é
o desenvolvimento inspirado no germe que foi dado a Moisés, no
Sinai.

A TORÁ ORAL PODE DISPENSARA TORÁ ESCRITA


Pode-se dizer, com o Rabbi Aqiba e seus discípulos, que toda a
Torá, Escritura e Tradição, é a regra de Moisés desde o Sinai. É no
Sinai, "da boca do Todo-Poderoso",17 que tudo foi recebido. Desde
o início, foi uma Torá oral, vivida por homens, que foi comunicada;
e que se transmite até hoje no Talmude, o estudo-ensinamento, e
na ação.
Vejamos de que modo a Tradição valoriza a ação como expres-
são da Torá oral. Poderiamos citar um grande núm ero de tradições
que ilustrem o valor da ação. Por exemplo, está dito que Eliseu,
discípulo de Elias, servia Elias (lRs 19,21).

17 Segundo T. B. Erubin 54 b, Moisés recebeu a Mishná, isto é, a Torá oral, da boca


do Todo-Poderoso. E segundo Mekilta de-Rabbi Ishmael sobre Ex 20,18 (p. 235), para
o Rabbi Aqiba, todo o povo viu e ouviu a palavra de fogo que saía "da boca do Todo-
-Poderoso". Cf. Cadernos bíblicos, n. 51, p. 39.

47
Notemos, em primeiro lugar, que o serviço prestado pelo dis-
cípulo a seu mestre, por mais concreto e humilde que fosse, como
haveremos de ver, não é designado, na Escritura e na Torá oral,
pela raiz 'BD, usada para o serviço devido exclusivamente a Deus
e reservado apenas a ele. Assim também, o serviço prestado pelo
mestre ao discípulo ou à comunidade que ele ensina, é designado
na Torá oral pelas raízes SRT, SMS, e não por 'BD, que designa o
serviço devido exclusivamente pelo escravo a seu senhor e pelos
servidores do Senhor (SI 113,1) a seu Deus.
Escutemos agora a Tradição seguinte, que exalta o valor do
"serviço" no que diz respeito à Torá.
%******»«?«*$

14. T. B. Berakot 7 b
Rabbi Yohanan disse, em n om e do Rabbi
Shim eon ben Yohai: "O serviço da Torá é
m aior que seu estudo, pois está dito (2Rs
3,11): E stá a qu i Eliseu, fílho d e Saphat,
q u e derram ava água nas m ã o s d e Elias.
Não está d ito 'estudava‫׳‬, m as 'derram a-
va'. Isto ensina que seu serviço [da Torá] é
m aior que seu estudo".

Servir o mestre é, pois, servir a Torá, cuja ilustração viva é o


mestre. É exatamente o que entendem os discípulos que observam
o comportamento do mestre, para aprender a Torá. Quando esta
sede leva Rab Kahana a perseguir seu mestre, Rab, até o aposento
conjugal, episódio que a Tradição não deixa de relatar com muita
pedagogia e um tanto de humor, o discípulo responde ao mestre,
que o expulsa: "É a Torá e devo aprendê-la" ( T. B. Berakot 62 a).
Mas não é somente o mestre que deve viver a Torá oral e ensi-
ná-la por meio de sua vida. É qualquer pessoa em Israel que, de um
modo ou de outro, de maneira visível ou ínüma, ensina a Torá. É o
que diz a Tradição que segue, comentada por Rashi.

15. T. B. Sabá 105 b


Foi ensinado: Rabbi Shim eon ben Eleazar
disse: "Quem fica ao lado de um m ori-
bundo, n o m o m en to em que este entrega
a alma, deve rasgar [as vestes]. Por quê?
Porque isso é sem elh an te a um rolo da
Torá que é queim ado".

48
Rashi sobre "Rolo da Torá"
Q uem vê um rolo da Torá ser queim ado
d eve rasgar [as vestes] [...] A alm a de Isra-
el, que é tirada, assem elha-se a isso, pois
não há n in gu ém em Israel que seja vazio,
* estudo, ensinamento que não ten h a n em Torá* n em m anda-
* ação m entos*.

Assim, a Torá oral é manifestada por qualquer pessoa viva em


Israel. De onde vem essa capacidade? Evitemos afirmar que a Tra-
dição de Israel apresenta, no caso, um ensinamento dogmático. In-
diquemos apenas uma resposta possível.
Independentemente das muitas referências bíblicas que falam
da transmissão do Espírito como força divina que autentica a rela-
ção mestre-discípulo, por exemplo, quanto a Moisés e aos Anciãos
(Nm 11,24-29), a Elias e Eliseu (2Rs 2,9.15), convém escutar o que
diz a Torá oral no texto que se segue.

16. Tosephta Pesahim 4,13-14


Uma vez aconteceu que o 14 Nisan caiu no
Sabá. Perguntaram a Hillel, o Ancião: "A
' pesah Páscoa* prevalece sobre o Sabá?". Disse-
-lhes ele: "Temos, pois, um a única Pás-
coa no ano que prevaleça sobre o Sabá?
Temos m ais de 300 Páscoas no ano, que
prevalecem sobre o Sabá!". Mas toda a
assem bléia foi unânim e contra ele. Disse-
* tamid (Ex 29,42; -lhes: "O sacrifício perpétuo* é um sacri-
Nm 28,6) fício com unitário e a Páscoa é um sacrifí-
cio com unitário; assim com o o sacrifício
perpétuo, com o sacrifício com unitário,
prevalece sobre o Sabá, tam bém a Páscoa,
com o sacrifício com unitário, prevalece
sobre o Sabá".
Outra coisa. Está dito quanto ao sacrifício
p erpétuo (Nm 28,2): n o te m p o d eterm in a -
do·, e está d ito quanto à Páscoa (Nm 9,2):
n o te m p o d e te rm in a d o ; assim com o o sa-
crifício perpétuo, sobre o qual está dito:
n o te m p o d eterm in a d o , prevalece sobre o
Sabá, tam bém a Páscoa, sobre a qual está
dito: n o te m p o d eterm in a d o , prevalece
sobre o Sabá.

49
P ode-se tam bém , com m aior razão, racio-
cinar: se o sacrifício perpétuo, quanto ao
qual [se não o fazem os] não ficam os su-
jeitos a punição, prevalece sobre o Sabá,
não se d eve concluir, ainda m ais, que a
Páscoa, quanto à qual [se não a fazem os]
ficam os sujeitos a punição, prevalece so-
bre o Sabá?
A lém disso, recebi de m eus m estres a Tra-
dição segundo a qual a Páscoa prevalece
sobre o Sabá [...]
Eles lh e disseram: "O que acontece com
o povo que não trouxe facas e Páscoas
ao santuário [antes do início do Sabá?]".
R espondeu-lhes: "Deixai-os encontrar a
solução; o Espírito Santo está sobre eles;
se não são profetas, são filhos de profe-
tas".
Que fizeram os israelitas nesse m om en to?
A quele cuja Páscoa era um cordeiro en-
fiou a faca em sua lã; aquele cuja Páscoa
era um cabrito prendeu a faca entre seus
chifres. Trouxeram, pois, facas e Páscoas
ao Santuário e im olaram suas Páscoas.
* presidente N esse dia, nom earam H illel nasi* e ele co-
m eçou a ensinar-lhes os h a la k o t pascais.

Devemos, pois, a Hillel - haveremos de ver, na segunda parte,


que não é necessário ter dúvidas a esse respeito - essa bela e sim-
pies fórmula: "o Espírito Santo está sobre eles".
Para conseguir estar, na prática, em conformidade com a Torá,
a boa solução é confiar no Espírito Santo e observar como age o
povo independentemente da Escritura, quando ela é muda, apesar
de todos os esforços da exegese. Portanto, graças à Torá oral, pode-
-se dispensar a Torá escrita, seguindo o exemplo de pessoas vivas.

0 COSTUME DOS PAIS É TORÁ


Desde Hillel, antes de Jesus Cristo, atravessamos vários séculos
para chegar ao Rabbi Isaac bar Yehuda, de Mainz (segunda metade
do século XI), um dos mestres de Rashi. É em um responso desse
mestre que aparece - provavelmente pela primeira vez - a expres-
são: "O costume dos Pais é Torá". O objeto do responso é a circun­

50
cisão; o relato é de um li a utista italiano, Rabbi Sedecias, o médico,
em sua coletânea im itir aaa Shibboley Ha-Lequet. Observemos que
esse livro contém grande núm ero de informações preciosas, não
apenas sobre a liturgia, mas sobre certos acontecimentos históricos
de que o Rabbi Sedecias foi testem unha ou ouviu falar em seu tem-
po. É assim que ele menciona os 24 carrinhos de livros religiosos
tirados dos judeus e queimados na praça de Greve, em Paris, em
1244.

'[!. Shibboley Ha-Leqet par. 281 Ed. Buber 129 b


Perguntaram a nosso m estre Isaac ben
Yehudah - que a m em ória do Justo seja
bendita!: "Numa circuncisão que caia em
dia de jejum com unitário, com o 17 d e Ta-
m uz e o jejum d e Godolias, com o se faz?
D evem -se rezar os versículos que recla-
m am m isericórdia e as orações d e pedi-
do de perdão, confessar os pecados e di-
zer: 'Deus é paciente?'. E se abençoarm os
[para a circuncisão], farem os com que
aquele que abençoa, ou a m ãe da criança,
com am algum a coisa, e qual a quantidade
do que lh e darem os para comer?".
Ele respondeu: "A respeito da circunci-
são, é d este m od o que costum am os agir
em nossa região. Fazem -se os p ed id os de
perdão e a confissão; não se diz 'ele é com -
passivo', n em as orações em que se invoca
a sua m isericórdia. E o costu m e de nos-
sos pais é Torá. Pois recebem os com ale-
gria o m an d am ento da circuncisão e ain-
da [hoje] o cum prim os com alegria, com o
está dito (SI 119,162): Eu sou feliz por tua
palavra [...] Por isso, nosso costu m e é não
dizer Έ ele é com passivo', n em dizer as
orações em que se invoca a m isericórdia.
A ssim , basta deixar de lado algum as ora-
ções, e não será necessário interrom per
to ta lm en te as orações de p ed id o de per-
dão, a confissão e 'Deus é paciente"'.

51
A fórmula "o costume dos Pais é Torá" explicita o que é man-
tido implicitamente desde sempre, na visão farisaica da Torá. A fór-
mula é o resultado simples e genial de outras formulações menos
claras cuja evolução, se fosse necessário aqui, poderia ser seguida
por seus vestígios. Notemos apenas que essa fórmula corresponde
justamente ao que transmitiría Rab Hai Gaon em seu responso (ver
texto n. 8): "Sai e vê o que o povo faz" (T. B. Berakot 45a). Ela é
também a confirmação do que exprimia Hillel, dizendo: "O Espírito
Santo está sobre eles" (texto n. 16).
Isso não justifica automaticamente qualquer costume. Um cos-
tume pode ser criticado e rejeitado se for reconhecido como mau.
Mas a tendência predominante da Torá oral é valorizar o costume,
porque é coerente e bom reconhecer ao povo o direito de con-
siderar sua prática costumeira como Torá. Isso deixa, aliás, largo
espaço ao pluralismo, uma vez que o costume pode variar segundo
os lugares, tempos e quadros culturais e políticos, nos quais se ma-
nifesta a vida dos judeus. Assim, o costume dos Pais é Torá e, como
tal, pode anular o que, segundo certos mestres, e mesmo, às vezes,
segundo a maioria dos mestres, deveria ser praticado como Torá.
Definitivamente, um só absoluto parece impor-se em cada caso: o
bem de cada pessoa e da comunidade.

A TORÁ ENSINA A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS


Vimos certo número de aspectos segundo os quais se manifes-
ta a coerência da teologia farisaica, em matéria de Torá oral. Não
temos a pretensão de ter apresentado um quadro completo dessa
teologia; desde o início, não pensamos em apresentar um sistema.
Assim, a análise da coerência não pode chegar a uma conclusão que
pretendesse encerrar o estudo. Nossa conclusão dessa primeira par-
te será, antes, uma abertura para a realidade visada por toda a Torá:
o bem e a vida do povo e das pessoas que o constituem.
Para permanecer coerente até o fim, a coerência farisaica deve
afirmar que a vida dada pela Torá cumpre-se para além da morte.
Ora, a Torá escrita, como veremos adiante, não ensina diretamen-
te, sem interpretação, a ressurreição dos mortos. Os saduceus, que
aceitam como Torá apenas a Escritura, têm razão, de seu ponto de
vista, quando não aceitam que se mostre a ressurreição como ensi­

52
namento da Torá. Os fariseus, e Jesus segundo o Novo Testamento,
podem ensinar a ressurreição a partir da Escritura, porque a Tradi-
ção, que interpreta a Escritura, é a Torá oral.
Vejamos como a Torá oral, recorrendo ou não à Escritura, en-
sina a ressurreição.
Observemos em primeiro lugar - e voltaremos a esse ponto im-
portante que a Torá oral, porque precede e engloba a Escritura,
não é obrigada a justificar a ressurreição dos mortos através dela.
É de notar que a oração comunitária de Israel, na segunda das
"Dezoito bênçãos", ensina a ressurreição sem citar explicitamente
a Escritura:
"És poderoso eternam en te, Senhor! Fazes
viver os m ortos, m ultiplicas a salvação.
A lim entas os vivos p elo amor, fazes viver
os m ortos por um a grande m isericórdia,
sustentas os que caem . Curas os doen tes,
libertas os cativos. És fiel para com os que
dorm em n o pó.
Q uem é com o tu, M estre dos Poderosos?
E quem é com parável a ti, Rei que fazes
morrer e que fazes viver, que fazes germi-
nar a salvação? Tu és fiel, fazendo viver os
m ortos.
B endito és tu, Senhor, que fazes viver os
m ortos!"

A ausência de recurso escriturístico tem tríplice significação.


Em primeiro lugar, como dissemos acima, pode-se ensinar a ressur-
reição sem recorrer à Escritura.
Em segundo lugar, os recursos escriturísticos, sempre discutí-
veis, como logo haveremos de ver, não têm espaço numa oração
que deve ser aceitável para todos os que a pronunciam.
Em último lugar, a ausência de recurso escriturístico pode ser
um índice de antiguidade para a formulação atual dessa segunda
bênção, chamada "Poderes", porque celebra o Deus poderoso que
faz viver os mortos.
É igualmente significativo que a Mishná, em sua versão origi-
nal, não invoque a Escritura quando ela fala da ressurreição.

53
18. Mishná Sanhédrin X, 1
Israel inteiro participa do m u n do futu-
ro, assim com o está dito (Is 60,21): O teu
p o v o > to d o ele co n stitu íd o d e ju sto s, p o s-
suirá a terra para sem p re, com o um re-
n o v o d e m in h a p ró p ria plan tação, com o
obra das m in h a s m ãos, para a m in h a gló-
ria. Eis os que não participarão da vida fu-
tura: aquele que diz: "Não há ressurreição
dos m ortos" a partir da Torá, e "A Torá
não é dos Céus",1819e o epicureu.1‘1

É provável que o início da passagem: "Israel inteiro ... ", com a


citação de Isaías, seja um acréscimo tardio. É certo que as palavras
"a partir da Torá" não aparecem nas testemunhas antigas do texto
da Mishná. Portanto, o ensinamento original da Mishná é este: "Eis
os que não participarão do mundo futuro: aquele que diz: 'Não há
ressurreição dos mortos"'.
O anátema, ou ameaça pedagógica, é pois dirigido aos que ne-
gam a ressurreição, e não aos que negam que ela se evidencie na
Torá escrita. Essa formulação, na qual não nos cremos obrigados a
invocar a Escritura, parece corresponder, talvez, a um período anti-
go, bem anterior à destruição do Templo.
Indiquemos alguns índices desse ensinamento antigo que não
recorre à Escritura. Mencionemos o segundo livro dos Macabeus,
livro não canônico para os judeus, que atesta a fé na ressurreição.
Citemos as duas passagens nas quais a mãe dos sete mártires argu-
menta a sua fé.

19.2 Macabeus 7,22-23


Não sei com o é que viestes a aparecer no
m eu seio, n em fui eu que vos d ei o espíri-
to e a vida, n em tam pouco fui eu que dis-
pus organicam ente os elem en tos de cada
u m d e vós. Por conseguinte, é o Criador
do m undo, que form ou o h om em em seu
18 "A Torá não é dos Céus" opõe-se à fórmula positiva: "A Torá vem dos Céus", que
recorre a Ex 20,22 e serve, em literatura rabínica, para afirmar a origem divina do
Pentateuco ou ainda sua inspiração.
19 Em literatura rabínica, o epicureu designa aquele que despreza a Torá e os mestres
que a ensinam.

54
n ascim en to e d eu origem a todas as coisas,
que vos retribuirá, na sua m isericórdia, o
espírito e a vida, um a vez que agora fazeis
p ouco caso de vós m esm os, por am or às
suas leis.

2 Macabeus 7,28-29
Eu te suplico, m eu filho, con tem p la o céu
e a terra e observa tu d o o que n eles exis-
te. R econhece que não foi d e coisas exis-
ten tes que D eus os fez, e que tam bém o
gênero hum ano surgiu da m esm a forma.
Não tem as este carrasco. A o contrário,
tornando-te digno dos teu s irm ãos, aceita
a m orte, a fim d e que eu torne a receber-
-te com eles na Misericórdia.

O mesmo argumento aparece duas vezes: aquele que criou a


vida a partir do nada saberá dar de novo a vida a partir da morte
aceita por ele. Trata-se de um raciocínio a fortiori, cuja articulação
pode ser claramente revelada através de uma Tradição rabínica so-
bre Gebiha ben Pesisa, personagem que viveu na época pré-asmo-
niana.

20. T. B. Sanhédrin 91 a
Um herege diz a Gebiha ben Pesisa: "Ai de
vós, m aldosos, que dizeis que os m ortos
viverão! Os vivos m orrem e os m ortos vi-
veriam!". Ele lh e diz: "Ai d e vós, m aldo-
sos! que dizeis que os m ortos não viverão!
Os que não estavam , estão vivos; os que
estão vivos, quanto m ais viverão!". Diz-
-lhe ele: "Cham aste-m e m aldoso. Se m e
levantasse, eu te daria um p on tap é e en-
direitaria a tua corcunda!". D isse-lhe ele:
"Se o fizesses, serias cham ado m éd ico pe-
rito e receberías grande rem uneração!"

Gebiha ben Pesisa é mencionado na Megillat Taanit (ver texto


n. 40). Porteiro do Templo na época de Alexandre, o Grande, ele
se apresentou diante de Alexandre para defender os direitos de Is-
rael contra certos povos vizinhos (Megillat Taanit, Ed. Lichtenstein

55
p. (72), 328). O Talmude de Babilônia, que acabamos de citar, co-
nhece essas tradições e mostra seus pormenores. Além disso, ele
tem o mérito de transmitir a bela defesa da ressurreição, que não
se encontra na Megillat Taanit e que nos interessa aqui. Não há ne-
cessidade de crer cegamente que Gebiha viveu, de fato, na época
de Alexandre e que disse, sem tirar nem pôr, o que lemos hoje nas
fontes rabínicas. Haveremos de voltar ao problema da historicidade
das tradições rabínicas, na segunda parte. Aqui, basta notar que a
argumentação de Gebiha, sem recorrer à Escritura, está em har-
monia perfeita com a do segundo livro dos Macabeus. Isso atesta
antiguidade perfeitamente suüciente para nosso objetivo.
À evidência mencionada pelo herege, Gebiha opõe a evidência
da fé farisaica na ressurreição. Sem dúvida, é verdade que a morte
é irreversível e triunfa definitivamente sobre o homem tal como ele
é dentro dos limites deste mundo. Mas para Gebiha, que conhece
o Deus de Israel, criador do homem a partir do nada, a evidência
é que esse Deus pode, com mais forte razão, fazer viver a partir
desta vida no mundo. O salto do nada para o ser inclui o salto do
ser deste mundo para o ser do mundo que está por vir. Esse desen-
volvimento de um raciocínio a fortiori é puramente instrumental,
secundário em relação à evidência da fé, que é intuitiva e imediata.
Não se prova a evidência; ela se explicita. É o que faz Gebiha para
mostrar que sua evidência, a da fé farisaica, não é, de modo algum,
simplista nem cega. Na realidade, sua explicação apenas torna a fé
mais fulgurante.
Assim, pode-se justiücar a ressurreição sem recorrer à Escritu-
ra. Basta conhecer o poder de Deus, como o conhece a mãe dos sete
mártires. Ela está em condições de falar da criação no seio materno.
Portanto, pode comunicar sua convicção de que é possível uma
nova criação.
A fé na ressurreição, que os mestres fariseus ensinam a partir
do tempo antigo da revolta contra Antíoco Epííanes, é antes de
tudo fundada sobre um conhecimento de Deus, considerado Todo-
-Poderoso. O "poder" de Deus acabará por significar, particular-
mente, o poder de ressuscitar os mortos. Essa palavra-chave, como
vimos, serve para designar a segunda bênção da oração comunitá-
ria, que ensina a ressurreição dos mortos. O termo "poder" aparece
também de modo significativo nas palavras de Jesus ao defender a
fé na ressurreição, contra os saduceus (Mc 12,24s). Note-se que Je­

56
sus, em sua refutação, distingue duas vias de acesso à ressurreição:
o conhecimento do "Poder" de Deus e o conhecimento das Escritu-
ras. Quanto à primeira delas, o recurso à Escritura não é obrigató-
rio. É provável que essa via seja a mais antiga; dela dão testemunho
o segundo livro dos Macabeus, a Megillat Taanit, o Talmude de Babi-
lônia, a oração comunitária e a Midrash. Em relação à segunda via, a
do conhecimento da Escritura, a do Mishná, parece ser mais tardia,
não afirmada antes do Novo Testamento e, na literatura rabínica,
somente a partir de Yavné.
Vejamos alguns exemplos "escriturísticos" em matéria de res-
surreição. São retirados do Talmude de Babilônia, do capítulo que
esclarece a Mishná Sanhédrin, citada acima.

21. T. B. Sanhédrin 90 b
Foi ensinado: O Rabi Sim ai disse: "De onde
sabem os que a ressurreição dos m ortos é
[ensinada] pela Torá? Porque está dito
(Ex 6,4): [.‫ ]״‬Tam bém esta b elecí a m inha
aliança com eles, para lh es d a r a terra d e
Canaã. Não está dito: "para dar-vos", mas
"para dar-lhes"; daí resulta que a ressur-
reição dos m ortos é [ensinada] pela Torá"
* Enumeração de pala- (TSeDeQ, GaM, GeSHeM, QaM, sinal*).
vras hebraicas que são Rabban Gam aliel foi interrogado por he-
início de capítulo de
exposições orais, hoje reges: "De on d e [sabem os através da Es-
perdidas critura] que o Santo, b en d ito seja! res-
suscita os m ortos?". Ele lhes respondeu:
a partir da Torá, a partir dos Profetas e a
partir dos Hagiógrafos. N o en tan to, eles
não aceitaram o seu en sinam ento. A par-
tir da Torá, porque está escrito (Dt 31,16):
E o S en h or d isse a M oisés: ‫״‬Eis q u e vais
descansar com os teu s p a is e te leva n ta -
rás". Eles lhe disseram: "Mas talvez se
deva [ligar a palavra "levantarás" com o
fim do versículo e] ler (Dt 31,16): E e ste
p o v o se leva n ta rá para se p r o s titu ir [...]"
A partir dos Profetas, porque está escrito
(Is 26,19): Os teu s m o rto s tornarão a viver,
os seu s cadáveres ressurgirão; d e sp e rta i
e cantai, vós os q u e h a bitais o p ó , p o r q u e
o te u orvalh o será um orvalh o lu m in o so

57
e o p a ís das som bras dará à luz. [Eles lh e
disseram]: "Mas talvez [se trate aqui] dos
m ortos que Ezequiel ressuscitou (Ez 37)".
A partir dos Hagiógrafos, pois está es-
crito (Ct 7,10): O g o sto d e tua boca é um
vinh o delicioso. E le vai d ire ta m e n te ao
m e u am ado; fa z falar os lábios d o s qu e
do rm em . D isseram -lhe eles: "Mas talvez
se trate apenas de um sim ples m ovim en -
to dos lábios, segundo a opinião do Rabbi
Yohnan, que disse, em n om e do Rabbi Shi-
* segundo outras ver- m eon ben Yehotzadaq*: 'Se um a Halaca é
sões: Shimeon ben Yo- enunciada n este m u n do em n om e d e al-
hai guém , seus lábios falam n o tú m ulo, com o
está d ito (Ct 7,10): E le fa z falar os lábios
d o s q u e dorm em " '. [Assim, ele não p ôd e
convencê-los] até citar esta passagem da
Escritura (Dt 11,21): [para q u e vossos dias
e os dias d e vossos filhos se m u ltip liq u e m
so b re a terra] q u e o S en h or ju ro u d a r a
vossos pais. Não está d ito "dar-vos", m as
"lhes dar"; daí resulta que a ressurreição
dos m ortos é [ensinada] pela Torá.
Outros dizem [que ele lhes en sin ou a res-
surreição] a partir desta passagem da Es-
critura. Ele lhes disse (Dt 4,4): "Q uanto a
vós, p o ré m , p erm a n e c e ste s apegados ao
S en h or vosso D eus, e h o je estais to d o s vi-
vos".
A ssim com o tod os vós subsistis hoje, tam -
bém tod os vós subsistireis no m u n do por
* o fim do texto, a par- vir. *É evid en te, e portanto in ú til dizer:
tir do asterisco, é uma "H oje estais to d o s vivos". Portanto, isso
glosa tardia quer dizer: No dia em que tod o m undo
estiver m orto, vós vivereis.

Esse texto comunica exegeses de Rabbi Simai (fim do século


XI) e de Rabban Gamaliel.
Quanto a Rabban Gamaliel, é mais prudente pensar que não
se trata do mestre de São Paulo, mas de seu neto, chefe do colégio
rabínico em Yavné, depois de Rabban Yohanan ben Zakkai, nos úl-
timos anos do primeiro século.

58
Depois de fazer, sem êxito, um colar (cf. texto n. 11) com as
palavras da Torá, dos Profetas e dos Hagiógrafos, Rabban Gamaliel
consegue convencer os hereges, recorrendo à Torá: Dt 11,21 ou,
segundo alguns, Dt 4,4. Essas duas últimas tentativas são muito
semelhantes à do Rabbi Simai, no início de nossa passagem; nós
as examinaremos juntas, após dizer algumas palavras da primeira
tentativa de Rabban Gamaliel.
O Talmude apresenta os primeiros recursos de Rabbi Gamaliel à
Torá, aos Profetas, aos Hagiógrafos, como insucessos; tudo se passa
como se o Talmude fizesse suas as objeções dos hereges. Isso mostra
que, para os Sábios de Israel, os recursos à Escritura, em matéria de
ressurreição, são muito menos "provas‫ ״‬do que "suportes".20Dentre
esses "suportes", abandonam-se os não convicentes e guardam-se
os bons, os esclarecedores, para quem necessita deles.
Está claro, no caso, que os três recursos rejeitados são particu-
larmente fracos.
- Dt 31,16 não é um bom apoio para a violência que se quer
fazê-lo sofrer.
- Is 26,19 pode efetivamente ter por objeto a ressurreição na-
cional de que fala Ez 37, segundo sua significação óbvia.
- Quanto a Ct 7,10, é rejeitado em nome de uma argumenta-
ção, ela própria muito discutida, em nome dos Sábios posterio-
res a Rabban Gamaliel.
Na realidade, o Talmude dá ao exercício nada mais que um va-
lor relativo; é sabido que nem sempre é possível convencer, mas
não se renuncia a fazê-lo pela exegese, porque a Escritura forma
uma unidade com a Tradição, que ensina a ressurreição dos mortos.
Portanto, vale a pena continuar no Midrash, para ensinar melhor
essa ressurreição.
Tomemos agora a primeira tentativa bem-sucedida de Rabban
Gamaliel, a partir de Dt 11,21: Para que vossos dias e os dias de vossos
filhos se multipliquem sobre a terra que 0 Senhor jurou dar a vossos pais.
Esse versículo, da leitura-oração do Shema Israel (Dt 11,13-
21), é o último do segundo parágrafo. A retribuição dos manda-
mentos, de que fala esse parágrafo, culmina com a multiplicação

20 Nem sempre os mestres judeus estão de acordo a respeito da condição do recurso


"escriturístico", prova ou apoio. Ver a polêmica de Nahmânides contra Maimônides
nas suas Hassagot (Observações) sobre o Sefer Ha-Mitsvot, princípio 11.

59
dos dias sobre a Terra Prometida aos pais. Deve-se reconhecer que
o versículo, ouvido pela primeira vez, não ensina a ressurreição.
No entanto, ele transmite uma luz, anuncia a vida na Terra Prome-
tida e prepara para receber a mensagem da ressurreição, como um
acréscimo de luz. A exegese, a Torá oral, vai fazer jorrar do versícu-
lo uma luz de coerência total. Se a terra foi prometida aos pais, que
estão mortos, é porque eles viverão para receber essa terra, para
além da morte. A terra de Israel, muito terrena, é o sinal - poderí-
amos falar de sacramento em terminologia cristã - da vida eterna.
A segunda tentativa de Rabban Gamaliel, a partir de Dt 4,4,
também é apresentada pelo Talmude como bem-sucedida. O Talmu-
de reconhece, porém, uma dificuldade, visto que acrescenta uma
glosa para acionar a intuição. Contentemo-nos aqui em ver que
o versículo relaciona vida e apego ao Senhor. A palavra "apego",
"adesão", é bem concreta; obriga a pensar como se pode aderir a
Deus, que é transcendente. O versículo contenta-se em dizer que
é possível porque Moisés o diz: Vós que permanecestes apegados ao Se-
nhor vosso Deus. E diz ainda: Hoje estais todos vivos. A Escritura não
esclarece, pois, o tipo de apego; ela afirma sua possibilidade e sua
consequência: os que estão apegados ao Deus vivo vivem e viverão
no mundo que há de vir.
Vê-se aqui como a oralidade da Torá oral não é somente o que
a distingue da Torá escrita. A oralidade da Torá oral é o que faz
com que a Torá seja vivida21 no apego a Deus. A Torá oral ensina a
ressurreição, com ou sem a Escritura, porque ela é uma vida, uma
ação vivida que está em contato com a vida de Deus, com a vida
eterna.
Se ouvirmos, enfim, o primeiro recurso "escriturístico" de nos-
so texto, é claro que Rabbi Simai, no fim do século II, transmite um
ensinamento comum quase idêntico ao de Jesus no Evangelho de
Marcos (12,26-27). O Deus dos pais não é o Deus dos mortos, mas
o Deus vivo, o Deus dos vivos.
Tampouco estamos, no caso, diante de uma prova fundamen-
talista: Rabbi Simai, a partir de Ex 6,4, e Jesus, a partir de Ex 3,6,
exprimem a coerência de toda a Torá. Deus se apresenta como o
Deus dos pais; que poder de convicção pode ter isso para Moisés, e

21 A Torá vivida é, por exemplo, a Torá que o Mestre é para seu discípulo (cf.
Comentários sobre os textos n. 14-15; T. B. Berakot 62a).

