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Oficina de topologia e clínica: revisitando o automatismo mental1

Eduardo de Carvalho Rocha

- Meu intuito neste encontro é retomar uma questão que foi indicada por uma colega num
trabalho que orientei há alguns anos, e que mais recentemente voltou às nossas investigações
clínicas através de uma outra colega.

- Na primeira volta os pontos circunscritos situavam uma psicose à base de um automatismo


mental massivo que configurava uma síndrome de influência. Nesse trabalho a colega (Andreia
Ferro) chamou de “uma mulher frequentada por parasitas”. À época a paciente contava 47
anos e atualmente está com 62. O desencadeamento da psicose se deu quando tinha 28 anos.
Desde então sua psicose foi se estabilizando em torno de alguns fenômenos de automatismo
mental, em especial alucinações verbais psicomotoras, e mesmo algumas cenestésicas, em que
se queixava de ter sido infectada por vermes que o marido havia lhe transmitido pela relação
sexual e que invadiram seu corpo e afetaram seus órgãos, modificavam seu pele, afetavam suas
pernas, provocando anemia. Colocava o marido (depois ex-marido) no campo dos que lhe
faziam mal e encontrou uma forma de se contrapor a esses efeitos através de dietas com frutas
e certos legumes e verduras. Cada qual tinha um efeito contra um mal próprio. Fala de um
corpo sem delimitações, um corpo em que dentro e fora se comunicam sem barreiras. O que
vem de dentro afeta o exterior diretamente, assim como o contrário. Quando aceita as
internações é porque precisa descansar e repor o que perdeu por efeito dos vermes. Só aceita
medicações enquanto podem lhe ajudar nisso. A partir daí diz que as medicações ‘ressecam
sua feminilidade”, e as recusa, assim como qualquer acompanhamento clínico da saúde
mental.

Ao lado desses fenômenos também elaborou uma outra situação, a do seu par, isto é,
concomitantemente às alucinações invasoras e parasitas, emergiu a certeza de existir um par,
um homem de quem seria noiva e a quem encontraria, e que se dirigia a ela
alucinatoriamente, indicando caminhos, lugares de trabalho, modos de vida, com quem realiza
relações sexuais. Esse homem é com que faz Um num encontro sempre adiado,
assintoticamente. Trata-se de um homem que a acompanha desde antes dela nascer, e ela sabe
que é sua mulher. “Sobre isso nada mais precisa ser dito”. A forma de instalação dessa certeza

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Trabalho apresentado na atividade Sábado no EOP, dia 13 de maio de 2023.

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tem ares de uma psicose passional, tipo erotomaníaca, em que o sujeito tem certeza de ser o
objeto do amor do outro. Nesse caso essa certeza é a todo momento confirmada pela presença
alucinada desse ser. “Um par é importante para organizar a vida”, essa frase-lema dela é
repetida desde o início até os dias de hoje. Ao longo dos períodos de internação, que não são
curtos, ela é frequentemente tomada de mussitações, por telepatias, por mensagens enviadas
e recebidas ‘parapsicologicamente’ tanto para seu par como para outros, como seu médico ou
outra pessoa, assim como refere que falam através de sua boca. Não é só seu par que se instala
em seu corpo, referindo também a presença nele de seu ex-marido e de sua irmã. Seu ex-
marido é um dos principais parasitas, e ela lhe atribui caractetísticas degradadas e depravadas.
“É um puto futurístico que só queria fazer sexo anal”, diz ela. “Eu sou o chinelo velho dele. Ele
me desorganiza e depois me interna”. “Ele invadiu meu pensamento, fazendo confusões e me
impedindo de me encontrar com meu homem”. As desorganizações provocadas por ele não se
restringem ao seu corpo, mas também ao ambiente externo da casa ou da enfermaria. Por um
tempo também uma de suas irmãs ocupou esse lugar parasitário nela. As ações que ela
descreve configuram uma síndrome de influência bastante configurada.

