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REVISÃO REVIEW
A influência do luto no comportamento alimentar
e suas implicações nas condutas nutricionais

The influence of mourning on feeding habits


and its implications for nutritional behavior

Maria Teresa Fialho de Sousa Campos 1

Abstract The lack of preparation for dealing with Resumo O despreparo para lidar com a morte e
death and the absence of the loved one may lead to com a ausência do ente querido pode implicar em
organic and psychological reactions that, due to reações orgânicas e psicológicas que, em decor-
the adaptive capacity of the individual to the pe- rência da capacidade adaptativa do indivíduo ao
riod of mourning, may result in interference in período de luto, acaba por interferir na condição
feeding habits and consequently on the person’s de alimentação e, consequentemente, no estado
nutritional status. This article addresses the ef- nutricional. Este artigo aborda os efeitos do luto
fects of recent mourning on feeding behavior, fol- recente no comportamento alimentar, seguindo-
lowed by the analysis of the dietary interview from se da análise de alguns pontos de vista da entrevis-
various standpoints. This includes the postmor- ta dietética; da condição de nutrição e de alimen-
tem nutrition and feeding habits of the bereaved tação pós-morte do ente querido; e das implica-
and the implications of this process on hunger, on ções desse processo na fome, na sede e na culinária
thirst and on family cooking, with a focus on nu- familiar, com enfoque nas condutas nutricionais
tritional behavior and on the decisions that sur- e nas decisões que os norteiam. Trata-se de um
round it. This is a review of the literature on the estudo de revisão de literatura na temática morte
theme of death and mourning, which seeks to con- e luto, o qual objetiva contextualizar o tema em
textualize this theme around reflections based on reflexões pautadas nessa vivência, enfatizando a
this experience. It emphasizes the interaction of interação da nutrição com a ciência da tanatolo-
nutrition with the science of thanatology, which gia, área ainda pouco explorada e carente de estu-
is an area still not properly examined and lacking dos. A identificação dessa influência e de suas im-
study. The identification of this influence and its plicações permite melhor planejamento das estra-
implications enables better planning of food stra- tégias alimentares, contribuindo sobremaneira
tegies, contributing greatly to actions for coping para ações de enfrentamento e de apoio ao luto.
and support during mourning. Palavras-chave Morte, Luto, Evento traumáti-
Key words Death, Mourning, Traumatic event, co, Estresse, Comportamento alimentar e Condu-
1
Departamento de Nutrição
Stress, Feeding habits, Nutritional behavior ta nutricional
e Saúde, Centro de Ciências
Biológicas e da Saúde,
Universidade Federal de
Viçosa. Av. P H Rolfs s/n,
Campus Universitário.
36.571-000 Viçosa MG.
mtcampos@ufv.br
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Introdução O Brasil tem buscado aprimorar-se nessa área,


visto que, em várias capitais, há Organizações não
O luto é entendido como uma importante tran- governamentais de apoio e de enfrentamento ao
sição psicossocial, com impacto em todas as áre- luto, como também serviços especializados em
as de influência humana1, razão pela qual seus tanatologia, os quais dão ênfase à equipe multi-
efeitos no corpo e suas consequências na vida do profissional. Busca-se, com esse atendimento,
enlutado requerem cuidados e monitoramentos aprimorar ações que possam aliviar, em parte, os
efetivos. Estudar e entender a presença da morte sofrimentos causados pela morte, preservando a
na vida é estudar a separação amorosa2. Conce- vida dos que ficam e, sobretudo, possibilitando
be-se, dessa forma, que o luto é a expressão dos aos trabalhadores afastados por licença médica a
vínculos estabelecidos entre as pessoas3; é um ri- reabilitação funcional ou a readaptação a uma
tual de expressão de sentimentos profundos e nova função – direito garantido por Leis Federais
íntimos4; além de ser um momento necessário números 8112/90 e 8527/9712. Considerando, ain-
para processar a perda e a dor5. da, que perdas significativas adoecem as pessoas
A consciência da transitoriedade humana ar- e que afetam diretamente o processo de ensino e
remete, necessariamente, à consciência da morte aprendizagem, a educação para a morte deveria
– a finitude, assim como a presença iminente da ser contemplada na escola e na família6,13-15.
própria morte remete à transcendência e à neces- A morte desencadeia uma série de reações no
sidade da compreensão da finalidade existencial campo da emoção e da razão, desarticula a men-
humana6. A finitude, assim, constitui-se daquele te, como aflora sentimentos diversos e tão com-
aspecto que dá o tom necessário para tornar a plexos que apontam a necessidade de maiores in-
vida não “algo”, mas da oportunidade para vestimentos técnico-científicos. A dor e o sofri-
“algo”, cabendo ao homem encontrar sentido em mento que estão atrelados ao acontecimento e à
cada situação, sob quaisquer condições, até mes- vivência com a perda do ente querido são doloro-
mo nas mais lastimáveis7. sos, inevitáveis e necessários16. Mudanças no hu-
Essa aproximação restrita com a morte e com mor e no padrão comportamental, dificuldade
tudo que ela representa e envolve alerta os profis- para concentrar-se, comportamento agressivo
sionais para a ciência da tanatologia e suas interfa- diante dos outros e de si mesmo, fadiga, perda na
ces, motivando-os na consolidação de ações pau- regulação do sono, da fome e de autocuidados,
tadas nessa área, considerando sua formação bá- além de múltiplos problemas somáticos, em con-
sica. A tanatologia é a ciência que estuda a morte e sonância com vários sentimentos, intensificam-
as relações do homem com esta e suas consequên- se e associam-se à condição de resposta ao evento
cias8, buscando aprofundar os conhecimentos e ou acontecimento estressor17, incluindo, na etio-
as aplicações nessa área, viabilizando discussões logia do luto, a melancolia, a sensação de impo-
acerca de tratamentos mais adequados, humani- tência perante a morte e a falta de prazer com as
zados e dignos para quem sofre com a ausência do atividades. A persistência desses sintomas e do
ente querido ou com a proximidade de sua pró- estresse afetam ainda a função imunológica18, o
pria morte ou da de outras pessoas9. Trata-se da que predispõe o organismo a outros agravos à
ciência que analisa as dimensões econômicas e os saúde, como o surgimento de enfermidades19.
