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A filáucia
Com o pecado original, o amor do homem por si mesmo experimentou uma
desordem: ele prefere gozar dos bens mutáveis a honrar o Bem imutável, que
é Deus. A única forma de sair desse sistema mundano é a renúncia de si
próprio, como manda Jesus no Evangelho: "Se alguém quer vir após mim,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz, cada dia e siga-me."
Na primeira aula, foi sondado o começo de nossa “ historia calamitatum". Pelo pecado de
Adão e Eva, entrou uma desordem no mundo, desordem que se mostra por três raízes, a
saber: a libido amandi, a libido possidendi e a libido dominandi. Essas três causas do
pecado têm origem em uma só: o amor desordenado de si mesmo, que também se pode
chamar de amor sui, em latim, e de filáucia. Esta expressão vem de duas palavras gregas –
φιλία (lê-se: filía) e αυτός (lê-se: autós) – e designa o amor que o ser humano tem por si
mesmo, amor que se encontra doente, por conta do pecado original.
Como referência para esta aula, é recomendada a leitura da obra Philautia. Dall'amore di sé
alla carità, do Pe. Irénée Hausherr. Para escrevê-la, ele se baseia especialmente em São
Máximo, o Confessor, que é mestre sobre esse tema. Em suas Centúrias sobre a Caridade,
esse autor cristão ensina:
“Toma cuidado com o amor-próprio, mãe de todos os vícios, e que é o amor irracional
do próprio corpo. Indubitavelmente, dele nascem os três primeiros pensamentos
passionais fundamentais: o da gula, o da avareza, e o da vanglória, que tem origem
nas exigências necessárias do corpo; por eles nasce toda a série de vícios. É preciso,
portanto, como se disse, ter cuidado com este amor-próprio, e combatê-lo com muita
sobriedade; destruído ele, são destruídos todos os pensamentos que dele provêm." [1]
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14/11/2019 A filáucia, mãe de todos os vícios
O amor filaucioso, por sua vez, nasce da realidade do pecado original. Antes da queda, os
olhos do homem eram capazes de voltar-se às coisas criadas e transcender para Deus. As
criaturas não passavam de ícones que remetiam ao Criador. Assim, se se olhasse no
espelho, o homem na inocência primitiva amaria em si a “imagem e semelhança" divinas
impressas nele [3]. Esse era o amor sui sadio, pelo qual Nosso Senhor dizia que o homem
deveria amar ao próximo como a si mesmo [4].
Após o pecado original, no entanto, entrou uma desordem nesse amor-próprio. Notável é
que também os filósofos pagãos a tenham notado. Aristóteles escreve que, já em seu tempo,
“'amante de si mesmo' é uma expressão desonrosa". E, ao exemplificar como o homem mau
se ama desordenadamente, ele faz referência ao “gozo medíocre", ao “dinheiro" e, depois, “às
honras e aos cargos" [5] – curiosamente, as mesmas três libidines de que se falou na última
aula. Impressiona como o homem iluminado pela razão consegue chegar às mesmas
conclusões que chegam os autores espirituais e a Tradição da Igreja.
A partir da queda, então, as criaturas, que eram ícones que apontavam para o alto, ficam
opacas e o seu uso se dirige à satisfação de si próprio. Esse sistema é completamente
autodestrutivo. Um dependente químico, por exemplo, usa drogas porque quer ser feliz.
Todas as pessoas veem, porém, que ele está destruindo a si mesmo, a sua família e aqueles
que estão à sua volta. “O homem mau não deve ser um amante de si mesmo, visto que
obedecerá às suas paixões vis e assim prejudicará tanto a si mesmo quanto aos seus
semelhantes" [6], diz Aristóteles. São João Crisóstomo compara essa situação à loucura:
Para curar essa doença, é necessário voltar à capacidade de transcender, olhando para as
coisas criadas e dirigindo o nosso olhar ao Céu. A esse propósito, Santo Agostinho faz uma
comparação fantástica:
“Deus não te proíbe de amar estas coisas [as criaturas], mas de amá-las com a
finalidade de obter a felicidade. Não é proibido, porém, admirar e aceitar as criaturas
para amar o Criador."
