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PAULUS
Título original
La Torá orale des pharisiens:
textes de la tradition d'lsrael.
© Editions du Cerf, Paris
Lenhardt, Pierre
A Torá oral dos fariseus: textos da tradição de Israel / Pierre Lenhardt.
Matthieu Collin; tradução Nadyr de Sales Penteado. - São Paulo: Paulus, 1997. -
Coleção Documentos do mundo da Bíblia.
Bibliografia
ISBN 978-85-349-0643-2
1. Fariseus 2. Judaísmo - Relações - Cristianismo 3. Tradição oral
I. Collin, Matthieu. II. Título. III. série
95-4698 CDD-222.1
1a edição, 1997
2areimpressão, 2018
© PAULUS - 1997
FSC· C108975
ISBN 978-85-349-0643-2
TERRA INCOGNITA, lê-se nos mapas-múndi antigos: país
inexplorado. A literatura rabínica é um vasto mundo desconhecido
da quase totalidade dos cristãos ...
O estudo atento deste Documento dará ao leitor não somente
melhor conhecimento do meio em que viveram outrora Jesus de
Nazaré e seus discípulos, Paulo de Tarso e muitos outros; mas levará
também a uma reflexão teológica renovada sobre os vínculos que
unem Escritura e Tradição, no catolicismo. Toda a nossa concepção
da Igreja pode ser enriquecida por este trabalho de P. Lenhardt e M.
Collin; trata-se de uma colaboração considerável cuja importância
ainda não avaliamos totalmente.
Com muita frequência, permanecemos, nós, cristãos, na
ignorância do que é o judaísmo. Ora, como é possível respeitar e amar
o que não se conhece? Infelizmente, a ignorância gera inverdades
que alimentam o ódio... Que este Documento possa contribuir para
que a Tradição judaica venha a ser melhor conhecida e amada.
Hugues Cousin
PROLOGO
I
Sabe-se que, na época de Jesus, os judeus pertenciam a grupos
religiosos diversos e, às vezes, opostos; nesse caso estavam, sobre-
tudo, os fariseus e os saduceus.
Há, na teologia farisaica, um ponto fundamental, cuja impor-
tância positiva ultrapassa a controvérsia com os saduceus ou qual-
quer outro grupo: é a existência da Tradição de Israel, recebida e
transmitida como Palavra de Deus, a que os fariseus dão o nome de
Torá oral. É uma pena que esse ponto seja, frequentemente, desco-
nhecido em meio não judeu e por muitos cristãos.
Da mesma forma, o Evangelho, antes de ser consignado por
escrito, foi anunciado e pregado (ICor 15 1,11). Os fiéis acolheram
esse Evangelho oral como Palavra de Deus (lTs 2,13). Como é pos-
sível, então, que o Evangelho tenha sido anunciado como Palavra
de Deus, como Torá, por judeus a judeus? Não foi por que esses
judeus tinham uma visão da Torá, que tornava possível e compre-
ensível esse fato?
Não basta responder sim a essa pergunta; vale a pena dizer
por quê; e por que razão se deve valorizar o vínculo entre o Evan-
gelho e a Torá oral dos fariseus. É o propósito do n. 58 da coleção
Cadernos bíblicos, da Paulus (Evangelho e Tradição de Israel), cader-
no dedicado à descrição desse vínculo fundador e à exploração das
consequências para a vida cristã.
Esse caderno, escrito num a perspectiva de teologia cristã,
apoia-se sobre inúmeros textos rabínicos, discutidos e explicados
em função de sua pertinência para melhor compreensão do Novo
Testamento e aprofundamento da fé cristã. Mas os textos rabínicos
têm, com toda a evidência, sua razão de ser, seu sentido próprio,
independentemente das ressonâncias que suscitam ou deveríam
suscitar em meio cristão.11
7
É para melhor manifestar a riqueza própria da Tradição de
Israel que os autores desse caderno, alunos de mestres judeus da
Universidade Hebraica de Jerusalém, propõem também o presente
Documento. Os textos que nele são apresentados serão escutados
e explicados, em primeiro lugar, e, principalmente, pelo que sig-
nificam em seu contexto próprio. No entanto, seria inútil e errado
querer abstrair da fé cristã, que é a dos autores e da maioria dos
leitores do Documento. Assim, permitimo-nos aludir a textos cris-
tãos, e mesmo citá-los e discuti-los em todas as ocasiões em que isso
pareceu necessário. Agindo assim, não se inova, aliás, de modo al-
gum, em relação ao que mestres judeus praticam já há muito tem-
po, valorizando o que a Tradição cristã, Novo Testamento e Padres
da Igreja fornecem como informação sobre o judaísmo dos primei-
ros séculos de nossa era; é o caso, por exemplo, de E. Urbach e de
J. Heinemann.
O caderno e seu Documento propõem, assim, dois encaminha-
mentos que se completam m utuamente.
8
INTRODUÇÃO
9
tempos e as circunstâncias, o que já existe na fé e na vida do povo.
Essas formulações permanecem orais, expressas em uma "textua-
lidade oral" que se distingue da "escrituralidade" da Escritura pela
proibição relativa de escrever a Torá oral. As anotações escritas em
matéria de Torá oral não passam de lembretes.
Na terceira parte, intitulada "A Torá oral é manifesta", apre-
sentaremos textos que revelam a vivência da oralidade da Tradição.
10
I a PARTE
A TORÁ ORAL É COERENTE
Esta primeira parte tem por fim mostrar uma coerência, não
um sistema.1 Os títulos que demos para balizar o estudo não são,
intencionalmente, numerados. Precedem os textos que, estes sim,
por comodidade, são numerados. Não pretendem comandar a in-
terpretação desses textos, mas apenas facilitar o acesso a eles. A for-
mulação dos títulos é, com frequência, tirada dos textos ou inspira-
da por eles. O leitor, por si mesmo, vai perceber isso. Dependendo
dos casos e da dificuldade dos textos, a explicação e os comentários
precedem ou seguem os textos. Estes são apresentados num a tra-
dução tão literal quanto possível, com referências e paráfrases indi-
cadas entre parênteses.
13
senta um resumo de tradições relativas a todos os campos da vida
judaica. Certos tratados de Mishná dão enunciados importantes da
fé judaica, por exemplo, da fé na ressurreição dos mortos. Um tra-
tado distingue-se dos outros por seu caráter sapiencial e suas pre-
ocupações históricas. É o tratado ״Abot" ("Pais"), que apresenta,
efetivamente os Pais, isto é, os mestres da Torá,2 sucedendo-se a
partir de Moisés, o primeiro profeta e mestre. Vejamos o começo
dessa Mishná Abot.
נOs mestres íariseus, que transmitem a Torá de Deus, Torá de Moisés (Is 7,6.10),
são chamados na Mishná (Ediyot 1,4) "Pais do mundo". No contexto da oração, os
patriarcas Abraão, Isaac e Jacó é que são chamados Pais. Também é dos patriarcas que
se trata quando, nos textos rabínicos, aparece a distinção entre o "mérito dos Pais" e a
"retribuição dos mandamentos".
5 Abet de-Rabbi Nathan, versões A e B, cap. 1 "Leçons des Pêres du monde", tradução
francesa de E. Smilevitch, coleção Les Dix Paroles, Paris: Verdier, 1983. Esta versão
interessante é estudada no Caderno Bíblico n. 51, p. 30.
14
Trata-se da Torá simplesmente, não da Torá escrita e da Torá
oral, ao passo que o texto subentende, como veremos, que o tema
é, antes de tudo, a Torá oral.
Josué e os Anciãos precedem os Profetas. Isso, em linhas ge-
rais, conforma-se ao que está escrito no Pentateuco; no entanto,
não teremos a preocupação de justificar essa coerência através de
citações da Escritura. O que conta é a visão de conjunto, resumida
de maneira radical. Depois dos Profetas, cuja atuação é reconhecida
até a volta do Exílio, passa-se aos "homens da Grande Assembléia";
esta procede de Esdras, Neemias e seus companheiros e correspon-
de ao Conselho dos Anciãos, mencionado em 1 Macabeus (12,6.35;
14,19.28; cf. Eclo 7,7), e acabará por se tom ar o Sinédrio da épo-
ca romana, mencionado no Novo Testamento. O resumo despreza
todos os pormenores anedóticos, para ensinar o essencial: há uma
ligação histórica, real e não mítica, entre Moisés, o primeiro mes-
tre - o mestre de todos, aquele a quem os judeus chamam "Moisés,
nosso Mestre" -, e os antepassados dos mestres fariseus que apare-
cem na continuação da Mishná, depois de Simeão, o Justo.
O laconismo significa a oralidade da Torá oral, de várias ma-
neiras.
• O resumo, por si só, é mais fácil de guardar na memória que
os pormenores.
• A oralidade supõe conhecidos os pormenores, as introduções
e os complementos que serão dados verbalmente pelo mestre, pai
ou irmão do destinatário da mensagem; por exemplo, que Deus
existe e que ele deu sua Torá no Sinai, segundo o que está escrito
no livro do Êxodo etc.
• O resumo que insiste sobre a historicidade da transmissão da
Torá supõe que se trate, antes de tudo, da transmissão da Tradição
propriamente dita, a Torá oral. Sem dúvida - haveremos de ver
-, a Torá oral dos fariseus sabe e ensina que a própria Escritura é
Tradição e é transmitida por Tradição.4 Mas aqui, a Mishná, por sua
concisão, insiste mais sobre a corrente de transmissão do que sobre
a Torá transmitida. Isso só será entendido se a intenção principal for
a de justificar a autenticidade da Torá oral, dependendo, de modo
muito especial, mais do que a Torá escrita, da legitimidade da su-
cessão dos mestres.
4 T. B. Niddash 45a. Os discípulos do Rabbi Aqiba dizem que "toda a Torá é regra de
Moisés desde o Sinai" (cf. adiante o comentário sobre o texto n. 13).
15
Por mais lacônico que seja, esse início da Mishná Abot nos en-
sina um vocabulário e uma teologia que merecem, também eles,
algumas explicações.
• O vocabulário da recepção/transmissão (Qabbalah / Massorah)
é o da Tradição oral dos fariseus. Ele se aplica, antes de tudo, à
recepção/transmissão dessa Torá oral mesma, e aparece, com mui-
ta frequência, na literatura rabínica. Convém observar que São
Paulo utiliza esse vocabulário para transmitir a Tradição que rece-
beu quanto à ceia do Senhor (ICor 11,23) e quanto ao Evangelho
(ICor 15,1 ss). Deste último contexto, decorre que Paulo emprega o
vacabulário farisaico da recepção/transmissão para "anunciar" pre-
cisamente o Evangelho oral que ele "prega", tanto ele quanto os
outros apóstolos (cf. Cadernos bíblicos n. 51, p. 65).
• A primeira Mishná, a que chega às três coisas ditas pelos ho-
mens da Grande Assembléia, parte da Torá recebida - poderiamos
dizer "objetiva" - independente, em sua origem, de Israel e de toda
a humanidade. Mas essa Torá é recebida para ser transmitida por
homens a outros homens. Sem dúvida, é a mesma Torá que, re-
cebida, vai ser transmitida, flá, porém, uma passagem obrigatória
através da subjetividade do homem que recebe e transmite. Essa
passagem pode ser mínima, quando se trata da Torá escrita; pode
consistir apenas em um gesto da mão que transmite o texto escrito,
ou no esforço do olho que lê ou da voz que faz os ouvintes escuta-
rem o texto. Essa passagem mínima já é, se for consciente, a Torá
oral, como veremos. Deve-se perceber, para além desse mínimo,
que a transmissão por meio de homens exige, em nome da fideli-
dade, uma flexibilidade inovadora que é, de modo muito especial,
o fato da Torá oral. É assim que, muitos séculos depois de Moisés,
seus sucessores ensinam três coisas que provavelmente não foram
ditas de forma literal por Moisés, mas que são ensinadas como pro-
cedentes dele e que são Torá. Dessas três coisas, que mereceríam ser
estudadas pormenorizadamente, conservemos apenas a prescrição
central: "Suscitai muitos discípulos". Tal ensinamento supõe que a
Torá seja, antes de tudo, a Torá oral. É mesmo necessário ter dis-
cípulos, para transmitir só a Torá escrita? A Torá escrita terá valor
para Israel, se não for lida e interpretada - o que depende da orali-
dade e, segundo os fariseus, da oralidade da Torá oral?
• A segunda Mishná, a que apresenta as três coisas ditas por
Simeão, o Justo, revela a oralidade de maneira ainda mais direta.
16
A Torá, sobre a qual se diz aqui que se desenvolve em culto
e ações recíprocas inspiradas pelo amor, é sem dúvida a mesma
Torá, recebida e transmitida, de que se trata na Mishná anterior.
Mas essa Torá é apresentada como a Torá "subjetiva", vivida pelos
homens e mulheres de Israel, individualmente e em comunidade.
Ela deve ser vivida em duas direções:
- Uma direção vertical, pode-se dizer, que é a do culto, do
serviço divino nos sacrifícios realizados no Templo e na oração do
coração;
- Uma direção horizontal, das relações sociais realizadas na
reciprocidade do amor ao próximo.
Evidentemente, trata-se da vivência de toda a Torá, de uma
Torá atualizada que se inspira nos ensinamentos recebidos da Torá
objetiva, escrita ou oral. Essa Torá vivida é oral, não necessária-
mente porque pronuncia palavras, mas porque é a Torá ativa para
aquém da Escritura que ela interroga, e para além da Escritura que
ela cumpre na exegese e na ação (cf. textos n. 9ss; Cadernos bíbli-
cos n. 51, p. 28ss).
Embora esse primeiro texto não mencione a Torá oral nem
tenha tido, provavelmente, a intenção de escondê-la sob uma for-
mulação calculada, revela, por seu laconismo radical e sua limpi-
dez, a existência de uma Torá oral que engloba a Torá escrita; o que
torna possível que a Torá simplesmente seja recebida, transmitida
e vivida.
17
A Escritura é objeto de pesquisa (Midrash), cuja intensidade só
se compreende se é realmente Deus que se procura encontrar em
sua Palavra.
Os mestres fariseus exercem essa atividade, divulgam-na no
meio do povo e a mantêm pela liturgia sinagogal. Para esses mes-
tres, a exegese, o Midrash, seja de Halaca, seja de Hagadá, faz parte
da Torá oral. A reorganização da Torá oral, que se traduz, em primei-
ro lugar, pela redação da Mishná, como vimos, comporta também
a reunião mais ou menos sistemática de coletâneas exegéticas. As
mais antigas dessas coletâneas e as tradições mais antigas que elas
reúnem distinguem-se pelo laconismo, pelo estilo alusivo e outros
traços de sua oralidade, que destacaremos na terceira parte. Cole-
tâneas mais recentes, que podem ter sido compostas na Terra de Is-
rael, por volta dos séculos VII e VIII, sem dúvida, transmitem ainda
tradições antigas e algumas formulações arcaicas, que atestam sua
oralidade original. Mas elas refazem também por escrito, num estilo
que já é um estilo escrito, o dado imemorial que atualizam.
O texto que estudaremos agora é tirado do Midrash Tanhuma,
na versão corrente dessa coletânea. A redação é tardia, escrita a
partir de elementos antigos. Ela já não respeita com exatidão os
nomes dos mestres. Dá, sem distinguir o novo do antigo, as atuali-
zações exegéticas que lhe parecem importantes.
A formulação tardia tem a vantagem de dar a conhecer pres-
supostos fundamentais de que viviam as gerações anteriores, com
certeza, sem necessidade de explicá-los.
18
E, d e fato, até agora, a coisa continua em
suspenso. O Santo, b en d ito seja, disse às
nações: "Vós dizeis que sois m eus filhos;
não sei. Na realidade, aqueles a quem são
confiados os m eu s m istérios, esses são
m eus filhos".
D o que se trata? Trata-se da M ishná que
foi dada oralm ente e, tu d o isso, cabe a ti
tirar [da Escritura] por interpretação".
O Rabbi Yehudah bar Shalom disse: "O
Santo, b en d ito seja, disse a Moisés: 'Que
pedes? Que a M ishná seja feita por escri-
to? Mas, então, o que distinguiria Israel
das nações? Como foi d ito (Os 8,12): A in -
da q u e eu lh e tiv e sse escrito um g ra n d e
n ú m ero d e en sin a m en to s da m in h a Torá,
en tã o ce rta m e n te ela seria considerada
com o algo estranho. D á-lhes, pois, a Escri-
tura* por escrito e a M ishná por transm is-
são oral'".
O Midrash, homilético, explica o sentido dos versículos-chave
da Escritura, segundo a ordem das perícopes lidas nos Sabás e nas
festas, na sinagoga.
Chegando a Ex 34,27, a explicação começa, pelo que se chama
"abertura";5 pela abertura do sentido das palavras: "Escreve estas
palavras". A abertura se faz recorrendo a Os 8,12 que, ouvido com
atenção, sugere outra coisa, que não a que é percebida na primeira
escuta.
Ao ser ouvido pela primeira vez, o versículo diz, sobretudo, o
seguinte: “É inútil escrever-lhe o grande número de ensinamentos
da minha Torá; esse grande número será considerado como algo
estranho" (cf. Bíblia de Jerusalém). O Senhor se queixa de que essa
Torá, embora largamente divulgada por escrito, permanece estra-
nha a Israel.
Mas é possível, com um pouco de imaginação - e devemos
tê-la se, por amor, nos interessarmos por todos os sentidos que a
Palavra de Deus pode ter -, ouvir outro tom na queixa do Senhor.
19
A modalidade do verbo hebraico, ao invés de significar: "É inútil es-
crever", pode querer dizer: "Se eu escrevesse, se eu tivesse escrito".
Temos então a interpretação-tradução que demos no texto citado
integralmente (Uma tradução é sempre uma interpretação).
Ouvido e entendido assim, Oseias abre o sentido de Ex 34,27:
"Escreve estas palavras". As palavras que são escritas, a Torá escrita,
são apenas uma parte, a parte minoritária, do conjunto das palavras
que foram ditas.
Na terceira parte, voltaremos às características manifestas da
oralidade da Torá oral. Temos uma, na maneira pela qual a exegese
rabínica valoriza a entonação na leitura e na escuta de um versí-
culo.
Porém, o que nos interessa aqui é a teologia da oralidade. A
cena descrita em nome de Rabbi Yehudah bar Shalom ressalta uma
afirmação capital: no início, todas as palavras foram ditas oralmen-
te. É em uma segunda fase que uma parte dessas palavras, a Escri-
tura (miqra) foi posta por escrito. Assim, a Torá oral precede crono-
logicamente a Torá escrita.
É claríssimo que a anterioridade cronológica decorre de uma
anterioridade ontológica: o que atesta a especificidade da aliança
de Deus com seus filhos é a Torá oral. O que está escrito só pode
ser secundário e posterior. Evidentemente, a relativização não pode
comportar nenhum a desvalorização da Torá escrita. Esta é ordena-
da à Torá oral, dependente desta última, sem lhe ser subordinada.
A abertura, cujo desenvolvimento é atribuído ao Rabbi Yehu-
dah bar Shalom (fim do séc. IV), é tardia. A menção desse mestre
no Midrash Tanhuma, como dissemos, não oferece nenhum a garan-
tia. Ela confirma somente o fim do século IV, se tanto, como termi-
nus a quo. Essa época já podería ser aquela em que se reage contra
os cristãos que se apoderaram da Escritura e se consideram o novo
Israel, e mesmo o verdadeiro Israel.
É a polêmica tardia com o cristianismo que impele o judaísmo,
nesse texto, a valorizar a oralidade da Torá. Tem-se afirmado com
coerência que a anterioridade cronológica da Torá oral é a condição
de sua prioridade ontológica.
O Talmude de Jerusalém, num conjunto de redação anterior ao
Midrash Tanhuma, vai nos fornecer uma precisão importante.
20
3. Talmude de Jerusalém Peah II, 6 17a
I .......ג
O Rabbi Haggai em n om e do Rabbi She-
m u el bar Nahman: "Foram ditas palavras
oralm ente e outras foram ditas por es-
crito. Não saberiam os quais são as prefe-
ríveis se não estivesse escrito (Ex 34,27):
* Lit. pela boca P orqu e fo i em virtu de* d esta s palavras
q u e fiz aliança con tigo e com Israel. Assim
se en ten d e que as palavras orais são pre-
feríveis".
f ׳O fato de o oral preceder o escrito é uma evidência da qual a própria Escritura é
testemunha. É de admirar que alguns eruditos se esforcem para provar, pela Escritura,
a antiguidade e a anterioridade da Tradição. Na realidade, a evidência não tem de
ser provada, mas manifestada através de exemplos, quando é possível. Sem dúvida,
a Escritura pode provar utilmente, não a anterioridade da Torá oral como tal, mas a
antiguidade desta ou daquela Tradição, no interior da Torá oral.
21
uma preferência inspirada pelo amor. É a Torá oral que permite a
Deus reconhecer seus filhos que conhecem seus mistérios. Em uma
versão paralela do Midrash Tanhuma (versão corrente), encontra-
mos as linhas que vamos ler, no fim da passagem que corresponde
ao texto n. 2.
22
distinga dos outros povos. Porque é oral, a Torá atesta, pela separa-
ção conveniente, a própria identidade de Israel.7
W T. B. Sabá 30 b-31 a
1.. .
Nossos m estres ensinaram: "Um hom em
deveria sem pre ser h u m ild e e afável com o
Hillel e nunca ser intransigente e im pa-
cien te com o Sham m ai [...]"־
A conteceu que um pagão se apresen-
tou d ia n te d e S h am m ai e p ergu n tou :
7 A Torá, sobretudo a Torá oral, é a Torá de Israel, do povo separado das nações. Em
princípio, é proibido ensinar a Torá, principalmente a Torá oral, aos não-judeus. Mas
esse princípio conhece todas as exceções exigidas pelo papel de testemunha de Deus,
confiado a Israel.
23
* plural da palavra "Quantas Torot* tendes?". Ele respon-
Torá deu: "Duas: a Torá escrita e a Torá oral".
Ele disse: "Quanto à Torá escrita, eu creio
em ti; quanto à Torá oral, não creio. Faz de
m im um prosélito, sob a condição de m e
ensinares apenas a Torá escrita". Sham-
m ai enfureceu-se contra ele e, irado, ex-
pulsou-o. O pagão apresentou-se, então,
d iante de Hillel. Este o tornou prosélito.
No prim eiro dia, H illel lh e ensinou: "Ale-
* primeiras letras do ph, beth, gim el, daleth".* No dia seguinte,
alfabeto hebraico apresentou-lhe as coisas ao contrário. Dis-
se o pagão: "Mas on tem não m e disseste
isso!". H illel lh e disse então: "Portanto, tu
confias em m im ? Confia tam bém no que
diz respeito à Torá oral". De novo aconte-
ceu que um pagão se apresentou d iante de
Sham m ai e disse: "Faz de m im um prosé-
lito, sob a condição de m e ensinares toda a
Torá, enquanto m e m an ten ho sobre um a
perna só". Sham m ai exp u lsou -o com um
bastão de agrim ensura que tinha na mão.
Ele se apresentou d iante de Hillel. Este o
tornou prosélito. H illel lhe disse: "O que
é odioso para ti, não o faças a teu próxi-
mo; isto é toda a Torá e o resto não passa
de com entário; vai e estuda [...]". Algum
tem p o depois, esses pagãos que se tinham
tornado prosélitos encontraram -se em
* a comunidade de um m esm o lugar e disseram: "A intransi-
Israel na medida em
que ela introduz no gência im p acien te de Sham m ai quis nos
mundo futuro expulsar do m undo*, m as a h u m ild e paci-
ência de H illel nos aproxim ou e conduziu
* Shekinah sob as asas da Presença Divina*".
8 Precisamente porque é humilde, Hillel está na linha de seu mestre Moisés. Aliás, ele
é apresentado como um novo Moisés. Cf. Sifre Deuteronômio s/ Dt 34,7 Pisq 357, p.
429; Midrash Tannaim s/ Dt 34,7 = Texto n. 26.
24
à vida de Israel, quanto à prática e à fé, surgem assim como por aca-
so. O todo é comparável a um oceano, a cuja superfície emergem,
aqui e ali, pontas de iceberg. É preciso alegrar-se com essas preciosas
emergências. Ver, sobretudo, que há um iceberg sob a emergência e,
principalmente, jamais dizer que um iceberg não existe porque não
emerge no lugar e no tempo em que se esperava. Na verdade, ele
pode emergir em outro local e mais tarde, sem perder o interesse
nem a pertinência quanto ao lugar e ao tempo que são do interes-
se do crente e do pesquisador, por exemplo no que diz respeito ao
Novo Testamento.
Como isso foi esclarecido no início deste Documento, não te-
mos agora a intenção de determinar o tempo em que foi formulada
a teologia farisaica da oralidade, o que será estudado na segun-
da parte. No entanto, destaquemos desde logo que os termos Torá
oral/Torá escrita não aparecem em Flávio Josefo, nem no Novo Tes-
tamento. Convém, pois, ter certa prudência e não atribuir, apres-
sadamente, a Hillel e a Shammai formulações que talvez ainda não
tivessem sido aceitas no tempo deles. Quanto à teologia que se ex-
prime nessas historietas, não vemos qualquer razão plausível para
deixar de atribuí-la a Hillel.
Notemos, em primeiro lugar, que as perguntas feitas pelos
candidatos à conversão não são inocentes . Supõem, ambas, um
contexto de divergência entre fariseus e saduceus. Por que se per-
guntaria: "Quantas Torot tendes?" se não se soubesse que os fari-
seus ensinam que há duas Torot, o que é flagrantemente contrário à
teologia saduceia? Quanto à segunda historieta, é menos evidente,
mas haveremos de ver que se trata também da aceitação da postura
farisaica por parte do candidato.
A primeira historieta ressalta que a Escritura não pode dispen-
sar um mínimo de oralidade. Para que a Palavra de Deus escrita seja
entendida, é necessário lê-la e, antes de tudo, aprender a lê-la. Ora,
a leitura, que supõe o conhecimento do alfabeto, só poderá ser feita
se houver um mestre competente e digno de confiança. Isso quer
dizer que a Torá escrita é transmitida pela Torá oral. De fato, como
poderia um mestre conduzir à Palavra de Deus escrita, se a sua Pa-
lavra oral, por mais elementar que seja, não for o início da Palavra
de Deus? Por outro lado, seria concebível que a Palavra de Deus
escrita, a partir do momento em que é lida, deixe de ser Palavra de
25
Deus? O meio oral que transmite e que recebe a Escritura é, pois,
desde o contato com a Escritura, Palavra de Deus.