aspectos biológicos, sociais, psicológicos, emocio- A adaptação à situação vivenciada é entendi-
nais, legais, éticos e espirituais relativos à morte, da como processo dinâmico, mediante o qual os
incluindo, ainda, o pensamento em torno da morte, pensamentos, os sentimentos, a conduta e os
do morrer e do que sucede depois dela10. Dada a mecanismos biofisiológicos mudam continua-
complexidade que envolve essa questão e dadas as mente para ajustar-se a um ambiente em cons-
múltiplas facetas em torno dela e os diversos cam- tante transformação; a ruptura do bem-estar é
pos de análise que se inter-relacionam com essa consequência das dificuldades em superar a vi-
área da saúde, têm-se inúmeros desafios11. Ques- vência de experiências estressantes que desgastam
tões como saber lidar com vida e morte; aprender o organismo na resposta orgânica e na esfera psi-
a morrer; enfrentar a morte e a ausência física; cológica20. O estresse é um processo complexo e
elaborar o luto para reorganizar a vida; dentre tan- multidimensional21, resultante de uma série de
tas outras que norteiam o assunto, podem ter fun- fenômenos que se manifestam por sinais multi-
ção importante para a relação entre o enlutado e o formes19. Pode ser definido como desgaste geral
profissional, visto que o elemento emocional – a do organismo, tanto físico como emocional, cau-
perda do ente querido ou a proximidade com a sado por alterações psicofisiológicas que ocor-
morte – estará presente no atendimento. rem mediante esforço desencadeado por um estí-
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mulo percebido como ameaçador à homeosta- Métodos
se22. Os estressores, dependendo do grau de sua
nocividade e do tempo necessário para o proces- Realizou-se uma revisão de literatura de artigos
so de adaptação, têm várias classificações. A morte científicos, de livros e de sites que tratassem do
súbita de pessoas insere-se na categoria de acon- enfrentamento do luto e de suas repercussões na
tecimentos biográficos críticos, por serem locali- resposta orgânica e psicológica, com reflexos na
záveis no tempo e no espaço, por exigirem uma alimentação. Para a elaboração do referencial te-
reestruturação profunda da situação de vida e por órico buscou-se, nas plataformas Bireme (BVS)
provocarem reações afetivo-emocionais de longa e na base de dados Scielo, a expressão “morte ou
duração22. Outros autores consideram a morte luto” associada a “estresse”; “reações neuroen-
um estressor do tipo de eventos maiores20. A dócrinas”; “reações psíquicas”; “hormônios do
maioria dos indivíduos consegue lidar com o es- estresse”; “apetite”; “enfrentamento”; e, “velório”.
tresse comum, mas sua capacidade adaptativa é Outras fontes de pesquisa foram os livros e os
insuficiente diante de um evento inesperado e ca- sites específicos da Ciência da Tanatologia e de
tastrófico; alguns eventos estressores podem ser Leis, cujo enfoque está nas estratégias de enfren-
desencadeados por situações da vida cotidiana e tamento, priorizando os referenciados pela Soci-
produzir efeitos comparáveis aos gerados pelas edade de Tanatologia e Cuidados Paliativos de
vivências em guerras17. Se a reação do organismo Minas Gerais – Sotamig, pela Associação Brasi-
for muito intensa, na condição que ultrapasse a leira de Apoio ao Luto e pelo Site da Sociedade
capacidade adaptativa do indivíduo, o aconteci- Española e Internacional de Tanatologia. Livros
mento é classificado como estressor traumático22; de fisiologia aplicada à nutrição e de longevidade
a ruptura do bem-estar constituiria o distress ou do cérebro também fizeram parte deste acervo,
forma danosa do estresse20. Quando se confron- para a construção das implicações do estresse
ta com a morte e enfrenta o luto, o corpo reage, e elevado na perda ou no ganho de peso corporal.
as primeiras consequências mentais, emocionais Foram excluídas do referencial teórico as publi-
e físicas aparecem. A morte do ente querido pode cações que não mencionavam aspectos relativos
ser atrelada à ruptura do bem-estar, condição que ao apetite, ao consumo alimentar ou à resposta
afeta a rotina no trabalho, a vida social e familiar, hormonal e psicológica do estresse.