60
para todos nós, se os pais estão mortos para sempre? Por que dei-
xar Madian, voltar à escravidão no Egito, para finalmente morrer
também, mais cedo ou mais tarde, e morrer definitivamente? Deus,
que se apresenta como o Deus dos pais, dá a entender que ele tem
o Poder de ser o Deus dos pais que estarão vivos ou que já estão,
de certa forma, vivos com ele. Então, Moisés pode deixar-se con-
vencer.
A ressurreição é a vida que não passará mais pela morte. É o
dom da vida eterna. Deus manifesta nela o seu Poder, que é o do
Deus dos vivos, do Deus que faz os mortos viverem.
Nenhum versículo isolado prova a ressurreição. É toda a Torá,
Escritura e Tradição que, graças à Torá oral (vivida), mostra a luz de
ressurreição neste ou naquele versículo, neste ou naquele aconte-
cimento, nesta ou naquela experiência humana.
Para concluir, voltemos ao Rabbi Simai, que soube exprimir a
imensidade da Torá e os limites da exegese.

22. Sifré 5/ Dt 32,2 Pisq. 306 Ed. Finkelstein p. 341


Rabbi Simai disse: "Não há seção [na Es-
critura] em que não haja ressurreição dos
m ortos, m as não tem os força para m ani-
festá-la pela exegese".

Essas palavras de Rabbi Simai são transmitidas no final de uma


tentativa obstinada, meritória, mais ou menos convincente, do pró-
prio Rabbi Simai. Como ilustrar a ressurreição a partir de Dt 32,2?
Conseguimos isso, mas à custa de que esforços!
Assim, a exegese é valorizada e, ao mesmo tempo, relativizada.
É preciso pesquisar e ver a ressurreição por toda parte, pois, por
toda parte, é o Deus vivo que a exegese deve procurar e encontrar
(Dt 4,29; Jr 29,13-14; Mt 7,7-16). Porém, é necessário renunciar à
explicação de tudo pela exegese.
Na Torá oral, vivida, que contém a exegese e vai além dela,
há outros recursos. Vê-se que a Torá oral é concebida como algo
distinto da Escritura, mas ultrapassa de todo lado a sua "não-escri-
turicidade". De fato, ela é anterior à Escritura; ela a engloba, anima
e transfigura, cumprindo-a.
Sem dúvida, a Torá oral valoriza a oralidade, a verbalidade do
ensinamento, a transmissão por repetição, as técnicas da memori­

61
zação etc. Mas essa oralidade técnica, bem como a "escrituricidade"
da Escritura, estão a serviço da Torá oral como Torá vivida. Com
certeza a Torá vivida é o prolongamento direto da Torá oral trans-
mitida, desenvolvida, prolongada pelas pessoas vivas. Mas a Torá
oral vivida está para além da Torá oral, verbal e explícita, que a
prepara e a torna possível. A Torá oral vivida cumpre a Torá oral, no
momento em que toda palavra cessa de ser dita para ser vivida no
silêncio, acima de tudo, no silêncio do martírio e da morte.22
A coerência da Torá, que torna possível a teologia farisaica da
Torá oral, culmina no ensinamento concernente à ressurreição. No
contato com esse ensinamento, percebemos efetivamente uma luz
forte e duplicada:
- A Torá, fonte de vida, deve ser vivida; portanto, deve ser oral,
antes, com e depois da Escritura.
- A Torá, porque é oral, pode ensinar a vida e dar essa vida
neste mundo e no mundo futuro.

22 A Torá vivida por Rabbi Aqiba, que dá sua vida a Deus, por amor, no martírio, está
para além da Torá que ele havia ensinado anteriormente, dizendo: "Com toda a tua
alma, ainda que Ele tome a tua alma" (ver texto n. 83).

62
2aPARTE
ATORÁORAL É HISTÓRIC
Na primeira parte, vimos que a Torá oral é coerente. Mas o
que surpreende, antes de qualquer coisa, é sua rica diversidade, sua
abundante variedade. Consequentemente, poder-se-ia ser tentado
a fazer duas censuras aos mestres fariseus.
Primeira censura: por terem deixado sua doutrina dispersa,
inacabada, abundante, mas não organizada, no estado em que a
encontramos. A isso deve-se responder, antes de tudo, que aquilo
que para nós é defeito, para eles é qualidade:1 a Torá deve perma-
necer aberta, não sistematizada. Mas é preciso dizer também que o
não acabamento resulta do desenvolvimento histórico da Torá oral.
Foi formulado apenas o que era necessário.
A segunda censura, mais grave, consistiría em dizer aos mes-
tres fariseus que sua doutrina é bela demais para ser verdadeira;
que ela permite, com certa facilidade, que eles sejam "os mestres
da Lei1 2.‫ ״‬Seria possível pensar que essa doutrina da Torá oral é uma
invenção, uma ficção teológica fabricada e imposta a todo o Israel,
depois da destruição do Templo. A isso deve-se responder que essa
doutrina não foi imposta; ela se foi impondo progressivamente,
porque era verdadeira, de uma verdade vital para Israel.
Gostaríamos de mostrar, nesta segunda parte, que é assim,
concentrando-nos sobre um ponto essencial: a autenticidade da re-
construção em Yavné, essa cidade da planície costeira em que se
reuniram os mestres depois da destruição do Templo no ano 70. Já
insistimos sobre a importância do circuito de Yavné, entre os anos
70 e 100 do século I.
Em Yavné, a reorganização do povo em torno da Torá foi tão
profunda que todas as formulações, todas as tradições que encon-
tramos na literatura rabínica passaram pelo controle do colégio ra-
bínico. Conhecemos a audácia de Rabban Yohanan e de seus cole-

1 Segundo Rabbi Yannai (início do século III d.C. ), não era necessário que a Torá
fosse dada "cortada em fatias" (T. J. Sanhédrin IV, 2 22a; ver Pesiqta Rabbati, Pisq 21,
101a). Efetivamente, a Torá não é feita para ser consumida, mas para ser estudada,
atualizada pela Torá oral, e praticada.
2 Segundo J. Z. Lauterbach, o equilíbrio entre a Torá (Lei) escrita e a Torá (Lei) oral
foi o que permitiu que os fariseus "não se tornassem escravos da Lei, mas fossem os
mestres da Lei".

65
gas, que se manifestou por muitas inovações; assim, podemos nos
perguntar se eles também não inovaram, e de maneira radical, em
matéria de Torá oral.
A dificuldade não está daí em diante, pois, a partir de Yavné, a
continuidade é garantida pela reorganização do encadeamento de
mestres e discípulos bem experientes na crítica; e pela instalação de
escolas, umas em contato com as outras.
Em contrapartida, há um sério problema voltando de Yavné
para os decênios que precedem a destruição do Templo. Em Yavné,
efetivamente, os Sábios se encontraram diante de um verdadeiro
caos. A questão é saber se, graças à Torá oral, eles já tinham os ins-
trum entos para reconstruir ou se tiveram de inventar e fabricar tais
instrumentos.
A questão é importante para os judeus de hoje, a quem se pode
perguntar, do interior ou do exterior, se a Tradição farisaico-rabí-
nica permaneceu mosaica para além da destruição do Templo. A
questão se põe também para os cristãos que se interrogam sobre
a pertinência que tem a Tradição de Israel, e em particular a lite-
ratura rabínica antiga, quanto ao ensinamento de Jesus e o Novo
Testamento.
Partamos de uma Tradição geralmente invocada pelos sábios
judeus, para qualificar a mudança de Yavné do ponto de vista da
Torá.

23. Tosephta Ediyot 1,1


1. Quando os Sábios entraram no pomar,
em Yavné, disseram: "Chegará a hora em
que um h om em procurará um a palavra
entre as palavras da Torá e não a encon-
trará, [ou ele procurará um a palavra] en-
tre as palavras dos Escribas e não a encon-
trará, com o está d ito (Am 8,11-12): Eis q u e
virão dias - oráculo d o Sen h or D eu s - em
q u e en via rei fo m e ao p a ís, n ão um a fo m e
d e p ã o > n e m um a se d e d e água, m as sim
d e o u v ira s p a la vra s d o Senhor. Errarão d e
um m a r a o u tro> d o n o r te a té o le v a n te
vaguearão, para p ro cu ra r a p alavra d o Se-
nhor, m as n ão a encontrarão!".
Palavra d o Senhor, é a profecia; palavra
d o Senhor, é o fim; palavra d o S en h or [é

66
a Halaca], pois n enhum a palavra, entre as
palavras da Torá, será sem elh an te a outra.
Eles disseram: "Com ecem os de H illel e de
Shammai". Sham m ai diz: "A partir de um
unidade de medida kab* o tributo". H illel diz: "A partir de
dos sólidos dois kabs". Mas os Sábios dizem: "Nem de
acordo com as palavras d este e n em com
as palavras daquele, m as um kab e m eio;
ele é obrigado ao tributo, pois está dito
'arisotekem
(Nm 15,20): Primícias d e vossas uchas* [fa -
'isatekem; jogo de
reis um a separação]: segundo a m ed id a de
palavras com o vossa m assa *. E quanto é "vossa massa"?
termo precedente Segundo a m ed id a da m assa n o deserto.
E quanto é a m assa no deserto? Como um
o m e r (= gom or) (cf. Ex 16,16), com o está
unidade de medida dito (Ex 16,36): E o o m e r é a d écim a p a r te
dos sólidos d o ephah*.
2. Os Sábios avaliaram [o om er] em sete
quartas partes [do kab] e m ais [a vigésim a
parte do kab] em m edidas do deserto, que
cidade da Galileia são cinco quartas partes [do kab] em Sefo-
ris*, que são um k a b e m eio em m edida de
medida de líquidos Jerusalém .
3. H illel diz: "Um sextário (h in *) cheio de
pequena unidade água retirada com vasilha, de 12 quarti-
para os líquidos lhos (logs*), torna inválido o banho ritu-
al". E Sham m ai diz: "Um sextário cheio
de água retirada, com vasilha, de 36 quar-
tilhos, torna inválido o banho ritual". Mas
os Sábios dizem: "Não de acordo com as
palavras d este n em de acordo com as pa-
lavras daquele, m as 3 quartilhos de água
retirada com vasilha tornam inválido o
banho ritual".
Fato: Dois tecelões vieram da porta das
im undícies, em Jerusalém , e testem u n ha-
primeira dupla de ram, em referência a Shem a'ya e A btalion
mestres fariseus e *, que 3 quartilhos d e água tirada com va-
antes de Hillel e
Shammai silha tornam inválido o banho ritual. Os
sábios, então, cum priram suas palavras.
Assim , por que foram m encionados o
n om e de seus lugares e o n om e de suas
profissões? A profissão d e tecelão não é a
m enos elevada? A porta das im undícies

67
não é o lugar m ais desprezado d e Jerusa-
lém ? Mas [isto é para ensinar que] se os
Pais do m u n d o não m antiveram suas pa-
lavras d iante d e um a [Tradição] ouvida,
com m aior razão um h om em [qualquer]
não d eve m anter sua palavra diante de
um a [Tradição] ouvida.

Disso resulta que a ordenação da Torá apoia-se principalmente


sobre a Torá oral. Reúnem-se as "tradições ouvidas", que se "con-
firmam" com base sobre testemunhos (Ediyot). Conhecem-se e
avaliam-se as fraquezas da Torá oral, chamada aqui, segundo seus
diferentes aspectos, "palavras da Torá", "palavras dos Escribas",
"tradições ouvidas". É caótico o estado da Torá, minada em seu
interior por divisões injustificadas,3 destruída por fora pelos massa-
cres da guerra contra os romanos. Para reconstruí-la, não se bus-
cam documentos escritos; recolhem-se testemunhos e começa-se a
redigir oralmente a Mishná, reunindo testemunhos que se referem
às tradições mais antigas, em linhas gerais, a partir de Hillel e de
Shammai, depois do fim do século I antes de nossa era. O tratado
Ediyot ("testemunhos") da Mishná, ao qual a Tosephta Ediyot serve
de complemento, tem, de fato, grande probabilidade de ser o pri-
meiro tratado da Mishná que foi redigida em Yavné.
Esse primeiro texto nos dá o que há de essencial no conteúdo
da Torá oral, isto é, as determinações não "escriturísticas" da prática
que tem valor de revelação. Porém, ainda não temos a terminolo-
gia "Torá oral - Torá escrita", de onde se pode pensar se ela não foi
inventada em Yavné, depois da vitória efetiva dos fariseus sobre os
saduceus.
Na fase em que estamos, suspendemos nosso julgamento sobre
a exatidão literal das formulações colocadas, pela Tradição rabínica,
no tempo de Hillel e de Shammai (cf. comentário do texto n. 5).

OS SÁBIOS DE YAVNÉ
CONFIRMAM A TORÁ ORAL DOS FARISEUS
Duas tradições falam explicitamente da Torá oral e da Torá es-
crita, no contexto de Yavné. Elas permitem, sem contar o interesse

3 T. B. Sanhédrin 88b: "Quando se multiplicaram os discípulos de Shammai e de


Hillel, que não tinham servido suficientemente [seu mestre, por meio do estudo],
multiplicou-se a controvérsia em Israel e a Torá passou a ser como duas Torás".

68
oferecido por seu conteúdo, fixar um terminus ad quem, uma data
limite para o aparecimento oficial da "Torá oral", designada como
tal, em Israel.

:24* Sifré s/ Dt 33,10 Pisq. 351 Ed. Finkelstein p. 408


(Dt 33,10): Ensinarão os teu s ju íz o s a Jacó,
* plural da palavra Torá e tuas Torot* a Israel·. Isto ensina que duas
Torot foram dadas a Israel, um a oral e um a
escrita. A gnitos, o governador, perguntou
a Rabban Gamaliel: "Quantas Torot foram
dadas a Israel?" Ele lh e disse: "Duas, um a
oral e um a escrita".

Existe uma Tradição análoga, ou uma variante dessa Tradição,


em que temos Rabban Yohanan ben Zakkai em lugar de Rabban
Gamaliel e Agrippas em lugar de Agnitos (Midrash Tannaim s/ Dt
33,10). Indiscutivelmente, preferimos a que põe em cena Rabban
Gamaliel e decidimos, sem hesitar, que se trata de Rabban Gama-
liei II, neto de Rabban Gamaliel, mestre de São Paulo. É preferível
essa escolha, porque é a mais segura para a nossa finalidade. De
fato, podemos afirmar que o mais tardar com Rabban Gamaliel II,
em Yavné, usam-se as expressões Torá oral-Torá escrita, a partir da
pergunta escolar: "Quantas Torot tendes?"
Indiquemos, de passagem, que o texto massorético dá a ex-
pressão "tua Torá (no singular) em Israel" e não "tuas Torot", o
que prova que os mestres de Yavné tinham outra Tradição de leitu-
ra. Aliás, este ponto é explicitamente mencionado na variante que
apresenta Rabban Yohanan ben Zakkai e Agrippa.
Notemos ainda que a pergunta: "Quantas Tarai tendes?" é feita
por um não-judeu. Isto nos lembra que essa mesma pergunta apa-
recera na boca de um não-judeu, candidato à conversão, no tempo
de Hillel e Shammai (ver acima texto n. 5).
Poder-se-ia pensar que a pergunta fizesse parte das questões
típicas nas controvérsias entre judeus e não-judeus. Parece mais
provável que ela seja uma questão-teste, empregada na cateque-
se farisaica oposta às posições saduceias. Essa catequese é dirigida
antes de tudo aos judeus, mas também é oferecida aos não-judeus
candidatos à conversão. Quanto ao fato de ter sido, neste caso, feita
por um romano, essa pergunta é sinal de que ele ouviu falar das

69
duas Torot, da Torá dos fariseus, que são doravante os únicos res-
ponsáveis pela vida judaica.

25. Sifra s/ L v 26,46 Ed. Weiss 112c


(Lv 26,46): São estes os usos e as regras e as
* midrashot Torot [...] os usos são as in te rp re ta ç õ e s*, as
regras são os ju ízo s. E qu a n to às Torot, isto
ensina q u e duas Torot foram dadas a M oi-
sés n o Sinai, um a p o r escrito e um a p o r
transm issão oral. Rabbi Aqiba diz: "Mas
foram dadas duas Torot a Israel? Muitas
Torot foram dadas a Israel (Lv 6,2): Esta é
a Torá d o h o lo ca u sto [... ]; (Lv 6,7): Esta, a
Torá da oblação [...] ; (Lv 7,1): Esta, a Torá
d o sacrifício d e reparação [...] ; (Lv 7,11):
Esta, a Torá d o sacrifício d e com un h ão [...]
; (Nm 19,14): Esta é a Torá para um ho-
m e m q u e m o rre em um a ten d a [...] !
(Lv 26,46): [...] q u e o S en h or esta b elece
e n tre si e e n tre os filhos d e Israel [...] Moi-
* shaliah sés m ereceu ser feito apóstolo* entre Isra-
el e seu Pai que está nos céus (Lv 26,46):
[...] n o m o n te Sinai, p o r in te rm é d io d e
M oisés. Isto ensina que a Torá, suas de-
* halakot term inações*, suas explicitações** e suas
** diqdukim
* perushim explicações* foram dadas no Sinai por in-
term éd io d e Moisés".

O quadro dessa Tradição é, sem dúvida, Yavné, na época em


que o Rabbi Aqiba, tornado mestre, já fora encarregado de coor-
denar a redação da Mishná. É muito provável que ele também te-
nha tido um papel diretor na constituição de coletâneas de Tradição
exegética sobre os livros do Êxodo, Levítico, Números e Deutero-
nômio.4
Na coletânea sobre o Levítico, chamada Sifra,5temos, pois, com
toda a normalidade, a apresentação de um documentação oral so-
4 Para cada um desses livros do Pentateuco, que fornecem normas à prática de Israel
(diferentemente do livro do Gênesis, que ainda não trata da vida de Israel como povo,
nem de sua prática), há uma coletânea ou parte de coletânea de tradições exegéticas,
que provém da redação de Rabbi Aqiba e seus discípulos. Essas coletâneas antigas são
chamadas Midrashey Halaca.
5 A coletânea chamada Sifra (= o livro, em aramaico) ou Torat Kohanim {= a Torá dos
Sacerdotes, em hebraico, nome dado também ao livro bíblico do Levítico), em grande
parte depende da redação de Rabbi Aqiba e seus discípulos.

70
bre Lv 26,46, versículo que chega à coletânea a propósito, depois de
todos os que o precederam.
Uma Tradição anônima, totalmente análoga à que vimos no
texto anterior, propõe a valorização do plural Torot. As Torot signifi-
cariam, pois, a Torá escrita e a Torá oral.
O Rabbi Aqiba reage contra essa interpretação que ele julga por
demais incompatível com o contexto imediato dos livros Levítico
e Números, cheios da palavra Torá que designa, evidentemente,
a norma ritual organizada por cada versículo. O plural Torot signi-
fica aqui, portanto, a multiplicidade de tais normas. Não se deve
limitá-lo a duas, como de bom grado faria o Rabbi Aqiba em outros
contextos, em virtude do princípio: "Pegaste muito, não pegaste
nada; pegaste pouco, pegaste" (Sifra s/ Lv 15,25 79a). Em outras
palavras, na Torá, o plural deve ser reduzido normalmente a dois,
que é o pouco, o mínimo que se pode pegar com certeza. O plural
é limitado por baixo e é esse limite que se deve pegar para maior
segurança. Indo no outro sentido, para a grande quantidade, não
se sabe até onde é preciso ir. Deve-se, pois, limitar-se a duas. Mas
aqui o contexto, segundo Rabbi Aqiba, obriga a ver, no plural, as
múltiplas Torot do ritual.
O Rabbi Aqiba não contesta, de modo algum, o conteúdo da
Tradição anônima. Para ele, há, sem dúvida, duas Torot, a Torá es-
crita e a Torá oral. O que ele contesta é o apoio dessa convicção
através do plural Torot no versículo considerado.
Temos, pois, segundo testemunho da Tradição sobre a existên-
cia das expressões "Torá oral/Torá escrita", em Yavné. Portanto, po-
de-se dizer que, o mais tardar no ano 100 d.C., ensina-se em Israel
que há duas Torot, ou uma Torá sob duas formas: a Torá escrita e a
Torá oral.
Antes de perseguir nosso propósito, que é perquisar o que exis-
te para trás de Yavné, convém notar a importância do que está dito,
no fim do nosso texto, a respeito de Moisés.
A exegese feita sobre o fim do versículo "que o Senhor estabe-
lece entre si e entre os filhos de Israel" está de acordo com o modo
de ver do Rabbi Aqiba, segundo o qual todos os pormenores da
Escritura são importantes. A repetição da palavra "entre" sugere vi-
vamente que a revelação estabeleceu um intermediário entre Deus
e Israel. Sendo conhecido esse intermediário, ele vem sem demora
encontrar seu lugar e o versículo se acha "cumprido" quando se vê

71
que ele ensina que Moisés foi feito apóstolo (shaliah), o enviado de
Deus para o dom da Torá no Sinai. Essa Tradição é pertinente para
compreender melhor as intenções do Evangelho de João que, com
tanta frequência, apresenta Jesus como aquele que o Pai enviou.
Podemos mencionar também a epístola aos Hebreus (3,1), que em-
prega a palavra "apóstolo" para designar Jesus em um contexto em
que se trata de Moisés.
A conclusão da passagem - o ensinamento dado a partir de "no
monte Sinai, por intermédio de Moisés" - pode surpreender. Tam-
bém aqui, segundo o método de Rabbi Aqiba, interpreta-se a supe-
rabundância do versículo que fala de Moisés, ao passo que nós já
sabemos, pelo que precede, que ele é o intermediário. Como "cum-
prir" a superabundância? Vendo significados nela todos os prolon-
gamentos que virão a partir do germe escrito e oral dado a Moisés
no Sinai.
Esse texto permite ver o conteúdo da Torá oral que, segundo é
ensinado, existe como Torá, em Yavné. Essa Torá contém as preci-
sões e as explicações da Torá escrita. Contém também as determi-
nações (halakot) que podem muito bem ter precedido a Escritura e
ter existido sempre, fora da Escritura, como vimos acima, com as
"regras (halakot) de Moisés desde o Sinai" (cf. texto n. 13).
Continuando essa lista de resultados cujo germe foi dado a
Moisés, no Sinai, temos, aliás, duas outras formulações interessan-
tes: "O que um aluno antigo ensinará diante de seu mestre" (T. J.
Peak 11,6 77a: Rabbi Yehoshua ben Levi); "o que um aluno anti-
go perguntará a seu mestre" (Tanhuma Buber Ki Tissa s/Ex 34,27:
anônimo). Esses prolongamentos tardios são a precisão do que já
está, em germe, no nosso texto. De fato, as precisões e explicações
fazem sair ensinamentos novos da boca dos discípulos, que os sub-
metem ao controle de seus mestres presentes. Por outro lado, como
haveria precisões, se anteriormente não tivessem sido formuladas
perguntas? Portanto, não apenas as respostas, mas também as per-
guntas, fazem parte da Torá oral.
Por meio dessas observações, pressente-se a importância da re-
lação mestre-discípulo, para a continuidade histórica da Torá oral.6
6 P. Lenhardt, “Votes de Ia continuitéjuive. Aspects de la relatioti maitre-disciple d'apr'es la
littérature rabbinique ancienne", ern R. S. R. 66, 1978, p. 489-516.

72
A RELAÇÃO MESTRE-DISCÍPULO
GARANTE A CONTINUIDADE E A NOVIDADE DA TORÁ ORAL
Como nossa preocupação é tentar precisar o que se pode dizer
sobre a Torá oral antes de Yavné, é preciso ir subindo a linhagem
de discípulos a mestres. Antes do Rabbi Aqiba, temos o Rabbi Elie-
zer e o Rabbi Yehoshua, e abaixo, Rabban Yohanan ben Zakkai. O
quadro adiante, no qual acrescentamos alguns outros mestres, sem
dúvida ajudará na localização.

Hillel (e S h a m m a i )

R ab b an S h im eo n
R a b b a n G am a lie l I
R a b b an Y o h an an b en Zakkai
R a b b a n S h im e o n B e n G am aliel
R. E lie z e r
R a b b a n G a m a l i e l II R . A q ib a R. Y e h o s h u a
R a b b a n S h im e o n b e n G am aliel R. M e i r R. I s h m a e l
R abbi Y e h u d a h H a-N assi

A personagem-chave na mudança por que passou a Torá oral


em Yavné é Yohanan ben Zakkai, chamado Rabban, isto é, "nosso
mestre", título dado ao chefe do colégio rabínico ou da parte farisai-
ca do Sinédrio, antes da destruição do Templo, a partir de Rabban
Gamaliel I.
Deixar Jerusalém às escondidas durante o sítio da cidade; con-
cluir acordo com os romanos antes do fim da resistência e con-
tra inúmeros colegas, entre os quais Rabban Shimeon ben Gama-
liei, filho de Gamaliel I, a quem normalmente cabia a autoridade,
como descendente de Hillel... Tudo isso fez de Rabban Yohanan
ben Zakkai uma personagem muito controvertida. No entanto, sua
importância só foi reconhecida mais tarde, a ponto de ter sido apre-
sentado como um novo Moisés.

26. Midrash Tannaim s/ Dt 34,7


Ϊ . i
(Dt 34,7): [A id a d e d e M oisés era] 120 anos,
{qu an do m orreu]. Ele foi um dos quatro
que viveram 120 anos. Foram estes: M oi­

73
sés, H illel, o Ancião, Rabban Yohanan ben
Zakkai e Rabbi Aqiba.
- M oisés viveu 40 anos n o Egito, passou
40 anos em M adian e serviu Israel por 40
anos.
- Hillel, o Ancião, subiu de Babilônia aos
40 anos serviu aos Sábios durante 40 anos
e serviu Israel por 40 anos.
- Rabban Yohanan ben Zakkai dedicou-
-se aos negócios por 40 anos, serviu os Sá-
bios por 40 anos e serviu Israel durante 40
anos.
- Rabbi Aqiba aprendeu a Torá aos 40
anos, serviu os Sábios por 40 anos e serviu
Israel durante 40 anos.

A representação das idades, de exatidão mais histórica que cro-


nológica, exprime o tempo de serviço como discípulo e, depois, o de
serviço como mestre.
O que transmitem Hillel, Rabban Yohanan ben Zakkai e Rabbi
Aqiba, seguindo Moisés, a não ser a Torá de Moisés e, especialmen-
te, a Torá oral?
Muitas e muitas são as tradições sobre Rabban Yohanan ben
Zakkai, que o mostram como um inovador ousado, em todos os
campos da vida de Israel. Porém, essa coragem na inovação vem da
fidelidade a seus mestres, com a certeza de fazer apenas o que eles
fariam em seu lugar, se ainda vivessem.
São os discípulos de Rabban ben Zakkai que testem unham essa
sua qualidade, através das narrativas que, por serem profundamen-
te verdadeiras, renunciam, por escolha, a toda exatidão anedótica
ou cronológica.

27. T. B. Sukkah 28 a
Conta-se que Rabban Yohanan ben Zakkai
que, durante tod a a sua vida, jam ais pro-
feriu palavra, n em atravessou [a distância
* fragmentos de
de] quatro cúbitos sem [estudar] a Torá e
pergaminho trazendo sem teüllin*; n inguém chegava m ais cedo
palavras da Lei, presos à que ele à casa d e estudos*; não dorm ia
frontre e ao pulso (cf. Dt n em cochilava na casa de estudos; não
6,8 e nota TOB m editava quando ia ao banheiro; não dei-
* beit ha-midrash
(lit.: casa de pesquisa xava n in gu ém na sala de estudos quando

74
ia embora; nunca o encontraram senta-
do em silêncio, m as rep etind o sem pre, e
jam ais alguém , além dele, abria a porta
a seus discípulos. A o longo d e sua vida,
nunca disse nada que não tivesse ouvido
de seu m estre e, exceto na véspera da Pás-
coa e na véspera do Dia d e Kipur*, jam ais
* a grande solenidade disse: É hora d e deixar a casa d e estudos,
do Dia das E seu discípulo, Rabbi Eliezer, com porta-
Expiações (Lv 16) _s0 da m esm a forma.

Mais longe, encontraremos Rabbi Eliezer. O que nos interessa


aqui é que os discípulos de Rabban Yohanan ben Zakkai, que co-
nhecem tudo o que ele inovou, dizem que "ele nunca disse o que
não tivesse ouvido de seu mestre". É verdade, as inovações são a
expressão da verdadeira fidelidade à Torá recebida dos mestres. No
entanto, esse ponto é delicado e voltaremos a ele, ao falarmos do
Rabbi Eliezer.
Vamos adiante, com Rabban Yohanan ben Zakkai, que nos
apresentam como discípulo de Hillel.

28. T. B. Sukkah 28 a
N ossos m estres ensinaram: "Hillel, o An-
cião, tev e oiten ta discípulos. Trinta deles
foram dignos d e que a Presença Divina*
* Shekinah repousasse sobre eles com o repousou so-
bre M oisés, nosso
m estre. Trinta deles foram dignos d e que
o sol parasse por ordem sua, com o aconte-
* cf. Js 10,12-13 ceu com Josué ben Nun*. Os outros vin te
foram hom ens com uns. O m aior de todos
foi Yahanan ben Uziel; o m enor de todos
foi Rabban ben Zakkai.
Disseram que Rabban Yohanan ben
* Torá escrita e Torá oral Zakkai conhecia a fundo: M iqra e M ish-
** Talmude ná*; Gemara**; H alak o t e Haggadot*; D i-
* Determinações q d u q ei Torá ** e D iq d u q ei S oferim *; De-
jurídicas e exposições duções a fo rtio ri e por analogia; Revolu-
não jurídicas
** explicações da Torá, ções astrais; Ciência da com binação e do
com valor da Palavra valor num érico das letras; Língua dos an-
revelada jos do serviço*; Língua dos d em ônios, Lín-
* explicações dos gua das palmeiras; Parábolas de lavadei-
escribas, com valor de
disciplina rabínica ros e parábolas d e raposas; Grande coisa e

75
* cf. ICor 13,1 pequena coisa. Grande coisa: é o m a'aseh
* especulação mística m erkabah*; pequena coisa: são as discus-
sobre o carro celeste sões d e Abayé e Rava* .
* Mestres fariseus de Tudo isso para cumprir o que está dito [Pr
Babilônia do início
do século IV 8,2 1 ]:
Para le v a r ben s aos q u e m e am am , e en-
ch er o seu tesouro.
E se foi assim para o m enor de todos,
quanto m ais deve ter sido para o maior!
A respeito de Yohanan ben Uziel disseram
que quando ele estava sentado e se ocupa-
va da Torá, to d o pássaro que passasse por
cim a d ele era queim ado im ediatam ente".