Sem dúvida, é possível, hoje, e já na época de Hillel, ler a Es-
critura e entender alguma coisa, sem recorrer de modo nenhum à
Torá oral, instruindo-se, por exemplo, junto a um herege ou a um
pagão competente. Mas de quem terão, esses "mestres", recebido
sua "competência", senão, definitivamente, de um mestre respon-
sável da Torá oral? E se se trata de um saduceu de boa-fé, que en-
sina a Escritura como Palavra de Deus, quais serão as condições de
seu ensinamento? Se ele pretende que esse ensinamento é autên-
tico, sem ter, por isso, condição de transmissão da Torá oral, como
pode querer transmitir a Escritura, a partir do momento que ela, na
medida que é ensinada, deixa de ser Escritura?
Tudo isso está compreendido, subentendido na primeira histo-
rieta, de louvor à paciência de Hillel. Na realidade, deve-se mais ad-
mirar o laconismo de seu ensinamento, que mostra que a Escritura
só pode ser conhecida por uma Tradição digna de confiança. Essa
Tradição transmite a Escritura e a interpreta, a começar pelo nível
mais elementar, o da Escritura como objeto: sinais escritos sobre
um suporte material, alfabeto etc. Torá e confiança andam juntas.
Ora, a confiança supõe um meio vivo, uma relação de mestre para
discípulo. A oralidade deve estender-se para aquém e para além das
palavras pronunciadas e transmitidas oralmente. É uma realidade
vivida em comunidade, entre pessoas que ela põe em contato atra-
vés de uma palavra reconhecida como Palavra de Deus, pronuncia-
da ou não, a partir da Escritura ou com referência a esta.
Se restasse algum problema em admitir a legitimidade da Torá
oral, que transmite a Torá escrita e que interpreta essa mesma Torá
escrita, seria preciso lembrar o que vimos acima (cf. textos n. 1-4),
a respeito da anterioridade cronológica e ontológica da Torá oral.
Na verdade, é insuficiente dizer que a Torá escrita vem depois da
Torá oral; deve-se dizer que a Torá escrita provém da Torá oral. Se a
Torá escrita recebe tanto da Torá oral, por que não admitir que ela
só pode dar o que a Torá oral lhe confiou e quer reencontrar nela,
no momento da interpretação e da atualização?
A segunda historieta, como a primeira, apela para os recur-
sos da sabedoria popular e suas imagens. Aqui está um candidato
apressado. Por ironia, ele não sabe que sua pressa ousada corres-
ponde exatamente à possibilidade farisaica de resumir toda a Torá
26
em poucas palavras, e com rapidez. De fato, a Torá se resume na
condição de compreender e estudar; o que ordena Hillel: "Vá e es-
tude!״.
Para um fariseu, a expressão "toda a Torá" significa: Torá es-
crita e Torá oral. É a de Paulo, em Gaiatas (5,14). Essa fórmula
se distingue, com certeza, de "a Torá e os Profetas" ou "a Lei e os
Profetas" (Mt 7,12; 22,40). Na verdade, porém, essas fórmulas dis-
tintas correspondem a uma mesma realidade quanto ao conteúdo.
"A Torá e os Profetas" significa, sem dúvida, a Escritura, e toda a
Escritura. Para os fariseus, contudo, a Escritura, em parte ou em
sua totalidade, só pode ser entendida na e pela Torá oral. "Toda a
Torá", como "a Torá e os Profetas", significa mesmo a totalidade da
Revelação: Escritura e Tradição. Certamente, o candidato apressado
ainda não sabe disso e não tem, de início, nenhum a intenção de
saber. Ao contrário do primeiro candidato, que se opõe, insolente,
aos fariseus, recusando a Torá oral, o segundo candidato, igualmen-
te atrevido, coloca-se do lado dos fariseus, porque supõe que eles
possam resumir-lhe com rapidez a Torá inteira.
Admiremos, de novo, o laconismo de Hillel que, não apenas
resume toda a Torá em poucas palavras, mas afirma, por sua res-
posta, que a Torá pode ser resumida. O que ele não diz, mas está
implícito, é que a Torá oral precisamente pode resumir toda Torá. A
regra de ouro: "Não faças aos outros o que é odioso para ti", expres-
sa em aramaico, sem nenhum a referência à Escritura é, antes de
tudo, com toda a evidência, um resumo da Torá oral. Como a regra
de ouro de Jesus em Mt 7,12, dita positivamente, "Tudo aquilo que
quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles", sem citação
escriturística, o resumo de Hillel supõe uma teologia da Torá oral
que tem o poder de resumir, em vista da atualização exigida pela
comunidade, segundo as circunstâncias. Para tornar-se prosélito e
entrar na aliança, a melhor atualização é resumir tudo no amor do
próximo.
Em outros casos, tudo será resumido no amor de Deus e do
próximo e é possível apoiar o resumo sobre a Escritura: o amor de
Deus, no início do Shema Israel (Dt 6 ,4 5 ;)־o amor do próximo, em
um versículo do Levítico (19,18), como faz Jesus nos Evangelhos
(Mc 12,29-31 e paralelos). Em outras circunstâncias e em face de
outras prioridades, poder-se-á dizer que toda a Torá fala da ressur-
reição (cf, texto n. 22).
27
Pode-se resumir toda a Torá, porque precisamente a Torá, gra-
ças à Torá oral, é uma plenitude coerente e dinâmica. Por meio da
Torá oral, da oralidade vivida por homens e mulheres em cada épo-
ca da história de Israel, a Torá pode ser reconhecida como completa
e perfeita (cf. texto n. 35).
O texto que acabamos de ler apresentou-nos um ensinamento
conhecido: o do amor do próximo. Sem dúvida, devemos ter feito
o esforço de observar que esse ensinamento posto na boca de Hillel
manifestava uma teologia farisaica e pressupunha a existência de
uma Torá oral. Para explicar o aparecimento desse preceito na boca
de Hillel, não nos podemos contentar em falar da manifestação de
uma cultura universal. O fato de que a Tradição põe a regra de ouro
na boca de Hillel, assim como na boca de Jesus, pode e deve signifi-
car, antes de tudo, a menos que haja prova em contrário, que Hillel
e Jesus realmente ensinaram a regra de ouro. Não são, necessária-
mente, autênticas só as palavras dos mestres que se opõem às idéias
recebidas no meio e no tempo deles, sejam elas internacionais ou
não.
Quanto a Hillel, a regra de ouro não é ensinada, por assim di-
zer, por si mesma; é ensinada porque permite resumir toda a Torá, o
que ensina que a Torá é interpretada pela Torá oral. Aqui, portanto,
não se trata de um ensinamento internacional de atribuição duvi-
dosa, mas, sim, especificamente farisaico, posto na boca de Hillel.
Na segunda parte, discutiremos a historicidade dessa atribuição a
Hillel. Contentemo-nos, no caso, de valorizar a especificidade deste
ensinamento que se apoia na Torá oral.
Para reforçar este ponto, isto é, que independentemente do
conteúdo a Torá oral transmite e interpreta a Torá escrita, parece-
-nos útil apresentar dois textos concernentes ao toque do chifre de
carneiro (shofar), tradicional na liturgia do Ano Novo judaico (Rosh
Ha-Shanah).
A Escritura, considerada em si mesma, independentemente da
Tradição, não faz senão alusões insignificantes a esse rito: Lv 23,24:
"No sétimo mês, o primeiro dia do mês será para vós dia de re-
pouso, comemoração com som de trombeta, santa assembléia". Nm
29,1: "No sétimo mês, no primeiro dia do mês, tereis uma assem-
bleia santa; não fareis nenhum a obra servil. Será para vós um dia
de toques de trombeta".
28
A Tradição, que conhece e organiza com pormenores o toque
do shofar, não hesita em fazer falar o próprio Deus, pela boca deste
ou daquele mestre, de modo a exprimir a convicção de que o rito é
de condição revelada.
Vejamos o texto tradicional que passa revista a certo número
de ritos da Páscoa, de Pentecostes, da festa das Tendas e do Rosh Ha-
-Shanah.
6. T. B. Rosh Ha-Shanah 16 b
1.,Ϊ
Foi ensinado: o Rabbi Yehudah disse em
n om e do Rabbi Aqiba: "Por que razão a
Torá disse: ׳־Trazei um feixe na Páscoa?׳
Porque a Páscoa é o tem p o da colheita.
O Santo, b en d ito seja, disse: ׳Trazei dian-
te de m im um feixe, na Páscoa, d e m odo
que a colheita dos cam pos vos seja aben-
çoada'. E por que disse a Torá: 'Trazei dois
* outro nome de pães na Conclusão*?'. Porque a Conclusão
Pentecostes é o tem p o dos frutos das árvores. O Santo,
(Dt 16,13) b en d ito seja, disse: ׳Trazei d iante de m im
dois pães na Conclusão, d e m od o que os
frutos das árvores vos sejam b en d itos׳. E
por que disse a Torá: 'Fazei um libação de
* a festa das Tendas (lRs água na Festa*?׳. O Santo, bendito seja,
8,2; Dt 16,13; cf, Jo 7,37) disse: ׳Fazei d iante d e m im um a libação
de água na Festa, de m od o que as chu-
vas do ano vos sejam abençoadas, e direis
d iante d e m im no R osh H a-Shanah as Re-
* chifre de carneiro alezas, as M em órias e os Shofars*, as Rea-
(Ex 19,16; 20,18) lezas para que m e estabeleçais Rei sobre
vós, as M em órias para que vossa m em ória
suba d iante d e m im para o bem; e por que
m eio? Pelo Shofaf".
O Rabbi Abbahu disse: "Por que tocam
um sh ofar d e carneiro?'׳. O Santo, bendi-
to seja, disse: "Tocai d iante d e m im um
sh ofar de carneiro, para que eu m e lem bre
* termo técnico que em vosso favor da ligadura* d e Isaac, filho
designa o sacrifício de de Abraão, e que eu o atribua a vós com o
Isaac (Gn 22,29); como
Isaac, Jesus foi atado se vos tivésseis atado vós m esm os diante
(Jo 18,12-24) d e mim".
29
O feixe da Páscoa (Lv 23,15), os pães de Pentecostes (Lv 23,17)
são previstos pela Escritura. Porém, as razões do rito não são indi-
cadas por ela.
A libação de água na festa das Tendas não é mencionada na Es-
critura, e ainda menos sua razão de ser. Quanto a Rosh Ha-Shanah,
a Escritura fala de toque, mas não diz que o toque é de chifre de
carneiro (cf. Lv 23,24).
Há lacunas, portanto, e a Torá oral vem preenchê-las. Ela dá
as razões que a Escritura não dá, fazendo falar o próprio Deus. Isto
mostra bem que a Torá oral é Palavra de Deus; ela interpreta a Es-
critura quando esta diz alguma coisa, e fala em nome de Deus, só
ela, quando a Escritura não diz nada.
Essas ausências ou insuficiências da Escritura são uma dificul-
dade muito conhecida, atestada pela Mishná na Tradição anônima
que se segue:
9 Seita judaica que, a partir do século VIII, opõe-se às autoridades rabínicas e só admite
como Torá a Escritura. Atualmente, restam no mundo apenas algumas centenas de
caraítas, quase todos reunidos em Israel.
30
8. Responso de Rab Hai Gaon s/ Rosh Ha-Shanah 34 a
Otzar ha-Geonim p. 60-62
MISHNÁ 4,9: A ordem dos toques é a se-
guinte: três vezes três toques; a duração
do toq u e longo d eve ser a d e três toques
repicados; a duração do toq u e repicado
d eve ser a de três toques entrecortados
[···]
GEMARA 34 a: O Rabbi Abbahu in stitu iu
em Cesareia que h ou vesse um toq u e lon-
go, três toques entrecortados, um toque
repicado e u m toq u e longo [...]
* título inspirado por SI QUESTÃO dirigida a Rab Hai Gaon*, de
47,5 (Geon Yaaqob = a abençoada m em ória, a respeito dos to-
vaidade de Jacó) e dado
aos presidentes das aca- ques d e sh ofar in stitu íd os p elo Rabbi Ab-
demias rabínicas dos bahu [״.]
séculos VII ao XI. Que nosso Senhor nos exp liqu e [com o é],
pois trata-se d e toques que nos causam,
tod os os anos, dificuldades e discussões.
Rogam os a nosso Senhor - que ele viva
eternam ente! -, que nos exp liqu e em se-
guida qual era a situação antes da decisão
[do Rabbi Abbahu], com o se d eve inter-
pretar a discussão talm údica sobre esse
p on to e com o encontrar, para as palavras
dos diferentes m estres, um a solução que
nos satisfaça e pela qual desapareçam to-
das as dúvidas. RESPOSTA. A ssim pensa-
m os nós: Não é necessário passar por essa
grande dificuldade sobre esse p on to, pois
a norm a pela qual satisfazem os às nos-
sas obrigações e cum prim os a von tad e de
nosso Criador é justa e clara. Nós a tem os
em m ãos, herdada, triplicada, transm iti-
* qabbalah da e recebida na Tradição* d e pais para
filhos, ao longo d e gerações seguidas, em
Israel, d esd e os dias dos profetas até ago-
ra. O que fazem os, isto é: tocam os o sho-
far sentados, segundo o costu m e e toca-
m os o sh ofar d e pé, segundo a ordem das
bênçãos, três vezes três toques; é a norm a
que tem valor legal e que é difundida em
tod o o Israel. E, d esd e que isso está ago-
31
ra estabelecido, em nossas m ãos, e que se
trata de um a regra de M oisés d esd e o Si-
* Halaca le-Moshe mi Sinai nai* segundo a qual, se agirmos de acordo
com ela, terem os cum prido a obrigação e
toda dificuldade já está afastada. E se um
h om em diz que sendo o principal o toque
"longo, entrecortado, longo", é sem valor
o "longo, repicado, longo"; ou que o to-
que "longo, repicado, longo" é o principal
e "longo, entrecortado, repicado, longo"
é sem valor, com eçarão a refutá-lo, dizen-
do: de on d e sabem os que nos foi m anda-
do tocar nesse dia? E o próprio princípio
da Torá escrita, de on d e sabem os que ela
é a Torá d e M oisés, escrita por ele, que a
recebeu da boca do Todo-Poderoso? D e
on d e sabem os isso, senão da boca do povo
de Israel? Pois bem , os que testem u n ham
a Torá são as testem u n has de que, de fato,
cum prim os nossa obrigação. Porque isso
foi transm itido na Tradição, da boca dos
profetas, com o regra d e M oisés d esde o
Sinai; é um a situação majoritária que vale
por tod a a M ishná e tod o o Talmude. E,
acim a de tu d o, há um a prova a partir do
princípio "Sai e vê o que o p ovo faz". Isto
é a base e o apoio. D epois, consideram os
tu d o o que foi d ito na M ishná e no Talmu-
de a esse respeito...
Assim, mil anos depois de Hillel, Rab Hai Gaon volta à justifi-
cação fundamental da Torá oral: a Torá oral, a que ele chama Tra-
dição, é o que permite o conhecimento da Escritura. Para Hillel, a
Torá oral torna possível resumir toda a Torá através do amor ao pró-
ximo. Para Hai Gaon, ela permite que se saiba, com pormenores,
como executar o toque do shofar no Rosh Ha-Shanah. A resposta de
Hai Gaon, tardia, tem para nós a vantagem de apresentar, em toda
a sua extensão, a dificuldade e a ousadia da resposta: é coerente, no
interior de Israel, confiar na Tradição que transmite a Escritura e a
explica. Aqueles que, de fora, atacam a Tradição, são incoerentes ao
usar a Escritura, porque a própria Escritura é Tradição (cf. comentá-
rio sobre o texto n. f3). Observemos também a fórmula transmitida
32
por Rab Hai, a partir do Talmude da Babilônia. "Sai e vê o que o povo
faz" (Berakot 45a). Voltaremos a essa fórmula porque ela exprime o
poder dado ao povo de dizer a Torá através da prática habitual (cf.
comentários sobre os textos n. 16-17).
33
Na realidade, não se sabe exatamente o que significa "Se vos
conduzirdes segundo as minhas prescrições", a menos que se trate
dos mandamentos e de sua prática. Mas, se é disso que se trata, o
versículo é redundante, o que é difícil de admitir, uma vez que se
trata da Torá.10 Convém, pois, pesquisar o objetivo de "Se vos con-
duzirdes segundo as minhas prescrições". É o que faz o Midrash. A
dialética não é aqui um exercício gratuito, mas um método experi-
mentado, praticado pelos que buscam intensamente porque dese-
jam encontrar.
Trata-se de achar um sentido prático no início do versículo "Se
vos conduzirdes segundo as minhas prescrições". Encontrar esse
sentido é "cumprir" a Escritura, isto é, "fazer com que seja sólida",
dar a ela uma consistência que ela não tem enquanto não ensina
nada que empenhe o seu leitor. O sentido proposto, que não é ja-
mais imposto como exclusivo na Tradição de Israel, está nisto: "Se
vos conduzirdes segundo as minhas prescrições, conformando-vos
à Torá". Esse sentido é discutível, mas tem sua razão de ser na co-
erência pela qual a Torá oral é responsável. Antes de agir, antes de
praticar os mandamentos, é preciso dar-se ao trabalho de se orien-
tar no sentido prescrito pela Torá. É necessário estudar, informar-se
e formar-se. A prática sem estudo não é segura. Como disse o Rabbi
Aqiba em Yavné: "O estudo é muito importante, pois leva à ação"
(Sifre Deutéronome s/ Dt 11/13 Pisq 41, p. 85. Cf. Cahier Évangile, n.
73, p. 43).
A questão posta pela Torá oral ("Como é que eu cumpro" a
Escritura? ou "o que é que eu cumpro" com a Escritura?) revela o
vínculo orgânico, intrínseco, que liga a Torá oral à Torá escrita. A
interpretação da Tradição não é somente uma transmissão - o que
ela é antes de tudo. Não se limita a um comentário ou a uma ex-
plicação - o que, sem dúvida, ela é. É a demonstração sem a qual a
Escritura não vive.
Essa primeira passagem salta de Lv 23,6 a Lv 26,14, na segunda
parte da conclusão da "Lei de Santidade", e propõe para o segundo
vínculo, o mesmo cumprimento que para o primeiro.
34
Dissemos que nenhum sentido encontrado pelo Midrash é ex-
clusivo. É o que mostra a segunda passagem, que segue, tirada da
mesma coletânea, que "cumpre" diferentemente o Lv 26,14.
35
ver apresentam, como base da ação, o estudo e o cumprimento que
ele torna possível.
Deve-se, pois, distinguir vários níveis no cumprimento da Es-
critura. No primeiro nível, há um cumprimento pela exegese, que
faz compreender no que a Escritura introduz. No segundo nível,
deve-se cumprir a Escritura pela ação, agindo em conformidade
com o que a exegese ensinou. É aí que a Torá oral se torna plena-
mente Torá vivida. O último nível, para que tudo seja cumprido, é o
cumprimento das promessas proféticas na história da salvação. Esse
terceiro e último cumprimento da Escritura, de que voltaremos a
falar, não anula o da exegese, nem o da ação. Tampouco os subs-
titui. Por outro lado, não forma um todo com eles; não se limita a
prolongá-los; traz, na sua natureza, um excedente de alegria que se
pode saborear, antecipadamente, em meio aos piores sofrimentos."
É claro que "o cumprimento" - vocabulário e realidade - está
muito presente no Novo Testamento; por exemplo, no Evangelho
de Mateus (sobretudo em Mt 5,17) e também ao longo do Evange-
lho de João (com - como ponto culminante - as últimas palavras de
Jesus em Jo 19,30). Poderiamos mostrar que, no Novo Testamento,
os três níveis de cumprimento - exegese, ação, história da salvação -
estão presentes juntos, ou seja, misturam-se estreitamente entre si.
11 No lexto n. 83 (T. B. Berakot 61b), o Rabbi Aqiba, que havia feito uma exegese
de Dt 6,5 (primeiro nível do cumprimento), cumpre essa exegese na ação (segundo
nível): ele dá a sua vida por amor a Deus. No texto n. 71 (T. B. Makkot 24 a-b), ri
porque a promessa profética da felicidade (Zc 8,4) está se cumprindo (terceiro nível, o
da história da salvação). Cf. Cadernos bíblicos n. 51, p. 22-23.
36
11. Talmude de Jerusalém Hagigah I I 77 b
p ■Á
12 O Rabbi Meir, discípulo do Rabbi Aqiba, também foi discípulo de Elisha ben Abuya.
Depois que este se tornou herege, o Rabbi Meir, como bom discípulo, tentou até o fim
trazê-lo de volta à Torá.
37
século de nossa era, tempo não muito afastado daquele do Pente-
costes lucano (At 2,1-16).
A junção das palavras da Escritura em colar (harizah) é um
processo pelo qual a Torá oral - aqui o Midrash - apreende e mani-
festa a unidade transcendente da palavra de Deus. Essa transcen-
dência é percebida como o foi no Sinai, no fogo e na alegria, uma
alegria religiosa que não exclui o temor e o tremor.13
O simbolismo do colar remete ao Cântico dos Cânticos (1,10)
em que a amada - Israel, segundo a Tradição - é assim louvada:
"Que beleza tuas faces entre os brincos, teu pescoço com colares".
É exatamente assim: o Israel vivo, como Torá oral, manifesta sua
beleza a partir da Torá escrita, apreendida por intuição, como uma
obra de arte.
A harizah é apenas um processo, entre outros, utilizado pelo
Midrash. No entanto, esse processo tem um lugar privilegiado, pois
é empregado toda vez que a comunidade quer ensinar um ponto
importante da fé de Israel; por exemplo, a ressurreição dos mortos
(cf. texto n. 21).
O texto que acabamos de ver tem ressonância na Tradição que
Lucas transmite no último capítulo do seu Evangelho. Jesus faz uma
harizah, um colar, com as palavras da Torá escrita (Lc 24,27.44),
para abrir o espírito de seus ouvintes à compreensão das Escrituras
(Lc 24,45) que falam de seus sofrimentos, de sua ressurreição no
terceiro dia; e a proclamação, em seu nome, a todas as nações, co-
meçando por Jerusalém, da conversão para a remissão dos pecados
(Lc 24,47).
Segundo essa Tradição lucana, Jesus ensina, como mestre da
Torá oral, o essencial da mensagem evangélica da qual os cristãos
deverão ser testemunhas (Lc 24,48). Jesus, graças à harizah, con-
segue fazer perceber a unidade e a divindade de toda a Torá sobre
esses pontos fundamentais do Evangelho, como prova o coração
ardente dos discípulos de Emaús (Lc 24,32). Tal narrativa mostra
quanto o Evangelho tira a sua força da Torá oral, que fala pela boca
do mestre vivo. Esse mestre, que cumpre a Escritura por sua exege-
se, é aquele que a cumpre também, na ação, morrendo por amor;
13 Na segunda bênção que precede o Shema Israel da manhã, a oração quotidiana pede
a Deus: "Unifica nosso coração para que ele ame e tema o teu Nome".
38
pela sua ressurreição, finalmente, ele inaugura o fim da história da
salvação em conformidade com as Escrituras.
A exegese - compreende-se facilmente por que - nem sempre
consegue manifestar que ela é Torá. Nem sempre chega a conven-
cer. Veremos, aliás, que a Torá oral, da qual ela faz parte, conhece
seus limites e impõe que ela não os ultrapasse.
De qualquer maneira, também é necessário que o povo possa
agir e avançar na história, sem ser indevidamente dependente da
exegese, de sua lentidão, de suas dificuldades metodológicas e das
rivalidades entre exegetas. Todas essas rivalidades são conhecidas
em Israel e fartamente atestadas pela literatura rabínica. Assim, a
exegese é Torá oral e conserva, de qualquer modo, um lugar muito
importante. Convém agora esclarecer que esse lugar varia, segundo
a visão que se tem da Torá dentro da teologia comum dos fariseus.
Já chamamos a atenção sobre a importância do circuito de Ya-
vné e das elaborações desse circuito.
Dois grandes mestres dominam o campo exegético de Yavné,
nos últimos anos do primeiro século de nossa era: Rabbi Ishmael e
Rabbi Aqiba. Fixando as intuições e os métodos recebidos de seus
mestres, de antes da destruição do Templo, eles modelam, de forma
definitiva, dois tipos de exegese decorrentes de duas visões diferen-
tes da Torá.
Para os dois mestres, a visão comum fundamental é de que a
Torá vem do "céu", segundo Ex 20,22. Mas, a partir daí, as posições
divergem. Para Rabbi Ishmael, "a Torá falou segundo a linguagem
dos homens" (Sifré Números sl Nb 15,31 Pisq. 112, p. 121); ela não
deve ser valorizada em todos os seus detalhes. A exegese, racional,
estabelece relações entre a Escritura e a vida do povo. A Escritura,
graças à exegese, justifica e confirma a prática muito mais do que
a fundamenta.
É diferente quanto a Rabbi Aqiba. Na sua maneira de ver, a
Torá, expressa em linguagem hum ana, guarda a transcendência de
sua origem; ela foi escrita no fogo, segundo as palavras do Salmo
29,7: "A voz do Senhor que grava com chispas de fogo" (Mekilta de
Rabbi Ishmael s/ Ex 20,18, p. 235). A exegese deve valorizar todos os
detalhes da Escritura, as letras mais pequeninas e os menores tra-
ços. Através da exegese, a Escritura fundamenta e inspira a prática.
Essa visão da Torá, que é, aliás, a de Jesus, segundo o Evangelho
de Mateus (Mt 5,18), não fixa qualquer limite para a exegese. Esta
39
poderia, legitimamente, mostrar a perfeita correspondência de toda
a Torá oral com toda a Torá escrita.14 Porém, mesmo para Rabbi
Aqiba, a exegese é limitada pelo fato de que ela é parte da Torá oral
e que a Torá oral deve ser mais ampla que a Escritura e sua inter-
pretação.
Rabbi fshmael e Rabbi Aqiba, tanto pelo que disseram quanto
pelo que se disse deles, manifestam duas qualidades ou capacidades
da Torá, que podem ser assim formuladas:
- A Torá oral, se for necessário, contorna, suplanta, desenraíza
a Torá escrita.
- A Torá é regra de vida oralmente revelada a Moisés no Si-
nai. Vejamos em primeiro lugar Rabbi Ishmael enunciar o primeiro
ponto; depois, Rabbi Aqiba e seus discípulos formularem o segun-
do.
* ,oqeret
[A Halaca] p isoteia a Escritura e im p ed e
que ela fique em pé. A Halaca desenraí-
za* a Escritura. Em três pon tos a regra de
14 Essa perfeita correspondência vem do fato de que "a Torá é perfeita", segundo o
SI f9,8. Mas essa perfeição, que é a da Torá em si, não é suscetível de manifestação
automática pela exegese, ainda que esta, feita em comunidade, seja a Torá oral.
