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FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIA HUMANAS

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Marina Gomes Ribeiro da Silva – nº USP 12821989

Data da entrega: 30/08/2023

FLC0115 - Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa II (2023)

PROF. Jorge Viana

FICHAMENTO DO TEXTO: LEITE, Marli Quadros. Muitas vozes em uma só: A terceira margem do rio.
Investigações: Linguística e Teoria Literária, v. 21, n. 2, p. 57-80, 2008 Tradução. Disponível em:
Moodle usp Acesso em: 28 ago. 2023.

Página 1. 1° BLOCO: “ Gênero discursivo diante da perspectiva de normatividade e a diferença


entre romance e conto"
2á6 Marli Quadros Leite (2008) inicia o texto homenageando seu amigo e afirmando que o
gênero discursivo será o objeto de estudo a partir da normatividade. Em seguida, em seu texto,
ela homenageia Luiz Antônio Marcuschi ao discutir o gênero discursivo de uma perspectiva
pouco comum em artigos científicos brasileiros: a normatividade. Tratar dos gêneros do discurso
é tratar da norma, como explica Bakhtin e confirmado por Ramognino e Auroux. A sociologia é
normativa de fato, pois a norma é o elo entre o indivíduo e a sociedade. Auroux, por sua vez,
afirma que a linguística é uma ciência normativa, uma vez que a língua é um fato social
engajado normativamente. No entanto, ele reconhece que a língua também tem um
engajamento ontológico e pode ser estudada a partir de sua propriedade de ser, mesmo sendo
um objeto marcado normativamente.
Com isso, a autora introduz que em outra linguagem, baseada na filosofia da linguagem de
Bakhtin, talvez seja mais simples tratar desse problema. Segundo Bakhtin, nenhum locutor
inaugura a língua, o que significa que a língua já foi e será usada por outros. A língua permite a
expressão criativa, mas obedece a imperativos sociais, como os gêneros discursivos associados
a cada esfera de atividade social. Complementando que o uso da linguagem é um aspecto
fundamental da comunicação humana e, como tal, está sujeito a várias restrições sociais e
normas que influenciam a maneira como falamos. Embora a linguagem permita a expressão
criativa do indivíduo, ela também pode ser vista como um reflexo e refração da realidade. O uso
da linguagem é influenciado pela situação em que é utilizada, seja em uma conversa informal ou
em um discurso formal.
No entanto, é importante ressaltar que o discurso e a linguagem são regidos por normas
sociais e que essas normas são denominadas gêneros discursivos. Estes gêneros são formados
de maneiras diferentes, dependendo do engajamento do indivíduo em cada uma das esferas das
atividades sociais. A linguagem usada em cada gênero é diferente, bem como o estilo linguístico
associado a cada um deles. A enunciação da língua não é aleatória nem perdida no tempo e
espaço. Pelo contrário, a enunciação é um ato individual de um sujeito posicionado no tempo e
no espaço, que obedece a injunções sociais e restrições próprias de cada situação em que o
sujeito está inserido. Essas restrições são normativas e visam a regulamentar cada intervenção
discursiva humana. Em resumo, a linguagem é influenciada tanto por fatores sociais quanto
individuais, e é essencial para a comunicação humana.
Por isso, a autora alega que o locutor precisa conhecer tanto as formas gramaticais quanto
os gêneros do discurso para a comunicação efetiva. Na linguística, o conceito de norma deve
ser aplicado ao discurso como um todo, não apenas ao enunciado. A língua é influenciada pelo
sujeito socialmente engajado, que pode mudar ou romper as restrições sociais. Neste texto,foi
analisado a variação na prosa romanesca do conto "A terceira margem do rio", de João
Guimarães Rosa, considerando rupturas e variações na norma corrente.
Considerando estas definições, a partir da página 4 não é discutida a diferença formal entre
romance e conto, mas sim a categorização mais ampla da linguagem, a prosa romanesca, de
acordo com Bakhtin (1993). Marli ressalta que a sociolinguística geralmente observa a variação
como diferentes formas de expressar o mesmo significado em situações de comunicação
controladas pelo pesquisador, a partir de variáveis relativas ao usuário e ao uso da linguagem.
No entanto, essa análise não leva em conta a importância do sujeito, seu engajamento
enunciativo e os efeitos de sentido de suas escolhas. Em Leite (1998), foi analisado o status
lingüístico de expressões e segmentos lingüísticos, como as formas de tratamento "nós" e "a
gente", o verbo "chamar" e os verbos "chegar" e "ir", acompanhados de preposição "a" ou "em".
A Sociolinguística brasileira tem muita produção nesse campo, conforme relatado em Vandresen
(2000) e Neves (1999).
Por isso, a proposta seguiu a análise da variação e considera o enunciado como resultado da
enunciação dos falantes. As expectativas de respostas recíprocas dos sujeitos enunciativos
também são consideradas. Essa abordagem segue o modelo teórico-metodológico de Bakhtin.
O enunciado significa algo e o leitor responde a essa significação. O comentário das escolhas
linguísticas produz efeitos de sentido que são respostas do leitor quando este entende. Segundo
Bakhtin, o romance é o espaço privilegiado da linguagem porque é o mundo em e de linguagem.
Nele, todas as vozes são possíveis na fala dos enunciadores: autor, narrador e personagens
individualizados. O romance é um fenômeno pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal e traz uma
diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e vozes
individuais. Todas as vozes, dialogizadas no romance, compõem uma estilística que reflete o
plurilinguismo social. É possível buscar na prosa romanesca não apenas a hibridização, mas
também a variação que constrói a linguagem estilizada dessa prosa.
De acordo com essa perspectiva, a prosa romanesca não é um monólogo do autor, mas um
diálogo com várias vozes e gêneros que configuram o romance. A linguagem do romance é
emanada do autor, o romancista. Bakhtin diz que o foco principal do gênero romanesco é "o
homem que fala e sua palavra". Embora o discurso seja uma representação artística, o autor é
um homem historicamente posicionado no tempo e no espaço e o discurso é social, não
individual. A prosa romanesca é estilizada, mas emana desse sujeito empírico, o que aparece na
imagem da linguagem que a literatura cria. Segundo Bakhtin, a linguagem literária não se afasta
completamente da língua empírica, uma vez que quem faz o discurso literário é um ser concreto
socialmente localizado. Ele se refere a três categorias básicas que se combinam no texto
literário: hibridização, inter-relação dialogada das linguagens e diálogos puros. A hibridização é a
mistura de duas linguagens no interior de um único enunciado, que pode ser consciente ou
inconsciente. Esta última, aliás, é uma das modalidades mais importantes da existência histórica
e das transformações das linguagens, e é sempre o enunciado que serve de cratera para a
mistura.
Bakhtin discute sobre a linguagem e sua representação literária, explicando que a
hibridização inconsciente é própria da linguagem empírica corrente e a consciência é própria da
linguagem literária, que é construída sobre duas consciências. A prosa romanesca é composta
de uma linguagem estilizada, que é construída sobre muitas fontes, incluindo a realidade
linguística do autor em toda sua amplitude sociolinguística e ideológica. O objetivo do romancista
não é reproduzir exatamente o empirismo das linguagens estrangeiras, mas sim dominar
literariamente as representações dessas linguagens. Bakhtin afirma que o romance requer uma
expansão e aprofundamento do horizonte linguístico, um aguçamento de nossa percepção das
diferenças sociolinguísticas. Neste texto, levantamos pontos teóricos para investigar a variação
na prosa romanesca, a partir de dois pontos de vista: sociolinguístico e estilístico enunciativo.

