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UNIVERSIDADE FEDERAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO

Disciplina: Fundamentos da Psicologia Comunitária, 2022.1


Prof.: Dr. Daniel Espíndula
Aluno: Antonio Marcos Araújo da Silva

Trazendo a realidade brutalmente marcada pela desigualdade da educação no Brasil, o


documentário “Pro Dia Nascer Feliz”, do diretor João Jardim, é um baque. Somos
apresentados explicitamente à luta de classes tal como Karl Marx trouxe, mostrando a
relevância de sua análise sobre a realidade em nossos dias atuais. A cada nova abordagem em
uma nova escola, conforme a “qualidade” da instituição cresce, é possível enxergar nas
entrelinhas as contradições representacionais que, como disse Lane, constroem as realidades e
os indivíduos (determinados e determinantes) que dela fazem parte (1984), e os processos
ideológicos que operam por trás destes mecanismos, mantenedores dessa estrutura e
responsáveis pela condenação dos mais pobres à existências pautadas na alienação e
marginalização.
A realidade não segue uma linha reta, como nos fazem crer nossos livros de História,
mas uma dinâmica histórico-dialética no sentido de que se constrói a partir de conflitos
presentes nas relações – segundo Marx, entre as classes, ou mais especificamente, entre o
proletariado e a burguesia, inerentemente diferentes – que estabelecemos no mundo material,
o que confere uma certa imprevisibilidade do que pode vir a sobressair e vir a acontecer, pois
não há um fluxo preestabelecido a ser seguido. Ou seja, não se trata de uma essência da qual
tudo veio e a partir da qual tudo se move, mas uma construção que se dá mediada pelo social
e por sua ferramenta mais crucial: o comportamento verbal. Assim, não há meios de se
conhecer sem interagir, como trouxe Vygotsky (de Freitas Campos, 2017), pois se trata de
examinar, conhecer e intervir sobre uma realidade já dada, em contínua construção, que
carrega em si a metamorfose que é própria à vida, exigindo uma constante abertura.
Com isto, apesar dos incontáveis problemas observados na exposição trazida pela
obra, tomaremos como análise o descaso com a educação pública. Será feita uma tentativa de
evidenciar como (e porque não, o porquê) a Ideologia dominante mantém essa situação
precária no sistema educacional público, alienando aqueles que são direta e indiretamente
lesados dos processos e, consequentemente, dos determinantes de sua situação, para a
posteriori discutir possibilidades de ação fundamentadas na Psicologia Social Comunitária.
“Pro Dia Nascer Feliz”, além da exposição do contraste gritante entre a realidade
educacional reservada aos mais pobres e a reservada aos mais ricos, expõe também sua
continuidade e manutenção. Nos primeiros minutos há um monólogo dos anos 1960 sobre a
situação da educação no país, já precária, que trazia reverberações na constituição dos jovens
da época. Quarenta anos depois, nos anos 2000, a situação sofreu poucas mudanças, mesmo
com as consequências já sendo conhecidas. Aqui opera a Ideologia.
Sendo caracterizada, segundo Guareschi , como o uso de formas simbólicas para criar
e sustentar determinados tipos de relações, a Ideologia é o que confere sentido à realidade,
sendo utilizada para manter relações de dominação (1996). Desta forma, “[...] poderá servir
para criar e sustentar relações tanto justas, éticas, como também para criar e sustentar relações
assimétricas, desiguais, injustas” (Guareschi, 1996). A história da humanidade, para Marx, é a
história da luta de classes. Contudo, essa luta nunca foi igual, os dois lados não tem as
mesmas ferramentas para lutar um contra o outro. Assim, a classe dominante (a burguesia) se
destaca, encontrando as mais variadas formas de manter seu status, isso porque detém as
condições materiais, tendo, portanto, o poder para guiar o mundo segundo suas vontades.
Nunca foi do interesse da elite que os marginalizados tivessem consciência – aqui no
sentido trazido por Lane (1984) de reflexão sobre os processos e contradições das
representações da realidade – de seu lugar na sociedade e dos determinantes sociais de sua
condição, uma vez que implicaria em uma possível revolta cuja força já se mostrou uma
ameaça para ela. Assim, artifícios como os processos ideológicos amenizam e dificultam (mas
não destroem) a possibilidade de levante da classe trabalhadora, criando representações que
são difundidas das mais variadas formas e que conseguem força mesmo entre aqueles a que
ela mais prejudica. Vê-se, então, que a consciência, como ação transformadora e reflexiva, é
necessária para a modificação do sistema que beneficia um grupo privilegiado em detrimento
