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A intervenção do judiciário na definição de requisitos de bens em licitações


pela administração pública

Sabe-se que é constante, no judiciário brasileiro, a interposição de ações


judiciais advindas de empresas licitantes que desejam a alteração de requisitos e
características de bens a serem adquiridos pela administração pública. O
questionamento que centraliza a discussão nesse tema é: até que ponto pode o
judiciário imiscuir-se na tarefa administrativa da definição de requisitos de bens a
serem adquiridos pela administração? Tal controle judicial da administração pública é
permitido pelo ordenamento jurídico nacional?
Inicialmente, importante destacar que a administração pública detém uma
elevada autonomia na escolha de requisitos dos equipamentos que deseja adquirir.
A administração, deve, evidentemente, afastar quaisquer exigências desnecessárias
para a utilização dos equipamentos e que possam direcionar a determinada marca
do mercado, porém, ausentes quaisquer exigências desnecessárias e
direcionadoras, o administrador tem total discricionariedade na escolha das
características do produto a ser adquirido, desde que devidamente justificadas, haja
vista que, exceto prova em contrário, essas características se destinam ao
atendimento do interesse público. Dessa forma entende a melhor doutrina e a
jurisprudência reiterada no tema.

Reservou-se à Administração a liberdade de escolha do momento de


realização da licitação, do seu objeto, da especificação de condições de
execução, das condições de pagamento etc. Essa competência
discricionária exercita-se no momento preparatório e inicial da licitação. 1

6. No caso sob exame, a Secretaria de Recursos Hídricos do Estado do


Ceará, investida de seu poder discricionário, considerou a adoção de tubos
em aço-carbono como a solução técnica mais conveniente para a
Administração, reconhecendo ser este um requisito técnico essencial para a
referida obra. A escolha do material das tubulações foi pautada pela
eficiência e segurança do aço-carbono, demonstrada em diversas outras
obras semelhantes. Destaco que o objetivo do empreendimento é garantir o
abastecimento humano de significativa parcela da população da região
metropolitana de Fortaleza e suprir as demandas de água bruta de
equipamentos industriais de grande porte que se instalarão no Complexo
Portuário de Pecém. Em outras palavras, a garantia de fornecimento
contínuo de água foi o principal critério para a escolha do material a ser
adquirido.2

1 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 17. ed. São
Paulo: RT, 2016, art. 3º, item 13.2.1.
2 TCU. Acórdão 1.923/2012, Plenário, rel. Min. Raimundo Carreiro.
2

Isso ocorre devido à discricionariedade, evidentemente limitada, que o


administrador tem sobre alguns atos administrativos da licitação, especialmente os
atos de produção do ato convocatório (edital de licitação) e, consequentemente, das
exigências que integram esse instrumento:

Então, a lei estabelece os limites gerais a serem observados pela


Administração, atribuindo-lhe competência para exercitar escolhas dentro
desses parâmetros predeterminados. A lei atribui competência para a
Administração definir as condições da contratação administrativa. Por outro
lado, a lei determina que a discricionariedade da Administração deverá ser
progressivamente exaurida.
[...]
A Administração dispõe de margem de autonomia para configurar o
certame. Mas incumbe à Administração determinar todas as condições da
disputa antes de seu início e as escolhas realizadas vinculam a autoridade
(e aos participantes do certame).
[...]
A autoridade administrativa dispõe da faculdade de escolha, ao editar o ato
convocatório. Porém, nascido tal ato, a própria autoridade fica subordinada
ao conteúdo dele. Editado o ato convocatório, o administrado e o
interessado submetem-se a um modelo norteador de sua conduta. Tornam-
se previsíveis, com segurança, os atos a serem praticados e as regras que
os regerão.3

A administração, ao exigir determinadas características nos bens que


pretende adquirir, deve priorizar o interesse público primário, isto é, aquele que visa
o melhor atendimento ao cidadão em geral. Meras tentativas de licitantes as quais
desejam que equipamento de sua preferência, que não atende a uma exigência
importante e necessária determinada pela administração, seja adquirido pelo ente
público, devem ser afastadas pelo judiciário. Em caso de concessão de tais ordem
por parte do juiz, estaria colocando-se o interesse privado acima do interesse
público, o que não é, de forma alguma, permitido pelo direito administrativo nacional,
conforme transcricão abaixo:

Ligado a esse princípio de supremacia do interesse público – também


chamado de princípio da finalidade pública – está o da indisponibilidade do
interesse público que, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2004:69),
“significa que sendo interesses qualificados como próprios da coletividade –
internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de quem
quer que seja, por inapropriáveis.4

3 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 17. ed. São
Paulo: RT, 2016, art. 7º, item 13.1.3 a 13.2.2.
4 PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018,

capítulo 3.3.2.
3

Isto é, se determinada exigência é devidamente justificada no edital de


licitação, por parte de servidores públicos qualificados na área em questão, tal
requisito não se tratará de exigência desnecessária.
Dessa forma, conclui-se que uma exigência que não gera direcionamento a
determinada marca e atinge o interesse público de maneira mais completa não pode
ser considerada como ilegal, e também não deve, de forma alguma, ser
afastada/nulificada do certame licitatório por parte do poder judiciário, mesmo que
limite a participação de empresas na licitação. Finalmente, sabe-se que os atos da
administração pública têm presunção de legalidade, a qual só pode ser afastada no
caso de devida comprovação da ilegalidade.
De outra forma devem ser enfrentadas pelo judiciário exigências injustificadas
e direcionadoras: estas devem ser evidentemente afastadas pelo judiciário, por meio
de ordens à administração para que o ente retire tal exigência do instrumento
convocatório.

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