“Irmãos, suponhamos que um esposo fizesse um anel para sua esposa e esta tivesse
mais amor pelo anel recebido do que pelo esposo que lho fabricou; não é verdade
que com aquele presente se revelaria que a esposa tem um coração adúltero, embora
ela ame algo que é presente do esposo? É claro que ela ama algo que foi feito pelo
seu esposo, mas se ela dissesse: 'Basta-me o seu anel, e não me interessa ver o seu
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14/11/2019 A filáucia, mãe de todos os vícios
rosto', que tipo de esposa seria esta? Quem não abominaria esta loucura? Quem não
condenaria este sentimento de adúltera?"
“Amas o ouro no lugar do homem, amas o anel no lugar do esposo: se estes são os
teus sentimentos a ponto de amar um anel no lugar do teu esposo e a teu esposo não
queres nem mesmo ver; então quer dizer que ele te deu este penhor, não para te
comprometer, mas para te perder. É para isto que um esposo oferece um penhor,
para que no penhor ele mesmo seja amado. Para isto Deus te ofereceu as coisas
[criadas]: ama aquele que as fez. Ele quer te oferecer muito mais, ou seja, quer dar a
si mesmo. Mas se amares as coisas, mesmo que tenham sido feitas por ele, se
esquecesses o Criador para amares o mundo, o teu amor não deveria ser julgado
como amor adulterino?" [8]
Amar as coisas ao invés de Deus é destruidor porque significa cortar o próprio galho no qual
se está sentado. Identifica-se, aqui, o conflito entre dois amores – o amor Dei e o amor sui. É
a essa luta que se refere São João, quando diz que “tudo o que há no mundo (...) não vem do
Pai, mas do mundo" e que “o mundo passa, e também a sua concupiscência; mas aquele que
faz a vontade de Deus permanece para sempre" [9]. É também sobre o que Santo Agostinho
fala em sua obra De Civitate Dei: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor-
próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si
próprio, a celestial" [10].
O “desprezo de si próprio" significa a renúncia ao amor doente. A única forma de sair desse
sistema de destruição no qual o homem foi colocado com o pecado original é renunciando a
si mesmo. Foi o próprio Jesus quem disse: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si
mesmo, tome a sua cruz, cada dia e siga-me" [11]. Infelizmente, muitas pessoas dentro da
própria Igreja não entendem – ou mesmo subvertem – isso, procurando uma forma de
serem cristãs sem abraçar a Cruz e renunciar à própria vontade. Mas, é novamente Nosso
Senhor quem diz, “quem quiser salvar a sua vida a perderá; e quem perder a sua vida por
causa de mim a encontrará" [12].
Assim, a única forma de viver o amor sui correto é situá-lo dentro do amor Dei. O amor
virtuoso, a caridade de que falam as Sagradas Escrituras, embora se possa dirigir a Deus, a
si próprio e ao próximo, deve ter um único objeto formal, que é o próprio Deus. Isso significa
amar o Criador e as criaturas somente por causa d'Ele. Só assim entraremos no caminho da
cura, que pavimenta a cidade de Deus.
Referências
https://padrepauloricardo.org/aulas/a-filaucia-mae-de-todos-os-vicios 3/4
14/11/2019 A filáucia, mãe de todos os vícios
3. Gn 1, 26
4. Cf. Mt 22, 39
6. Idem
7. Padre Paulo Ricardo. Um Olhar que Cura. São Paulo: Editora Canção Nova, 2008. p. 22
9. 1 Jo 2, 16.17
11. Lc 9, 23
12. Mt 16, 25
Recomendações
https://padrepauloricardo.org/aulas/a-filaucia-mae-de-todos-os-vicios 4/4