40
Halaca le-Moshe mi-Sinai M oisés d esd e o Sinai* vem e desenraíza o
versículo.
15 Rashi: O Rabbi Shelomo ben Itsaq, Troyes, 1040-1105, o mais célebre comentador
de toda a Bíblia e de todo o Talmude de Babilônia. Cf. Pierre Lenhardt, "art. Rachi", em
Catholicisme, fase. 55, 1989, col. 422-425.
41
de dizer que, em caso de conflito, a Torá oral contorna, suplanta ou
desenraíza a Escritura.
Em relação a isso, é secundário constatar que a coisa dita é dita
assim uma única vez, segundo duas variantes. Também importa
pouco que o Rabbi Ishmael tenha mencionado apenas três casos.
Um único caso teria bastado para exprimir a teologia em questão.
Destaquemos também que o Rabbi Ishmael, de acordo com sua
compreensão da Torá, teria tido os meios de resolver o conflito de
outra maneira. Seu modo de ver e seus métodos racionais compor-
tam a atuação de um princípio bem conhecido como proveniente
dele, segundo o qual "a Torá falou conforme a realidade presente"
(.Mekilta de Rabbi Ishmael s/ Ex 22,21, p. 313). Assim, a realidade
corrente é de que se cubra com terra o sangue de um animal morto
em caçada. Mas a Torá, que prescreve que se cubra esse sangue,
não quis dizer que era preciso cobri-lo exclusivamente com terra.
Mencionando a terra, a Torá falou segundo a realidade presente ou
corrente. A razão humana, aplicando-se à Torá, pode, assim, gene-
ralizar; é o que faz a Halaca, ensinando que se pode cobrir o sangue
com qualquer coisa.
Os casos apresentados são pouco numerosos e de m enor im-
portância, como seríamos tentados a considerar. Na realidade, a
Torá oral, em sua sabedoria, contenta-se com pouco para ensinar
muito: quando é necessário, a Torá oral suplanta a Escritura. Não
deveria haver conflito entre elas; mas, como é possível haver, a
Torá oral deve ensinar que pode, se for preciso, "desenraizar a Es-
critura". Na maioria das vezes, na vida de todo dia, as necessidades
da prática fazem com que deixemos de consultar a Escritura de
modo permanente, sem nos apoiar muito sobre a exegese. De fato,
"contorna-se" com frequência a Escritura, deixada prudentemente
de lado, enquanto não se tiver os meios de tirar dela um apoio ade-
quado à prática.
Para terminar, observemos que, na gama "contornar, suplan-
tar, desenraizar", não há a palavra "anular", empregada por Jesus
contra certos fariseus, segundo Mc 7,13: "Anulais assim o manda-
mento de Deus com a vossa Tradição, por vós transmitida". Trata-
-se, no entanto, da mesma realidade: conflito entre a Escritura e a
Tradição, a qual, segundo a teologia farisaica, prevalece como auto-
ridade prática sobre a Escritura. A polêmica evangélica não atinge
esse ponto, sem dúvida aceito por Jesus, que reconhece que "os
42
fariseus sentaram-se na cátedra de Moisés" (Mt 23,2). Aqui, no
campo bem problemático da prática dos votos, Jesus se põe a cer-
tos fariseus que propõem como Torá oral suas decisões discutíveis.
Contra eles, Jesus se apresenta na qualidade de mestre da Torá oral
e decide que, em matéria de votos, a Torá oral deve interpretar o
Decálogo (Ex 20,12: "Honra teu pai e tua mãe"), segundo o que ele
diz: "em primeira audição" ou 'literalm ente". Jesus não se opõe à
Torá oral como tal, mas ensina, no interior da Torá oral, como se
deve interpretar, no caso dos pais, a Torá escrita (cf. comentário do
texto n. 35).
Rashi, em seu precioso comentário, permitiu que encontrásse-
mos de novo "a regra de Moisés desde o Sinai", e isso num contexto
centrado em Rabbi fshmael. Vejamos agora como uma Tradição so-
bre o Rabbi Aqiba possibilita a melhor compreensão do que é essa
"regra de Moisés desde o Sinai".
13. T. B. Menahot 29 b
Rab Yehudah disse em n om e d e Rab: "Na
hora em que M oisés subiu ao céu, encon-
trou o Santo, b en d ito seja, que estava
sentado e guarnecia as letras com coroas.
Ele lh e disse: 'M estre do universo! Q uem
obriga tua mão?'. D isse ele: 'Virá um ho-
m em , no fim d e m uitas gerações; ele se
,‘ יAbba Arika, chamado Rab: "Mestre", simplesmente; fundou em 219 a Academia de
Sura. Ele havia recebido, em terra de Israel, de seu mestre Rabbi Yehudah, o Príncipe,
as melhores tradições sobre o Rabbi Aqiba.
43
chamará Aqiba ben Joseph e d e cada pon-
* li-derosh to deduzirá por interpretação* m onta-
* halakot nhas e m ontanhas d e determ inações prá-
ticas*'. Ele lh e disse: 'M estre do universo!
M ostra-m e esse h o m em ׳. D isse-lhe ele:
'Torna a descer!'. Ele foi, sentou-se no fim
de oito fileiras e, sem saber o que diziam ,
sentia-se abatido. Mas eis que Aqiba che-
gou a certo p on to, e seus discípulos lhe
perguntaram: 'Rabi, d e on d e tiras isso?'.
E ele respondeu: 'É um a regra d e M oisés
* Halaca le-Moshe mi- d esd e o Sinai*׳. Então o espírito de M oisés
-Sinai se revigorou e, ten d o voltad o para ju n to
do Santo, b en d ito seja, disse: 'M estre do
universo! Tens um h om em com o ele e dás
a Torá por m eu in term éd io!׳. Ele lh e disse:
'Cala-te; esse é m eu p en sam en to׳. D isse
ele: 'M estre do universo! Tu m e m ostraste
a sua Torá, m ostra-m e a sua recom pensa'.
Ele lh e disse: 'Torna a descer! ׳Ele desceu
e viu que retalhavam a sua carne com o
sobre o balcão de um açougueiro. Ele lhe
disse: 'M estre do universo! Essa Torá e
essa recom pensa!'. Ele lh e disse: 'Cala-te.
Esse é m eu pensam ento"׳.
44
dizer que por si só, por sua origem divina e pela transcendência
que fica no texto gravado por chispas de fogo (cf. Sl 29,7), a Torá
escrita tem importância em todos os seus pormenores. Essa manei-
ra de ver é boa e justa, uma vez que o próprio Deus a fundamenta,
modelando a Escritura em todos os seus detalhes. Mas ao mesmo
tempo, a Tradição inspirada, no caso Moisés, faz uma crítica e uma
autocrítica. Uma crítica a respeito de Rabbi Aqiba: "montanhas e
montanhas" talvez seja um pouco demais, sobretudo quando o pró-
prio Moisés não compreende essas explanações. Uma autocrítica,
pois a Torá oral, em seu conjunto - e não somente a exegese de
Rabbi Aqiba - ensina explanações que Moisés não compreendería
se voltasse.
Essas críticas, explícitas ou implícitas, são feitas com amor e
humor, com profunda simpatia por Moisés e seu discípulo Aqiba,
pelos discípulos de Rabbi Aqiba. Elas estão a serviço de um ensino
positivo concernente à condição da "regra de Moisés desde o Sinai".
Trata-se de uma regra, de uma norma da prática ou da fé, para a
qual não existe nenhum a base "escriturística". A pergunta técnica
de seus discípulos: "Rabbi, de onde tiras isso?״, significa: "Onde en-
contras justificativa, a partir da Escritura, para essa regra que nos
ensinas e que Moisés não compreende?". O Rabbi Aqiba dá, para
essa pergunta, a resposta técnica: "É uma regra de Moisés desde o
Sinai", uma regra sobre a qual sabemos, por Tradição, que nunca
teve justificativa ou suporte "escriturístico".
Não se trata aqui de um conflito que seria, para a Torá oral,
ocasião de "contornar" ou de "desenraizar" a Escritura. É a própria
estrutura da Torá. Ela é una, composta de uma Torá oral e de uma
Torá escrita, constituída, antes de tudo, pela Torá oral, que prece-
de e engloba a Torá escrita. Se é assim, deve haver nela "regras de
Moisés desde o Sinai", que precederam a Escritura e foram transmi-
tidas e explanadas, permanecendo sempre fora da Escritura. Isto é
possível e deve ser possível para que o edifício da Torá dos mestres
se m antenha de pé e se desenvolva.
Isso pode ser representado com a ajuda de um esquema. Se, a
partir da origem mosaica representada por um ponto A, a Torá se
desenvolve sob a forma de um cone, que é a Torá oral, os três cubos
que representam a Escritura (Pentateuco, Profetas, Hagiógrafos)
estão no interior do cone e deixam ao seu redor um largo espaço.
Por esse espaço podem passar as "regras de Moisés desde o Sinai",
45
representadas pela setas. Essas regras partem de Moisés porque são
teologicamente mosaicas. De fato, elas podem ter aparecido depois
de Moisés e se desenvolvido para além de Moisés, sem jamais en-
contrar a Escritura. É mais tarde, com a experiência do tempo, que
se reconhece tratar-se, no caso delas, de regras boas para a comu-
nidade; far-se-á, então, subir a linha até Moisés. Não é necessário
que Moisés compreenda; mas é necessário que seu nome seja pro-
nunciado pela comunidade responsável. Então, Moisés voltará à
calma e a regra será realmente revelada, praticada com confiança
pela comunidade.
Aqui também a Torá oral é soberana. Ela é cada vez mais ampla
que a Escritura que ela engloba e à qual não precisa fazer referên-
cia, em todo caso. Quando o contato entre Escrita e Tradição oral é
necessário, faz-se o que é preciso para que seja fecundo. Se houver
conflito, de qualquer maneira é a Torá oral que terá a última palavra.
Vê-se também que a Torá oral engloba, não somente a Escri-
tura, mas ainda a exegese, a parte da Torá oral que interpreta a Es-
critura. Mesmo o Rabbi Aqiba, cuja exegese podería justificar prati-
camente tudo na Torá oral, deve aceitar e ensinar a seus discípulos
que a exegese nada tem que dizer em relação às "regras de Moisés
desde o Sinai".
46
gras", para que a Torá oral tenha os meios de funcionar e de fazer
funcionar toda a Torá: Escritura e Tradição.
Vimos que o Rabbi Ishmael, segundo sua maneira de ver a
Torá, dispõe de um meio para resolver os conflitos entre Escritura
e Tradição. Esse meio era a aplicação do princípio: "A Torá falou
da realidade existente". O Rabbi Aqiba, por sua vez, segundo seu
modo de considerar a Torá, não se perturba pela existência das "re-
gras de Moisés desde o Sinai". Essas regras, sem dúvida, limitam o
campo de sua exegese, mas ele ensinou - e seus discípulos repeti-
ram diante dele - que toda a Torá, Escritura e Tradição, é "regra de
Moisés desde o Sinai" (T. B. Niddah 45a).
A concepção de cada um dos dois mestres, Rabbi Ishmael e Ra-
bbi Aqiba, continua conhecida e modelar em Israel. Graças a eles,
os princípios segundo os quais "a Torá falou em conformidade com
a realidade existente" e "toda a Torá é regra de Moisés desde o Si-
nai" dão à Torá todos os meios de que ela precisa, nas duas direções
fundamentais seguintes:
- A primeira direção é a da conüança que é preciso ter na razão
hum ana em matéria de Torá e de exegese.
- A segunda direção é a da convicção que se deve ter de que
toda a Torá, cumprida em comunidade e de maneira responsável, é
o desenvolvimento inspirado no germe que foi dado a Moisés, no
Sinai.
47
Notemos, em primeiro lugar, que o serviço prestado pelo dis-
cípulo a seu mestre, por mais concreto e humilde que fosse, como
haveremos de ver, não é designado, na Escritura e na Torá oral,
pela raiz 'BD, usada para o serviço devido exclusivamente a Deus
e reservado apenas a ele. Assim também, o serviço prestado pelo
mestre ao discípulo ou à comunidade que ele ensina, é designado
na Torá oral pelas raízes SRT, SMS, e não por 'BD, que designa o
serviço devido exclusivamente pelo escravo a seu senhor e pelos
servidores do Senhor (SI 113,1) a seu Deus.
Escutemos agora a Tradição seguinte, que exalta o valor do
"serviço" no que diz respeito à Torá.
%******»«?«*$
14. T. B. Berakot 7 b
Rabbi Yohanan disse, em n om e do Rabbi
Shim eon ben Yohai: "O serviço da Torá é
m aior que seu estudo, pois está dito (2Rs
3,11): E stá a qu i Eliseu, fílho d e Saphat,
q u e derram ava água nas m ã o s d e Elias.
Não está d ito 'estudava׳, m as 'derram a-
va'. Isto ensina que seu serviço [da Torá] é
m aior que seu estudo".
48
Rashi sobre "Rolo da Torá"
Q uem vê um rolo da Torá ser queim ado
d eve rasgar [as vestes] [...] A alm a de Isra-
el, que é tirada, assem elha-se a isso, pois
não há n in gu ém em Israel que seja vazio,
* estudo, ensinamento que não ten h a n em Torá* n em m anda-
* ação m entos*.
49
P ode-se tam bém , com m aior razão, racio-
cinar: se o sacrifício perpétuo, quanto ao
qual [se não o fazem os] não ficam os su-
jeitos a punição, prevalece sobre o Sabá,
não se d eve concluir, ainda m ais, que a
Páscoa, quanto à qual [se não a fazem os]
ficam os sujeitos a punição, prevalece so-
bre o Sabá?
A lém disso, recebi de m eus m estres a Tra-
dição segundo a qual a Páscoa prevalece
sobre o Sabá [...]
Eles lh e disseram: "O que acontece com
o povo que não trouxe facas e Páscoas
ao santuário [antes do início do Sabá?]".
R espondeu-lhes: "Deixai-os encontrar a
solução; o Espírito Santo está sobre eles;
se não são profetas, são filhos de profe-
tas".
Que fizeram os israelitas nesse m om en to?
A quele cuja Páscoa era um cordeiro en-
fiou a faca em sua lã; aquele cuja Páscoa
era um cabrito prendeu a faca entre seus
chifres. Trouxeram, pois, facas e Páscoas
ao Santuário e im olaram suas Páscoas.
* presidente N esse dia, nom earam H illel nasi* e ele co-
m eçou a ensinar-lhes os h a la k o t pascais.
50
cisão; o relato é de um li a utista italiano, Rabbi Sedecias, o médico,
em sua coletânea im itir aaa Shibboley Ha-Lequet. Observemos que
esse livro contém grande núm ero de informações preciosas, não
apenas sobre a liturgia, mas sobre certos acontecimentos históricos
de que o Rabbi Sedecias foi testem unha ou ouviu falar em seu tem-
po. É assim que ele menciona os 24 carrinhos de livros religiosos
tirados dos judeus e queimados na praça de Greve, em Paris, em
1244.
51
A fórmula "o costume dos Pais é Torá" explicita o que é man-
tido implicitamente desde sempre, na visão farisaica da Torá. A fór-
mula é o resultado simples e genial de outras formulações menos
claras cuja evolução, se fosse necessário aqui, poderia ser seguida
por seus vestígios. Notemos apenas que essa fórmula corresponde
justamente ao que transmitiría Rab Hai Gaon em seu responso (ver
texto n. 8): "Sai e vê o que o povo faz" (T. B. Berakot 45a). Ela é
também a confirmação do que exprimia Hillel, dizendo: "O Espírito
Santo está sobre eles" (texto n. 16).
Isso não justifica automaticamente qualquer costume. Um cos-
tume pode ser criticado e rejeitado se for reconhecido como mau.
Mas a tendência predominante da Torá oral é valorizar o costume,
porque é coerente e bom reconhecer ao povo o direito de con-
siderar sua prática costumeira como Torá. Isso deixa, aliás, largo
espaço ao pluralismo, uma vez que o costume pode variar segundo
os lugares, tempos e quadros culturais e políticos, nos quais se ma-
nifesta a vida dos judeus. Assim, o costume dos Pais é Torá e, como
tal, pode anular o que, segundo certos mestres, e mesmo, às vezes,
segundo a maioria dos mestres, deveria ser praticado como Torá.
Definitivamente, um só absoluto parece impor-se em cada caso: o
bem de cada pessoa e da comunidade.
52
namento da Torá. Os fariseus, e Jesus segundo o Novo Testamento,
podem ensinar a ressurreição a partir da Escritura, porque a Tradi-
ção, que interpreta a Escritura, é a Torá oral.
Vejamos como a Torá oral, recorrendo ou não à Escritura, en-
sina a ressurreição.
Observemos em primeiro lugar - e voltaremos a esse ponto im-
portante que a Torá oral, porque precede e engloba a Escritura,
não é obrigada a justificar a ressurreição dos mortos através dela.
É de notar que a oração comunitária de Israel, na segunda das
"Dezoito bênçãos", ensina a ressurreição sem citar explicitamente
a Escritura:
"És poderoso eternam en te, Senhor! Fazes
viver os m ortos, m ultiplicas a salvação.
A lim entas os vivos p elo amor, fazes viver
os m ortos por um a grande m isericórdia,
sustentas os que caem . Curas os doen tes,
libertas os cativos. És fiel para com os que
dorm em n o pó.
Q uem é com o tu, M estre dos Poderosos?
E quem é com parável a ti, Rei que fazes
morrer e que fazes viver, que fazes germi-
nar a salvação? Tu és fiel, fazendo viver os
m ortos.
B endito és tu, Senhor, que fazes viver os
m ortos!"
53
18. Mishná Sanhédrin X, 1
Israel inteiro participa do m u n do futu-
ro, assim com o está dito (Is 60,21): O teu
p o v o > to d o ele co n stitu íd o d e ju sto s, p o s-
suirá a terra para sem p re, com o um re-
n o v o d e m in h a p ró p ria plan tação, com o
obra das m in h a s m ãos, para a m in h a gló-
ria. Eis os que não participarão da vida fu-
tura: aquele que diz: "Não há ressurreição
dos m ortos" a partir da Torá, e "A Torá
não é dos Céus",1819e o epicureu.1‘1
54
n ascim en to e d eu origem a todas as coisas,
que vos retribuirá, na sua m isericórdia, o
espírito e a vida, um a vez que agora fazeis
p ouco caso de vós m esm os, por am or às
suas leis.
2 Macabeus 7,28-29
Eu te suplico, m eu filho, con tem p la o céu
e a terra e observa tu d o o que n eles exis-
te. R econhece que não foi d e coisas exis-
ten tes que D eus os fez, e que tam bém o
gênero hum ano surgiu da m esm a forma.
Não tem as este carrasco. A o contrário,
tornando-te digno dos teu s irm ãos, aceita
a m orte, a fim d e que eu torne a receber-
-te com eles na Misericórdia.
20. T. B. Sanhédrin 91 a
Um herege diz a Gebiha ben Pesisa: "Ai de
vós, m aldosos, que dizeis que os m ortos
viverão! Os vivos m orrem e os m ortos vi-
veriam!". Ele lh e diz: "Ai d e vós, m aldo-
sos! que dizeis que os m ortos não viverão!
Os que não estavam , estão vivos; os que
estão vivos, quanto m ais viverão!". Diz-
-lhe ele: "Cham aste-m e m aldoso. Se m e
levantasse, eu te daria um p on tap é e en-
direitaria a tua corcunda!". D isse-lhe ele:
"Se o fizesses, serias cham ado m éd ico pe-
rito e receberías grande rem uneração!"
55
p. (72), 328). O Talmude de Babilônia, que acabamos de citar, co-
nhece essas tradições e mostra seus pormenores. Além disso, ele
tem o mérito de transmitir a bela defesa da ressurreição, que não
se encontra na Megillat Taanit e que nos interessa aqui. Não há ne-
cessidade de crer cegamente que Gebiha viveu, de fato, na época
de Alexandre e que disse, sem tirar nem pôr, o que lemos hoje nas
fontes rabínicas. Haveremos de voltar ao problema da historicidade
das tradições rabínicas, na segunda parte. Aqui, basta notar que a
argumentação de Gebiha, sem recorrer à Escritura, está em har-
monia perfeita com a do segundo livro dos Macabeus. Isso atesta
antiguidade perfeitamente suüciente para nosso objetivo.
À evidência mencionada pelo herege, Gebiha opõe a evidência
da fé farisaica na ressurreição. Sem dúvida, é verdade que a morte
é irreversível e triunfa definitivamente sobre o homem tal como ele
é dentro dos limites deste mundo. Mas para Gebiha, que conhece
o Deus de Israel, criador do homem a partir do nada, a evidência
é que esse Deus pode, com mais forte razão, fazer viver a partir
desta vida no mundo. O salto do nada para o ser inclui o salto do
ser deste mundo para o ser do mundo que está por vir. Esse desen-
volvimento de um raciocínio a fortiori é puramente instrumental,
secundário em relação à evidência da fé, que é intuitiva e imediata.
Não se prova a evidência; ela se explicita. É o que faz Gebiha para
mostrar que sua evidência, a da fé farisaica, não é, de modo algum,
simplista nem cega. Na realidade, sua explicação apenas torna a fé
mais fulgurante.
Assim, pode-se justiücar a ressurreição sem recorrer à Escritu-
ra. Basta conhecer o poder de Deus, como o conhece a mãe dos sete
mártires. Ela está em condições de falar da criação no seio materno.
Portanto, pode comunicar sua convicção de que é possível uma
nova criação.
A fé na ressurreição, que os mestres fariseus ensinam a partir
do tempo antigo da revolta contra Antíoco Epííanes, é antes de
tudo fundada sobre um conhecimento de Deus, considerado Todo-
-Poderoso. O "poder" de Deus acabará por significar, particular-
mente, o poder de ressuscitar os mortos. Essa palavra-chave, como
vimos, serve para designar a segunda bênção da oração comunitá-
ria, que ensina a ressurreição dos mortos. O termo "poder" aparece
também de modo significativo nas palavras de Jesus ao defender a
fé na ressurreição, contra os saduceus (Mc 12,24s). Note-se que Je
56
sus, em sua refutação, distingue duas vias de acesso à ressurreição:
o conhecimento do "Poder" de Deus e o conhecimento das Escritu-
ras. Quanto à primeira delas, o recurso à Escritura não é obrigató-
rio. É provável que essa via seja a mais antiga; dela dão testemunho
o segundo livro dos Macabeus, a Megillat Taanit, o Talmude de Babi-
lônia, a oração comunitária e a Midrash. Em relação à segunda via, a
do conhecimento da Escritura, a do Mishná, parece ser mais tardia,
não afirmada antes do Novo Testamento e, na literatura rabínica,
somente a partir de Yavné.
Vejamos alguns exemplos "escriturísticos" em matéria de res-
surreição. São retirados do Talmude de Babilônia, do capítulo que
esclarece a Mishná Sanhédrin, citada acima.
21. T. B. Sanhédrin 90 b
Foi ensinado: O Rabi Sim ai disse: "De onde
sabem os que a ressurreição dos m ortos é
[ensinada] pela Torá? Porque está dito
(Ex 6,4): [. ]״Tam bém esta b elecí a m inha
aliança com eles, para lh es d a r a terra d e
Canaã. Não está dito: "para dar-vos", mas
"para dar-lhes"; daí resulta que a ressur-
reição dos m ortos é [ensinada] pela Torá"
* Enumeração de pala- (TSeDeQ, GaM, GeSHeM, QaM, sinal*).
vras hebraicas que são Rabban Gam aliel foi interrogado por he-
início de capítulo de
exposições orais, hoje reges: "De on d e [sabem os através da Es-
perdidas critura] que o Santo, b en d ito seja! res-
suscita os m ortos?". Ele lhes respondeu:
a partir da Torá, a partir dos Profetas e a
partir dos Hagiógrafos. N o en tan to, eles
não aceitaram o seu en sinam ento. A par-
tir da Torá, porque está escrito (Dt 31,16):
E o S en h or d isse a M oisés: ״Eis q u e vais
descansar com os teu s p a is e te leva n ta -
rás". Eles lhe disseram: "Mas talvez se
deva [ligar a palavra "levantarás" com o
fim do versículo e] ler (Dt 31,16): E e ste
p o v o se leva n ta rá para se p r o s titu ir [...]"
A partir dos Profetas, porque está escrito
(Is 26,19): Os teu s m o rto s tornarão a viver,
os seu s cadáveres ressurgirão; d e sp e rta i
e cantai, vós os q u e h a bitais o p ó , p o r q u e
o te u orvalh o será um orvalh o lu m in o so
57
e o p a ís das som bras dará à luz. [Eles lh e
disseram]: "Mas talvez [se trate aqui] dos
m ortos que Ezequiel ressuscitou (Ez 37)".
A partir dos Hagiógrafos, pois está es-
crito (Ct 7,10): O g o sto d e tua boca é um
vinh o delicioso. E le vai d ire ta m e n te ao
m e u am ado; fa z falar os lábios d o s qu e
do rm em . D isseram -lhe eles: "Mas talvez
se trate apenas de um sim ples m ovim en -
to dos lábios, segundo a opinião do Rabbi
Yohnan, que disse, em n om e do Rabbi Shi-
* segundo outras ver- m eon ben Yehotzadaq*: 'Se um a Halaca é
sões: Shimeon ben Yo- enunciada n este m u n do em n om e d e al-
hai guém , seus lábios falam n o tú m ulo, com o
está d ito (Ct 7,10): E le fa z falar os lábios
d o s q u e dorm em " '. [Assim, ele não p ôd e
convencê-los] até citar esta passagem da
Escritura (Dt 11,21): [para q u e vossos dias
e os dias d e vossos filhos se m u ltip liq u e m
so b re a terra] q u e o S en h or ju ro u d a r a
vossos pais. Não está d ito "dar-vos", m as
"lhes dar"; daí resulta que a ressurreição
dos m ortos é [ensinada] pela Torá.
Outros dizem [que ele lhes en sin ou a res-
surreição] a partir desta passagem da Es-
critura. Ele lhes disse (Dt 4,4): "Q uanto a
vós, p o ré m , p erm a n e c e ste s apegados ao
S en h or vosso D eus, e h o je estais to d o s vi-
vos".
A ssim com o tod os vós subsistis hoje, tam -
bém tod os vós subsistireis no m u n do por
* o fim do texto, a par- vir. *É evid en te, e portanto in ú til dizer:
tir do asterisco, é uma "H oje estais to d o s vivos". Portanto, isso
glosa tardia quer dizer: No dia em que tod o m undo
estiver m orto, vós vivereis.