Encontramos aqui essa preferência pelo fantástico, encontrado


antes da descrição de R. Aqiba feita por seus discípulos (cf. texto n.
13). Não há a m enor dúvida de que Rabban Yohanan ben Zakkai
não foi discípulo de Hillel. Isso é impossível, pelo fato da distância
que os separa no tempo - o que todos sabem em Israel.7
A explicação é provavelmente a seguinte: embora Rabban Yo-
hanan ben Zakkai não tenha sido, na realidade, discípulo de Hillel,
ele o foi mais verdadeiramente do que se o tivesse sido de fato. Ele
o foi porque, no seu tempo, ele foi para Israel o que foi Hillel no
seu.8
Observemos que Yohanan ben Zakkai é apresentado como o
menor dos vinte discípulos médios. Por aí se reconhece que ele foi
um homem limitado como a maioria dos homens. Porém, insistindo
sobre o alcance e a variedade de sua competência, ele é totalmente
reabilitado. Tudo isso mostra que o pleno reconhecimento de Rab-
ban Yohanan ben Zakkai teve problemas. Provavelmente temos, no
caso, como redatores, discípulos de Rabbi Aqiba, suficientemente
próximos do tempo de Yavné, para sentir ainda a necessidade de
defender Rabban Yohanan ben Zakkai, e bastante afastados para
apresentá-lo também em toda a sua grandeza.
Notemos a terminologia: Miqra para a Torá escrita, Mishná para
a Torá oral. A lista de todas as disciplinas que entram na Torá oral
7 Hillel é contemporâneo de Herodes, o Grande, e viveu somente até os primeiros
anos da era cristã. Rabban Yohanan ben Zakkai, falecido por volta do ano 85 do século
I, não pode, na realidade, ter sido discípulo de Hillel.
8 Rabban Yohanan ben Zakkai é semelhante a Hillel: como ele, foi chefe do colégio
rabínico, fez inovações para ser fiel, para manter a Torá viva, para torná-la praticável;
como Hillel, ele é um novo Moisés (cf. texto n. 26).

76
chega até às parábolas, ao ensino místico, à dialética. O que se quis,
por esse meio, foi precisar que esses gêneros têm seu lugar legítimo
na Torá. Isso está bem na linha de Hillel, a quem são atribuídas as
sete regras de hermenêutica rabínica.9 Essas regras, inteiramente
racionais, são substituídas pela razão hum ana e por todas as am-
pliações que ela permite, na Torá. Da mesma forma, através das
parábolas, entram na Torá todos os recursos da sabedoria popular
e internacional. As parábolas rabínicas se contam às centenas e seu
conhecimento é importante para melhor compreensão do ensina-
mento por parábolas, tão caro a Jesus, segundo o Novo Testamento
(Mt 13,34; cf. Supplement Cahier Évangile rt° 50).
Observemos, por fim, o poder extraordinário atribuído a Yoha-
nan ben Uziel, no üm do nosso texto. O fogo que queima o pobre
pássaro é o fogo do Sinai, que se atualiza no estudo do mestre.
Aqui também, exaltando Yohanan ben Uziel, relativiza-se Rabban
Yohanan ben Zakkai. Ele é situado entre os homens comuns, sem
poderes carismáticos particulares, que podem, no entanto, servir de
modelo, apesar de seus limites, ou antes, por causa de seus limites.
Rabban Yohanan ben Zakkai é, pois, como novo Moisés e discípulo
de Hillel, aquele que garante a autenticidade de Yavné. Mas ele não
é o único a fazê-lo. Os dois principais discípulos seus, Rabbi Eliezer
e Rabbi Yehoshua, confirmam que a Torá oral, nome e realidade, é
anterior à destruição do Templo.
Comecemos pelo Rabbi Eliezer cujo conservantismo, que nos é
precioso aqui, é bem fortemente atestado.

29. T. B. Sukkah 28 a
N ossos m estres ensinaram: "Enquanto o
Rabbi Eliezer passava o Sabá na A lta Ga-
lileia, aconteceu que lh e pediram trinta
* A tenda construída h a la k h o t a respeito da Sukkah*. D e doze
por ocasião da festa [dentre elas], disse-lhes: 'Eu as ouvi [de
das Tendas m eus m estres]'; d e dezoito [dentre elas],
disse-lhes: 'Não as ouvi [de m eus m estres]‫׳‬.
O Rabbi Yosé, em n om e do Rabbi Yehu-
dah, disse: 'Invertei as palavras: d e dezoi-
to, ele lhes disse: 'Eu as ou vi‫ ;׳‬d e doze, d is­

9 Ver Sifra s/Lv 9a-b. Cf. Strack-Stemberger, Introduction au Talmud et au midrash,


p.39ss.

77
se: ,‫׳‬Não as ouvi'. Eles lh e disseram: 'Todas
as tuas palavras nunca são m ais que repe-
tições daquilo que o u v iste‫׳‬. D isse-lhes ele:
'Vós m e obrigais a dizer algum a coisa que
não ouvi d e m eu s mestres: Em toda a m i-
nha vida, n inguém chegou antes d e m im
à casa de estudos, nunca dorm i lá, nem
cochilei, e jam ais d eixei alguém [atrás de
m im ] na casa de estudos, quando saí dela;
nunca proferi palavras profanas e nunca
disse o que quer que seja que não tenha
ou vid o de m eu m estre"‫׳‬.

O que acabamos de ler lembra-nos o texto n. 27, tirado da


mesma página do Talmude. Portanto, já sabíamos que o Rabbi Elie-
zer jamais havia dito qualquer coisa que não tivesse recebido de
seu mestre. Suas virtudes, semelhantes às do seu mestre, não nos
impressionam. O que nos interessa aqui é que ele infringe, cons-
cientemente, a interdição de sua consciência: ele não apenas diz o
que não ouviu de seu mestre, mas o que diz é elogio de si mesmo!
Estamos muito longe de Hillel, o mestre de seu mestre!
Esse passo em falso de Rabbi Eliezer permite-nos avaliar o rigor
de seu conservantismo, em relação aos que o interrogam.
O que é dito de Rabban Yohanan ben Zakkai, em sentido am-
pio, para designar sua fidelidade substancial ao mestre Hillel, é to-
mado ao pé da letra pelo Rabbi Eliezer. Este não tolerava que se
ensinasse diante dele o que lhe parecesse ser uma novidade não
conforme à sua Tradição.
Por causa de sua intransigência, o Rabbi Eliezer será excomun-
gado, quando da recusa a se comportar em conformidade com re-
gras promulgadas pela maioria de um colégio de que ele fazia parte
(T. B. Baba Metsia 59 b). Antes ou depois da excomunhão - que pa-
rece ter sido levantada antes de sua morte -, o Rabbi Eliezer guarda
distância de seus colegas e estremece ao pensar que eles podem, a
todo instante, violar a Torá, ensinando novidades falsas.

30. Mishna Yadaim IV, 3


* ‫־‬
N aquele dia, eles disseram: "O que há com
A m on e Moab no sétim o ano?‫׳׳‬.

78
Rabbi Tarfon decretou: ‫[ ״‬Os ju d eu s que
vivem em A m on e Moab d evem dar] o dí-
zim o do pobre". Mas o Rabbi Eleazar bem
Azariah decretou: "O segundo dízim o".
Rabbi Ishm ael lh e disse: ‫״‬Eleazar bem
Azariah, cabe a ti apresentar um a prova
porque crias um gravam e, e a tod o aque-
le que cria um gravam e cabe apresentar
um a prova".
Rabbi Eleazar bem Azariah lh e disse: "Ish-
m ael, m eu irmão! Não fui eu que m u d ei
a ordem dos anos. Foi m eu irm ão Tarfon
que m udou, e é a ele que cabe apresentar
um a prova".
Rabbi Tarfon respondeu: "O Egito é ex-
terior à Terra [de Israel]; A m on e Moab
são exteriores à Terra. A ssim com o para o
Egito [se d eve dar] o dízim o do pobre no
sétim o ano, tam bém [para] A m on e Moab
[se d eve dar] o segundo dízim o n o sétim o
ano".
Rabbi Eleazar ben Azariah respondeu:
"Babilônia é exterior à Terra, A m on e
Moab são exteriores à Terra. A ssim com o
[para] Babilônia [se d eve dar] o segun-
do dízim o n o sétim o ano, tam bém [para]
A m on e Moab [se d eve dar] o segundo dí-
zim o n o sétim o ano".
Rabbi Tarfon disse: ‫״‬O Egito, porque é
próxim o [à Terra d e Israel], fizeram -no
[passível do] dízim o do pobre, para que
os pobres d e Israel se possam apoiar sobre
ele n o sétim o ano. A m on e Moab, que são
próxim os, façam o-los tam bém [passíveis
do] dízim o do pobre, para que os pobres
de Israel se possam apoiar sobre eles no
sétim o ano".
Rabbi Eleazar ben Azariah lh e disse: "Eis
que pareces dar-lhes vantagens quanto ao
dinheiro, m as [na realidade] és com o al-
guém que faz as alm as se perderem : gos-
tarias d e enganar os céus, de m od o que
eles não façam descer o orvalho e a chuva,
pois está dito (Ml 3,8): P o d e um h o m e m

79
enganar a D eu s? E, n o en ta n to > vós m e
enganais. D izeis: Em q u e te enganam os?
Em relação ao d ízim o e à contribuição".
Rabbi Yehoshua disse: 7‫׳‬Eis que eu [me
apresento com o] respondendo contra o
Rabbi Tarfon, m eu irmão, porém [na re-
alidade, não respondo] contra o conteú-
* isto é, de sua posição do de suas palavras*. [Quanto ao] Egito,
[as m edidas tom adas a respeito d e dízi-
m os são] um fato novo; [quanto a] Babi-
lônia, é um fato antigo. Ora, o caso discu-
tid o d iante de nós é um fato novo. Que
se julgue, pois, um fato novo a partir de
um fato novo, e que não se julgue u m fato
novo a partir de um fato antigo. O Egito
é um fato d e antigos; Babilônia é um fato
de profetas. Que se julgue, pois, um fato
de antigos a partir de um fato de antigos,
e que não se julgue um fato de antigos a
partir d e um fato de profetas". Eles calcu-
laram e decidiram: [No caso de] A m on e
Moab d eve-se contribuir com o dízim o do
pobre no sétim o ano.
Quando Rabbi Yosé, filho da Dam ascena,
* cidade da planície chegou à casa d e Rabbi Eliezer em Lida*,
costeira, não distante disse-lhe: "Que n ovidade h ou ve hoje para
de Yavné (cf. At 9,32) vós na casa de estudos?". Ele lh e disse:
"Eles calcularam e decidiram: [No caso
de] A m on e Moab, d eve-se contribuir
com o dízim o do pobre no sétim o ano".
Rabbi Eliezer chorou e disse: "(Sl 25,14) O
seg red o d o S en h or é para aqu eles q u e o
te m e m , fa zen d o -o s con h ecer a sua alian-
ça. Sai e diz a eles: ‫׳‬Não tem ais quanto a
vosso voto. Recebi, por Tradição, de Ra-
bban Yohanan ben Zakkai, que ouviu de
seu m estre e seu m estre de seu m estre até
* Halaca le-Moshe a regra de M oisés d esd e o Sinai*, que [no
mi-Sinai caso de] A m on e Moab deve-se contribuir
com o dízim o do pobre no sétim o ano‫"׳‬.

Rabbi Eliezer chora de alegria, porque seus colegas confirma-


ram o que para ele, segundo sua Tradição, é uma "regra de Moisés
desde o Sinai". Ele tinha duas razões para se emocionar: em pri­

80
meiro lugar, que se pretendesse provar pela Escritura o que, sendo
"regra de Moisés desde o Sinai", não deve ser justificado por meio
da Escritura; mas também, de modo mais grosseiro, que se trans-
gredisse o conteúdo da regra. Ora, não ocorre nem um, nem outro;
confirma-se o conteúdo da regra por votação da maioria e não por
conclusão exegética, nem mesmo por aplicação direta da dialética,
como poderia fazer crer a longa discussão.
Temos assim, na boca de Rabbi Eliezer, a fórmula técnica "regra
de Moisés desde o Sinai" correspondente ao conteúdo de que já ia-
Íamos; uma regra imemorial que nunca passou pela Escritura e que
não deve ser justificada pela Escritura.
Notemos que Rabbi Eliezer não leva a corrente para além do
mestre que é o mestre do mestre de Rabban Yoahnan ben Zakkai.
Isso não quer dizer que não se remonte a Moisés, mas poderia indi-
car que a Tradição oral não se compromete, de fato, a garantir mais
do que três ou quatro elos.
A fórmula é estereotipada; nós a encontramos na boca de Ra-
bbi Yehoshua.

31. Mishná Ediyot VIII, 7


Rabbi Yehoshua disse: "Recebi por Tradi-
ção de Rabban Yohanan ben Zakkai, que
ouviu de seu m estre, e seu m estre de seu
m estre, regra de M oisés d esde o Sinai*,
* Halaca le-Moshe que Elias não virá para declarar puro ou
mi-Sinai im puro, para afastar ou aproximar, mas
para afastar os que foram aproxim ados
com violência e para aproxim ar os que
foram afastados com violência. A fam ília
B eit Tzereiphah estava na Transjordânia
e Ben Tzion afastou-a com violência. Ha-
via lá um a outra fam ília e Ben Tzion apro-
xim ou-a com violência. É dessa maneira
que Elias virá para declarar im puro ou
puro, para afastar ou aproximar".
Rabbi Yehudah disse: "Para aproxim ar e
não para afastar". Rabbi Shim eon disse:
"Para facilitar o que é m otivo de contro-
vérsia". Mas os Sábios dizem: "Nem para
afastar nem para aproximar, mas para re­

81
alizar a paz n o m undo, pois está dito (Ml
3,23): Eis q u e vos en vio Elias, o Profeta
[...], e ele fará vo lta r o coração d o s p a is
para os filhos e o coração d o s filhos para
os pais".

Tanto com Rabbi Eliezer quanto com Rabbi Yehoshua, temos,


pois, a garantia de que, antes da destruição do Templo, havia "re-
gras de Moisés desde o Sinai", que são especificamente orais, sem
nenhuma relação com a Escritura. Essas regras, atribuídas a Moisés,
têm a condição da Torá. De fato, é evidente - o Antigo Testamen-
to e o Novo Testamento o provam - que falar da Torá do Senhor
equivale a falar da Torá de Moisés (Esd 7,6.10), ou de Moisés, ou da
Lei-Torá de Moisés (Lc 24,27.44). Notemos também que não há ne-
cessariamente unanimidade sobre o fato de que uma norma, aceita
por todos, seja reconhecida como norma de Moisés desde o Sinai.
Nos dois textos que acabamos de ver, tal unanimidade não existe.
Ressaltemos, por fim, que certas normas podem ser apresenta-
das como remontando a Moisés, sem ter, no entanto, a condição de
"regra de Moisés no Sinai". É o caso das normas que regem a leitura
litúrgica da Torá, os Sabás, os dias de festa, bem como a terça-feira
e a quinta-feira de cada semana. Segundo as diferentes tradições,
essas normas foram editadas por Moisés ou por Esdras, ou ainda
pelos profetas e pelos anciãos.10 O que é dito em At 15,21 situa-se
bem nesse contexto aberto. Quanto às leituras proféticas dos Sabás
e dos dias de festa, são bem atestadas pelo Novo Testamento, por
Lucas em: Lc 4,17 e At 13,15, e organizadas pela Mishná (Megilla
TV, 1, 2, 4, 5, 10). Mas nenhum a fonte rabínica antiga esclarece a
quando elas remontam. Se fosse necessário, o Novo Testamento,
melhor que a Mishná, provaria "objetivamente" a sua antiguidade.
Vejamos ainda como Rabbi Eliezer e Rabbi Yehoshua contro-
lam e aprovam as inovações de seus discípulos.

32. Mishná Pesahim VI, 2


Aqui estão as coisas que, na Páscoa, preva-
lecem sobre o Sabá: sua im olação, a asper-

0 Mekilta de R. Ismael s/ Ex 15,22, p. 154; T. J. Megillah IV, 1 75a; T. B. Baba Qama 82a.

82
são do sangue, a raspagem das entranhas,
a :om bustão das partes gordurosas. No
entanto, o assar e enxaguar as entranhas
não prevalecem sobre o Sabá. Trazê-la ao
Tem plo, fazê-la passar do exterior ao inte-
rior do d om ín io [sabático]*, a ablação de
* distância de cerca de um sua excrescência, não prevalecem sobre o
quilômetro ao redor da Sabá.
cidade, não permitido
ultrapassar no Sabá Rabbi Eliezer disse: "[Essas operações
tam bém ] prevalecem sobre o Sabá". Rab-
bi Eliezer disse: "Não se deverá raciocinar
assim: Se a im olação, que pertence à ca-
tegoria Trabalho', prevalece sobre o Sabá,
essas [operações], que pertencem [som en-
te] à categoria 'repouso sabático', não pre-
valecem sobre o Sabá?".
Rabbi Yehoshua lh e disse: "O dia de fes-
ta vai fornecer a prova. D e fato, no caso
deste, certas operações que pertencem à
categoria 'trabalho‫ ׳‬foram perm itidas, e
outras, que pertencem à categoria 'repou-
so sabático‫׳‬, foram proibidas".
Rabbi Eliezer lh e disse: "O que é isso,
* a imolação de um Yehoshua? Que prova se pod e tirar do fa-
animal para a refeição cultativo* para o obrigatório**?".
de um dia de festa
Rabbi Aqiba, objetou, dizendo: "A asper-
** a imolação da Páscoa
são [da água purificadora*] vai fornecer
* cf. Nnt 9,11-13 a prova, pois é obrigatória; ela pertence
[som ente] à categoria 'repouso sabático' e
não prevalece sobre o Sabá. Não te espan-
tes, pois, se essas operações obrigatórias,
que pertencem [som ente] à categoria 're-
p ou so sabático', não prevalecem sobre o
Sabá".
Rabbi Eliezer lh e disse: "É ju stam en te so-
* sobre a aspersão bre ela* que estou refletindo: Se a im ola-
ção, que pertence à categoria 'trabalho‫׳‬,
prevalece sobre o Sabá, não se deve con-
cluir que a aspersão, que pertence [so-
m ente] à categoria 'repouso sabático',
prevalece sobre o Sabá?".
Rabbi Aqiba lh e disse: "Ou, antes, o con-
trário: Se a aspersão, que pertence [so-
m ente] à categoria 'repouso sabático',

83
não prevalece sobre o Sabá, não se deve
concluir que a im olação, que pertence à
categoria 'trabalho', não prevalece sobre
o Sabá?".
Rabbi Eliezer lhe disse: "Aqiba, desenra-
ízas o que está escrito na Torá (Nm 9,3):
E n tre as ta rd es [...] n o te m p o d eterm in a -
do; ['no tem p o d eterm inado‫׳‬, isto é], quer
se trate de um dia profano ou do Sabá!".
[Rabbi Aqiba] lh e disse: "Rabbi, indica-
■me um tem p o determ inado para essas
operações, com o há para a im olação!".
* Mal Rabbi Aqiba enunciou a regra geral*: Todo
trabalho que pode ser feito na véspera do
Sabá não prevalece sobre o Sabá. A im ola-
ção, que não se p od e fazer na véspera do
Sabá, prevalece sobre o Sabá.

A intensidade da dialética usada por Rabbi Eliezer e Rabbi


Yehoshua para com seu discípulo Rabbi Aqiba mostra que esses
mestres receberam, de época anterior à destruição do Templo, a
arte de discutir apaixonadamente. Essa formação permite ir até o
fim de um problema, antes de decidir sua resolução. Indo até o fim,
há momentos em que se corre o risco de "desenraizar a Torá", como
o faz Rabbi Aqiba, antes de Rabbi Eliezer chamá-lo à ordem.
A vigilância de Rabbi Eliezer permite ver a que ponto, para ele,
certos versículos só se mencionam segundo a interpretação privile-
giada que lhes dá a Halaca.
Assim, em Nm 9,3: "No tempo determinado" significa obri-
gatoriamente que se deve imolar a Páscoa no próprio Sabá. Essa
interpretação, que data provavelmente pelo menos do tempo de
Hillel (cf. texto n. 16), tornou-se o acompanhamento obrigatório
da Escritura, ao ponto que, mencionar na discussão, como hipótese
retórica, que a imolação da Páscoa possa não prevalecer sobre o
Sabá, parece desenraizar a Torá escrita.
Nesse modo de ver juntas a Escritura e sua interpretação privi-
legiada, Rabbi Eliezer comporta-se como Jesus em Mc 7,9-13, que
cita Ex 20,12; 21,17; Dt 5,16; Lv 20,9, para apoiar sua interpretação
exigente da honra devida aos pais; fazer outra interpretação equi-
vale a desenraizar a Torá escrita.

84
A passagem termina bem: depois de mostrar que sua hipótese
era apenas retórica, Rabbi Aqiba enuncia a regra geral que será
guardada em seu nome. Rabbi Eliezer não se opôs à formulação
dessa regra, pois ela vem depois que tudo fora controlado.
Outro exemplo também ilustra bem como Rabbi Eliezer aceita
um ensinamento novo de seu discípulo.

33. T. B. Sanhédrin 101 a-b


I
Rabbah bar Bar Hanna disse: "Quando
Rabbi Eliezer caiu doen te, seus discípu-
los entraram para visitá-lo. D isse-lhes ele:
'Está no m u n do um a forte ira'. Eles com e-
çaram a chorar, m as Rabbi Aqiba ria. Dis-
seram: 'Por que ris?‫׳‬. Ele lhes disse: Έ vós,
por que chorais?'. Disseram -lhe: 'É pos-
sível ser m ergulhado no sofrim ento um
rolo da Torá e não chorarmos?'. Ele disse:
'É por isso que estou rindo. Enquanto não
vejo, em casa do m eu m estre, n em o vi-
nho azedar, nem o linho se estragar, nem
o óleo ficar rançoso, n em o m el ferm entar,
penso: talvez - D eus nos livre! - m eu m es-
tre já tenha recebido tod o o seu m undo;
mas agora, que vejo m eu m estre sofren-
do, estou contente'. Ele lhe disse: 'Aqiba,
d eixei de cumprir o que quer que fosse de
toda a Torá?'. D isse ele: 'Tu nos ensinaste,
ó m estre (Qo 7,20): N ão h á n o m u n d o nin-
g u ém tão h o n ra d o q u e faça o b em e não
p e q u e r".
N ossos m estres ensinaram: "Quando Ra-
bbi Eliezer caiu d oen te, quatro Anciãos
entraram para visitá-lo: Rabbi Tarfon, Ra-
bbi Yehoshua, Rabbi Eleazar ben Azariah
e Rabbi Aqiba. Rabbi Tarfon declarou e
disse: 'És m elhor para Israel que a gota de
chuva, pois a gota de chuva só é boa para
este m undo, ao passo que tu és bom para
este m u n do e para o m undo futuro'. Ra-
bbi Yehoshua declarou e disse: 'Tu és m e-
lhor para Israel do que o globo do sol, pois
o globo do sol só é bom para este m undo,
ao passo que m eu m estre é bom para este

85
m u n do e para o m undo futuro'.
Rabbi Eleazar ben Azariah declarou e dis-
se: 'Tu és m elhor para Israel que pai e m ãe,
pois pai e m ãe são bons para este m undo,
enquanto m eu m estre é bom para este
m undo e para o m u n do futuro'.
Rabbi Aqiba declarou e disse: 'Am ável é
o sofrim en to‫׳‬. Disse-lhes: 'Ajudai-me; que
eu ouça as palavras de Aqiba, m eu disci-
pulo, que disse: A m ável é o sofrim ento'.
D isse-lhe ele: 'Aqiba, de on d e sabes isso?'.
Aqiba lh e respondeu: 'Eu interpreto a Es-
critura (2Rs 21,1-2): M anassés tinha d o ze
anos qu an do com eçou a rein ar e reinou
cinqu en ta e cinco anos em Jeru salém [...]
E le fe z o m a l aos olhos d o Senhor, e está
escrito (Pr 25,1): Tam bém estes são p ro -
vérbios d e Salom ão>, tran scritos p e lo s ho-
m e n s d e Ezequias, rei d e Judá. Pois bem!
Será possível que Ezequias, rei de Judá,
ten h a ensinado a Torá ao m u n do inteiro
e não a ten h a ensinado a seu filho Manas-
sés? Na realidade, porém , tod o o esforço
que fez por ele, tod o o trabalho que se im-
pôs por sua causa, não o criaram para o
bem . Só o sofrim ento o criou para o bem ,
com o está dito (2Cr 33,10-11): O S en h or
falou a M anassés e a seu p o v o , m as não
lh e d era m ou vidos. Então o S en h or fe z vir
contra eles os gen erais d o rei da Assíria,
q u e p u sera m M anassés em ferros; amar-
raram -no com cadeias d e b ro n ze du plas e
leva ra m -n o para Babilônia. E está escrito
(2Cr 33,12-13): N o te m p o dessa provação,
im p lo ro u ao Sen h or seu D eus e h u m ilh o u -
-se p ro fu n d a m e n te d ia n te d o D eus d e
seu s pais; orou ao Senhor, q u e se d eixou
com over. O uviu sua súplica e o rein tegrou
em sua realeza, em Jerusalém . E M anassés
recon h eceu q u e o S en h or é Deus'.
A ssim aprendes que o sofrim ento é amá-
vel".

86
Notemos a bela expressão dos discípulos na primeira narrativa.
Rabbi Eliezer doente é para eles o rolo da Torá, a Torá visível e ve-
nerada, que sofre. Não se poderia exprimir melhor a unidade entre
Torá oral e Torá escrita.
Nos dois relatos, Rabbi Aqiba consola seu mestre, dizendo-lhe
a verdade e sua verdade. O sofrimento do mestre, porque é peca-
dor, deve ser aceito com alegria, por amor. Talvez seja, de fato, a
última purificação proposta por Deus a Rabbi Eliezer, que o serviu
tão bem, como diz o próprio Rabbi Eliezer, faltando decididamente
à modéstia mais uma vez: "Deixei de cumprir alguma coisa de toda
a Torá?‫״‬. Mas a verdade liberta e Rabbi Aqiba, em nome de seu
mestre, cita a Escritura, para lembrar-lhe de que é pecador.
Na segunda narrativa, evidencia-se claramente que, dizendo
"amável é o sofrimento", Rabbi Aqiba anuncia alguma coisa que
seu mestre jamais ouviu. Assim, a novidade, na confiança e na ami-
zade da relação mestre-discípulo, é aceitável e aceita.
Do mesmo modo, Rabbi Yehoshua alegra-se por descobertas
exegéticas que teriam alegrado seu mestre Rabban Yohanan ben
Zakkai, se ainda estivesse vivo para ouvi-las.

34. Mishná Sotah V, 2.5


| í
V, 2: No m esm o dia, Rabbi Aqiba interpre-
tou: "(Lv 11,33) Todo vaso d e argila n o qual
cair um deles, estará im p u ro em seu in te-
rior. Não está dito 'é impuro', mas 'estará
im puro‫׳‬, por tornar impuras outras coisas.
[A Escritura] ensinou a respeito do pão
[impuro no] segundo [grau], que ele torna
im puro o terceiro [pão]".
Rabbi Yehoshua disse: "Quem arrancará a
poeira de teus olhos, Rabban Yohanan ben
Zakkai? Dizias efetivam en te que no futu-
ro viria um a geração que iria declarar puro
o terceiro pão, porque não há passagem
* miqra = coisa linda 'escriturística‫ *׳‬na Torá, segundo a qual ele
é im puro. Eis que Aqiba, teu aluno, alega
um a passagem escriturística da Torá, se-
gundo a qual ele é im puro, pois está dito:
Todo seu interior estará impuro".

87
V, 5: No m esm o dia, Yehoshua ben Hyr-
canos interpretou: "Jó só serviu o Santo
- bendito seja - por amor, com o está dito:
(Jó 13,15) Ele p o d e m e m atar, m a s ten h o
esperança nele. Porém , ficam os em su-
penso, sem saber [se ele disse]: 'espero, te-
*10 = nele nho esperança nele*', ou 'não espero, não
*i0‫ ~ ׳‬nã0 ten h o esperança*'. No entanto, o ensina-
m en to diz (Jó 27,5b): A té o ú ltim o alen-
to m a n te re i m inh a inocência. Isto ensina
que ele agiu por amor". Rabbi Yehoshua
disse: "Quem arrancará a poeira de teus
olhos, Rabban Yohanan ben Zakkai? De
fato, em toda a vida, propunhas com o in-
terpretação que Jó só tinha servido o Lu-
* Deus gar* por tem or, com o está dito (Jó 1,1): Um
h o m e m ín teg ro e reto , q u e tem ia a D eus
e se afastava d o m al. E eis que Yehoshua,
discípulo de teu discípulo, ensinou que
foi por am or que ele agiu!".

Quer se trate de Halaca quer se trate de Hagadá, a inovação é


recebida com alegria quando é reconhecidamente boa, depois de
examinada.
As "regras de Moisés desde o Sinai" já existiam, como Torá,
antes da destruição do Templo. É impensável que a existência da
"Torá oral", nome e realidade, tenha podido penetrar subrepti-
ciamente em Yavné, e aparecer nas tradições existentes em Yavné
antes de Rabban Gamaliel, e que vimos sustentadas pela Escritura
em Dt 33,10 e Lv 26,46 (cf. textos n. 24-25). Rabbi Eliezer, Rabbi
Yehoshua e Rabbi Yohanan ben Zakkai jamais teriam tolerado se-
melhante abuso.
Citemos ainda uma Tradição sobre Rabban Yohanan ben
Zakkai, que mostra o que é a Torá para os fariseus: uma "Torá com-
pleta", porque compreende a Torá oral, que interpreta corretamen-
te a Escritura.

35. T. B. Menahot 65 b
| i
A partir d e 8 de Nisan até o fim da Fes-
ta [da Páscoa], período durante o qual foi
restabelecida a Festa das Sem anas, é proi-
bido observar luto/jejuar.

88
Porque os betuseus* diziam: "Pentecostes
* gente do partido [sem pre d eve ser] depois do Sabá". Rab-
saduceu ban Yohanan ben Zakkai criticou-os di-
zendo: "Sois loucos! D e on d e tirais isso?".
N inguém respondeu, a não ser um ancião
que com eçou a questionar com ele, dizen-
do: "Moisés, nosso m estre, am ava Israel.
Ora, sabendo que P en tecostes dura ape-
nas um dia, decidiu e prom ulgou que ele
seja depois do Sabá, d e m od o que Israel
desfrute de dois dias [consecutivos]".
[Rabban Yohanan ben Zakkai] citou en-
tão contra ele a passagem da Escritura (Dt
1,2): "Há o n ze dias d e m archa, p e lo cam i-
n h o da m o n ta n h a d e Seir, d e s d e o H oreb
a té Cades Barne. Se M oisés, nosso m estre,
am ava Israel, por que os retardou n o de-
serto durante quarenta anos?". D isse-lhe
ele: "Mestre! É assim que m e respondes?".
Ele lh e disse: "Louco! Nossa Torá com ple-
ta não será com o vossa conversa vã! Uma
passagem 'escriturística' diz (Lv 23,16):
C ontareis cinqu en ta dias, e outra passa-
gem 'escriturística' diz (Lv 23,15): Conta-
reis s e te sem an as com pletas. Como, pois,
[é possível conciliar as duas passagens]? A
segunda passagem tem em vista o caso em
que o dia de festa cai no Sabá. A prim eira
tem em vista o caso em que o dia d e festa
cai n o m eio da semana".

O Talmude nos dá, aqui, uma Tradição que se relaciona com a


Megillat Taanit (Ed. Lichtenstein, p. [68]-[69], 324-325).
Estamos, no máximo, em Yavné, em que a prática farisaica se
impõe contra a dos saduceus. A festa judaica de Pentecostes, por
consequência, não cai necessariamente no primeiro dia da semana.
Notemos que o insulto, na boca de Rabban Yohanan ben Zakkai,
não é gratuito. Ele qualifica teologicamente a inconsequência de
uma posição saduceia, que reconhece valor revelado à Escritura so-
mente. Se é assim, para eles, como poderia ser o que dizem a partir
da Escritura algo mais do que "conversa vã"?