suscitando, por parte dos profissionais, uma ava-
liação criteriosa e ampla, e não apenas focada no A associação do luto com o estado
quadro clínico, ou seja, em queixas e sintomas. nutricional e com a entrevista dietética
Investigações mais minuciosas são necessárias,
para que os efeitos desse processo sejam elenca- A ingestão alimentar é uma das bases do de-
dos, com ética e rigor, para compor tratamentos senvolvimento das representações psíquicas24,
mais individualizados, que dê ao outro (ao enlu- portanto, todas as questões que possam influ-
tado) a oportunidade concreta de apoio e de en- enciar esse processo devem ser consideradas na
frentamento. entrevista dietética. A compreensão de que emo-
A ciência da nutrição insere-se nessa conjun- ções estressantes requererem discussão mais apro-
tura, visto que o luto, geralmente, tem implicações fundada acerca do papel do sistema nervoso cen-
no metabolismo e no comportamento alimentar. tral e dos fatores psicossociais na resposta ao
É difícil separar a alimentação da afetividade, pois estresse, por induzir sintomas somáticos e alte-
tudo aquilo que se vive e que se sente pode interfe- rações comportamentais18, atribui relevância à
rir no comportamento alimentar23. Portanto, a morte e aos seus efeitos.
maneira como se enfrenta a morte e se processa o Diante do luto, torna-se fundamental retra-
luto tem implicações no estado nutricional. O tar em que condições de nutrição se encontra o
objetivo deste artigo foi caracterizar o luto sob o enlutado, visto que o consumo inadequado, em
enfoque da nutrição, com ênfase no comporta- quantidade ou em qualidade, dos alimentos pode
mento alimentar e nas estratégias alimentares, que determinar alterações no estado nutricional25. No
são respaldadas por vivências de luto. que tange aos enlutados recentes, a perda de peso
corporal significativa e rápida é uma das proba-
bilidades em decorrência da restrição no consu-
mo alimentar. Nas situações de agressão de na-
tureza psicogênica, o elemento hormonal funda-
mental de resposta orgânica reativa é o hormô-
nio liberador de corticotrofina (CHR)26,27; por
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conseguinte, há inapetência definida e completa; neurônios de neuropeptídeo Y são ricos em re-


redução profunda na ingestão alimentar, come- ceptores de glicocorticóides29, ou à liberação, no
çando por falta de interesse pela comida; e a hipotálamo, do neuropeptídeo Y, que é o princi-
mastigação torna-se muito vagarosa, dentre ou- pal neuromodulador do apetite e promove a sen-
tras reações26. A recusa do alimento é outro com- sação de fome26,31. Frente aos níveis elevados de
portamento frequente, sobretudo em casos de CHR, o organismo tenderia a excitar o fenômeno
luto por filhos, o que compromete ainda mais o oposto, representado pela secreção do neuropep-
estado de saúde. O corpo emagrecido de pais tídeo Y, numa estimulação compensatória, visan-
enlutados traduz muito; representa o desejo da do à busca do alimento26. Contudo, consideran-
própria morte e requer intervenção imediata, por do as peculiaridades desse tipo de estresse, que se
ser um padrão de comportamento caracterizado relaciona com apatia, desânimo e melancolia e
pela autoflagelação, decorrente tanto da recusa que, dentre outros fatores, se associa também à
alimentar quanto do controle da fome. Por con- falta de interesse pela vida, nem sempre a respos-
seguinte, em condição de severa restrição alimen- ta compensatória esperada pela indução do neu-
tar, o aumento do cortisol é um fenômeno espe- ropeptídeo Y ocorrerá, prevalecendo, no enluta-
rado, uma vez que este hormônio induz à prote- do, o desinteresse pela comida; talvez esse meca-
ólise e à lipólise para obtenção de energia28, mas a nismo possibilite compreender melhor a ausên-
produção excessiva, devido a um estresse intenso cia da fome pela complexidade psíquica do luto.
e prolongado, torna-se prejudicial19. A privação Quando a pessoa não dispõe de estratégias de
alimentar estimula regiões do hipotálamo-, res- enfrentamento na situação de estresse, o eixo en-
ponsáveis pela ativação dos neurônios que des- dócrino é disparado; dentre os seus principais efei-
prendem o CHR, aumentando, dessa forma, a tos está a diminuição do apetite32, condição que,
produção de cortisol, e a desregulação na produ- somada à anedonia, pode justificar o maior nú-
ção e no metabolismo desse hormônio implica mero de casos de emagrecimento, nos meses sub-
em mudanças nutricionais29. Ressalta-se, ainda, sequentes à morte do ente querido, em compara-
que a percepção de um evento traumático pelo ção com o ganho de peso.
córtex aciona um circuito cerebral subcortical, No estresse, o principal hormônio liberado
por meio das estruturas que controlam as emo- pela hipófise é corticotrofina ou hormônio adre-
ções e as funções dos sistemas viscerais, e esta nocorticotrófico (ACTH) em resposta ao CHR,
ativação causa, dentre várias outras reações or- que provoca o aumento na secreção de hormôni-
gânicas, a liberação de catecolaminas no hipo- os corticosteróides pelas glândulas adrenais30.