Página 2. 2° BLOCO: “A literatura de João Guimarães Rosa dentro da hibridização”


6 á 10 O bloco inicia-se com uma reflexão acerca da importância da busca da originalidade e
estilização que Guimarães Rosa tem em sua literatura, utilizando os recursos da língua para
construir uma linguagem identificada com o sertão e o Brasil. Ele trabalha com o português
do Brasil atual como plataforma, mas também utiliza outras línguas e estágios do português
em sua obra literária. Ao escrever, ele se liberta da tirania da gramática e dos dicionários dos
outros, afirmando que essas foram inventadas pelos inimigos da poesia. (Entrevista com
Günter Lorenz, 1965)

Neste depoimento, o escritor destaca o processo de estilização consciente da língua,


bem como a presença de muitas outras línguas na prosa romanesca. A língua portuguesa
do Brasil é o ponto fundamental e orientador desse processo, como ilustrado pela metáfora
do "aparelho de controle". O escritor defende que a variedade brasileira é mais vasta e
menos saturada do que a europeia, devido ao seu desenvolvimento ainda em curso e às
suas contribuições culturais. No entanto, é importante destacar que o escritor também
escreve numa língua saturada, influenciado pela ideologia brasileira. Essa ideologia da
"riqueza expressiva" é um lugar comum no Brasil e é importante lembrar que as línguas
vivas se renovam a cada momento e não se saturam sob esse ponto de vista.