de outro marginalizado e alienado.
A Escola Estadual Cel Souza Neto, de Manari, em Pernambuco, uma das cidades mais
pobres do Brasil na época do documentário, será nosso foco de análise e intervenção.
Conhecemos um pouco da instituição por Clécia, de 13 anos, uma das alunas. Clécia sente um
imenso prazer em estudar, em estar na escola, chegando a preferir estar lá do que em casa
assistindo televisão, o que torna claro que o local é um ponto de abrigo e prazer para ela (e
talvez, quem sabe, para os outros), apesar dos problemas de infraestrutura aos quais somos
apresentados. A instituição tem um único banheiro, água parada, comida insatisfatória,
espaços sem muitos atrativos e mal cuidados… Mas isso se deve sobretudo às verbas mínimas
dirigidas à escola. De acordo com o narrador (que não é apresentado, portanto seu nome não
consta aqui) a escola recebe 1200 reais por mês, sendo que, tirando os gastos burocráticos,
restam apenas 600. Esse valor acaba não sendo suficiente para melhorias estruturais.
O descaso com a educação pública vai além da falta de verba; engloba também a
negligência, que afeta não somente a instituição, mas também aqueles que dela fazem parte. A
negligência destrói futuros, rouba sonhos. Clécia, sedenta pelos estudos, pode ser a exceção
que, apesar de tudo, ainda vê possibilidades no horizonte. Mas nem todos podem ter essa
visão.
Para atuar na Escola Cel Souza Neto, primeiramente seria necessário intervir na
comunidade. O processo seria lento, mas é imprescindível que se conheça sua história, suas
visões de mundo, de sua situação e, claro, da instituição de Ensino. Adota-se aqui portanto
uma postura sócio-interacionista, baseada na contribuição de Vygotsky de que o
conhecimento se constrói na interação, esta mediada por símbolos e artefatos produzidos
culturalmente, sendo preciso “[...]conhecer a cultura local e contribuir para a construção de
novos significados através da interação” (de Freitas Campos, 2017).
O primeiro passo seria a observação participante daquele contexto, analisando as
relações estabelecidas entre os membros daquela comunidade ao mesmo tempo em que
interagindo com os responsáveis por elas – mostrando que não se trata de um estranho, mas
de um aliado – com vistas a tecer possíveis direcionamentos. Visto que a observação sozinha
não é suficiente para fundamentar uma prática interventiva, e já que a vontade e visão do
grupo deve ser enfatizada, por meio de entrevistas abertas, sem qualquer pergunta que
direcione à respostas esperadas – permitindo a exposição pelo indivíduo de tudo o que precisa
ser trazido ao discurso – o psicossociólogo coletará as representações construídas pela
comunidade acerca da realidade e as relações com seus pares.
Esse processo tem sua importância por permitir ao psicossociólogo uma exposição de
como as representações mantidas entre os membros da comunidade podem estar imbuídas de
pré-conceitos, estereótipos e valorações que lhes podem ser prejudiciais. Com este arcabouço,
segue-se a necessidade de uma discussão conjunta com a comunidade sobre o que foi
coletado, buscando desconstruir produções que impeçam a transformação e a reflexão
inerentes à conscientização. É importante salientar que o profissional em nenhum momento se
colocará como alguém em um nível superior. Para isso é importante que ele se abra e se
permita também desvelar experiências próprias, objetivando o fortalecimento dos vínculos
iniciados na observação participante. Assim, uma Assembleia pode ser convocada (visto que
pode se tratar de um número muito grande de pessoas), tendo o psicossociólogo como
facilitador e também participante, discutindo e problematizando as representações
estabelecidas no discurso. Visto que a Escola Cel Souza Neto é o foco da intervenção, é
simbólico que a Assembleia lá ocorra, sendo o palco do início da mudança.
Essa problematização da realidade posta sobre a qual raramente nos pomos a refletir, é
indispensável para o processo de tomada de consciência. É o contato com a contradição que
permitirá a transformação (Lane, 1984). Pode parecer estranho, à primeira vista, que esse
processo se inicie com pessoas que, aparentemente, nada tem a ver com a situação precária da
escola. Contudo, as instituições são compostas em parte por determinantes sociais e em parte
“‘construída’ com tijolos e janelas do psiquismo humano” (Nasdutti, 2017). Isso quer dizer
que as instituições comportam características que são sociais e individuais, mas essa divisão é
apenas teórica, pois no mundo real, elas se juntam, sendo indissociáveis. Assim, um atua
sobre o outro reciprocamente, de forma que agindo sobre aqueles que tem o potencial de