tálamo – adrenalina e noradrenalina – que tam- Nessa condição, deve-se considerar que os níveis
bém provocam anorexia30,31, suscitando ao or- de corticóides e de hormônios androgênicos no
ganismo uma resposta de enfrentamento, e os organismo aumentam, principalmente se forem
problemas aparecem quando as alterações são considerados o cortisol e a desidroepiandroste-
repetitivas por longos períodos, resultadas de rona, respectivamente, o que indica ativação anor-
uma ativação excessiva19. A morte e o luto po- mal do eixo hipotálamo-hipófise-suprarre-
dem alterar a sensação de fome e favorecer a per- nal20,28,30. Se esta ativação for intensa e, ou, contí-
da muscular e do peso corporal devido à anore- nua, têm-se significativas correlações entre noso-
xia ou à inapetência intensa, com implicações nos logias psiquiátricas e patologias clínicas e sinto-
mediadores hormonais, que, por sua vez, têm mas33, razão por que o ACTH e o cortisol, dentre
seus efeitos no estado nutricional. outros, são referenciados como hormônios do
O aumento de peso já requer outra análise, estresse ou hormônios adaptadores aos estresso-
visto que pode vir a ocorrer se o ato de comer for res19. Níveis constantemente elevados desses hor-
atrelado à busca incessante por compensações que mônios acarretam uma série de reações no cor-
possam aliviar, por alguns segundos, a tristeza po, no cérebro e no sistema nervoso, por dese-
profunda que reluz na alma, considerando que a quilibrar a resposta hormonal19,33,34. Esses medi-
ansiedade gerada por esse tipo de separação pos- adores hormonais têm efeito fisiológico distinto e
sa desencadear a compulsão alimentar. O alimento mensurável nos sistemas orgânicos, sobretudo no
pode ser um refúgio23, por propiciar pequenos sistema psíquico20,33, e associá-los ao comporta-
momentos de bem-estar na dor avassaladora do mento alimentar permite compreender o impac-
luto e nas tensões psíquicas. O ganho de peso tem to dessas alterações no estado nutricional.
mecanismos que se associam também a elevadas Tendo em vista que a gravidade do quadro
concentrações de cortisol plasmático, que pode clínico nutricional está pautada na severidade da
mediar a compulsão alimentar, uma vez que os privação alimentar ou nos seus excessos, deve-se
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estar atento às razões que desencadeiam a inade- traz sérias consequências, por afetar o senso de
quação alimentar35 durante a entrevista dietética, integridade do indivíduo e desestabilizar a ho-
inserindo nesta investigação a morte e o luto. meostase interna38. Para quem modificou dras-
Devem-se abordar questões como: O luto está ticamente a alimentação em decorrência do luto,
influenciando na privação ou na compulsão ali- antes de serem prescritas as orientações que vi-
mentar diagnosticada? A ausência de fome ou a sam restabelecer o equilíbrio nutricional, torna-
diminuição severa na ingestão alimentar pode ser se fundamental o profissional compreender o
considerada um ato insano, frente à dor de um processo de perdas que é inerente à morte. Tratar
luto? Com qual intensidade o luto se associa ao o luto é um processo de reparação e de elabora-
transtorno alimentar identificado? Quais as for- ção de perdas, o qual vai além do ter que apren-
ças de coesões determinantes nesses casos clíni- der a lidar com a ausência física da pessoa. A dor
cos? A mudança no comportamento alimentar, não é, portanto, a dor de perder, mas a dor da
que está associada ao luto, pode ser perpetuada presença constante do objeto perdido e a repre-
ou agravada, caracterizando-se como parte do sentação de sua ausência39. Esta abordagem re-
luto patológico? Como o enlutado percebe e ava- quer, também, a inserção de questionamentos
lia a perda do ente querido? A análise, em con- que auxiliem na identificação do vínculo e do sen-
junto, dos exames antropométricos, clínicos, bi- timento cultivado; do significado dessa perda e
oquímicos e imunológicos, aliada à entrevista de outras que, porventura, se associem a ela; e de
dietética, é que permitirá ao profissional classifi- como o enlutado sente, percebe e identifica o pro-
car o estado nutricional antes e após a experiên- cesso da morte, possibilitando a expressão dos
cia da morte, abrangendo, também, a condição sentimentos com a vivência do luto. A condição
alimentar atual do enlutado e a presença da sub- dos sintomas do enlutado tem um significado, e
nutrição decorrente de carências nutricionais es- a reconstrução deste tem importância essencial
pecíficas. A associação de dois métodos dietéti- na elaboração da perda; assim, o processo da
cos faz-se necessária, por favorecer a obtenção dinâmica do luto é individual40. Cada pessoa ten-
de mais informações, com vistas em uma análise de a achar maneiras ou formas para aprender a
criteriosa dos efeitos do luto na alimentação diá- lidar com esse tipo de sofrimento. Assim, muitos
ria e na mudança comportamental. Mediante acabam buscando, ao seu modo, alimentar-se,
essa abordagem, tem-se subsídios para avaliar o sem se preocupar com a qualidade nutricional
impacto da confrontação com a morte, cujos re- das refeições ou com o fornecimento calórico e
flexos são sentidos no contexto de vida e nos di- hídrico capaz de suprir as necessidades diárias.
versos comportamentos, com ênfase na mudan- O ato de comer condiz com o que é de mais fácil
ça de hábito alimentar. O impacto que o luto mastigação e deglutição. A ingestão hídrica e a
causa, conforme afirmou Parkes1, necessita ser alimentação diária podem, nessas condições, ser
avaliado para propor medidas de intervenção. modificadas em decorrência do luto, as quais, se
Desse modo, os sintomas identificados devem não tratadas adequadamente, colocam o ser hu-
ser sempre associados ao evento traumático es- mano em risco de desidratação e de desnutrição.