89
Para os fariseus, ao contrário, a exegese é Torá oral, que faz
com que a Torá, Escritura e interpretação, seja "completa". Uma
Torá assim, completa, é também "perfeita", segundo a bela expres-
são tomada de empréstimo ao SI 19,8: "A Torá do Senhor é perfei-
ta". "Perfeita", isto é, una, indivisa, coerente, de modo que cada
parte da Torá, oral ou escrita, remete a toda a Torá.11
Como é possível imaginar a necessidade de esperar por Yavné,
para descobrir que a Tradição controlada e recebida era Torá?
Sem dúvida, pode-se pensar que, não só quanto a essa dou-
trina, mas também quanto à da ressurreição, que dela decorre, os
fariseus tinham dificuldades, antes da destruição do Templo, para
publicamente assumir posições contrárias às dos saduceus. Isso ex-
plicaria por que as expressões "Torá oral, Torá escrita", conhecidas e
empregadas entre fariseus, não eram admitidas fora de seus círculos
e não aparecem em documentos que, para eles, estão à margem: o
Novo Testamento e Flávio Josefo.
Quanto ao Novo Testamento, é fácil compreender que não em-
pregue o termo "Torá" (= Lei) para designar a Tradição transmitida
pelos fariseus, como a "Tradição dos Antigos" (Mt 15,1; Mc 7,3). A
polêmica dessa página culmina efetivamente nesta acusação de Je-
sus: "Invalidais a Palavra de Deus pela Tradição que transmitistes"
(Mc 7,13). Como podería essa Tradição ser chamada Torá?112
No que diz respeito a Flávio Josefo, vejamos como e por que
ele não chama Lei (= Torá) a Tradição oral dos fariseus. Para isso,
comparemos duas versões de um mesmo acontecimento, uma no
Talmude e a outra em Flávio Josefo.

36. T. B. Qiddushin 66 a
Foi ensinado: "A conteceu que o rei Yan-
nai foi a K ohalit, no deserto, e lá con-
quistou sessenta cidades. Quando voltou,
cheio de grande alegria, convocou todos
os Sábios d e Israel. D isse-lhes ele: 'Nossos
pais com eram folhas salgadas tod o o te m ­

11 A expressão "Torá perfeita", com o sentido indicado aqui, só aparece tardiamente.


É empregada por Nachmânides (1194-1270) em sua crítica de Maimônides (1135-
1204) sobre o Sefer Ha-Mitsvot, Princípios 11.
12 Dessa polêmica, no entanto, não se pode concluir que Jesus se opõe à Torá oral
dos fariseus, à sua condição e às suas prescrições. Ver o comentário do texto n. 12;
Cadernos bíblicos, n. 51; p. 12.

90
po em que estavam ocupados construin-
do o Tem plo. Nós tam bém , com am os fo-
lhas salgadas em m em ória d e nossos pais'.
Trouxeram, pois, folhas salgadas sobre
m esas de ouro e com eram -nas.
Ora, havia lá um h om em escarnecedor,
d e coração m au, um belial, que se cha-
m ava Eleazar ben Po'irah. D isse este ao
rei Yannai: 'Ó rei Yannai! O coração dos
fariseus está contra ti'. O rei lh e pergun-
tou: 'Que devo fazer?'. Ele respondeu:
* a coroa sacerdotal 'Põe-no à prova pela faixa que está entre
teu s olhos*'. Ele os pôs à prova pela faixa
que estava entre seus olhos. Ora, havia lá
um ancião que se cham ava Yehudah ben
Gedidiyah. D isse ele ao rei Yannai: 'Ó rei
Yannai: a coroa real te basta; deixa a co-
roa sacerdotal à descendência d e Aarão'.
D izia-se, na verdade, que sua m ãe tinha
sido cativa em M odi'im [...] Eleazar ben
Po'irah disse ao rei Yannai: 'Ó rei Yannai!
Um h om em com um d e Israel deve tole-
rar isso; m as tu, que és rei e sum o sacer-
d ote, deves tolerá-lo?‫׳‬. O rei perguntou:
'Que devo fazer?'. R espondeu-lhe ele: 'Se
queres escutar m eu conselho, esm aga-os‫׳‬.
O rei lh e perguntou: 'Mas o que será da
Torá?‫׳‬. R espondeu ele: 'Sabes perfeita-
m en te que ela está escrita e guardada à
* a palavra de Rav parte; qualquer um que queira estudá-la
Nahman é uma p od e ir lá e estudá-la'. *Rav N ahm an bar
glosa tardia
Isaac disse: 'No m esm o in stan te o epicu-
* a heresia
rismo* se derram ou nele. D e fato, ele de-
veria ter dito: Seja, quanto à Torá escrita!
m as o que será da Torá oral?'. A ssim sur-
giu o m al por in term édio d e Eleazar ben
Po'irah: tod os os Sábios de Israel foram
massacrados e o m u n d o tornou-se um de-
serto até vir Sim eon ben Shetah e restabe-
lecer a Torá em seu estado anterior".

37. Flávio Jo sef o, Antiguidades XIII, 10,5-6


Os sucessos de Hircano e seus filhos des-
pertaram inveja nos judeus; ele era m al­

91
visto, sobretudo p elos fariseus, um a das
seitas dos judeus, com o dissem os acima.
Esses h om en s têm tal influência sobre o
p ovo que, m esm o que falem contra o rei
ou o sum o sacerdote, im ed iatam ente lhes
dão crédito. Hircano, no entanto, havia
sido discípulo deles, que o am avam m uito.
Um dia, ele os convidou para um banque-
te e recebeu-os m agnificam ente; quando
os viu bem d ispostos, com eçou a falar com
eles, dizendo que conheciam sua von tad e
de ser justo, e seus esforços para ser agra-
dável a D eus e a eles próprios. Os fariseus,
na verdade, vangloriam -se de ser filóso-
fos. A ssim , ele lhes p ed iu que, se vissem
algum a coisa repreensível no seu compor-
tam en to e que estivesse fora do cam inho
certo, o reconduzissem e corrigissem.
A assem bléia proclam ou-o absolutam ente
virtuoso, e ele se alegrou por seus elogios;
m as um dos convidados, cham ado Ele-
azar, h om em de ín d ole m aldosa e revol-
tada, to m o u a palavra nestes termos: "Já
que desejas conhecer a verdade, renuncia,
se queres ser justo, ao sum o sacerdócio e
con ten ta-te d e governar o povo". Hirca-
no p erguntou-lhe por que devia deixar o
sum o sacerdócio. "Porque, disse o outro,
soubem os por nossos A ntepassados que
tua m ãe foi escrava sob o reinado d e A ntí-
oco Epífanes." Era m entira. Hircano ficou
p rofundam ente irritado contra ele, e to-
dos os fariseus ficaram m u ito indignados.
Porém , u m h om em da seita dos saduceus
- que têm idéias opostas às dos fariseus
-, certo Jônatas, que era um dos m elho-
res am igos d e Hircano, sustentava que
Eleazar só o havia insultado por causa da
aprovação dos fariseus; Hircano se con-
venceria facilm en te disso se lhes pergun-
tasse que castigo tinha m erecido Eleazar
por suas palavras. Hircano levou, pois, os
fariseus a lh e dizerem qual a punição m e-
recida por Eleazar; ele reconhecería que a

92
injúria não tivera o con sen tim en to deles,
se fixassem a pena na m edida da ofensa.
Responderam : "pancadas e correntes",
pois um in su lto não lhes parecia m erecer
a m orte. E, aliás, os fariseus são por natu-
reza in d u lgen tes na aplicação das penas.
Hircano ficou m u ito irritado com a sen-
tença e concluiu que o culpado o insultara
de acordo com eles. Jônatas, sobretudo,
estim u lou -o vivam en te e conseguiu fazer
com que passasse à seita dos saduceus,
abandonando a dos fariseus; ele revogou
as práticas im postas ao p ovo por estes e
puniu os que as observavam . Daí veio o
ódio do povo contra ele e seus filhos. Mas
voltarem os a esse assunto.
Agora quero sim p lesm en te expor que os
fariseus tin h am transm itido ao povo m ui-
* nomima tas norm as legais,* proven ientes da tra-
* ek pateron diadoches dição dos Pais*, m as que não estavam es-
* nomois critas nas leis* d e M oisés, e que, por essa
razão, o grupo dos saduceus rejeitava,
dizendo que só se devia considerar com o
norm as legais as que estavam escritas, e
que não se tin h a de observar as que provi-
* ek paradoseos ton nham da tradição dos Pais *.
pateron Surgiram sobre essa questão controvérsias
e grandes discursões, sendo que os sadu-
ceus só conseguiram convencer os ricos,
não sendo seguidos p elo povo; os fariseus,
ao contrário, tin h am a m u ltidão com eles.
Mas sobre essas duas seitas e a dos essê-
nios, falei lon gam en te no m eu segundo
livro da "Guerra judaica".

A narrativa do Talmude contém um erro que deve ser corrigido.


A comparação com a versão de Flávio Josefo permite fazê-lo sem
hesitar. Não se trata de Yannai, isto é, Alexandre Janeu (103-76
a.C.), mas de João Hircano (134-104 a.C.), seu pai. Se na verdade é
preciso esperar Simeon ben Shetah, cunhado de Alexandre Janeu,
para restabelecer a Torá, é porque a desordem é anterior a eles e
remonta a João Hircano.

93
Exceto esse pormenor, a versão talmúdica tem a vantagem de
ser simples, mais coerente que a de Flávio Josefo. Ambas parecem
derivar de antigas tradições farisaicas dos asmoneus. A versão do
Talmude, transmitida oralmente e não escrita, em suma, parece ser
mais fiel à sua origem do que a de Flávio Josefo. Dirigindo-se a
judeus influenciados por eles, os mestres fariseus dão sua interpre-
tação do fato. João Hircano, por natureza, está do lado dos fariseus.
Na verdade, ele se pergunta o que será da Torá sem os fariseus. A
resposta a essa dificuldade é tipicamente saduceia: apenas a Escri-
tura é Torá, e essa Escritura está "escrita e guardada à parte". João
Hircano parece aceitar a posição dos saduceus.
Notemos a glosa tardia do Talmude, que transmite essa Tradição
e nos dá o comentário de Rav Nahman ben Isaac (primeira metade
do século IV). Teria sido possível introduzir a terminologia dessa
glosa no próprio relato. De fato, é da Torá escrita e da Torá oral que
se trata! Mas respeita-se a Tradição antiga que fala, na verdade, da
Torá oral, vivida pelos fariseus, mesmo sem mencioná-la explicita-
mente.
Há, portanto, boas razões para levar a sério a exatidão des-
sa narrativa que nos apresenta claramente a teologia da Torá oral,
existindo muito tempo antes da destruição do Templo. Observemos
também a precisão dos termos "Sábios" e "fariseus".
Relativamente a essa versão das coisas, Flávio Josefo não trou-
xe nada que tivesse interesse teológico, o que não quer dizer que a
realidade anedótica não seja mais bem refletida pela Tradição citada
por ele. Queremos simplesmente dizer que a versão de Josefo não
tem interesse para nós, enquanto não parece mais digna de fé que
a versão talmúdica.
O que nos interessa aqui é o fim da passagem que citamos, na
qual Flávio Josefo apresenta claramente a divergência entre fari-
seus e saduceus em matéria de Escritura e de Tradição.
A Tradição (diadoché ou paradosis) dos Pais é exatamente desig-
nada como a que transmite ao povo normas legais (nomima), que
não estão escritas nas leis de Moisés. Trata-se das normas da Torá
oral, que não estão escritas na Torá escrita.
Não se pode deduzir de Flávio Josefo que a Torá oral não é es-
crita de modo algum. Ela só aparece como não escrita, como oral,
em relação à Escritura. Não se pode considerar resolvido o proble-

94
ma da proibição, ou não, segundo os fariseus, de escrever a Torá
oral. Trataremos dessa questão mais adiante.
Se, como se pensa, Flávio Josefo escreveu as Antiguidades por
volta dos anos 93-94, em um tempo em que já existem em Yavné
os termos "Torá escrita/Torá oral", convém considerar por que ele
não usa essa terminologia. Parece que duas razões podem ser apre-
sentadas. A primeira seria que a divergência entre judeus, ainda
que valha a pena ser mencionada diante de um público não judeu,
não tem de ser descrita em todos os seus pormenores. Flávio Josefo
acrescenta essa passagem como uma espécie de curto apêndice à
narrativa pormenorizada do conflito de que falou há pouco. Terá
ele desejado, nesse apêndice, retomar um elemento do conflito, o
problema da Escritura e da Tradição, que aparecia na sua origem,
como podería indicar a versão do Talmude? Tal probabilidade leva-
-nos mais a pensar que a versão do Talmude é mais fiel ao original.
A segunda razão de não empregar a terminologia "Torá oral/
Torá escrita" seria que o termo Torá oral (nomos agraphos) evoca,
em meio não judeu, a lei natural, e não precisamente a parte mais
especificamente judaica da Torá.
Seja como for, não se pode tirar argumento do silêncio e concluir,
de Flávio Josefo, que o termo "Torá oral" não existe nos anos 90.
Assim, pois, para os fariseus, a doutrina da Torá oral existe des-
de os tempos antigos, provavelmente, desde os asmoneus e com
certeza desde a época de Hillel, o "mestre" de Rabban Yohanan ben
Zakkai.
Quanto à terminologia "Torá oral/Torá escrita", sem dúvida,
ela existe em Yavné e, muito provavelmente, antes da destruição do
Templo, em meio fariseu, apesar dos silêncios do Novo Testamento
e de Flávio Josefo. Hesita-se em fazer remontar essa terminologia
até Hillel; no entanto, não há razão precisa para não unir, também
sobre esse ponto, Rabban Yohanan ben Zakkai e Hillel.

A PROIBIÇÃO DE ESCREVER A TORÁ ORAL É RELATIVA


Já sabemos que a Torá oral é oral no sentido de não escrita
na Escritura. Será que isso quer dizer que a oralidade da Torá oral
confunde-se com a "não-escrituralidade", se é possível empregar
esse termo? Demos uma resposta negativa imediata a essa ques­

95
tão e destaquemos desde já que é impossível reduzir a oralidade à
não-escrituralidade, se considerarmos - como é necessário a partir
do que mostramos na primeira parte - que a Torá oral é anterior e
preferível à Torá escrita.
A oralidade ultrapassa, pois, a não-escrituralidade.
Sem dúvida, ela também é não-escrituralidade a partir do tem-
po, já antigo no século I de nossa era, em que a Escritura existe
como Torá. A coexistência e a relação orgânica da Torá oral e da
Torá escrita dão, à oralidade da Tradição de Israel, traços especí-
ficos muito diferentes dos que se podem encontrar na oralidade
de culturas que não têm Escritura ou ligações com uma Escritura.
Porém, mesmo em sua relação com a Escritura, a Tradição de Israel
se afirma, como vimos, independente e abrangente no que diz res-
peito à Escritura. Coexistência e interdependência jamais reduzem
a oralidade à não-escrituralidade.
Deve-se dizer, então, que a oralidade rabínica é "verbafidade",
qualidade da palavra dita, diferente e independente da "escritu-
ralidade", qualidade da palavra escrita? Seria possível, mas inútil,
precisá-lo neste Documento cuja intenção não é aprofundar em
discussões por demais técnicas.
Aliás, de preferência devemos dizer, para melhor permanecer
em contato com a realidade da Tradição viva que descrevemos, que
a oralidade é, sim, o caráter vivido da Torá, antes, com, em torno
de, a partir de, depois da Escritura. Desse ponto de vista, será mais
fácil compreender que a Torá oral vai constituir-se e transmitir-se
oralmente, verbalmente, de memória, por repetição, utilizando to-
das as técnicas apropriadas. Porém, essa Torá oral também se serve,
com toda a naturalidade, do suporte escrito, toda vez que ele for
necessário ou mesmo simplesmente útil. Haveremos de ver que a
proibição de escrever, que existe, sustenta e justifica a prática oral.
Ela continua relativa, preocupada com que nunca se confundam
Escritura e Tradição e que não se transforme a Tradição em Escri-
tura; mas perfeitamente consciente de que é preciso sempre, se for
necessário, ajudar a memória com sumários escritos.
Vejamos estes dois pontos: a proibição de escrever e seu caráter
relativo. A proibição de escrever só aparece em fórmulas tardias.
A mais antiga dessas formulações é conhecida sob o nome de um
repetidor da Escola de Rabbi Ishmael, talvez não antes do início do
século III.

96
38. T. Β. Temurah 14 b
"Mas Rabbi Abba, filho de Rabbi Hiyya
bar Abba, disse em n om e de Rab Yoha-
* normas tradicionais nan: O s que escrevem as halakot* são
de conduta com o os que queim am a Torá, e aquele
que aprende delas não recebe recom pen-
* meturgeman sa‫׳‬. Rabbi Yehudah bar N ahm ani, intér-
prete* de Resh Laqish expôs: ,‫׳‬Uma passa-
gem escriturística diz (Ex 34,27): E screve
para ti estas p alavras; e um a passagem diz
* lit.: pela boca (Ex 34,27): P orqu e seg u n d o o teor* d esta s
p a lavras [Fiz aliança con tigo]. Isto é para
dizer-te que não ten s o direito de dizer
por escrito as palavras que são orais; e não
ten s o direito de dizer oralm ente as que
* designa um mestre são escritas'. E um Tanna* da Escola de
dos séculos I e II até a Rabbi Ishm ael ensinou: 'Escreve para ti
publicação da Mishná
estas palavras: estas, p odes escrever, mas
não ten s o direito de escrever os halakotV .
Disseram [em resposta]: 'Será talvez dife-
rente quanto a um a novidade? [Ou seja, é
p erm itido escrever um en sin am en to novo
da Torá oral]‫׳‬. E, efetivam en te, Rabbi Yo-
hanan e Resh Laqish observavam o Sabá
em um livro d e Hagadá e interpretavam
assim [o versículo] (Sl 119,126): É te m p o
d e agir para o Senhor; eles violaram a tua
Torál Disseram eles: Έ m elhor a Torá ser
desenraizada do que a Torá ser esquecida
em Israel‫׳‬."

A questão inicial de nosso texto é saber se era permitido trans-


mitir por carta - logo, por escrito - um ensinamento novo em ma-
téria de Halaca.
O Talmude começa a responder que é proibido e cita autori-
dades; porém, relativiza imediatamente essas mesmas autoridades,
uma vez que vemos o próprio Rabbi Yohanan se servir de um livro
de Hagadá.
É verdade que se deve fazer uma distinção entre Halaca e Ha-
gadá; mas acontece que o Talmude, citando a interpretação dada por
Rabbi Yohanan e Resh Laqish do Sl 119,126, indica claramente que
a proibição de escrever não podería ser absoluta.

97
Observemos que tal interpretação do SI 119,126 não é novida-
de em Israel. Ela já aparece na Mishná, no fim do tratado Berakot
(IX, 5) sob o nome de Rabbi Nathan (fim do século II), para justi-
ficar a modificação do texto de certas bênçãos. A novidade está em
aplicar o princípio à proibição de escrever.
O caráter tardio e relativo dessas tradições sobre a proibição
de escrever a Torá oral por muito tempo fez os mestres e eruditos
judeus pensarem que a própria Mishná, a coletânea mais essencial
e mais autorizada da Torá oral, havia sido escrita por seu redator,
Rabbi Yehudah, o Príncipe, no momento de sua promulgação.13 No
entanto, havia a proibição de escrever, e a questão de saber se a
Mishná foi realmente escrita, como e a partir de quando, não podia
deixar de existir.
Uma resposta clara e simples foi dada em 1950 por S. Lieber-
man, o maior mestre judeu de seu tempo. A Mishná foi redigida
oralmente e publicada oralmente. Enquanto a Escritura estava "es-
crita e guardada à parte", o texto oficial da Mishná foi confiado
oralmente a um corpo de repetidores que a transmitiam a outros
repetidores.
Esse procedimento de repetição e promulgação oral é, de fato,
descrito pela Tradição seguinte, que data de Yavné.

39. T. B. Erubin 54 b
N ossos Mestres ensinaram: "Como foi a
ordem [do ensino] da Mishná?
M oisés aprendeu [a Mishná] da boca do
Todo-Poderoso. Aarão entrou e Moisés
en sin ou a ele a sua lição. Aarão afastou-se
e se sen tou à esquerda de Moisés. Os fi-
lhos de Aarão entraram e M oisés lhes en-
sinou sua lição. Seus filhos se afastaram.
Eleazar sen tou-se à direita de M oisés e
ltam ar à esquerda d e Aarão. Rabbi Yehu-
dah disse: 'Seguram ente Aarão vinha à
direita de M oisés'. Os A nciãos entraram
e M oisés en sinou-lhes sua lição. Os An-
ciãos se afastaram, tod o o povo entrou e

15 A data-limite da publicação é, no máximo, 219 d.C., data da fundação, por Rab,


da academia de Sura, na Babilônia. Rab não se teria separado de seu mestre, Rabbi
Yehudah, o Príncipe, antes da publicação da Mishná.

98
M oisés en sin ou -lh e sua lição. Daí resultou
que Aarão tev e quatro [lições]; seus filhos,
três; os Anciãos, duas; e o povo, uma.
M oisés se afastou e Aarão lhes ensinou
sua lição. Aarão se afastou e seus filhos
lhes ensinaram sua lição. Seus filhos se
afastaram e os Anciãos lhes ensinaram
sua lição. Daí resultou que tod os tiveram
em m ãos quatro [lições]". A partir disso,
Rabbi Eliezer disse: "Um h om em é obri-
gado a ensinar a seu discípulo quatro ve-
zes [a lição]. E com m aior razão se pod e
dizer: Se é assim com Aarão, que apren-
deu da boca de M oisés, que aprendeu da
boca do Todo-Poderoso, quanto m ais um
h om em com um que aprende da boca de
um h o m em com um [deve repetir![". Rab-
bi Aqiba disse: "De on d e sabem os que um
h om em deve repetir a lição a seu discípu-
lo até que ele a ten h a aprendido? Porque
está dito (Dt 31,19): E ensina-o [o C ântico]
aos filhos d e I sra e l[c o lo c a -o em sua boca

E de on d e sabem os [que o m estre deve


repetir] até que a lição esteja ordenada
na sua boca? Porque está d ito (Dt 31,19):
Coloca-a em sua boca. E de on d e sabe-
m os que [o m estre] deve m ostrar-lhes as
* razões, justificativas, faces*? Porque está dito: (Ex 21,1): Eis os
exemplos concretos ju íz o s q u e lh es proporás".

Observemos a bela expressão: "Moisés aprendeu da boca do


Todo-poderoso". Não seria possível dizer, de melhor modo, que a
Torá, na origem, é oral. Essa origem é o contato direto com o Todo-
-Poderoso, que é capaz de se diminuir para fazer viver os que 0
escutam quando ele fala em linguagem humana.
Segundo Lieberman, o que está dito de Moisés e de seus pri-
meiros discípulos corresponde à vivência dos mestres e discípulos
que transmitem a Torá oral uns aos outros. A Mishná, de maneira
privilegiada, será assim transmitida e promulgada por aquilo que é
recebido na memória das pessoas vivas.
No que diz respeito a essa realidade, a questão de saber se e
quando a Mishná foi escrita é secundária quanto à importância e

99
ao interesse. A escrita da Mishná, total ou parcial, antiga ou tardia,
nunca deu caráter oficial ao texto escrito da Mishná.
O que vale para a Mishná serve, com maior razão, para as ou-
tras coletâneas ou elementos da Torá oral: a proibição de escrever
é relativa. Sempre se pode escrever se é para evitar que a Torá seja
esquecida, segundo a interpretação genial do SI 119,126, que en-
contramos na Mishná Berakot IX, 5 e no Talmude de Babilônia Temu-
rah 14 b.
Isso permite compreender e justificar o que se passou com a
Megillat Taanit (= o Rolo do Jejum). É o único documento escrito
que a Torá oral sabe ser escrito e usa como se fosse uma coletânea
de Torá oral.
A parte antiga desse documento é a lista, em aramaico, dos
dias durante os quais é proibido jejuar, porque esses dias são ani-
versários de acontecimentos felizes. Alguns desses acontecimen-
tos são as vitórias dos judeus revoltados contra Antíoco Epífanes,
os helenizantes e suas instituições, a partir dos macabeus. Outros
acontecimentos, mais tardios, podem descer no tempo até a época
de Adriano.
A parte mais recente é uma espécie de comentário ou de ilus-
tração dos acontecimentos da lista. Esse comentário se encontra,
em grande parte, no Talmude de Babilônia e em outras coletâne-
as rabínicas que o citam como se se tratasse da Tradição farisaica,
sabendo que é um documento escrito, pelo menos em sua parte
aramaica.
Vejamos um texto dessa Megillat Taanit, que nos interessa pelo
que nos diz da proibição de escrever a Torá oral.

40. Megillat Taanit 12 Ed. H. Lichtenstein p. [75], 319


* designações de um mês Nos 4 tam m uz*, o Livro dos decretos dei-
do calendário babilônico XOU d e existir*.
(junho-julho) A. E fetivam ente havia sido escrito e depo-
* foi abolido sitado entre os saduceus um Livro dos de-
eretos [no qual se dizia]: "Eis os que serão
lapidados, e eis os que serão queim ados, e
eis os que serão executados [decapitados
a espada], e eis os que serão estrangulados
[são os quatro tip os de execução que os
fariseus tam bém conheciam ]".

100
E quando estavam sentados [para julgar],
se alguém perguntasse, eles olhavam no
livro com esse fim. Se lhes dizia: "De onde
[sabeis] que um m erece a lapidação e ou-
tro a com bustão, outro a execução [por
decapitação] e outro o estrangulam en-
to?", não sabiam dar prova da Torá. Os
doutores [fariseus] lhes disseram: "Não
está escrito: S egu n do a Torá q u e eles te
terão en sin ado etc. (Dt 17,11)? Isso ensina
que não se deve pôr por escrito n u m livro
os halakôt".
B. Uma outra história. O Livro dos decre-
tos [é cham ado assim ], pois os betuseus
diziam: "O lho p o r olho, d e n te p o r d e n te
(Ex 21,24). Se alguém quebra um d en te de
outro, um d en te lh e é quebrado; se vaza
um olho de outro, um olho lh e é vazado,
pois eles d evem ser m u tu a m en te iguais. E
esten d erã o o len ço l d ia n te dos anciãos da
cid a d e (Dt 22,17). As palavras [devem ser
* no sentido literal tom adas] segundo a letra*. E ela cuspirá
em seu ro sto (Dt 25,9). Isso quer dizer que
ela d eve cuspir [realm ente] em seu rosto".
"Não está escrito: A L ei e o m a n d a m en -
to q u e escrevi para ensinares a eles (Ex
24,12)? [Isso quer dizer que há d e um
lado] a Torá que escrevi, e [de outro lado]
o m an d am ento d e instruí-los. Está escri-
to tam bém : E agora, escrevei e s te cântico
para vós, e ensina-o aos filhos d e Israel,
coloca-o em sua boca (Dt 39,19). E ensina-
-o aos filhos d e Israel, é a Escritura; colo-
* o Livro dos decretos
ca-o em sua boca, são os halakôt".
* tradução tirada de J. Le No dia em que o* suprim iram , fizeram por
Moyne, Les Sadducéens, isso um dia de festa*.
Paris, 1972.

Depois da menção lacônica, em aramaico, do dia e do fato ce-


lebrado vem o comentário tardio, em hebraico, desenvolvido em
duas partes.
A segunda parte do comentário, na qual é aproximada dos be-
tuseus - uma classe de saduceus -, a sua exegese literal e funda-
mentalista não deixa de ter interesse. Ela mostra, uma vez mais,
como os mestres fariseus podiam, a partir da Escritura, justificar

101
uma Torá oral capaz de instruir o povo de forma apropriada às suas
carências e às necessidades de cada época.
A primeira parte exprime a oposição ao uso oficial de um livro,
escrito, de decretos que não são decretos da Escritura. Na verdade,
é claro que a objeção dos fariseus não incide sobre o conteúdo dos
decretos, mas sobre o fato de serem escritos num livro.
Não se pode afirmar que essa parte do comentário seja ante-
rior a Yavné. Como dissemos, quando esse comentário tem outros
paralelos, o mais antigo se encontra no Talmude de Babilônia. Va-
lorizemos, no entanto, o fato de que, 110 Talmude de Babilônia, es-
sas tradições sejam apresentadas como provenientes dos Tannaim,
mestres contemporâneos à redação da Mishná (cf. T. B. Sanhedrin
91b = texto n. 20; T. B. Menahot 65 ab = texto n. 35). Portanto, não é
possível deixar de considerar que elas remontam a Yavné, a mestres
que conheceram pessoalmente as dificuldades do passado com os
saduceus e que puderam transmitir, a respeito dessas dificuldades,
tradições anteriores à destruição do Templo.
Vejamos, por outro lado, dois textos do Talmude em que a Me-
gillat Taanit é mencionada como documento escrito.

41. T. B. Sabá 13 b
N ossos M estres ensinaram: "Quem escre-
* Rolo do jejum veu a M egillat Taanit*?". Eles disseram:
"Hananiah ben Ezekias e seus com pa-
nheiros que am avam as misérias". Rab-
ban Shim eon ben Gamaliel disse: "Tam-
bém nós am am os as misérias; m as que
farem os? Se com eçarm os a escrever, não
acabarem os mais".

Hananiah ben Ezechias ben Garon foi chefe dos discípulos de


Shannnai nos anos que precederam a destruição do Templo (Mish-
ná Sabá 1.4). Portanto, teria sido ele quem deu a última palavra
quanto à lista dos dias em que é proibido jejuar.
É claro que Rabban Shimeon ben Gamaliel, provavelmente fi-
lho de Rabban Gamaliel 11, sabe o que foram as misérias da revolta
de Bar Kokba. O comentário de Rashi sobre essa passagem ajuda a
compreender a exceção feita para a Megillat Taanit.

102
42. Rashi s/ Megillat Taanit
* Tradição antiga não Enquanto o resto, toda M ishná e baraita*,
conservada na Mishna n ão era escrito, porque era proibido, esse
rolo foi escrito para que nos lem brásse-
m os, para que soubéssem os quais os dias
em que é proibido jejuar. Por isso é cha-
m ado "rolo", porque está escrito em um
rolo que con stitu iu um livro.

Portanto, escreveu-se a Megillat, para lembrar, para servir de


lembrete à Tradição oral, que normalmente se proíbe escrever.
‫«■ן־‬-'-'■.■-■■■--.■■‫«׳‬

43. T. B. Erubin 62 b
Rab Ya'aqob bar Abba disse a Abbayé:
"Como é isso? É perm itido [a um discípu-
lo] ensinar em lugar d e seu m estre [uma
coisa] com o [o que é ensinado na] M egillat
* Rolo do jejum Taanit* que está escrita e guardada?". Ele
lh e diz: "Mesmo [a questão d e saber co-
mer] u m ovo com pão m olhado [no leite]
foi perguntada a Rab Hisda durante todos
os anos de Rab Huna e ele não ensinou
[sobre isso]".