O que já nos chamara atenção nesse caso não era tanto o automatismo mental e a síndrome
de influência com seus desdobramentos persecutórios, que o próprio Dissez toma como
referência para o trabalho que foi encaminhado a vcs. O que nos despertara a atenção foi a
presença simultânea desse automatismo amoroso, erotomaníaco, que conduzia e ‘protegia’ a
paciente, esse com quem ela fazia Um. Um Um realizado no seio do automatismo mental. Isso
à época nos intrigava e chamamos de “um automatismo bom”, em contraposição ao
automatismo destrutivo e degradante, mais comum. O interessante é que nesse momento de
desencadeamento, a própria irrupção da psicose mostra seus veios de desorganização e
também suas linhas de possíveis suturas.

Em internação recente essa paciente segue com os mesmos fenômenos, sendo que os efeitos
parasitários sobre seu corpo são menos massivos, e “os personagens” se definiram entre o ex-
marido como o mal principal, e o par como seu ideal permanente buscado pelas ruas. É desse
modo que sua psicose se apresenta quando aguda. Nos intervalos mais silenciosos e
enquistados, ela se dedica a cuidar dos filhos e dos netos.

- O trabalho de Nicolas Dissez revisitando o automatismo mental e propondo uma escritura


topológica para dar conta de alguns desses fenômenos, interessou-nos também pelo fato dele
lançar mão, ainda que de forma breve, a uma possível escritura topológica da invenção que o

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“Homem das palavras impostas” teria posto em ação. Isto é, uma forma de rearticulação dos
anéis S, I e R. É com isso então que vamos seguir procurando por à prova uma forma de
representar a configuração inventada por nossa paciente. Para tal é preciso voltar ao artigo de
Dissez e à forma que ele propôs para escrever a falha e o remendo da estrutura. Remeto vcs às
paginas 6,7 e seguintes. Nelas propõe localizar a falha num ponto em que o Real deixa de
transpor(por cima) em um ponto do simbólico. Essa falha promove um destacamento do
simbólico em relação ao real, algo da ordem de uma autonomização. Nessa conjuntura, e que
podemos verificar com nossas cordas, o Imaginário parece que ainda está ligado aos dois
outros registros, mas ele está solto e pode se liberar totalmente, deixando Real e Simbólico
encadeado dois a dois. É essa autonomização do Simbólico que responderia pelos fenômenos
de linguagem em que o sujeito não reconhece como seus os pensamentos, e mesmo sua fala,
assim como o que se dá em seu corpo. O corpo se torna Real, autônomo tb. A língua fala
sozinha. Nesta escritura, um dos pontos de cruzamento do Simbólico sobre o Real dá conta da
presença de um pensamento que o sujeito não pode se apropriar, essa emancipação do
Simbólico leva o pensamento a ser vivido como estrangeiro, ou mesmo imposto sobre o
sujeito. Mas essa escritura mantém igualmente um ponto onde é o Real que transpõe o
Simbólico. Este ponto – contíguo à zona que Lacan indica como sendo aquela do sentido – deve
poder dar conta de um pensamento que encontra sua barreira real e que o sujeito se atribui, já
que na clínica os dois tipos de pensamentos, normal e impostos. Cito Dissez:

Nesta escritura, um dos pontos de cruzamento do Simbólico sobre o Real dá conta da presença
de um pensamento que o sujeito não pode se apropriar, essa emancipação do Simbólico leva o
pensamento a ser vivido como estrangeiro, ou mesmo imposto sobre o sujeito. Mas essa
escritura mantém igualmente um ponto onde é o Real que transpõe o Simbólico. Este ponto –
contíguo à zona que Lacan indica como sendo aquela do sentido – deve poder dar conta de um
pensamento que encontra sua barreira real e que o sujeito se atribui, já que na clínica os dois
tipos de pensamentos, normal e impostos, coexistem.

Proponho que sigamos a sequência do que nos diz Dissez a seguir, em que o anel do Imaginário
se desloca para um ponto central e a zona do gozo fálico desaparece, e também promovendo
uma certa especularização das zonas dos gozo Outro e do sentido, tendo entre eles o objeto a.