tressor. O tempo de luto deve ser registrado no O luto é uma experiência universal e está as-
primeiro atendimento36, por constituir um pa- sociado à maior morbidade e mortalidade41,
râmetro que permite, em associação com outros motivo pelo qual requer tratamentos mais efeti-
dados, uma análise do desenrolar do enfrenta- vos, no que concerne aos fatores terapêuticos
mento. É fato que a exposição prolongada ao empregados42. Estudos demonstram que enlu-
luto intenso interfere na capacidade adaptativa tados recentes buscam serviços de saúde, inclu-
do indivíduo, uma vez que o principal fator para indo a emergência, e apresentam maior necessi-
a desordem é ter de lidar com determinada mor- dade de atendimento clínico, maior número de
te e com tudo que ela representa, requerendo, internações e maior vulnerabilidade a problemas
nesses casos, intervenções mais contundentes psicossomáticos42. Como parte da reação a esse
para o não agravamento dos sintomas. tipo de perda implica na possibilidade de inade-
Em face a determinadas circunstâncias, como quação alimentar, dentre as mudanças fisiológi-
o é lidar com a morte de entes queridos, é normal cas e comportamentais elencadas à mesa, a en-
que o indivíduo experimente sentimentos de tris- trevista dietética precisa considerar as particula-
teza37 e sensações de vazio. A privação do outro ridades do luto e as suas fases.
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O velório: representações e implicações dos ou não resolvidos, com relação à saudade e à


na ausência de fome e na sensação de sede tristeza, e até mesmo de extrema revolta podem
fomentar um quadro clínico de luto permanen-
A cerimônia fúnebre, com as singularidades te, visto que os sintomas persistem e acabam se
que regem seus rituais, permeia múltiplos signi- perpetuando por anos.
ficados que alicerçam decisões que culminam com Torna-se imprescindível expressar sentimen-
um tipo de velório/funeral. Trata-se de uma ceri- tos e emoções que se associam à morte, assim
mônia que sofre influência das tradições e cultu- como é fundamental transformar a dor que ela
ra do país e de suas regiões, já que contextualiza causa em ações proativas5. Ao transformar a se-
crenças e valores concebidos11 e até os próprios paração em reparação, desativa-se a carga emo-
desejos do ente querido. Independente de sepul- cional negativa desse processo, que vai além da
tar ou cremar, velar o corpo é importante quan- dor, permitindo o fluxo da vida4.
do se trata do viver e sentir o realismo transcen- É importante conceber que a dor do luto não
dente à despedida do ente querido5. Estes desfe- é a mesma para todos. Devem ser considerados
chos finais são difíceis e penosos, visto que esse aspectos como causa do falecimento, que nem
momento é marcado pela extinção do corpo31; sempre é fácil de ser verbalizada, elo familiar ou
tem-se, aí, o confronto real com a despedida sem de amizade existente, idade cronológica do faleci-
volta. Para Rebelo36, o confronto psicológico e o do, dentre outros. Além disso, perante evento ines-
dilema mental são gerados pela assimilação raci- perado e catastrófico, como as mortes por aci-
onal da perda física. dente ou por suicídio, a capacidade adaptativa
O estresse que é desencadeado pelo confron- dos indivíduos é insuficiente17. Concebe-se, desse
to com essa despedida e com a aproximação do modo, que não há como se inferir a dor da morte
seu desfecho exige que se disponibilize, em local em uma escala, pois cada pessoa é única em rea-
reservado e apropriado, oferta de água fresca ções intrínsecas e extrínsecas frente aos sofrimen-
adequada ao consumo, de água de coco, de chás tos e às dificuldades confrontadas. Por isso, a dor
feitos à base de ervas com efeito calmante (a par- da perda e sua intensidade jamais devem ser obje-
tir de uma única erva ou pela combinação de to de comparação. O profissional tem de saber
várias), de biscoitos, dentre outras opções, como lidar com as diferenças de cada um na elaboração
caldos e sopas. Entretanto, deve-se apreender que do luto, enxergando além dos limites impostos
tanto a água como os demais produtos oferta- por dogmas/rótulos, comumente associados à
dos em cerimônias fúnebres possuem certo sa- morte, transpondo barreiras na arte de comuni-
bor de nostalgia, dada a privação do falecido. car-se para nutrir o ser humano além da ciência
Bebe-se ou come-se, quase sem vontade, em pe- da nutrição. Embora os princípios do relaciona-
quenas quantidades, com a finalidade de atenuar mento interpessoal construtivo, proposto por
o ressecamento da cavidade oral ou qualquer Feldman e Miranda43, sejam fundamentais no al-
outra reação fisiológica que possa ser decorrente cance das metas estabelecidas em parceria, educar
do estresse causado pela morte11. Em algumas no luto é sinônimo de desafios constantes para
cerimônias fúnebres, pequenos cuidados, como ambos os envolvidos nessa relação – nutricionis-
a oferta de líquidos e alimentos em pequenas ta e enlutado. Pessoas enlutadas, geralmente, tra-
porções, refletem o acolhimento com dignidade zem na sua fisionomia o reflexo da morte reque-
e demonstram que há alguém atento às necessi- rendo cautela por parte do profissional.