Assim, a Megillat Taanit é considerada "escrita e guardada". No


entanto, nem por isso tem condição de Escritura. Rashi ajuda-nos
outra vez a compreender do que se trata:

44. Rashi s/ Ke-gon Megillat Taanit


Trata-se dos dias em que é proibido jejuar.
Ele usou [o exem plo] do Rolo do jejum ,
porque nen h um a palavra da Halaca esta-
va escrita nos dias deles, n em m esm o um a
letra, exceto o Rolo do jejum ; por isso é
cham ado "rolo".

O Talmude quis dar o exemplo da Megillat Taanit para ensinar


que, embora escrita, não se pode citá-la para ensinar no lugar do
seu mestre. O fato de ser escrita não lhe dá nenhum a condição par-
ticular na Torá. Ela só tem valor como lembrete oficioso .

103
A Megillat Taanit, apesar de tudo, continua a ser uma exceção
que confirma a regra. Um texto do Talmude e Rashi ajudam a com-
preender a condição dos lembretes, que sempre existiram e que
têm um nome, Megillat Setarim: rolos de segredos.

45. T. B. Sabá 6 b
Pois Rav disse: "Encontrei um ,‫׳‬rolo de se-
* megillat setarim gredos'* da escola d e Rabbi H iyyah e ele é
escrito". Issi ben Yehudah disse: "Há qua-
renta m en os um trabalhos principais, mas
som os passíveis apenas [em caso de falta]
d e um só [deles]".

Rav não se indignou por ter encontrado um "rolo de segredos".


Serve-se dele sem problemas.

46. Rashi s/ Megillat Setarim


Porque eles os tinham escondido [os se-
gredos] p elo fato de não ser perm itido
escrevê-los. Quando se ou vem de um in-
divíduo [e não da maioria] palavras novas
* ensinadas que não são repetidas* na casa de estudo,
escrevem o-las para que não sejam esque-
cidas e escon d e-se o rolo.

Esconde-se o rolo para significar que ele só tem condição de


lembrete. Ran não ocultou o fato de ter encontrado o rolo escondi-
do, isto é, oficioso. Não hesita em mencionar seu conteúdo. O que
não fez foi ler o documento em público. Não se traziam os lembre-
tes para a discussão e o ensino talmúdico.
Assim, a Tradição sempre foi parcialmente escrita. É preciso di-
zer que ela nunca foi inteiramente escrita. Afirmar que ela foi escri-
ta em sua totalidade seria deformar muito a realidade que permite
que se reconheça, com evidência, que a literatura rabínica não é
senão uma pequena parte da imensidão oral e vivida da Tradição de
Israel, de Moisés até nossos dias. Dizer que a Torá oral jamais tenha
podido ser escrita em seu todo, seria desconhecer-lhe gravemente
a natureza e condição teológica. A Torá oral não se resume em suas
formulações; ela vai até a ação e ao silêncio da morte no martírio.
Na terceira parte, veremos que a Torá oral manifesta, mesmo
em seus traços hoje escritos, sua oralidade viva. Falta precisar, nes­

104
ta segunda parte, como Israel tem consciência de que, apesar da
quantidade escrita, cada vez maior, a Torá oral, embora escrita, per-
manece oral, de direito e de fato.

A TORÁ ORAL, MESMO ESCRITA, PERMANECE ORAL


Uma coletânea homilética organizada e, provavelmente, já es-
crita no século VI ou VII de nossa era, na Terra de Israel, dá um pri-
meiro exemplo dessa Torá oral que permanece oral, mesmo quan-
do é escrita.

47. Pesiqta Rabbati Pisq. 5 ,1 4 a-b


"Que nosso m estre nos ensine: o que se
passa com quem traduz para o leitor da
Torá? Poderá ele traduzir olhando o que
está escrito?"
N ossos m estres ensinaram assim: "É proi-
bido ao tradutor olhar o que está escrito
e é proibido ao leitor dirigir o olhar para
outra coisa além da Torá, pois a Torá só foi
dada por escrito com o está d ito (Ex 34,1):
E eu escreverei so b re tábuas [...] E o tra-
dutor está proibido d e dirigir o olhar para
a Torá". Rabbi Yehuda ben Pazzi disse: "É
um versículo inteiro [que nos ensina isso,
Ex 34,27]: E screve para ti estas palavras, é
a Escritura* que foi dada por escrito, pois
* miqra
é segundo o teor destas palavras, é a Tra-
dução* que foi dada oralm ente".
* targum
Estamos diante de um início de "abertura" através de uma
questão que versa sobre a prática. Esse tipo de abertura, cujas pri-
meiras palavras são "que nosso mestre nos ensine" (yelammedenu
Rabbenu), caracteriza as coletâneas do gênero Tanhuma-Yelammede-
nu, da qual citamos algumas passagens.14
Aqui, esse texto nos interessa para esclarecer que a tradução
aramaica (o Targum) da Escritura é oral, mesmo na época de nosso
texto, em que a Torá oral, e o Targum, que faz parte dela, já são

14 Cf. textos n. 2 e 4. Essas coletâneas tomam o nome de Tanhuma-Yelammedenu,


porque frequentemente mencionam Rabbi Tanhuma, por processo literário e, muitas
vezes, começam uma unidade homilética pela fórmula Yelammedenu Rabbenu = que
nosso mestre nos ensine.

105
amplamente escritos. Não nos dizem que é proibido escrever o Tar-
gum. Dizem que é proibido lê-lo a partir do texto escrito da Torá. A
tradução é, pois, plenamente oral, uma vez que é feita a partir do
texto hebraico ouvido.
Daí resulta, com clareza, que o fato de que o Targum existe na
forma escrita não lhe confere nenhum a autoridade. O que se impõe
é o Targum oral, proposto à comunidade e controlado por ela. Isso
não deveria ser esquecido no estabelecimento dos critérios de utili-
zação das fontes escritas, para o estudo das doutrinas que circulam
entre os judeus, antes e depois do Novo Testamento e em relação
com ele. Um Targum escrito dá testemunho apenas de sua exis-
tência e do que diz. O fato de ser escrito não lhe atribui nenhum a
credibilidade ou autoridade particular. Se é de um Targum antigo
que se trata, segundo os métodos que permitem tal conclusão, o
fato de ser escrito faria, antes, suspeitar de sua ortodoxia do ponto
de vista do judaísmo rabínico. Na época antiga, de fato, a tolerância
concernente ao "pôr por escrito" tem toda a probabilidade de ter
sido mais estrita em meio farisaico-rabínico.
Deixemos o Targum, para voltar à Mishná cuja importância, no
centro da literatura e da vida judaica, não tem termo de compara-
ção com a do Targum.
Vimos que a Mishná foi redigida e divulgada oralmente por
Rabbi Yehudah, o Príncipe, no início de século III.
Essa qualidade da redação e da divulgação foi desconhecida por
muito tempo, como vimos também acima. Era tal a falta de conhe-
cimento, nas comunidades judaicas influenciadas pela cultura ára-
be, e sua valorização do Corão como Escritura, que se considerava
evidente que Rabbi Yehudah, o Príncipe, tivesse escrito a Mishná.
É assim que os judeus de Kairuan fazem a Sherira Gaon, chefe da
academia de Pumbedita (Bagdad), esta pergunta: "Como foi escrita
a Mishná?". Em sua resposta magistral, escrita em 987, verdadeiro
tratado de história e metodologia talmúdica, Rabbi Sherira Gaon
nunca disse que Rabbi Yehudah, o Príncipe, escrevera a Mishná;
porém, as versões de sua carta, que circularam na África do Norte e
na Espanha, foram "completadas", de modo que nelas se lê que Ra-
bbi Yehudah, o Príncipe, escreveu a Mishná. As versões "francesas"
da carta, que não contêm esses acréscimos, não são versões trun-
cadas, como por muito tempo se pensou, mas versões autênticas.

106
Maimônides (1135-1204), o maior mestre judeu de origem es-
panhola e de língua árabe, sofreu a influência dessas tradições espa-
nholas e contribuiu para lhes dar mais crédito. Para ele, como para
seus discípulos, a Mishná foi escrita por Rabbi Yehudah, o Príncipe.
Mas - e é esse ponto que merece ser aqui destacado - a Mishná,
para Maimônides, continua a ser um texto da Torá oral.

48.M aim ônides Responso n. 442 Ed. Blau, Vol. II, p. 721
Resposta à questão sobre "a viúva, que
é alim entada", assim é ensinado? ou "[a
viúva] alim entada", assim é ensinado? E
dissestes: Mas a M ishná não está d iante de
* ver Mishná Ketubot nós*?
XI, 1 Sabei que não se tem d e perguntar a res-
p eito do tex to da M ishná com o ele é. Será
a Mishná o livro [guardado] do pátio [do
* ver Mishná Mo'ed Qatan Templo]*? E de on d e sabem os com o nosso
III, 4 e T. B. Mo 'ed Qatan M estre, o Santo, b en d ito seja, escreveu na
18b Mishná: "alim entada" ou "que é alim enta-
da"? S om en te pelos Anciãos. E em várias
passagens d eve-se dizer a m esm a coisa,
quando se diz "q eb u ta r"*, "me'abberin"**
* ver Mishná Yoma I, 6 ou "q ep u ta r", "m e'abberin"*r e assim em
** com aleph, ver m u itos trechos. M oisés, filho d e Rabbi
Mishná Erubin V, 1 M aim on, que a m em ória do Justo seja
* com ayin bendita!

Assim, a Mishná, embora escrita, não é "guardada" como a


Escritura. Torna-se preciso o seu texto interrogando-se os Anciãos,
isto é, a Tradição oral transmitida pelos mestres vivos que temos.
As testemunhas escritas do texto, os manuscritos, não servem de
norma.
A oralidade se mantém, pois, acima da forma escrita. Por que
essa preeminência, mantida a despeito de todos os obstáculos, até
contra a predominância de fato da cultura escrita? Sem dúvida,
para que a Torá permaneça viva em Israel. Ela não poderá continu-
ar viva se cada judeu não se sentir responsável pela Torá oral, por
seu conteúdo e sua formulação.
Vejamos como Hananel ben Hushiel, mestre em Kairuan (990-
1050) reage contra uma interpretação de Rabbi Yehudah, discípulo
de Rabbi Aqiba, enunciada em meados do século II.

107
49. T. Β. Erubin 41 a
Gemara. Foi ensinado: Rabbi Yehudah
disse: "Uma vez estávam os sentados dian-
* mês situado em julho te de Rabbi Aqiba e era 9 Ab*, que caíra na
agosto. Dia 9 é o véspera do Sabá. Trouxeram -lhe um ovo
aniversário da destruição e e j e 0 engoliu sem sal. ISSO [ele O
do Templo e dia de íeium r ‫־‬. ,
fez] nao porque tivesse a p etite p elo ovo,
m as para m ostrar aos discípulos o que era
a Halaca". Mas Rabbi Yosé lhes disse [aos
Sábios]: "Não reconheceis, apoiando m i-
nha opinião, que, se 9 de Ab cai no pri-
m eiro dia da sem ana, interrom pe-se [o
jejum ] quando ainda é dia?". Disseram -
-lhe: "Seguram ente!". D isse ele: "Que di-
ferença há para m im entre aquele que en-
tra no Sabá em estado de aflição e aquele
que sai d ele em estado de aflição?". Eles
lh e disseram: "Se dizes que se p od e sair
do Sabá em [estado de aflição] depois de
ter com ido e bebido por tod o o dia, dirás
que se d eve entrar em estado de aflição,
pois não se terá bebido n em com ido por
to d o o dia?".

Rabbenu Hananel
E quanto a isto: "Foi ensinado [...] 9 de
Ab caíra na véspera do Sabá e trouxeram
d iante d e R. Aqiba um ovo cozido e ele o
engoliu etc. [...]". Há em nossas m ãos um a
* qabbalah
Tradição* segundo a qual, nessa hora, Ra-
bbi Aqiba estava em perigo [por doença]
e os m éd icos trouxeram diante de Rabbi
Aqiba u m ovo cozido sem sal, para que ele
o engolisse no fim do dia. E Rabbi Yehu-
dab não foi exato. Por isso, baseou-se no
que viu e não soube qual era a razão prin-
* Rabbi Aqiba
cipal pela qual ele* agiu dessa m aneira.

Assim, Rabbi Hananel, a partir de sua própria Tradição oral,


"corrige" a Tradição apresentada pelo Talmude. A Torá, para conti-
nuar convincente, deve poder ser criticada pelos que a transmitem.

108
Essa possibilidade de criticar faz parte integrante da oralidade vi-
vida. Ao invés de aceitar diretamente uma Tradição antiga, trans-
mitida oralmente ou por escrito, é preciso escutar o que diz a seu
respeito o mestre vivo que pode ser consultado.
Vamos concluir com algumas linhas de S. Abramson, um dos
grandes mestres contemporâneos do Talmude em Jerusalém, do
qual receberam ensinamentos os autores do presente Documento.

50. S. Abramson, Sippur ha-Sepharim


Prólogo do livro de S. Y. Agnon, "Sepher, Sopher we-
Sippur", Tel-Aviv, 1978, p. 5-7

Página 5 (linha 14) Uma coisa escrita é lim i-


tada [...]
P. 5 (22-25): Por isso, os Sábios d e outro-
ra ordenaram que se aprendesse "da boca
dos escribas e não da boca dos livros". É
um ditado antigo, citado pela prim eira
vez [na m edida que sabem os hoje] por
M oise ben Ezra em seu livro sobre a po-
esia (Trad. Halper, p. 117; Trad. Halquin,
p. 147).
P. 6 (14-16): D o que se trata? D e um dis-
cípulo que está sentado d iante de seu
m estre. Mas com o p od e qualquer outro
h om em que estu d e a Torá continuar a es-
cutar da boca d e um escriba? Encontrará
ele, em qualquer tem p o, um Sábio para
ensiná-lo? Portanto, será obrigado a estu-
dar som en te da boca de um livro. E livros
foram feitos, sem fim [...]
P. 6 (34-32): Foram com postos livros e ei-
-los disponíveis, abertos a tod os aque-
les que os procuram. Mas o livro só está
p resen te para quem estuda [o que está
escrito] n ele, e para quem p od e adquiri-
-lo, seja copiando-o [nos tem p os antigos],
seja com prando-o, a partir da invenção da
im prensa. Isso não vale para a narrativa
a respeito dos livros. O h om em de Israel
sem pre tev e esta experiência: se não esti-
ver na Torá e se ele não puder estudar em
livros, n em por isso ficará dim inuída a sua

109
parte na Torá. Se não houver um estudo
da Torá, há a palavra sobre o estudo. Gra-
ças ao conto, o livro cabe a todos com o he-
rança, m esm o àquele que não é discípulo
de Sábio. A cada um é dada um a parte,
seja no interior, seja no exterior do livro.
E não é só isso, m as, por m eio do conto,
o livro goza de um a longa vida e, m esm o
quanto aos livros que quase não serviram
nas casas de estudos, con tin u am en te se
contam fatos a respeito de seus autores. É
esse o cam inho do espírito [...]
P. 7 (1-3): E na verdade, quando lês n o li-
vro que está d iante de ti, vês com o o con-
to acom panhou o livro e o escriba. Ali
encontras contos sobre livros de todas as
gerações [...]
P. 7 (8-11 ): E se quiseres, p odes dizer que a
Torá oral, em bora ten h a sido posta por es-
crito, ainda é oral e que só é Torá porque
se am plia, quer em si m esm a, quer no que
dela decorre. Agora que esse livro está em
tuas m ãos, grande parte da Torá oral está
em tuas m ãos. Poderás agora aproveitar
com prazer, com o fizeram nossos prede-
cessores no m o m en to em que escreveram
suas palavras.

Não se podería dizer melhor o que a Torá oral deve aos livros
de S. Y. Agnon e a outros livros que ainda hoje se escrevem em
Israel.

110
3a PARTE
A TORÁ ORAL É MANIFESTA
A doutrina farisaica da Torá oral é coerente: supõe a prática da
oralidade. Essa prática, imemorial, é confirmada em Yavné, depois
da destruição do Templo (70 d.C.); seu ponto culminante é a reda-
ção da Mishná e sua publicação no início do século III. Com e de-
pois da Mishná, todas as coletâneas da literatura rabínica antiga são:
Tosephta, Midrashim halákicos, Talmudes de Jerusalém e de Babilônia,
Midrashim Haggádicos do período talmúdico, que foram guardadas
de memória antes de serem postas por escrito. É bom lembrar que
a prática da oralidade se mantém para além do momento em que
se começa a escrever livros da Torá oral, a partir, talvez, do século
VI. Mostremos, enfim, que a oralidade continua a ser praticada até
nossos dias, para além das formulações orais ou escritas recebidas
do passado e aquém das que serão feitas oralmente ou por escrito.
Descrever essa prática e sua evolução é uma tarefa imensa, ape-
nas começada, apesar da importância dos trabalhos de B. Gerhar-
dsson, J. Heinemann e A. Goldberg. Não poderiamos resumir aqui
essas pesquisas e, muito menos, prolongá-las.
Diante dos textos que vamos estudar nesta terceira parte, não
indagaremos, pois, como eles foram redigidos segundo as técnicas
da oralidade. É sobre esta pergunta que refletiremos: Como se ma-
nifesta neles a oralidade que os concebeu, formulou e transmitiu?
Do contato que já tivemos com os textos estudados nas duas
primeiras partes deste Documento, cremos que a conclusão é de
que essa oralidade é, de modo geral, manifesta. Efetivamente, para
tornar compreensíveis esses textos, tivemos de situá-los em um
contexto que era reconhecido como o da oralidade.
Portanto, tentemos agora localizar algumas consequências visí-
veis dessa oralidade que é não só teológica e histórica, mas também
literária. Para isso, devemos partir de textos que hoje são escritos.
Vimos que, do lado judaico, existe a consciência dessa partícula-
ridade da Torá oral de hoje, isto é, que ela está, em grande parte,
escrita, e se escreve.
Conheçamos o que escrevia Z. Frankel, o pioneiro da pesquisa
talmúdica moderna, no início de seu longo empreendimento.

113
51. Z. Frankel, Beitrage zu einer
Einleitung in den Talmude, MGWJ. 10 (1861), p. 186
O estu do do Talm ude deve ser feito do in-
terior: dicionários e introduções não po-
dem trazer a com preensão, pois o univer-
* Gedankenwelt so m ental* do Talm ude exige que ele seja
captado e interpretado por ele m esm o.
De fato, encontram -se ali, de m odo geral,
m ais p en sam entos que seu desenvolví-
m ento; m ais indicações que frases com -
pletas; não é raro que um a palavra, um a
breve locução, sirvam d e marca para um a
longa série de pensam entos. O Talmude,
em bora esteja hoje escrito, continua a ser,
sob m u itos aspectos, en sin am en to oral,
com o era originalm ente. O que é anotado
é um lem brete; e o que, através dele, deve
ser guardado na m em ória, só pode vir da
boca do m estre.

Essas palavras convidam a entrar no Talmude, se quisermos


compreendê-lo. É impossível fazê-lo se não se estiver no Talmude,
como judeu e desde a idade de cinco anos. No entanto, Z. Frankel
escreve sobre o Talmude um estudo não reservado apenas a esse pú-
blico; na realidade, ele quer lembrar, sobretudo, que nada substitui
o contato com um mestre judeu vivo. De fato, trata-se de oralidade,
e uma anotação escrita da Torá oral só tem sentido se permitir que
se encontre a oralidade, concreta ou mentalmente. Ora, como re-
fazer a oralidade que desapareceu na anotação escrita, se não pode
recebê-la de uma oralidade que permaneceu viva no mestre, no
seio do povo judeu de hoje? Para sair do círculo, é preciso respeitar
a Tradição de Israel tal qual ela é, ou seja, viva hoje. Essa condição
moral tem a vantagem de dar uma segurança que não se podería
desprezar: a verificação do sentido junto dos que compreendem as
coisas, porque eles as vivem do interior.
No entanto, não se pode ignorar uma dificuldade que o recurso
ao mestre corre o risco de não suprimir totalmente, em cada caso.
O problema é saber se o texto escrito que se lê é uma anotação fiel
ao original oral, ou se houve modificação ao longo da anotação ou

114
depois dela. A questão apresentada é mais fundamental do que a
composição de um texto ;ntico redigido a partir de um bom conhe-
cimento da oralidade. Trata-se da confiabilidade de uma anotação
escrita para representar uma formulação oral. Propomos esse pro-
blema porque deve ser proposto, mas não gostaríamos que bloque-
asse indevidamente nosso objetivo. Ele o fará tanto menos quanto
mais pudermos dizer que certamente, salvo prova contrária, deve-
-se confiar nas anotações escritas da literatura rabínica antiga. Essas
anotações refletem a oralidade, permitem refazê-la e compreende-
-la com a ajuda dos mestres judeus.
Vejamos um exemplo dessa fidelidade da anotação escrita, no
caso de uma Tradição do fim do século III.

AS ANOTAÇÕES ESCRITAS REFLETEM


DIRETAMENTE O TEXTO ORAL E SUA ENTONAÇÃO
O texto fala da ordem pedagógica, não arbitrária, das bênçãos
mediadoras, dos pedidos, da grande oração comunitária conhecida
pelo nome antigo de "Dezoito Bênçãos".

52. T. J. Berakot II, 4 4d


Rabbi Aha em n om e de Rabbi Yehoshua
* a Am ida ou ben Levi: "Quem organizou esta oração*,
Dezoito Bênçãos organizou-a na ordem: Três primeiras
bênçãos e três últim as bênçãos [para o]
* Deus louvor do "Lugar"*, e as bênçãos inter-
m ediárias [pelas] necessidades das cria-
turas. [Começa-se por] Dá-nos a graça do
conhecim ento, (a) D este-nos a graça do
con h ecim ento, (b) aceita nosso arrepen-
d im en to. A ceitaste nosso arrependim en-
to, perdoa-nos. Tu nos perdoaste, realiza
a nossa redenção. Tu nos redim iste, cura
nossas doenças. Curaste nossas doenças,
abençoa os nossos anos. A bençoaste os
nossos anos, reúne-nos. Tu nos reuniste,
julga-nos com justiça, subjuga nossos ini-
m igos. Subjugaste nossos inim igos, justi-
fica-nos em teu juízo. Tu nos justificaste,
constrói tua casa e escuta nossa prece, e
acolhe-nos nela".

115
Para ser compreendido, esse texto deve ser dito em voz alta,
com entonação que acentue cada frase marcada com (b), como se-
quência e consequência da frase marcada com (a).
Assim, para o primeiro grupo de duas frases que visam às duas
primeiras bênçãos de pedido, a quarta e a quinta bênção:
(a) Deste-nos a graça do conhecimento,
(b) Aceita nosso arrependimento!
Parafrasemos para fazer entender o que é dito a Deus com cer-
ta insolência,1bem típica da Torá oral, quando ela põe o maior em-
penho nos interesses da comunidade:
(a) Como quiseste que pedíssemos [e obtivéssemos], na quarta
bênção, o dom gratuito do conhecimento de nossa situação de pe-
cadores...
(b) Aceita agora conceder-nos o arrependimento que te pedi-
mos na quinta bênção, arrependimento no qual te comprazes...
Para compreender o texto, é preciso redescobrir a entonação
que a anotação escrita sugere, do início até o fim. Sem considerar o
texto escrito como uma notação a serviço da oralidade, corre-se o
risco de não o compreender e fazer dele uma tradução falsa e inin-
teligível. fnfelizmente, é o caso da tradução francesa de Schwab e,
depois dela, da tradução alemã de C. Horowitz.
Veja-se, pois, o início da tradução de Schwab.

53. Tradução Schwab p. 40 de T. J. Berakot II, 4 4d.


R. Aha, em n om e d e R. Josué ben Levi,
disse que aquele que organizou esta ora-
* a Am ida ou ção* fixou-a assim: o objetivo das três pri-
Dezoito Bênçãos m eiras bênçãos e das três últim as é ceie-
brar Deus. As bênçãos m edianas relacio-
nam -se às necessidades dos hom ens: "Fa-
vorece-nos com o d om da sabedoria, ou:
tu nos favoreceste com esse dom"; "aceita
nosso arrependim ento; ou: aceitaste nos-
so arrependim ento"; "perdoa-nos, ou: tu
nos perdoaste"; "redim e-nos, ou: tu nos
redim iste"; "cura nossos m ales, ou: curas-
te nossos males".

1 Quanto a essa "insolência", ver os belos textos reunidos por J. Heinemann, Lapriére
juive ... , p. 63-72.

116
Esse exemplo, de uma Tradição do fim do século III, confirma
que devemos, a priori, confiar na fidelidade das anotações escritas.
O que é verdade em relação a um texto do fim do século III,
com maior razão, é verdade quanto às tradições mais antigas. Sem
dúvida, é impensável suspeitar da confiabilidade da anotação es-
crita da Mishná, em relação à sua oralidade. Porém, se surgissem
dúvidas a respeito de outras coletâneas menos autorizadas, bastaria
observar que seu estilo oral, de modo muito especial o da dialética
dos midrashim halákicos, não permite que a anotação escrita se afas-
te do texto original.
Deixamos de ilustrar mais, aqui, por escrito, essa confiabilidade
da anotação escrita. Contentemo-nos de verificar que a confiabili-
dade das anotações escritas é o que as torna difíceis de compreen-
der na primeira leitura. Também é ela que dificulta a tradução exata
e compreensível dessas anotações.
É este, pois, um primeiro traço pelo qual se evidencia a oralida-
de dos textos: a obscuridade de suas anotações escritas, a dificulda-
de da apresentação por escrito e em tradução. Tendo essas dificul-
dades sido percebidas a partir do primeiro contato com o primeiro
texto apresentado, estamos, portanto, desde o início, verificando a
oralidade, que é justamente o principal objetivo deste Documento.
Parece que esse traço deva ser apresentado em primeiro lugar,
porque é o mais fundamental para a abordagem da literatura rabí-
nica transmitida por escrito.
Vejamos outros traços, começando pelos mais gerais, aqueles
que se encontram praticamente em todos os textos: a língua falada
e a sabedoria popular, conaturais com a oralidade.

A ORALIDADE SE APOIA SOBRE A LÍNGUA FALADA


EA SABEDORIA POPULAR
Comecemos pela língua em que os textos se exprimem. Essa
língua não é mais o hebraico bíblico, mas o hebraico falado na épo-
ca da redação das tradições rabínicas. Contrariamente ao que ainda
era ensinado no início deste século, pode-se dizer que, em linhas
gerais, a pesquisa linguística moderna, sobretudo a israelense, de-
monstra que o hebraico rabínico da literatura antiga é o hebraico
falado pelos judeus, na terra de Israel, nessa época antiga. O he-

117
braico e o aramaico existem simultaneamente, mas é o hebraico
que prevalece na literatura dos Tannaim, sem dúvida porque, em
primeiro lugar, o seu emprego já inveterado antes da destruição do
Templo, era o mais cômodo para garantir a continuidade, mas tam-
bém porque essa língua era realmente usada para as necessidades
correntes da vida, essas de que se ocupa a Torá oral.
Além da língua propriamente dita, seu vocabulário, morfolo-
gia, sintaxe, há o estilo que na literatura rabínica é também o da
linguagem popular. A dialética rabínica chama-se "tomar e dar",
exatamente como a discussão entre comprador e vendedor num
mercado. As parábolas de lavandeiros, as parábolas de raposas (cf.
texto n. 28) e quantas outras não teriam sido redigidas em hebrai-
co, se não tivessem sido aperfeiçoadas e "amaciadas" nessa língua,
diante de muitos auditórios. A obscuridade de certas imagens, a
aspereza de algumas articulações do texto apresentam dificuldades
para nós, que vemos nele apenas um lembrete do que foi dito oral-
mente.
Essas dificuldades, que manifestam a oralidade, como veremos
adiante, em nada contradizem o fato de que a Torá se exprimiu na
língua e segundo a linguagem do povo. Sem dúvida, toda formula-
ção rabínica, mesmo analisada, completada e restituída para além
do lembrete escrito, não é acessível a qualquer homem em Israel.
Porém, se ela não é acessível, é porque o ouvinte é pouco exercita-
do. Não é porque usa fórmulas abstratas ou difíceis, reservadas aos
intelectuais. A literatura rabínica é popular, porque a Torá dos fari-
seus é, antes de tudo, oral; e portanto, como vimos, feita pelo povo
e para o povo. Percebe-se isso no contato com cada texto, como o
ar que se respira. Não daremos aqui exemplos particulares, pois, na
verdade, é cada texto que ilustra essa evidência.

A SABEDORIA EXISTENCIAL
E HISTÓRICA DOS MESTRES DE ISRAEL
Talvez nos perguntemos por que, na literatura rabínica, há tão
poucas tradições atribuídas aos mestres da época anterior à destrui-
ção do Templo, em comparação com tudo o que provém dos Sábios
de Yavné e de seus sucessores. A resposta é a seguinte: a Torá dos

118
antigos mestres, sendo Torá oral, foi em parte esquecida ou destru-
ida.2 É o que, segundo a Tradição, quase aconteceu com a Torá de
Rabbi Aqiba, tendo muitos de seus discípulos perecido na revolta de
Bar Kokba, em 132-135 d.C. (cf. T. B. Yebamot 62 b).
Outra razão pela qual temos tão poucas tradições anteriores à
destruição do Templo é que, em matéria de Halaca, o que era ado-
tado era transmitido anonimamente e foi retomado em Yavné, seja
como Tradição anônima, seja como Tradição transmitida por um
dos mestres que atuavam na reorganização posterior a 70 d.C. É o
caso, por exemplo, de inúmeras tradições transmitidas por Rabbi
Yehudah, discípulo de Rabbi Aqiba, que, além da condição de dis-
cípulo, é um comunicador importante de tradições antigas. Ocorre
novamente um fenômeno desse gênero, muito mais tarde, na Babi-
lônia, onde Rab Yoseph, na metade do século IV, é chamado "Sinai"
porque transmite muitas tradições que, sem ele, teriam permanecí-
do desconhecidas e esquecidas (cf. T. B. Berakot 64 a).
O que vale para a Halaca vale, com maior razão, para a Hagadá,
menos importante quanto à vida do povo, e da qual grande parte
não resistiu à prova do tempo.
No entanto, há alguns restos e, em matéria de Hagadá, o ri-
quíssimo grupo de tradições coletadas na Mishná Abot e no seu
complemento, os Abot de-Rabbi Nathan.
Vimos no primeiro texto citado neste Documento o que é pro-
posto nessas coletâneas: é uma sabedoria histórica e existencial, di-
ferente da sabedoria bíblica e marcada pela oralidade.
Retomemos as duas primeiras sentenças dessa Mishná Abot,
a das pessoas da Grande Assembléia e a de Simeão, o Justo. São
formuladas, de início, em hebraico falado, e não em hebraico ara-
caizante, que procuraria imitar o hebraico dos Provérbios, do Ecle-
siastes. Depois, elas são ternárias e não binárias, como as senten­

2 O "esquecimento" dos antigos mestres e da atribuição, a esses mestres, de tradições


anteriores à destruição do Templo é uma efetiva dificuldade já experimentada pelos
judeus de Kairuan, no fim do século X d.C. Suas questões são dirigidas a Rab Sherira
Gaon, que as cita e lhes responde na carta do ano 987. Rab Sherira Gaon explica o si-
lêncio da Mishná a respeito dos mestres antigos; segundo ele, não havia controvérsias
antes dos primeiros mestres mencionados na Mishná. Na realidade, de acordo com
A. Goldberg, o silêncio provém do fato de que, antes da época da redação da Mishná,
não se publicavam as opiniões minoritárias. Discutia-se no colégio rabínico, decidia-
-se pela maioria, e a opinião da minoria não era publicada. Quanto à "destruição" da
Torá oral, é o resultado da destruição dos mestres mortos na guerra que precedeu a
destruição do Templo.