58
Depois de fazer, sem êxito, um colar (cf. texto n. 11) com as
palavras da Torá, dos Profetas e dos Hagiógrafos, Rabban Gamaliel
consegue convencer os hereges, recorrendo à Torá: Dt 11,21 ou,
segundo alguns, Dt 4,4. Essas duas últimas tentativas são muito
semelhantes à do Rabbi Simai, no início de nossa passagem; nós
as examinaremos juntas, após dizer algumas palavras da primeira
tentativa de Rabban Gamaliel.
O Talmude apresenta os primeiros recursos de Rabbi Gamaliel à
Torá, aos Profetas, aos Hagiógrafos, como insucessos; tudo se passa
como se o Talmude fizesse suas as objeções dos hereges. Isso mostra
que, para os Sábios de Israel, os recursos à Escritura, em matéria de
ressurreição, são muito menos "provas ״do que "suportes".20Dentre
esses "suportes", abandonam-se os não convicentes e guardam-se
os bons, os esclarecedores, para quem necessita deles.
Está claro, no caso, que os três recursos rejeitados são particu-
larmente fracos.
- Dt 31,16 não é um bom apoio para a violência que se quer
fazê-lo sofrer.
- Is 26,19 pode efetivamente ter por objeto a ressurreição na-
cional de que fala Ez 37, segundo sua significação óbvia.
- Quanto a Ct 7,10, é rejeitado em nome de uma argumenta-
ção, ela própria muito discutida, em nome dos Sábios posterio-
res a Rabban Gamaliel.
Na realidade, o Talmude dá ao exercício nada mais que um va-
lor relativo; é sabido que nem sempre é possível convencer, mas
não se renuncia a fazê-lo pela exegese, porque a Escritura forma
uma unidade com a Tradição, que ensina a ressurreição dos mortos.
Portanto, vale a pena continuar no Midrash, para ensinar melhor
essa ressurreição.
Tomemos agora a primeira tentativa bem-sucedida de Rabban
Gamaliel, a partir de Dt 11,21: Para que vossos dias e os dias de vossos
filhos se multipliquem sobre a terra que 0 Senhor jurou dar a vossos pais.
Esse versículo, da leitura-oração do Shema Israel (Dt 11,13-
21), é o último do segundo parágrafo. A retribuição dos manda-
mentos, de que fala esse parágrafo, culmina com a multiplicação
59
dos dias sobre a Terra Prometida aos pais. Deve-se reconhecer que
o versículo, ouvido pela primeira vez, não ensina a ressurreição.
No entanto, ele transmite uma luz, anuncia a vida na Terra Prome-
tida e prepara para receber a mensagem da ressurreição, como um
acréscimo de luz. A exegese, a Torá oral, vai fazer jorrar do versícu-
lo uma luz de coerência total. Se a terra foi prometida aos pais, que
estão mortos, é porque eles viverão para receber essa terra, para
além da morte. A terra de Israel, muito terrena, é o sinal - poderí-
amos falar de sacramento em terminologia cristã - da vida eterna.
A segunda tentativa de Rabban Gamaliel, a partir de Dt 4,4,
também é apresentada pelo Talmude como bem-sucedida. O Talmu-
de reconhece, porém, uma dificuldade, visto que acrescenta uma
glosa para acionar a intuição. Contentemo-nos aqui em ver que
o versículo relaciona vida e apego ao Senhor. A palavra "apego",
"adesão", é bem concreta; obriga a pensar como se pode aderir a
Deus, que é transcendente. O versículo contenta-se em dizer que
é possível porque Moisés o diz: Vós que permanecestes apegados ao Se-
nhor vosso Deus. E diz ainda: Hoje estais todos vivos. A Escritura não
esclarece, pois, o tipo de apego; ela afirma sua possibilidade e sua
consequência: os que estão apegados ao Deus vivo vivem e viverão
no mundo que há de vir.
Vê-se aqui como a oralidade da Torá oral não é somente o que
a distingue da Torá escrita. A oralidade da Torá oral é o que faz
com que a Torá seja vivida21 no apego a Deus. A Torá oral ensina a
ressurreição, com ou sem a Escritura, porque ela é uma vida, uma
ação vivida que está em contato com a vida de Deus, com a vida
eterna.
Se ouvirmos, enfim, o primeiro recurso "escriturístico" de nos-
so texto, é claro que Rabbi Simai, no fim do século II, transmite um
ensinamento comum quase idêntico ao de Jesus no Evangelho de
Marcos (12,26-27). O Deus dos pais não é o Deus dos mortos, mas
o Deus vivo, o Deus dos vivos.
Tampouco estamos, no caso, diante de uma prova fundamen-
talista: Rabbi Simai, a partir de Ex 6,4, e Jesus, a partir de Ex 3,6,
exprimem a coerência de toda a Torá. Deus se apresenta como o
Deus dos pais; que poder de convicção pode ter isso para Moisés, e
21 A Torá vivida é, por exemplo, a Torá que o Mestre é para seu discípulo (cf.
Comentários sobre os textos n. 14-15; T. B. Berakot 62a).
60
para todos nós, se os pais estão mortos para sempre? Por que dei-
xar Madian, voltar à escravidão no Egito, para finalmente morrer
também, mais cedo ou mais tarde, e morrer definitivamente? Deus,
que se apresenta como o Deus dos pais, dá a entender que ele tem
o Poder de ser o Deus dos pais que estarão vivos ou que já estão,
de certa forma, vivos com ele. Então, Moisés pode deixar-se con-
vencer.
A ressurreição é a vida que não passará mais pela morte. É o
dom da vida eterna. Deus manifesta nela o seu Poder, que é o do
Deus dos vivos, do Deus que faz os mortos viverem.
Nenhum versículo isolado prova a ressurreição. É toda a Torá,
Escritura e Tradição que, graças à Torá oral (vivida), mostra a luz de
ressurreição neste ou naquele versículo, neste ou naquele aconte-
cimento, nesta ou naquela experiência humana.
Para concluir, voltemos ao Rabbi Simai, que soube exprimir a
imensidade da Torá e os limites da exegese.
61
zação etc. Mas essa oralidade técnica, bem como a "escrituricidade"
da Escritura, estão a serviço da Torá oral como Torá vivida. Com
certeza a Torá vivida é o prolongamento direto da Torá oral trans-
mitida, desenvolvida, prolongada pelas pessoas vivas. Mas a Torá
oral vivida está para além da Torá oral, verbal e explícita, que a
prepara e a torna possível. A Torá oral vivida cumpre a Torá oral, no
momento em que toda palavra cessa de ser dita para ser vivida no
silêncio, acima de tudo, no silêncio do martírio e da morte.22
A coerência da Torá, que torna possível a teologia farisaica da
Torá oral, culmina no ensinamento concernente à ressurreição. No
contato com esse ensinamento, percebemos efetivamente uma luz
forte e duplicada:
- A Torá, fonte de vida, deve ser vivida; portanto, deve ser oral,
antes, com e depois da Escritura.
- A Torá, porque é oral, pode ensinar a vida e dar essa vida
neste mundo e no mundo futuro.
22 A Torá vivida por Rabbi Aqiba, que dá sua vida a Deus, por amor, no martírio, está
para além da Torá que ele havia ensinado anteriormente, dizendo: "Com toda a tua
alma, ainda que Ele tome a tua alma" (ver texto n. 83).
62
2aPARTE
ATORÁORAL É HISTÓRIC
Na primeira parte, vimos que a Torá oral é coerente. Mas o
que surpreende, antes de qualquer coisa, é sua rica diversidade, sua
abundante variedade. Consequentemente, poder-se-ia ser tentado
a fazer duas censuras aos mestres fariseus.
Primeira censura: por terem deixado sua doutrina dispersa,
inacabada, abundante, mas não organizada, no estado em que a
encontramos. A isso deve-se responder, antes de tudo, que aquilo
que para nós é defeito, para eles é qualidade:1 a Torá deve perma-
necer aberta, não sistematizada. Mas é preciso dizer também que o
não acabamento resulta do desenvolvimento histórico da Torá oral.
Foi formulado apenas o que era necessário.
A segunda censura, mais grave, consistiría em dizer aos mes-
tres fariseus que sua doutrina é bela demais para ser verdadeira;
que ela permite, com certa facilidade, que eles sejam "os mestres
da Lei1 2. ״Seria possível pensar que essa doutrina da Torá oral é uma
invenção, uma ficção teológica fabricada e imposta a todo o Israel,
depois da destruição do Templo. A isso deve-se responder que essa
doutrina não foi imposta; ela se foi impondo progressivamente,
porque era verdadeira, de uma verdade vital para Israel.
Gostaríamos de mostrar, nesta segunda parte, que é assim,
concentrando-nos sobre um ponto essencial: a autenticidade da re-
construção em Yavné, essa cidade da planície costeira em que se
reuniram os mestres depois da destruição do Templo no ano 70. Já
insistimos sobre a importância do circuito de Yavné, entre os anos
70 e 100 do século I.
Em Yavné, a reorganização do povo em torno da Torá foi tão
profunda que todas as formulações, todas as tradições que encon-
tramos na literatura rabínica passaram pelo controle do colégio ra-
bínico. Conhecemos a audácia de Rabban Yohanan e de seus cole-
1 Segundo Rabbi Yannai (início do século III d.C. ), não era necessário que a Torá
fosse dada "cortada em fatias" (T. J. Sanhédrin IV, 2 22a; ver Pesiqta Rabbati, Pisq 21,
101a). Efetivamente, a Torá não é feita para ser consumida, mas para ser estudada,
atualizada pela Torá oral, e praticada.
2 Segundo J. Z. Lauterbach, o equilíbrio entre a Torá (Lei) escrita e a Torá (Lei) oral
foi o que permitiu que os fariseus "não se tornassem escravos da Lei, mas fossem os
mestres da Lei".
65
gas, que se manifestou por muitas inovações; assim, podemos nos
perguntar se eles também não inovaram, e de maneira radical, em
matéria de Torá oral.
A dificuldade não está daí em diante, pois, a partir de Yavné, a
continuidade é garantida pela reorganização do encadeamento de
mestres e discípulos bem experientes na crítica; e pela instalação de
escolas, umas em contato com as outras.
Em contrapartida, há um sério problema voltando de Yavné
para os decênios que precedem a destruição do Templo. Em Yavné,
efetivamente, os Sábios se encontraram diante de um verdadeiro
caos. A questão é saber se, graças à Torá oral, eles já tinham os ins-
trum entos para reconstruir ou se tiveram de inventar e fabricar tais
instrumentos.
A questão é importante para os judeus de hoje, a quem se pode
perguntar, do interior ou do exterior, se a Tradição farisaico-rabí-
nica permaneceu mosaica para além da destruição do Templo. A
questão se põe também para os cristãos que se interrogam sobre
a pertinência que tem a Tradição de Israel, e em particular a lite-
ratura rabínica antiga, quanto ao ensinamento de Jesus e o Novo
Testamento.
Partamos de uma Tradição geralmente invocada pelos sábios
judeus, para qualificar a mudança de Yavné do ponto de vista da
Torá.
66
a Halaca], pois n enhum a palavra, entre as
palavras da Torá, será sem elh an te a outra.
Eles disseram: "Com ecem os de H illel e de
Shammai". Sham m ai diz: "A partir de um
unidade de medida kab* o tributo". H illel diz: "A partir de
dos sólidos dois kabs". Mas os Sábios dizem: "Nem de
acordo com as palavras d este e n em com
as palavras daquele, m as um kab e m eio;
ele é obrigado ao tributo, pois está dito
'arisotekem
(Nm 15,20): Primícias d e vossas uchas* [fa -
'isatekem; jogo de
reis um a separação]: segundo a m ed id a de
palavras com o vossa m assa *. E quanto é "vossa massa"?
termo precedente Segundo a m ed id a da m assa n o deserto.
E quanto é a m assa no deserto? Como um
o m e r (= gom or) (cf. Ex 16,16), com o está
unidade de medida dito (Ex 16,36): E o o m e r é a d écim a p a r te
dos sólidos d o ephah*.
2. Os Sábios avaliaram [o om er] em sete
quartas partes [do kab] e m ais [a vigésim a
parte do kab] em m edidas do deserto, que
cidade da Galileia são cinco quartas partes [do kab] em Sefo-
ris*, que são um k a b e m eio em m edida de
medida de líquidos Jerusalém .
3. H illel diz: "Um sextário (h in *) cheio de
pequena unidade água retirada com vasilha, de 12 quarti-
para os líquidos lhos (logs*), torna inválido o banho ritu-
al". E Sham m ai diz: "Um sextário cheio
de água retirada, com vasilha, de 36 quar-
tilhos, torna inválido o banho ritual". Mas
os Sábios dizem: "Não de acordo com as
palavras d este n em de acordo com as pa-
lavras daquele, m as 3 quartilhos de água
retirada com vasilha tornam inválido o
banho ritual".
Fato: Dois tecelões vieram da porta das
im undícies, em Jerusalém , e testem u n ha-
primeira dupla de ram, em referência a Shem a'ya e A btalion
mestres fariseus e *, que 3 quartilhos d e água tirada com va-
antes de Hillel e
Shammai silha tornam inválido o banho ritual. Os
sábios, então, cum priram suas palavras.
Assim , por que foram m encionados o
n om e de seus lugares e o n om e de suas
profissões? A profissão d e tecelão não é a
m enos elevada? A porta das im undícies
67
não é o lugar m ais desprezado d e Jerusa-
lém ? Mas [isto é para ensinar que] se os
Pais do m u n d o não m antiveram suas pa-
lavras d iante d e um a [Tradição] ouvida,
com m aior razão um h om em [qualquer]
não d eve m anter sua palavra diante de
um a [Tradição] ouvida.
OS SÁBIOS DE YAVNÉ
CONFIRMAM A TORÁ ORAL DOS FARISEUS
Duas tradições falam explicitamente da Torá oral e da Torá es-
crita, no contexto de Yavné. Elas permitem, sem contar o interesse
68
oferecido por seu conteúdo, fixar um terminus ad quem, uma data
limite para o aparecimento oficial da "Torá oral", designada como
tal, em Israel.
69
duas Torot, da Torá dos fariseus, que são doravante os únicos res-
ponsáveis pela vida judaica.
70
bre Lv 26,46, versículo que chega à coletânea a propósito, depois de
todos os que o precederam.
Uma Tradição anônima, totalmente análoga à que vimos no
texto anterior, propõe a valorização do plural Torot. As Torot signifi-
cariam, pois, a Torá escrita e a Torá oral.
O Rabbi Aqiba reage contra essa interpretação que ele julga por
demais incompatível com o contexto imediato dos livros Levítico
e Números, cheios da palavra Torá que designa, evidentemente,
a norma ritual organizada por cada versículo. O plural Torot signi-
fica aqui, portanto, a multiplicidade de tais normas. Não se deve
limitá-lo a duas, como de bom grado faria o Rabbi Aqiba em outros
contextos, em virtude do princípio: "Pegaste muito, não pegaste
nada; pegaste pouco, pegaste" (Sifra s/ Lv 15,25 79a). Em outras
palavras, na Torá, o plural deve ser reduzido normalmente a dois,
que é o pouco, o mínimo que se pode pegar com certeza. O plural
é limitado por baixo e é esse limite que se deve pegar para maior
segurança. Indo no outro sentido, para a grande quantidade, não
se sabe até onde é preciso ir. Deve-se, pois, limitar-se a duas. Mas
aqui o contexto, segundo Rabbi Aqiba, obriga a ver, no plural, as
múltiplas Torot do ritual.
O Rabbi Aqiba não contesta, de modo algum, o conteúdo da
Tradição anônima. Para ele, há, sem dúvida, duas Torot, a Torá es-
crita e a Torá oral. O que ele contesta é o apoio dessa convicção
através do plural Torot no versículo considerado.
Temos, pois, segundo testemunho da Tradição sobre a existên-
cia das expressões "Torá oral/Torá escrita", em Yavné. Portanto, po-
de-se dizer que, o mais tardar no ano 100 d.C., ensina-se em Israel
que há duas Torot, ou uma Torá sob duas formas: a Torá escrita e a
Torá oral.
Antes de perseguir nosso propósito, que é perquisar o que exis-
te para trás de Yavné, convém notar a importância do que está dito,
no fim do nosso texto, a respeito de Moisés.
A exegese feita sobre o fim do versículo "que o Senhor estabe-
lece entre si e entre os filhos de Israel" está de acordo com o modo
de ver do Rabbi Aqiba, segundo o qual todos os pormenores da
Escritura são importantes. A repetição da palavra "entre" sugere vi-
vamente que a revelação estabeleceu um intermediário entre Deus
e Israel. Sendo conhecido esse intermediário, ele vem sem demora
encontrar seu lugar e o versículo se acha "cumprido" quando se vê
71
que ele ensina que Moisés foi feito apóstolo (shaliah), o enviado de
Deus para o dom da Torá no Sinai. Essa Tradição é pertinente para
compreender melhor as intenções do Evangelho de João que, com
tanta frequência, apresenta Jesus como aquele que o Pai enviou.
Podemos mencionar também a epístola aos Hebreus (3,1), que em-
prega a palavra "apóstolo" para designar Jesus em um contexto em
que se trata de Moisés.
A conclusão da passagem - o ensinamento dado a partir de "no
monte Sinai, por intermédio de Moisés" - pode surpreender. Tam-
bém aqui, segundo o método de Rabbi Aqiba, interpreta-se a supe-
rabundância do versículo que fala de Moisés, ao passo que nós já
sabemos, pelo que precede, que ele é o intermediário. Como "cum-
prir" a superabundância? Vendo significados nela todos os prolon-
gamentos que virão a partir do germe escrito e oral dado a Moisés
no Sinai.
Esse texto permite ver o conteúdo da Torá oral que, segundo é
ensinado, existe como Torá, em Yavné. Essa Torá contém as preci-
sões e as explicações da Torá escrita. Contém também as determi-
nações (halakot) que podem muito bem ter precedido a Escritura e
ter existido sempre, fora da Escritura, como vimos acima, com as
"regras (halakot) de Moisés desde o Sinai" (cf. texto n. 13).
Continuando essa lista de resultados cujo germe foi dado a
Moisés, no Sinai, temos, aliás, duas outras formulações interessan-
tes: "O que um aluno antigo ensinará diante de seu mestre" (T. J.
Peak 11,6 77a: Rabbi Yehoshua ben Levi); "o que um aluno anti-
go perguntará a seu mestre" (Tanhuma Buber Ki Tissa s/Ex 34,27:
anônimo). Esses prolongamentos tardios são a precisão do que já
está, em germe, no nosso texto. De fato, as precisões e explicações
fazem sair ensinamentos novos da boca dos discípulos, que os sub-
metem ao controle de seus mestres presentes. Por outro lado, como
haveria precisões, se anteriormente não tivessem sido formuladas
perguntas? Portanto, não apenas as respostas, mas também as per-
guntas, fazem parte da Torá oral.
Por meio dessas observações, pressente-se a importância da re-
lação mestre-discípulo, para a continuidade histórica da Torá oral.6
6 P. Lenhardt, “Votes de Ia continuitéjuive. Aspects de la relatioti maitre-disciple d'apr'es la
littérature rabbinique ancienne", ern R. S. R. 66, 1978, p. 489-516.
72
A RELAÇÃO MESTRE-DISCÍPULO
GARANTE A CONTINUIDADE E A NOVIDADE DA TORÁ ORAL
Como nossa preocupação é tentar precisar o que se pode dizer
sobre a Torá oral antes de Yavné, é preciso ir subindo a linhagem
de discípulos a mestres. Antes do Rabbi Aqiba, temos o Rabbi Elie-
zer e o Rabbi Yehoshua, e abaixo, Rabban Yohanan ben Zakkai. O
quadro adiante, no qual acrescentamos alguns outros mestres, sem
dúvida ajudará na localização.
Hillel (e S h a m m a i )
R ab b an S h im eo n
R a b b a n G am a lie l I
R a b b an Y o h an an b en Zakkai
R a b b a n S h im e o n B e n G am aliel
R. E lie z e r
R a b b a n G a m a l i e l II R . A q ib a R. Y e h o s h u a
R a b b a n S h im e o n b e n G am aliel R. M e i r R. I s h m a e l
R abbi Y e h u d a h H a-N assi
73
sés, H illel, o Ancião, Rabban Yohanan ben
Zakkai e Rabbi Aqiba.
- M oisés viveu 40 anos n o Egito, passou
40 anos em M adian e serviu Israel por 40
anos.
- Hillel, o Ancião, subiu de Babilônia aos
40 anos serviu aos Sábios durante 40 anos
e serviu Israel por 40 anos.
- Rabban Yohanan ben Zakkai dedicou-
-se aos negócios por 40 anos, serviu os Sá-
bios por 40 anos e serviu Israel durante 40
anos.
- Rabbi Aqiba aprendeu a Torá aos 40
anos, serviu os Sábios por 40 anos e serviu
Israel durante 40 anos.
27. T. B. Sukkah 28 a
Conta-se que Rabban Yohanan ben Zakkai
que, durante tod a a sua vida, jam ais pro-
feriu palavra, n em atravessou [a distância
* fragmentos de
de] quatro cúbitos sem [estudar] a Torá e
pergaminho trazendo sem teüllin*; n inguém chegava m ais cedo
palavras da Lei, presos à que ele à casa d e estudos*; não dorm ia
frontre e ao pulso (cf. Dt n em cochilava na casa de estudos; não
6,8 e nota TOB m editava quando ia ao banheiro; não dei-
* beit ha-midrash
(lit.: casa de pesquisa xava n in gu ém na sala de estudos quando
74
ia embora; nunca o encontraram senta-
do em silêncio, m as rep etind o sem pre, e
jam ais alguém , além dele, abria a porta
a seus discípulos. A o longo d e sua vida,
nunca disse nada que não tivesse ouvido
de seu m estre e, exceto na véspera da Pás-
coa e na véspera do Dia d e Kipur*, jam ais
* a grande solenidade disse: É hora d e deixar a casa d e estudos,
do Dia das E seu discípulo, Rabbi Eliezer, com porta-
Expiações (Lv 16) _s0 da m esm a forma.
28. T. B. Sukkah 28 a
N ossos m estres ensinaram: "Hillel, o An-
cião, tev e oiten ta discípulos. Trinta deles
foram dignos d e que a Presença Divina*
* Shekinah repousasse sobre eles com o repousou so-
bre M oisés, nosso
m estre. Trinta deles foram dignos d e que
o sol parasse por ordem sua, com o aconte-
* cf. Js 10,12-13 ceu com Josué ben Nun*. Os outros vin te
foram hom ens com uns. O m aior de todos
foi Yahanan ben Uziel; o m enor de todos
foi Rabban ben Zakkai.
Disseram que Rabban Yohanan ben
* Torá escrita e Torá oral Zakkai conhecia a fundo: M iqra e M ish-
** Talmude ná*; Gemara**; H alak o t e Haggadot*; D i-
* Determinações q d u q ei Torá ** e D iq d u q ei S oferim *; De-
jurídicas e exposições duções a fo rtio ri e por analogia; Revolu-
não jurídicas
** explicações da Torá, ções astrais; Ciência da com binação e do
com valor da Palavra valor num érico das letras; Língua dos an-
revelada jos do serviço*; Língua dos d em ônios, Lín-
* explicações dos gua das palmeiras; Parábolas de lavadei-
escribas, com valor de
disciplina rabínica ros e parábolas d e raposas; Grande coisa e
75
* cf. ICor 13,1 pequena coisa. Grande coisa: é o m a'aseh
* especulação mística m erkabah*; pequena coisa: são as discus-
sobre o carro celeste sões d e Abayé e Rava* .
* Mestres fariseus de Tudo isso para cumprir o que está dito [Pr
Babilônia do início
do século IV 8,2 1 ]:
Para le v a r ben s aos q u e m e am am , e en-
ch er o seu tesouro.
E se foi assim para o m enor de todos,
quanto m ais deve ter sido para o maior!
A respeito de Yohanan ben Uziel disseram
que quando ele estava sentado e se ocupa-
va da Torá, to d o pássaro que passasse por
cim a d ele era queim ado im ediatam ente".
76
chega até às parábolas, ao ensino místico, à dialética. O que se quis,
por esse meio, foi precisar que esses gêneros têm seu lugar legítimo
na Torá. Isso está bem na linha de Hillel, a quem são atribuídas as
sete regras de hermenêutica rabínica.9 Essas regras, inteiramente
racionais, são substituídas pela razão hum ana e por todas as am-
pliações que ela permite, na Torá. Da mesma forma, através das
parábolas, entram na Torá todos os recursos da sabedoria popular
e internacional. As parábolas rabínicas se contam às centenas e seu
conhecimento é importante para melhor compreensão do ensina-
mento por parábolas, tão caro a Jesus, segundo o Novo Testamento
(Mt 13,34; cf. Supplement Cahier Évangile rt° 50).
Observemos, por fim, o poder extraordinário atribuído a Yoha-
nan ben Uziel, no üm do nosso texto. O fogo que queima o pobre
pássaro é o fogo do Sinai, que se atualiza no estudo do mestre.
Aqui também, exaltando Yohanan ben Uziel, relativiza-se Rabban
Yohanan ben Zakkai. Ele é situado entre os homens comuns, sem
poderes carismáticos particulares, que podem, no entanto, servir de
modelo, apesar de seus limites, ou antes, por causa de seus limites.
Rabban Yohanan ben Zakkai é, pois, como novo Moisés e discípulo
de Hillel, aquele que garante a autenticidade de Yavné. Mas ele não
é o único a fazê-lo. Os dois principais discípulos seus, Rabbi Eliezer
e Rabbi Yehoshua, confirmam que a Torá oral, nome e realidade, é
anterior à destruição do Templo.
Comecemos pelo Rabbi Eliezer cujo conservantismo, que nos é
precioso aqui, é bem fortemente atestado.
29. T. B. Sukkah 28 a
N ossos m estres ensinaram: "Enquanto o
Rabbi Eliezer passava o Sabá na A lta Ga-
lileia, aconteceu que lh e pediram trinta
* A tenda construída h a la k h o t a respeito da Sukkah*. D e doze
por ocasião da festa [dentre elas], disse-lhes: 'Eu as ouvi [de
das Tendas m eus m estres]'; d e dezoito [dentre elas],
disse-lhes: 'Não as ouvi [de m eus m estres]׳.