dades dos enlutados5. Salienta-se, ainda, que es- O luto contempla fases44 que necessitam ser
sas cerimônias têm influência no sabor dos ali- aprendidas, melhor observadas, elucidadas e tra-
mentos, tanto quanto na sensação de fome e de balhadas na assistência nutricional; o enlutado
sede11. Portanto, os sentimentos e as emoções que tem de passar por fases para alcançar um fim
se associam à cerimônia fúnebre também agre- prático45. Nesse processo, é essencial conversar,
gam valores aos alimentos servidos, o que susci- naturalmente, sobre o assunto, semeando refle-
ta investigação na entrevista dietética. xões e aprendizagens. Reflexões importantes acer-
ca dos comportamentos alimentares identifica-
Aprender com a morte e com o luto: dos e de seus efeitos no corpo favorecem a expe-
reflexões sobre o acolhimento nutricional rimentação de condutas nutricionais, incorpo-
rando as mudanças desejadas. Diferentes abor-
Aprender com a morte é um exercício diário, dagens, estabelecendo a relação de causa e efei-
começando por não negá-la. Situações de morte tos, permitem atrelar, didaticamente, as queixas
não consentidas, de sentimentos não vivencia- e os sintomas às condutas nutricionais e aos be-
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nefícios para a saúde, despertando o interesse nessa particularidade é abrir uma cascata de
pela experimentação da estratégia alimentar. emoções e de sentimentos. Tem-se, aí, outro de-
Deve-se contextualizar, na condição nutrici- safio nutricional a ser trabalhado, uma vez que a
onal do enlutado, a história de vida que, somada memória de experiências resulta em bem-estar
à característica de personalidade, aos padrões ou em mal-estar, quando evocada20. Resgatar
adaptativos de comportamento, à influência da receituários é sinônimo de abrir as portas para
genética familiar, à idade, à presença ou não de todas as suas vertentes de representações, de sig-
patologias e de cuidados relativos com a saúde, nificados, de sensações e de lembranças diversas
sinaliza um balanço adequado ou inadequado que a culinária possui no âmbito da família11.
de energia e de nutrientes. A saúde nutricional do Para resgatar essa culinária tão singular, deve-se
enlutado só pode ser promovida, recuperada ou trabalhar, em conjunto, a representação das boas
mantida se for sustentado o adequado equilí- lembranças do ente querido, que, recolocadas de
brio entre planejamento alimentar e metabolis- modo positivo, expressam também afeição e
mo, visto que o luto leva a um processo de exaus- homenagem.
tão das energias vitais. Para que isso ocorra é
fundamental adotar estratégias alimentares con- O comportamento alimentar
dizentes com as condições do luto, as quais trans- nos meses que sucedem a morte
põem a mudança alimentar identificada, elencan- do ente querido: compreensão
do escolhas que propiciem ânimo e energia ao para trabalhar as estratégias alimentares
corpo e dêem mais sentido à vida. Desse modo,
experimentar estratégias ou condutas alimenta- Nos primeiros meses após o velório, a ten-
res, no princípio do tratamento, torna-se relati- dência do enlutado é afastar-se de tudo que dê a
vamente mais apropriado à adesão por parte do ele prazer. No que concerne à alimentação, os
enlutado do que a dieta propriamente dita. preparativos inerentes ou alusivos à culinária da
casa e à ornamentação da mesa de refeições, tan-
O aconselhamento dietético perante o luto to quanto o prazer com a degustação proporci-
onada pela comida caseira bem feita, na compa-
A incorporação de pequenas mudanças na nhia de outras pessoas, tornam-se distantes do
alimentação, tornando os enlutados parceiros que parece ser o mais essencial ou vital nesse pe-
nessa decisão, é uma atitude sensata. Mediante o ríodo: o de ter que aprender a lidar com o sofri-
monitoramento quinzenal, de preferência, as con- mento da perda do ente querido e com todos os
dutas vão sendo mais trabalhadas e aprofunda- vazios inerentes àquela ausência. A identificação
das em conhecimentos, assim, o ajuste das por- dos impactos reais e significativos no dia-a-dia
ções alimentares é passível de ser concretizado do enlutado, a qual se associa diretamente à ali-
com sucesso. De início, a lógica é estabelecer a mentação, pode favorecer escolhas mais sensa-
mudança de comportamentos e de atitudes fren- tas e cabíveis das estratégias nutricionais.
