Você está na página 1de 4

14/11/2019 A filáucia, mãe de todos os vícios

Terapia das Doenças Espirituais

A filáucia
Com o pecado original, o amor do homem por si mesmo experimentou uma
desordem: ele prefere gozar dos bens mutáveis a honrar o Bem imutável, que
é Deus. A única forma de sair desse sistema mundano é a renúncia de si
próprio, como manda Jesus no Evangelho: "Se alguém quer vir após mim,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz, cada dia e siga-me."

Conheça, nesta aula de nosso curso de Terapia das Doenças Espirituais, em


que consiste a filáucia, origem de todos os vícios capitais.

Na primeira aula, foi sondado o começo de nossa “ historia calamitatum". Pelo pecado de
Adão e Eva, entrou uma desordem no mundo, desordem que se mostra por três raízes, a
saber: a libido amandi, a libido possidendi e a libido dominandi. Essas três causas do
pecado têm origem em uma só: o amor desordenado de si mesmo, que também se pode
chamar de amor sui, em latim, e de filáucia. Esta expressão vem de duas palavras gregas –
φιλία (lê-se: filía) e αυτός (lê-se: autós) – e designa o amor que o ser humano tem por si
mesmo, amor que se encontra doente, por conta do pecado original.

Como referência para esta aula, é recomendada a leitura da obra Philautia. Dall'amore di sé
alla carità, do Pe. Irénée Hausherr. Para escrevê-la, ele se baseia especialmente em São
Máximo, o Confessor, que é mestre sobre esse tema. Em suas Centúrias sobre a Caridade,
esse autor cristão ensina:

“Toma cuidado com o amor-próprio, mãe de todos os vícios, e que é o amor irracional
do próprio corpo. Indubitavelmente, dele nascem os três primeiros pensamentos
passionais fundamentais: o da gula, o da avareza, e o da vanglória, que tem origem
nas exigências necessárias do corpo; por eles nasce toda a série de vícios. É preciso,
portanto, como se disse, ter cuidado com este amor-próprio, e combatê-lo com muita
sobriedade; destruído ele, são destruídos todos os pensamentos que dele provêm." [1]

“O amor-próprio, como muitas vezes se disse, é causa de todos os pensamentos


passionais. Dele se engendram os três pensamentos capitais da concupiscência: o
da gula, o da avareza e o da vanglória. Do da gula nasce o da fornicação; do da
avareza, o da avidez; do da vanglória, o da soberba. Todos os outros se seguem a cada
um dos três: o da ira, o da maledicência e os mais. Estas paixões atam a mente às
coisas materiais e a retêm na terra, como pedra pesadíssima em cima dela, sendo
embora a mente, por natureza, mais leve e ágil que o fogo." [2]

https://padrepauloricardo.org/aulas/a-filaucia-mae-de-todos-os-vicios 1/4
14/11/2019 A filáucia, mãe de todos os vícios

O amor filaucioso, por sua vez, nasce da realidade do pecado original. Antes da queda, os
olhos do homem eram capazes de voltar-se às coisas criadas e transcender para Deus. As
criaturas não passavam de ícones que remetiam ao Criador. Assim, se se olhasse no
espelho, o homem na inocência primitiva amaria em si a “imagem e semelhança" divinas
impressas nele [3]. Esse era o amor sui sadio, pelo qual Nosso Senhor dizia que o homem
deveria amar ao próximo como a si mesmo [4].

Após o pecado original, no entanto, entrou uma desordem nesse amor-próprio. Notável é
que também os filósofos pagãos a tenham notado. Aristóteles escreve que, já em seu tempo,
“'amante de si mesmo' é uma expressão desonrosa". E, ao exemplificar como o homem mau
se ama desordenadamente, ele faz referência ao “gozo medíocre", ao “dinheiro" e, depois, “às
honras e aos cargos" [5] – curiosamente, as mesmas três libidines de que se falou na última
aula. Impressiona como o homem iluminado pela razão consegue chegar às mesmas
conclusões que chegam os autores espirituais e a Tradição da Igreja.

A partir da queda, então, as criaturas, que eram ícones que apontavam para o alto, ficam
opacas e o seu uso se dirige à satisfação de si próprio. Esse sistema é completamente
autodestrutivo. Um dependente químico, por exemplo, usa drogas porque quer ser feliz.
Todas as pessoas veem, porém, que ele está destruindo a si mesmo, a sua família e aqueles
que estão à sua volta. “O homem mau não deve ser um amante de si mesmo, visto que
obedecerá às suas paixões vis e assim prejudicará tanto a si mesmo quanto aos seus
semelhantes" [6], diz Aristóteles. São João Crisóstomo compara essa situação à loucura:

“Se, andando pela rua, encontrássemos uma pessoa mutilando a si mesma e


arrancando pedaços do seu próprio corpo, não hesitaríamos em dizer que se trata de
um louco, pois dilacerar os próprios membros 'é próprio de furiosos e de loucos'. Tal
é a nossa condição de pecadores. Achamo-nos muito inteligentes ao deixar Deus de
lado e inventar uma forma nova de amor-próprio, mas acabamos por nos destruir."
[7]