O Rabbi Yosé, em n om e do Rabbi Yehu-
dah, disse: 'Invertei as palavras: d e dezoi-
to, ele lhes disse: 'Eu as ou vi ;׳d e doze, d is
77
se: ,׳Não as ouvi'. Eles lh e disseram: 'Todas
as tuas palavras nunca são m ais que repe-
tições daquilo que o u v iste׳. D isse-lhes ele:
'Vós m e obrigais a dizer algum a coisa que
não ouvi d e m eu s mestres: Em toda a m i-
nha vida, n inguém chegou antes d e m im
à casa de estudos, nunca dorm i lá, nem
cochilei, e jam ais d eixei alguém [atrás de
m im ] na casa de estudos, quando saí dela;
nunca proferi palavras profanas e nunca
disse o que quer que seja que não tenha
ou vid o de m eu m estre"׳.
78
Rabbi Tarfon decretou: [ ״Os ju d eu s que
vivem em A m on e Moab d evem dar] o dí-
zim o do pobre". Mas o Rabbi Eleazar bem
Azariah decretou: "O segundo dízim o".
Rabbi Ishm ael lh e disse: ״Eleazar bem
Azariah, cabe a ti apresentar um a prova
porque crias um gravam e, e a tod o aque-
le que cria um gravam e cabe apresentar
um a prova".
Rabbi Eleazar bem Azariah lh e disse: "Ish-
m ael, m eu irmão! Não fui eu que m u d ei
a ordem dos anos. Foi m eu irm ão Tarfon
que m udou, e é a ele que cabe apresentar
um a prova".
Rabbi Tarfon respondeu: "O Egito é ex-
terior à Terra [de Israel]; A m on e Moab
são exteriores à Terra. A ssim com o para o
Egito [se d eve dar] o dízim o do pobre no
sétim o ano, tam bém [para] A m on e Moab
[se d eve dar] o segundo dízim o n o sétim o
ano".
Rabbi Eleazar ben Azariah respondeu:
"Babilônia é exterior à Terra, A m on e
Moab são exteriores à Terra. A ssim com o
[para] Babilônia [se d eve dar] o segun-
do dízim o n o sétim o ano, tam bém [para]
A m on e Moab [se d eve dar] o segundo dí-
zim o n o sétim o ano".
Rabbi Tarfon disse: ״O Egito, porque é
próxim o [à Terra d e Israel], fizeram -no
[passível do] dízim o do pobre, para que
os pobres d e Israel se possam apoiar sobre
ele n o sétim o ano. A m on e Moab, que são
próxim os, façam o-los tam bém [passíveis
do] dízim o do pobre, para que os pobres
de Israel se possam apoiar sobre eles no
sétim o ano".
Rabbi Eleazar ben Azariah lh e disse: "Eis
que pareces dar-lhes vantagens quanto ao
dinheiro, m as [na realidade] és com o al-
guém que faz as alm as se perderem : gos-
tarias d e enganar os céus, de m od o que
eles não façam descer o orvalho e a chuva,
pois está dito (Ml 3,8): P o d e um h o m e m
79
enganar a D eu s? E, n o en ta n to > vós m e
enganais. D izeis: Em q u e te enganam os?
Em relação ao d ízim o e à contribuição".
Rabbi Yehoshua disse: 7׳Eis que eu [me
apresento com o] respondendo contra o
Rabbi Tarfon, m eu irmão, porém [na re-
alidade, não respondo] contra o conteú-
* isto é, de sua posição do de suas palavras*. [Quanto ao] Egito,
[as m edidas tom adas a respeito d e dízi-
m os são] um fato novo; [quanto a] Babi-
lônia, é um fato antigo. Ora, o caso discu-
tid o d iante de nós é um fato novo. Que
se julgue, pois, um fato novo a partir de
um fato novo, e que não se julgue u m fato
novo a partir de um fato antigo. O Egito
é um fato d e antigos; Babilônia é um fato
de profetas. Que se julgue, pois, um fato
de antigos a partir de um fato de antigos,
e que não se julgue um fato de antigos a
partir d e um fato de profetas". Eles calcu-
laram e decidiram: [No caso de] A m on e
Moab d eve-se contribuir com o dízim o do
pobre no sétim o ano.
Quando Rabbi Yosé, filho da Dam ascena,
* cidade da planície chegou à casa d e Rabbi Eliezer em Lida*,
costeira, não distante disse-lhe: "Que n ovidade h ou ve hoje para
de Yavné (cf. At 9,32) vós na casa de estudos?". Ele lh e disse:
"Eles calcularam e decidiram: [No caso
de] A m on e Moab, d eve-se contribuir
com o dízim o do pobre no sétim o ano".
Rabbi Eliezer chorou e disse: "(Sl 25,14) O
seg red o d o S en h or é para aqu eles q u e o
te m e m , fa zen d o -o s con h ecer a sua alian-
ça. Sai e diz a eles: ׳Não tem ais quanto a
vosso voto. Recebi, por Tradição, de Ra-
bban Yohanan ben Zakkai, que ouviu de
seu m estre e seu m estre de seu m estre até
* Halaca le-Moshe a regra de M oisés d esd e o Sinai*, que [no
mi-Sinai caso de] A m on e Moab deve-se contribuir
com o dízim o do pobre no sétim o ano"׳.
80
meiro lugar, que se pretendesse provar pela Escritura o que, sendo
"regra de Moisés desde o Sinai", não deve ser justificado por meio
da Escritura; mas também, de modo mais grosseiro, que se trans-
gredisse o conteúdo da regra. Ora, não ocorre nem um, nem outro;
confirma-se o conteúdo da regra por votação da maioria e não por
conclusão exegética, nem mesmo por aplicação direta da dialética,
como poderia fazer crer a longa discussão.
Temos assim, na boca de Rabbi Eliezer, a fórmula técnica "regra
de Moisés desde o Sinai" correspondente ao conteúdo de que já ia-
Íamos; uma regra imemorial que nunca passou pela Escritura e que
não deve ser justificada pela Escritura.
Notemos que Rabbi Eliezer não leva a corrente para além do
mestre que é o mestre do mestre de Rabban Yoahnan ben Zakkai.
Isso não quer dizer que não se remonte a Moisés, mas poderia indi-
car que a Tradição oral não se compromete, de fato, a garantir mais
do que três ou quatro elos.
A fórmula é estereotipada; nós a encontramos na boca de Ra-
bbi Yehoshua.
81
alizar a paz n o m undo, pois está dito (Ml
3,23): Eis q u e vos en vio Elias, o Profeta
[...], e ele fará vo lta r o coração d o s p a is
para os filhos e o coração d o s filhos para
os pais".
0 Mekilta de R. Ismael s/ Ex 15,22, p. 154; T. J. Megillah IV, 1 75a; T. B. Baba Qama 82a.
82
são do sangue, a raspagem das entranhas,
a :om bustão das partes gordurosas. No
entanto, o assar e enxaguar as entranhas
não prevalecem sobre o Sabá. Trazê-la ao
Tem plo, fazê-la passar do exterior ao inte-
rior do d om ín io [sabático]*, a ablação de
* distância de cerca de um sua excrescência, não prevalecem sobre o
quilômetro ao redor da Sabá.
cidade, não permitido
ultrapassar no Sabá Rabbi Eliezer disse: "[Essas operações
tam bém ] prevalecem sobre o Sabá". Rab-
bi Eliezer disse: "Não se deverá raciocinar
assim: Se a im olação, que pertence à ca-
tegoria Trabalho', prevalece sobre o Sabá,
essas [operações], que pertencem [som en-
te] à categoria 'repouso sabático', não pre-
valecem sobre o Sabá?".
Rabbi Yehoshua lh e disse: "O dia de fes-
ta vai fornecer a prova. D e fato, no caso
deste, certas operações que pertencem à
categoria 'trabalho ׳foram perm itidas, e
outras, que pertencem à categoria 'repou-
so sabático׳, foram proibidas".
Rabbi Eliezer lh e disse: "O que é isso,
* a imolação de um Yehoshua? Que prova se pod e tirar do fa-
animal para a refeição cultativo* para o obrigatório**?".
de um dia de festa
Rabbi Aqiba, objetou, dizendo: "A asper-
** a imolação da Páscoa
são [da água purificadora*] vai fornecer
* cf. Nnt 9,11-13 a prova, pois é obrigatória; ela pertence
[som ente] à categoria 'repouso sabático' e
não prevalece sobre o Sabá. Não te espan-
tes, pois, se essas operações obrigatórias,
que pertencem [som ente] à categoria 're-
p ou so sabático', não prevalecem sobre o
Sabá".
Rabbi Eliezer lh e disse: "É ju stam en te so-
* sobre a aspersão bre ela* que estou refletindo: Se a im ola-
ção, que pertence à categoria 'trabalho׳,
prevalece sobre o Sabá, não se deve con-
cluir que a aspersão, que pertence [so-
m ente] à categoria 'repouso sabático',
prevalece sobre o Sabá?".
Rabbi Aqiba lh e disse: "Ou, antes, o con-
trário: Se a aspersão, que pertence [so-
m ente] à categoria 'repouso sabático',
83
não prevalece sobre o Sabá, não se deve
concluir que a im olação, que pertence à
categoria 'trabalho', não prevalece sobre
o Sabá?".
Rabbi Eliezer lhe disse: "Aqiba, desenra-
ízas o que está escrito na Torá (Nm 9,3):
E n tre as ta rd es [...] n o te m p o d eterm in a -
do; ['no tem p o d eterm inado׳, isto é], quer
se trate de um dia profano ou do Sabá!".
[Rabbi Aqiba] lh e disse: "Rabbi, indica-
■me um tem p o determ inado para essas
operações, com o há para a im olação!".
* Mal Rabbi Aqiba enunciou a regra geral*: Todo
trabalho que pode ser feito na véspera do
Sabá não prevalece sobre o Sabá. A im ola-
ção, que não se p od e fazer na véspera do
Sabá, prevalece sobre o Sabá.
84
A passagem termina bem: depois de mostrar que sua hipótese
era apenas retórica, Rabbi Aqiba enuncia a regra geral que será
guardada em seu nome. Rabbi Eliezer não se opôs à formulação
dessa regra, pois ela vem depois que tudo fora controlado.
Outro exemplo também ilustra bem como Rabbi Eliezer aceita
um ensinamento novo de seu discípulo.
85
m u n do e para o m undo futuro'.
Rabbi Eleazar ben Azariah declarou e dis-
se: 'Tu és m elhor para Israel que pai e m ãe,
pois pai e m ãe são bons para este m undo,
enquanto m eu m estre é bom para este
m undo e para o m u n do futuro'.
Rabbi Aqiba declarou e disse: 'Am ável é
o sofrim en to׳. Disse-lhes: 'Ajudai-me; que
eu ouça as palavras de Aqiba, m eu disci-
pulo, que disse: A m ável é o sofrim ento'.
D isse-lhe ele: 'Aqiba, de on d e sabes isso?'.
Aqiba lh e respondeu: 'Eu interpreto a Es-
critura (2Rs 21,1-2): M anassés tinha d o ze
anos qu an do com eçou a rein ar e reinou
cinqu en ta e cinco anos em Jeru salém [...]
E le fe z o m a l aos olhos d o Senhor, e está
escrito (Pr 25,1): Tam bém estes são p ro -
vérbios d e Salom ão>, tran scritos p e lo s ho-
m e n s d e Ezequias, rei d e Judá. Pois bem!
Será possível que Ezequias, rei de Judá,
ten h a ensinado a Torá ao m u n do inteiro
e não a ten h a ensinado a seu filho Manas-
sés? Na realidade, porém , tod o o esforço
que fez por ele, tod o o trabalho que se im-
pôs por sua causa, não o criaram para o
bem . Só o sofrim ento o criou para o bem ,
com o está dito (2Cr 33,10-11): O S en h or
falou a M anassés e a seu p o v o , m as não
lh e d era m ou vidos. Então o S en h or fe z vir
contra eles os gen erais d o rei da Assíria,
q u e p u sera m M anassés em ferros; amar-
raram -no com cadeias d e b ro n ze du plas e
leva ra m -n o para Babilônia. E está escrito
(2Cr 33,12-13): N o te m p o dessa provação,
im p lo ro u ao Sen h or seu D eus e h u m ilh o u -
-se p ro fu n d a m e n te d ia n te d o D eus d e
seu s pais; orou ao Senhor, q u e se d eixou
com over. O uviu sua súplica e o rein tegrou
em sua realeza, em Jerusalém . E M anassés
recon h eceu q u e o S en h or é Deus'.
A ssim aprendes que o sofrim ento é amá-
vel".
86
Notemos a bela expressão dos discípulos na primeira narrativa.
Rabbi Eliezer doente é para eles o rolo da Torá, a Torá visível e ve-
nerada, que sofre. Não se poderia exprimir melhor a unidade entre
Torá oral e Torá escrita.
Nos dois relatos, Rabbi Aqiba consola seu mestre, dizendo-lhe
a verdade e sua verdade. O sofrimento do mestre, porque é peca-
dor, deve ser aceito com alegria, por amor. Talvez seja, de fato, a
última purificação proposta por Deus a Rabbi Eliezer, que o serviu
tão bem, como diz o próprio Rabbi Eliezer, faltando decididamente
à modéstia mais uma vez: "Deixei de cumprir alguma coisa de toda
a Torá?״. Mas a verdade liberta e Rabbi Aqiba, em nome de seu
mestre, cita a Escritura, para lembrar-lhe de que é pecador.
Na segunda narrativa, evidencia-se claramente que, dizendo
"amável é o sofrimento", Rabbi Aqiba anuncia alguma coisa que
seu mestre jamais ouviu. Assim, a novidade, na confiança e na ami-
zade da relação mestre-discípulo, é aceitável e aceita.
Do mesmo modo, Rabbi Yehoshua alegra-se por descobertas
exegéticas que teriam alegrado seu mestre Rabban Yohanan ben
Zakkai, se ainda estivesse vivo para ouvi-las.
87
V, 5: No m esm o dia, Yehoshua ben Hyr-
canos interpretou: "Jó só serviu o Santo
- bendito seja - por amor, com o está dito:
(Jó 13,15) Ele p o d e m e m atar, m a s ten h o
esperança nele. Porém , ficam os em su-
penso, sem saber [se ele disse]: 'espero, te-
*10 = nele nho esperança nele*', ou 'não espero, não
*i0 ~ ׳nã0 ten h o esperança*'. No entanto, o ensina-
m en to diz (Jó 27,5b): A té o ú ltim o alen-
to m a n te re i m inh a inocência. Isto ensina
que ele agiu por amor". Rabbi Yehoshua
disse: "Quem arrancará a poeira de teus
olhos, Rabban Yohanan ben Zakkai? De
fato, em toda a vida, propunhas com o in-
terpretação que Jó só tinha servido o Lu-
* Deus gar* por tem or, com o está dito (Jó 1,1): Um
h o m e m ín teg ro e reto , q u e tem ia a D eus
e se afastava d o m al. E eis que Yehoshua,
discípulo de teu discípulo, ensinou que
foi por am or que ele agiu!".
35. T. B. Menahot 65 b
| i
A partir d e 8 de Nisan até o fim da Fes-
ta [da Páscoa], período durante o qual foi
restabelecida a Festa das Sem anas, é proi-
bido observar luto/jejuar.
88
Porque os betuseus* diziam: "Pentecostes
* gente do partido [sem pre d eve ser] depois do Sabá". Rab-
saduceu ban Yohanan ben Zakkai criticou-os di-
zendo: "Sois loucos! D e on d e tirais isso?".
N inguém respondeu, a não ser um ancião
que com eçou a questionar com ele, dizen-
do: "Moisés, nosso m estre, am ava Israel.
Ora, sabendo que P en tecostes dura ape-
nas um dia, decidiu e prom ulgou que ele
seja depois do Sabá, d e m od o que Israel
desfrute de dois dias [consecutivos]".
[Rabban Yohanan ben Zakkai] citou en-
tão contra ele a passagem da Escritura (Dt
1,2): "Há o n ze dias d e m archa, p e lo cam i-
n h o da m o n ta n h a d e Seir, d e s d e o H oreb
a té Cades Barne. Se M oisés, nosso m estre,
am ava Israel, por que os retardou n o de-
serto durante quarenta anos?". D isse-lhe
ele: "Mestre! É assim que m e respondes?".
Ele lh e disse: "Louco! Nossa Torá com ple-
ta não será com o vossa conversa vã! Uma
passagem 'escriturística' diz (Lv 23,16):
C ontareis cinqu en ta dias, e outra passa-
gem 'escriturística' diz (Lv 23,15): Conta-
reis s e te sem an as com pletas. Como, pois,
[é possível conciliar as duas passagens]? A
segunda passagem tem em vista o caso em
que o dia de festa cai no Sabá. A prim eira
tem em vista o caso em que o dia d e festa
cai n o m eio da semana".
89
Para os fariseus, ao contrário, a exegese é Torá oral, que faz
com que a Torá, Escritura e interpretação, seja "completa". Uma
Torá assim, completa, é também "perfeita", segundo a bela expres-
são tomada de empréstimo ao SI 19,8: "A Torá do Senhor é perfei-
ta". "Perfeita", isto é, una, indivisa, coerente, de modo que cada
parte da Torá, oral ou escrita, remete a toda a Torá.11
Como é possível imaginar a necessidade de esperar por Yavné,
para descobrir que a Tradição controlada e recebida era Torá?
Sem dúvida, pode-se pensar que, não só quanto a essa dou-
trina, mas também quanto à da ressurreição, que dela decorre, os
fariseus tinham dificuldades, antes da destruição do Templo, para
publicamente assumir posições contrárias às dos saduceus. Isso ex-
plicaria por que as expressões "Torá oral, Torá escrita", conhecidas e
empregadas entre fariseus, não eram admitidas fora de seus círculos
e não aparecem em documentos que, para eles, estão à margem: o
Novo Testamento e Flávio Josefo.
Quanto ao Novo Testamento, é fácil compreender que não em-
pregue o termo "Torá" (= Lei) para designar a Tradição transmitida
pelos fariseus, como a "Tradição dos Antigos" (Mt 15,1; Mc 7,3). A
polêmica dessa página culmina efetivamente nesta acusação de Je-
sus: "Invalidais a Palavra de Deus pela Tradição que transmitistes"
(Mc 7,13). Como podería essa Tradição ser chamada Torá?112
No que diz respeito a Flávio Josefo, vejamos como e por que
ele não chama Lei (= Torá) a Tradição oral dos fariseus. Para isso,
comparemos duas versões de um mesmo acontecimento, uma no
Talmude e a outra em Flávio Josefo.
36. T. B. Qiddushin 66 a
Foi ensinado: "A conteceu que o rei Yan-
nai foi a K ohalit, no deserto, e lá con-
quistou sessenta cidades. Quando voltou,
cheio de grande alegria, convocou todos
os Sábios d e Israel. D isse-lhes ele: 'Nossos
pais com eram folhas salgadas tod o o te m
90
po em que estavam ocupados construin-
do o Tem plo. Nós tam bém , com am os fo-
lhas salgadas em m em ória d e nossos pais'.
Trouxeram, pois, folhas salgadas sobre
m esas de ouro e com eram -nas.
Ora, havia lá um h om em escarnecedor,
d e coração m au, um belial, que se cha-
m ava Eleazar ben Po'irah. D isse este ao
rei Yannai: 'Ó rei Yannai! O coração dos
fariseus está contra ti'. O rei lh e pergun-
tou: 'Que devo fazer?'. Ele respondeu:
* a coroa sacerdotal 'Põe-no à prova pela faixa que está entre
teu s olhos*'. Ele os pôs à prova pela faixa
que estava entre seus olhos. Ora, havia lá
um ancião que se cham ava Yehudah ben
Gedidiyah. D isse ele ao rei Yannai: 'Ó rei
Yannai: a coroa real te basta; deixa a co-
roa sacerdotal à descendência d e Aarão'.
D izia-se, na verdade, que sua m ãe tinha
sido cativa em M odi'im [...] Eleazar ben
Po'irah disse ao rei Yannai: 'Ó rei Yannai!
Um h om em com um d e Israel deve tole-
rar isso; m as tu, que és rei e sum o sacer-
d ote, deves tolerá-lo?׳. O rei perguntou:
'Que devo fazer?'. R espondeu-lhe ele: 'Se
queres escutar m eu conselho, esm aga-os׳.
O rei lh e perguntou: 'Mas o que será da
Torá?׳. R espondeu ele: 'Sabes perfeita-
m en te que ela está escrita e guardada à
* a palavra de Rav parte; qualquer um que queira estudá-la
Nahman é uma p od e ir lá e estudá-la'. *Rav N ahm an bar
glosa tardia
Isaac disse: 'No m esm o in stan te o epicu-
* a heresia
rismo* se derram ou nele. D e fato, ele de-
veria ter dito: Seja, quanto à Torá escrita!
m as o que será da Torá oral?'. A ssim sur-
giu o m al por in term édio d e Eleazar ben
Po'irah: tod os os Sábios de Israel foram
massacrados e o m u n d o tornou-se um de-
serto até vir Sim eon ben Shetah e restabe-
lecer a Torá em seu estado anterior".
91
visto, sobretudo p elos fariseus, um a das
seitas dos judeus, com o dissem os acima.
Esses h om en s têm tal influência sobre o
p ovo que, m esm o que falem contra o rei
ou o sum o sacerdote, im ed iatam ente lhes
dão crédito. Hircano, no entanto, havia
sido discípulo deles, que o am avam m uito.
Um dia, ele os convidou para um banque-
te e recebeu-os m agnificam ente; quando
os viu bem d ispostos, com eçou a falar com
eles, dizendo que conheciam sua von tad e
de ser justo, e seus esforços para ser agra-
dável a D eus e a eles próprios. Os fariseus,
na verdade, vangloriam -se de ser filóso-
fos. A ssim , ele lhes p ed iu que, se vissem
algum a coisa repreensível no seu compor-
tam en to e que estivesse fora do cam inho
certo, o reconduzissem e corrigissem.
A assem bléia proclam ou-o absolutam ente
virtuoso, e ele se alegrou por seus elogios;
m as um dos convidados, cham ado Ele-
azar, h om em de ín d ole m aldosa e revol-
tada, to m o u a palavra nestes termos: "Já
que desejas conhecer a verdade, renuncia,
se queres ser justo, ao sum o sacerdócio e
con ten ta-te d e governar o povo". Hirca-
no p erguntou-lhe por que devia deixar o
sum o sacerdócio. "Porque, disse o outro,
soubem os por nossos A ntepassados que
tua m ãe foi escrava sob o reinado d e A ntí-
oco Epífanes." Era m entira. Hircano ficou
p rofundam ente irritado contra ele, e to-
dos os fariseus ficaram m u ito indignados.
Porém , u m h om em da seita dos saduceus
- que têm idéias opostas às dos fariseus
-, certo Jônatas, que era um dos m elho-
res am igos d e Hircano, sustentava que
Eleazar só o havia insultado por causa da
aprovação dos fariseus; Hircano se con-
venceria facilm en te disso se lhes pergun-
tasse que castigo tinha m erecido Eleazar
por suas palavras. Hircano levou, pois, os
fariseus a lh e dizerem qual a punição m e-
recida por Eleazar; ele reconhecería que a
92
injúria não tivera o con sen tim en to deles,
se fixassem a pena na m edida da ofensa.
Responderam : "pancadas e correntes",
pois um in su lto não lhes parecia m erecer
a m orte. E, aliás, os fariseus são por natu-
reza in d u lgen tes na aplicação das penas.
Hircano ficou m u ito irritado com a sen-
tença e concluiu que o culpado o insultara
de acordo com eles. Jônatas, sobretudo,
estim u lou -o vivam en te e conseguiu fazer
com que passasse à seita dos saduceus,
abandonando a dos fariseus; ele revogou
as práticas im postas ao p ovo por estes e
puniu os que as observavam . Daí veio o
ódio do povo contra ele e seus filhos. Mas
voltarem os a esse assunto.
Agora quero sim p lesm en te expor que os
fariseus tin h am transm itido ao povo m ui-
* nomima tas norm as legais,* proven ientes da tra-
* ek pateron diadoches dição dos Pais*, m as que não estavam es-
* nomois critas nas leis* d e M oisés, e que, por essa
razão, o grupo dos saduceus rejeitava,
dizendo que só se devia considerar com o
norm as legais as que estavam escritas, e
que não se tin h a de observar as que provi-
* ek paradoseos ton nham da tradição dos Pais *.
pateron Surgiram sobre essa questão controvérsias
e grandes discursões, sendo que os sadu-
ceus só conseguiram convencer os ricos,
não sendo seguidos p elo povo; os fariseus,
ao contrário, tin h am a m u ltidão com eles.
Mas sobre essas duas seitas e a dos essê-
nios, falei lon gam en te no m eu segundo
livro da "Guerra judaica".
93
Exceto esse pormenor, a versão talmúdica tem a vantagem de
ser simples, mais coerente que a de Flávio Josefo. Ambas parecem
derivar de antigas tradições farisaicas dos asmoneus. A versão do
Talmude, transmitida oralmente e não escrita, em suma, parece ser
mais fiel à sua origem do que a de Flávio Josefo. Dirigindo-se a
judeus influenciados por eles, os mestres fariseus dão sua interpre-
tação do fato. João Hircano, por natureza, está do lado dos fariseus.
Na verdade, ele se pergunta o que será da Torá sem os fariseus. A
resposta a essa dificuldade é tipicamente saduceia: apenas a Escri-
tura é Torá, e essa Escritura está "escrita e guardada à parte". João
Hircano parece aceitar a posição dos saduceus.
Notemos a glosa tardia do Talmude, que transmite essa Tradição
e nos dá o comentário de Rav Nahman ben Isaac (primeira metade
do século IV). Teria sido possível introduzir a terminologia dessa
glosa no próprio relato. De fato, é da Torá escrita e da Torá oral que
se trata! Mas respeita-se a Tradição antiga que fala, na verdade, da
Torá oral, vivida pelos fariseus, mesmo sem mencioná-la explicita-
mente.
Há, portanto, boas razões para levar a sério a exatidão des-
sa narrativa que nos apresenta claramente a teologia da Torá oral,
existindo muito tempo antes da destruição do Templo. Observemos
também a precisão dos termos "Sábios" e "fariseus".
Relativamente a essa versão das coisas, Flávio Josefo não trou-
xe nada que tivesse interesse teológico, o que não quer dizer que a
realidade anedótica não seja mais bem refletida pela Tradição citada
por ele. Queremos simplesmente dizer que a versão de Josefo não
tem interesse para nós, enquanto não parece mais digna de fé que
a versão talmúdica.
O que nos interessa aqui é o fim da passagem que citamos, na
qual Flávio Josefo apresenta claramente a divergência entre fari-
seus e saduceus em matéria de Escritura e de Tradição.
A Tradição (diadoché ou paradosis) dos Pais é exatamente desig-
nada como a que transmite ao povo normas legais (nomima), que
não estão escritas nas leis de Moisés. Trata-se das normas da Torá
oral, que não estão escritas na Torá escrita.