te aos alimentos e aos líquidos, incluindo a in- O simples ato de posicionar-se à mesa para
gestão de água, para, nas consultas subsequen- realizar as refeições diárias desencadeia emoções
tes, ajustar a prescrição das porções mais ade- diversas e aflora fortes lembranças11. Isso requer
quadas e representativas dos grupos de alimen- tempo para que o enlutado possa reorganizar a
tos, considerando a necessidade nutricional indi- mente e os seus sentimentos, em consonância com
vidual. O impacto das pequenas mudanças na essa atitude. Diante da mesa, confronta-se com o
alimentação diária, com tarefas preestabelecidas, “vazio da cadeira” que faz alusão ao vazio que há
sem um esforço demasiado por parte do enluta- na alma de quem vivencia o luto recente. Na com-
do, favorece a adesão ao tratamento nutricional posição da mesa familiar, haverá um prato, um
e a satisfação com os resultados. conjunto de talheres e um copo a menos, se for
Com o conhecimento dos hábitos alimenta- considerada apenas uma morte. É preciso conce-
res da família, a culinária deve ser resgatada, res- der tempo aos familiares, sem que eles abando-
peitando-se os limites que poderão ainda ser es- nem a estratégia de compartilhar uma das refei-
tabelecidos pelos enlutados. Quando, por razões ções diárias, que pode ser o desjejum ou uma leve
diversas, o enlutado distanciar-se da culinária que ceia, até que as refeições principais tornem a ocu-
desencadeia fortes lembranças, é prudente aguar- par o seu espaço. O ritmo de cada família, nesse
dar um pouco mais para se aprofundar nesse retorno à mesa, é único. O importante é envolver
assunto. Há certos receituários que estão entre- todos os componentes da casa, possibilitando a
laçados com a memória do ente querido, e tocar colaboração destes com a conduta de contribuir
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para a harmonia da família na composição da culinária, dada essa particularidade, pode ser be-
mesa e impor aos enlutados menos perdas com a néfica e proveitosa para a definição de uma traje-
morte. Com o passar do tempo, a rotina em fa- tória de luto que consubstancie a preservação de
mília vai ganhando vida, apesar daquela ausên- receituários de família, por permitir a expressão
cia. A conversa informal à mesa, dependendo do das emoções que entrelaçam com a história de
cardápio que está sendo desfrutado, pode até in- vida dos que partiram e dos que ficaram. A de-
serir, naturalmente, lembranças do ente querido. gustação da culinária demonstrada tem que estar
Assim, algumas colocações verbais retornam ao inserida no desenvolvimento da oficina, por con-
cotidiano familiar, sem tanta angústia, tais como: sentir a identificação de aromas, de sabores e de
“se fulano estivesse aqui, não sobraria nada; esse texturas que se confundem com as lembranças
era um dos pratos preferidos dele(a); somente vivas por alguém. Mesmo que os primeiros pe-
ele(a) sabia preparar esse alimento como nin- daços sejam amargos, pelo sentimento da perda e
guém”. Referenciar o ente querido à mesa de refei- não pelo estímulo sensorial, os outros começam
ções passa, então, a ter significado de ótimas e a disseminar as características sensoriais que são
inesquecíveis lembranças, que, atreladas à culiná- atribuídas à preparação e, aos poucos, já se per-
ria e a tudo que ela envolve, mantêm ou preser- cebem os predicados alimentares que lhes são
vam mais os pratos típicos da família11. próprios. Considerando o contexto em que a ali-
Perante o luto, alguns familiares tendem a se mentação é conduzida, pode-se também optar
afastar da culinária preferida do ente querido; há, por preparações prontas, solicitando, com ante-
por assim dizer, repulsa por certos alimentos ou cedência, aos componentes do grupo de enluta-
preparações que se associam a fortes recordações, dos que preparem a receita que desejam compar-
já que conferem carga afetiva a esses produtos. tilhar com os demais na composição da mesa de
Desse modo, se não houver uma intervenção, lanche. Ao compartilhar espaço, vivência e culi-
muitos acabam por excluir, definitivamente, as nária, os pares vivenciam bons momentos, dado
preparações alimentícias que acentuam a sauda- o caráter unificador desse processo, em razão dis-
de. Entender esse processo é tornar viáveis as es- so, devem-se compor, também, as estratégias de
tratégias alimentares de reincorporação dessa cu- enfrentamento e de apoio ao luto.
linária, que tem simbologia de “memorial”. A va- As comemorações ou celebrações festivas e
lorização de dons intrínsecos à culinária e à arte seus significados têm também suas implicações
de preparar os alimentos pode favorecer o elo à mesa. Nas celebrações habituais em família e
entre as receitas caseiras saudáveis e a importân- nas datas de aniversário e de falecimento do ente
cia de preservá-las. A devida atenção a essa parti- querido, os sentimentos alusivos à perda inten-
cularidade permite identificar os produtos e as sificam-se, remexendo no equilíbrio psíquico e
preparações alimentícias excluídas pelo confron- orgânico. Nesses períodos, o sono, o humor e o
to com o luto11, para selecionar, de comum acor- comportamento alimentar podem se alterar no-
do com o enlutado, os que poderão compor a vamente, em resposta aos significados que essas
estratégia de reintegrá-los na prática alimentar. A datas representam, avivando a irreparável falta
partilha de experiências, na culinária, com outros que se tem do falecido. Não há como fingir que
que enfrentam o luto sedimenta também referên- certas datas não machucam, como não há como
cias a novas vivências sentidas, criando oportuni- alterar o calendário ou pular o dia que marcou a
dades de resgatar os receituários que poderiam separação dolorosa48. Aniversário de filho faleci-
vir a ser perdidos no seio familiar, com o desfecho do, por exemplo, é algo extremamente singular;
da morte. Em cada receita executada, uma histó- trata-se de uma data que desencadeia vários pen-
ria é tecida e compartilhada, concomitante com samentos; por um lado, está um rosto que se
as revelações que compõem os segredos da culi- emoldurou no tempo e que nunca irá envelhecer,
nária, em que cada ingrediente, além de ter sua por outro, uma imagem de como ele(a) seria
importância na elaboração do receituário, recebe, agora. Deve-se entender que, em certas ocasiões,
também, a menção do ente querido, tanto nas haverá possibilidade de reações nos comporta-
colocações verbais quanto nos procedimentos ou mentos, sem se tratar especificamente de um re-
detalhes que são inerentes à preparação. Pessoas trocesso na adaptação ao luto. Porém, sem negar
enlutadas encontram suporte social de apoio bas- as datas, a vida e as celebrações, é possível apren-
tante eficaz nos encontros ou na terapia de gru- der a conviver com essa dor da ausência, para
po4,36 e sentem-se encorajadas a reagir46. Essa par- que ela passe a não incomodar tanto48. No co-
ticipação permite ainda que se estabeleçam novos meço, essa participação demanda um esforço que
tipos de vínculos47. Por essa razão, a oficina de parecerá exacerbado, todavia, com persistência,
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tudo se acomodará para melhor. No prossegui- bem-estar e na reposição de nutrientes e de com-
mento de novas situações, aprende-se a articular ponentes alimentares que interferem na saúde
o convívio com a presença ausente, ou com a mental e na produção de neurotransmissores
ausência presente4. O resultado desse empreen- associados a essa resposta11. Pesquisas têm com-
dimento de vivenciar as celebrações permite re- provado, com rigor científico, o poder da mente
verenciar a vida, como rememorar o ente queri- humana na recuperação da saúde, denominan-
do, concebendo que ele(a) permanece na memó- do essa capacidade, inerente ao ser humano, de
ria e no amor, fazendo parte de qualquer festivi- estado salutogênico54. Quando o enlutado é ca-
dade. O tempo se encarregará de acomodar esses paz de fazer projetos de vida, mesmo em circuns-
sentimentos, mas não de omiti-los plenamente, tâncias delicadas como o é no enfrentamento do
visto que o sentimento da perda não desaparece luto, a mente exerce ação na saúde55, repercutin-
completamente. Vivenciar a vida, celebrando-a, do, favoravelmente, no estado psíquico e orgâni-
é não perder o presente, e essa é uma das metas a co e beneficiando, sobremaneira, a capacidade
serem estabelecidas com pessoas enlutadas. adaptativa do indivíduo.