Essa segunda escritura, que deriva “naturalmente” da primeira, poderia dar conta da clínica do
eco do pensamento na qual o pensamento alucinatório vem efetivamente duplicar
simetricamente o pensamento normal. O sujeito pode vir a dar, nesse contexto, funções

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inesperadas a esse eco que pode vir a constituir o ponto de referência essencial de seu
pensamento.

Considero que essa escritura acima daria conta dos fenômenos de alucinações verbais
psicomotoras assim como das indiferenciações entre mundo externo e interno, e outros
fenômenos.

Mas a clínica do automatismo mental testemunha fenômenos mais variados do que esta única
situação, que ela põe particularmente em evidência um desaparecimento regular desse
estranho objeto, que aqui é o microfone, para vir ligar, por em continuidade os dois registros, o
do pensamento e da alucinação. Esse mecanismo é precisamente aquele que Clérambault
nomeia como derivação, e que corresponde a uma derivação do pensamento normal em
direção ao registro alucinatório, isso que eu lhes proponho ler como uma colocação em
continuidade do registro do Simbólico e do Real, e que poderia ser escrito como se segue:

Acrescento que essa sutura do Real e do Simbólico poderia igualmente dar conta desse
fenômeno referido nos trabalhos da Escola de Sainte-Anne por Edouard Bertaud e Luc Sibony,
que trata da intimidade da estrutura do automatismo mental e da ocorrência de neologismo
nas palavras do sujeito. Esse ponto de sutura do Simbólico e do Real poderia de fato dar conta

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do lugar do neologismo, este termo neoformado, mas desprovido de todo caráter xenopático,
que se integra ao discurso do sujeito, mas que vem a perder toda a dimensão metafórica por só
valer por sua própria literalidade.

Durante a discussão que se seguiu à apresentação deste trabalho em Sainte-Anne, Elsa


Caruelle-Quilin propôs uma escritura consecutiva a essa colocação em continuidade do
Simbólico e do Real, que conduziria a uma forma mais estável dessa posição persecutória a
qual conduz regularmente a clínica do automatismo mental. Essa escritura que figura em seu
trabalho sobre o Homem das palavras impostas conduz a uma colocação em continuidade dos
anéis do Simbólico e do Real, resultando num pinçamento do anel do Imaginário, permitindo
limitar sua fuga e reamarrando os três registros. Vou retomá-la, na medida em que permite
considerar uma possibilidade de estabilização mais durável do registro persecutório que
caracteriza o grande automatismo mental.

É aí que Dissez retoma o nó com um novo arranjo e que promove uma estabilidade dos 3 anéis.

Mas retomando nosso caso, o que e como essa estabilidade foi arranjada nesse
desdobramento dos 2 automatismos?

Ao final de seu trabalho Dissez destaca a função de provocação (pro evocação) que as palavras
do outro (Outro) tem para um sujeito, provocação a falar, a responder. Isso enquanto operação
fundamental de entrada de um sujeito na linguagem. Esse tempo de provocação do Outro está
bem demonstrado na paciente, creio. Podemos considerar que esse Par assim como alguns
outros termos que ela inventou (homens leitosos; pretinha dos beijos 1; filadores do sexo;
pretinha dos beijos 2) funcionam como pontos fixos (como Nome do Pai) com o que ela
estabelece um jogo de contraposição, de resposta, assim como as palavras reflexivas para o
Homem das palavras impostas, e com isso arranjam uma estabilização?

Um outro ponto que também não gostaria de deixar sem ao menos mencionar é o fato dessa
resposta vir na forma erotomaníaca, isto é, ela como objeto do Outro, considerando que uma
das possibilidades dos tempos de rearranjo do nós colapsado é essa especularização entre
Simbólico e Real tendo o objeto a entre eles, como vimos em um dos desenhos mostrados no
trabalho de Dissez.

Era o que eu tinha preparado para lhes trazer hoje.

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