mudança é essencial.
Procura-se então possibilitar a conscientização desse grupo do quanto da ideologia que
ele propaga lhe traz benefícios e malefícios, para com isso ressignificar aquilo que está posto
e trazer transformações. Este processo será realizado em etapas, já que não é trabalho de um
único dia. A partir da Assembleia, grupos de discussão serão formados, com encontros
semanais na escola, em dias e horários previamente definidos pela comunidade de forma que
ninguém saia prejudicado. Esses grupos terão o intuito de formar a consciência de si-sócial,
sendo portanto pautados em discussões sobre política, determinantes sociais, educação,
vulnerabilidades, violência e outros temas adjacentes que possam vir a surgir (com uma
linguagem clara e acessível). Já que se trata de uma comunidade com sua própria vida fora
desse trabalho, leituras ou qualquer outro tipo de atividade antes do encontro não serão
obrigatórias visto que podem ser de baixa adesão e podem acabar desmotivando. Os encontros
terão duração de dois meses, sendo duas semanas para cada tema proposto, com duração entre
1h-2h. Os espaços onde ocorrerão as reuniões serão nas salas de aula da escola, com a turma
formando círculos e tendo contato visual constante com seus parceiros.
Com os encontros terminados, espera-se uma formação da comunidade que lhe
permita estabelecer e construir meios de se mudar sua realidade (tendo sempre o auxílio do
psicossociólogo). Com uma formação política, mesmo que modesta, é esperado que a
população passe a correr atrás e exigir as transformações que querem ver em seu mundo.
Com uma visão mais clara da realidade, sem a névoa da ideologia ofuscando, os atores
sociais podem ressignificar a escola como o lugar onde simplesmente colocam suas crianças
para aprender conceitos que nunca usarão, para o lugar no qual a cidadania e o futuro são
construídos, lugares que abrem caminho para realização de sonhos e de melhorias para os
indivíduos e, consequentemente, para a própria comunidade. Quebra-se, então, a lógica da
alienação, expondo as interdependências inerentes à vida em sociedade (Lane, 1984). Com
isso, o psicossociólogo em conjunto com o grupo pode procurar meios de alcançar os
objetivos a curto, médio e longo prazo.
A curto prazo, é urgente que algo seja feito quanto à situação higiênica do ambiente
escolar. A água parada deve ser removida e alternativas devem ser encontradas para que isso
não volte a ocorrer, uma vez que é um perigo para a vida do alunato. O banheiro deve ser
reformado na medida do possível, com alguma estrutura que permita a higienização após a
utilização. Por meio de atividades coletivas de pais dispostos a doar alimentos regularmente
ou de cozinhar, a relação dos alunos com a alimentação da instituição pode melhorar. Esses
são os primeiros passos em direção à mudança.
A médio prazo, seria interessante fortalecer os laços da comunidade com a educação e
com a escola. Eventos podem ser realizados para integrar a comunidade à instituição,
formando grupos de organização responsáveis pela elaboração de atividades, por exemplo, ao
mesmo tempo em que transformando o ambiente escolar em um lugar mais atrativo para os
alunos, fugindo da lógica da instituição como apenas um lugar para olhar para um quadro e
um professor. Assim, a comunidade estabelece um vínculo com aquele lugar, fomentando a
necessidade de se cuidar dele e mantê-lo funcionando.
Por último, a médio e longo prazo, a população precisa se posicionar diante da
prefeitura e dos órgãos públicos para que suas necessidades sejam atendidas. Manifestações
são o caminho mais conhecido para algo nessa direção, e isso deve ser também orientado pela
formação política continuada do psicossociólogo para com a comunidade. Um povo
consciente de si, de sua situação e de seu lugar na sociedade é um povo ciente de que é a sua
união que permitirá as transformações que podem mudar seu mundo.
Referências

de Freitas Campos, R. H. (2017). Psicologia comunitária, cultura e consciência. In. R. H. de Freitas Campos.
Psicologia social comunitária: da solidariedade à autonomia,164-177 Petrópolis. Editora Vozes.
Guareschi, P. A. (1996). Relações comunitárias, relações de dominação. Psicologia Social Comunitária: da
solidariedade à autonomia, 81-99. Petrópolis. Editora Vozes.
Lane, S. T. (1984). Consciência/alienação: a ideologia no nível individual. In S. T. Lane & V. Codo. Psicologia
social: o homem em movimento, 8, 40-47.
Nasdutti, L. C. R. (1996). A instituição como via de acesso à comunidade. Psicologia Social Comunitária: da
solidariedade à autonomia, 100-126. Petrópolis. Editora Vozes.

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