Outros cuidados nutricionais, como a repo-
sição hídrica, requerem também adaptação gra-
dual para serem incorporados no cotidiano. A Considerações finais
água é um componente essencial de todos os te-
cidos corporais49 e vital para a sobrevivência hu- A banalização da morte na vida das pessoas con-
mana. O estímulo, nessa reposição, deve ser dado tribui, substancialmente, para o agravamento dos
pela busca, em pequenos volumes, de água, mais quadros de estresse traumático e de transtorno de
vezes ao dia, mesmo que essa atitude não esteja adaptação. É preciso que os profissionais da área
atrelada à sensação de sede. Deve-se começar por de saúde possam rever seus valores diante da mor-
estabelecer uma rotina nessa busca, com inter- te, para que o acolhimento digno, independente de
valos definidos, mantendo essa estratégia por dois qual seja a especialidade de atuação, seja incorpo-
ou três dias. Assim que a rotina de reposição de rado nos diversos atendimentos individuais e cole-
líquidos for estabelecida, inicia-se o aumento gra- tivos, no âmbito de prestação de serviço.
dual no volume ingerido, com o assistido devi- Nesse contexto, a inserção de conteúdos que
damente instruído no procedimento desejado. trabalhem os conceitos teóricos e práticos da ci-
Degustar pedaços de frutas com maior teor de ência da Tanatologia articulados aos princípios
água dá uma sensação agradável na boca, por- da nutrição humana na formação do nutricio-
tanto, na meta de se restabelecer uma hidratação nista precisa ser concretizada, capacitando-os
adequada, essa opção pode ser conjugada com a melhor para lidar com a transitoriedade da vida
ingestão de água e de suco de fruta natural. humana, a finitude e o luto.
Há certos alimentos que estão associados ao No que concerne à associação da ciência da
estado de ânimo e de humor, e a inclusão destes nutrição com a da tanatologia, há ainda carência
no cardápio do enlutado é outra meta a ser atin- de estudos. A sua aplicação é ampla, visto que
gida. Isso ocorre porque a liberação de substân- incorpora não apenas os conceitos trabalhados
cias que transmitem impulsos nervosos no cére- neste artigo, como também os cuidados com o
bro é influenciada pela composição química dos paciente terminal e os efeitos na culinária. Outros
alimentos11. Por exemplo, a produção de seroto- estudos relativos ao luto e aos seus efeitos no com-
nina no organismo depende tanto da ingestão de portamento alimentar adicionarão informações
alimentos fontes de triptofano, quanto do con- relevantes sobre a real dimensão desse processo.
sumo de carboidratos, e essa combinação deve A compreensão desses efeitos amplia o entendi-
ser considerada no planejamento alimentar11,50, mento das condições que influenciam o consumo
além da associação com outros nutrientes, como alimentar do enlutado, repercutindo no seu esta-
vitaminas (B6 e ácido fólico) e magnésio29,51. Essa do nutricional, e as estratégias alimentares deve-
atenção com a reposição de triptofano pode ter riam ser incorporadas aquelas de enfrentamento
também efeitos na indução do sono52, visto que e de apoio ao luto. Assim, no âmbito da saúde
a serotonina, por ser precursora do hormônio coletiva, poderão ser implementadas ações nutri-
melatonina, atua favoravelmente nesse proces- cionais específicas e mais eficazes à recuperação
so53. No avanço da reconstrução pessoal, o bom de pacientes traumatizados pela morte, sem ne-
humor, a alegria e o amor contribuem, inegavel- gligenciar os acontecimentos que a circundam,
mente, e isto tem impulsionado pesquisas na área mas com o intuito de desmistificá-la e de oferecer
das ondas cerebrais responsáveis pelo estado de aos enlutados amplo acolhimento nutricional.
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Artigo apresentado em 30/04/2013
Aprovado em 22/05/2013
Versão final apresentada em 22/05/2013

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