Para curar essa doença, é necessário voltar à capacidade de transcender, olhando para as
coisas criadas e dirigindo o nosso olhar ao Céu. A esse propósito, Santo Agostinho faz uma
comparação fantástica:

“Deus não te proíbe de amar estas coisas [as criaturas], mas de amá-las com a
finalidade de obter a felicidade. Não é proibido, porém, admirar e aceitar as criaturas
para amar o Criador."
“Irmãos, suponhamos que um esposo fizesse um anel para sua esposa e esta tivesse
mais amor pelo anel recebido do que pelo esposo que lho fabricou; não é verdade
que com aquele presente se revelaria que a esposa tem um coração adúltero, embora
ela ame algo que é presente do esposo? É claro que ela ama algo que foi feito pelo
seu esposo, mas se ela dissesse: 'Basta-me o seu anel, e não me interessa ver o seu

https://padrepauloricardo.org/aulas/a-filaucia-mae-de-todos-os-vicios 2/4
14/11/2019 A filáucia, mãe de todos os vícios

rosto', que tipo de esposa seria esta? Quem não abominaria esta loucura? Quem não
condenaria este sentimento de adúltera?"

“Amas o ouro no lugar do homem, amas o anel no lugar do esposo: se estes são os
teus sentimentos a ponto de amar um anel no lugar do teu esposo e a teu esposo não
queres nem mesmo ver; então quer dizer que ele te deu este penhor, não para te
comprometer, mas para te perder. É para isto que um esposo oferece um penhor,
para que no penhor ele mesmo seja amado. Para isto Deus te ofereceu as coisas
[criadas]: ama aquele que as fez. Ele quer te oferecer muito mais, ou seja, quer dar a
si mesmo. Mas se amares as coisas, mesmo que tenham sido feitas por ele, se
esquecesses o Criador para amares o mundo, o teu amor não deveria ser julgado
como amor adulterino?" [8]

Amar as coisas ao invés de Deus é destruidor porque significa cortar o próprio galho no qual
se está sentado. Identifica-se, aqui, o conflito entre dois amores – o amor Dei e o amor sui. É
a essa luta que se refere São João, quando diz que “tudo o que há no mundo (...) não vem do
Pai, mas do mundo" e que “o mundo passa, e também a sua concupiscência; mas aquele que
faz a vontade de Deus permanece para sempre" [9]. É também sobre o que Santo Agostinho
fala em sua obra De Civitate Dei: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor-
próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si
próprio, a celestial" [10].

O “desprezo de si próprio" significa a renúncia ao amor doente. A única forma de sair desse
sistema de destruição no qual o homem foi colocado com o pecado original é renunciando a
si mesmo. Foi o próprio Jesus quem disse: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si
mesmo, tome a sua cruz, cada dia e siga-me" [11]. Infelizmente, muitas pessoas dentro da
própria Igreja não entendem – ou mesmo subvertem – isso, procurando uma forma de
serem cristãs sem abraçar a Cruz e renunciar à própria vontade. Mas, é novamente Nosso
Senhor quem diz, “quem quiser salvar a sua vida a perderá; e quem perder a sua vida por
causa de mim a encontrará" [12].

Assim, a única forma de viver o amor sui correto é situá-lo dentro do amor Dei. O amor
virtuoso, a caridade de que falam as Sagradas Escrituras, embora se possa dirigir a Deus, a
si próprio e ao próximo, deve ter um único objeto formal, que é o próprio Deus. Isso significa
amar o Criador e as criaturas somente por causa d'Ele. Só assim entraremos no caminho da
cura, que pavimenta a cidade de Deus.

Referências

1. Centúrias sobre a Caridade, II, 59: PG 90, 419

2. Ibidem, III, 56: PG 90, 436

https://padrepauloricardo.org/aulas/a-filaucia-mae-de-todos-os-vicios 3/4
14/11/2019 A filáucia, mãe de todos os vícios

3. Gn 1, 26

4. Cf. Mt 22, 39

5. Ética a Nicômaco, IX, 8

6. Idem

7. Padre Paulo Ricardo. Um Olhar que Cura. São Paulo: Editora Canção Nova, 2008. p. 22

8. Santo Agostinho, In epistolam Iohannis ad Parthos, II, 11: PL 35, 1995

9. 1 Jo 2, 16.17

10. Santo Agostinho, De Civitate Dei, XIV, 28

11. Lc 9, 23

12. Mt 16, 25

Recomendações

Padre Paulo Ricardo, Um olhar que cura, Editora Canção Nova

Philautia. Dall'amore di sé ala carità | Amazon.it

Centúrias sobre a Caridade e Outros Escritos Espirituais – Saraiva.com.br

https://padrepauloricardo.org/aulas/a-filaucia-mae-de-todos-os-vicios 4/4

Você também pode gostar