119
ças dos Provérbios, imitadas por Ben Sira. Os Sábios não quiseram
apresentar-se, ou apresentar seus mestres, como continuadores da
Sabedoria bíblica e escrita. Quiseram valorizar uma sabedoria vi-
vida na história, em contato com o povo, em reação à situação do
momento.
É pouco provável que todas as sentenças tenham sido pronun-
ciadas como as temos hoje, ternárias, em sua maioria. Existem, ali-
ás, as que não são ternárias; adiante citaremos uma delas. É difícil,
e às vezes até impossível, situar as sentenças no contexto histórico e
social que as causaram. Quando é possível - é o caso de algumas re-
constituições particularmente felizes, feitas por sábios judeus como
Dinur e Urbach -, vê-se a Torá oral em seu surgimento histórico e
existencial.
Essas sentenças não foram pronunciadas para serem escritas.
Orais, grande número delas se perdeu. As que permaneceram na
memória e foram repetidas na literatura rabínica a partir de Yavné
foram, o mais das vezes, transmitidas sem nada que torne possível
explicá-las diretamente a partir de seu contexto. Portanto, temos
pérolas que devemos recolocar em sua oralidade e na nossa, à es-
cuta da oralidade judaica de hoje.
Ouçamos uma sentença de Hillel.

54. Mishná Abot I, 14


L . . ,
* milel Dizia ele*: "Se nao sou por m im , quem
será por m im ? E se sou por m im , o que
sou? E se não é agora, quando será?".

Hoje não há nada que permita a recuperação do contexto em


que Hillel pronunciou essas palavras. Não sejamos precipitados di-
zendo que essa sentença, segundo seu conteúdo, é independente
da história. Se soubéssemos em que circunstâncias ela foi dita, sem
dúvida seríamos capazes de compreender, por um lado, a história e,
por outro, a sentença. Mas, como não sabemos, temos de nos con-
tentar em admirar a sabedoria existencial que se exprime aqui, em
vários níveis de profundidade. Deixemos que cada leitor, segundo
a própria vivência, e a intensidade de sua experiência de oralidade,
explore essa sentença.
Digamos simplesmente que nos parece original tal como é, em
sua estrutura ternária: ela situa a existência, 1) na dimensão hori­

120
zontal: o eu comparado a outra coisa ou a outros eu; 2) na dimen-
são vertical: o eu comparado ao eu, na profundidade; 3) na dimen-
são temporal: o eu captado no momento.
Devemos acrescentar que há grande probabilidade de que essa
sentença seja de Hillel, pela consonância com tudo o que se sabe
dele e de sua experiência religiosa. Teria a Torá oral recebido de
Hillel o desejo de dar a suas sentenças a sabedoria da estrutura ter-
nária?
A estrutura ternária, típica da oralidade, não se impõe em to-
dos os casos. Temos, por exemplo, a seguinte Tradição, a respeito de
um Sábio, falecido em Yavné, nos anos 90.

55* Mishná Abot IV, 19


Shem uel, o Pequeno, dizia (Pr 24,17-18):
Se te u in im ig o cai, n ão te alegres, e te u co-
ração n ão e x u lte se ele tropeça, para q u e o
S en h or não veja isso> fíq u e d e s c o n te n te e
d e le re tire a sua ira.

Por pouco, talvez, como Rabban Yohanan ben Zakkai, She-


muel, o Pequeno, não foi discípulo de Hillel. Por que se conservou
na Mishná essa sentença que parece não pertencer a ela, visto que
se reduz a uma citação da Escritura? Também neste caso, temos um
traço manifesto de oralidade.
Em Yavné também se sabia, em contato com Shemuel, o Pe-
queno, por que era importante guardar esse versículo referente
a ele. Sabia-se oralmente, mas não se indicou na redação oral da
Mishná porque era importante. E hoje não sabemos mais.

AS REPETIÇÕES
É possível, como acabamos de ver, que não se saiba mais e que
a Torá seja esquecida. É o risco que a Torá assumiu, querendo per-
manecer, sobretudo, oral. Para limitar o risco, mas principalmente
para m anter de forma positiva a intensidade de uma Torá que, para
ser vivida, deve ser conhecida, a Torá oral pratica sua oralidade e,
em primeiro lugar, cultiva a memorização.
Lembramo-nos de que a Torá oral leva o nome de Mishná,
coisa repetida, aprendida e ensinada por repetição, que Mishná dis-
tingue-se de Miqra, coisa lida, Escritura (cf. texto n. 28).

121
A repetição é praticada intensamente, por exemplo, por Rab-
ban Yohanan ben Zakkai, "que jamais tinha sido encontrado senta-
do, em silêncio, mas repetindo sempre‫( ״‬cf. texto n. 27).
Nada há de surpreendente em que essa prática da repetição
tenha deixado traços na literatura rabínica.
A interpretação da Escritura dá ensejo à formulação de um en-
sinamento que deve ser repetido a cada passagem em que a Escri-
tura oferece ocasião para isso. Se a interpretação fosse redigida por
escrito, não seria necessário repeti-la; poder-se-ia remeter de uma
passagem a outra. Mas como se trata de anotação escrita, para ser-
vir de suporte à memória, ela retoma a cada passagem a formulação
oral.3
Vejamos isto a partir da Escritura que ensina que o próprio
Deus fez a Páscoa e feriu os primogênitos dos egípcios.

56. Mekilta de-Rabbi Ishmael s/ Ex 12,12


Ed. Horovitz-Rabin p. 23
(Ex 12,12): E eu ferirei to d o p rim o g ê n ito
[...] D evo en ten d er "por um anjo" ou "por
um enviado"? O Talm ude diz (Ex 12,29): E
o S en h or feriu to d o p rim o g ê n ito na terra
d o Egito: não por um anjo e não por um
enviado.

57. Mekilta de-Rabbi Ishmael s/ Ex 12,29


Ed. Horovitz-Rabin p. 43
(Ex 12,29): e o Sen h or feriu to d o p rim o -
g ê n ito [...] D evo en ten d er "por um anjo"
ou "por um enviado"? O Talm ude diz (Ex
12,12): E eu ferirei to d o p rim o g ê n ito : não
por um anjo e não por um enviado.
Esses dois textos repetem o mesmo ensinamento a partir de
dois versículos, sendo que um é remetido a outro. O texto seguinte,
mais arcaico, tem a mesma formulação, menos desenvolvida.5

5 Essa é uma das causas do desaparecimento de certas tradições. Os escribas,


convencidos de já terem anotado a formulação uma primeira vez, deixam de anotá-la
uma segunda vez. Se o início do texto vier a faltar, não se terá, no fim do texto, nada
mais do que a referência a uma passagem que desapareceu.

122
58. Mekilta de-Rabbi Shimeon ben Yohai s/ Ex 12,29
Ed. Epstein-Melammed p. 28
(E x 12,29): E o S en h or feriu to d o p rim o -
g ê n ito na terra d o E gito, e n ã o p o r u m e n -
v ia d o .

A Hagadá de Páscoa retoma as mesmas formulações, ligando-


-as não somente a Ex 12, mas a Dt 26, que é o texto de base comen-
tado durante a noite pascal.

59. Hagadá shel Pesah Ed. Goldschmidt, p. 122. Trad.


1 Ed. Bloch, p. 33,35
(D t 26,8) E o E tern o n os fe z sair d o Egito
com m ã o fo r te e braço este n d id o , n u m a
g ra n d e aparição> o p era n d o sinais e p r o d í-
gios.
O E tern o n os fe z sair d o E gito: N ã o p o r
u m a n jo , n e m p o r u m se ra fim , n e m p o r
u m m e n s a g e ir o ; m a s fo i o S a n to , b e n d it o
seja, e m s u a G ló r ia , p e s s o a lm e n t e , c o m o
está d ito : (E x 12,12) N essa m e sm a n o ite
eu p a ssa rei p e la terra d o E gito e ferirei na
terra d o E gito to d o p rim o g ê n ito ; d e s d e os
h o m en s a té os anim ais; e eu, o E terno, fa-
rei ju stiça so b re to d o s os d eu ses d o Egito!
Passarei p e la terra d o E gito: E u , n ã o u m
a n jo ; ferirei to d o p rim o g ên ito : E u , n ã o
u m s e ra fim ; e farei ju stiça so b re to d o s os
d eu ses d o E gito: E u , n ã o u m m e n s a g e ir o ;
Eu, o Eterno: s o u E u e n e n h u m o u t r o q u e
n ã o Eu.

Observemos o desenvolvimento da fórmula no fim de nosso


texto: "Eu, o Eterno: sou Eu e nenhum outro que não Eu". É pos-
sível que haja aí um ponto tardio, anticristão, "o outro" seria Jesus
Cristo, que ousou dizer: "Sou eu" ("Eu sou" - Ego eimi).
As repetições, cujo traço foi guardado na anotação escrita,
manifestam não apenas a oralidade da Torá oral, mas seu caráter
lúdico. O ensinamento se transmite melhor quando se encontra
uma alma de criança e quando é agradável repetir. Quem quer que

123
tenha estudado em ambiente judaico ou participado da liturgia da
noite pascal num a família judia teve experiência desse jogo.
Assim, há prazer em repetir; mas sabe-se também reduzir e
economizar para conservar as forças e o fôlego.

A PALAVRA ABREVIADA
Tomamos a expressão "a palavra abreviada" para fazer alusão
às riquezas desenvolvidas na Tradição da Igreja a partir de uma
tradução latina, discutível, de Is 10,23 citado por São Paulo na
epístola aos Romanos (9,28). O verbum breviatum ou abbreviation, o
verbo abreviado é, na Tradição cristã, o Cristo que "abreviou" sua
divindade, assumindo nossa humanidade. É também, segundo São
Francisco, na sua segunda Regra (9,4), o "verbo abreviado" que
serve de modelo aos pregadores que devem pregar "com brevidade
de discurso".
É precisamente o que faz a Torá oral, que economiza toda pa-
lavra inútil e que abreviará, pois, o trabalho dos escribas que ano-
tarão, mais tarde, as formulações orais.

A - A Economia da negação ou da palavra principal


Vimos acima (cf, texto n. 16) a tradição sobre Hillel em matéria
de prática pascal. Uma passagem da argumentação era formulada
assim:

60. Tosephta Pesa him 4,13-14


P ode-se tam bém , com m aior razão, racio-
* cf. Ex 29,42; cinar: se o sacrifício perpétuo*, quanto ao
Nm 28,1-8 qual [se não o fazem os] não ficam os su-
jeitos a punição, prevalece sobre o Sabá,
não se d eve concluir ainda m ais que a Pás-
coa, quanto à qual [se não a fazem os] fica-
m os sujeitos a punição, prevalece sobre o
Sabá?

Vê-se que a negação, que colocamos para completar, entre col-


chetes, está faltando. Não é um erro do escriba. Na passagem para-
leia, na verdade, a negação está ausente, ainda com maior nitidez!

124
61. T. J. Pesahim VI, 1
Com maior razão pode-se pensar: se o sa-
crifício perpétuo, quanto ao qual [não]
fazendo-o, som os sujeitos a punição, pre-
valece sobre o Sabá, não se d eve concluir
ainda m ais que o Sabá, quanto ao qual
[não] fazendo-o, som os sujeitos a puni-
ção, prevalece o Sabá?

A palavra "não" não é dita. Outro exemplo de "economia" tem


a vantagem de nos apresentar uma Tradição importante sobre a
"memória" de Israel nos tempos messiânicos.

62. Tosephta Berakot 1,9 Ed. Lieberman, p. 4


D eve-se guardar a lembrança da saída do
Egito [...] para incluir os dias do M essias (=
M ishná B era k o t 1,5).
Ben Zoma lhes disse [aos Sábios]: "Mas
dever-se-á guardar a lem brança da saída
do Egito nos dias do Messias? Pois não foi
dito, por outro lado (Jr 23,7-8): P or isso,
eis q u e dias virão - oráculo d o S en h or -,
em q u e não dirão m ais: v iv e o S en h or qu e
fe z su b ir os filhos d e Israel d o p a ís d o Egi-
to, m a s v iv e o S en h or q u e fe z su b ir e re-
to rn a r a raça da casa d e Israel d o p a ís d o
n o rte 7".
* os Sábios Eles* lh e disseram: "Não que a saída do
Egito seja desenraizada do seu lugar, mas
que a saída do Egito seja suplem entar aos
* = à libertação de todas reinos*, [sendo então] os reinos a coisa
as sujeições aos reinos principal e a saída do Egito a coisa rela-
estrangeiros
tiva. D e m od o análogo (Gn 35,10): não te
cham arás m a is Jacó; te u n o m e será Israel
etc.·, não que Jacó seja n om e que lh e te-
nha sido retirado, m as que [doravante]
Jacó seja suplem entar a Israel, Israel [sen-
do] principal e Jacó relativo.

No texto, há apenas a palavra "reinos" em lugar de nossa pará-


frase colocada na margem.

125
Aqui, como no texto acima, vê-se bem claramente qual é a ma-
neira de evitar um contrassenso. Não é sempre o caso e, se houver
dúvida, será prudente consultar um mestre judeu.4
Notemos em nosso último texto o ponto de discussão entre
Ben Zoma e os Sábios, por volta do ano 100 de nossa era. Uma
tendência bem conhecida, baseada num a interpretação literal de
Jeremias, já prepara para se afastar da história e suprimir toda me-
mória, desde que seja possível, a partir dos tempos messiânicos. Os
Sábios, ao contrário, representando a opinião comum e autorizada,
sustentam que os tempos messiânicos não irão suprimir a memória
da primeira redenção do Egito. O cumprimento da história relativi-
za-a, confirmando-a. Relativizar não é fazer sumir. Os Sábios sabem
também interpretar a Escritura. Eles atualizam o fundamentalismo
e a incoerência da interpretação de Ben Zoma.
O nome principal, Israel, relativiza Jacó, nome doravante aces-
sório ou secundário. Jacó não é nome suprimido nem diminuído.
Relativo ao nome Israel ele é aumentado e iluminado pelo nome
teóforo. Assim também, a primeira redenção do Egito, tornando-se
relativa à última redenção, receberá dela confirmação e luz. Esse
vocabulário concreto - "principal, relativo, secundário, acessório" -
mantém a novidade imprevisível e irredutível da última redenção;
e respeita Deus, que não destrói nada e não esquece nada do que
fez por amor. Tal vocabulário poderia exprimir, de modo acessível
a todos, a relação que há entre a Páscoa judaica e a Páscoa cristã;
entre a antiga e a nova Aliança.

B - A economia do “Choque"
Abrevia-se também quando, depois de criar uma tensão, dei-
xa-se cada ouvinte continuar, ele mesmo, o que o texto quer preci-
samente fazê-lo dizer.

63. Midrash Tannaim s/ Dt 14,1 Ed. D. Hoffmann, p. 72


(Dt 14,1) N ão vos cindais [...] Não sejais
grupos e grupos [cindidos uns dos outros],
m as sede todos um só grupo, com o está

4 É preciso consultar sempre um mestre judeu, mesmo na ausência de dúvida. Não


é sempre possível de modo absolutamente completo. Portanto, é inevitável o risco de
erro em toda apresentação, inclusive nas deste Documento.

126
d ito (Am 9,6): A q u e le q u e con stró i n os
céus suas salas su p erio res e fu n da na ter-
* = sua abóbada ra o seu grupo*. Q uando Israel, em grupo,
* = Deus faz a von tad e do "Lugar"*, suas salas su-
periores estão nos céus. Mas se Israel não
estiver agrupado e não fizer a von tad e do
"Lugar", então, se é possível dizer [...]
D e m odo análogo, dizes (Ex 15,2): E ste é
m e u D eu s e o glorifíco; quando lh e dou
graças, eis que ele é celebrado [que ele é
belo]. Mas se não lh e dou graças, então,
se é possível dizer [...] D e form a análoga,
dizes (Dt 32,3): Pois vou in vo ca r o N o m e
d o Senhor; qu a n to a vós, en gran decei o
n osso D eus! Quando invoco seu N om e, há
grandeza para o nosso Deus. Mas se não
invoco seu n om e, então, se é possível di-
zer [...]
D e m aneira análoga (Dt 33,26): N in gu ém
é com o o D eu s d e Iesurun. Quando Israel
* yesharim, jogo de é reto* e faz a von tad e do "Lugar", nin-
palavras com Yeshurum guém é com o Deus. Mas se Israel não é
reto e não faz a von tad e do "Lugar", en-
tão, se é possível dizer [...] D e m aneira
análoga, disseste (Sl 123,1): A ti eu levan -
to m e u s olhos, a ti q u e estás se n ta d o nos
céus. Pois por m inha causa estás sentado
nos céus. Mas se eu não estivesse lá, então,
se é p ossível dizer.

O leitor de um texto desses é realmente um ouvinte levado a


completar com medo, tremor e entusiasmo o que não está dito: Que
Deus, se Israel estiver dividido, estará, por assim dizer, dividido! E
assim por diante até dizer que, se Israel não existisse, com os olhos
voltados para Deus, Deus, por assim dizer, não seria rei nos céus!
O jogo diverte; por fim, o coração é tocado por essa identifica-
ção, digamos, de Israel com seu Deus.

C- As alusões
O texto, funcionando como lembrete, muitas vezes se conten-
ta em indicar o que normalmente é conhecido dos ouvintes e não
requer nenhum a explicação.

127
Algumas alusões tornaram-se indecifráveis; outras estão salvas
porque a Torá oral manteve, por outro lado, a memória de uma
explicação sobre o ponto em vista.
Assim, devemos a Rashi uma fábula de raposa, muito bela, que
o Talmude, comentado por ele, não julgou necessário contar.

64. T. B. Sanhédrin 38 b-39 a


^..Ü
Como disse Rabbi Yohanan: "Quando Ra-
bbi Meir expunha sua lição, expunha um
* shema ‫׳‬ata aqui = Halaca terço de Tradição ouvida*, um terço de
Hagadá, um terço de parábolas". E Rabbi
Yohanan disse: "Rabbi Meir tin h a 300 pa-
rábolas de raposa e nós tem os apenas três:
(Ez 18,2): Os p a is com eram uvas verd es e
os d e n te s d o s filhos ficaram em botados·,
(Lv 19,36): Balanças ju sta s e p e s o s justos·,
(Pr 11,8): O ju s to escapa da angústia e o
ím p io ocupa o seu lugar".

Rashi s/ Abot yoklu Boser (os pais com eram uvas verdes)
É um a parábola a respeito d e um a raposa
que enganou u m lobo e o fez entrar no pá-
tio dos judeus, para preparar com eles o
que é necessário para a refeição e para co-
m er com eles durante o Sabá. Mas quando
entrou, juntaram -se contra ele, com paus.
Ele se aproxim ou da raposa para matá-la.
D isse [-lhe esta]: "Eles só te bateram por
causa de teu pai, porque um a vez ele tinha
com eçado a ajudá-los na refeição, m as de-
pois disso com eu todos os pedaços bons".
D isse-lhe ele: "E é por causa d e m eu pai
que m e batem?". Ela disse: "É, sim, (Ez
18,2) Os p a is com eram uvas verd es etc.
Mas vem com igo e vou te m ostrar um lu-
gar em que se com e e on d e se é saciado".
Ele foi com ela até um poço sobre cuja
beirada estava jogada um a viga, em cima
desta um a corda e, nas duas extrem ida-
des da corda havia dois baldes amarrados.
A raposa entrou no balde superior, largou

128
o peso sobre ele e desceu até em baixo, en-
quanto subia o balde inferior. D isse o lobo:
"Por que entraste aí?". D isse ela: "Aqui há
carne e queijo para com er e se saciar". E
lh e m ostrou o reflexo da lua na água, cír-
culo sem elh an te a um queijo redondo. Ele
disse: "E eu, com o vou descer?". Entrou,
largou o peso e desceu, enquanto subia o
balde em que estava a raposa. D isse ele:
"Como vou subir d e novo?". Ela respon-
deu (Pr 11,8): “ O ju s to escapa da angús-
tia e o ím p io ocupa o seu lugar. Não está
escrito (Lv 19,36): Balanças ju s ta s e p e so s
justos!?".

Observemos que Rashi nos dá uma única fábula, que ocupa


todos os versículos, e não três. Terá ele inventado a fábula, de forma
genial, ou transmitiu uma fábula correspondente a outra versão do
Talmude?
Devemos também a ele a decifração de uma alusão, em outra
passagem do Talmude.

65. T. B. Taan it 8 a
Rabbi A m m i disse: "As chuvas só caem
para os que têm fé, com o foi dito (SI
85,12): Da terra germ in ará a V erdade e
a Justiça se inclinará d o s Céus". E Rabbi
A m m i disse: "Vem e vê com o são grandes
os que têm fé! D e on d e o sabem os? D e "A
doninha e o poço". E se é possível acre-
ditar num a doninha e num poço, quanto
m ais se d eve acreditar no Santo, bendito
seja!".

Rashi si m i-Huldah u-Bor (da doninha e do poço)


Que m ataram duas pessoas. Isto está na
Hagadá. História que aconteceu com um
jovem que prom etera a um a m oça casar-
-se com ela. D isse-lhe ela: "Quem é teste-
munha?". Ora, havia lá um poço e um a
doninha. O jovem disse: "O poço e a do-
ninha são testem u n has do fato". Os dias

129
se passaram e ele violou a prom essa. Des-
p osou outra m ulher e gerou dois filhos.
Um caiu no poço e morreu. O outro foi
m ordido pela doninha e m orreu. Sua m u-
lher lh e disse: "O que acontece, pois, mor-
rerem os dois assim , de m orte estranha?"
D isse-lhe ele: "Assim se passou o fato...".

Do ponto de vista do conteúdo, notemos a intensidade da


mensagem expressa por um raciocínio a fortiori: se os seres não ra-
cionais, de um modo ou de outro, não enganam, quanto mais o
homem deve m anter sua palavra e crer na de Deus!

D - 0 ensinamento implícito - convite, testemunho


É característica da Torá oral não formular sempre o ponto ou o
nível mais profundo do ensinamento que transmite. Parece haver
aí uma realidade análoga àquela apresentada no Novo Testamento,
quando mostra Jesus falando em parábolas (Mt 13,10-15 e par.).
Vejamos um exemplo em que esse fato é certo e outro em que
é quase certo.

66. Mekilta de-Rabbi Shimeon ben Yohai s/ Ex 12,12


Ed. Epstein-M elamm ed p. 14
(Ex 12,12): E Eu p a ssa rei p ela terra d o Egi-
to [...] com o um rei que vai de um país
para outro.

67. Mekilta de-Rabbi Ishmael s/ Ex 12,12


Ed. Horovitz-Rabin, p. 23
(Ex 12,12): e eu p a ssa rei p ela terra d o Egi-
to [...] Rabbi Yehudah disse: "Como um
rei que passa de um lugar para outro".

Citamos os dois textos para ilustrar outra vez o valor de Rabbi


Yehudah, discípulo de Rabbi Aqiba, como transmissor de tradições
antigas. Mas nós o fazemos, sobretudo, para mostrar que a formu-
lação é voluntariamente quase idêntica.
O que significa a imagem? O Senhor, que anuncia sua intenção
de percorrer o Egito para ferir os primogênitos, é comparado a um

130
rei. Um rei tem, efetivamente, o poder de passar de um lugar a ou-
tro e de infligir esse flagelo por toda parte por onde passe. O texto
talvez quisesse dizer isto: se um rei tem tal poder, com maior razão
Deus tem tal poder. Ou ainda, quando lembramos a mensagem vis-
ta acima, segundo a qual é o próprio Deus que age (cf. textos 11. 56
a 59), o texto pode querer significar: Embora Deus seja mais que
um rei, Ele age, Ele próprio, como um rei da terra.
Na verdade, ainda uma vez, Rashi nos ajuda a compreender a
Torá oral, desenvolvendo o que está implícito.

68. Rashi s / E x 12,12


(Ex 12,12): E Eu p a ssa rei [...] com o um rei
que passa d e um lugar para outro e, num a
única passagem e n u m único instante, to-
dos são feridos.

O Senhor, infinitamente superior a um rei terrestre, passa de


um lugar para outro e fere todos os primogênitos, num único ins-
tante.
A formulação antiga fica, digamos, deliberadamente implícita.
Isto parece típico da Torá oral; ela não formula o ponto do ensina-
mento que transmite. No caso, há provavelmente mais do que a
intenção de abreviar, que localizamos acima. Há um convite e uma
espécie de teste para o ouvinte; ou, hoje, para o leitor.5 O leitor
apressado estará cego ao convite. Façamos votos para que não se
julgue tolamente superior a um texto que não teve tempo de com-
preender.
Outro exemplo parece comprovar essa profunda pedagogia da
Torá oral, que se podería também exprimir assim: por que facilitar
a tarefa daqueles que não estão dispostos a ter trabalho a respeito
da Torá e que, de qualquer maneira, não tardarão a parar no meio
do caminho?

69. Mekilta de-Rabbi Ishmael 5/ Ex 20,8


“ Ed. Horovitz-Rabin, p. 229
(Ex 20,8) L em b ra -te e (Dt 5,12) O bserva [o
Sabá], Lem bra-te antes d ele e observa d e­

5 A parábola não é imediatamente decifrável; exige esforço, empenho do ouvinte. Cf.


Mt 13,16-17.34.

131
pois dele. A partir disso disseram: "Acres-
centa-se o profano ao santo. Parábola:
[isto é sem elhante] a um lobo que exige
espaço d iante e atrás de si".

A parábola do lobo é compreensível num primeiro nível. O


lobo, que inspira temor e pode destruir, significa o caráter divino
do Sabá. O Sabá, encontro supereminente com Deus, inspira temor,
e sua violação voluntária é passível de pena de morte. É preciso
"lembrar-se" do Sabá antes de sua chegada e "observá-lo" depois.
Parece possível aplicar a parábola em outro nível de interpretação.
Com maior razão, poder-se-ia fazer o seguinte raciocínio: se, diante
de um animal feroz, tomas distância, por medo, aquém e além do
seu campo de ação maléfica, quanto mais deves aumentar, por te-
mor e por amor, antes e depois, o tempo do encontro com teu Deus
no Sabá!
Esse tipo de reflexão por oposição a fortiori é muito comum na
Torá oral de Israel. Observemos como ele aparece explicitamente
no Novo Testamento: Parábola do juiz iníquo e da viúva (Lc 18,6-
8); palavras de Jesus sobre a oração de pedido (Mt 7,9-11; Lc 11,11-
13), para citar apenas dois exemplos. Tal raciocínio parece também
estar implícito na parábola do cego que guia o cego (Lc 6,39): se um
mestre cego conduz um discípulo cego, certamente o levará para
o buraco. Deus, mestre de compaixão, quando guia aquele que o
imita, não o levará, e quanto mais, à compaixão? Ver-se-ia assim
um vínculo orgânico entre a parábola (v. 39) e o versículo seguinte,
"todo discípulo perfeito deverá ser como o mestre" (v. 40), que liga
o todo ao tema da imitação de Deus, que precede (v. 36-38).
Destaquemos também as reflexões por oposição a fortiori, fre-
quentes nas epístolas de Paulo, em particular na epístola aos Roma-
nos (5,9.10.15.17.20; 6,10.23).
Assim, segundo as necessidades, a Torá oral faz um desenvol-
vimento maior ou menor da formulação de sua mensagem. Da pa-
rábola do lobo, enigmática, a respeito do Sabá, passa-se à parábola,
mais explicitada, do cego que conduz o cego, a respeito da imitação
de Deus; e chega-se a formulações totalmente explícitas, como a
parábola da raposa, contada por Rabbi Aqiba, pouco tempo antes
de sua morte.

132
70. T. Β. Berakot 61 b
* o Império Romano. A con teceu que o reino perverso* decre-
Não há sinal de tal tou que Israel não se dedicasse m ais à
medida antes da Torá. Pappos ben Yehudah foi procurar
revolta de 132-135
Rabbi Aqiba e o encontrou reunindo as-
sem bleias públicas para se ocupar da Torá.
* o Império Romano D isse ele: "Aqiba! Não ten s m ed o do rei-
no*?". Aqiba respondeu: "Vou mostrar-
-te, por um a parábola, a que se assem elha
nossa situação. Ela é com parável a um a
raposa que andava ao longo de um rio.
Vendo p eixes que se ajuntavam e fugiam
de um lugar para outro, disse-lhes ela:
,‫׳‬Por que fugis?'. Responderam : ,‫׳‬Fugim os
das redes que os h om en s nos arm am ‫׳‬. Ela
disse: 'Se quiserdes, podereis subir para a
terra firm e e m orarem os juntos, vós e eu,
com o m eus pais viviam com vossos pais‫׳‬.
Replicaram: 'É m esm o d e ti que dizem ser
o m ais m atreiro dos anim ais? Não és m a-
treira, és estúpida! Se, na verdade, tem os
m ed o em nosso m eio vital, quanto m ais
d evem os tem er ir para um lugar que é a
nossa m orte!‫׳‬.
O m esm o acon tece conosco: se agora te-
m os m ed o, enquanto estam os sentados,
ocupando-nos da Torá da qual diz a Escri-
tura (Dt 30,20): Dela d e p e n d e a tua vida
e o p ro lo n g a m en to d o s teu s dias, quanto
* tradução D. de la
m ais deveriam os tem er se a abandonásse-
Maisonneuve m os e a deixássem os ‫׳׳‬.*

O raciocínio por oposição a fortiori, confrontando a verdadei-


ra vida com a falsa morte, está em harmonia com as oposições de
Paulo acima mencionadas, mas também com as palavras de Jesus:
"Aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas o que perder
a sua vida por causa de mim e do Evangelho, salvá-la-á" (Mc 8,35
e par.).
Vejamos também os raciocínios por oposição a fortiori de Rabbi
Aqiba, o mestre genial que sabe consolar Israel da destruição do
Templo.