Não se pode deduzir de Flávio Josefo que a Torá oral não é es-
crita de modo algum. Ela só aparece como não escrita, como oral,
em relação à Escritura. Não se pode considerar resolvido o proble-
94
ma da proibição, ou não, segundo os fariseus, de escrever a Torá
oral. Trataremos dessa questão mais adiante.
Se, como se pensa, Flávio Josefo escreveu as Antiguidades por
volta dos anos 93-94, em um tempo em que já existem em Yavné
os termos "Torá escrita/Torá oral", convém considerar por que ele
não usa essa terminologia. Parece que duas razões podem ser apre-
sentadas. A primeira seria que a divergência entre judeus, ainda
que valha a pena ser mencionada diante de um público não judeu,
não tem de ser descrita em todos os seus pormenores. Flávio Josefo
acrescenta essa passagem como uma espécie de curto apêndice à
narrativa pormenorizada do conflito de que falou há pouco. Terá
ele desejado, nesse apêndice, retomar um elemento do conflito, o
problema da Escritura e da Tradição, que aparecia na sua origem,
como podería indicar a versão do Talmude? Tal probabilidade leva-
-nos mais a pensar que a versão do Talmude é mais fiel ao original.
A segunda razão de não empregar a terminologia "Torá oral/
Torá escrita" seria que o termo Torá oral (nomos agraphos) evoca,
em meio não judeu, a lei natural, e não precisamente a parte mais
especificamente judaica da Torá.
Seja como for, não se pode tirar argumento do silêncio e concluir,
de Flávio Josefo, que o termo "Torá oral" não existe nos anos 90.
Assim, pois, para os fariseus, a doutrina da Torá oral existe des-
de os tempos antigos, provavelmente, desde os asmoneus e com
certeza desde a época de Hillel, o "mestre" de Rabban Yohanan ben
Zakkai.
Quanto à terminologia "Torá oral/Torá escrita", sem dúvida,
ela existe em Yavné e, muito provavelmente, antes da destruição do
Templo, em meio fariseu, apesar dos silêncios do Novo Testamento
e de Flávio Josefo. Hesita-se em fazer remontar essa terminologia
até Hillel; no entanto, não há razão precisa para não unir, também
sobre esse ponto, Rabban Yohanan ben Zakkai e Hillel.
95
tão e destaquemos desde já que é impossível reduzir a oralidade à
não-escrituralidade, se considerarmos - como é necessário a partir
do que mostramos na primeira parte - que a Torá oral é anterior e
preferível à Torá escrita.
A oralidade ultrapassa, pois, a não-escrituralidade.
Sem dúvida, ela também é não-escrituralidade a partir do tem-
po, já antigo no século I de nossa era, em que a Escritura existe
como Torá. A coexistência e a relação orgânica da Torá oral e da
Torá escrita dão, à oralidade da Tradição de Israel, traços especí-
ficos muito diferentes dos que se podem encontrar na oralidade
de culturas que não têm Escritura ou ligações com uma Escritura.
Porém, mesmo em sua relação com a Escritura, a Tradição de Israel
se afirma, como vimos, independente e abrangente no que diz res-
peito à Escritura. Coexistência e interdependência jamais reduzem
a oralidade à não-escrituralidade.
Deve-se dizer, então, que a oralidade rabínica é "verbafidade",
qualidade da palavra dita, diferente e independente da "escritu-
ralidade", qualidade da palavra escrita? Seria possível, mas inútil,
precisá-lo neste Documento cuja intenção não é aprofundar em
discussões por demais técnicas.
Aliás, de preferência devemos dizer, para melhor permanecer
em contato com a realidade da Tradição viva que descrevemos, que
a oralidade é, sim, o caráter vivido da Torá, antes, com, em torno
de, a partir de, depois da Escritura. Desse ponto de vista, será mais
fácil compreender que a Torá oral vai constituir-se e transmitir-se
oralmente, verbalmente, de memória, por repetição, utilizando to-
das as técnicas apropriadas. Porém, essa Torá oral também se serve,
com toda a naturalidade, do suporte escrito, toda vez que ele for
necessário ou mesmo simplesmente útil. Haveremos de ver que a
proibição de escrever, que existe, sustenta e justifica a prática oral.
Ela continua relativa, preocupada com que nunca se confundam
Escritura e Tradição e que não se transforme a Tradição em Escri-
tura; mas perfeitamente consciente de que é preciso sempre, se for
necessário, ajudar a memória com sumários escritos.
Vejamos estes dois pontos: a proibição de escrever e seu caráter
relativo. A proibição de escrever só aparece em fórmulas tardias.
A mais antiga dessas formulações é conhecida sob o nome de um
repetidor da Escola de Rabbi Ishmael, talvez não antes do início do
século III.
96
38. T. Β. Temurah 14 b
"Mas Rabbi Abba, filho de Rabbi Hiyya
bar Abba, disse em n om e de Rab Yoha-
* normas tradicionais nan: O s que escrevem as halakot* são
de conduta com o os que queim am a Torá, e aquele
que aprende delas não recebe recom pen-
* meturgeman sa׳. Rabbi Yehudah bar N ahm ani, intér-
prete* de Resh Laqish expôs: ,׳Uma passa-
gem escriturística diz (Ex 34,27): E screve
para ti estas p alavras; e um a passagem diz
* lit.: pela boca (Ex 34,27): P orqu e seg u n d o o teor* d esta s
p a lavras [Fiz aliança con tigo]. Isto é para
dizer-te que não ten s o direito de dizer
por escrito as palavras que são orais; e não
ten s o direito de dizer oralm ente as que
* designa um mestre são escritas'. E um Tanna* da Escola de
dos séculos I e II até a Rabbi Ishm ael ensinou: 'Escreve para ti
publicação da Mishná
estas palavras: estas, p odes escrever, mas
não ten s o direito de escrever os halakotV .
Disseram [em resposta]: 'Será talvez dife-
rente quanto a um a novidade? [Ou seja, é
p erm itido escrever um en sin am en to novo
da Torá oral]׳. E, efetivam en te, Rabbi Yo-
hanan e Resh Laqish observavam o Sabá
em um livro d e Hagadá e interpretavam
assim [o versículo] (Sl 119,126): É te m p o
d e agir para o Senhor; eles violaram a tua
Torál Disseram eles: Έ m elhor a Torá ser
desenraizada do que a Torá ser esquecida
em Israel׳."
97
Observemos que tal interpretação do SI 119,126 não é novida-
de em Israel. Ela já aparece na Mishná, no fim do tratado Berakot
(IX, 5) sob o nome de Rabbi Nathan (fim do século II), para justi-
ficar a modificação do texto de certas bênçãos. A novidade está em
aplicar o princípio à proibição de escrever.
O caráter tardio e relativo dessas tradições sobre a proibição
de escrever a Torá oral por muito tempo fez os mestres e eruditos
judeus pensarem que a própria Mishná, a coletânea mais essencial
e mais autorizada da Torá oral, havia sido escrita por seu redator,
Rabbi Yehudah, o Príncipe, no momento de sua promulgação.13 No
entanto, havia a proibição de escrever, e a questão de saber se a
Mishná foi realmente escrita, como e a partir de quando, não podia
deixar de existir.
Uma resposta clara e simples foi dada em 1950 por S. Lieber-
man, o maior mestre judeu de seu tempo. A Mishná foi redigida
oralmente e publicada oralmente. Enquanto a Escritura estava "es-
crita e guardada à parte", o texto oficial da Mishná foi confiado
oralmente a um corpo de repetidores que a transmitiam a outros
repetidores.
Esse procedimento de repetição e promulgação oral é, de fato,
descrito pela Tradição seguinte, que data de Yavné.
39. T. B. Erubin 54 b
N ossos Mestres ensinaram: "Como foi a
ordem [do ensino] da Mishná?
M oisés aprendeu [a Mishná] da boca do
Todo-Poderoso. Aarão entrou e Moisés
en sin ou a ele a sua lição. Aarão afastou-se
e se sen tou à esquerda de Moisés. Os fi-
lhos de Aarão entraram e M oisés lhes en-
sinou sua lição. Seus filhos se afastaram.
Eleazar sen tou-se à direita de M oisés e
ltam ar à esquerda d e Aarão. Rabbi Yehu-
dah disse: 'Seguram ente Aarão vinha à
direita de M oisés'. Os A nciãos entraram
e M oisés en sinou-lhes sua lição. Os An-
ciãos se afastaram, tod o o povo entrou e
98
M oisés en sin ou -lh e sua lição. Daí resultou
que Aarão tev e quatro [lições]; seus filhos,
três; os Anciãos, duas; e o povo, uma.
M oisés se afastou e Aarão lhes ensinou
sua lição. Aarão se afastou e seus filhos
lhes ensinaram sua lição. Seus filhos se
afastaram e os Anciãos lhes ensinaram
sua lição. Daí resultou que tod os tiveram
em m ãos quatro [lições]". A partir disso,
Rabbi Eliezer disse: "Um h om em é obri-
gado a ensinar a seu discípulo quatro ve-
zes [a lição]. E com m aior razão se pod e
dizer: Se é assim com Aarão, que apren-
deu da boca de M oisés, que aprendeu da
boca do Todo-Poderoso, quanto m ais um
h om em com um que aprende da boca de
um h o m em com um [deve repetir![". Rab-
bi Aqiba disse: "De on d e sabem os que um
h om em deve repetir a lição a seu discípu-
lo até que ele a ten h a aprendido? Porque
está dito (Dt 31,19): E ensina-o [o C ântico]
aos filhos d e I sra e l[c o lo c a -o em sua boca
99
ao interesse. A escrita da Mishná, total ou parcial, antiga ou tardia,
nunca deu caráter oficial ao texto escrito da Mishná.
O que vale para a Mishná serve, com maior razão, para as ou-
tras coletâneas ou elementos da Torá oral: a proibição de escrever
é relativa. Sempre se pode escrever se é para evitar que a Torá seja
esquecida, segundo a interpretação genial do SI 119,126, que en-
contramos na Mishná Berakot IX, 5 e no Talmude de Babilônia Temu-
rah 14 b.
Isso permite compreender e justificar o que se passou com a
Megillat Taanit (= o Rolo do Jejum). É o único documento escrito
que a Torá oral sabe ser escrito e usa como se fosse uma coletânea
de Torá oral.
A parte antiga desse documento é a lista, em aramaico, dos
dias durante os quais é proibido jejuar, porque esses dias são ani-
versários de acontecimentos felizes. Alguns desses acontecimen-
tos são as vitórias dos judeus revoltados contra Antíoco Epífanes,
os helenizantes e suas instituições, a partir dos macabeus. Outros
acontecimentos, mais tardios, podem descer no tempo até a época
de Adriano.
A parte mais recente é uma espécie de comentário ou de ilus-
tração dos acontecimentos da lista. Esse comentário se encontra,
em grande parte, no Talmude de Babilônia e em outras coletâne-
as rabínicas que o citam como se se tratasse da Tradição farisaica,
sabendo que é um documento escrito, pelo menos em sua parte
aramaica.
Vejamos um texto dessa Megillat Taanit, que nos interessa pelo
que nos diz da proibição de escrever a Torá oral.
100
E quando estavam sentados [para julgar],
se alguém perguntasse, eles olhavam no
livro com esse fim. Se lhes dizia: "De onde
[sabeis] que um m erece a lapidação e ou-
tro a com bustão, outro a execução [por
decapitação] e outro o estrangulam en-
to?", não sabiam dar prova da Torá. Os
doutores [fariseus] lhes disseram: "Não
está escrito: S egu n do a Torá q u e eles te
terão en sin ado etc. (Dt 17,11)? Isso ensina
que não se deve pôr por escrito n u m livro
os halakôt".
B. Uma outra história. O Livro dos decre-
tos [é cham ado assim ], pois os betuseus
diziam: "O lho p o r olho, d e n te p o r d e n te
(Ex 21,24). Se alguém quebra um d en te de
outro, um d en te lh e é quebrado; se vaza
um olho de outro, um olho lh e é vazado,
pois eles d evem ser m u tu a m en te iguais. E
esten d erã o o len ço l d ia n te dos anciãos da
cid a d e (Dt 22,17). As palavras [devem ser
* no sentido literal tom adas] segundo a letra*. E ela cuspirá
em seu ro sto (Dt 25,9). Isso quer dizer que
ela d eve cuspir [realm ente] em seu rosto".
"Não está escrito: A L ei e o m a n d a m en -
to q u e escrevi para ensinares a eles (Ex
24,12)? [Isso quer dizer que há d e um
lado] a Torá que escrevi, e [de outro lado]
o m an d am ento d e instruí-los. Está escri-
to tam bém : E agora, escrevei e s te cântico
para vós, e ensina-o aos filhos d e Israel,
coloca-o em sua boca (Dt 39,19). E ensina-
-o aos filhos d e Israel, é a Escritura; colo-
* o Livro dos decretos
ca-o em sua boca, são os halakôt".
* tradução tirada de J. Le No dia em que o* suprim iram , fizeram por
Moyne, Les Sadducéens, isso um dia de festa*.
Paris, 1972.
101
uma Torá oral capaz de instruir o povo de forma apropriada às suas
carências e às necessidades de cada época.
A primeira parte exprime a oposição ao uso oficial de um livro,
escrito, de decretos que não são decretos da Escritura. Na verdade,
é claro que a objeção dos fariseus não incide sobre o conteúdo dos
decretos, mas sobre o fato de serem escritos num livro.
Não se pode afirmar que essa parte do comentário seja ante-
rior a Yavné. Como dissemos, quando esse comentário tem outros
paralelos, o mais antigo se encontra no Talmude de Babilônia. Va-
lorizemos, no entanto, o fato de que, 110 Talmude de Babilônia, es-
sas tradições sejam apresentadas como provenientes dos Tannaim,
mestres contemporâneos à redação da Mishná (cf. T. B. Sanhedrin
91b = texto n. 20; T. B. Menahot 65 ab = texto n. 35). Portanto, não é
possível deixar de considerar que elas remontam a Yavné, a mestres
que conheceram pessoalmente as dificuldades do passado com os
saduceus e que puderam transmitir, a respeito dessas dificuldades,
tradições anteriores à destruição do Templo.
Vejamos, por outro lado, dois textos do Talmude em que a Me-
gillat Taanit é mencionada como documento escrito.
41. T. B. Sabá 13 b
N ossos M estres ensinaram: "Quem escre-
* Rolo do jejum veu a M egillat Taanit*?". Eles disseram:
"Hananiah ben Ezekias e seus com pa-
nheiros que am avam as misérias". Rab-
ban Shim eon ben Gamaliel disse: "Tam-
bém nós am am os as misérias; m as que
farem os? Se com eçarm os a escrever, não
acabarem os mais".
102
42. Rashi s/ Megillat Taanit
* Tradição antiga não Enquanto o resto, toda M ishná e baraita*,
conservada na Mishna n ão era escrito, porque era proibido, esse
rolo foi escrito para que nos lem brásse-
m os, para que soubéssem os quais os dias
em que é proibido jejuar. Por isso é cha-
m ado "rolo", porque está escrito em um
rolo que con stitu iu um livro.
43. T. B. Erubin 62 b
Rab Ya'aqob bar Abba disse a Abbayé:
"Como é isso? É perm itido [a um discípu-
lo] ensinar em lugar d e seu m estre [uma
coisa] com o [o que é ensinado na] M egillat
* Rolo do jejum Taanit* que está escrita e guardada?". Ele
lh e diz: "Mesmo [a questão d e saber co-
mer] u m ovo com pão m olhado [no leite]
foi perguntada a Rab Hisda durante todos
os anos de Rab Huna e ele não ensinou
[sobre isso]".
103
A Megillat Taanit, apesar de tudo, continua a ser uma exceção
que confirma a regra. Um texto do Talmude e Rashi ajudam a com-
preender a condição dos lembretes, que sempre existiram e que
têm um nome, Megillat Setarim: rolos de segredos.
45. T. B. Sabá 6 b
Pois Rav disse: "Encontrei um ,׳rolo de se-
* megillat setarim gredos'* da escola d e Rabbi H iyyah e ele é
escrito". Issi ben Yehudah disse: "Há qua-
renta m en os um trabalhos principais, mas
som os passíveis apenas [em caso de falta]
d e um só [deles]".
104
ta segunda parte, como Israel tem consciência de que, apesar da
quantidade escrita, cada vez maior, a Torá oral, embora escrita, per-
manece oral, de direito e de fato.
105
amplamente escritos. Não nos dizem que é proibido escrever o Tar-
gum. Dizem que é proibido lê-lo a partir do texto escrito da Torá. A
tradução é, pois, plenamente oral, uma vez que é feita a partir do
texto hebraico ouvido.
Daí resulta, com clareza, que o fato de que o Targum existe na
forma escrita não lhe confere nenhum a autoridade. O que se impõe
é o Targum oral, proposto à comunidade e controlado por ela. Isso
não deveria ser esquecido no estabelecimento dos critérios de utili-
zação das fontes escritas, para o estudo das doutrinas que circulam
entre os judeus, antes e depois do Novo Testamento e em relação
com ele. Um Targum escrito dá testemunho apenas de sua exis-
tência e do que diz. O fato de ser escrito não lhe atribui nenhum a
credibilidade ou autoridade particular. Se é de um Targum antigo
que se trata, segundo os métodos que permitem tal conclusão, o
fato de ser escrito faria, antes, suspeitar de sua ortodoxia do ponto
de vista do judaísmo rabínico. Na época antiga, de fato, a tolerância
concernente ao "pôr por escrito" tem toda a probabilidade de ter
sido mais estrita em meio farisaico-rabínico.
Deixemos o Targum, para voltar à Mishná cuja importância, no
centro da literatura e da vida judaica, não tem termo de compara-
ção com a do Targum.
Vimos que a Mishná foi redigida e divulgada oralmente por
Rabbi Yehudah, o Príncipe, no início de século III.
Essa qualidade da redação e da divulgação foi desconhecida por
muito tempo, como vimos também acima. Era tal a falta de conhe-
cimento, nas comunidades judaicas influenciadas pela cultura ára-
be, e sua valorização do Corão como Escritura, que se considerava
evidente que Rabbi Yehudah, o Príncipe, tivesse escrito a Mishná.
É assim que os judeus de Kairuan fazem a Sherira Gaon, chefe da
academia de Pumbedita (Bagdad), esta pergunta: "Como foi escrita
a Mishná?". Em sua resposta magistral, escrita em 987, verdadeiro
tratado de história e metodologia talmúdica, Rabbi Sherira Gaon
nunca disse que Rabbi Yehudah, o Príncipe, escrevera a Mishná;
porém, as versões de sua carta, que circularam na África do Norte e
na Espanha, foram "completadas", de modo que nelas se lê que Ra-
bbi Yehudah, o Príncipe, escreveu a Mishná. As versões "francesas"
da carta, que não contêm esses acréscimos, não são versões trun-
cadas, como por muito tempo se pensou, mas versões autênticas.
106
Maimônides (1135-1204), o maior mestre judeu de origem es-
panhola e de língua árabe, sofreu a influência dessas tradições espa-
nholas e contribuiu para lhes dar mais crédito. Para ele, como para
seus discípulos, a Mishná foi escrita por Rabbi Yehudah, o Príncipe.
Mas - e é esse ponto que merece ser aqui destacado - a Mishná,
para Maimônides, continua a ser um texto da Torá oral.
48.M aim ônides Responso n. 442 Ed. Blau, Vol. II, p. 721
Resposta à questão sobre "a viúva, que
é alim entada", assim é ensinado? ou "[a
viúva] alim entada", assim é ensinado? E
dissestes: Mas a M ishná não está d iante de
* ver Mishná Ketubot nós*?
XI, 1 Sabei que não se tem d e perguntar a res-
p eito do tex to da M ishná com o ele é. Será
a Mishná o livro [guardado] do pátio [do
* ver Mishná Mo'ed Qatan Templo]*? E de on d e sabem os com o nosso
III, 4 e T. B. Mo 'ed Qatan M estre, o Santo, b en d ito seja, escreveu na
18b Mishná: "alim entada" ou "que é alim enta-
da"? S om en te pelos Anciãos. E em várias
passagens d eve-se dizer a m esm a coisa,
quando se diz "q eb u ta r"*, "me'abberin"**
* ver Mishná Yoma I, 6 ou "q ep u ta r", "m e'abberin"*r e assim em
** com aleph, ver m u itos trechos. M oisés, filho d e Rabbi
Mishná Erubin V, 1 M aim on, que a m em ória do Justo seja
* com ayin bendita!
107
49. T. Β. Erubin 41 a
Gemara. Foi ensinado: Rabbi Yehudah
disse: "Uma vez estávam os sentados dian-
* mês situado em julho te de Rabbi Aqiba e era 9 Ab*, que caíra na
agosto. Dia 9 é o véspera do Sabá. Trouxeram -lhe um ovo
aniversário da destruição e e j e 0 engoliu sem sal. ISSO [ele O
do Templo e dia de íeium r ־. ,
fez] nao porque tivesse a p etite p elo ovo,
m as para m ostrar aos discípulos o que era
a Halaca". Mas Rabbi Yosé lhes disse [aos
Sábios]: "Não reconheceis, apoiando m i-
nha opinião, que, se 9 de Ab cai no pri-
m eiro dia da sem ana, interrom pe-se [o
jejum ] quando ainda é dia?". Disseram -
-lhe: "Seguram ente!". D isse ele: "Que di-
ferença há para m im entre aquele que en-
tra no Sabá em estado de aflição e aquele
que sai d ele em estado de aflição?". Eles
lh e disseram: "Se dizes que se p od e sair
do Sabá em [estado de aflição] depois de
ter com ido e bebido por tod o o dia, dirás
que se d eve entrar em estado de aflição,
pois não se terá bebido n em com ido por
to d o o dia?".
Rabbenu Hananel
E quanto a isto: "Foi ensinado [...] 9 de
Ab caíra na véspera do Sabá e trouxeram
d iante d e R. Aqiba um ovo cozido e ele o
engoliu etc. [...]". Há em nossas m ãos um a
* qabbalah
Tradição* segundo a qual, nessa hora, Ra-
bbi Aqiba estava em perigo [por doença]
e os m éd icos trouxeram diante de Rabbi
Aqiba u m ovo cozido sem sal, para que ele
o engolisse no fim do dia. E Rabbi Yehu-
dab não foi exato. Por isso, baseou-se no
que viu e não soube qual era a razão prin-
* Rabbi Aqiba
cipal pela qual ele* agiu dessa m aneira.
108
Essa possibilidade de criticar faz parte integrante da oralidade vi-
vida. Ao invés de aceitar diretamente uma Tradição antiga, trans-
mitida oralmente ou por escrito, é preciso escutar o que diz a seu
respeito o mestre vivo que pode ser consultado.
Vamos concluir com algumas linhas de S. Abramson, um dos
grandes mestres contemporâneos do Talmude em Jerusalém, do
qual receberam ensinamentos os autores do presente Documento.
109
parte na Torá. Se não houver um estudo
da Torá, há a palavra sobre o estudo. Gra-
ças ao conto, o livro cabe a todos com o he-
rança, m esm o àquele que não é discípulo
de Sábio. A cada um é dada um a parte,
seja no interior, seja no exterior do livro.
E não é só isso, m as, por m eio do conto,
o livro goza de um a longa vida e, m esm o
quanto aos livros que quase não serviram
nas casas de estudos, con tin u am en te se
contam fatos a respeito de seus autores. É
esse o cam inho do espírito [...]
P. 7 (1-3): E na verdade, quando lês n o li-
vro que está d iante de ti, vês com o o con-
to acom panhou o livro e o escriba. Ali
encontras contos sobre livros de todas as
gerações [...]
P. 7 (8-11 ): E se quiseres, p odes dizer que a
Torá oral, em bora ten h a sido posta por es-
crito, ainda é oral e que só é Torá porque
se am plia, quer em si m esm a, quer no que
dela decorre. Agora que esse livro está em
tuas m ãos, grande parte da Torá oral está
em tuas m ãos. Poderás agora aproveitar
com prazer, com o fizeram nossos prede-
cessores no m o m en to em que escreveram
suas palavras.
Não se podería dizer melhor o que a Torá oral deve aos livros
de S. Y. Agnon e a outros livros que ainda hoje se escrevem em
Israel.
110
3a PARTE
A TORÁ ORAL É MANIFESTA
A doutrina farisaica da Torá oral é coerente: supõe a prática da
oralidade. Essa prática, imemorial, é confirmada em Yavné, depois
da destruição do Templo (70 d.C.); seu ponto culminante é a reda-
ção da Mishná e sua publicação no início do século III. Com e de-
pois da Mishná, todas as coletâneas da literatura rabínica antiga são:
Tosephta, Midrashim halákicos, Talmudes de Jerusalém e de Babilônia,
Midrashim Haggádicos do período talmúdico, que foram guardadas
de memória antes de serem postas por escrito. É bom lembrar que
a prática da oralidade se mantém para além do momento em que
se começa a escrever livros da Torá oral, a partir, talvez, do século
VI. Mostremos, enfim, que a oralidade continua a ser praticada até
nossos dias, para além das formulações orais ou escritas recebidas
do passado e aquém das que serão feitas oralmente ou por escrito.
Descrever essa prática e sua evolução é uma tarefa imensa, ape-
nas começada, apesar da importância dos trabalhos de B. Gerhar-
dsson, J. Heinemann e A. Goldberg. Não poderiamos resumir aqui
essas pesquisas e, muito menos, prolongá-las.
Diante dos textos que vamos estudar nesta terceira parte, não
indagaremos, pois, como eles foram redigidos segundo as técnicas
da oralidade. É sobre esta pergunta que refletiremos: Como se ma-
nifesta neles a oralidade que os concebeu, formulou e transmitiu?
Do contato que já tivemos com os textos estudados nas duas
primeiras partes deste Documento, cremos que a conclusão é de
que essa oralidade é, de modo geral, manifesta. Efetivamente, para
tornar compreensíveis esses textos, tivemos de situá-los em um
contexto que era reconhecido como o da oralidade.
Portanto, tentemos agora localizar algumas consequências visí-
veis dessa oralidade que é não só teológica e histórica, mas também
literária. Para isso, devemos partir de textos que hoje são escritos.
Vimos que, do lado judaico, existe a consciência dessa partícula-
ridade da Torá oral de hoje, isto é, que ela está, em grande parte,
escrita, e se escreve.
Conheçamos o que escrevia Z. Frankel, o pioneiro da pesquisa
talmúdica moderna, no início de seu longo empreendimento.