Guimarães Rosa era um escritor original que não se encaixava em estereótipos. Ele
rejeitava a ideia de que sua literatura era revolucionária porque quebrava as regras
gramaticais e incorporava elementos da língua falada em uma região do Brasil. Em vez
disso, ele via sua linguagem como um rio infinito que se estendia para o passado, presente e
futuro. Embora sua abordagem à linguagem fosse complexa, ele trabalhava com palavras
arcaicas, neologismos e elementos da linguagem contemporânea para criar seu discurso.O
conto narra a decisão do pai de abandonar a família e os amigos para viver navegando em
um rio, contado pelo filho em primeira pessoa. A linguagem é estilizada com estratégias
morfossintáticas e léxico-semânticas para criar efeitos de sentido precisos e diferentes em
cada caso. O conto tem cento e trinta e cinco períodos, a maioria curtos, construídos com
poucas orações. A estilização faz-se na base de estratégias que criam o efeito de sentido de
proximidade e informalidade, que fazem o leitor se situar na vida conservadora do campo,
pela recorrência a palavras e expressões antigas, de regionalismos léxicos e sintáticos e de
expressões coloquiais próprias da conversação cotidiana do ambiente rural. Foram listados
alguns procedimentos utilizados pelo autor:
Além dos estilos usados, há formas da norma culta e da linguagem literária.Estas
formas foram ressaltadas em trechos do conto.

Página 3. 3° BLOCO: “Margens e vozes terceiras: o texto ”

10 á 17 Marli discorre nesse bloco sobre o primeiro parágrafo do conto em que encontrou
duas situações dignas de nota. Um uso que não parece ser comum na norma linguística
brasileira, em suas diversas variedades regionais, que é o uso do particípio do verbo ser,
no sentido passivo, “sido assim desde jovem". O autor aproveitou a expressão nominal “a
gente”, substituindo por nós. O “a gente” era estigmatizado;hoje está gramaticalizado e
gramatizado como forma de tratamento, de representação da primeira pessoa. O conto
apresenta este termo 12 vezes enquanto “nós” apenas 4.

Em diversas outras passagens percebe-se pela escolha dessas formas, o dialogismo


do discurso, pelo eco da voz sertaneja ouvida em cada palavra. Guimarães trouxe para o
conto uma variedade você / você › ocê › cê / para forma de endereçamento, da linguagem
comum, normal do povo, para dar um efeito especial à expressão do personagem.
Garantir que o caráter se expresse em escala crescente por meio de diferentes formas, da
mais íntima à mais formal, da forma da palavra mais reduzida linguisticamente à mais
completa, cê ocê você e de perto. A raiva dela pelo desejo do marido de ir até o rio na
canoa que ele construiu era distante.

O equilíbrio do texto em termos de “tom” sertanejo é possível com o uso equilibrado


do arcaísmo e dos usos contemporâneos. Mesmo que não sejam percebidos, são a base
sobre a qual tudo se organiza e o diferente se torna visível. Exemplo disso pode ser visto
na opção do verbo “espiar”, “ olhar’’, preferido na fala popular do sertão brasileiro, talvez
pela preservação do antigo significado português. Além disso, é uma criação preferida na
língua caipira com a preposição e regência do verbo acenar, na construção de uma frase
infinitiva curta e significativa, por analogia com outras regências com a preposição de, e às
vezes preservando os antigos usos.Ainda como marcas da linguagem popular, o autor
preferiu os verbos mascou, por mordeu, e bramou, de bramir, por gritou ou ociferou. As
escolhas têm objetivo certeiro: fazer o leitor “ouvir” a voz do homem do sertão, quando a
personagem fala, em discurso direto ou não.
A formação da expressão alva de pálida, estilizada a partir das expressões comuns e
correntes “branca de raiva” ou “pálida de susto”,também concorre para pôr o sertanejo no
texto, pela lembrança do diferencial de sua linguagem aos ouvidos urbanos e comuns. O
cruzamento de pessoas verbais, tão comum na linguagem falada corrente popular do
Brasil, aparece algumas vezes no conto. Nenhuma escolha é aleatória. Nesse caso, a 1ª
pessoa do plural, cruzada com a 3ª do singular, cria o efeito de sentido da proximidade
versus distanciamento, em relação ao sentimento de todos sobre a situação do pai, que,
embora ausente, era muito presente, porque estava ali no rio ao alcance dos olhos e das
vozes de todos. Por isso, ao mesmo tempo em que o narrador diz “Nós, também, não
falávamos mais nele”, com pronome e verbo em primeira pessoa, de modo a trazer a ação
para bem perto de cada um, diz “só se pensava”, com o verbo em terceira pessoa, para
deixar a ação mais impessoal. Nesse caso, a ação era de todos e não era de ninguém em
particular. Por isso mesmo, o narrador nega o esquecimento que a família vai tendo do pai,
por meio do mesmo jogo de pessoas gramaticais, 1ª ou 3ª, nosso/se: “não, de nosso pai
não se podia ter esquecimento”

Por isso, dizer como todo mundo diz não é a regra de Guimarães Rosa. Ao contrário,
ele entendia que a linguagem era a extensão da personalidade, e cada um tem a sua. Era
o aspecto metafísico da língua a que ele recorria para dizer que “a linguagem e a vida são
uma coisa só”. Segundo entendia, antes de tudo, a linguagem dele tinha de ser dele.
Como é impossível a cada falante sair por aí inventando uma língua completamente nova,
e não era a isso que o autor se referia, ele dava “toques” de estilo à língua de sua prosa,
para torná-la diferente, especial. Por isso, trabalhava tanto na cadeia paradigmática: para
buscar a palavra, ou o sintagma, mais simples e expressivo ao contexto.