133
71. T. B. Makkot 24 a-b
Em tem p os passados, Rabban Gama-
liei, Rabbi Eleazar ben Azariah, Rabbi
Yehoshua e Rabbi Aqiba cam inhavam
pela estrada. Ouviram a voz da m ultidão
* porto da baía de rom ana em Putéoli*, a um a distância de
Nápoles (cf. At 28,13s) 120 milhas**. Começaram a chorar, mas
** cerca de 170 km Rabbi Aqiba ria. Disseram -lhe: "Por que
ris?". D isse ele: "E vós, por que chorais?".
R esponderam eles: "Os pagãos que se
prosternam d iante das estátuas e incen-
sam os ídolos vivem na segurança e na
tranquilidade; quanto a nós, o p e d e s ta l
* é o Templo
d o s p é s d e n osso D eus* (SI 99,5; 132,7; Lm
2,1) é queim ado p elo fogo, e nós não iria-
m os chorar?". Ele lhes disse: "É por isso
que estou rindo! Se é assim para os que
transgridem sua vontade, quanto mais
para os que cum prem a sua vontade".
Outra vez, eles cam inhavam em Jerusa-
lém e, ten d o chegado ao m o n te Scopus,
rasgaram as vestes. Chegando em seguida
à m ontanha do Templo, viram um a rapo-
sa que saía do Santo dos Santos. Come-
çaram a chorar; Rabbi Aqiba, porém , ria.
Disseram -lhe: "Por que ris?". R espondeu
ele: "Por que chorais?". Disseram eles: "O
lugar do qual foi escrito (Nm 1,51): E qual-
* = não-levita qu er estranho* q u e d e le se a p ro x im a r será
co n d en a d o à morte-, agora raposas foram
lá, e nós não iríam os chorar!". D isse ele:
"É por isso que estou rindo".
Está escrito (Is 8,2): Eu to m a rei com o tes-
tem u n h a s dignas d e fé o sa cerd o te Urias e
o filho d e Yebere K yah u , Zacarias. O que
vem , pois, Urias fazer ju n to d e Zacarias?
D e fato, Urias é do prim eiro Tem plo, ao
passo que Zacarias é do segundo Templo!
Na realidade, porém , a Escritura fez a pro-
fecia de Zacarias d epender da de Urias. Na
profecia d e Urias está escrito (Mq 3,12; Jr
26,18-20): p o r isso>, p o r culpa vossa, Sião
será arado com o um ca m p o etc.; e na pro-

134
fecia de Zacarias está escrito (Zc 8,4): Ve-
Ihos e velhas ainda se sen tarão n as praças
d e Jeru salém [...] Enquanto não se cum -
pria a profecia de Urias, eu tem ia que não
se cum prisse a profecia de Zacarias. Agora
que se cum priu a profecia de Urias, é se-
guro que a profecia de Zacarias está sen-
do cumprida". N estes term os, disseram:
"Aqiba, tu nos consolaste; Aqiba, tu nos
consolaste".

Rabbi Aqiba, não-conformista, não hesita em chocar seus mes-


tres e inovar diante deles, por fidelidade à Torá, que é vida e con-
solação. Sem dúvida, deve-se chorar a destruição do Templo, como
fez Jesus (Lc 19,41-44), e usar luto por Jerusalém. Mas depois da
destruição, só pode vir a reconstrução; depois da morte, a vida;
depois do luto, a alegria, segundo as palavras de Isaías (66,10):
"Alegrai-vos com Jerusalém, exultai nela, todos os que a amais.
Regozijai-vos com ela, todos os que por ela estáveis de luto".
Se não tivéssemos essas magníficas precisões de Rabbi Aqiba e
de tantos outros mestres em Israel, não poderiamos decifrar o en-
sinamento implícito da Tradição de Israel e do Novo Testamento. A
Torá oral explica, ensina a explicar e convida a explicar.

O RECURSO ESPONTÂNEO ÀS PARÁBOLAS


E ÀS IMAGENS POPULARES

O último texto apresentava a intuição genial de Rabbi Aqiba,


que percebeu a alegria no luto por Jerusalém. A Torá oral, pela
vivência intensa, pelo contato incessante com a Escritura e com a
sabedoria popular, encontra instintivamente a palavra e a imagem
que surpreendem. O laço estreito entre os mestres e os discípulos
faz com que as descobertas inimitáveis permaneçam inesquecíveis.
Assim, temos todas as possibilidades de ter, com bastante frequên-
cia, as palavras vividas, "ipsissima verba", do mestre.
Podemos ilustrar isso com dois exemplos de palavras de Rabbi
Aqiba: a Torá oral surge das necessidades da vida. Nos dois casos,
Rabbi Aqiba é obrigado a falar, e falar de modo surpreendente e
convincente.

135
72. T. J. Ταaηit III, 4 66 c-d
* = decretou Rabbi Eliezer fez* um a m ortificação, m as
a chuva não caiu. Rabbi Aqiba fez a mor-
tificação e a chuva caiu.
Ele entrou e disse d iante deles: ',Vou m os-
trar, por m eio d e um a parábola, a que isto
se assem elha. [Isto é sem elhante] a um rei
que tinha duas filhas. Uma era in solen te e
a outra, sensata. Quando a in solen te pedia
e entrava para ju n to dele, ele dizia: "Que
seja concedido o que ela está p ed indo, e
que ela vá embora!". Mas quando a sen-
sata entrava para ju n to dele, ele continha
o desejo [de satisfazê-la], pois gostava de
ouvir sua conversa. Mas é perm itido di-
zer isso? Na realidade, [Rabbi Aqiba disse
isso] para não profanar o N om e dos Céus
a respeito de Rabbi Eliezer.

Rabbi Aqiba devia fazer cessar rapidamente os comentários


descorteses a respeito de seu mestre Eliezer.
A parábola surge, então, em aramaico e não em hebraico, o
que é muito raro e podería ser até um sinal suplementar da auten-
ticidade das palavras de Rabbi Aqiba. Este inverte a situação: o fato
de Rabbi Eliezer não ser atendido é precisamente a consequência
de sua grandeza!
O Talmude se questiona sobre a possibilidade de deformar as-
sim a realidade e responde que é possível modificá-la para honrar o
mestre e defendê-lo da hostilidade dos outros.
Parece que seria possível ver também, na fulgurante espon-
taneidade de Rabbi Aqiba, a expressão de sua humildade e de seu
amor pelo mestre. Rabbi Aqiba sinceramente vê seu mestre - não
atendido - maior que ele; vê-se a si mesmo - atendido - como a
filha insolente do rei.
No texto que segue, Rabbi Aqiba é preso, algum tempo an-
tes do martírio. Um de seus jovens discípulos, Rabbi Shimeon ben
Yohai, insiste para que ensine. Rabbi Aqiba diz por que não quer
ensinar o discípulo.

136
73. T. Β. Pesahim 112 α
Rabbi Aqiba, quando estava na prisão,
prescreveu cinco coisas a Rabbi Shim eon
* Rabbi shimeon ben Yohai. Ele* lh e disse: "Mestre! Ensi-
ben Yohai na-m e a Torá". D isse ele: "Não te ensina-
rei". Ele disse: "Se não m e ensinares, di-
rei a Yohai m eu pai e ele te denunciará
* às autoridades romanas ao reino*". D isse-lhe ele: "Meu filho! Mais
do que o bezerro quer mamar, a vaca quer
am am entar". D isse-lhe ele: "Quem corre
perigo? Não é o bezerro que corre peri-
go...?‫״‬.

Por amor à Torá, o discípulo está pronto a se arriscar à morte


para ser ensinado. Rabbi Aqiba, que acabará por aceitar ensiná-
-lo, defende-se, de início. Sob a pressão do perigo e do amor por
seu discípulo, dá a imagem "grosseira" da vaca e do bezerro. Isso é
típico da Torá oral, que valoriza a linguagem do povo, que prefere
explicar a vida a partir da "grosseria" das ruas, dos mercados e dos
sítios do que a partir do quadro "protegido" da casa de estudos.
Rabbi Aqiba prescreveu, ou melhor, recomendou cinco coisas
ao discípulo e usa, todas as vezes, uma linguagem bem colorida, em
que "dá nome aos bois".
A imagem da vaca e do bezerro, inesquecível, será retoma-
da pela Torá oral, séculos depois,6 para exprimir o amor de Deus,
que mais ama do que é amado, e para justificar a oração de pedi-
do. Quem poderá dizer, de fato, que Deus não tem mais satisfação
quando lhe pedimos alguma coisa, do que temos nós, quando rece-
bemos aquilo que pedimos? Talvez o pedido seja mais precioso aos
olhos de Deus do que o louvor.

A IMPROVISAÇÃO
Acabamos de ver várias improvisações espontâneas, feitas sob
influência dos acontecimentos, para consolar, para proteger um
mestre amado, para se eximir de ensinar um discípulo amado. Há
6 Por um mestre do movimento hassídico, o Magid Dov Baer de Mezeritch, que
dirá, através dessa imagem da vaca e do bezerro, que "é maior a alegria de Deus em
satisfazer as suas criaturas do que a das criaturas que Ele satisfaz".

137
um campo em que a improvisação, a renovação constante, são for-
temente recomendadas, senão impostas. É o campo da oração, par-
te muito importante da Torá oral, um dos três pilares sobre os quais
se apoia o mundo segundo Shimeon, o Justo (cf. Texto η. 1).

74. Mishná Abot II, 13


Rabbi Shim eon disse: "Ocupa-te ativa-
m en te da leitura do Shem a, e da oração.
E quando orares, não faças da tua ora-
ção um a coisa im utável, m as um a oração
* Deus d iante do "Lugar"*, por sua com paixão e
m isericórdia, pois está d ito (JI 2,13): Por-
q u e E le é m isericord io so e com passivo,
le n to na ira, ch eio d e am or, e la m en ta o
m al. E não sejas m aldoso a teu s olhos".

75. Mishná Berakot IV, 4


Rabbi Eliezer disse: "A oração de quem faz
dela um a coisa im u tável não é [um ape-
lo à] com paixão". Rabbi Yehoshua disse:
"Quem cam inha em lugar perigoso, faça
um a oração breve; diga: Salva, Senhor,
teu povo, o resto de Israel! Que em toda
encruzilhada d e cam inho [de passagem ],
suas necessidades estejam d iante dos teus
olhos. B endito sejas tu, Senhor, que escu-
tas a oração!".

76. T. B. Berakot 21a


E Rab Yehudah disse que Shem uel disse:
"Quem já orou e entra num a sinagoga e
lá encontra um a com unidade que ora, se
puder inovar algum a coisa na sua oração,
que recom ece a orar. Se não, que não re-
com ece a orar".

77. T. J. Berakot IV, 3 8a


M ishná B era k o t IY, 4: Rabbi Eliezer disse:
"Quem faz d e sua oração um a coisa im u-
tável [...]".
Rabbi Abbahu, em n om e de Rabbi Elea-

138
zar, disse: "Que pelo m enos ele não seja
sem elh an te a alguém que lê um a carta".
Rabbi Aha, em n om e de Rabbi Yose: "É
necessário inovar nela* algum a coisa a
* = na oração cada dia".

Esses textos mostram a obrigação de renovar a oração; não


apenas a oração facultativa individual, mas a oração de obrigação
comunitária. Os mestres mencionados vão da época de Yavné (fim
do século I) até o início do século IV (Rabbi Aha), Rabbi Eliezer e
Rabbi Yehoshua, que ensinam que a oração não podería ser imutá-
vel, querem dizer que no quadro pedagógico que dá o conteúdo e
a ordem das bênçãos é preciso improvisar ou, pelo menos, renovar
em parte a formulação da oração. Esses dois mestres refletem uma
prática anterior à destruição do Templo.
Tais dados poderiam justificar que se começasse por supor a
improvisação nas orações da Tradição de Israel e nas que aparecem
no Novo Testamento.
Na realidade, esse caráter de improvisação não é tão evidente
no texto desta ou daquela oração considerada em si mesma; ele se
manifesta bem mais na comparação que se poderá fazer das orações
semelhantes. Digamos algumas palavras e demos um exemplo des-
sa comparação.

A VARIEDADE DAS VERSÕES ORIGINAIS


Já indicamos a importância das pesquisas de J. Heinemann
para um melhor conhecimento da oralidade da Tradição de Israel.
Em seu último livro, Prayer in the Talmud, J. Heinemann dedica um
capítulo ao desenvolvimento das orações e ao problema do "texto
original" (p. 36-76). Desse capítulo, extraímos um exemplo acom-
panhado do respectivo comentário.

139
78. J. Heinemann, P raye r in the Talm ud p. 58-59
[Que] ressuscitas Que despertas Que despertas
os m ortos, os que dorm em os que dorm em
e que reanim as que reanim as
os que estão os que estão
entorpecidos entorpecidos
que fazes falar
os m udos
ampara que libertas
os que vacilam os cativos
e curas os d oen tes e que amparas que amparas
e libertas os que vacilam os que vacilam
os cativos e que endireitas os e curas os d oen tes
curvados e libertas os cativos
(Bênção Geburôt da (Nishmat-kol hai ‫ ־‬rito (Nishmat - rito de
'Amidah; Birnabaum, ashkenaze, ibid. p. Maimônides [manus-
p. 83). 331). crito]).

B endito és tu, Senhor nosso D eus, que li-


bertas os cativos
B endito és tu, Senhor nosso D eus, que
despertas os que dorm em
B en d ito és tu, Senhor nosso D eus, que re-
anim as os que estão entorpecidos
B endito és tu, Senhor nosso D eus, que fa-
zes falar os m udos
B endito és tu,Senhor nosso D eus, que
abres os olhos dos cegos
B endito és tu, Senhor nosso D eus, que en-
direitas os curvados
B endito és tu, Senhor nosso D eus, que
elevas os h um ildes etc.
(.Birkot Ha-Sharar, segundo o Seder Hibbur Be-
rakot).

Que hum ilhas os arrogantes


e elevas os h u m ildes
que libertas os cativos
e resgatas os supliciados e ajudas os po-
bres
('emet weyassib; Birnbaum, p. 79).

140
A m paro dos que vacilam , responde-nos!
A uxílio dos pobres, salva-nos!
R edentor e Salvador, faze-nos prósperos!
(We besech, Thee, 0 Lord, save us! Piyyütfor Simbat
Tôrâh, rito ashkenaze; Birnbaum p. 705).

Comentário
"Não há qualquer necessidade de supor
que o ·‫׳‬autor‫ ׳‬d e N ish m at, por exem p lo,
tenha tom ad o por m od elo a bênção de
G eburot, ou que o ·‫׳‬autor‫■׳‬d e B irk o t Ha-
-Sharar ten h a feito o m esm o com N ish-
m a t e que os dois ten h am intencional-
m en te transferido essas fórm ulas d e um
con texto para outro. Cada autor desejou,
d e preferência, com por sua própria ora-
ção de louvor a D eus e usou essas fórm u-
las fam iliares que lh e vieram ao espírito
sem nen h um a hesitação (e talvez até sem
saber). Por esse m otivo, não preservou o
núm ero ou a ordem das diferentes frases
em sua ‫׳־‬fo n te‫ ;׳‬tam b ém não h esitou em
quebrar a longa série de fórm ulas con-
secutivas com o aparecem na A m id a h e
em N ish m a t, e em distribuí-las entre as
bênçãos separadas dos B irk o t Ha-Sharar.
Por conseguinte, não tem os necessidade
de falar da ‫׳‬influência‫ ׳‬d e outra oração,
quando um a versão particular con tém
notas adicionais que não se encontram
em n enhum a das outras versões."

Assim, pois, a variedade das "versões originais" é um sinal evi-


dente da oralidade de cada versão nascida da criatividade da Torá
vivida.
O que é válido para a oração é válido para toda a Torá oral, es-
pecialmente para a Hagadá, como indica J. Heinemann na obra ci-
tada (p. 56). Lembremos também que a oralidade evoca seus direi-
tos quando se tenta injustamente harmonizar os textos no campo
da Halaca; por exemplo, quanto aos midrashim halákicos. O método
eclético utilizado por L. Finkelstein para sua edição crítica de Sifré

141
Deuteronome, severamente criticado no seu tempo, serviu de revela-
dor negativo: no caso de texto de tradição oral, é preciso seguir uma
das versões, mais do que procurar encontrar "a versão original" e,
ainda menos, fabricar uma. É claro que isso não torna inútil a loca-
lização das variantes de determinada versão.

A PLASTICIDADE DAS MONTAGENS


Como vimos, é inútil pesquisar uma versão original por trás
das versões paralelas existentes, não só de inúmeras orações, mas
também de outras tradições halákicas ou haggádicas da literatu-
ra antiga. Essa variedade também se verifica quando se comparam
certas montagens que utilizam motivos comuns, em ordem dife-
rente, a partir de circunstâncias diferentes.
O que nos interessa, aqui, não é a variedade das formulações,
de que falamos acima, e sim a diversidade das montagens.
Vejamos duas montagens; seria inútil querer levar uma à ou-
tra. A hipótese de que se trate de duas composições originais da
Torá oral é mais simples. A oralidade, de cuja existência se sabe, nos
dispensa o ônus da prova.
O primeiro texto, do Talmude de Jerusalém, Makkot, liga-se à
Mishná, tratado Makkot (11,4), que discute das cidades de refúgio
instituídas segundo a Escritura (Nm 35,14), nas quais um assassino
por inadvertência pode escapar à vingança privada.

79. T. J. Makkot II, 7 31 d


Foi ensinado: Rabbi Eliezer ben Yaaqob
disse: (Nm 35,13) "R efú gio. [A palavra]
refúgio estava escrita na encruzilhada dos
cam inhos para que o assassino visse o que
estava escrito e fosse [para a cidade de re-
fúgio]". Rabbi A bun disse: "Uma espécie
d e m ão indicava-lhes a estrada". Rabbi
Pinhas disse (Sl 25,8): "B om e reto. Como
é Ele bom quando o é reto, e com o é Ele
reto quando é bom ? (Sl 25,8): P or esse m o -
tiv o E le a p o n ta o cam in ho aos pecadores,
isto é, Ele aponta o cam inho do arrepen-
dim ento".
* ‫ ״‬s Hagiógrafos ou Interrogou-se a Sabedoria*: "Qual é o casti-
Escritos go do pecador?". Ela respondeu (Pr 13,21):

142
“A desgraça persegu irá os pecadores" . In-
* os profetas terrogou-se a Profecia*: "Qual é o castigo
do pecador?". Ela resp on d eu (Ez 18,4):
"A alm a q u e p eca r, essa m orrerá". Inter-
rogou-se o Santo, b en d ito seja: "Qual é
o castigo do pecador?". Ele respondeu:
"Que ele se arrependa e se beneficiará da
expiação. E é o que está escrito. P o r esse
m o tiv o E le a p o n ta o ca m in h o aos p eca -
dores: Ele ap on ta aos pecadores o cam i-
n h o para que se arrependam ".

O perigo de morte que pesa sobre o assassino é sério. Por isso,


segundo nosso texto, a Tradição havia instalado placas indicativas
para ajudar o fugitivo. Isso reflete já a bondade do Senhor. Então,
é natural continuar com um desenvolvimento homilético sobre a
bondade do Senhor, que quer a vida e não a morte. Ora, o pecador,
até que se arrependa, está ameaçado de morte. Por esse motivo,
Deus, segundo o Salmo, aponta o caminho aos pecadores.
Assim, três unidades são reunidas:
- A Tradição sobre as cidades de refúgio.
- A interpretação de Rabbi Pinhas sobre o Salmo 25.
- A questão dirigida a duas partes da Escritura, personiücadas,
depois ao próprio Deus, e a resposta de Deus.
A terceira unidade é, claramente, o ápice pedagógico da mon-
tagem. A comparação com a segunda montagem mostra que o tex-
to do Talmude de Jerusalém é incompleto: falta, na terceira unidade,
a pergunta dirigida à Torá personiücada.

80. Pesiqta de-Rab Kahana. Pisq. 24


Ed. M andelbaum , p. 355
(Sl 25,8): O Sen h or é b o m e reto; p o r esse
m o tiv o , a p o n ta o cam in ho aos pecadores.

Se escutarmos o versículo com acuidade, veremos que ele é


difícil. De fato, se o Senhor é bom, deve poupar; se é reto, deve
punir os maus e recompensar os justos. Como "cumprir" a primeira
parte - difícil - do versículo? Sem dúvida, como sabemos, por meio
da segunda parte do mesmo versículo. Mas o homiliasta vai fazer
um desvio que ensinará aos ouvintes, e a nós, algo de importante.

143
* os Hagiógrafos ou Interrogou-se a Sabedoria*: "Qual é o
Escritos castigo do pecador?". Ela respondeu (Pr
13,21): "A desgraça p erseg u irá os p eca d o -
res".
* os Profetas Interrogou-se a Profecia*: "Qual é o casti-
go do pecador?". Ela respondeu (Ez 18,4):
"A alm a q u e pecar, essa m orrerá".
* o Pentateuco Interrogou-se a Torá*: "Qual é o castigo
do pecador?". Ela respondeu (cf. Lv 5,6):
"Ele trará um sacrifício d e reparação p e lo
p e c a d o e se beneüciará da expiação". In-
terrogou-se o Santo, b en d ito seja: "Qual
é o castigo do pecador?". Ele respondeu:
"Que ele se arrependa e se beneficiará da
expiação. Isso é que está escrito (Sl 25,8):
O S en h or é b o m e reto; ele a p o n ta o cam i-
n h o aos pecadores".
Rabbi Pinhas disse: "Como é Ele bom ao
passo que é reto e com o é Ele reto ao pas-
so que é bom ? Por esse m otivo, aponta o
cam inho aos pecadores, isto é, Ele aponta
aos pecadores o cam inho para que se arre-
pendam . É assim que Oseias exorta Israel
e lhes diz (Os 14,2): Volta,Israel".

A Pesiqta de Rab-Kahana é uma coletânea de tradições homilé-


ticas sobre as leituras litúrgicas, da Torá ou dos Profetas, instituídas
na terra de Israel para certos Sabás e para os dias de festa.
A leitura profética da Pisqa (= capítulo) 24, é Oseias 14,2ss:
"Volta (Shubah), Israel, ao Senhor teu Deus...", instituída para o
Sabá que caia nos 10 dias de arrependimento (Teshubah) entre as
festas de Rosh-Ha-Shanah e Kippur.
Nossa passagem é uma "abertura". O homiliasta parte do Sal-
mo (25,8) que vai "abrir" o sentido de Oseias (14,2ss). Efetivamen-
te, o Senhor indica o caminho em palavras, através de Oseias, como
o faz segundo o Salmo. Para convencer-se disso, basta interrogar a
ele próprio, para além da Escritura.
Esse é o prolongamento que a Torá pode oferecer, porque é
oral. Mesmo a Torá escrita, o Pentateuco (Lv 5,9), não dá resposta
ao pecador desesperado de voltar para Deus. De fato, na época da
homilia, por volta de 350 d.C., o Templo fora destruído há muito
tempo e os sacrifícios já não faziam parte da expiação. O que dará

144
a vida é somente o arrependimento, a volta para Deus. O próprio
Deus - pela boca do homiliasta que, em nome da comunidade, diz
a Torá oral -, proclama que o arrependimento dá a expiação. Essa
palavra direta ultrapassa qualquer outra formulação, ainda que seja
da Torá escrita.
O Talmude de Jerusalém e a Pesiqta de Rab Kahanah são coleta-
neas contemporâneas, provenientes das mesmas escolas rabínicas
da Terra de Israel entre os séculos III e V. Têm grande quantidade de
versões paralelas de detalhes, e de montagens paralelas.
A plasticidade da Torá oral evidencia a variedade das monta-
gens. No Talmude, parte-se da realidade jurídica das cidades de re-
fúgio para chegar à realidade homilética do arrependimento. Não
seria possível ilustrar melhor que não há nenhum a separação a fa-
zer entre a Halaca e a Hagadá; entre o direito e a espiritualidade. Na
Pesiqta de Rab Kahana, inteiramente haggádica, parte-se da Escri-
tura (Salmo) para chegar à Escritura (Oseias).
Citemos rapidamente um terceiro texto que é, de forma visí-
vel, não uma anotação escrita, mas um resumo escrito.

81. Deutéronom e Rabba. Ed. Lieberm an, p. 58


‫י‬

(Dt 4,41): E ntão M oisés escolh eu três ci-


d a d es [...] É o que diz a Escritura (SI 25,8):
O S en h or é bo m e reto . Como é ele bom
quando é reto, e com o é ele reto quando é
bom ? [Os] Israel[itas] disseram: "Revimos
tod os os profetas e eles não nos disseram
que há rem édio para aquele que peca.
Este disse isto, aquele disse aquilo. Mas
quando chegam os ao Santo, b en d ito seja,
ele nos en sin ou o seu rem édio para todas
as coisas; por isso, o S en h or é b o m e reto".

Essa passagem não é uma anotação abreviada que reflete a tra-


dição oral, mas um resumo que suprime todos os pormenores signi-
ficativos. Notemos em particular a omissão do prolongamento: isto
é, interrogam-se não somente a Profecia - e não os profetas -, mas
também a Sabedoria e, sobretudo a Torá escrita, o Pentateuco. O
escritor, que faz seu resumo em forma de abertura, não deveria vol-
tar, no fim, ao versículo (Sl 25,8) de abertura. É possível, é verdade,
que se trate de um acréscimo feito por escriba posterior ao autor.

145
As duas montagens mereceríam ser estudadas mais a fundo,
tanto do ponto de vista da anotação escrita, mal transmitida nos
dois casos, quanto do ponto de vista do conteúdo. O que nos inte-
ressa aqui é ver que duas montagens diferentes, ambas originais,
transmitem a mesma dúplice mensagem:
- A Torá oral utiliza oralmente os conjuntos de que dispõe.
Reorganiza-os à sua vontade;
- A Torá oral ensina a abertura, o ir além de toda formulação,
que faria cessar a marcha do caminho da vida.
A partir dessa realidade da Tradição de Israel, e do conteúdo de
continuidade que ela oferece, é que é possível apreciar melhor, do
ponto de vista cristão, a novidade das palavras de Jesus no Sermão
da M ontanha (Mt 5). A novidade não consiste em ir além das for-
mulações "escriturísticas" ou outras. Ela está no que Jesus diz: "Mas
eu vos asseguro‫״‬. O homiliasta judeu faz Deus falar na primeira
pessoa. O homiliasta não fala, ele próprio, na primeira pessoa.
De qualquer maneira, tanto na literatura rabínica quanto no
Novo Testamento, as anotações escritas demonstram a oralidade da
mensagem original e remetem a essa vivência do encontro com
Deus que fala diretamente ao ouvinte.

A CONCORDÂNCIA DOS TESTEMUNHOS


Resta finalmente reconhecer que a oralidade de uma Tradi-
ção viva manifesta-se, sobretudo, pelo fato de que os mestres mais
importantes não escreveram sua mensagem. É a ausência de texto
escrito - quando se trata, por exemplo, de Hillel, de Jesus, de Rabbi
Aqiba -, que pode, se estivermos atentos, garantir uma atitude de
gratidão para com a Torá oral: gratidão por ela existir oralmente;
gratidão por ela existir e saber apresentar-se como tal.
A Torá oral nos dá testemunhos, dos quais alguns - ou mais,
ou menos - são anotados por escrito. Esses testemunhos variam
segundo as testemunhas. Quando vêm de discípulos, querem dizer
aquilo que, segundo o discípulo, foi ensinado pelo mestre, em sua
maneira de agir, de falar, e também no que disse ou quis dizer.
É preciso, pois, regozijar-se pela divergência dos testemunhos.
Ela mostra que eles são autênticos e históricos, fundados sobre a

146
vivência. Essa divergência está a serviço de uma convergência que
cada ouvinte cria para si mesmo e para outros.
Vejamos as duas versões do martírio de Rabbi Aqiba, transmi-
tidas por seus discípulos.

82. T. J. Berakot IX, 7 14b


Rabbi Aqiba foi julgado d iante de Tineius
* governador romano da Rufus*, o ím pio. Chegou o tem p o d e ler o
Província da Judeia no Shem a. Ele com eçou a ler o Shem a e esta-
início da revolta de
132-135 va tod o con ten te. [Rufus] lh e disse: "Ve-
lho hom em ! Tu és feiticeiro ou desprezas
o sofrim ento?". Ele respondeu: "Como se
exprim e o espírito desse hom em ! Eu não
sou feiticeiro e não desprezo o sofrim ento.
Mas todos os dias eu lia este versículo (Dt
6,5): A m arás o S en h or te u D eu s com to d o
o teu coração> com to d a a tua alm a e com
to d a a tua força. Eu estava preocupado e
dizia comigo: 7Quando essas três coisas m e
* lit.: me virão elas às serão dadas*? Eu O am ei com to d o o m e u
mãos? coração, eu O am ei com to d a a m in h a ri-
queza; m as com to d a a m in h a alm a, isso
ainda não tin h a sido p osto à prova7. Agora
que chegou [o tem p o de provar] com toda
a m in h a alm a, agora que chegou o tem p o
da leitura do Shem a, não m e desviei. Eis
por que leio e estou contente". Não tev e
tem p o d e falar m ais, pois sua alm a partiu.

83, T. B. Berakot 61 b
Foi ensinado: Rabbi Eliezer disse: "Se está
dito (Dt 6,5): com to d a a tua alm a, por que
está dito: com to d a a tua força? E se está
dito: com to d a a tua força, por que está
dito; com to d a a tua alm a? Mas, na rea-
lidade, podes encontrar um h om em que
prefere o corpo à riqueza, porque está
dito: com to d a a tua alm a. E p odes encon-
trar um h om em que prefere a riqueza ao
corpo, porque está dito: "Com to d a a tua
força". Rabbi Aqiba disse: "Com to d a a tua
alm a, m e sm o q u e Ele to m e a tua alma".

147
N ossos m estres ensinaram: A conteceu,
* o Império Romano um a vez, que o reino perverso* decretou
que Israel não se dedicaria m ais à Torá.
Pappos ben Yehudah foi procurar Rabbi
Aqiba e o encontrou em reunião de as-
sem bleias públicas, ocupando-se da Torá.
Ele lh e disse: "Aqiba, não ten s m ed o do
* o Império Romano reino*?". Aqiba respondeu: "Vou m os-
trar-te, através de um a parábola, a que se
assem elha nossa situação. Ela é sem elhan-
te a um a raposa que cam inhava ao longo
de um rio e via os p eixes se reunirem e
fugirem d e um lado para outro. D isse-lhes
ela [...] ,‫׳‬Por que estais fugindo?‫׳‬. Disse-
ram: ‫׳־‬Fugim os das redes que nos lançam
os filhos d e A dão‫׳‬. Ela disse: 'Se quiserdes,
p odeis subir a terra seca e m orarem os
ju ntos, vós e eu, com o m eus pais viviam
com vossos pais'. D isseram eles: 'És tu,
que dizem ser o m ais m atreiro de todos
os anim ais? Não és matreira, és estúpida!
Se, na verdade, no nosso elem en to vital
tem os m ed o, quanto m ais d evem os te-
m er ir a um lugar que é nossa m orte!‫׳‬. O
m esm o acontece conosco: se agora tem os
m ed o, quando estam os sentados e ocu-
pados com a Torá, da qual diz a Escritura
(Dt 30,20): Pois dela d e p e n d e a tua vida
e o p ro lo n g a m en to d o s teu s dias, quanto
m ais deveriam os tem er se a abandonásse-
m os e a n egligenciássem os!‫׳׳‬.
Contam que, pouco tem p o depois, Rabbi
Aqiba fo i preso e acorrentado na prisão.
Pappos ben Yehudah tam bém foi preso e
acorrentado ju n to dele. Rabbi Aqiba lhe
disse: "Pappos, quem te trouxe aqui?‫׳׳‬.
Ele respondeu: "Feliz és tu, Rabbi Aqiba,
que foste preso por causa das palavras da
Torá! Infeliz Pappos, que prenderam por
coisas vãs!‫'׳‬.
Q uando fizeram sair Rabbi Aqiba para
m atá- lo, era o m o m en to d e ler o Shema.
D ilaceravam -lhe a carne com p en tes de

148
ferro e ele recebia o jugo do R eino dos
* ele recitava a céus*. D isseram -lhe seus discípulos: "Ó
oração do Shema nosso m estre! A té que ponto!". D isse-lhes
ele: "Todos os dias da m inha vida preocu-
p ei-m e com este versículo: com to d a a tua
alm a, que significa: m esm o que Ele tom e
a tua alma. Eu dizia comigo: ·‫׳‬Quando con-
* 'aqayye-mennu seguirei cum pri-lo*?‫׳‬. E agora, que isso m e
é dado, não o cumpriría?". Ele prolongou
* 'ehad. O Shema começa a palavra "único"* até entregar a alma.
assim: Ouve, ó Israel! O Uma voz celeste se fez ouvir dizendo: "Fe-
Senhor nosso Deus é o liz és tu, Aqiba, cuja alm a saiu pronun-
Único Senhor (Dt 6,4)
ciando: 'Único'!".