113
51. Z. Frankel, Beitrage zu einer
Einleitung in den Talmude, MGWJ. 10 (1861), p. 186
O estu do do Talm ude deve ser feito do in-
terior: dicionários e introduções não po-
dem trazer a com preensão, pois o univer-
* Gedankenwelt so m ental* do Talm ude exige que ele seja
captado e interpretado por ele m esm o.
De fato, encontram -se ali, de m odo geral,
m ais p en sam entos que seu desenvolví-
m ento; m ais indicações que frases com -
pletas; não é raro que um a palavra, um a
breve locução, sirvam d e marca para um a
longa série de pensam entos. O Talmude,
em bora esteja hoje escrito, continua a ser,
sob m u itos aspectos, en sin am en to oral,
com o era originalm ente. O que é anotado
é um lem brete; e o que, através dele, deve
ser guardado na m em ória, só pode vir da
boca do m estre.
114
depois dela. A questão apresentada é mais fundamental do que a
composição de um texto ;ntico redigido a partir de um bom conhe-
cimento da oralidade. Trata-se da confiabilidade de uma anotação
escrita para representar uma formulação oral. Propomos esse pro-
blema porque deve ser proposto, mas não gostaríamos que bloque-
asse indevidamente nosso objetivo. Ele o fará tanto menos quanto
mais pudermos dizer que certamente, salvo prova contrária, deve-
-se confiar nas anotações escritas da literatura rabínica antiga. Essas
anotações refletem a oralidade, permitem refazê-la e compreende-
-la com a ajuda dos mestres judeus.
Vejamos um exemplo dessa fidelidade da anotação escrita, no
caso de uma Tradição do fim do século III.
115
Para ser compreendido, esse texto deve ser dito em voz alta,
com entonação que acentue cada frase marcada com (b), como se-
quência e consequência da frase marcada com (a).
Assim, para o primeiro grupo de duas frases que visam às duas
primeiras bênçãos de pedido, a quarta e a quinta bênção:
(a) Deste-nos a graça do conhecimento,
(b) Aceita nosso arrependimento!
Parafrasemos para fazer entender o que é dito a Deus com cer-
ta insolência,1bem típica da Torá oral, quando ela põe o maior em-
penho nos interesses da comunidade:
(a) Como quiseste que pedíssemos [e obtivéssemos], na quarta
bênção, o dom gratuito do conhecimento de nossa situação de pe-
cadores...
(b) Aceita agora conceder-nos o arrependimento que te pedi-
mos na quinta bênção, arrependimento no qual te comprazes...
Para compreender o texto, é preciso redescobrir a entonação
que a anotação escrita sugere, do início até o fim. Sem considerar o
texto escrito como uma notação a serviço da oralidade, corre-se o
risco de não o compreender e fazer dele uma tradução falsa e inin-
teligível. fnfelizmente, é o caso da tradução francesa de Schwab e,
depois dela, da tradução alemã de C. Horowitz.
Veja-se, pois, o início da tradução de Schwab.
1 Quanto a essa "insolência", ver os belos textos reunidos por J. Heinemann, Lapriére
juive ... , p. 63-72.
116
Esse exemplo, de uma Tradição do fim do século III, confirma
que devemos, a priori, confiar na fidelidade das anotações escritas.
O que é verdade em relação a um texto do fim do século III,
com maior razão, é verdade quanto às tradições mais antigas. Sem
dúvida, é impensável suspeitar da confiabilidade da anotação es-
crita da Mishná, em relação à sua oralidade. Porém, se surgissem
dúvidas a respeito de outras coletâneas menos autorizadas, bastaria
observar que seu estilo oral, de modo muito especial o da dialética
dos midrashim halákicos, não permite que a anotação escrita se afas-
te do texto original.
Deixamos de ilustrar mais, aqui, por escrito, essa confiabilidade
da anotação escrita. Contentemo-nos de verificar que a confiabili-
dade das anotações escritas é o que as torna difíceis de compreen-
der na primeira leitura. Também é ela que dificulta a tradução exata
e compreensível dessas anotações.
É este, pois, um primeiro traço pelo qual se evidencia a oralida-
de dos textos: a obscuridade de suas anotações escritas, a dificulda-
de da apresentação por escrito e em tradução. Tendo essas dificul-
dades sido percebidas a partir do primeiro contato com o primeiro
texto apresentado, estamos, portanto, desde o início, verificando a
oralidade, que é justamente o principal objetivo deste Documento.
Parece que esse traço deva ser apresentado em primeiro lugar,
porque é o mais fundamental para a abordagem da literatura rabí-
nica transmitida por escrito.
Vejamos outros traços, começando pelos mais gerais, aqueles
que se encontram praticamente em todos os textos: a língua falada
e a sabedoria popular, conaturais com a oralidade.
117
braico e o aramaico existem simultaneamente, mas é o hebraico
que prevalece na literatura dos Tannaim, sem dúvida porque, em
primeiro lugar, o seu emprego já inveterado antes da destruição do
Templo, era o mais cômodo para garantir a continuidade, mas tam-
bém porque essa língua era realmente usada para as necessidades
correntes da vida, essas de que se ocupa a Torá oral.
Além da língua propriamente dita, seu vocabulário, morfolo-
gia, sintaxe, há o estilo que na literatura rabínica é também o da
linguagem popular. A dialética rabínica chama-se "tomar e dar",
exatamente como a discussão entre comprador e vendedor num
mercado. As parábolas de lavandeiros, as parábolas de raposas (cf.
texto n. 28) e quantas outras não teriam sido redigidas em hebrai-
co, se não tivessem sido aperfeiçoadas e "amaciadas" nessa língua,
diante de muitos auditórios. A obscuridade de certas imagens, a
aspereza de algumas articulações do texto apresentam dificuldades
para nós, que vemos nele apenas um lembrete do que foi dito oral-
mente.
Essas dificuldades, que manifestam a oralidade, como veremos
adiante, em nada contradizem o fato de que a Torá se exprimiu na
língua e segundo a linguagem do povo. Sem dúvida, toda formula-
ção rabínica, mesmo analisada, completada e restituída para além
do lembrete escrito, não é acessível a qualquer homem em Israel.
Porém, se ela não é acessível, é porque o ouvinte é pouco exercita-
do. Não é porque usa fórmulas abstratas ou difíceis, reservadas aos
intelectuais. A literatura rabínica é popular, porque a Torá dos fari-
seus é, antes de tudo, oral; e portanto, como vimos, feita pelo povo
e para o povo. Percebe-se isso no contato com cada texto, como o
ar que se respira. Não daremos aqui exemplos particulares, pois, na
verdade, é cada texto que ilustra essa evidência.
A SABEDORIA EXISTENCIAL
E HISTÓRICA DOS MESTRES DE ISRAEL
Talvez nos perguntemos por que, na literatura rabínica, há tão
poucas tradições atribuídas aos mestres da época anterior à destrui-
ção do Templo, em comparação com tudo o que provém dos Sábios
de Yavné e de seus sucessores. A resposta é a seguinte: a Torá dos
118
antigos mestres, sendo Torá oral, foi em parte esquecida ou destru-
ida.2 É o que, segundo a Tradição, quase aconteceu com a Torá de
Rabbi Aqiba, tendo muitos de seus discípulos perecido na revolta de
Bar Kokba, em 132-135 d.C. (cf. T. B. Yebamot 62 b).
Outra razão pela qual temos tão poucas tradições anteriores à
destruição do Templo é que, em matéria de Halaca, o que era ado-
tado era transmitido anonimamente e foi retomado em Yavné, seja
como Tradição anônima, seja como Tradição transmitida por um
dos mestres que atuavam na reorganização posterior a 70 d.C. É o
caso, por exemplo, de inúmeras tradições transmitidas por Rabbi
Yehudah, discípulo de Rabbi Aqiba, que, além da condição de dis-
cípulo, é um comunicador importante de tradições antigas. Ocorre
novamente um fenômeno desse gênero, muito mais tarde, na Babi-
lônia, onde Rab Yoseph, na metade do século IV, é chamado "Sinai"
porque transmite muitas tradições que, sem ele, teriam permanecí-
do desconhecidas e esquecidas (cf. T. B. Berakot 64 a).
O que vale para a Halaca vale, com maior razão, para a Hagadá,
menos importante quanto à vida do povo, e da qual grande parte
não resistiu à prova do tempo.
No entanto, há alguns restos e, em matéria de Hagadá, o ri-
quíssimo grupo de tradições coletadas na Mishná Abot e no seu
complemento, os Abot de-Rabbi Nathan.
Vimos no primeiro texto citado neste Documento o que é pro-
posto nessas coletâneas: é uma sabedoria histórica e existencial, di-
ferente da sabedoria bíblica e marcada pela oralidade.
Retomemos as duas primeiras sentenças dessa Mishná Abot,
a das pessoas da Grande Assembléia e a de Simeão, o Justo. São
formuladas, de início, em hebraico falado, e não em hebraico ara-
caizante, que procuraria imitar o hebraico dos Provérbios, do Ecle-
siastes. Depois, elas são ternárias e não binárias, como as senten
119
ças dos Provérbios, imitadas por Ben Sira. Os Sábios não quiseram
apresentar-se, ou apresentar seus mestres, como continuadores da
Sabedoria bíblica e escrita. Quiseram valorizar uma sabedoria vi-
vida na história, em contato com o povo, em reação à situação do
momento.
É pouco provável que todas as sentenças tenham sido pronun-
ciadas como as temos hoje, ternárias, em sua maioria. Existem, ali-
ás, as que não são ternárias; adiante citaremos uma delas. É difícil,
e às vezes até impossível, situar as sentenças no contexto histórico e
social que as causaram. Quando é possível - é o caso de algumas re-
constituições particularmente felizes, feitas por sábios judeus como
Dinur e Urbach -, vê-se a Torá oral em seu surgimento histórico e
existencial.
Essas sentenças não foram pronunciadas para serem escritas.
Orais, grande número delas se perdeu. As que permaneceram na
memória e foram repetidas na literatura rabínica a partir de Yavné
foram, o mais das vezes, transmitidas sem nada que torne possível
explicá-las diretamente a partir de seu contexto. Portanto, temos
pérolas que devemos recolocar em sua oralidade e na nossa, à es-
cuta da oralidade judaica de hoje.
Ouçamos uma sentença de Hillel.
120
zontal: o eu comparado a outra coisa ou a outros eu; 2) na dimen-
são vertical: o eu comparado ao eu, na profundidade; 3) na dimen-
são temporal: o eu captado no momento.
Devemos acrescentar que há grande probabilidade de que essa
sentença seja de Hillel, pela consonância com tudo o que se sabe
dele e de sua experiência religiosa. Teria a Torá oral recebido de
Hillel o desejo de dar a suas sentenças a sabedoria da estrutura ter-
nária?
A estrutura ternária, típica da oralidade, não se impõe em to-
dos os casos. Temos, por exemplo, a seguinte Tradição, a respeito de
um Sábio, falecido em Yavné, nos anos 90.
AS REPETIÇÕES
É possível, como acabamos de ver, que não se saiba mais e que
a Torá seja esquecida. É o risco que a Torá assumiu, querendo per-
manecer, sobretudo, oral. Para limitar o risco, mas principalmente
para m anter de forma positiva a intensidade de uma Torá que, para
ser vivida, deve ser conhecida, a Torá oral pratica sua oralidade e,
em primeiro lugar, cultiva a memorização.
Lembramo-nos de que a Torá oral leva o nome de Mishná,
coisa repetida, aprendida e ensinada por repetição, que Mishná dis-
tingue-se de Miqra, coisa lida, Escritura (cf. texto n. 28).
121
A repetição é praticada intensamente, por exemplo, por Rab-
ban Yohanan ben Zakkai, "que jamais tinha sido encontrado senta-
do, em silêncio, mas repetindo sempre( ״cf. texto n. 27).
Nada há de surpreendente em que essa prática da repetição
tenha deixado traços na literatura rabínica.
A interpretação da Escritura dá ensejo à formulação de um en-
sinamento que deve ser repetido a cada passagem em que a Escri-
tura oferece ocasião para isso. Se a interpretação fosse redigida por
escrito, não seria necessário repeti-la; poder-se-ia remeter de uma
passagem a outra. Mas como se trata de anotação escrita, para ser-
vir de suporte à memória, ela retoma a cada passagem a formulação
oral.3
Vejamos isto a partir da Escritura que ensina que o próprio
Deus fez a Páscoa e feriu os primogênitos dos egípcios.
122
58. Mekilta de-Rabbi Shimeon ben Yohai s/ Ex 12,29
Ed. Epstein-Melammed p. 28
(E x 12,29): E o S en h or feriu to d o p rim o -
g ê n ito na terra d o E gito, e n ã o p o r u m e n -
v ia d o .
123
tenha estudado em ambiente judaico ou participado da liturgia da
noite pascal num a família judia teve experiência desse jogo.
Assim, há prazer em repetir; mas sabe-se também reduzir e
economizar para conservar as forças e o fôlego.
A PALAVRA ABREVIADA
Tomamos a expressão "a palavra abreviada" para fazer alusão
às riquezas desenvolvidas na Tradição da Igreja a partir de uma
tradução latina, discutível, de Is 10,23 citado por São Paulo na
epístola aos Romanos (9,28). O verbum breviatum ou abbreviation, o
verbo abreviado é, na Tradição cristã, o Cristo que "abreviou" sua
divindade, assumindo nossa humanidade. É também, segundo São
Francisco, na sua segunda Regra (9,4), o "verbo abreviado" que
serve de modelo aos pregadores que devem pregar "com brevidade
de discurso".
É precisamente o que faz a Torá oral, que economiza toda pa-
lavra inútil e que abreviará, pois, o trabalho dos escribas que ano-
tarão, mais tarde, as formulações orais.
124
61. T. J. Pesahim VI, 1
Com maior razão pode-se pensar: se o sa-
crifício perpétuo, quanto ao qual [não]
fazendo-o, som os sujeitos a punição, pre-
valece sobre o Sabá, não se d eve concluir
ainda m ais que o Sabá, quanto ao qual
[não] fazendo-o, som os sujeitos a puni-
ção, prevalece o Sabá?
125
Aqui, como no texto acima, vê-se bem claramente qual é a ma-
neira de evitar um contrassenso. Não é sempre o caso e, se houver
dúvida, será prudente consultar um mestre judeu.4
Notemos em nosso último texto o ponto de discussão entre
Ben Zoma e os Sábios, por volta do ano 100 de nossa era. Uma
tendência bem conhecida, baseada num a interpretação literal de
Jeremias, já prepara para se afastar da história e suprimir toda me-
mória, desde que seja possível, a partir dos tempos messiânicos. Os
Sábios, ao contrário, representando a opinião comum e autorizada,
sustentam que os tempos messiânicos não irão suprimir a memória
da primeira redenção do Egito. O cumprimento da história relativi-
za-a, confirmando-a. Relativizar não é fazer sumir. Os Sábios sabem
também interpretar a Escritura. Eles atualizam o fundamentalismo
e a incoerência da interpretação de Ben Zoma.
O nome principal, Israel, relativiza Jacó, nome doravante aces-
sório ou secundário. Jacó não é nome suprimido nem diminuído.
Relativo ao nome Israel ele é aumentado e iluminado pelo nome
teóforo. Assim também, a primeira redenção do Egito, tornando-se
relativa à última redenção, receberá dela confirmação e luz. Esse
vocabulário concreto - "principal, relativo, secundário, acessório" -
mantém a novidade imprevisível e irredutível da última redenção;
e respeita Deus, que não destrói nada e não esquece nada do que
fez por amor. Tal vocabulário poderia exprimir, de modo acessível
a todos, a relação que há entre a Páscoa judaica e a Páscoa cristã;
entre a antiga e a nova Aliança.
B - A economia do “Choque"
Abrevia-se também quando, depois de criar uma tensão, dei-
xa-se cada ouvinte continuar, ele mesmo, o que o texto quer preci-
samente fazê-lo dizer.
126
d ito (Am 9,6): A q u e le q u e con stró i n os
céus suas salas su p erio res e fu n da na ter-
* = sua abóbada ra o seu grupo*. Q uando Israel, em grupo,
* = Deus faz a von tad e do "Lugar"*, suas salas su-
periores estão nos céus. Mas se Israel não
estiver agrupado e não fizer a von tad e do
"Lugar", então, se é possível dizer [...]
D e m odo análogo, dizes (Ex 15,2): E ste é
m e u D eu s e o glorifíco; quando lh e dou
graças, eis que ele é celebrado [que ele é
belo]. Mas se não lh e dou graças, então,
se é possível dizer [...] D e form a análoga,
dizes (Dt 32,3): Pois vou in vo ca r o N o m e
d o Senhor; qu a n to a vós, en gran decei o
n osso D eus! Quando invoco seu N om e, há
grandeza para o nosso Deus. Mas se não
invoco seu n om e, então, se é possível di-
zer [...]
D e m aneira análoga (Dt 33,26): N in gu ém
é com o o D eu s d e Iesurun. Quando Israel
* yesharim, jogo de é reto* e faz a von tad e do "Lugar", nin-
palavras com Yeshurum guém é com o Deus. Mas se Israel não é
reto e não faz a von tad e do "Lugar", en-
tão, se é possível dizer [...] D e m aneira
análoga, disseste (Sl 123,1): A ti eu levan -
to m e u s olhos, a ti q u e estás se n ta d o nos
céus. Pois por m inha causa estás sentado
nos céus. Mas se eu não estivesse lá, então,
se é p ossível dizer.
C- As alusões
O texto, funcionando como lembrete, muitas vezes se conten-
ta em indicar o que normalmente é conhecido dos ouvintes e não
requer nenhum a explicação.
127
Algumas alusões tornaram-se indecifráveis; outras estão salvas
porque a Torá oral manteve, por outro lado, a memória de uma
explicação sobre o ponto em vista.
Assim, devemos a Rashi uma fábula de raposa, muito bela, que
o Talmude, comentado por ele, não julgou necessário contar.
Rashi s/ Abot yoklu Boser (os pais com eram uvas verdes)
É um a parábola a respeito d e um a raposa
que enganou u m lobo e o fez entrar no pá-
tio dos judeus, para preparar com eles o
que é necessário para a refeição e para co-
m er com eles durante o Sabá. Mas quando
entrou, juntaram -se contra ele, com paus.
Ele se aproxim ou da raposa para matá-la.
D isse [-lhe esta]: "Eles só te bateram por
causa de teu pai, porque um a vez ele tinha
com eçado a ajudá-los na refeição, m as de-
pois disso com eu todos os pedaços bons".
D isse-lhe ele: "E é por causa d e m eu pai
que m e batem?". Ela disse: "É, sim, (Ez
18,2) Os p a is com eram uvas verd es etc.
Mas vem com igo e vou te m ostrar um lu-
gar em que se com e e on d e se é saciado".
Ele foi com ela até um poço sobre cuja
beirada estava jogada um a viga, em cima
desta um a corda e, nas duas extrem ida-
des da corda havia dois baldes amarrados.
A raposa entrou no balde superior, largou
128
o peso sobre ele e desceu até em baixo, en-
quanto subia o balde inferior. D isse o lobo:
"Por que entraste aí?". D isse ela: "Aqui há
carne e queijo para com er e se saciar". E
lh e m ostrou o reflexo da lua na água, cír-
culo sem elh an te a um queijo redondo. Ele
disse: "E eu, com o vou descer?". Entrou,
largou o peso e desceu, enquanto subia o
balde em que estava a raposa. D isse ele:
"Como vou subir d e novo?". Ela respon-
deu (Pr 11,8): “ O ju s to escapa da angús-
tia e o ím p io ocupa o seu lugar. Não está
escrito (Lv 19,36): Balanças ju s ta s e p e so s
justos!?".
65. T. B. Taan it 8 a
Rabbi A m m i disse: "As chuvas só caem
para os que têm fé, com o foi dito (SI
85,12): Da terra germ in ará a V erdade e
a Justiça se inclinará d o s Céus". E Rabbi
A m m i disse: "Vem e vê com o são grandes
os que têm fé! D e on d e o sabem os? D e "A
doninha e o poço". E se é possível acre-
ditar num a doninha e num poço, quanto
m ais se d eve acreditar no Santo, bendito
seja!".
129
se passaram e ele violou a prom essa. Des-
p osou outra m ulher e gerou dois filhos.
Um caiu no poço e morreu. O outro foi
m ordido pela doninha e m orreu. Sua m u-
lher lh e disse: "O que acontece, pois, mor-
rerem os dois assim , de m orte estranha?"
D isse-lhe ele: "Assim se passou o fato...".
130
rei. Um rei tem, efetivamente, o poder de passar de um lugar a ou-
tro e de infligir esse flagelo por toda parte por onde passe. O texto
talvez quisesse dizer isto: se um rei tem tal poder, com maior razão
Deus tem tal poder. Ou ainda, quando lembramos a mensagem vis-
ta acima, segundo a qual é o próprio Deus que age (cf. textos 11. 56
a 59), o texto pode querer significar: Embora Deus seja mais que
um rei, Ele age, Ele próprio, como um rei da terra.
Na verdade, ainda uma vez, Rashi nos ajuda a compreender a
Torá oral, desenvolvendo o que está implícito.
131
pois dele. A partir disso disseram: "Acres-
centa-se o profano ao santo. Parábola:
[isto é sem elhante] a um lobo que exige
espaço d iante e atrás de si".
132
70. T. Β. Berakot 61 b
* o Império Romano. A con teceu que o reino perverso* decre-
Não há sinal de tal tou que Israel não se dedicasse m ais à
medida antes da Torá. Pappos ben Yehudah foi procurar
revolta de 132-135
Rabbi Aqiba e o encontrou reunindo as-
sem bleias públicas para se ocupar da Torá.
* o Império Romano D isse ele: "Aqiba! Não ten s m ed o do rei-
no*?". Aqiba respondeu: "Vou mostrar-
-te, por um a parábola, a que se assem elha
nossa situação. Ela é com parável a um a
raposa que andava ao longo de um rio.
Vendo p eixes que se ajuntavam e fugiam
de um lugar para outro, disse-lhes ela:
,׳Por que fugis?'. Responderam : ,׳Fugim os
das redes que os h om en s nos arm am ׳. Ela
disse: 'Se quiserdes, podereis subir para a
terra firm e e m orarem os juntos, vós e eu,
com o m eus pais viviam com vossos pais׳.
Replicaram: 'É m esm o d e ti que dizem ser
o m ais m atreiro dos anim ais? Não és m a-
treira, és estúpida! Se, na verdade, tem os
m ed o em nosso m eio vital, quanto m ais
d evem os tem er ir para um lugar que é a
nossa m orte!׳.
O m esm o acon tece conosco: se agora te-
m os m ed o, enquanto estam os sentados,
ocupando-nos da Torá da qual diz a Escri-
tura (Dt 30,20): Dela d e p e n d e a tua vida
e o p ro lo n g a m en to d o s teu s dias, quanto
* tradução D. de la
m ais deveriam os tem er se a abandonásse-
Maisonneuve m os e a deixássem os ׳׳.*
133
71. T. B. Makkot 24 a-b
Em tem p os passados, Rabban Gama-
liei, Rabbi Eleazar ben Azariah, Rabbi
Yehoshua e Rabbi Aqiba cam inhavam
pela estrada. Ouviram a voz da m ultidão
* porto da baía de rom ana em Putéoli*, a um a distância de
Nápoles (cf. At 28,13s) 120 milhas**. Começaram a chorar, mas
** cerca de 170 km Rabbi Aqiba ria. Disseram -lhe: "Por que
ris?". D isse ele: "E vós, por que chorais?".
R esponderam eles: "Os pagãos que se
prosternam d iante das estátuas e incen-
sam os ídolos vivem na segurança e na
tranquilidade; quanto a nós, o p e d e s ta l
* é o Templo
d o s p é s d e n osso D eus* (SI 99,5; 132,7; Lm
2,1) é queim ado p elo fogo, e nós não iria-
m os chorar?". Ele lhes disse: "É por isso
que estou rindo! Se é assim para os que
transgridem sua vontade, quanto mais
para os que cum prem a sua vontade".
Outra vez, eles cam inhavam em Jerusa-
lém e, ten d o chegado ao m o n te Scopus,
rasgaram as vestes. Chegando em seguida
à m ontanha do Templo, viram um a rapo-
sa que saía do Santo dos Santos. Come-
çaram a chorar; Rabbi Aqiba, porém , ria.
Disseram -lhe: "Por que ris?". R espondeu
ele: "Por que chorais?". Disseram eles: "O
lugar do qual foi escrito (Nm 1,51): E qual-
* = não-levita qu er estranho* q u e d e le se a p ro x im a r será
co n d en a d o à morte-, agora raposas foram
lá, e nós não iríam os chorar!". D isse ele:
"É por isso que estou rindo".
Está escrito (Is 8,2): Eu to m a rei com o tes-
tem u n h a s dignas d e fé o sa cerd o te Urias e
o filho d e Yebere K yah u , Zacarias. O que
vem , pois, Urias fazer ju n to d e Zacarias?
D e fato, Urias é do prim eiro Tem plo, ao
passo que Zacarias é do segundo Templo!
Na realidade, porém , a Escritura fez a pro-
fecia de Zacarias d epender da de Urias. Na
profecia d e Urias está escrito (Mq 3,12; Jr
26,18-20): p o r isso>, p o r culpa vossa, Sião
será arado com o um ca m p o etc.; e na pro-
134
fecia de Zacarias está escrito (Zc 8,4): Ve-
Ihos e velhas ainda se sen tarão n as praças
d e Jeru salém [...] Enquanto não se cum -
pria a profecia de Urias, eu tem ia que não
se cum prisse a profecia de Zacarias. Agora
que se cum priu a profecia de Urias, é se-
guro que a profecia de Zacarias está sen-
do cumprida". N estes term os, disseram:
"Aqiba, tu nos consolaste; Aqiba, tu nos
consolaste".
135
72. T. J. Ταaηit III, 4 66 c-d
* = decretou Rabbi Eliezer fez* um a m ortificação, m as
a chuva não caiu. Rabbi Aqiba fez a mor-
tificação e a chuva caiu.
Ele entrou e disse d iante deles: ',Vou m os-
trar, por m eio d e um a parábola, a que isto
se assem elha. [Isto é sem elhante] a um rei
que tinha duas filhas. Uma era in solen te e
a outra, sensata. Quando a in solen te pedia
e entrava para ju n to dele, ele dizia: "Que
seja concedido o que ela está p ed indo, e
que ela vá embora!". Mas quando a sen-
sata entrava para ju n to dele, ele continha
o desejo [de satisfazê-la], pois gostava de
ouvir sua conversa. Mas é perm itido di-
zer isso? Na realidade, [Rabbi Aqiba disse
isso] para não profanar o N om e dos Céus
a respeito de Rabbi Eliezer.