Página 4. 4° BLOCO: “A JANGADA DE PEDRA, OBRA RECONHECIDA COMO


INTEGRAÇÃO CULTURAL” [§§ 102-243]
18 á 23 Neste bloco, a autora conclui que conforme a lição de Bakhtin, antes citada, a prosa romanesca é a
estilização da linguagem, por meio de processos e estratégias regulares. Essas estratégias
consistem, principalmente, da mistura de várias vozes, por meio do processo de hibridização.
Uma quebra na regularidade desse processo é gerada por outro processo, a variação, que
permite ao leitor perceber a entrada da linguagem comum, não estilizada, no texto. Em geral,
diz o autor, a variação leva à hibridização, mas um nível elevado de variação prejudica a
estilização e pode, até, ser considerada negativa para o texto.

O texto em questão, nessa perspectiva, é equilibrado. Se é possível, ou aceitável, apenas para


não deixar nossa afirmativa como mera opinião, analisar a situação da estilização por meio de
números, podemos apresentar o seguinte resultado: da observação e análise de cada um dos cento e
trinta e cinco períodos que compõem o texto, verificamos que apenas quarenta e um se apresentaram
como frases que podem ser consideradas de uso corrente na língua culta e que não receberam
tratamento estilístico especial, o que representa 30% do total. Em cada um dos demais períodos, ou
seja, noventa e quatro, portanto 70%, o autor operou um processo de estilização da frase, alguns dos
quais aqui comentados.

Quanto ao texto objeto de análise, esse percentual, segundo pensamos, constituiu medida ideal
para estabelecer o equilíbrio entre as rases investidas de recursos estilísticos e as de linguagem
corrente contemporânea. O balanceamento entre os dois processos é tão perfeito que o leitor pode até
não perceber a diferença entre um e outro tipo de frase, elas se harmonizam completamente. Sob o
ponto de vista do gênero do discurso, o texto analisado seguiu os ditames da norma: é prosa
romanesca e, como tal, apresenta linguagem estilizada, é uma imagem da linguagem das enunciações
representadas.Paradoxalmente, podemos dizer que também o fazer da estilização literária é
normativo, embora não haja uma norma literária, na perspectiva exatamente de que o dever ser da
linguagem literária é a ruptura de padrões de normalidade da linguagem comum e corrente, da
realidade lingüística.

A estilização se fez sobre dois processos simultâneos, o da hibridização e o da variação (da


hibridização), pelos quais se mostram, de um lado, por palavras e expressões escolhidas, as vozes do
narrador e das personagens representadas e, também, outras vozes que habitam as vozes desses seres
de linguagem; e de outro, a voz do autor sobre a qual todas as outras vozes acontecem no mundo de
linguagem, que é o texto literário. As outras aparecem muito, essa, um pouco. A autora buscou
encontrar em “A terceira margem do rio a”, característica fundamental dos gêneros literários, a
estilização, realizada por hibridização e a variação, em que as vozes que falam se expressam pela
prosa romanesca. O texto analisado, como vimos, é normativo também sob esse ponto de vista: é
altamente estilizado, com pouco nível de variação.

Como a prosa romanesca é plurilíngüe e plurivocal, as vozes que a compõem têm origens diversas.
Sob essa perspectiva, identificamos o lado sociolingüístico das vozes, oriundas de: outros tempos
(variação temporal,arcaísmos), outras etnias (variação de língua, tupinismos), diversos espaços
sociais (variação sociocultural, regionalismos, brasileirismos, populismos), diversos níveis sociais
(variação de registros, informais e formais). Além disso, embora a literatura se manifeste pela
modalidade escrita, a língua oral está nele impregnada, porque uma imagem de oralidade é construída
na base de recursos e estratégias linguísticas-discursivas que criam o efeito de oralidade, na escrita,
fato tão real no texto.

João Guimarães Rosa cria a idéia da terceira margem não somente quanto à vida e a sanidade do
narrador e da personagem, mas também da linguagem, que não é classificável nem como isso nem
como aquilo, mas como muito mais.

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