As duas narrativas concordam quanto à ligação da morte de


Rabbi Aqiba com a leitura do parágrafo inicial do Shema Israel (Dt
6,4ss), chamada por seu nome no Talmude de Babilônia: "recepção
do jugo do Reino dos céus".
O relato do Talmude de Babilônia insiste no "cumprimento" do
preceito do amor de Deus na ação. O martírio é o ápice da vida
daquele que, seguindo seu mestre Rabbi Eliezer,7 ensinou que não
basta fazer uma boa exegese, mas é também necessário dar-se a si
próprio a Deus (cf. nota sobre o texto n. 10. Ver também R Lenhar-
dt, Thies de la continuité juive, p. 511-512).
O Talmude de Jerusalém insiste na unidade cumprida por Rabbi
Aqiba em seu coração. Apesar do sofrimento, lê o Shema Israel e
proclama com alegria a unidade de Deus.
Rabbi Aqiba não é, em Israel, o primeiro mártir a experimen-
tar com alegria o amor e o temor de Deus no sofrimento (ver 2Mc
6,30). Ele é o primeiro de quem os discípulos dão testemunho, di-
zendo que morreu segundo o que ensinou, cumprindo as palavras
do Shema Israel.
As narrativas convergem quanto à importância do Shema Israel
como programa da vida judaica. É exatamente esse texto funda-
mental que Jesus cita em resposta à questão do escriba, a respeito
do primeiro mandam ento (Mc 12,28-30).

7 Cf. texto n. 33, que ilustra a profundidade do vínculo que une Rabbi Eliezer a seu
discípulo Rabbi Aqiba.

149
No entanto, os relatos não são idênticos; isso mostra que a
morte de Rabbi Aqiba é Torá, e que a Torá jamais se esgota por uma
simples interpretação, segundo as palavras do Salmo 62,12: "Deus
falou uma vez, e duas vezes eu ouvi".

150
BIBLIOGRAFIA

COLETÂNEAS RABÍNICAS CITADAS


A Mishná e a Tosephta são citadas por tratado, capítulo e unidade no
interior do capítulo.
A Tosephta é citada por página da edição de S. Lieberman, The Tosephta,
Nova York, 1955-1973.
O Talmude de Jerusalém (abreviatura: T. J.) é citado de acordo com a
edição de Krotoshin em 1866 (reimpressão, Jerusalém, 1969).
O Talmude de Babilônia (abreviatura: T. B.) é citado segundo a edição
de Veneza em 1520-1523, que todas as edições modernas
reproduzem.
Mekilta de-Rabbi Ishmael, ed. H. S. Horovitz - I. A. Rabin, Jerusalém,
1960.
Mekilta de-Rabbi Shimeon ben Yohai, ed. J. N. Epstein - E. Z. Melammed,
Jerusalém, 1955.
Sifra, ed. J. H. Weiss, Viena, 1862 (reimpressão, Nova York, 1947).
Sifre Números, ed. H. S. Horovitz, Jerusalém, 1966.
Sifre Deuteronômio, ed. L. Finkelstein, Nova York, 1969.
Midrash Tannaim, ed. D. Hoffmann, Berlim, 1908-1909.
Pesiqta de-Rav Kahana, ed. B. Mandelbaum, 2 vol., Nova York, 1962.
Deuteronômio Rabba, ed. S. Lieberman, Jerusalém, 1964.
Pesiqta Rabbati, ed. Friedmann, Tel Aviv, 1963.
Midrash Tanhnma, Jerusalém, 1960.
Midrash Tanhuma, ed. S. Buber, 2 vol., Jerusalém, 1964.
Megillat Taanit, ed. H. Lichtenstein, HUCA 8-9, 1931-1932.
Hagadá de Pâgues, ed. J. Bloch, Paris, 1970.
Otzar Ha-Gaonim, ed. B. Lewin, 13 vol., Haifa - Jerusalém, 1928-1962.
Shibboley Ha-Leget Ha-Shalem, ed. Buber, Wilna, 1886.
R. Moses b. Maimon (Maimônides), Responsa, ed. J. Blau, 4 vol.,
Jerusalém, 1957-1986.

151
OUTRAS OBRAS
H. L. Strack; G. Stemberger, Introduction au Talmud et au Midrash.
Tradução e adaptação para o francês de M.-R. Hayoun, Col.
Patrimoines, Judaisme. Paris: Cerf, 1986.
J. Heinemann, La prière juive. Une anthologie composée et présentée por J.
Ho, Prefácio de P. Lenhardt.Tradução do hebraico por J. Dessellier,
Col. Les Cahiers de l'Institut Catholique de Lyon13 ‫ ;׳‬Lião, 1984.
D. de La Maisonneuve, Paraboles rabbiniques, Supplément au Cahier
Évangile n. 50, Paris, 1984.
A.-C. Avril-D. de la Maisonneuve, Prières juives, Supplément au Cahier
Évangile n. 68, Paris, 1989.

152
GLOSSÁRIO

O glossário abaixo é uma repetição abreviada de outro, composto


por Jean Dessellier para sua tradução da obra de J. Heinemann, La
Prière juive ... , op. cit. É com a autorização do autor que o fazemos,
agradecendo profundamente.
A m oraim : Do aramaico "amora", "aquele que fala‫ ״‬ou "explica".
Esse termo chegou a designar os Sábios do período que se iniciou com
o acabamento da Mishná (cerca de 220 d.C.), indo, na Palestina, até o
acabamento do Talmude de Jerusalém (fim do século IV) e, na Babilônia,
até o acabamento do Talmude da Babilônia (começo do século VI).
Tiveram como principal tarefa interpretar e explicar (de onde o
nome amoraim) a Mishná recebida de seus predecessores, e fixar a
partir dela a Halaca definitiva. Suas discussões constituem a matéria
da gemara e também de diversas coleções de midrashim haggádicos.
Encontram-se nelas inúmeros baraitot (singular baraita - do aramaico
bara, o que está "fora", o que é "exterior"), isto é, tradições da época
anterior, dos Tannaim, que não tinham sido englobados na Mishná e
haviam ficado "exteriores" a ela.
Gaon: Plural geonim. É o título conferido aos presidentes das
academias babilônicas (de Sura e de Pumbedita), desde o fim do século
VI d.C. até meados do século IX.
Gemara: Ver Talmude.
Haggadot: Plural de Hagadá. O termo deriva provavelmente de
lehaggid, narrar. A escolha desse termo explica-se talvez mais pelo modo
de transmissão dessa realidade do que pelo conteúdo. Ao contrário
da Bíblia (miqra), que se lia publicamente em um livro, as haggadot,
durante a pregação sinagogal, não eram "lidas", mas "narradas", isto é,
transmitidas oralmente.
A Hagadá é o conjunto das tradições narrativas, distinto da
Halaca, conjunto de tradições normativas que determinam a prática
da Torá. Daí a fórmula consagrada: toda a literatura rabínica divide-se

153
em Hagadá e Halaca; tudo o que não é Halaca é Hagadá. Entendida
assim, esta última corresponde praticamente a tudo o que colocamos
sob o vocábulo "teologia".
Dentro desses dois conjuntos, uma Tradição narrativa particular
também se chama Hagadá, e uma Tradição normativa particular tem
o nome de Halaca. Entre Hagadá e Halaca não há separação absoluta.
Halaca: Da raiz halak, "ir, caminhar", sendo o caminhar uma
velha metáfora bíblica que designa o comportamento do homem no
todo de sua existência (Lv 26,3; Dt 11,22). De modo geral, a Halaca
designa o que diz respeito à prática da Lei. R. Nathan ben Yehiel (século
XI) dá uma dúplice definição da Halaca:
1‫ ־‬O que vai e vem desde os tempos antigos (desde as origens,
isto é, desde Moisés) e até o fim. A Halaca pode efetivamente
evoluir, mas, garantida pela Revelação mosaica, não pode ser
suprimida ou abolida.
2- Aquilo a que se conforma o comportamento de Israel; definição
mais geral e subjetiva, que tem a vantagem de corresponder
a todos os casos, inclusive àqueles em que a Halaca não é
imemorial, nem se apoia sobre a Escritura, mas resulta da prática
do povo. Dessa dúplice definição, resulta que a Halaca é o que
regula a prática da Lei. A palavra Halaca pode designar uma
norma particular ou o conjunto das normas segundo as quais
deve transcorrer a existência judaica: todo o campo jurídico.
Midrash: Da raiz darash, pesquisar, investigar, explicar,
interpretar. O termo designa:
1- É preciso investigar a Escritura para descobrir o sentido que
ela assume hoje, pois essa palavra inesgotável tem um sentido
para todas as situações e para todas as épocas. Por isso, há
uma atividade exegética complexa que explora, em função das
circunstâncias, a inünita riqueza da Palavra divina e pode propor
a seu respeito um sentido preferencial ou oficial; mas ela não
podería fechar-se sobre esse sentido, considerando-o único e
exclusivo.
2- Em sentido mais particular, a palavra Midrash (plural Midrashim)
designa também o resultado dessa atividade exegética, uma
coletânea ou um comentário de um texto ou livro bíblico.
3- Posteriormente, a expressão "midrash" serviu para designar todo
o conjunto da literatura haggádica.
Mishná: Do hebraico shana, que significa "repetir"; sob a
influência do aramaico tanna, esse termo tomou o sentido de "estudo"

154
ou de "ensinamento". A palavra Mishná designa, pois, uma coisa
"ensinada" ou "estudada' por "repetição".
- No sentido mais amplo, a Mishná é o conjunto da Lei oral e de
seu estudo, que é essencialmente caso de memorização e de
recapitulação. Nesse sentido, Mishná contrasta com miqra (de
quara, ler), que designa a Bíblia, a Lei escrita, que se estuda e
transmite pela leitura, uma vez que está consignada em livro
(cf. Ne 8,8).
-N o sentido mais restrito, a Mishná designa a mais antiga coletânea
de tradições, redigida entre a reconstrução do judaísmo em
Yavné, depois da destruição do Templo (70 d.C.) e da morte do
último redator, R. Yehudah ha-Nasi (= o Príncipe), que também
é chamado simplesmente Rabbi, no início do século III d.C. (por
volta de 220). Essa Mishná de Rabbi foi preparada por coleções
anteriores e por compilações de R. Aqiba e de R. Meir.
Como todas as outras coletâneas da literatura rabínica antiga,
a Mishná foi redigida ou compilada e divulgada oralmente por
transmissão a "repetidores".
Rabbi, rab: Em hebraico, "meu Mestre". O título Rabbi designa
qualquer mestre, sem que haja necessariamente relação pessoal com
quem o emprega. Na Babilônia, na época do Talmude, Rabbi tornou-se
Rab.
Rabban: Em aramaico, "nosso Mestre". Na Palestina, título
reservado ao chefe do colégio rabínico (Sinédrio).
Sábios: No judaísmo pós-bíblico, "Sábio" foi primeiramente
um título conferido a mestres espirituais que não tinham recebido a
ordenação que os elevasse ao nível de "Rabbi"; depois, porém, esse
termo serviu para designar mestres validamente ordenados. Na prática,
os mestres fariseus é que são chamados "Sábios", e seus sucessores
designam-se em geral como "discípulos dos Sábios".
Talmude: Da raiz lamad, a palavra significa estudo e ensinamento.
1. No sentido amplo e geral, o termo talmude é suscetível de
empregos variados.
- Pode significar o ensinamento da Torá (comentários, explicações,
opiniões... ) que os discípulos recebem de seus predecessores.
- Pode referir-se também à Torá ensinada e estudada, para designar
todo o conjunto do saber de alguém em matéria de Torá.
- Significa também um ensinamento tirado de texto bíblico
por meio da exegese. Assim, fórmula técnica talmud Tomar,
que introduz um recurso à Escritura, significa: "A Escritura,
convenientemente interpretada pela Tradição, diz...".

155
2. Em sentido mais restrito e mais comumente usado, o talmude
visa o corpus do ensinamento (Gemam), compreendendo o comentário
e as discussões dos amoraim sobre a Mishná de R. Yehudah ha-
-Nasi (Talmude = Mishná + Gemara). Como esse estudo da Mishná se
processou em dois grandes centros, concomitantemente na Terra de
Israel e na Babilônia, o Talmude compreende duas grandes coletâneas:
- O Talmude de Jerusalém, mais justamente chamado Talmude
palestinense ou Gemara dos Ocidentais (vista de Babilônia); recebeu
sua forma atual no início do século V, antes do fechamento da
Academia de Tiberíades em 425 d.C.
- O Talmude de Babilônia, composto nas Academias de Neardeia,
Sura, Pumbedita... entre a primeira metade do século III e o ano
500. Nem um nem outro dos dois Talmudes contém o comentário
de todos os tratados da Mishná.
Quanto ao Talmude de Jerusalém, utiliza-se comumente a edição
de Krotoshin (1866) e a passagem é designada pelo tratado, capítulo e
número da Halaca correspondente à Mishná comentada. Exemplo: T.
J. Sanh. V, 2 = Talmude de Jerusalém, tratado Sanhédrin, capo V, Halaca
n. 2.
Quanto ao Talmude de Babilônia, usa-se a edição de Vilna (1880-
1886). A passagem é designada pelo nome do tratado, número da
folha e indicação da página (a= anverso; b=verso). Exemplo: Berkhot
7 a = tratado Berakhot do Talmude de Babilônia, folha 7 anverso.
Tannaim: Do aramaico tena', teny, repetir, estudar; tanna' = o
repetidor. O termo designa os "mestres" cujos nomes são mencionados
na Mishná ou pertencem à época da Mishná, isto é, ao período que vai
dos discípulos de Hillel e Shammai (20 d.C.) ao acabamento da Mishná
(220 d.C.).
Esses dois séculos foram marcados por dois fatos muito importantes:
a queda de Jerusalém (70 d.C.), que levou a comunidade judaica a se
reformar em Yavné sobre a base da Torá, e a queda de Betar (135 d.C.),
que marcou o fim da segunda revolta judaica e causou o deslocamento
dos centros de estudos da Judeia para a Galileia. Os tannaim precedem
os amoraim e seguem os zugoth (os "pares", de Yose ben Yoeser a Hillel),
e os soferim, sucessores de Esdras, chamados ainda "homens da grande
sinagoga". É aos tannaim que cabe a redação dos midrashim halákhicos,
bem como a da Mishná e da Tosephta.
Torá: Da raiz yarah, indicar uma direção, ensinar, instruir.
A palavra tem o sentido de instrução e de ensinamento; e quando
esse ensinamento é dado por Deus, torna-se Revelação. Traduzindo

156 ;
o hebraico Torá pelo grego nomos, os Setenta acentuaram o aspecto
jurídico em detrimento do aspecto Revelação. Desse modo ressaltaram,
pelo menos, que essa Revelação, como expressão da vontade divina,
requer do homem perfeita submissão e inteira obediência. Já
identificada com a Sabedoria divina, no século II antes da era cristã, a
Torá foi considerada como preexistente ao mundo; como o instrumento
precioso pelo qual o mundo criado e sem o qual não podería subsistir.
Na concepção farisaica, essa Torá é constituída:
- De um lado, pela Revelação divina contida nos cinco livros de
Moisés, completada e explicada pelo ensinamento dos "Profetas"
e dos "Escritos": é a Torá escrita.
- De outro lado, pela Tradição não-escrita dos Pais: a Torá oral,
recebida também por Moisés no Sinai e transmitida por ele a
Josué, depois a seus sucessores, paralelamente à Lei escrita.

157
OS 63 TRATADOS DA MISHNÁ

A Mishná é dividida em seis partes ou "ordens" (sedarim); cada


ordem (seder) é dividida em tratados, 63 no total. Esses tratados são,
eles mesmos, divididos em capítulos: cada capítulo é formado de
parágrafos chamados mishnayyot (ou halakhot no Talmude de Jerusalém).
Cita-se a Mishná indicando o nome do tratado, depois o capítulo em
algarismos romanos e o parágrafo (ou Mishná) em algarismos arábicos.
Por exemplos: Mishná Yadaim IV, 3.
A leitura das referências bíblicas mencionadas abaixo podem
ajudar a compreender o conteúdo dos tratados. Em cada tratado, ao
lado do assunto principal são abordados outros temas; a coerência de
uns com os outros é frequentemente maior do que se possa perceber
numa primeira leitura.

I. Ordem primeira: Zera'im , as sem en tes (agricultura).


1. Berakhot, as bênçãos. Orações da manhã, do meio-dia e
da noite.
2. Péa, o local do campo cuja colheita é deixada aos pobres
(Lv 19,9-10).
3. Dema'i, as coisas duvidosas; frutos cujo dízimo não foi
deduzido de maneira correta.
4. Kilayim, coisas de naturezas diferentes; misturas proibi-
das (Lv 19,19; Dt 22,9-11).
5. Shebi'it, o sétimo ano; o ano "sabático" (Lv 25,1-7; Dt
15).
6. Terumot, dons ou quantidades separadas como oferta
(Nm 18,8.11.25-27).
7. Ma'aserot, o primeiro dízimo, o que vai para os levitas
(Nm 18,21-32).
8. Ma'asersheni, o segundo dízimo (Dt 14,22-29; 26; 26.12-
15).
9. Halla, oferta de massa de pão (Nm 15,18-21).
10. Orla, prepúcio das árvores; árvores e frutos considera-
dos puros e impuros (Lv 19.23).
11. Bikkurim, primícias (Dt 26,1-11).

159
II. Ordem segunda: M o'ed, os dias d e festa.
1. Sabá (Ex 20,10; 23,12; Dt 5,14).
2. Erubin, misturas; dizem respeito às obrigações do Sabá.
3. Pesahim, as festas da Páscoa (Nm 9,1-14).
4. Sheqalim, oferta para o santuário (Ex 30,12-16).
5. Yoma, o Dia das Expiações ou Yom Kippur (Lv 16).
6. Sukka, a tenda, a festa de Sukkot, das Tendas (Lv 23,33-36).
7. Bétsa, o ovo (de acordo com a primeira palavra do tratado).
O que é preciso respeitar nos dias de festa.
8. Rosh ha-Shanah, festa do Ano Novo (Lv 23,24-25).
9. Ta'anit, o jejum.
10. Megilla, o rolo, particularmente o rolo de Ester, lido na
festa do Purim (Est 9,28).
11. Mo’edgatan, meias-festas; festas de segunda importância.
12. Hagiga, celebração. A respeito das três festas de peregri-
nação (Pesah, shabu'ot, Sukkot).

III. Ordem terceira: N ashim , as m ulheres.


1. Yebamot, as cunhadas. O dever do levirato (Dt 25,5-10).
2. Ketubbot, os contratos de casamento; o dote.
3. Nedarim, os votos e sua anulação (Nm 30).
4. Nazir, voto de nazir (Nm 6,1-21).
5. Sota, mulher suspeita de adultério (Nm 5,11-31).
6. Gittin, as cartas de repúdio; divórcio (Dt 24,1-4).
7. Qiddushin, noivado.

IV. Ordem quarta: N eziqin, os prejuízos.


1. Baba Qamma, a primeira porta (a primeira parte do tra-
tado).
2. Baba Metsi'a, a porta mediana (a segunda parte desse tra-
tado).
3. Baba Batra, a última porta (a última parte desse tratado).
4. Sanhédrin, a corte de justiça. Uma parte do tratado é con-
sagrada ao mundo futuro (a ressurreição).
5. Makkot, os golpes. A flagelação (Dt 25,1-3). As cidades de
refúgio (Dt 19,1-13).
6. Shebu'ot, os juramentos (Lv 5,4).
7. Ediyot, os testemunhos de mestres tardios sobre o que
disseram mestres antigos.

160
8. Aboda Zara, a idolatria.
9. Abot, os Pais. Sentenças dos mestres.
10. Horayot, os ensinamentos.

V. Ordem quinta: Q odashim , coisas santas.


1. Zebahim, animais para o sacrifício (Lv 1 a 7 passim).
2. Menahot, oferendas de alimentos (Lv 2 a 7 passim).
3. Chullin, os animais mortos para o consumo comum (cf.
Dt 12,21-25).
4. Bekhorot, os primogênitos (Ex 13,2).
5. Arakhin, os votos; tarifação dos votos (Lv 27).
6. Ternura, mudança de um animal para o sacrifício (Lv
27,9-10).
7. Keritot, as supressões.
8. Meila, o sacrilégio (Lv 5,15s).
9. Tamid, o sacrifício de cada dia (Ex 29,38-42).
10. Middot, as medidas; descrição do Templo e de seu orde-
namento.
11. Qinnim, os ninhos de pássaros. A oferenda de pombos
(Lv 1,14-17; 5,7-13).

VI. Ordem sexta: Toharot, purezas.


1. Kelim, os utensílios (Lv 6,20-21).
2. Ohalot, as tendas (Lv 19,14).
3. Nega'im, as feridas, isto é, a lepra (Lv 13 a 14).
4. Para, a vaca vermelha, para a preparação da água lustrai
(Nm 19,1-10).
5. Toharot, purezas. Através desse eufemismo, são tratadas
diferentes espécies de impurezas.
6. Miqwa'ot, os banhos rituais (Lv 15,5-11).
7. Nidda, impureza da mulher (Lv 12; 15,19-30).
8. Makhshirin, o que está prescrito; o que torna objetos im-
puros (Lv 11,34-38).
9. Zabim, aqueles que sofrem de fluxo (Lv 15).
10. Tebulyom, o que tomou um banho ritual no mesmo dia,
e que permanece impuro até o fim do dia (Lv 15,5).
11. Yadaim, as mãos; o que as torna impuras.
12. üqtsin, as hastes; o que as torna impuras.

161
ÍNDICE DOS TEXTOS ESTUDADOS

A obra é apresentada de acordo com sua primeira citação neste Suplemento.

M ishná Sifré s/D t Sabá


Berakot Iv, 4 n.75 s/Dt 32,2 30b-31a n.5
Pesahim VI, 2 11.32 Pisq. 3,6 n.22 Sabá 105b n.l 5
Hagigah 1,8 n.7 s/Dt 33,10 Erubin 41a n.49
Sotah V, 2.5 n.34 Pisq. 351 n.24 Erubin 54b n.39
Sanhedrin X, 1 n.18 Erubin 62b n.43
Pesahim 112a 11.73
Ediyot VIII, 7 n.31 Midrash Tannaim
Sukkah
Abot 1,1-2 n.l s/Dt 14,1 n.63 28a n.27-28-29
Abot 1,14 n.54 s/Dt 34,7 n.26 Rosh Ha-
Abot II, 13 11.74 -Shanah 16b n.6
Abot IV, 19 n.55 Hagadá Taanit 8a n.65
Uadaim IV, 3 n.30 de Páscoa n.59 Sotah 16a n.12
Qiddushin
Tosephta Talm ude 66a n.36
Berakot 1,9 n.62 d e Jerusalém Sanhédrin
Pesahim 4, Nerakot II, 4 4d n.52- 38b-39a n.64
13-14 n .l6; 60 53 Sanhédrin 90b n.21
Ediyot 1,1 11.23 Berakot IV, 3 8a n.77 Sanhédrin 91a n.20
Sanhédrin
Berakot IX, 7 n.82
101a-b n.33
M ekilta de-Rabbi Peah IX, 7 n.3 Makkot 24a-b n.71
Ishm ael Pesahim VI, 1 n.61 Menahot 29b n.l 3
s/Ex 12,12 n.56; 67 Taanit III, Menahot 65b n.35
s/Ex 12,29 11.57 4 66c-d n.72 Temurah 14b n.38
s/Ex 20,8 11.69 Hagigah II 77b n.l 1
M egillat
Makkot II,
Taanit 12 11.40
M ekilta de-Rabbi 7 31d 11.79
Shim eon ben Yohai
D eu téron om e
s/Ex 12,12 n.66 Talm ude
s/Ex 12,29
Rabba n.81
n.58 d e Babilônia
Tanhuma Ki Tissa
Sifra Berakot 7b n.14
Berakot 21a 11.76 s/Ex 34,27 n.2
s/Lv 26,3 n.9
s/Lv 26,14 n.10 Berakot 61b n. 70; 83
Sabá 6b n.45 Tanhuma Buber Ki
s/Lv 26,46 n.25
Sabá 13b 11.41 Tissa
s/Ex 34,27 n.4

163
Pesiqta de-Rab s/Ke-gon Meg. Flávio Josefo
Kahana Taanit n.44 Antiguidades
Pisq. 24 n.80 s/Megillat XIII 10,5-6 n.37
Setarim n.46
Pesiqta Rabbati s/Abot youklu Abram son
Pisq. 514a-b n.47 Boser n.64 Sippur
s/mi-Huldah ha-Sepharim n.50
R esponsório u-Bor n.65 Frankel
d e Rab Hai Gaon Deitrãge... n.51
s/Rosh Ha-Shanah M aim ônides Heinemann
34a n.8 Responsório n.48 Prayer in
Rashi n.442 The Talmud n.78
s/Ex 12,12 n.68
s/Sotah 16a n.12 Shibboley Há-Leqet Alguns dados biográ-
s/Rolo da Torá n.14 281 n.17 ficos sobre οι; rabis
s/Megillat dtados serão encontra-
Taanit n.42 2 Macabeus dos em Strack-Stem-
7,22-23.28-29 n.19 berger, op. cit.rp. 85-129.

164
QUADRO CRONOLOGICO
Ano J u d a ísm o C ristian ism o A c o n te c im e n to s
p o lítico s
200 Simeon, 0 Justo
100 Sublevação dos Macabeus
(-167, -160)
0 Hillel, Shammai Jesus de Nazaré Tomada de Jerusalém
por Pompeu (-63)
Herodes, 0 Gde. (-40, -4);
Augusto (-37, + 14)
Yohanan ben Zakkai São Paulo Epístolas Primeira guerra judaica
Ishmael; Aqiba: Meir fim redação Evangelhos (66-74)
Destruição do Templo
por Tito (70)
100 Shimeon ben Yohai Justino Segunda guerra judaica
Yehudah, 0 Príncipe Irineu (132-135)
Orígenes
200 A Mishná
300 Constantino (306-337)
0 cristianismo torna-se
religião lícita.
Teodósio (379-385) 0
cristianism o torna-se
religião do estado
400 Talmude de Jerusalém Agostinho; Jerônimo
A Vulgata latina
500 Talmude de Babilônia Bento de Núrcia Os judeus expulsos da
Palestina
600 Gregório, 0 Grande Maomé, inicio do isla-
mismo (622)
700 João Damasceno Carlos Martel em Poin-
tiers (732)
800 Carlos Magno impera-
dor do Ocidente (800-
814)
900
Rab Hai Gaon Simeon, Início das cruzadas
1.000 0 Novo Teólogo (1096)
1.100 Rashi (1040-1105) Anselmo de Canterbury Filipe Augusto (1180-
Bernardo de Claraval 1223)
1.200 Maimônides Francisco de Assis São Luís (1226-1270)
Tomás de Aquino

166
SUMARIO

P r ó l o g o ............................................................................................................................... 7

I n t r o d u ç ã o ........................................................................................................................ 9

I a P a rte : A Torá oral é c o e r e n te ................................................... 11


A T o rá o r a l e n g l o b a a T o rá e s c r i t a ........................................................ 13
A T o rá o r a l p r e c e d e a E s c r i t u r a ; e l a é p r e f e r í v e l .......................... 17
A T o rá o r a l t r a n s m i t e a T o rá e s c r ita
e i n t e r p r e t a t o d a a T o rá .......................................................................... 23
A T o rá o r a l c u m p r e a T o rá e s c r ita ........................................................ 33
A T o rá o r a l m a n i f e s t a a u n i d a d e
e a d i v i n d a d e d e t o d a a T o rá .............................................................. 36
A T o rá o r a l, s e f o r n e c e s s á r i o , c o n t o r n a , s u p l a n t a ,
d e s e n r a í z a a T o rá e s c r i t a ....................................................................... 40
A T o rá é r e g r a d e v i d a r e v e l a d a
o r a l m e n t e a M o is é s n o S i n a i .............................................................. 43
A T o rá o r a l p o d e d i s p e n s a r a T o rá e s c r ita ........................................ 47
O c o s t u m e d o s p a i s é T o r á .......................................................................... 50
A T o rá e n s i n a a r e s s u r r e i ç ã o d o s m o r t o s .......................................... 52

2 a P a rte : A Torá oral é h istó r ic a .................................................................. 63


O s s á b io s d e Y a v n é c o n f i r m a m
a T o rá o r a l d o s f a r i s e u s ........................................................................... 68
A r e la ç ã o m e s tr e - d is c íp u lo g a r a n te
a c o n t i n u i d a d e e a n o v i d a d e d a T o rá o r a l ................................. 73
A p r o i b i ç ã o d e e s c r e v e r a T o rá o r a l é r e l a t i v a .................... ........... 95
A T o rá o r a l, m e s m o e s c r ita , p e r m a n e c e o r a l ................................ 105

3 a P a r te : A Torá oral é m a n ife s ta ................................................ ill


A s a n o t a ç õ e s e s c r ita s r e f l e t e m d i r e t a m e n t e
o t e x t o o r a l e s u a e n t o n a ç ã o ............................................................. 115
A o r a l i d a d e se a p o i a s o b r e a l í n g u a f a la d a
e a s a b e d o r i a p o p u l a r ............................................................................. 117
A s a b e d o r ia e x is te n c ia l e h is tó ric a
d o s m e s t r e s d e I s r a e l ................................................................................ 118
A s r e p e t i ç õ e s ..................................................................................................... 121
A p a l a v r a a b r e v i a d a ..................................................................................... 124
A - A E c o n o m ia d a n e g a ç ã o
o u d a p a l a v r a p r i n c i p a l ........................................................... 124
B - A e c o n o m i a d o " C h o q u e " ...................................................... 126
C - A s a l u s õ e s ........................................................................................ 127
D - O e n s i n a m e n t o im p l í c i t o
- c o n v i t e , t e s t e m u n h o ................................................................ 130
O r e c u rs o e s p o n tâ n e o às p a rá b o la s
e à s i m a g e n s p o p u l a r e s ........................................................................ 135
A im p r o v is a ç ã o ............................................................................................... 137
A v a r i e d a d e d a s v e r s õ e s o r i g i n a i s ....................................................... 139
A p l a s t i c i d a d e d a s m o n t a g e n s ................................................................ 142
A c o n c o r d â n c i a d o s t e s t e m u n h o s ....................................................... 146

B i b lio g r a f ia .................................................................................................................... 151

G lo s s á r i o ......................................................................................................................... 153

Os 63 t r a t a d o s d a M i s h n á .................................................................................... 159

í n d i c e d o s t e x t o s e s t u d a d o s ................................................................................ 163
Q u a d r o c r o n o l ó g i c o ................................................................................................. 165

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