136
73. T. Β. Pesahim 112 α
Rabbi Aqiba, quando estava na prisão,
prescreveu cinco coisas a Rabbi Shim eon
* Rabbi shimeon ben Yohai. Ele* lh e disse: "Mestre! Ensi-
ben Yohai na-m e a Torá". D isse ele: "Não te ensina-
rei". Ele disse: "Se não m e ensinares, di-
rei a Yohai m eu pai e ele te denunciará
* às autoridades romanas ao reino*". D isse-lhe ele: "Meu filho! Mais
do que o bezerro quer mamar, a vaca quer
am am entar". D isse-lhe ele: "Quem corre
perigo? Não é o bezerro que corre peri-
go...?״.
A IMPROVISAÇÃO
Acabamos de ver várias improvisações espontâneas, feitas sob
influência dos acontecimentos, para consolar, para proteger um
mestre amado, para se eximir de ensinar um discípulo amado. Há
6 Por um mestre do movimento hassídico, o Magid Dov Baer de Mezeritch, que
dirá, através dessa imagem da vaca e do bezerro, que "é maior a alegria de Deus em
satisfazer as suas criaturas do que a das criaturas que Ele satisfaz".
137
um campo em que a improvisação, a renovação constante, são for-
temente recomendadas, senão impostas. É o campo da oração, par-
te muito importante da Torá oral, um dos três pilares sobre os quais
se apoia o mundo segundo Shimeon, o Justo (cf. Texto η. 1).
138
zar, disse: "Que pelo m enos ele não seja
sem elh an te a alguém que lê um a carta".
Rabbi Aha, em n om e de Rabbi Yose: "É
necessário inovar nela* algum a coisa a
* = na oração cada dia".
139
78. J. Heinemann, P raye r in the Talm ud p. 58-59
[Que] ressuscitas Que despertas Que despertas
os m ortos, os que dorm em os que dorm em
e que reanim as que reanim as
os que estão os que estão
entorpecidos entorpecidos
que fazes falar
os m udos
ampara que libertas
os que vacilam os cativos
e curas os d oen tes e que amparas que amparas
e libertas os que vacilam os que vacilam
os cativos e que endireitas os e curas os d oen tes
curvados e libertas os cativos
(Bênção Geburôt da (Nishmat-kol hai ־rito (Nishmat - rito de
'Amidah; Birnabaum, ashkenaze, ibid. p. Maimônides [manus-
p. 83). 331). crito]).
140
A m paro dos que vacilam , responde-nos!
A uxílio dos pobres, salva-nos!
R edentor e Salvador, faze-nos prósperos!
(We besech, Thee, 0 Lord, save us! Piyyütfor Simbat
Tôrâh, rito ashkenaze; Birnbaum p. 705).
Comentário
"Não há qualquer necessidade de supor
que o ·׳autor ׳d e N ish m at, por exem p lo,
tenha tom ad o por m od elo a bênção de
G eburot, ou que o ·׳autor■׳d e B irk o t Ha-
-Sharar ten h a feito o m esm o com N ish-
m a t e que os dois ten h am intencional-
m en te transferido essas fórm ulas d e um
con texto para outro. Cada autor desejou,
d e preferência, com por sua própria ora-
ção de louvor a D eus e usou essas fórm u-
las fam iliares que lh e vieram ao espírito
sem nen h um a hesitação (e talvez até sem
saber). Por esse m otivo, não preservou o
núm ero ou a ordem das diferentes frases
em sua ׳־fo n te ;׳tam b ém não h esitou em
quebrar a longa série de fórm ulas con-
secutivas com o aparecem na A m id a h e
em N ish m a t, e em distribuí-las entre as
bênçãos separadas dos B irk o t Ha-Sharar.
Por conseguinte, não tem os necessidade
de falar da ׳influência ׳d e outra oração,
quando um a versão particular con tém
notas adicionais que não se encontram
em n enhum a das outras versões."
141
Deuteronome, severamente criticado no seu tempo, serviu de revela-
dor negativo: no caso de texto de tradição oral, é preciso seguir uma
das versões, mais do que procurar encontrar "a versão original" e,
ainda menos, fabricar uma. É claro que isso não torna inútil a loca-
lização das variantes de determinada versão.
142
“A desgraça persegu irá os pecadores" . In-
* os profetas terrogou-se a Profecia*: "Qual é o castigo
do pecador?". Ela resp on d eu (Ez 18,4):
"A alm a q u e p eca r, essa m orrerá". Inter-
rogou-se o Santo, b en d ito seja: "Qual é
o castigo do pecador?". Ele respondeu:
"Que ele se arrependa e se beneficiará da
expiação. E é o que está escrito. P o r esse
m o tiv o E le a p o n ta o ca m in h o aos p eca -
dores: Ele ap on ta aos pecadores o cam i-
n h o para que se arrependam ".
143
* os Hagiógrafos ou Interrogou-se a Sabedoria*: "Qual é o
Escritos castigo do pecador?". Ela respondeu (Pr
13,21): "A desgraça p erseg u irá os p eca d o -
res".
* os Profetas Interrogou-se a Profecia*: "Qual é o casti-
go do pecador?". Ela respondeu (Ez 18,4):
"A alm a q u e pecar, essa m orrerá".
* o Pentateuco Interrogou-se a Torá*: "Qual é o castigo
do pecador?". Ela respondeu (cf. Lv 5,6):
"Ele trará um sacrifício d e reparação p e lo
p e c a d o e se beneüciará da expiação". In-
terrogou-se o Santo, b en d ito seja: "Qual
é o castigo do pecador?". Ele respondeu:
"Que ele se arrependa e se beneficiará da
expiação. Isso é que está escrito (Sl 25,8):
O S en h or é b o m e reto; ele a p o n ta o cam i-
n h o aos pecadores".
Rabbi Pinhas disse: "Como é Ele bom ao
passo que é reto e com o é Ele reto ao pas-
so que é bom ? Por esse m otivo, aponta o
cam inho aos pecadores, isto é, Ele aponta
aos pecadores o cam inho para que se arre-
pendam . É assim que Oseias exorta Israel
e lhes diz (Os 14,2): Volta,Israel".
144
a vida é somente o arrependimento, a volta para Deus. O próprio
Deus - pela boca do homiliasta que, em nome da comunidade, diz
a Torá oral -, proclama que o arrependimento dá a expiação. Essa
palavra direta ultrapassa qualquer outra formulação, ainda que seja
da Torá escrita.
O Talmude de Jerusalém e a Pesiqta de Rab Kahanah são coleta-
neas contemporâneas, provenientes das mesmas escolas rabínicas
da Terra de Israel entre os séculos III e V. Têm grande quantidade de
versões paralelas de detalhes, e de montagens paralelas.
A plasticidade da Torá oral evidencia a variedade das monta-
gens. No Talmude, parte-se da realidade jurídica das cidades de re-
fúgio para chegar à realidade homilética do arrependimento. Não
seria possível ilustrar melhor que não há nenhum a separação a fa-
zer entre a Halaca e a Hagadá; entre o direito e a espiritualidade. Na
Pesiqta de Rab Kahana, inteiramente haggádica, parte-se da Escri-
tura (Salmo) para chegar à Escritura (Oseias).
Citemos rapidamente um terceiro texto que é, de forma visí-
vel, não uma anotação escrita, mas um resumo escrito.
145
As duas montagens mereceríam ser estudadas mais a fundo,
tanto do ponto de vista da anotação escrita, mal transmitida nos
dois casos, quanto do ponto de vista do conteúdo. O que nos inte-
ressa aqui é ver que duas montagens diferentes, ambas originais,
transmitem a mesma dúplice mensagem:
- A Torá oral utiliza oralmente os conjuntos de que dispõe.
Reorganiza-os à sua vontade;
- A Torá oral ensina a abertura, o ir além de toda formulação,
que faria cessar a marcha do caminho da vida.
A partir dessa realidade da Tradição de Israel, e do conteúdo de
continuidade que ela oferece, é que é possível apreciar melhor, do
ponto de vista cristão, a novidade das palavras de Jesus no Sermão
da M ontanha (Mt 5). A novidade não consiste em ir além das for-
mulações "escriturísticas" ou outras. Ela está no que Jesus diz: "Mas
eu vos asseguro״. O homiliasta judeu faz Deus falar na primeira
pessoa. O homiliasta não fala, ele próprio, na primeira pessoa.
De qualquer maneira, tanto na literatura rabínica quanto no
Novo Testamento, as anotações escritas demonstram a oralidade da
mensagem original e remetem a essa vivência do encontro com
Deus que fala diretamente ao ouvinte.
146
vivência. Essa divergência está a serviço de uma convergência que
cada ouvinte cria para si mesmo e para outros.
Vejamos as duas versões do martírio de Rabbi Aqiba, transmi-
tidas por seus discípulos.
83, T. B. Berakot 61 b
Foi ensinado: Rabbi Eliezer disse: "Se está
dito (Dt 6,5): com to d a a tua alm a, por que
está dito: com to d a a tua força? E se está
dito: com to d a a tua força, por que está
dito; com to d a a tua alm a? Mas, na rea-
lidade, podes encontrar um h om em que
prefere o corpo à riqueza, porque está
dito: com to d a a tua alm a. E p odes encon-
trar um h om em que prefere a riqueza ao
corpo, porque está dito: "Com to d a a tua
força". Rabbi Aqiba disse: "Com to d a a tua
alm a, m e sm o q u e Ele to m e a tua alma".
147
N ossos m estres ensinaram: A conteceu,
* o Império Romano um a vez, que o reino perverso* decretou
que Israel não se dedicaria m ais à Torá.
Pappos ben Yehudah foi procurar Rabbi
Aqiba e o encontrou em reunião de as-
sem bleias públicas, ocupando-se da Torá.
Ele lh e disse: "Aqiba, não ten s m ed o do
* o Império Romano reino*?". Aqiba respondeu: "Vou m os-
trar-te, através de um a parábola, a que se
assem elha nossa situação. Ela é sem elhan-
te a um a raposa que cam inhava ao longo
de um rio e via os p eixes se reunirem e
fugirem d e um lado para outro. D isse-lhes
ela [...] ,׳Por que estais fugindo?׳. Disse-
ram: ׳־Fugim os das redes que nos lançam
os filhos d e A dão׳. Ela disse: 'Se quiserdes,
p odeis subir a terra seca e m orarem os
ju ntos, vós e eu, com o m eus pais viviam
com vossos pais'. D isseram eles: 'És tu,
que dizem ser o m ais m atreiro de todos
os anim ais? Não és matreira, és estúpida!
Se, na verdade, no nosso elem en to vital
tem os m ed o, quanto m ais d evem os te-
m er ir a um lugar que é nossa m orte!׳. O
m esm o acontece conosco: se agora tem os
m ed o, quando estam os sentados e ocu-
pados com a Torá, da qual diz a Escritura
(Dt 30,20): Pois dela d e p e n d e a tua vida
e o p ro lo n g a m en to d o s teu s dias, quanto
m ais deveriam os tem er se a abandonásse-
m os e a n egligenciássem os!׳׳.
Contam que, pouco tem p o depois, Rabbi
Aqiba fo i preso e acorrentado na prisão.
Pappos ben Yehudah tam bém foi preso e
acorrentado ju n to dele. Rabbi Aqiba lhe
disse: "Pappos, quem te trouxe aqui?׳׳.
Ele respondeu: "Feliz és tu, Rabbi Aqiba,
que foste preso por causa das palavras da
Torá! Infeliz Pappos, que prenderam por
coisas vãs!'׳.
Q uando fizeram sair Rabbi Aqiba para
m atá- lo, era o m o m en to d e ler o Shema.
D ilaceravam -lhe a carne com p en tes de
148
ferro e ele recebia o jugo do R eino dos
* ele recitava a céus*. D isseram -lhe seus discípulos: "Ó
oração do Shema nosso m estre! A té que ponto!". D isse-lhes
ele: "Todos os dias da m inha vida preocu-
p ei-m e com este versículo: com to d a a tua
alm a, que significa: m esm o que Ele tom e
a tua alma. Eu dizia comigo: ·׳Quando con-
* 'aqayye-mennu seguirei cum pri-lo*?׳. E agora, que isso m e
é dado, não o cumpriría?". Ele prolongou
* 'ehad. O Shema começa a palavra "único"* até entregar a alma.
assim: Ouve, ó Israel! O Uma voz celeste se fez ouvir dizendo: "Fe-
Senhor nosso Deus é o liz és tu, Aqiba, cuja alm a saiu pronun-
Único Senhor (Dt 6,4)
ciando: 'Único'!".
7 Cf. texto n. 33, que ilustra a profundidade do vínculo que une Rabbi Eliezer a seu
discípulo Rabbi Aqiba.
149
No entanto, os relatos não são idênticos; isso mostra que a
morte de Rabbi Aqiba é Torá, e que a Torá jamais se esgota por uma
simples interpretação, segundo as palavras do Salmo 62,12: "Deus
falou uma vez, e duas vezes eu ouvi".
150
BIBLIOGRAFIA
151
OUTRAS OBRAS
H. L. Strack; G. Stemberger, Introduction au Talmud et au Midrash.
Tradução e adaptação para o francês de M.-R. Hayoun, Col.
Patrimoines, Judaisme. Paris: Cerf, 1986.
J. Heinemann, La prière juive. Une anthologie composée et présentée por J.
Ho, Prefácio de P. Lenhardt.Tradução do hebraico por J. Dessellier,
Col. Les Cahiers de l'Institut Catholique de Lyon13 ;׳Lião, 1984.
D. de La Maisonneuve, Paraboles rabbiniques, Supplément au Cahier
Évangile n. 50, Paris, 1984.
A.-C. Avril-D. de la Maisonneuve, Prières juives, Supplément au Cahier
Évangile n. 68, Paris, 1989.
152
GLOSSÁRIO
153
em Hagadá e Halaca; tudo o que não é Halaca é Hagadá. Entendida
assim, esta última corresponde praticamente a tudo o que colocamos
sob o vocábulo "teologia".
Dentro desses dois conjuntos, uma Tradição narrativa particular
também se chama Hagadá, e uma Tradição normativa particular tem
o nome de Halaca. Entre Hagadá e Halaca não há separação absoluta.
Halaca: Da raiz halak, "ir, caminhar", sendo o caminhar uma
velha metáfora bíblica que designa o comportamento do homem no
todo de sua existência (Lv 26,3; Dt 11,22). De modo geral, a Halaca
designa o que diz respeito à prática da Lei. R. Nathan ben Yehiel (século
XI) dá uma dúplice definição da Halaca:
1 ־O que vai e vem desde os tempos antigos (desde as origens,
isto é, desde Moisés) e até o fim. A Halaca pode efetivamente
evoluir, mas, garantida pela Revelação mosaica, não pode ser
suprimida ou abolida.
2- Aquilo a que se conforma o comportamento de Israel; definição
mais geral e subjetiva, que tem a vantagem de corresponder
a todos os casos, inclusive àqueles em que a Halaca não é
imemorial, nem se apoia sobre a Escritura, mas resulta da prática
do povo. Dessa dúplice definição, resulta que a Halaca é o que
regula a prática da Lei. A palavra Halaca pode designar uma
norma particular ou o conjunto das normas segundo as quais
deve transcorrer a existência judaica: todo o campo jurídico.
Midrash: Da raiz darash, pesquisar, investigar, explicar,
interpretar. O termo designa:
1- É preciso investigar a Escritura para descobrir o sentido que
ela assume hoje, pois essa palavra inesgotável tem um sentido
para todas as situações e para todas as épocas. Por isso, há
uma atividade exegética complexa que explora, em função das
circunstâncias, a inünita riqueza da Palavra divina e pode propor
a seu respeito um sentido preferencial ou oficial; mas ela não
podería fechar-se sobre esse sentido, considerando-o único e
exclusivo.
2- Em sentido mais particular, a palavra Midrash (plural Midrashim)
designa também o resultado dessa atividade exegética, uma
coletânea ou um comentário de um texto ou livro bíblico.
3- Posteriormente, a expressão "midrash" serviu para designar todo
o conjunto da literatura haggádica.
Mishná: Do hebraico shana, que significa "repetir"; sob a
influência do aramaico tanna, esse termo tomou o sentido de "estudo"
154
ou de "ensinamento". A palavra Mishná designa, pois, uma coisa
"ensinada" ou "estudada' por "repetição".
- No sentido mais amplo, a Mishná é o conjunto da Lei oral e de
seu estudo, que é essencialmente caso de memorização e de
recapitulação. Nesse sentido, Mishná contrasta com miqra (de
quara, ler), que designa a Bíblia, a Lei escrita, que se estuda e
transmite pela leitura, uma vez que está consignada em livro
(cf. Ne 8,8).
-N o sentido mais restrito, a Mishná designa a mais antiga coletânea
de tradições, redigida entre a reconstrução do judaísmo em
Yavné, depois da destruição do Templo (70 d.C.) e da morte do
último redator, R. Yehudah ha-Nasi (= o Príncipe), que também
é chamado simplesmente Rabbi, no início do século III d.C. (por
volta de 220). Essa Mishná de Rabbi foi preparada por coleções
anteriores e por compilações de R. Aqiba e de R. Meir.
Como todas as outras coletâneas da literatura rabínica antiga,
a Mishná foi redigida ou compilada e divulgada oralmente por
transmissão a "repetidores".
Rabbi, rab: Em hebraico, "meu Mestre". O título Rabbi designa
qualquer mestre, sem que haja necessariamente relação pessoal com
quem o emprega. Na Babilônia, na época do Talmude, Rabbi tornou-se
Rab.
Rabban: Em aramaico, "nosso Mestre". Na Palestina, título
reservado ao chefe do colégio rabínico (Sinédrio).
Sábios: No judaísmo pós-bíblico, "Sábio" foi primeiramente
um título conferido a mestres espirituais que não tinham recebido a
ordenação que os elevasse ao nível de "Rabbi"; depois, porém, esse
termo serviu para designar mestres validamente ordenados. Na prática,
os mestres fariseus é que são chamados "Sábios", e seus sucessores
designam-se em geral como "discípulos dos Sábios".
Talmude: Da raiz lamad, a palavra significa estudo e ensinamento.
1. No sentido amplo e geral, o termo talmude é suscetível de
empregos variados.
- Pode significar o ensinamento da Torá (comentários, explicações,
opiniões... ) que os discípulos recebem de seus predecessores.
- Pode referir-se também à Torá ensinada e estudada, para designar
todo o conjunto do saber de alguém em matéria de Torá.
- Significa também um ensinamento tirado de texto bíblico
por meio da exegese. Assim, fórmula técnica talmud Tomar,
que introduz um recurso à Escritura, significa: "A Escritura,
convenientemente interpretada pela Tradição, diz...".
155
2. Em sentido mais restrito e mais comumente usado, o talmude
visa o corpus do ensinamento (Gemam), compreendendo o comentário
e as discussões dos amoraim sobre a Mishná de R. Yehudah ha-
-Nasi (Talmude = Mishná + Gemara). Como esse estudo da Mishná se
processou em dois grandes centros, concomitantemente na Terra de
Israel e na Babilônia, o Talmude compreende duas grandes coletâneas:
- O Talmude de Jerusalém, mais justamente chamado Talmude
palestinense ou Gemara dos Ocidentais (vista de Babilônia); recebeu
sua forma atual no início do século V, antes do fechamento da
Academia de Tiberíades em 425 d.C.
- O Talmude de Babilônia, composto nas Academias de Neardeia,
Sura, Pumbedita... entre a primeira metade do século III e o ano
500. Nem um nem outro dos dois Talmudes contém o comentário
de todos os tratados da Mishná.
Quanto ao Talmude de Jerusalém, utiliza-se comumente a edição
de Krotoshin (1866) e a passagem é designada pelo tratado, capítulo e
número da Halaca correspondente à Mishná comentada. Exemplo: T.
J. Sanh. V, 2 = Talmude de Jerusalém, tratado Sanhédrin, capo V, Halaca
n. 2.
Quanto ao Talmude de Babilônia, usa-se a edição de Vilna (1880-
1886). A passagem é designada pelo nome do tratado, número da
folha e indicação da página (a= anverso; b=verso). Exemplo: Berkhot
7 a = tratado Berakhot do Talmude de Babilônia, folha 7 anverso.
Tannaim: Do aramaico tena', teny, repetir, estudar; tanna' = o
repetidor. O termo designa os "mestres" cujos nomes são mencionados
na Mishná ou pertencem à época da Mishná, isto é, ao período que vai
dos discípulos de Hillel e Shammai (20 d.C.) ao acabamento da Mishná
(220 d.C.).
Esses dois séculos foram marcados por dois fatos muito importantes:
a queda de Jerusalém (70 d.C.), que levou a comunidade judaica a se
reformar em Yavné sobre a base da Torá, e a queda de Betar (135 d.C.),
que marcou o fim da segunda revolta judaica e causou o deslocamento
dos centros de estudos da Judeia para a Galileia. Os tannaim precedem
os amoraim e seguem os zugoth (os "pares", de Yose ben Yoeser a Hillel),
e os soferim, sucessores de Esdras, chamados ainda "homens da grande
sinagoga". É aos tannaim que cabe a redação dos midrashim halákhicos,
bem como a da Mishná e da Tosephta.
Torá: Da raiz yarah, indicar uma direção, ensinar, instruir.
A palavra tem o sentido de instrução e de ensinamento; e quando
esse ensinamento é dado por Deus, torna-se Revelação. Traduzindo
156 ;
o hebraico Torá pelo grego nomos, os Setenta acentuaram o aspecto
jurídico em detrimento do aspecto Revelação. Desse modo ressaltaram,
pelo menos, que essa Revelação, como expressão da vontade divina,
requer do homem perfeita submissão e inteira obediência. Já
identificada com a Sabedoria divina, no século II antes da era cristã, a
Torá foi considerada como preexistente ao mundo; como o instrumento
precioso pelo qual o mundo criado e sem o qual não podería subsistir.
Na concepção farisaica, essa Torá é constituída:
- De um lado, pela Revelação divina contida nos cinco livros de
Moisés, completada e explicada pelo ensinamento dos "Profetas"
e dos "Escritos": é a Torá escrita.
- De outro lado, pela Tradição não-escrita dos Pais: a Torá oral,
recebida também por Moisés no Sinai e transmitida por ele a
Josué, depois a seus sucessores, paralelamente à Lei escrita.
157
OS 63 TRATADOS DA MISHNÁ
159
II. Ordem segunda: M o'ed, os dias d e festa.
1. Sabá (Ex 20,10; 23,12; Dt 5,14).
2. Erubin, misturas; dizem respeito às obrigações do Sabá.
3. Pesahim, as festas da Páscoa (Nm 9,1-14).
4. Sheqalim, oferta para o santuário (Ex 30,12-16).
5. Yoma, o Dia das Expiações ou Yom Kippur (Lv 16).
6. Sukka, a tenda, a festa de Sukkot, das Tendas (Lv 23,33-36).
7. Bétsa, o ovo (de acordo com a primeira palavra do tratado).
O que é preciso respeitar nos dias de festa.
8. Rosh ha-Shanah, festa do Ano Novo (Lv 23,24-25).
9. Ta'anit, o jejum.
10. Megilla, o rolo, particularmente o rolo de Ester, lido na
festa do Purim (Est 9,28).
11. Mo’edgatan, meias-festas; festas de segunda importância.
12. Hagiga, celebração. A respeito das três festas de peregri-
nação (Pesah, shabu'ot, Sukkot).
160
8. Aboda Zara, a idolatria.
9. Abot, os Pais. Sentenças dos mestres.
10. Horayot, os ensinamentos.
161
ÍNDICE DOS TEXTOS ESTUDADOS
163
Pesiqta de-Rab s/Ke-gon Meg. Flávio Josefo
Kahana Taanit n.44 Antiguidades
Pisq. 24 n.80 s/Megillat XIII 10,5-6 n.37
Setarim n.46
Pesiqta Rabbati s/Abot youklu Abram son
Pisq. 514a-b n.47 Boser n.64 Sippur
s/mi-Huldah ha-Sepharim n.50
R esponsório u-Bor n.65 Frankel
d e Rab Hai Gaon Deitrãge... n.51
s/Rosh Ha-Shanah M aim ônides Heinemann
34a n.8 Responsório n.48 Prayer in
Rashi n.442 The Talmud n.78
s/Ex 12,12 n.68
s/Sotah 16a n.12 Shibboley Há-Leqet Alguns dados biográ-
s/Rolo da Torá n.14 281 n.17 ficos sobre οι; rabis
s/Megillat dtados serão encontra-
Taanit n.42 2 Macabeus dos em Strack-Stem-
7,22-23.28-29 n.19 berger, op. cit.rp. 85-129.
164
QUADRO CRONOLOGICO
Ano J u d a ísm o C ristian ism o A c o n te c im e n to s
p o lítico s
200 Simeon, 0 Justo
100 Sublevação dos Macabeus
(-167, -160)
0 Hillel, Shammai Jesus de Nazaré Tomada de Jerusalém
por Pompeu (-63)
Herodes, 0 Gde. (-40, -4);
Augusto (-37, + 14)
Yohanan ben Zakkai São Paulo Epístolas Primeira guerra judaica
Ishmael; Aqiba: Meir fim redação Evangelhos (66-74)
Destruição do Templo
por Tito (70)
100 Shimeon ben Yohai Justino Segunda guerra judaica
Yehudah, 0 Príncipe Irineu (132-135)
Orígenes
200 A Mishná
300 Constantino (306-337)
0 cristianismo torna-se
religião lícita.
Teodósio (379-385) 0
cristianism o torna-se
religião do estado
400 Talmude de Jerusalém Agostinho; Jerônimo
A Vulgata latina
500 Talmude de Babilônia Bento de Núrcia Os judeus expulsos da
Palestina
600 Gregório, 0 Grande Maomé, inicio do isla-
mismo (622)
700 João Damasceno Carlos Martel em Poin-
tiers (732)
800 Carlos Magno impera-
dor do Ocidente (800-
814)
900
Rab Hai Gaon Simeon, Início das cruzadas
1.000 0 Novo Teólogo (1096)
1.100 Rashi (1040-1105) Anselmo de Canterbury Filipe Augusto (1180-
Bernardo de Claraval 1223)
1.200 Maimônides Francisco de Assis São Luís (1226-1270)
Tomás de Aquino
166
SUMARIO
P r ó l o g o ............................................................................................................................... 7
I n t r o d u ç ã o ........................................................................................................................ 9
G lo s s á r i o ......................................................................................................................... 153
Os 63 t r a t a d o s d a M i s h n á .................................................................................... 159
í n d i c e d o s t e x t o s e s t u d a d o s ................................................................................ 163
Q u a d r o c r o n o l ó g i c o ................................................................................................. 165